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PHILIPPE AZIZ OS MILAGRES DE LOURDES A Ciência Face à Fé 1981

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Page 1: €¦ · Tradução de WiIma Freitas Ronald de Carvalho DIFEL "O nosso tempo é uma época na qual se preparam grandes acontecimentos, uma vez que Deus intervém com tanta freqüência

PHILIPPE AZIZ

OS MILAGRES DE LOURDES

A Ciência Face à Fé

1981

Page 2: €¦ · Tradução de WiIma Freitas Ronald de Carvalho DIFEL "O nosso tempo é uma época na qual se preparam grandes acontecimentos, uma vez que Deus intervém com tanta freqüência

Tradução de WiIma Freitas Ronald de Carvalho DIFEL

"O nosso tempo é uma época na qual se preparam grandes acontecimentos, uma vez que Deus intervém com tanta freqüência e

tanto esplendor. Além do mais, existe uma convicção universal de que o mundo será testemunha de grandes maravilhas e, na realidade,

existe um único homem culto no mundo e na Europa que não esteja à espera de coisas admiráveis? O triunfo da Igreja num futuro próximo não é objeto da esperança de todos os piedosos servidores de Maria que aguardam esta graça através da intercessão do Reino do céu?"

Abbé Pillon

Le Rosier de Marie (Quarta-feira, 19 de maio de 1858.)

ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE: ERA UMA VEZ UMA PASTORA CHAMADA BERNADETTE...

1. "UO DAMO ABILLADO EN BLAN" (Uma dama vestida de branco) 5 Acompanha-me, Bernadette, o comissário quer conversar com você O cárcere da família Soubirous Crianças que dançam às margens do Gavel Alguma coisa vestida de branco que se parecia com uma menininha Coitada de mim! O que está me dizendo? É necessário esperar, diz o cura de Lourdesl Descarada! Descarada! Se voltar à gruta, será trancafiada! Bernadette e a Virgem conversam no dialeto bigourdano.

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2. O JORRAR DE UMA FONTE ......19 Percebíamos que ela via alguma coisa... Sinto-me arrebatada por uma força irresistivel! Uma "aventura" que encontra, a cada dia, novos adeptos Reze pela conversão dos pecadores, diz a aparição O jorrar da fonte Um grande tumulto, depois um silêncio generalizado Que se venha em procissão e que se construa uma capela! Como manter a "tranqüilidade pública"? Para aqueles que acreditam em milagre, que deixem agir a autoridade... Primeiro relatório para o ministro da Justiça Quinta-feira, 4 de março: vinte mil espectadores!! "Eis a santa! Eis a santa!" 3. AQUELA QUE CURA.......... 35 Aqueles que acreditam em milagre e aqueles que não acreditam Uma revelação para Dr. Dozous Cegos, paralíticos, pobres de espírito O caso de Jean-Marie Doucet, a criança da boca aberta Bernadette comparece diante de uma comissão de investigação Milagres, maravilhas e prodígios em abundância O milagre da roseira silvestre não acontecerá... O caso dos três "segredos” No momento presente, não há mais motivo para temer, escreve o prefeito ao ministro O castigo dos céticos 4. "QUE SOY ERO IMMACULADA COUNCEPTION" (EU SOU A IMACULADA CONCEIçÃO) ....... 57 Eu sou a Imaculada Conceição Para Bernadette: o hospício ou a prisão?

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O milagre da vela A Virgem não pôde lhe falar em dialeto Ataque à gruta O decreto municipal de 8 de junho Dia 5 de outubro: reabertura da gruta A cura milagrosa do pequeno príncipe imperial Um primo do Imperador faz uma peregrinação a Massabielle As verdadeiras razões da intervenção de Napoleão III O bispo de Tarbes: "A aparição é sobrenatural e divina” Os "fãs" de Bernadettel "Pensionista" no hospital de Lourdes durante seis anos Ela poderá descascar os legumes... 4 de julho de 1866: partida definitiva de Lourdes A conservaçã. milagrosa do corpo de santa Bernadette

SEGUNDA PARTE: O MILAGRE DAS APARIÇÕES

1. OS VERDADEIROS SEGREDOS DE BERNADETTE......... 83 De que "afecção moral" sofre Bernadette? Uma auscultação em pleno êxtase O discurso de defesa do Dr. Dozous Seu corpo enrijece, os olhos ficam fixos... Bernadette sob um "raio de sol espiritual” Valia a pena quando se via... Uma respiração ansiosa e sibilante Gritos de sofrimento durante a noite Uma criança esfomeada e abandonada Da aquero de Bernadette ao aquilo de Freud A terrível tortura dos sofrimentos interiores Meu Deus, se me enganei... Bernadette leva seus "três segredos" para o túmulo..

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2. O DIABO VAGUEIA POR MASSABIELLE .........107 Acredite quem quiser, mas eu vi! Cinco mulheres no fundo de uma gruta Aquela que "vê", aquela que não vê... Uma espécie de vapor... Retire-se, Satanás, se é você que está aí! Da gruta ao trottoir O caso espinhoso de Marie Courrech Com a permissão de um padre Nós nos olhávamos como duas tolas... Talvez ela tivesse me levado para o céu... É engraçado ver todos estes pequenos visionários A capela e os fiéis de Menino, oito anos O estranho conselho da pequena Marie Pujol O que acontece no vale de Batsurguère Uma estranha procissão na montanha O enviado especial de Deus e da Virgem Santíssima Os anjos e os arcanjos realizam minhas vontades Intervenção de Satanás ou exaltação da imaginação? 3. OTRIUNFO DA IGREJA...... 133 O "ardor irrefletido" dos vigários do abade Peyramale Um meio providencial para reavivar-o sentimento religioso Negar o sobrenatural é abjurar a religião cristã Agosto de 1859: Napoleão III e Eugênia em Lourdes O dogma da Imaculada Conceição Da religião cristã à religião mariana 1830: a Virgem aparece na rua du Bac, em Paris A França e o mundo inteiro mergulharão na tristeza Duas crianças da Provença e uma linda senhora que chora A mãe de Deus surge na charneca do Diabo Luis XIV - criança milagrosamente curada em Garaison

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Monsenhor Laurence quer preparar o povo para "apreciar" o novo dogma A renovação da prática religiosa graças ao culto de Maria Zola acusa o abade Ader de ter manipulado Bernadette Estaria Bernadette influenciada pela medalha milagrosa? Lourdes, uma segunda edição do milagre de Salette... Nossa Senhora de Lourdes e a "renovação cristã da sociedade”

TERCEIRA PARTE: O MILAGRE DAS CURAS

O AUTO DOS CASOS 1. A PRIMEIRA ONDA (1858) .............. 167 A "fonte milagrosa" cura os "mais lindos olhos do mundo" O testemunho do oculista Toda a França está com os olhos fixos em você O que é uma doença "histérica"? O cortador de pedra era cego de um olho há vinte anos A viúva surda tinha-se esquecido de lavar as orelhas Justin (dois anos): um quarto de hora dentro da água gelada Um caso de "lobinho” Os olhos lacrimejantes da mulher do carpinteiro Um outro caso de "lobinho" As terríveis seqüelas de uma febre tifóide O milagre da "senhora de Nay'' Curar a senilidade... Os primeiros passos de Dominique aos sete anos de idade As crises nervosas de um homem de vinte e sete anos Mais um "lobinho" As dificuldades de uma puberdade Ela cai de um carvalho e fica maneta O eczema de uma senhorita de trinta anos Denis (oito anos) não sabe andar nem falar

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Ainda as verrugas... O homem, com o tornozelo luxado, afasta-se correndo As dificuldades de uma menopausa O Bom Deus acaba de me aliviar, também quero aliviá-la A mulher que sofria de uma "dor no peito” Os reumatismos de Marie Vendôme Fabien, Suzanne e a malária Uma criança de três anos aprende a andar dentro da fonte Uma menininha raquítica Dez anos com os dedos retorcidos Quatro meses de abluções com a água de Lourdes para o tratamento de uma acne juvenil Estou vendo o Bom Deus e a Virgem Santíssima, diz a criança paralítica Curada por intermédio de Bernadette ou por intercessão da gruta? Os sete primeiros milagres oficiais. 2. A SEGUNDA ONDA (1900)...... 225 Próximo a Laval, uma terceira aparição da Virgem na França O "reino" do Dr. Boissarie: cem curas anuais Zola e os horrores de um "Trem branco" O romancista inicia sua investigação Onde foi parar o lúpus de Marie Lemarchand? O moribundo sai de dentro d'água cantando a "Ave Maria" Esta mulher faz do seu corpo o que bem entende Um futuro prêmio Nobel de medicina a caminho de Lourdes Se esta aqui se curasse, acreditaria em tudo Acho que estou louco Uma indefinível sensação de calma que irradiava ao seu redor Sete anos de fratura exposta para o jardineiro belga Falsa gruta e milagre verdadeiro O famoso caso Gargam A concorrência de Fátima.

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3. A TERCEIRA ONDA (DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL) ............. 249 Quarenta declarações de milagres por ano Yvonne Fournier (1945): a cura típica de Lourdes Marie-Thérese Canin (1950): o moi de Pott durante a guerra Jeanne Gestas (1947): depressão nervosa, úlcera e milagre controvertido Madalena Carini (1948): uma cura milagrosa reconhecida pelo futuro papa Paulo VIl Jeanne Fretel (1948): dez anos de hospital e sete intervenções cirúrgicas Tenente-Coronel Pellegrin (1950): os estafilococos dourados desaparecem instantaneamente Evasio Ganora (1950): morto num acidente com um trator dois anos depois da cura milagrosa Thea Angele (1950): um milagre admitido com reservas Alice Courteault (1952): mais um caso de esclerose em placas Irmão Léo Schwager (1952): a comissão médica reconhece a "cura inexplicável" por 18 votos contra 41 Marie-Louise Bigot (1953 e 1954): um milagre em duas etapas Ginette Nouvel (1954): dezesseis anos depois, uma recaida fatal Elisa Aloi (1958): curada por injeções com a água milagrosa Juliette Tamburini (1959): fim de um calvário para uma chefe de bandeirantes Vittorio Micheli (1963): cura secreta de um câncer Serge Perrin (1970): cego e paralitico.

LOURDES EM DEBATE 1. OS QUE CRÊEM ........ 285 Seis mil "proposições e curas" As "propriedades curativas especiais" da água de Lourdes

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Massabielle cura tudo Uma "derrogação às leis aparentes do mundo" Os falsos milagres: a culpa é de Satanás Falsos milagres e verdadeiros assaltantes O banho numa piscina: "É atroz!” Ação diapsíquica e ação parapsiquica de Deus Alquimia divina As seis grandes perguntas Tribunal de instância e tribunal de apelação do milagre Nada de "frívolo, ridículo, desonesto, vergonhoso, violento”... Proclamar sem hesitação os fatos milagrosos 2. AQUELES QUE NÃO ACREDITAM..... 305 Uma aparição extraterrena em Massabielle? Bernadette: uma jovem dotada de qualidades mediúnicas Do lado dos taumaturgos Os milagres de Fátima A Virgem na Bélgica e Hitler na Alemanha O caso de Irmã Prudentia Duas vezes mais mulheres do que homens Pode-se lançar a culpa no psiquismo? Henriette Hauton: vinte anos e dezessete quilos Psicossomático e sugestão Conte-me a sua vida e eu lhe direi a sua doença... A alma e o corpo Recenseamento das enfermidades psicossomáticas O romance verdadeiro de um milagre Coração disparado devido à colocação de uma sonda... Tenho medo de ser tomada por uma histérica Uma garrafinha com água de Lourdes A doença de Addison: um diagnóstico difícil Uma irritação que me deixa louca Lourdes: um "conto de fadas real”

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Incapacidade para olhar a realidade de frente Engolida por uma onda de fervor As faces rosadas e os olhos brilhantes Noto que alguma coisa excepcional está acontecendo comigo Poderíamos dizer que você jejuou voluntariamente... Você também é uma pequena Bernadette Vontade de viver e razão de existir.

PRIMEIRA PARTE

Era uma vez uma pastora chamada Bernadette...

