trajetórias, ciberespaço e movimentos ciberativistas: os ... souza da...funcionalismo privilegia a...

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1 Trajetórias, ciberespaço e movimentos ciberativistas: os twitteiros e suas redes políticas em Natal-RN Raquel Souza da Silva 1 Resumo: As matrizes das orientações metodológicas em Antropologia Social são o trabalho de campo e o método etnográfico sistematizado por Malinowski na década de 20. A transição da antropologia dos estudos de sociedades e culturas particulares para o estudo das sociedades contemporâneas fez com que os pesquisadores percebessem a existência de impasses teóricos e metodológicos canonizados por este autor. Desta forma, a técnica de observação-participante, entre a década de 50 a 80, passaria por vários questionamentos com intensificação da complexidade das relações mantidas na cidade. Na década de 90, com a emergência do ciberespaço, novos desafios foram lançados ao fazer antropológico. Com todas as discussões hoje apresentadas por uma antropologia no e do ciberespaço, existe um consenso entre os pesquisadores de que a “observação-participante” ainda é fundamental ao trabalho antropológico. Esta proposta de artigo consiste em uma reflexão concernente à parte inicial do trabalho de campo do curso de doutorado que está em andamento no PPPGA-UFF com os movimentos ciberativistas de Natal-RN, 2010 a 2015. A pretensão é refletir sobre como “a história de vida” junto ao processo de observação-participante pode elucidar a trajetória política de sujeitos em movimentos ciberativistas e as consequências deste “percurso individual” para o quadro político local na contemporaneidade. Palavras-chave: antropologia no ciberespaço; método biográfico; metodologia; ciberativismo; Em um mundo cada vez mais complexo, em rede e globalizado, a antropologia aparece como uma ciência do “estudo do homem pelo homem” que deve buscar compreender as questões sociais e culturais da contemporaneidade. Para isso, por meio da construção de problemáticas de investigação antropológica, é necessário o entendimento das questões teóricas e metodológicas em Antropologia. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Professora substituta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Trajetórias, ciberespaço e movimentos ciberativistas: os twitteiros e suas redes

políticas em Natal-RN

Raquel Souza da Silva1

Resumo: As matrizes das orientações metodológicas em Antropologia Social são o

trabalho de campo e o método etnográfico sistematizado por Malinowski na década de

20. A transição da antropologia dos estudos de sociedades e culturas particulares para o

estudo das sociedades contemporâneas fez com que os pesquisadores percebessem a

existência de impasses teóricos e metodológicos canonizados por este autor. Desta

forma, a técnica de observação-participante, entre a década de 50 a 80, passaria por

vários questionamentos com intensificação da complexidade das relações mantidas na

cidade. Na década de 90, com a emergência do ciberespaço, novos desafios foram

lançados ao fazer antropológico. Com todas as discussões hoje apresentadas por uma

antropologia no e do ciberespaço, existe um consenso entre os pesquisadores de que a

“observação-participante” ainda é fundamental ao trabalho antropológico.

Esta proposta de artigo consiste em uma reflexão concernente à parte inicial do trabalho

de campo do curso de doutorado que está em andamento no PPPGA-UFF com os

movimentos ciberativistas de Natal-RN, 2010 a 2015. A pretensão é refletir sobre como

“a história de vida” junto ao processo de observação-participante pode elucidar a

trajetória política de sujeitos em movimentos ciberativistas e as consequências deste

“percurso individual” para o quadro político local na contemporaneidade.

Palavras-chave: antropologia no ciberespaço; método biográfico; metodologia;

ciberativismo;

Em um mundo cada vez mais complexo, em rede e globalizado, a antropologia

aparece como uma ciência do “estudo do homem pelo homem” que deve buscar

compreender as questões sociais e culturais da contemporaneidade. Para isso, por meio

da construção de problemáticas de investigação antropológica, é necessário o

entendimento das questões teóricas e metodológicas em Antropologia. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense.

Professora substituta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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As matrizes das orientações metodológicas em Antropologia Social é o trabalho

de campo e o método etnográfico sistematizado por Malinowski (1978) no clássico

“Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato dos empreendimentos e da aventura dos

nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia”. Neste trabalho inaugural2, existe

uma forte influência das ciências naturais. Por meio de uma “sociedade simples” e

“geograficamente delimitada”, condições que formam o “laboratório antropológico

ideal”, o pesquisador deve compreender a totalidade do funcionamento de uma

sociedade. E para manter o controle do experimento, o antropólogo necessita proceder

de forma que garanta a total racionalidade e objetividade necessárias para a efetivação

de uma prática científica.

Outro ponto relevante deste livro de Malinowski (1987) é que o controle do

experimento apenas existe se o antropólogo sair da varanda e se aproximar de forma

efetiva dos nativos. Esta prática veio a consistir o chamado método de “observação-

participante”. Este método criaria uma narrativa de autoridade etnográfica do

pesquisador, no sentido de que as coisas se deram desta forma porque ele estava lá para

ver e afirmar o que ocorreu. Assim, o texto etnográfico é uma narrativa em primeira

pessoa que coloca em centralidade o etnógrafo em campo.

A transição da antropologia dos estudos de sociedades e culturas particulares

para o estudo das sociedades contemporâneas fez com que os pesquisadores

percebessem a existência de impasses teóricos e metodológicos do enfoque

funcionalista-estrutural. Segundo Bella Fieldman-Bianco (1987), o estrutural-

funcionalismo privilegia a “teoria da ação” que consiste na “observação e reconstrução

do comportamento de indivíduos” em específicas situações e estruturadas. Portanto,

“com base em dados empíricos concretos, coletados por meio de vivência prolongada

no “campo”, passaram a observar e comparar os contextos contemporâneos de

sociedades específicas com o objetivo de recosntruir o seu desenvolvimento passado”.