"Bernadette Soubirous. Em 1858, foi honrada em Lourdes com diversas aparições da Santíssima Virgem. Na religião: Irmã Marie-

Bernard. Falecida em Nevers, na casa-matriz das irmãs de Caridade, a 16 de abril de 1879 aos 36 anos de idade e aos doze de sua

profissão religiosa."

Epitáfio de santa Bernadette no convento Saint-Gildard, em Nevers.

1. "Uo damo abillado en blan" (Uma dama vestida de branco)

"A Virgem não está mais sentada no céu. Ainda caminha entre nós,

mais infatigável e mais rápida, mais jovem e mais bonita, mais sorridente e mais triste que nunca... Acompanhamos a Virgem,

seguimos-lhe as pegadas, atentos à música interior e procurando consolo... As vozes da prece viva interrogam-se no alto: ouviram-na, viram-na? Ela passou perto de vocês? E as respostas chegam com o

vento da noite: "Acreditamos que só pudesse ser Ela. Mas ainda não o sabemos..."

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Michel de SAINT-PIERRE, Bernadette

(ed. La Table Ronde) 21 de fevereiro de 1858. Domingo. Na velha igreja romana de Lourdes, pequena capital do cantão dos Altos-Pireneus, com quatro mil e poucos habitantes, a missa principal acaba de ser celebrada pelo abade Peyramale, cura do burgo há três anos (foi nomeado para o cargo a 9 de dezembro de 1854). O guarda-campestre Callet espera do lado de fora, em frente ao pórtico, indulgente apesar da farda rutilante que enverga. Sua atitude demonstra, com clareza, que lhe foi confiada uma missão importante. Os sinos começam logo a tocar. Pouco a pouco, os fiéis abandonam a igreja. Inicialmente, vêem-se os representantes da "classe alta" (segundo a denominação oficial e corrente), burgueses apreciadores de uma boa mesa e compenetrados de sua importância, bonitas senhoras entufadas nas suas anquinhas e crinolinas, conforme a moda do Segundo Império, garotinhos e garotinhas cuidadosamente vestidos com trajes domingueiros. A seguir, surge a "classe baixa": os "braçais" (isto é, os homens que alugam seu trabalho), alguns envergando sobrecasaca, outros em mangas de camisa, mas todos com boinas. As mulheres, apertadas sob um amontoado pesado e sombrio de anáguas, saias e aventais, trazem os cabelos escondidos duplamente sob um lenço e um "toucado", longa faixa de tecido negro, branco ou vermelho, que cobre a cabeça, ombros, e prolonga-se até a cintura.

"Acompanha-me, Bernadette, o comissário quer conversar com você"

Então, o guarda-campestre Callet adianta-se, circunspecto, na direção desse grupo tristonho e esfalfado, cujos semblantes exibem os

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estigmas da terrível fome sofrida no inverno anterior e dos ataques crônicos de cólera. O homem agarra, pelo toucado, uma adolescente de luminoso semblante, liso e grave, mas tão baixinha (tem pouco mais de um metro de altura), que ainda parece uma criança: - Acompanha-me, Bernadette - diz o guarda-campestre com sua voz grave. - O comissário de polícia quer conversar com você. A jovem obedece docilmente e é acompanhada, de longe, por seus pais, irmãos e irmãs, bem como por outros membros da família. E ei-la diante do comissário de polícia de Lourdes, Dominique Jacomet: um "homem bonito" (a opinião é de seus contemporâneos), com trinta e oito anos, de abundante cabeleira negra e ondulada, imensos bigodes, barbicha "imperial" e impecável. É bastardo (nasceu de pai desconhecido), contudo, esse estigma não o impede de iniciar uma brilhante carreira como funcionário público. Na verdade, esse pirenaico galgará, pouco a pouco, todos os escalões da polícia e, oito anos mais tarde, estará ocupando cargo de adjunto do governador em Paris e agraciado com a Legião de Honra. Nasceu em Argelès e conhece bem o dialeto de Bigorre em que se expressa a pequena interlocutora. A entrevista é demorada. Tão logo a jovem se retira, Jacomet pega um pedaço de papel, mergulha a pena de pato num tinteiro e começa a escrever: "No ano de 1858, dia 21 de fevereiro, nós, Dominique Jacomet, comissário de polícia do cantão de Lourdes (Altos-Pireneus), tendo tomado conhecimento de que uma adolescente afirmava estar mantendo contato com a Virgem que lhe teria aparecido numa gruta, denominada Massevieille, às margens do Gave, às portas de Lourdes; de que ela ali permanecia em êxtase durante algumas horas do dia; de que os rumores a respeito da visão que corriam de boca em boca entre o povo, há alguns dias, começavam a provocar uma certa agitação e poderiam, talvez, em determinado momento, perturbar essa gente simples e por demais crédula; convocamos essa jovem à nossa presença, perguntamos-lhe o nome e idade, e convidamo-la a relatar-nos, palavra por palavra, tudo quanto tinha visto, tudo quanto vinha

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sentindo, a partir da primeira visão na gruta, inclusive os nomes das pessoas a quem tinha confiado suas primeiras revelações." Eis a sua declaração: - “Meu nome é Bernadette Soubirous – com treze anos ou quatorze anos de idade, nascida em Lourdes, não sabia ler nem escrever e não havia, ainda, feito a primeira comunhão”.

O "Cárcere" da Família Soubirous E Bernadette, com sua voz doce e no dialeto cantante, narra ao comissário amável e benevolente o que lhe aconteceu depois do "dia do mercado de Tarbes", isto é, na quinta-feira, 11 de fevereiro. Enquanto conta a sua história, fita o policial com olhos límpidos e sem demonstrar qualquer espécie de temor. Naquela manhã, no sórdido e minúsculo cômodo (trata-se de um antigo cárcere), que ela ocupa na rua des Petits-Fossés, situada no bairro pobre de Lourdes, a família Soubirous despertou em estado deprimente: não havia lenha nem pão. Ei-los: a mãe, Louise, uma mulher de trinta e três anos, envelhecida antes do tempo, que procura esquecer suas desgraças embriagando-se com bastante freqüência; o pai, François, bem mais velho, pois já conta quase cinqüenta anos, antigo moleiro, decadente e que se tornou "trabalhador braçal", está cego de um olho e vive tristonho; e os quatro filhos. Além de Bernadette, a mais velha (nascida a 7 de janeiro de 1844), há Toinette, com doze anos (de 19 de setembro de 1846), Jean-Marie, com sete anos (de 13 de maio de 1851) e o raquítico e pequenino Justin, com três anos (de 28 de fevereiro de 1855 e que falecerá em fevereiro de 1865). Duas outras crianças, uma nascida em fevereiro de 1845 e outra em dezembro de 1848, morreram em tenra idade. Louise Soubirous ainda dará à luz a três crianças, mas somente uma sobreviverá, Bernard-Pierre (nascido a 10 de setembro de 1859). Doente, esgotada, exaurida de forças, ela virá a falecer a 8 de dezembro de 1866, aos quarenta e um anos de idade.

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Bernadette, que é, portanto, a mais velha das crianças vivas, acaba de regressar à casa paterna, a fim de preparar-se para a primeira comunhão e reencontra esse pardieiro lúgubre. Na realidade, no inverno anterior, para fugir da fome que assolava toda a região, seus pais mandaram-na para a casa de uma velha ama de leite, dona de um pequeno rebanho de carneiros, onde passou a trabalhar como pastora. Essa fome que assolou os Altos e os Baixos-Pireneus fora a conseqüência, primeiro, da catastrófica colheita de trigo, no verão de 1856, que nem chegou a um terço da média habitual e, depois, da excepcional seca que comprometeu quase totalmente as colheitas de milho, de batatas e dos feculosos (feijões e ervilhas). Durante o terrível inverno que se seguiu, evidentemente a região foi reabastecida por comboios que transportavam os gêneros alimentícios de primeira necessidade. Contudo, apenas os ricos podiam comprá-los. Assim, a 27 de março de 1857, François Soubirous; pai de Bernadette, foi preso. Um padeiro de Lourdes, Bertrand Maisongrosse, de quem haviam roubado três sacos de farinha (nessa época os padeiros e os moleiros da região gostavam de possuir fechaduras sólidas...), apresentou queixa à polícia. Declarou-lhe suspeitar de François Soubirous que costuma contratar, de vez em quando, como operário: - É a sua condição miserável - afirmou aos guardas - o que me leva a crer que talvez seja ele o autor deste roubo. François Soubirous ficaria, na prisão até 4 de abril. Depois seria solto por falta de provas concretas. Esse incidente deplorável não iria ajudá-lo a encontrar trabalho. A partir daí, os empregadores começam a desconfiar de sua honestidade, apesar de François Soubirous ter sido apenas alvo de suspeitas e não condenado.

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Crianças que Dançam às Margens do Gave

E em vez desses adultos fracos, indolentes, sem forças e sem vontade, não raro cabe às crianças a tarefa de prover às necessidades diárias da família. Naquela manhã, ao romper do dia 11 de fevereiro de 1858, foi exatamente isso que Bernadette resolveu fazer. Acompanhada pela irmã Toinette e por uma garota de sua idade, Jeanne Abadie, ela sai de casa para "recolher alguns ossos" ao longo do Gave. Esses ossos, provenientes sem dúvida alguma dos refugos, eram depois vendidos a fim de serem queimados e transformados em pó preto, produto de tintura utilizado normalmente até a invenção dos corantes químicos. Aliás, naquele dia, os ossos recolhidos pelas duas irmãs Soubirous e pela amiguinha irão render-lhe seis cêntimos, e seis cêntimos é o preço de um quilo de pão: Essa insignificância constituirá toda a refeição da noite da família Soubirous. Eis, portanto, as três garotas saindo do "cárcere", patinando na lama da rua des Petits-Fossés, que é de terra batida e no meio da qual foi aberta uma canaleta por onde correm as águas sujas e as imundícies que, finalmente, saem de Lourdes. Após terem atravessado o Gave por uma velha ponte pênsil, tomaram o caminho que envereda pela montanha adentro e leva às pitorescas aldeias isoladas e de nomes sonoros: Batsurguère, Omex, Ossen, Segusi. À esquerda, uma aresta rochosa bastante escarpada. À direita numa extensa planície pertencente a uma rica família de Lourdes, os Laffitte, encontra-se, ao longe, um moinho d'água, o moinho Savy, alimentado por um pequeno canal artificial. Este disciplina as águas do Gave que, naquele ponto, atira tumultuosas ondinhas sobre as pedras: é possível atravessar o rio a pé praticamente por todos os lados. As três meninas chegaram ao baixio menos profundo. Toinette e Jeanne alcançaram logo a outra margem. E, despreocupadas, apesar do frio, da fome e da miséria, dominadas pela beleza desta encantadora paisagem pirenaica, ainda que bastante conhecida para

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elas, e embriagadas pelo ar frio e penetrante da manhã, começam a dançar alegremente. "Alguma coisa Vestida de Branco que se parecia com

uma Menininha" Bernadette é mais vagarosa, mais prudente, menos impulsiva. Sente-se sem ar (é asmática). Deixa-se ficar para trás a fim de tirar as quentes meias de lã, para que, ao chegar à outra margem, elas estejam secas. Encontra-se ao pé da escarpa rochosa entalhada por uma imensa gruta que se abre ao nível do solo, a gruta de Massevieille ou Massabielle (segundo a pronúncia francesa ou dialetal). Esta é encimada por diversos nichos e sarças entrelaçadas, sobretudo por uma roseira silvestre. Então, inesperadamente Bernadette escuta um rumor (um ruído) naquelas sarças: - Olho para aquele lado - conta a menina -, vejo a sebe agitar-se e no fundo alguma coisa vestida de branco que se assemelhava a uma garotinha. Fixei os olhos naquilo (Aquero, no dialeto falado por Bernadette, quer dizer aquilo ou isto) por um instante, em seguida caí de joelhos. "Aquilo" sorriu para mim e depois penetrou na gruta. Na realidade, Bernadette foi muito explícita e fez uma descrição bem mais pormenorizada ao comissário sobre "aquela coisa vestida de branco". Contudo, esse funcionário sério e racional hesita em colocar no relatório oficial todas as particularidades mencionadas, embora as tenha anotado com o maior cuidado. A jovem de Lourdes lhe diz que, na verdade, a "menina de branco" não era "muito mais alta do que ela mesma", que cumprimentou Bernadette "com uma ligeira inclinação" e fez um movimento especial com os braços: a "menina de branco, que antes os mantinha caídos ao longo do corpo, afastara-os ligeiramente, abrindo as mãos". Bernadette também esclarece que a menina lhe sorriu "com uma graça divina". A adolescente sente medo e apanha o terço num gesto maquinal.

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- A menina - prossegue Bernadette - coloca-se então de lado, vira-se para mim, desta feita com um grande terço na mão, persigna-se e começa a rezar... Recito minhas orações e observo tudo quanto posso. Graças a essa observação, Bernadette descreve as roupas da visão em seus mínimos detalhes: um vestido branco fechado até o pescoço, uma faixa azul de pontas esvoaçantes que praticamente roçam o chão, um véu branco atirado atrás da cabeça e descendo até o meio da perna. Está descalça e nos pés duas rosas amarelas (ou douradas); um terço de corrente dourada e contas brancas. Posteriormente, Bernadette precisará que Aquero tem olhos azuis, porém não conseguirá definir a cor dos cabelos escondidos sob o véu branco.

"Coitada de mim! O que está me dizendo?" Bernadette, após ter tirado as meias, levanta-se novamente, atravessa o vau e reúne-se às amigas. - Aouet bis a ré? ("Vocês não viram nada?") - pergunta a Toinette e Jeanne. - Non. E tu qu'as bis? ("Não. E você viu alguma coisa?"). - Labets a ré. ("Também não vi nada.") As três meninas procuram os ossos mas também juntam alguma lenha. Pouco depois, Jeanne despede-se das irmãs Soubirous e vai embora. - Fiquei sozinha com minha irmã - continua a contar Bernadette - a quem falei sobre minha visão enquanto voltávamos para casa. Toinette ao ser interrogada alguns anos mais tarde, irá recordar-se perfeitamente da frase pronunciada por Bernadette: - Qu 'ai bis uo damo abillado en blan dab'uo cinturo bluo e uo roso iaoûno sus cado pé. ("Vi uma dama vestida de branco, com uma faixa azul e uma rosa amarela em cada um dos pés.")

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- Por volta das três da tarde - relata Bernadette ao comissário, prosseguindo sua narrativa - falei a respeito com Jeanne Abadie e à noite, enquanto ceava, toquei sobre o assunto com minha mãe. Ela respondeu-me que, sem dúvida, fora um sonho. Também falei a respeito com a minha tia Romaine que mora no andar acima do nosso. Disse-me ela que isto era o efeito de alguma ilusão. Na verdade, Bernadette restringe bastante o que realmente aconteceu. Já que não havia conseguido controlar-se para não conversar com a irmã a respeito da sua "visão", pediu-lhe para guardar segredo. Mas Toinette, excitada por aquele estranho acontecimento, não conseguiu controlar a língua. Mais tarde, ela mesma narrará a cena. - Havia alguma coisa que me impelia a relatar o que Bernadette me havia contado. Então, fiz "hum!" por três vezes. Minha mãe indaga: "Por que está fazendo isso... está doente?" - Não, mas vou contar-lhe o que Bernadette me disse. (Bernadette achava-se num pequeno corredor e eu, encostada ao caixilho de uma janela.) Então contei. "Ai de mim! O que está me dizendo!" murmurou minha mãe. Chamou Bernadette e interrogou-a. Sem rancor Bernadette repete para ela o que já me havia contado. Nossa mãe repreendeu-nos e deu-nos uma surra com uma bengala.

"É necessário esperar", diz o cura de Lourdes Apesar deste castigo bastante severo, Bernadette não vai guardar silêncio a respeito daquilo que lhe tinha acontecido. Na sexta-feira, depois do almoço, dirige-se à escola mantida pela congregação das irmãs de Nevers, onde, ela e sua irmã Toinette são recebidas na classe dos indigentes. A fim de poder fazer logo a primeira comunhão, Bernadette deve aprender o catecismo, porém defronta-se com alguma dificuldade. - Nunca aprenderei nada - comenta certo dia com sua professora. - Seria preciso que me enfiasse este livro na cabeça.

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E é a esta professora, irmã Damien, que Bernadette relata, em dialeto, pois quase não sabe falar francês - foi uma outra garota indigente que teve que traduzir - aquilo que "viu" na véspera, lá na gruta de Massabielle. Refere-se à aparição como Aquero e, durante muito tempo, empregará essa denominação vaga e neutra. Contudo, todas as pessoas que a escutam falar sobre o assunto, não importa se da "classe" alta ou baixa, dão imediatamente a sua interpretação ao fato: para elas não resta dúvida que Bernadette viu, ou acreditou ter visto, ou quer fazer com que acreditem que ela viu... a Virgem. No sábado à noite, ao confessar-se ao abade Pomian, seu confessor, Bernadette diz-lhe com toda simplicidade: - Vi alguma coisa vestida de branco com o aspecto de uma dama. O abade Pomian acolhe muito favoravelmente esta confissão e chega a perguntar a Bernadette se pode ventilar a questão com o cura de Lourdes, o abade Peyramale, do qual é um dos vigários. Imediatamente vai procurar seu superior que, menos entusiasmado, declara: - É preciso esperar.

"Descarada! Descarada! Se voltar à gruta, será trancafiada!"

Quando chega o domingo, 14 de fevereiro, muita gente já tinha ouvido falar sobre a visão de Bernadette. Contudo, foram suas colegas da classe das indigentes, as que mais se impressionaram com o fato. Nesse mesmo domingo manifestam o desejo de ir à gruta com Bernadette. Mas primeiro é preciso pedir permissão a Louise Soubirous, no cárcere, e depois a François Soubirous, que se encontra, sem dúvida alguma e como de hábito, numa taberna. E a turminha dirige-se a Massabielle. - Nós tínhamos levado - conta Bernadette ao comissário da policia - uma garrafinha de água benta que Justine Soubies e Marie Chouatou

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tinham apanhado na igreja. Ao chegarmos lá, ajoelhamo-nos, rezamos o terço e Aquero tornou a aparecer à entrada da gruta. Bernadette preparava-se para perguntar se "Aquilo" vinha da parte de Deus ou da parte do demônio, quando a impertinente Jeanne Abadie, a mesma menina que havia acompanhado Bernadette Soubirous na quinta-feira anterior, começou a esbravejar: - Espere, espere, vou assustar a sua Dama de branco! E atirou uma pedra imensa que se eleva com dificuldade e vai despencar ao lado de Bernadette. Aquero desaparece e Bernadette entra em êxtase. Há um movimento de pânico entre as meninas que agarram Bernadette e procuram arrastá-la para longe daquele local onde se passam coisas tão estranhas. Mas a companheira continua imóvel. As meninas dirigem-se até o moinho de Savy, perto dali, e retornam acompanhadas pelo moleiro Nicolau que consegue arrancar Bernadette de sua contemplação estática. No dia seguinte, na escola das irmãs de Nevers, só se fala do acontecido: - Será que você não vai acabar logo com essas palhaçadas? - indaga a superiora, repreendendo-a com severidade. À saída da escola, uma aluna chamada Sophie Pailhasson, sem dúvida alguma, com ciúmes de Bernadette, agarra-se a ela com violência: - Descarada! Descarada! - exclama aos berros após tê-la esbofeteado - se voltar à gruta, será trancafiada! Bernadette limita-se a contar ao comissário Jacomet apenas o que lhe disseram as irmãs: “aquilo nada mais era do que o efeito de alguma ilusão", mas mantém-se silenciosa a respeito do episódio com a malvada Sophie Pailhasson.

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Bernadette e a Virgem conversam no Dialeto

Bigourdano - Na manhã de terça-feira, dia 16 de fevereiro - prossegue Bernadette - a Sra. Millet mandou me chamar. Eu não queria ir. Na terça-feira de noite, tornou a mandar me chamar. Atendi-a. Contei-lhe tudo que tinha visto e combinamos ir até à gruta no domingo seguinte, bem cedo, isto é, hoje de manhã. A Sra. Millet não teve paciência para esperar até hoje. Apareceu na minha casa, na manhã de quinta-feira, 18 de fevereiro, acompanhada pela Senhorita Peyret, filha do bedel, bem cedinho: eu ainda estava na cama. Portanto, já não são mais apenas as companheiras de classe de Bernadette, as pequenas "indigentes", que demonstram interesse pelos acontecimentos ocorridos na gruta de Massabielle. O rumor ouvido por Bernadette a 11 de fevereiro nas sarças do Gave já tinha chegado aos ouvidos da “alta classe" de Lourdes. Mas, a novidade entra pela porta da cozinha. Na verdade, num relatório ulterior, o procurador de Lourdes, Vital Dufour, iria definir a Sra. Millet de modo nada delicado e pouco gentil: "Criada doméstica inicialmente, hoje possuidora de uma fortuna bastante grande, obtida pelo casamento com seu último patrão; mulher cujos costumes foram bastante criticados quando era mais jovem e cuja ignorância ociosa torna-a sensível a qualquer impressão e sujeita a todos os caprichos." - Chegadas à gruta - prossegue Bernadette -, ajoelhamo-nos, rezamos o terço e pouco depois Aquero apareceu. "Aquilo" fez um sinal com o dedo para eu me aproximar. A Sra. Millet mandou-me entregar à Visão a pasta, a caneta e o papel que ela havia levado, interessada em receber por escrito aquilo que a Virgem desejava dizer-me. Isso porque nas duas primeiras aparições "Aquilo" não revelou seu nome, como também não formulou nenhuma pergunta, nem fez nenhuma declaração.

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Tão logo Bernadette entregou as coisas à aparição, ela respondeu delicadamente em dialeto bigourdano. - N'ey pas necessari! ("Não é preciso nada disso!") O fato de a Virgem falar em dialeto era sem dúvida de causar espanto. Isto porque o uso de todos os dialetos ou quaisquer outras línguas, além do francês, estava rigorosamente proibido em todo o território nacional: - Ela deve conhecer qualquer idioma - comentará Bernadette tentando defendê-la. - Se falava em patoá comigo é porque desejava que eu a entendesse, já que não falo outra língua. E quando objetavam que a Virgem tinha nascido e vivido na Judéia, onde ninguém há dois mil anos sabia, é claro, falar o dialeto bigourdano..., Bernadette retruca: - O autor de todas as línguas não é o Bom Deus e não teria Ele ensinado patoá à santa Virgem como ensinou a mim? A virgem pede a Bernadette, naquele mesmo dia 18 de fevereiro de 1858, quinta-feira, com sua voz "suave" e "melodiosa" que a menina não escuta com os ouvidos mas "por qui" (a esta altura a jovem de Lourdes colocava a mão sobre o próprio coração): - Voletz auer ra gracia de vié t'aci pendent quinze dias? (Poderia me fazer a graça, ou a gentileza, de vir aqui durante quinze dias?). E antes de desaparecer, a mãe de Cristo declara à jovem de Lourdes: - Nov prometi dev hé urosa en este monde mês en aute. (Não prometo fazê-la feliz neste mundo, mas no outro.)

2. O Jorrar de Uma Fonte "... As fontes, silenciosas e indiferentes, divertem-se com nossas críticas e dogmas... Avaras com seus segredos, cientes de nossas esperanças, benevolentes com nossos padecimentos, elas jorram das profundezas da terra...”

Michel CERISIER, Guide Marabout de Ia France thermale et de Ia thalassothérapie

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Portanto, naquela manhã de domingo, 21 de fevereiro de 1858, quando o comissário Jacomet recebe Bernadette Soubirous - um tanto trêmula mas determinada - já fazia quatro dias que se iniciara a quinzena prodigiosa das aparições da Virgem Maria, na gruta de Massabielle, para a pastorinha de Bigourdan. Esta famosa quinzena, cuja duração irá da quinta-feira, 18 de fevereiro até a quinta-feira, 4 de março, com visitas quotidianas de Bernadette e aparições não menos diárias por parte da Virgem (exceto segunda-feira, 22 de fevereiro, e sexta, dia 26). vai, rapidamente, atrair uma multidão considerável. Na verdade, naquela manhã dominical, ali já se encontrava uma centena de pessoas com os olhos arregalados, atitude provocada, é claro, não pela aparição milagrosa - privilégio único de Bernadette, mas pelo espetáculo extraordinário proporcionado pelo êxtase da menina. Seu comportamento vai fascinar de tal forma as imaginações que, no final da quinzena, haverá na gruta de sete a oito mil pessoas!