O mundo passava por profundas transformações que colocavam novos desafios

às teorias e aos métodos antropológicos. Em 1950, os pesquisadores estavam diante de:

a) contextos de transformações aceleradas; b) processos de migrações do campo para a

2 Trato como inaugural no sentido de ser a primeira obra antropológica que busca sistematizar o trabalho

de campo.

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cidade e com isso a emergência de novas ações na era pós-colonial; c) situações urbanas

e articulações existentes entre vila, cidade e nação. Desta forma, Feldman­Bianco

(1987) destaca que apareceram novas problemáticas e novas questões que necessitavam

que os antigos pressupostos teóricos e metodológicos passassem por um tipo de

refinamento.

Desta forma, a técnica de observação-participante - que consiste neste

deslocamento do antropólogo até o campo e da exigência de uma vivência do

pesquisador entre os nativos - passaria por vários questionamentos com urbanização do

mundo e a intensificação da complexidade das relações mantidas na cidade. Se os

antropólogos das décadas de 50 a 80 perceberam que o estrutural-funcionalismo não era

capaz de atender as demandas das questões e problemáticas de um mundo cada vez mais

intensificado pela complexidade urbana, a emergência do ciberespaço3, tornando o

globo cada vez mais interligado por meio das infovias online e digital, trouxe novos

desafios ao fazer antropológico. Dessa forma, a ciberantropologia – ou a antropologia

da cibercultura – é um termo que advém da noção de ciberespaço, palavra dita pela

primeira vez na obra de ficção científica Neuromancer, de Willian Gibson, em 1984. De

acordo com Budka e Krenser (2004, p. 213), na antropologia, o primeiro pesquisador a

voltar à atenção ao tema cibercultura foi Arturo Escobar (1994). Para esse antropólogo,

cibercultura é uma análise das transformações fundamentais na estrutura e no

significado das sociedades e culturas modernas devido às informações dos

computadores e das tecnologias biológicas.

3“[...]conjunto de informações codificadas binariamente que transita em circuitos digitais e redes de

transmissão. A partir das intricadas relações estabelecidas nesse sistema, emergem as referências a um

'espaço informacional', indicando o caráter teórico que embasa a concepção da espacialidade do

ciberespaço. (FRAGOSO, 2000, p.01).”. A autora afirma que as experiências na virtualidade das redes

digitais são muitas vezes descritas por meio de metáforas relacionadas à espacialidade do “mundo real”.

Por isso, ela acredita que a incorporação destes termos em nossa cultura aponta para um possível

paralelismo entre “espacialidade de nossa experiência cotidiana e a percepção que temos da abstração a

que denominamos ciberspaço”. (FRAGOSO, 2000, p.02). Ainda de acordo com Fragoso, no pensamento

ocidental, existem duas formas fundamentais de compreender o espaço "real": o "espaço absoluto" e o

"espaço relacional". O primeiro existe de forma anterior e independente dos elementos que o ocupam e

tem como características importantes a homogeneidade e a infinitude. Já o segundo seria formado a partir

das relações entre os objetos que o compõem. Uma vez que o espaço do ciberespaço é formado por meio

das relações entre os objetos, Fragoso (2000, p.06) afirma: “apreendemos a espacialidade do mundo físico

a partir da percepção das relações que os vários elementos que povoam estabelecem entre si, também o

espaço da Web se revela para os usuários a partir da identificação das relações estabelecidas entre os

vários elementos que o compõem - no caso da World Wide Web os vários WebSites - o ciberespaço seria,

por definição, uma espaço do tipo relacional.”. (FRAGOSO, 2000, p.08).

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No início dos anos 1990, Escobar trazia diversos questionamentos para a

antropologia com o surgimento desse novo campo de pesquisa, sendo eles: como a

antropologia, que é uma disciplina acadêmica, lida com as novas tecnologias de

informação e comunicação (TICs)? Quais as consequências da investigação das TICs

para os conceitos teóricos e para a metodologia da antropologia? Desta forma,

trabalhos antropológicos no ciberespaço e a partir do ciberespaço vêm buscando

problematizar quais as possibilidades e os limites de uma etnografia “online/virtual”, de

modo a problematizar seus aspectos teórico-metodológicos no campo da Antropologia

Social, em contraste, comparação e complementaridade com a etnografia presencial.

Para Rifiotis (2010), a antropologia no ciberespaço fez com que os antropólogos

se confrontassem com uma série de dilemas no campo teórico e metodológico. São eles:

“[...] diário de campo, trabalho de campo, campo, pesquisa participante, e mesmo a

noção de entrevista mediada por computador (chat, IRC, p.e)” (RIFIOTIS, 2010, p. 15).

Para o autor, os dilemas trazidos pela pesquisa no ciberespaço podem ser

entendidos como os mesmos enfrentados pela antropologia nos anos de 1970-1980,

“quando os antropólogos anunciavam que se dedicariam cada vez mais aos estudos das

sociedades urbano-industriais [...]” (RIFIOTIS, 2010, p. 16). Naquela época, o grande

debate estava em torno da constituição de um campo de estudo denominado

“antropologia urbana, a noção de ‘sociedades complexas’, o pesquisador-nativo e

mesmo o nativo-pesquisador”.