"Percebíamos que ela via alguma coisa..." De imediato, todas as testemunhas comentam o "sorriso seráfico" de Bernadette, a "pureza encantadora" de seu rosto, a sua graça "que deixa a todos maravilhados", a maneira como faz o sinal da cruz, "exatamente como deve ser feito no céu", o "olhar amoroso", a "alegria indescritível" ou as que "não lhe alteram de forma alguma os traços do semblante" ... - Nunca mais poderia esquecer a fisionomia desta criança naqueles momentos - comentará alguém. - O seu corpo, circundado por uma luminosidade virginal - dirá um outro -, dava-nos a impressão de que um raio de sol espiritual havia descido sobre aquela cabeça para nela depositar uma auréola - que logo deveria desaparecer - de estranha majestade.

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Todos aqueles que testemunharam a quinzena prodigiosa de Bernadette haveriam de guardar uma recordação indelével por toda a vida. Em fevereiro de 1860, o abade Junqua escreve que alguns habitantes de Lourdes "dignos de crédito" recordavam-se perfeitamente da "expressão radiante da visionária, de lábios agitados, pela palavra dialogada, que articulavam, de olhos ardentes e brilhantes, fixos, atentos, presos na direção do horizonte interior do rochedo, onde a personagem, invisível a todos, menos a ela, falava, interrogava, respondia... Então, uma onda de alegria derramava-se sobre o rosto iluminado de Bernadette". Dez anos mais tarde, em 1868, as lembranças estão tão frescas e tão presentes em todas as memórias, que um investigador, chamado Sempé, ao confrontar os testemunhos obtidos, é capaz de fazer uma descrição tão detalhada dessas sessões na gruta, que juraríamos ele mesmo havê-las assistido. "Ela estava lá - diz Sempé - tranqüila e livre, o olhar atento dirigido para a abertura do rochedo. Rezava, segurando as contas do seu terço, algumas poucas Ave-marias. Subitamente, um leve estremecimento anunciava a visita augusta. Suas mãos elevavam-se ligeiramente com um movimento rápido e suave. Tudo parecia crescer nela, a atitude e os traços. O rosto empalidecido anelava por alguém que se achava nas alturas”. A multidão acompanhava a seqüência dos acontecimentos: - Agora!... Ela está vendo! Ela a vê! Estas palavras circulavam em meio à multidão atenta e faziam-na vibrar de emoção. Era necessário proteger a menina contra a pressão dessa massa de gente premida pela intensificação da curiosidade. O silêncio tornava-se mais profundo. Um recolhimento religioso pairava sobre a assembléia. Parecia estar-se mim santuário. Os olhares devoravam Bernadette. A opinião geral é resumida com perfeição, por uma certa Madeleine Barbazat, que um dia declarará a um investigador: "Percebíamos que ela via alguma coisa."

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"Sinto-me arrebatada por uma força irresistível"

Portanto, naquele domingo, 21 de fevereiro, pela manhã, quando o comissário Jacomet interroga Bernadette Soubirous, a pastorinha já havia visto "Aquilo" por seis vezes: na quinta-feira, 11 de fevereiro; no domingo, 14 de fevereiro; na quinta-feira, 18, quando "Aquilo" pronuncia as suas primeiras palavras; na sexta-feira, 19, quando Bernadette comparece à gruta acompanhada pela mãe e pela tia; no sábado, 20, quando Bernadette já é seguida por quase uma centena de pessoas, e naquele domingo pela manhã, 21 de fevereiro. Ela chegou à gruta às seis horas e, em meio à multidão crescente, atraída pelo extraordinário acontecimento, podia-se distinguir as fardas de alguns guardas, sobretudo aquela do chefe de esquadrão, vindo de Tarbes e chamado Renault. Este posteriormente redigirá, aos cuidados de seu tenente, a seguinte ordem de serviço: "O senhor mandará um guarda à famosa gruta todas as manhãs. Ele lhe prestará contas, e o senhor a mim, dos fatos ai ocorridos, do número de pessoas ali reunidas e que "formam a multidão." A policia, a gendarmaria... Agora é a justiça que se interessa pelo caso de Bernadette. Nesse mesmo domingo, 21 de fevereiro, o comissário Jacomet, após ter interrogado a menina, envia-a ao procurador "imperial" de Lourdes, cujo nome é Vital Dutour. Este recebe Bernadette com uma severidade excessiva. - Você tem a intenção de ir até a gruta todas as manhãs? - indaga o procurador Dutour a Bernadette. - Sim, meu senhor - replica a adolescente, um tanto intimidada, mas num tom de voz firme e tranqüilo -, prometi comparecer ali durante quinze dias. - Mas já lhe disseram que a sua visão era um sonho, uma ilusão, a que não devia apegar-se. As irmãs que lhe ministram a instrução religiosa, mulheres muito piedosas, já lhe disseram isso. Por que

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razão não segue seus conselhos? Evitaria, assim, que perdêssemos tempo com você. - Experimento uma alegria muito grande quando vou à gruta. - Se se abstivesse de ir até lá o procurador não precisaria impedi-la de o fazer. - Sinto-me arrebatada por uma força irresistível. - Tenha cuidado! - esbraveja o procurador. Há muitas pessoas que suspeitam que você e seus pais talvez desejem explorar a credulidade pública. Eu também poderia pensar o mesmo. Sua família é multo pobre. Você se vê alvo de simpatias, as quais lhe proporcionam. algumas alegrias e poderia esperar por outras ainda maiores. Não posso deixar de adverti-la de que, se não usar de sinceridade com relação às descrições sobre as aparições, e se você, ou seus pais, tirarem algum proveito disto, estão se expondo a perseguições judiciais e a severas condenações por espoliação fraudulenta. - Não espero obter nenhum proveito nesta vida. - Isso é o que diz. Mas não aceitou a hospitalidade oferecida pela Sra. Millet? E o padrão de vida na casa dela não é melhor do que o da casa de seus pais? Eles mesmos esperam melhorar de situação servindo-se de você, de suas visões e do interesse por elas despertado, embora, talvez, não passem de sonhos, como já lhe disseram e, o que seria bem pior, de mentiras. - A Sra. Millet - retruca Bernadette com vivacidade - quis me levar para sua casa. Foi me procurar. Cedi a seus desejos para lhe proporcionar um prazer. Não pensei em mim. Não menti, nem a ela, nem a mais ninguém. - Claro, sem dúvida, foi a Sra. Millet quem tomou a iniciativa - concorda o magistrado. - Não pude comprovar se, no momento em que ela a tomou, sua atitude tenha sido desencadeada por uma fraude passível de acusação. Contudo, é meu dever adverti-la de que, se reconheço sua boa fé até o dia de hoje, bem como a sua sinceridade, elas hão de se tornar suspeitas se eu vier a saber que você não se mostra totalmente desinteressada.

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Uma "Aventura" que encontra, a cada dia, novos

Adeptos Na segunda-feira, 22 de fevereiro, Le Lavedan, o jornal de Lourdes, publica um artigo sobre Bernadette, no qual ela é apresentada como "vitima de catalepsia" : "Não relataremos as mil versões feitas a este respeito, conclui o jornalista, autor do artigo. Diremos somente que a jovem dirige-se, todas as manhãs, à entrada da gruta, onde reza, com uma vela na mão, escoltada por mais de quinhentas pessoas. Ali, ela é vista passar do mais profundo recolhimento a um sorriso suave e, em seguida, recair num estado extático dos mais pronunciados. Lágrimas rolam de seus olhos que permanecem fixos na gruta onde ela acredita ver a Santa Virgem. Procuraremos manter nossos leitores a par dessa aventura que encontra cada dia novos adeptos". À tarde, Bernadette dirige-se à gruta, seguida por uma pequena multidão. O chefe da gendarmaria de Lourdes, o segundo sargento de cavalaria d'Angla, junta-se à procissão e, tão logo alcançam o local, censura severamente a menina. A Virgem não aparece. De noite, Bernadette vai pedir conselhos a seu confessor, o abade Pomian: - Não se tem o direito de impedi-la de ir à gruta - são as palavras do padre. Portanto, na terça-feira, Bernadette encontra-se mais uma vez na gruta. A seu redor, há várias centenas de pessoas, pertencentes, não apenas à "classe baixa", como no inicio, mas também alguns integrantes da "classe alta". Na verdade, encontram-se, entre eles, o co-Iocatário de Jacomet, Jean-Baptiste Estrade, pessoa ilustre na região e que mais tarde redigirá um maravilhoso livro de recordações; o advogado Dufo, ex-prefeito de Lourdes; Sr. de Laffitte, antigo intendente militar e importante proprietário agrário; a Srta. Fanny Nicolau, professora, etc.

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O segundo sargento de cavalaria d'Angla está sempre presente. Quando Bernadette demonstra com clareza, pela sua atitude extática, que a aparição surge ali, pela sétima vez, e que a multidão participa intensamente do acontecimento, ele tenta fazer ouvir a voz da "razão": - Não nos deixemos levar, em pleno século XIX, por uma tal crendice! - roga desesperadamente. Em seguida, pergunta a Bernadette: - Afinal, o que está vendo? Mas o que vê? A jovem não lhe dá resposta. Pouco depois levanta-se e afasta-se, sem pronunciar uma palavra sequer. "Reze pela conversão dos pecadores", diz a Aparição De volta a Lourdes, d'Angla vai ao encontro do prefeito, Sr. Lacadé, e do procurador Dutour. Ambos aconselham-no a ser prudente quando resolver intervir e não se opor frontalmente à opinião pública. À tarde, outra bela dama de Lourdes, Ana Dupas, vai procurar Bernadette no "cárcere" familiar. Esta, por uma questão de delicadeza, ou com a intenção de tentar a adolescente, oferece-lhe uma maçã: as frutas cultivadas são uma gulodice rara para qualquer pessoa da classe de Bernadette, que não conhece outras além das bagas silvestres. Mas ela recusa. Sexta-feira, dia 24 de fevereiro, de manhã bem cedinho, Bernadette dirige-se à gruta. Aí estão amontoadas de quatrocentas a quinhentas pessoas que se acotovelam. Mais uma vez, o segundo sargento d'Angla procura investir contra a força da mística popular. - Nada há de real na aparição da Virgem neste local - diz ele decidido -, a única realidade é o estado doentio dessa menina. Se vem até aqui todas as manhãs, é apenas conseqüência de uma ilusão causada pela afecção cerebral de que padece. Ninguém parece ouvi-lo. Todos os olhares estão presos em Bernadette que, genuflexa, vela e terço na mão, fita com ar extático o nicho da aparição sobre a gruta de Massabielle:

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- Que pregaratz Diu - diz Aquero - enta ra conversion deds pescadors. Que punaratz ra terra enta hé penitença enta ra conversion deds pescadors! ("Reze pela conversão dos pecadores! Beije a terra como penitência pela conversão dos pecadores!") Esta foi a oitava aparição.