Com todas as discussões hoje apresentada por uma antropologia no e do

ciberespaço existe um consenso entre os pesquisadores de que a “observação-

participante”- canonizada no fazer antropológico por meio do chamado trabalho de

campo e da pesquisa etnográfica - ainda é uma técnica fundamental do trabalho

antropológico, mesmo quando “estar lá” consiste em estar em mundos formados por

bytes (GOMES e LEITÂO, 2011)

Tendo este entendimento de que a matriz etnográfica consiste em um trabalho de

campo por meio da observação-participante, mesmo quando o campo é as redes online

com seus diversos ciberespaços foi realizado uma pesquisa etnográfica com e no

movimento ciberativista “#ForaMicarla” em Natal-RN. É na relação entre o homem e as

tecnologias digitais de comunicação e informação em seu aspecto político que emerge o

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“#ForaMicarla” na capital potiguar, que tem início em 2010 no Twitter4 (TT) com a

insatisfação dos cidadãos natalenses com a gestão da ex-prefeita da cidade, Micarla de

Sousa (2008 a outubro de 2012) do Partido Verde. O movimento “#ForaMicarla”

começou em rede no TT e tempos depois, em maio e junho de 2011, chegou às ruas

promovendo passeatas e a instalação de um acampamento na sede do legislativo

municipal. O acampamento “#primaverasemborboleta” começou em 11 de junho de

2011 e teve a duração de 11 dias. Até aquela época eram inéditos dois fatos: a

quantidade de pessoas envolvidas nas passeatas, as quais cada uma reunia cerca de três

mil pessoas, e a realização de um acampamento na Câmara Municipal. Com os vários

questionamentos trazidos para o cenário político e democrático da cidade de Natal-RN

por este que foi o primeiro movimento ciberativista da capital potiguar, foi realizado um

trabalho etnográfico no Twitter e nos momentos em que o movimento estava nas ruas

da cidade. Desta forma, o trabalho etnográfico ocorreu sistematicamente entre março de

2011 a dezembro de 2011 e culminou, em abril de 2012, com a defesa da dissertação

“Twitter e ciberativismo: o movimento social da hashtag “#ForaMicarla” em Natal-

RN”, no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN).

Depois de dezembro de 2011, ocorreram outros fatos dentro do movimento

“#ForaMicarla”, pois este terminou apenas em outubro de 2012 com a saída da gestora

Micarla de Sousa do cargo sob a acusação de improbidade administrativa. Neste mesmo

ano, ocorreu no Brasil o pleito eleitoral para os cargos de prefeito e vereador. Ganhou as

eleições para prefeito de Natal o candidato Carlos Eduardo (PDT), tendo como vice-

prefeita Wilma de Faria (PSB). Ainda no ano de 2012, a primeira “#RevoltadoBusão” -

movimento em rede natalense nas plataformas sociais online contra o aumento da

passagem – também chegou às ruas em setembro. A “#RevoltadoBusão” voltou a

realizar passeatas no início de 2013, sendo na gestão do prefeito Carlos Eduardo.

4 “O Twitter é uma ferramenta que proporciona a postagem de mensagens de até 140 caracteres para uma

rede de seguidores bem como a troca de mensagens entre usuários de forma pública (Replies) e privada

(Diretct Messages - DM) http://www.twitter.com.” (RECUERO; ZAGO, 2011, p. 1).

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A observação-participante realizada com e no “#ForaMicarla” identificou a

construção de pontos de adesamento (ou pontualização) 5da rede por meio e em torno de

alguns twitteiros os quais constituíram sua identidade no movimento e no Twitter como

opositores à gestão de Micarla de Sousa. Tempos depois, estes twitteiros passaram a

fazer parte da atual gestão municipal da cidade de Natal. Por isso, para a construção

inicial do trabalho de campo do curso de doutorado, acredita-se que a “história de vida”

aparece neste contexto político como um método viável para compreensão das redes

constituídas por estes sujeitos, dentro do entendimento e da perspectiva de que eles

podem ser considerados como mediadores entre o mundo político natalense online e

off-line. Assim:

A passagem por diferentes mundos dá a alguns indivíduos a possibilidade de

desempenhar, com maior ou menor sucesso, o papel de mediador. Assim, a

circulação por universos distintos gera condições, em princípio, para que

certos agentes sociais desenvolvam o potencial supracitado e que ativem essa

competência específica. (p.82)

A pretensão deste artigo é refletir sobre como “a história de vida”, ou a chamada

“biografia”, junto ao processo de observação-participante podem elucidar a trajetória

política de sujeitos em movimentos ciberativistas e as consequências deste “percurso

individual” para o quadro político e a esfera pública local.

1. História oral, história de vida ou biografia: uma história contada em bytes

Com um artigo cujo título é “A Ilusão biográfica”, Bourdieu (1987) apresenta

logo aos seus leitores a crítica à unidade que se busca construir por meio do método

biográfico. Isto ocorre uma vez que a singularização do conceito, assim como a

singuralização do conceito de identidade, promove o apagamento das contradições, das

incoerências e da não-linearidade da vida. Desta forma, assim como no senso comum, a

história de vida

5 Redes cujos padrões de ordenamentos são mais amplamente performados são aquelas que mais

frequentemente podem ser pontualizadas. Isto é porque elas são redes empacotadas – rotinas -, as quais

podem ser, mesmo que precariamente, consideradas mais ou menos estáveis no processo da engenharia

heterogênea. Em outras palavras, elas podem ser tomadas como recursos, recursos que podem surgir

numa variedade de formas: agentes, dispositivos, textos, conjuntos relativamente padronizados de

relações organizacionais, tecnologias sociais, protocolos de fronteira, formas organizacionais,– qualquer

um ou todos esses. (LAW, 1992, p.06).

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descreve a vida como um caminho [...] que percorremos e que

deve ser percorrido, um trajeto, uma corrida, um cursus, uma

passagem, uma viagem, um percurso orientado, um

deslocamento linear, unidirecional ( a "mobilidade"), que tem

começo ("uma estréia na vida"), etapas e um fim, no duplo

sentido, de término e de finalidade ("ele seu caminho" significa

ele terá êxito, fará uma bela carreira), um fim da história".

(BOURDIER, 1987. p.183)

O relato a ser constituído pelo biógrafo ou por quem conta a história de sua vida

– relato autobiográfico – tende a ser organizado por “sequências ordenadas segundo

relações inteligíveis”. Isto ocorre mesmo quando os acontecimentos não se desenrolam

em uma sucessão cronológica. Bourdieu (1987) ressalta que neste processo de promover

uma unidade inteligível, um relato com início, meio e fim, tanto o sujeito (investigador)

como o objeto da biografia (o investigado) apresentam o mesmo objetivo de acreditar na

existência do sentido postulado da narrativa. Portanto,

Sem dúvida, cabe supor que o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo

menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair

urna lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, urna consistência e

uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito a causa

eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas

de um desenvolvimento necessário. (BOURDIEU, 1987, p.184).

Para Bourdieu (1987), esta aceitação do biógrafo e do biografado desta produção

de coerência pode ser atribuída à origem do interesse que se tem com este tipo de

método. Por isso, existe a aceitação do sentido artificial produzido pela biografia. É

neste entendimento que o autor afirma que “produzir uma história de vida, tratar a vida

como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos

com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica [...]” (1987,

p.185).

Mas esta ilusão biográfica está ancorada em um mundo social que tende a

produzir uma identidade constante, responsável, previsível e inteligível ao ponto de

construir uma história linear e bem delimitada. É o social que acaba por apresentar

instituições de totalização e unificação do eu. Bourdieu (1987) afirma que o nome

próprio é uma das mais importantes produções sociais de uma forma única e estável do

eu. É o nome próprio que especifica uma pessoa, um objeto ou um grupo em qualquer

contexto.

Por essa forma inteiramente singular de nominação que é o nome próprio,

institui-se uma identidade social constante e durável, que garante a identidade

do indivíduo biológico em todos as suas histórias de vida possíveis. [...] que

assegura a constância através do tempo e a unidade através dos espaços

sociais dos diferentes agentes sociais que são a manifestação dessa

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individualidade nos diferentes campos [...] ao mudar o nome existe a quebra

desta expectiva de unidade.

Este “designador rígido” – o nome próprio - estabelecido e reafirmado em

instâncias burocráticas, por meio da chamada certidão de nascimento, acaba produzindo

um indivíduo único em todos os contextos sociais possíveis. Quando Bourdieu faz esta

análise, ele acaba tratando de relações em que os sujeitos travam interações uns com

outros em condições de uma vida civil. Temos que lembrar que por meio de das

possibilidades de construção de um segundo eu através dos condicionantes das

tecnologias de comunicação e informação, o nome/identidade vai produzir um novo

jogo social e relacionado ao contexto cultural e social que aquela identidade será

produzida. Teremos a aparição dos niknames6 e todas as implicações do jogo relacional

destes na vida social online.

O mundo online é permeado por identidades convergentes ou não com o mundo

off-line, como afirma o antropólogo Jair de Souza Ramos (2013). Temos mídias sociais,

como Facebook, que a própria agência da máquina e a cultura e as práticas sociais que

foram estabelecidas na plataforma vão exigir dos participantes deste ciberespaço a

maior convergência possível entre a identidade online e a identidade civil - a registrada

em cartório. Podemos perceber isso quando as pessoas assumem seus nomes próprios ao

abrir uma conta no Facebook7. No caso do Twitter, a pessoa não necessariamente usa o

nome próprio. Como no campo etnográfico com e no “#ForaMicarla”, temos twitteiros

como @DELLRN 8em que seu nome civil é Wendell Jeferson. Só que, no Twitter, a

construção de uma identidade convergente com a identidade civil vai ser realizada não

apenas por meio do nome, mas também por meio das ações e usos da plataforma. As

possibilidades técnicas do TT de criação de niknames vão permitir o surgimento dos

fakes9. Na cultura online, esse sujeito, como a própria tradução da palavra aponta, é um

perfil falso de usuário. O fake é um avatar construído na plataforma que não faz

referência ao corpo físico, nem aos papéis sociais do sujeito offline que comanda o

perfil (CAMOZZATO, 2007; SEGATA, 2007).

6 São nomes que os usuários criam no online que pode ou não correspondência com o nome próprio. 7 Facebook´s terms of service explicitly require its users to provide their ‘real names and

information.’.Indeed, the norm among many Facebook users is to provide a first andlast name that

appears to be genuine. (BOYD, 2012, p.29) 8 @DELLRN participou do “#ForaMicarla” por meio do grupo “#MobilizaNatal”. 9 Não estou afirmando que não existam fakes no Facebook. Mas cada plataforma, com sua agência de

máquina, e com as relações estabelecidas por seus usuários, acabam condicionando as formas de

interação entre os seus cibernautas.

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É justamente por causa da existência de fakes que os Twitteiros do

“#ForaMicarla” buscavam em suas ações confirmar que a identidade e a trajetória que

estavam construindo na plataforma estavam em total consonância com sua identidade e

“história de vida” offline. Em 21 de maio de 2011, @DELLRN comunicou-se com

@dayvsoon10 no Twitter afirmando que estava saindo de casa e estaria às 10h no local

combinado para fazer as gravações.

@DELLRN postou no Youtube e no Twitter o vídeo “#MobilizaNatal11: AME

Planalto não fica em Natal”. No Youtube, os dois colocaram a descrição do vídeo: “A

prefeitura de Natal investe na divulgação das AMEs, onde constatamos que a AME do

bairro Planalto na verdade fica em Emaús/Parnamirim. Mande sua sugestão e vamos até

o seu bairro para mostrar os problemas de nossa cidade. Sigam @dayvsoon e

@DELLRN”.

No início do vídeo, Dayvson Moura e Wendell Jefferson afirmam que vão fazer

uma série de matérias “#MicarlaFez”. Em seguida, os dois divulgam seus endereços no

Twitter e se apresentam no vídeo com seus nomes de “twitteiros”, como podemos

verificar neste trecho da fala de Dayvson Moura: “Então, veio aqui eu @DELLRN e

@dayvsoon”. Assim, Dayvson interferiu dizendo que seu nome no Twitter é com dois

“o”, porque ele teve a conta original “roubada”.

Como podemos ver neste caso do “#ForaMicarla”, existe a preocupação no

vídeo de afirmar quem são eles tanto no mundo online como no offline. E também

aparece a preocupação de Dayvson Moura em afirmar que mudou a sua nomeação no

Twitter depois que teve a sua outra conta hackeada. Pois a mudança do nikname implica

a construção de uma nova relação de confiança dos sujeitos com aquela identidade.