O Jorrar da Fonte O dia seguinte, 25 de fevereiro, é o dia da fonte. - Penitença! Penitença! Penitença! - repete a aparição para Bernadette por três vezes. Depois "Aquilo" acrescenta: - Anatz beue en a hont e v'i lauar! ("Vá beber na fonte e lavar-se!") - Aquero apontou para a parte fendida do rochedo - contará a própria Bernadette ao abade Junqua, que mais tarde será suspenso por ter pregado em favor de uma "Igreja democrática e social". Corri na direção do Gave a fim de beber mas a visão fez-me voltar: "Não disse para ir beber a água do Gave, mas esta aqui". Ela apontava para a parte fendida do rochedo, onde não havia água, apenas poeira e pedra... Obedeci. Voltei ao lugar que a visão me indicava, raspei o solo árido. Tirei um punhado de terra úmida. Não tinha coragem de beber aquilo. Raspei mais. O resultado foi o mesmo. Ainda não tinha coragem de beber. Raspei mais um pouco e, finalmente, desta vez senti uma umidade maior na mão, embora ainda houvesse poeira... Neste instante obedeci e bebi tudo. E a partir deste momento a água começou a jorrar e continua a jorrar em abundância. A multidão presente vê, assombrada, Bernadette comer o que parecia ser apenas um punhado de terra. É a primeira vez que a jovem de Lourdes faz alguma coisa parecendo realmente uma incongruência. Mas ela não vai parar por ai, pois Aquero ordena-lhe: " - Que minvaratz d'aquera yerba qu'ei atheu! ("Comerá daquele mato que ali está!")

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Bernadette arranca então um punhado do capim "que ali está" (trata-se de dorina) e mastiga-o lenta mas resolutamente. Uma testemunha presente contará, mais tarde, que as pessoas estavam "aterradas": não seria a visionária uma pobre louca? Era a nona aparição. No dia seguinte, sexta-feira, 26 de fevereiro, Bernadette volta à gruta, porém nada acontece. Não se sente desencorajada e continua a obedecer, uma vez que a aparição lhe dissera para vir todas as manhãs, durante quinze dias. Na manhã de sábado, 27 de fevereiro, Bernadette volta novamente. A "Dama" faz a sua décima aparição e torna a repetir-lhe: - Que punaratz ra terra enta he penitença enta ra conversion deds pescadors! ("Beije a terra pela conversão dos pecadores!") Finalmente, de noite, Bernadette decide-se a ir procurar o cura de Lourdes, o abade Peyramale, que a recebe muito mal: - Disseram-me - repreende-a com severidade - que você comeu capim como fazem os animais! Bernadette não o nega. - Se esta "Dama" quer que eu acredite nas suas aparições - diz ele a Bernadette, entre sério e zombeteiro - que diga o seu nome e que faça florescer a roseira silvestre!

Um Grande Tumulto, depois um Silêncio Generalizado

Naquele dia, em meio ao público, encontrava-se o diretor da escola superior de Lourdes, Antoine Clarens, parente distante do pai de Bernadette. É a primeira vez que se achava em Massabielle. A sua presença não era a de um crente incondicional, mas a de um espectador cético. Contudo, o que presencia naquela manhã deixa-o tão atônito que mal chegando a casa, pega tinta e papel e começa a escrever. Parece-lhe, na verdade, ter visto a coisa mais extraordinária de sua vida. E se bem que este professor redija num estilo enfadonho, inspirado em

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Chateaubriand (o texto está repleto de "geleiras eternas", de "cascatas imponentes", de "montes escarpados" e de "precipícios terríveis", sem falar nos "meandros graciosos", nos "cumes solitários" ou nos "maravilhosos prados salpicados de flores"), sua narrativa dá ao leitor moderno a impressão de estar lá, em Massabielle, não longe de Bernadette, e a sensação de ter visto a Virgem, vestida de azul e branco, com os pés descalços, enfeitados com rosas douradas. Cheguei um pouco tarde, relata Antoine Clarens a respeito daquele dia, 27 de fevereiro, um sábado. O local estava literalmente cheio. O rochedo suspenso sobre Gave, todo ocupado... Insinuei-me por trás... e tive muita sorte de chegar, sem um acidente mais ou menos desagradável, à parte superior do anfiteatro. O dia começava a despontar... Prensado por todos os lados, esperei a chegada da menina com muita impaciência. Finalmente, ela apareceu às seis e meia. Era necessário abrir caminho até a gruta... Durante alguns instantes houve um grande tumulto. Contudo, assim que a menina ajoelhou-se, aos pés do anfiteatro, fez-se um silêncio geral. Observava-se por todos os lados uma espécie de recolhimento que dava prazer à alma. Em seguida, o professor fez uma descrição excelente e muito sugestiva de Bernadette em êxtase - Bernadette, que, esclarece ele, não me conhece (certamente porque seu pai tinha decaído socialmente): A jovem que eu via então pela primeira vez, relata Antoine Clarens, embora morasse perto de minha casa, dirigiu o olhar para a abertura no emaranho das sarças, rezou por alguns momentos, uma vela na mão, inteiramente imóvel; pouco depois empalideceu; sorriu, inclinando a cabeça por diversas vezes em sinal de saudação, em seguida, entristeceu como se fosse chorar; voltou a sorrir e fez uma nova saudação. Esta tristeza singular que, por um instante, apoderou-lhe do rosto, o sorriso indefinível, a estranha palidez, a posição dos olhos, cujos globos davam-me a impressão de terem girado nas órbitas para poder

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elevar as pupilas ao céu, tornavam-na irreconhecível. Tinha-se a sensação de que ela não mais pertencia a este mundo. Em seguida, levantou-se, tornou a ajoelhar-se e subiu assim a passagem usual para chegar até à gruta, beijando a terra algumas vezes." "Que se venha em Procissão e que se construa uma

Capela" No domingo, 28 de fevereiro, tem lugar a décima primeira aparição. Bernadette, dócil, transmite a Aquero os "recados" do abade Peyramale. Mas a Virgem ainda não se digna, nem a declinar seu nome, nem a fazer florescer, fora de época, a roseira da gruta. Segunda-feira, 1º. de março: havia quase mil e quinhentas pessoas na gruta quando Bernadette chega. Está acompanhada por seus pais, que o procurador imperial de Lourdes, Vital Dutour, qualifica como "pessoas miseráveis". O Sr. e a Sra. Soubirous cuidam para que se faça silêncio, que os homens descubram a cabeça e que a multidão adote uma atitude de recolhimento e reze... A Virgem aparece, mas fica silenciosa. No dia seguinte, terça-feira, 2 de março, a aparição faz a Bernadette uma dupla e importante recomendação - da qual não possuímos o texto em patoá: - Vá dizer aos padres, - ordenou a Bernadette- que venham até aqui - em procissão e que se construa uma capela neste lugar! A segunda parte da recomendação será repetida nos dias sucessivos, em dialeto bigourdano. - Anatz dise ats prèires de he bastir aci ua capera. Bernadette para transmitir este recado ao abade Peyramale, cuja presença lhe inspirava medo, vai acompanhada por uma das tias. Ao ver-se diante dos olhos arregalados e da voz áspera do cura de Lourdes, só consegue lembrar uma parte da mensagem divina.

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Voltará, à tarde, a fim de relatar todas as recomendações feitas pela Virgem...

Como manter a "Tranqüilidade Pública"? As autoridades públicas inquietam-se. Um século mais tarde, pasma-se ao constatar que o comissário de polícia considere que "a tranqüilidade pública exija que essas reuniões com hora marcada cessem o quanto antes" e que as autoridades municipais do distrito deliberem acerca das previsões a serem tomadas sobre os acontecimentos que possam ocorrer a 4 de março, último dia da "quinzena" das visitas de Bernadette, segundo as ordens recebidas da aparição. Tanto mais que nesse dia haverá mercado em Lourdes: Prevejo, escreve o tenente da guarda de Argelès a seu subordinado, o segundo sargento de cavalaria d'Angla, comandante da gendarmaria de Lourdes, que na próxima quinta-feira deverá haver no mercado de Lourdes de dezoito a vinte mil pessoas, no mínimo, e se o tempo for bom, este número poderá elevar-se para vinte e cinco mil A maioria se sentirá atraída pela curiosidade do milagre. Por isto, receberá dois homens de Argelès, dois de Saint-Pé e o segundo sargento de cavalaria Corrêge. Acredito que este número seja satisfatório. Terá o cuidado de contar com um cavalo selado e um homem que, ao primeiro sinal, esteja pronto a partir... para Tarbes. Estarei em Aucun, com o Senhor, subprefeito... No momento oportuno mande-nos prevenir. Além disso, caso haja necessidade, poderá convocar o comandante do forte de Lourdes. E o tenente da guarda acrescentou esta observação: "Tome suas precauções. Não diga a ninguém que receberá reforços”. Quanto ao subprefeito de Argelês, chamado Duboé, ele promete solenemente ao prefeito dos Altos-Pireneus, Massy, "adotar as medidas necessárias à manutenção da tranqüilidade pública e pôr fim, o mais rápido possível, a cenas que são causa de uma agitação lastimável sob todos os aspectos".

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Na noite de terça-feira, 2 de março, para a de quarta, dia 3, milhares de pessoas instalaram-se nas redondezas da gruta e mostraram-se decididas a aguardar, Bernadette e a Virgem. Ali estão por sua conta e risco: nada acontece. Contudo, tão logo a multidão se dispersa, Bernadette volta a Massabielle. Então "Aquilo" surge e lhe diz: - Não apareci esta mAnhã, porque havia pessoas aqui que desejavam ver qual a sua atitude na minha presença e não eram dignas disso. Passaram a noite na gruta e profanaram-na. Bernadette aproveita este encontro reservado, este colóquio, para perguntar à aparição qual é o seu nome. Aquero recusa-se a satisfazê-la, "sorrindo", dirá Bernadette, mas renova seu pedido para que seja construída uma capela. "Para aqueles que acreditam em Milagre, que deixem

agir a Autoridade..." Naquela noite, já bem tarde, por volta da meia-noite, o comissário de policia Jacomet e o sargento d'Angla, da gendarmaria, investigam a gruta de Massabielle... "Esta investigação - testemunha o próprio comissário Jacomet - praticamente não resultou em nada: cinco moedas de cinco cêntimos, outra de dois, um velho terço arrebentado e um ramo feito com algumas folhas de louro e dois botões de rosa." São tomadas diversas medidas policiais para o dia seguinte, 4 de março, quinta-feira, o último da quinzena prodigiosa: o tenente da gendarmaria d'Argelês determina "que as pessoas que estiverem indo, se conservem à esquerda da estrada, e as que estiverem voltando, à direita!" E conclui a sua longa ordem de serviço com esta recomendação estranha e divertida: "Para aqueles que acreditam tratar-se de um milagre, deixem agir a autoridade, prefeito, comissário de polícia, procurador imperial, juiz de paz: é problema deles. O nosso é manter a circulação livre e a ordem. Quanto ao resto não nos diz respeito." Também não deixa de

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recomendar que as armas, mosquetões e pistolas, estejam carregados... O prefeito de Lourdes, Lacadé, solicita o auxilio do comandante da guarnição de Lourdes. Quanto a Massy, prefeito do departamento, dá ao prefeito de Lourdes o seguinte conselho: "A fim de dissuadir a parte da população que levou a sério as alucinações da menina em questão, seria conveniente que a gruta fosse vigiada, sobretudo nessa noite, e que um membro da administração municipal bem como o comissário de policia estivessem amanhã, no local, de forma a não perder de vista a menina, dar às suas atitudes e gestos a sua verdadeira significação e, em caso de necessidade, levantar um processo verbal."

Primeiro Relatório para o Ministro da Justiça O assunto toma dimensões nacionais, o que não é de causar espanto. Realmente, é nessa quarta-feira, 3 de março, que o procurador geral Falconnet envia um relatório completo sobre o "caso", diretamente ao ministro da Justiça, Sr. H. de Royer. Contudo, tem o cuidado de precisar que o caso não apresenta "um caráter delituoso, pelo menos até o momento presente". Mas, seu rápido resumo inicial presta conta admiravelmente bem da forma como o acontecimento é vivido e sentido nos diferentes setores da opinião pública: Segundo o reduzido número daqueles que pretendem ter a seu lado o bom senso, a razão e a ciência e que não têm a mínima autoridade nesta matéria, Bernadette Soubirous é portadora de uma enfermidade mental conhecida: está sendo vitima de alucinações, apenas isto! Mas, há um número muito elevado de pessoas que pensam exatamente o contrário, número esse que aumenta sem cessar. Vindas de todas as classes sociais, elas acreditam que Bernadette mantém uma comunicação direta com a divindade. Quanto à justiça, limitou-se tão-somente a exercer seu dever de vigilância, ao qual teve que se submeter até o momento presente, não sem imaginar que, mais cedo ou mais tarde, seria forçada a intervir.