Esta imbricação entre as redes sociais online e offline coloca ao antropólogo que

não se deve pensar o mundo online em total separação de uma interação face a face.

Como afirma Rifiotis (2010):

Há várias razões para se afirmar que não há divórcio entre o online e o

offline, propor uma pesquisa que trabalhe nas duas dimensões (KENDALL,

1999, p. 57-58), além do fato trivial de que não se vive completa e

exclusivamente no ciberespaço. O debate está mal colocado, pois

fundamenta-se na falácia da homogeneidade do ciberespaço. Como mostram

as pesquisas sobre IRC, trata-se de um tipo de “comunidade” em que há uma

base local, uma ligação “geográfica” e deste modo a experiência on e offline,

10 O meu encontro etnográfico com o “#ForaMicarla” no Twitter ocorreu por meio de @dayvsoon que era

um dos principais mobilizadores online. 11 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=v0-RtjLM0Fc>.

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seja por motivos técnicos de fonte de informações, seja pelo tempo e/ou

custos que limitam a realização da pesquisa. (p. 25-26).

Desta forma, se o cibernauta construir um eu no online mantendo o nome

próprio ou referência a este “designador rígido”, isto em uma análise antropológica, vai

exigir do etnógrafo o entendimento da relação de sua trajetória social online e offline. E,

como afirmamos antes, o pesquisador deve compreender que é quase impossível

determinar quando termina o online e começa o offline. Assim, pensar em “campo

online” e “campo offline” será mais um ato arbitrário do pesquisador do que como os

fluxos e as redes do mundo contemporâneo efetivamente acontecem.

Como neste trabalho estamos tecendo análise sobre indivíduos que produzem no

online uma convergência com sua identidade offline, o pensamento de Bourdieu (1987)

sobre o nome próprio continua sendo revelador para o entendimento da “história de

vida” dos twitteiros. Por isso que o autor vai afirmar:

Assim o nome próprio é o suporte (somos tentados a dizer a substância)

daquilo que chamamos de estado civil, isto é, desse conjunto de propriedades

(nacionalidade, sexo, idade etc.) ligadas a pessoas às quais a lei civil associa

efeitos jurídicos e que instituem, sob a aparência de constatá-las, as certidões

de estado civil. [...] verdadeiro objeto de todos os sucessivos ritos de

instituição ou denominação através dos quais é construída a identidade social:

essas certidões (em geral públicas e solenes) de atribuição, produzidas sob o

controle e com a garantia do Estado [...] todos os atestados jurídicos que

envolvem um futuro à longo prazo, quer se trate de certificados que garantem

de forma irreversível uma capacidade ( ou incapacidade), de contratos que

envolvem um futuro longínquo, [...] que de sanções penais.(P.188).

Ao afirmar que a única constância do sujeito é o nome próprio que está

vinculado a ele, Bourdieu (1987) chama atenção para o fato de que temos de ter em

mente que a criação de um relato biográfico, com início, meio e fim, é uma escolha

metodológica do biógrafo e do biografado. Assim, temos que entender que este tipo de

narrativa possui lembranças, esquecimentos, intenções, agenciamentos e sublimações.

Em todos estes casos trata-se do levantamento de toda, ou de uma parcela, da

vida de um indivíduo. Para esta pesquisa, propõe-se empreender uma parcela da

"história de vida" dos twitteiros do “#ForaMicarla” ao traçar a carreira política destes

sujeitos antes do Twitter, durante o "#ForaMicarla" no TT e no atual governo

municipal.

As mídias sociais permitem que esta trajetória, em seu aspecto político, possa ser

apreendida por meio das postagens, das interações deste agente com sua rede e por meio

das conversas informais e formais que são travadas com o etnógrafo. Assim, busca-se

uma nova forma de pensar a biografia como um relato que também é contado pelo

cibernauta em bytes. Esta perspectiva metodológica é aliada à forma tradicional do

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método biográfico, sendo: “1º) de relatos motivados pelo pesquisador e implicando sua

presença como ouvinte e interlocutor [...] 3º) daquela parcela da vida do sujeito que diz

respeito ao tema da pesquisa, sem esgotar as várias facetas de uma biografia”. (KOFES,

1994, p.118).

A proposta deste trabalho está em acordo com Suely Kofes (1994) de que a

“história de vida” é fonte de informação ao falar de uma experiência social, desta forma,

que vai além do sujeito que relata; é como evocação ao tornar inteligível a dimensão

subjetiva e interpretativa do biografado; e é como reflexão ao apresentar uma análise do

próprio entrevistado em relação a experiência vivida. Por isso que Kofes (1994) ressalta

que cabe ao pesquisador levar em conta estas dimensões da “história de vida” e

intercruzá-la com outras narrativas. Que no caso da proposta deste trabalho seria

intercruzar com as próprias narrativas construídas pelos entrevistados - @ItsMenrenx e

@TiaBeteNatal - nas mídias sociais e com os outros agentes que mantém relação com

eles por meio de contextos políticos ciberativistas.

2. @ItsMenrenx

Conheci @ItsMenrenx por meio de @dayvsoon. No momento inicial da

pesquisa de campo no Twitter com o “#ForaMicarla”, @dayvsoon foi aos poucos me

explicando por meio de conversas que mantínhamos no MSN algumas pessoas que

eram identificadas como twitteiro importante do “#ForaMicarla”12 nas redes online de

Natal. @dayvsoon relatou que formou um grupo com @ItsMenrenx e @DELLRN

denominado “#MobilizaNatal”. O grupo mantinha a prática, dentro do #ForaMicarla,

de produzir produtos multimídias online com o objetivo de registrar, principalmente por

meio de vídeos, casos suspeitos de improbidade administrativa.

Após alguns meses, em 07 de junho de 2011, foi agendada no Twitter a

realização de mais uma manifestação de rua do “#ForaMicarla”. Logo no início da

passeata, às 09h, na Rua Trairi em Petrópolis, eu encontrei uma aluna que conheci

quando fazia estágio docência na UFRN. Em seguida, ela realizou o meu primeiro

contato com @ItsMenrex.

Em uma conversa informal, @ItsMenrenx disse que fazia dois meses que ele

havia passado a ser militante no “#ForaMicarla”. Comentou que conheceu @dayvsoon e

12 O #ForaMicarla não era um grupo. Era um movimento em rede que começou no online e tempos depois

chegou às ruas da cidade.

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@DELLRN por meio da internet e também falou que estava sendo seguido pela prefeita

@micarladesousa no Twitter e acreditava que era uma forma de ser vigiado.

Segundo Menrenx, até o momento daquela passeata, ele ainda não havia sido

ameaçado pelo grupo da situação, mas sentia que isso estava próximo de ocorrer.

@ItsMenrenx, naquele primeiro contato informal, enfatizou que não fazia parte de

partido político e nunca teve envolvimento em movimentos sociais. Uma das pessoas

presente na manifestação perguntou se ele tinha a intenção de se candidatar ao cargo de

vereador. Menrenx afirmou categoricamente que nunca ia se candidatar a um cargo

político e enfatizou que o seu envolvimento com o “#ForaMicarla” era apenas com o

objetivo de buscar melhorias para cidade de Natal.

Nesta construção diária de uma prática de oposição à Micarla de Sousa,

@ItsMenrenx foi constituindo uma identidade de agente em busca de melhorias para a

cidade. O twitteiro era antes das ações no “#ForaMicarla” um desconhecido. Aos

poucos, na relação com sua rede de seguidores, o jovem de 26 anos (mas na época desta

passeata do dia 07 de junho de 2011 com 24 anos) foi ganhando projeção no Twitter.

Desta forma, @ItsMenrenx atualmente, julho de 2014, tem o número de mil e 500

seguidores.

Portanto, meses após o acampamento #PrimaveraSemBorboleta, em dezembro

de 2011, fui ao encontro de @ItsMenrenx no maior shopping da cidade. As postagens e

ações de @ItsMenrex no Twitter e no Facebook demonstravam uma aproximação dele

com a ex-governadora do RN e ex-prefeita de Natal, Wilma de Faria. Esta aproximação

de Menrenx com Wilma de Faria foi questionada por seus seguidores. Bem como por

seus companheiros do “#MobilizaNatal”. Na época, durante a entrevista, @ItsMenrenx

afirmou que não fazia parte do partido PSB. Contudo, ele não descartou a possibilidade

de participar de uma possível campanha eleitoral de Wilma de Faria e afirmou que

estava realmente investindo em ações no Twitter com intuitos políticos.

Raquel: Houve a tentativa destes partidos de te angariar para trabalhar em

prol deles?

Menrenx: Eu nunca recebi proposta nenhuma para trabalhar em partido

político, porque até mesmo eu não aceito. Por que não é de vontade minha

me envolver com a política ao ponto até mesmo de me filiar. Esse não é meu

pensamento hoje. Nunca, graças a Deus, houve uma proposta dessa para

mim.

Raquel: Como é que você vê sua relação hoje ... você twitta Wilma de Faria,

você teve ela na sua festa de aniversário, como é que você pensa esta relação?

Menrenx: A minha relação com Wilma de Faria aconteceu do nada. Foi um

convite que eu recebi de um amigo, onde neste convite ele dizia: - hoje você

quer conhecer Wilma de Faria? Eu disse quero. Quero ter contato com ela. E

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ele disse, então vamos hoje, que vai ter um evento com ela. Até momentos

antes de conhecê-la, eu estava meio que ansioso. E quando eu vi ela pela

primeira vez e que comecei conversar com ela, eu pude ver o carisma que ela

tem. Isso me chamou muita atenção. Eu dou muito valor a pessoas

carismáticas. Eu tive oportunidade de conversar com ela, até mesmo sobre

questões da cidade. Então, aquilo me encantou. Aquilo me chamou atenção

de tal forma, que hoje declaro apoio à Wilma de Faria.

Raquel: Mas você não faz parte do partido dela?

Menrenx: De jeito nenhum. Eu sou apartidário.

Raquel: Você pensa como vai ser visto?

Menrenx: Penso. Penso porque a pessoa de Wilma de Faria foi várias vezes

testada pela população. E hoje podemos dizer que ela tem um alto índice de

popularidade. Nas vezes que eu tenho acompanhado ela, eu posso ver, posso

presenciar sem ninguém me dizer, o quanto ela é adorada pela população. E

isso nos dar força para trabalhar em cima daquilo. Entendeu? Quando eu vejo

isso, é uma forma que me dá mais vontade de fazer aquilo. É uma forma

natural de fazer aquilo.

Neste trecho da entrevista, podemos notar como a identidade de agente

oposicionista de @ItsMenrex é colocada em questionamento por sua rede de seguidores

no Twitter. Na conversa informal durante a passeata, Menrenx enfatiza sua trajetória

despretensiosa em relação à política no Twitter, colocando-se como mais um cidadão

insatisfeito com a gestão de Micarla de Sousa. Ao se constituir a cada dia como ponto

importante dentro da rede online por meio da identidade de oposição à Micarla de Sousa

e também como pessoa que busca “o melhor” para a cidade sem intuitos políticos

partidários, a aproximação de @ItsMenrenx com Wilma de Faria traz um processo de

desconforto na relação do twitteiro com seus seguidores. Isso é percebido na entrevista

quando Menrenx mantém o discurso de apartidarismo que existe de forma marcante

entre os sujeitos que participaram do “#ForaMicarla”.