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E, em meio a tudo isto, uma "garotinha humilde", cujo pai goza da "reputação de rato noturno" e cuja mãe "entrega-se à embriaguez, fato público e notório". O procurador geral, após ter relatado os acontecimentos dia a dia, declara que diante da multidão sempre crescente, Bernadette entrega-se "a demora dos êxtases" e sofre "convulsões estranhas". Finalmente, o magistrado lastima que alguns membros do clero e certas pessoas "conhecidas por seus sentimentos religiosos, hábitos piedosos e ligações com alguns sacerdotes" favoreçam "o arrebatamento que se manifesta" em Massabielle. E conclui declarando: "Espera-se um milagre para amanhã".

Quinta feira, 4 de março: vinte mil espectadores! Efetivamente, no dia seguinte, há milhares e milhares de pessoas à espera: entre cinco e vinte mil pessoas segundo as estimativas. Nossa campina, relata uma testemunha, um jovem funcionário de Lourdes (pertencente, portanto, à "classe alta"), "estava repleta de pessoas a pé, a cavalo, repleta de charretes e de carros. Na sua amplitude, o espetáculo era grandioso, realmente emocionante. Um silêncio religioso reinava por todos os lados: era o recolhimento piedoso de fé e de oração. Bernadette, em vez de chegar às sete horas, como de costume, só aparece quinze minutos mais tarde. E como acontece num espetáculo, quando a cortina tarda a ser erguida, a multidão começa a murmurar e a impacientar-se. Nessa multidão, misturam-se, indistintamente, aristocratas das cidades e fidalgos provincianos, burgueses eminentes ou não, operários e camponeses, jovens e velhos, homens e mulheres. "Todos mantinham, - dizia-se - uma atitude humilde e meditativa, convencidos de que assistiam à aparição da Virgem."

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Os jornalistas - da região - estão lá, bastante irônicos, como o testemunham os comentários rudes que aparecerão num periódico de Tarbes: "Em meio aos ruídos confusos que se elevam do seio da multidão, ouviam-se de quando em quando gritos pungentes, desafios, injúrias, invocações e preces. Aqui, uma senhora se lastima por ver sua anágua de crinolina toda amarfanhada pelos camponeses, cujos cotovelos reduzem-na à expressão mais simples. Lá adiante, um jovem, baixote e atarracado, ameaça vingar-se de um valentão que, após ter-lhe pisado nos calos, envia-lhe, de quando em quando, um soco violento por cima das cabeças das mulheres. Além disto, vêem-se, soldados, agentes de polícia ou guardas-campestres que, impotentes para manter a ordem, solicitam, em vão, e em nome da lei, para a multidão manter-se calma, enquanto algumas velhinhas, em nome de Deus, suplicam aos seus vizinhos para atendê-los, invocando todos os santos do paraíso. No fundo do cenário, um bosque de árvores, nas quais alguns moleques pendurados balançam-se como macacos."

"Eis a santa! Eis a santa!" De repente, um grande clamor ergue-se para o céu. E da multidão desprende-se um grito: - Eis a santa! Eis a santa! Segundo o testemunho do comissário, Bernadette está escoltada "por quatro tios, duas tias e o pai - este caminha na frente, ordenando à multidão que abra passagem para sua filha". A menina traz uma vela numa das mãos e na outra um terço. Avança rumo à gruta. Atrás dela, é impossível que não o sinta, os milhares de espectadores observam-na com uma espécie de avidez mística e de credulidade febril. Contudo, ela comporta-se como sempre: ajoelha-se e, durante uma longa meia hora, reza diante da gruta, os olhos fixos no nicho da aparição. De vez em quando ela sorri. Em seguida,

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levanta-se e dirige-se para a gruta. O prefeito de Lourdes, que se achava no local, relata com detalhes, ao prefeito de Massy, o comportamento da já famosa pastorinha: "Chegando ao fundo, tornou a levantar os olhos na direção de uma cavidade na abóbada da gruta. Sorriu por dois minutos e depois assumiu um ar sério por três minutos. O sorriso voltou-lhe aos lábios. Fez três saudações e, em seguida, desceu ao ponto inicial, distante uns oito metros da gruta. Tornou a ajoelhar-se, mantendo sempre a vela e o terço nas mãos. Após quinze minutos de orações, ora séria, ora sorridente, como da primeira vez, ela voltou à gruta e, após ter mantido os olhos fixos na mesma cavidade, na abóbada da gruta, afastou-se acompanhada pelo pai e por duas tias. Uma delas, que se encontrava no fundo da gruta, chorava como se estivesse prestes a perder a sobrinha."

3. Aquela que Cura "Existem alguns homens que, pela força de vontade, podem produzir fenômenos maravilhosos e curas. Mas, para poder realizá-los com perfeição, é necessário que haja fé, amor e um desejo ardente de ajudar os enfermos. E não é todo o mundo que está qualificado para conseguir esse tipo de coisas. O doente, também, deve sempre manter a fé viva."

Albert Le Grand (1193-1280)

No célebre dia 4 de março, o último da quinzena prodigiosa, após ter permanecido em êxtase durante muito tempo diante da aparição da Virgem (trata-se da décima quinta, e ainda haverá mais três), Bernadette afasta-se da gruta segurando a mão de um vizinho seu, de nome Ganço ou Rotchil, e da mesma idade que ela (o menino usava dois nomes segundo o costume daquele tempo e da região, de dar à

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mesma pessoa diversos sobrenomes, nomes e apelidos...). O jovem camponês abre-lhe passagem em meio àquele imenso povaréu. Súbito, Bernadette estaca e fixa um ponto na multidão. O seu olhar, dirá ela mais tarde, deteve-se num "bonito capuz vermelho", que trajava uma adolescente de sua idade. Contudo, a pastora de Lourdes jamais confessará haver, sem dúvida, ficado menos impressionada pelo lindo chapeuzinho vermelho que pela aparência física daquela que o vestia. Na verdade, a pobrezinha é vitima de um tumor que lhe toma o rosto e os olhos e, segundo uma testemunha, "a transforma numa pessoa digna de pena". - O que está olhando, afinal? - indaga Ganço. - Ande logo. - Estou olhando aquela menina, lá embaixo - replica Bernadette. - Você gosta muito dela? - pergunta, ingenuamente, o pequeno vizinho de Bernadette. - Gosto sim! Ficaria feliz se pudesse tocá-la com as mãos e dar-lhe dois beijos. Como um perfeito cavalheiro, o jovem Ganço apressa-se a satisfazer a vontade de Bernadette. Faz um sinal imperioso e grita: - Deixem esta "toye" (alcunha com que as pessoas de Lourdes designam os habitantes do vale de Barèges) passar. "Encaminhei-me na direção dela - relata Bernadette -, apertamo-nos as mãos, abraçamo-nos pela primeira vez e sorrimos felizes enquanto nos fitávamos. Abracei-a uma segunda vez e retornei ao meu caminho. Depois desse dia, nunca mais vi essa menina, aliás nunca a tinha visto antes e, nem ao menos, sei como se chama." Aqueles que acreditam em milagre e aqueles que não

acreditam Esta é a versão oficial, porém bastante edulcorada, do sucedido. Não foi assim que a multidão o sentiu, ou, pelo menos, não foi assim que os presentes iriam descrevê-lo àqueles que não tinham tido a

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oportunidade de lá estar. Após a versão de Bernadette, eis a da opinião pública. A jovem de Barèges, chamada Eugénie Troy, começa a gritar, após ter sido abraçada pela "santa": - Estou vendo! Estou vendo! E revela, à multidão empolgada, que é cega há nove anos e que, após ter ouvido falar sobre as aparições da Virgem, manifestou o desejo de ir a Lourdes, mas seus pais, que no inicio recusavam-se a acompanhá-la, depois resolveram ceder... A multidão é presa por um entusiasmo delirante. E imediatamente, forma-se um imenso cortejo à saída de Massabielle, acrescido, pouco a pouco, por recém-chegados, pois "o boato do milagre espalha-se por Lourdes com a rapidez de uma fagulha elétrica". Forma-se uma verdadeira procissão rumo à casa de Bernadette. Diante da afluência enorme, faz-se mister que ela deixe o "cárcere" familiar. Sua tia que, recapitulemos aqui, morava num apartamento mais decente, situado no primeiro andar, cede-lhe o quarto: - As pessoas ao entrar no aposento onde me achava - dirá Bernadette -, aproximavam-se de mim, tocavam-me as mãos, apertavam-nas. Muitas chegavam a beijá-las. Outras, entregavam-me seus terços para que eu os misturasse com o meu e os tocasse com os dedos. Está claro que os céticos não depõem as armas. Por exemplo, segundo o procurador Vital Dufour, a jovem Eugénie Troy não era realmente cega antes de ter sido abraçada por Bernadette, mas simplesmente sofria dos olhos e tinha a capacidade visual reduzida. - Seu restabelecimento já não encontra o menor crédito junto às pessoas que, a principio, teriam aceito a notícia com a maior facilidade - afirma ele, a 15 de março. Porém, o cura de Lourdes, já esquecido de seu ceticismo inicial, está confiante, depois que o próprio pai da jovem Eugénie Troy foi procurá-lo: "Com o acento da mais profunda convicção - escreve o abade Peyramale -, os olhos marejados de lágrimas, diante de várias

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testemunhas, declara-me, jurando pela fé, haver sua filha recuperado a visão milagrosamente."

Uma Revelação para Dr. Dozous Contudo, vai-se descobrir, com o passar das horas, com o escoar dos dias, que a "cura" de Eugénie Troy nada mais é que "um" milagre entre tantos outros. Pois estes começaram a acontecer praticamente desde a descoberta da fonte por Bernadette, e irão se multiplicar até nossos dias. O primeiro miraculado dá-se a conhecer pouco tempo depois. Trata-se de um certo Louis Bouriette, um operário que havia perdido a vista direita num acidente de mina. Nos dias subseqüentes ao desastre sofrera dores prolongadas, antes mesmo que a cegueira se evidenciasse. Sobrevieram complicações. E fora um médico de Lourdes, o Dr. Dozous, que o assistira nessa ocasião. E eis que a 4 de março, o Dr. Dozous vê aproximar-se dele, em plena rua, seu antigo paciente, que lhe afirma haver recuperado a visão do olho direito, e estar enxergando igualmente com as duas vistas, graças à água de Massabielle. O médico, bastante cético, decide fazer alguns testes. Para sua grande surpresa, os resultados são positivos. Louis Bouriette já não é mais cego de um olho! E é ao médico, que o caso deixa, diz ele, "estupefato", que Louis Bouriette relata, demoradamente, como se processou a cura, enquanto uma multidão se aglomera ao redor dos dois homens. O operário explica, inicialmente, que, a partir do momento em que ouviu falar do aparecimento da fonte milagrosa, resolveu "recorrer à sua água". - Certo dia - prossegue ele - quando toda a minha família dirigia-se para o campo, retive ao meu lado a mais jovem de minhas filhas. Entreguei-lhe uma garrafa e mandei que fosse às grutas de Massabielle a fim de enchê-la com a água, ainda lamacenta, que

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jorrava da fonte descoberta por Bernadette. Assim que o liquido me foi entregue, comecei a orar. E Louis Bouriette roga à "nossa Senhora da Gruta" que lhe conceda a graça de "estar com ele" enquanto banha o olho direito com a água da fonte, ou melhor, com a "lama liquefeita", isto porque naquele momento - estamos a 27 de fevereiro - a água ainda não jorra como o fará a seguir. - Após ter terminado as abluções, bem como minha prece - declara Bouriette com a voz emocionada - olhei com atenção ao meu redor, usando os dois olhos ao mesmo tempo, observando todas as coisas que havia em meu quarto. Pareciam-me mais claras que antes... Então, fechei o olho esquerdo para usar apenas o direito, que, para minha surpresa, tinha recuperado suas faculdades visuais. Tornei a lavá-los várias vezes num curto espaço de tempo, e a minha vista, graças a essas abluções, ficou como se encontra no presente momento... excelente. Enquanto os presentes exaltam-se e gritam de admiração, o Dr. Dozous examina bem de perto o olho direito do mineiro, e constata que a cicatriz da córnea, marca do antigo ferimento, ainda continua ali. E, no entanto, Bouriette enxerga! "Devo reconhecer com sinceridade - escreverá mais tarde o médico de Lourdes - que a cura de Louis Bouriette causou-me um profundo abalo emocional. Vi, nesse primeiro fato, a revelação de verdades que ainda estava muito longe de suspeitar..."