Quando começou a aparecer em público, na timeline do Twitter e do Facebook,

uma aproximação entre @ItsMenrenx e Wilma de Faria, existiam rumores de que ela

seria candidata à prefeitura no pleito de 2012. Naquela época, dezembro de 2011, a

dúvida era se Wilma de Faria ia sair em candidatura própria ou não. Em 23 de junho de

2013, foi oficializada a coligação de Carlos Eduardo (PDT) com Wilma de Faria (PSB),

sendo: o primeiro como candidato a prefeito e a segunda como vice. Entre o período de

rumores e a oficialização, Wilma de Faria empossou @ItsMenrex no cargo de

Presidente do Comitê de Juventude do PSB-Natal.

Em 2013, momento este em que começa o governo de Carlos Eduardo e Wilma

de Faria. Menrenx Eufrásio é empossado em 07 de fevereiro de 2013 em cargo

comissionado da Secretaria Municipal de Obras Públicas e Infra-Estruturas – SEMOPI.

Dois meses depois, começaram as passeatas de rua do movimento “#RevoltadoBusão”.

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Este movimento começou em setembro de 2012, quase no final do mandato da prefeita

Micarla de Sousa, afastada do cargo em 31 de outubro do mesmo ano. Por causa do ato

de rua da “#RevoltadoBusão” e das ações no Twitter e Facebook, 17 pessoas e um

coletivo denominado “Lições de Cidadania UFRN” tomaram o conhecimento de que

estavam sendo investigados pela Polícia Civil do Rio Grande Norte. Os investigados

receberam a notificação da justiça em 11 de março de 2013 e publicaram suas

insatisfações em suas redes online. Entre as pessoas investigadas, estava Menrenx

Eufrásio que demonstrou imenso pavor, chamando a atenção de seus amigos e

seguidores para o caso. No processo, aparece o endereço dos perfis do Facebook de

cada réu, os quais estavam sendo monitorados pela Polícia Civil. Os 18 investigados

também fizeram parte de forma ativa do movimento social da hashtag “#ForaMicarla”.

A “#RevoltadoBusão” voltaria a ser pauta dos debates no Twitter e no Facebook

em maio de 2013. Menrenx Eufrásio, agora como funcionário comissionado do governo

de Carlos Eduardo, defende a gestão do prefeito no Twitter e no Facebook postando

imagens e esclarecimentos quanto aos investimentos que a gestão municipal estava

fazendo na área de mobilidade urbana da cidade. Menrenx também conversa com seus

seguidores, os quais criticam Carlos Eduardo por ter aumentado o preço da passagem de

ônibus, e busca mostrar aos seus seguidores que a gestão municipal está trazendo

melhorias as quais não existiram na gestão de Micarla de Sousa. Podemos ver, neste

diálogo do dia 16 de maio de 2013, a intervenção do twitteiro em defesa do gestor.

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Figura 01 - @ItsMenrenx retwitta e conversa com @carloseduardo12, @wilmadefaria e seus seguidores.

Print da minha timeline em 16 de maio de 2013.

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Twitteiros de um lado cobravam posicionamento do prefeito em relação às

reivindicações da “#RevoltadoBusão” e no outro lado Carlos Eduardo conversava, às

21horas e 46 minutos, com os cibernautas sobre quais eram as ações da prefeitura até

aquele momento. Quando perguntei na Timeline e no extado momento destes diálogos a

@ItsMenrenx se ele tinha ido à passeata, o twitteiro me respondeu que estava gripado. E

era esta a mesma resposta que ele dava a sua rede de seguidores.

A elucidação da trajetória social parece necessária neste contexto para

compreensão de como @ItsMenrenx emerge como possível mediador entres dois

campos sociais e políticos, podendo ser pensado como um elo entre as redes online

politizada e as redes estatais. Para Karina Kuschnir (1999, p.86), o mediador mostra sua

força de negociador principalmente em “contradições entre as diversas "culturas

políticas" mediadas, atuando ora como intérprete de diferentes níveis culturais, ora

como mediador, solucionando conflitos de grupos das mais diferentes naturezas”.

No estudo de Karina Kushnir (1999) sobre o processo de eleições e

representação na cidade do Rio de Janeiro, o vereador aparece como personagem central

diante de:

[...] uma ampla e diferenciada rede de relações, constituídas por diversos

grupos e numerosos indivíduos. Essas redes de relações podem ser

classificadas em três eixos distintos, sendo que cada um corresponde a um

tipo de interação e atuação específico. Grosso modo, esses eixos seria o de

relação do vereador com a população em geral da cidade (eleitores em

pontencial), com outros vereadores da mesma Legislatura e com o Poder

Público, mais especialmente, com o Executivo municipal. (p.85)

Desta forma, em movimentos como o “#ForaMicarla”que não aceita a

existência de lideranças e como a “#RevoltadoBusão” que não aceita ser direcionado

pela política partidária, como foi o caso da agressão à vereadora Amanda Gurgel por ter

levado a bandeira do PSTU durante a passeata de rua em maio de 2013, o vereador

neste contexto parece perder o papel de mediador. Desta forma, podemos apontar as

perspectiva dos twitteiros - @ItsMenrex e @TiaBeteNatal – como uma forma de

promover uma mediação entre o poder público municpal e a população. Estes twiteiros

parecem conseguir organizar as demandas dos seguidores sob uma nova lógica.

3. @TiaBeteNatal

Assim como @ItsMenrenx, conheci @TiaBeteNatal em abril de 2011 no Twitter

por meio de @Dayvsoon. Durante meses, nós conversamos sobre o “#ForaMicarla” na

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timeline13. Quando alguns segredos etnográficos eram ditos a mim por Elizabete de

Paiva, as conversas eram realizadas por meio de “DMs”14. Apenas tive o primeiro

contato em copresença física com @TiaBeteNatal pouco tempo após o acampamento

“#PrimaveraSemBorboleta”, em 06 de agosto de 2011, em um churrasco em sua casa no

bairro Planalto, localizado na Zona Oeste de Natal. Este evento foi promovido por

@TiaBeteNatal para reunir os amigos do Twitter, que se conheceram por causa da

hashtag “#ForaMicarla”. Boa parte das pessoas que estavam no evento promovido por

@TiaBeteNatal ainda não se conheciam fora do ciberespaço.