Cegos, Paralíticos, Pobres de Espírito... Rapidamente, irão aparecendo outros miraculados da gruta: os pais do pequenino Justin Bouhohorts, Catherine Latapie, Blaisette Soupéne, Henri Bosquet, a viúva Rizan, todas elas pessoas do povo, mas também uma jovem da alta sociedade, Marie Moreau, cega maravilhosa... e vários outros.

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Mas os doentes não limitam sua fé à água da fonte. Desejam ver a pastorinha e por ela serem curados. Selecionamos aqui uma série de historietas, cuja autenticidade, embora incerta, nos envolve numa atmosfera quase bíblica: cegos, paralíticos ou pobres de espírito estendem as mãos suplicantes na direção de Bernadette, como outrora, nas estradas da Palestina, o faziam os infelizes ao verem passar o Filho de Maria e do carpinteiro. Eis, por exemplo, um velho carpinteiro de carros vindo da aldeiazinha de Adé. Tem a vista tão fraca que é preciso ser conduzido e guiado. Naquele dia, Bernadette passa as mãos diante dos olhos do ancião, e nos três subseqüentes ele faz abluções com a água da fonte, e assim declara haver recuperado a capacidade visual de vinte anos atrás. De outra feita, é um habitante da aldeia de Saint-Pé que leva sua filha, uma "excepcional", beirando os quatorze anos, à presença de Bernadette e pede-lhe para "fazer alguma coisa" pela infeliz. A pastorinha começa então a interrogar a adolescente que regula com ela em idade. Não consegue obter nem resposta nem reações. - Já curei uma outra de Trébons - diz a menina. - Consegui fazê-la falar. Mas você, você é uma preguiçosa, prefere ficar caIada. Um dia, bem cedinho, levam ao quarto de Bernadette, que ainda nem se levantou, um velho soldado do Primeiro Império, chamado Davezac-Biloy, beirando os setenta anos. Praticamente não enxerga mais. Vive em Lespouey e daí veio em peregrinação até Massabielle. Contudo, deseja, antes de mais nada, encontrar-se com a "santa". Esta recebe-o, passa-lhe a mão sobre os olhos e diz: - Vá rezar na gruta e beba a água da fonte.

O Caso de Jean-Marie Doucet, a Criança da Boca Aberta

Bernadette só se deslocará por um doente, o pequeno Jean-Marie Doucet, irmão de uma sua colega de classe e habitante da fazenda Piqué. Fará cinco visitas à fazenda, nos dias 10, 12, 13, 14 e 17 de

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março. No primeiro dia vê, segundo suas próprias palavras, "um menino doente, sentado ao lado do fogão, com a boca escancarada". O garoto, que deve ter dez ou doze anos, encontra-se nesse estado desde o Natal anterior. Portanto, não pode comer nem tomar os remédios receitados por diversos médicos que foram visitá-lo sem resultado. Fala pouco, apenas para declarar que só Deus e a Santíssima Virgem podem curá-lo. Deseja beber a água da gruta e ver Bernadette. Foi por isso que ela cedeu aos pedidos da irmã do pequeno "doente". Sua primeira visita é rápida. Diz algumas banalidades e vai embora. O pequeno Jean-Marie Doucet, que mais tarde freqüentará uma escola de Belas-Artes e será um famoso pintor provincial, escreverá seu diário, ainda criança e sob o impacto desses acontecimentos extraordinários. Então Bernadette despediu-se de mim: Anem queez a partie, portat pla! (Bem, preciso ir embora, comporte-se, hein!) - relata ele a respeito da primeira visita de Bernadette. - E prometeu-me que voltaria... - Em seguida, ela e minha irmã saíram para ir à escola. Quando se retiraram, fui compelido a dar três grandes bocejos e, súbito, minha boca se fecha. E cessaram todos os outros tormentos que me maltratavam. Peço logo algo para beber e comer. Satisfazem-me. Imaginem o assombro e a admiração de meus pais! Contudo, a melhora dura apenas uma hora... Pouco ou nada lhe adianta. Quando Bernadette volta a visitá-lo, dois dias mais tarde, ainda o encontra com a boca aberta. Percebendo, através de uma intuição psicológica instintiva e acurada que se trata mais de um sintoma psicológico do que de verdadeira doença, repreende, delicadamente, o pequeno Jean-Marie: - Esforce-se para fechar a boca e coma um pouco. Você não passa de um indolente - diz Bernadette. "Imediatamente - conta Jean-Marie - minha boca se fechou." A 15 de março, o abade Peyramale, que se transformou praticamente num defensor incondicional da jovem paroquiana, envia uma longa carta ao bispo da província, Mons. Laurence, comunicando-lhe es.,.

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tas duas "curas" surpreendentes e milagrosas, a de Eugénie Troy e a de Jean-Marie Doucet. No caso de Eugénie, limitou-se a receber o pai da jovem. Quanto a Jean-Marie, realizou uma verdadeira investigação. Foi pessoalmente ver o camponesinho, acompanhado por dois de seus vigários: - Está doente? - pergunta a Jean-Marie. - Estou. - E o que lhe dói? - Tudo, mas sobretudo o estômago. - Soube que você tinha toda a confiança na gruta. É verdade? - Sim. - Você toma a água da gruta? - Tomo... Ficarei bom quando Deus quiser. O pároco observa que embora o menino ainda não esteja "radicalmente curado", já se nota nele "considerável melhora". Como testemunho, há uma capelinha decorada e construída pelo próprio Jean-Marie e que o abade Peyramale julga "muito bonita" . "Esse garoto - declara, concluindo - fala, come e mostra-se bastante calmo, ao passo que, antes, ninguém conseguia contê-lo, nem fazê-lo pronunciar uma palavra sequer, nem fazê-lo comer, durante as vinte quatro horas do dia."

Bernadette comparece diante de uma Comissão de Investigação

As autoridades civis continuam a se mostrar profundamente reticentes. A 18 de março, Bernadette comparece diante de uma "comissão", espécie de tribunal improvisado, constituído pelo comissário Jacomet, o procurador Dutour e o prefeito Lacadé. Esses três senhores interessam-se muito menos pelas visões da pastorinha que, aliás, cessaram repentinamente a partir do dia 4 de março, do que pelas curas milagrosas que lhe são atribuídas pela voz do povo.

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Bernadette mostra-se bastante reservada e muito cuidadosa a esse respeito, quando declara: - Não acredito ter curado quem quer que seja, nada fiz para isso. Diante dessa afirmativa, os membros da comissão referem-se ao caso de Jean-Marie Doucet. Bernadette, nas suas respostas, procura minimizar ao máximo a sua atuação: - Não fui ver outros doentes a não ser este menino - diz ela. Mas os três importantes senhores que têm diante de si uma pastorinha trêmula, replicam, se ela não vai visitar os doentes, estes a procuram. Bernadette admite apenas um caso. O da garotinha de Tarbes, de seis ou sete anos, cujo nome de família é Sempolis. - A criada do hotel - explica Bernadette - é quem cuidava da menina... No dia 4 de março, quinta-feira... a moça senta-se diante de mim, tendo no colo a doentinha. Esta percebe, no meu bolso, uma pequena maçã e duas castanhas. Estende as mãos para apanhá-las. Imediatamente, satisfaço-lhe o desejo. A doença nervosa que a atingia impossibilitava-a de segurar a maçã com as mãos. Logo, a fruta cai ao chão, e por duas ou três vezes, foi a empregada que a apanhou. A criança foi embora do mesmo jeito que havia chegado.

Milagres, Maravilhas e Prodígios em Abundância Contudo, enquanto notáveis figuras oficiais procuram mobilizar suas forças contra a jovem pastora ignorante e visionária, "o vento sopra a favor dos milagres", segundo a expressão do próprio comisário Jacomet. Vive-se não apenas no meio de aparições e curas milagrosas, como também de prodígios sobrenaturais de todas as espécies. Desde cedo, a vida miserável e monótona de Bernadette adquire beleza e enriquece-se com episódios maravilhosos, como aquele que ocorreu quando ainda era menina. Tomava conta do rebanho de carneiros de sua ama de leite. Mas contava apenas com um campo

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seco onde o capim era raro e um riacho deslizava em ziguezague. Mais além estendia-se uma campina fértil e esplendorosamente verde. O proprietário deste maravilhoso prado, um camponês bem sucedido e impiedoso, diz à pastorinha, com o intuito de zombar dela: - Pobre criança, sua terra está bastante seca e seu rebanho morre de fome. Leve-o, se puder, para meu prado. Mas, o homem cruel iria ser castigado porque, como aconteceu com o mar Vermelho diante de Moisés, as águas do riacho refluem diante de Bernadette que, pegando o camponês pela palavra, conduz suas ovelhas e carneiros para a rica pastagem... Quanto à gruta de Massabielle, tornou-se um local mágico e um lugar sagrado, onde qualquer coisa pode acontecer. Encontramos uma carta escrita por um jovem funcionário municipal, de vinte e pouco anos, enviada à sua irmã, na qual declarava ter sido testemunha ocular do fato: "Víamos Bernadette soltar gargalhadas, fazer saudações após saudações, chegando até mesmo a erguer-se acima do solo e manter-se no ar como se uma força invisível desejasse levá-la para bem longe dos olhos humanos..." E é sobretudo a famosa sessão da quinta-feira, 4 de março, que tocou as imaginações e fê-las agitar. Não se comenta ter, naquele dia, uma pomba saído da gruta, onde deixou sua marca e voado por cima da cabeça de Bernadette? Também não se comenta que ao lado dessa marca, pode-se distinguir outra, da própria Virgem, numa parede da gruta? Há muitas pessoas que para lá se dirigem, impelidas pela curiosidade de comprovar-lhes a existência. A marca da pomba está na entrada, porém, para descobri-la são necessários os olhos da fé. "Trata-se de uma pequena pedra - lê-se numa carta familiar daquela época - que pode ter ligeiramente a forma de uma pomba, se a olharmos com bastante atenção." E a remetente da carta, uma tal Adelaide Monlaur, que o relata escrupulosamente a um primo, padre e preceptor de uma família nobre, acrescenta com honestidade:

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"Contudo, não acredito haver algo de sobrenatural nessa semelhança." Age com o mesmo escrúpulo no que diz respeito à marca da Virgem, que se encontraria numa depressão acima da gruta propriamente dita, ou melhor, segundo Bernadette, no mesmo lugar da aparição: "A imagem ali aparece pouco definida, diz Adelaide Monlaur, mas não a atribuo ao sobrenatural: talvez a água tenha feito tudo isso. A fé imensa das pessoas é que faz ver essas imagens." E também não falta a estrela... como em Belém! Mais uma vez, é Adelaide Monlaur, preciosa colecionadora de todas essas singularidades, que testemunha o acontecimento ocorrido na noite de quinta-feira, dia 4, um "outro fato não menos curioso", Teve lugar à noite, por volta das 7 ou 8 horas, isto é, já noite fechada. "Aqueles que se retiravam do mercado - narra a solicita Adelaide - viram, de repente, uma luminosidade muito forte, tal como um meteoro na cidade de Lourdes e fora dela. A claridade era tamanha que se teria podido ver e apanhar um alfinete a dez passos de distância. Esta luminosidade durou de dois a três minutos." Várias testemunhas narraram esse fato e muitas delas estavam juntas. Um grupo composto de sete camponeses preparava-se para deixar a cidade e voltar às suas casas: "Mas, dominados pelo pavor - escreve Adelaide - retornaram a Lourdes, exclamando: 'Seja feita a vontade de Deus!' E todos entraram numa taberna. Encontraram o proprietário em pânico." E a roseira silvestre? Como vimos, foi por trás de seus galhos agitados e despidos de folhas que a Virgem apareceu a Bernadette. Logo, poderíamos pensar que a planta se tornou sagrada. Num filme americano, passado na década de quarenta, em que uma grande artista da época, Jennifer Jones, encarnava Bernadette de Lourdes, a floração precoce, da roseira silvestre, constituiu o episódio principal: diante dos olhos maravilhados da multidão genuflexa, botões brancos miraculosamente desabrocharam em poucos segundos, prova manifesta da presença e da bênção da Virgem...