Em dezembro de 2011, fui mais uma vez até a casa de @TiaBeteNatal e nesta

ocasião realizei uma entrevista com ela, @Assis1961 e @PauloSBarbosa. Cada um foi

explicando qual era a sua trajetória política. Elizabete de Paiva, 46 anos e professora da

rede municipal, disse que seu envolvimento começou cedo com a política, uma vez que

seu pai era sindicalista. “E com 18 anos eu me filiei aos democratas”, afirmou

@TiaBeteNatal. Com esta afirmação, @PauloSBarbosa disse de forma irônica: -

Democratas?. Logo em seguida, ela fez questão de afirmar que havia se desfiliado há

pouco tempo do partido e estava empenhada em retirar seu nome da lista partidária. A

conversa prosseguiu com @TiaBeteNatal explicando os motivos que levaram a saída

dela do DEM. Foi por isso que perguntei: - você tem pretensão de se filiar a outro

partido?. E ela respondeu: - “Não. No momento, não. Eu até me apaixonei pelo PT.

Mas eu acho o PT muito fundamentalista, muito radical. No momento, eu pretendo ficar

mais neutra.”.

Quando foi no ano seguinte, perto do pleito eleitoral de 2012, fui convidada por

@TiaBeteNatal a ir a um festejo junino em uma rua nas proximidades da igreja católica

do bairro de Candelária, localizado na Zona Sul da capital potiguar. O convite ocorreu

na timeline do Twitter, mas em momento algum ela disse de que este evento tratava-se

de um encontro do PDT com o PSDB. Vale ressaltar que naquele momento, junho, as

candidaturas não estavam oficialmente registradas no Tribunal Regional Eleitoral. Desta

forma, a candidatura de Wilma de Faria como vice-prefeita era apenas um rumor. Assim

que eu cheguei à festa, @TiaBeteNatal me puxou pelos braços e me levou até o

candidato Carlos Eduardo. Ela foi me apresentando a ele dizendo imediatamente que era

13 Consiste na área onde aparecem todas as atualizações públicas dos twitteiros os quais a pessoa segue.

14 DM ou Direct Messenger é a área onde aparecem as mensagens privadas enviadas a você.

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eu que tinha escrito uma dissertação sobre o “#ForaMicarla”. Carlos Eduardo afirmou

que queria muito me conhecer. No mesmo momento, dois vereadores me abordaram e

um deles disse: - “então é você que escreveu sobre o #ForaMicarla”. Percebi que era

momento de me afastar da roda dos políticos e ficar em um lugar o qual não seria muito

vista. Esta minha preocupação vinha da possibilidade de postarem no Twitter a minha

presença no evento ao lado do candidato a prefeito e seus correligionários. Assim como

a identidade dos twitteiros analisados neste artigo incorria no perigo do impuro ao

atravessar as fronteiras entre a identidade de oposição e situação, existia também a

preocupação de manter as fronteiras de minha identidade de pesquisadora e se manter o

máximo possível na zona pura da “imparcialidade acadêmica”.

Tempos depois a este evento junino, ao ser eleito e assumir o cargo em janeiro

de 2013, Carlos Eduardo (PDT) empossou Elizabete de Paiva em cargo comissionado

na Secretaria Municipal de Educação, na função de assessora pedagógica. Meses depois,

começou a “#RevoltadoBusão” nas mídias sociais e a promoção de passeatas de rua.

@TiaBeteNatal não esteve presente nestas manifestações. Quando ela comentava sobre

o assunto no Twitter, sua atitude era a de intermediadora dos seus seguidores com o

prefeito na plataforma. Em 09 de outubro de 2013, @TiaBeteNatal postou críticas ao

projeto “#PasseLivre” da vereadora Amanda Gurgel (PSTU). Em sua crítica, Elizabete

afirmava que o projeto não possuía clareza em relação de onde viria o dinheiro público

para financiamento da tarifa gratuita. Esta preocupação advinha do fato dos vereadores

terem aprovado em unanimidade o projeto proposto pela vereadora e a aprovação era

tida como uma “pressão” do movimento “#RevoltadoBusão”. Portanto, a

implementação do projeto passou a ser da responsabilidade do prefeito em vetar ou não.

@TiaBeteNatal com este episódio buscava no Twitter convencer aos seus seguidores da

“falta de responsabilidade” dos vereadores em aprovar o projeto “#PasseLivre”.

Assim como @ItsMenrex, existe a perspectiva de @TiaBeteNatal ser uma

mediadora entre as redes políticas offline com as redes online politizada. O caso aqui

relatado demonstra a preocupação da twitteira em intermediar, por meio de uma

trajetória construída no online e do conhecimento da “cultura política” daquela

plataforma, as demandas da população com o executivo municipal. Os casos

etnográficos apontam para a perspectiva de que os twitteiros tem um acesso à população

de uma forma diferente das empenhadas por vereadores, secretários de estado e prefeito.

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Considerações Finais

Como afirmamos no início deste trabalho, as entrevistas realizadas com os

Twitteiros do “#ForaMicarla”, o relato de parte de sua trajetória no Twitter e na atual

gestão da cidade de Natal-RN apontam a perspectiva da necessidade de um

aprofundamento na construção do relato “biográfico” destes sujeitos, a busca pela

compreensão da trajetória social em seu aspecto político.

Também se pensa que o método biográfico, devido aos vários suportes

midiáticos presentes em um campo online, deve ser repensado para além da técnica de

entrevista que coloca em situação de oralidade e copresença física o entrevistador e o

entrevistado. Portanto, se busca pensar as narrativas que são empenhadas pelos próprios

internautas em bytes por meio de postagens escritas e audiovisuais em plataformas

como Facebook, Youtube, Twitter , Blogs e Chats.

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