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Embora Lourdes, naquela primavera de 1858, tenha vivido um sem-número de milagres que se perpetuaram, este não aconteceu...

O Milagre da Roseira Silvestre não acontecer.... No começo, quando das primeiras aparições, a própria Bernadette refere-se simplesmente a uma "sarça" ou a uma "sebe". Porém, a 24 de fevereiro, quando a multidão aflui cada dia mais numerosa para assistir a seus êxtases e abala a roseira silvestre, cujos galhos pendem do nicho da aparição, Bernadette manifesta um certo descontentamento: solicita aos presentes que respeitem as "sarças". Durante toda a quinzena ela vigia, cuidadosamente, a roseira silvestre. O abade Peyramale tinha ouvido comentários sobre o carinho dispensado por Bernadette ao arbusto. Também, no inicio, quando ainda se mostrava bastante reticente, declara à sua pequena paroquiana que não acreditará nas aparições antes de verificar, ali, um sinal concreto: - Por exemplo, que a sua Dama de branco faça florescer a roseira silvestre que existe em frente à gruta! - diz ele. Ao que parece, a pastorinha transmitiu o pedido do cura à Dama de branco, que se limita a sorrir... Muito embora a roseira silvestre não florescesse milagrosamente naquele fim de inverno pirenaico como o fez crer o filme de Hollywood, alguns peregrinos logo começam a reverenciá-la. Tinham medo de machucar esse arbusto. Porque profanado deixaria de ser útil. Algumas pessoas propõem denominar o local das aparições de "Nossa Senhora da Roseira". Vã esperança. A pobre roseira original, apesar da proteção de Bernadette, desaparecerá: seus botões brancos nem chegam a desabrochar nesse verão de 1858. Contudo, quando dos futuros arranjos da gruta, haverá sempre o cuidado de replantar uma roseira silvestre...

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O Caso dos Três "Segredos"

Porém, se a roseira silvestre não excita a imaginação mística das multidões de Lourdes na época, estas, além das virtudes milagrosas da fonte; apaixonam-se pelos "segredos". Quais seriam? Terminada a "quinzena", espalha-se um boato de que, além das declarações conhecidas e divulgadas (“Penitência" , "Vá beber na fonte e lavar-se ali" etc.) a Virgem tinha confiado alguns "segredos" a Bernadette. As línguas soltam-se: fala-se de "revelações públicas", de "desgraças terríveis"... Bernadette declara, textualmente, diante da comissão de 18 de março: - Alguns dias antes de quinta-feira, 4 de março, Aquero revela-me quatro segredos. Um deles, contei aos padres, tratava-se do pedido que me fizera Aquero de mandar construir uma capela na gruta. Os outros três, Aquero proibiu-me de revelá-los a quem quer que fosse. Entretanto, posso dizer, nada têm de terrível, e só dizem respeito a mim. Algumas testemunhas da época tiveram o cuidado de anotar em patoá a proibição divina feita a Bernadette e por ela relatada: Que v'defendi de dise aquero a personna! (“Proíbo-lhe de contar isto a quem quer que seja!") Coisa extraordinária, Bernadette manterá uma discrição total a esse respeito, até a morte. Contudo, nesse inicio de março de 1858, todos os habitantes de Lourdes e todos os "forasteiros" que para lá se dirigem como peregrinos, desejam ardentemente conhecer tais segredos. Sobre o assunto, jornalistas céticos da época zombavam, irônicos: - Não se consegue arrancar dela nenhuma palavra - lia-se no jornal oficial do local, o Ere Impériale. - Se a procuramos na casa onde reside sempre a encontramos rodeada por algumas pessoas da família que se apressam a evitar perguntas, afirmando:

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- É inútil querer penetrar seus segredos. Recebeu ordens do céu para ficar muda. Le Bagnerais escreve: "Este silêncio imperturbável desferiu o último golpe nas almas indecisas, e ninguém, pensamos, ousou duvidar nem da aparição da Santíssima Virgem, que não mais surgiu, nem da revelação de tão graves segredos, que continuam sendo mistérios para todo o mundo." Porém, enquanto os redatores desses jornais e de outros ironizam, com elegância ou grosseria, que a maioria dos peregrinos de Lourdes não têm cura porque são ignorantes, nota-se, ao contrário, haver a existência desses três "segredos" contribuído para reforçar a fé geral e a exaltação mística... Portanto, não é de admirar se, após uma certa diminuição de afluência provocada pelo mau tempo (chove a cântaros durante alguns dias depois da quinta-feira, 4 de março), o comparecimento à gruta, longe de diminuir, aumenta. As pessoas visitam-na com a intenção de orar, fazer abluções, apanhar água. Ao mesmo tempo, manifestam, de modo concreto, seu ardor religioso: velas acesas por mãos piedosas queimam dia e noite, amontoam-se os ex-votos, moedas juncam o solo. Há flores e, logo, estatuetas da Virgem. O que mais preocupa as autoridades é o dinheiro: policiais e guardas passam um tempo inacreditável recolhendo diariamente essas deploráveis moedas, contabilizando-as, interrogando as testemunhas. O Ere Impériale (órgão de imprensa da prefeitura) ressalta de modo grosseiro: "Milhares de peregrinos, lê-se num artigo dedicado a esse assunto, vêm visitar a gruta, encher garrafas e até tonéis com a água da fonte supostamente sagrada. Ali acendem velas e depositam oferendas pecuniárias. De tudo isto o comércio da cidade e seu escritório de beneficência podem, felizmente, auferir lucros. Os negociantes e os hoteleiros de Lourdes cumprimentam-se galhardamente pela receita proporcionada por esses peregrinos."

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"No momento presente, não há mais motivo para

temer", escreve o Prefeito ao Ministro... Mas se as autoridades riem, "riem amarelo". Pois, finalmente, Paris começa a inquietar-se. E o que se passa em Lourdes desagrada ao governo, sobretudo a Gustave Rouland, ministro da Instrução Pública e dos Cultos (ainda não chegara o tempo da separação entre a Igreja e o Estado nem da instrução leiga...) A 9 de março ele remete um recado, bastante seco, ao prefeito dos Altos-Pireneus: "Afirmaram-me, escreve Gustave Rouland, que deslocaram-se populações para ir ouvir ou admirar uma pessoa que se diz em relações extáticas com a Santíssima Virgem. Ignoro o que há de verídico nesses boatos bastante estranhos, mas peço-lhe para me enviar, de imediato e de forma o mais possível precisa, alguma noticia. É importante que os senhores prefeitos mantenham o ministro dos Cultos exatamente informado sobre todos os acontecimentos religiosos de interesse deste órgão que atraiam a atenção pública. No dia seguinte, o próprio ministro da Justiça envia uma carta bastante seca ao procurador-geral de Pau "deplorando o fato de as autoridades não intervirem mais cedo e solicitando sejam tomadas algumas medidas "a fim de impedir essa emoção de tomar vulto e propagar-se". O ministro lastima não ter recebido relatórios quotidianos oficiais e pormenorizados sobre o que se passava na gruta de Massabielle, e agora aconselha, decidido, que "nada seja negligenciado para bloquear demonstrações que poderiam degenerar em escândalo e comprometer a tranqüilidade pública, bem como a dignidade da religião. Na opinião do ministro, os crimes possíveis neste caso são a "desordem", a "fraude" e a "escroqueria". O prefeito Massy tranqüiliza os ministros na volta do correio:

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"No momento presente, escreve ele com data de 12 de março, já não há mais motivos para temer, e aqueles que puseram fé nas palavras da jovem reconhecem que foram vitimas de suas alucinações..."

O Castigo dos Céticos De uma forma ou de outra, algumas repercussões destas reações e destas manobras chegaram ao âmago da opinião pública. E esta, que acredita com ardor em Bernadette, na fonte, na aparição da Virgem, nas curas milagrosas, na marca deixada pela pomba, só pode desejar a punição dos impiedosos incrédulos. Além do mais, comenta-se, segundo a própria Bernadette, a Dama de branco ficaria "muito irritada diante da incredulidade de tanta gente". Portanto, ninguém se admira ao "ouvir" dizer que certa noite o procurador Dutour despertou sobressaltado com relâmpagos a "sulcar seu quarto", acompanhados por "terríveis clarões de raio". Além disto, duas velas acesas estavam suspensas no ar no meio do aposento. "Apavorado", o magistrado levanta-se e foge: "Agora ele acredita" - comenta-se. Não são apenas as pessoas importantes as únicas vítimas da cólera celeste. Os incrédulos pertencentes ao povo também são castigados. Assim, conta-se a história de um camponês do vale de Campan, que havia zombado de Bernadette. Então, todos os seus pecados transformaram-se em serpentes, que devoraram totalmente o infeliz sem deixar-lhe nem a pele nem os ossos. Quanto ao taberneiro Laborde, banca o forte: - Tanto melhor que os imbecis acreditem nessas besteiras. Eu virei fazer café aqui! - diz ele em plena gruta, a fim de escandalizar o público presente. À noite, deita-se e adormece. Mas aí sente três golpes nos rins, ao mesmo tempo que alguém o sacode pelos ombros e adverte-o: - E agora? Vai acreditar?

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Desperta. Está com a cabeça voltada para os pés da cama e as pernas erguidas, eretas, para o ar... tenta chamar sua mulher que ainda não se havia recolhido. Mas não consegue pronunciar uma palavra sequer... Finalmente, tendo recuperado o controle de si mesmo e adotado uma postura normal, pôde abrir-se com ela. Esta aconselha-o a pedir perdão a Bernadette. Em seguida, é a vez de um soldado que se encontra na gruta e zomba da assistência. Quer caminhar, mas não consegue. - Está com medo, amigo? - pergunta-lhe um outro soldado a seu lado. - Não, não estou com medo, mas não consigo andar. Reflete a respeito dessa estranha paralisia que acaba de tomar conta dele e declara a seguir: - Antes eu acreditava na existência de Deus. Mas agora, acredito duplamente. Confuso e envergonhado, liberado de sua imobilidade após esta mea culpa pública, ele foge. Noutra ocasião, aconteceu com um alfaiate que foi levado à gruta pela curiosidade e não pela fé. Após um momento, declara aos amigos que o acompanhavam: - Ora! Isto aqui é uma grande tolice. Retiremo-nos. Vamos embora. Começa a caminhar, segurando na mão o boné. Mas, ao passar perto do rochedo, os galhos pendentes da roseira silvestre fecham-se, como seres vivos, agarram o boné e o destroem... Ora, tratava-se de um boné novo do qual nada mais resta além da aba, nas mãos do alfaiate apavorado... Os próprios representantes das forças da ordem sofrem provas desse tipo. Certo dia, quando um guarda - segundo-tenente da cavalaria de Saint-Pé - estava a serviço em Massabielle e refletia sobre os acontecimentos, tão inclinado a crer quanto a descrer, diz a si mesmo: - Se não vir uma prova, não acreditarei em nada! Imediatamente, eis que alguma coisa se desprende do alto da gruta e cai-lhe nas mãos. O guarda olha: eram duas medalhas e um relicário em couro...

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Portanto, os espíritos estão preparados para o acontecimento mais importante que ainda está para acontecer e que, três semanas após a quinzena prodigiosa irá dar, a 25 de março, uma nova dimensão às aparições de Lourdes: Aquero, a Dama de branco, vai dizer finalmente seu nome a Bernadette.

4. "Que soy ero Immaculada Counception" (Eu sou a Imaculada Conceição.)

"Ó Mãe de piedade e de misericórdia, que assististes Vosso doce Filho enquanto Ele cumpria na cruz a Redenção do gênero humano, Vós, nossa co-redentora e a associada de suas dores, conservai em nós e acrescentai cada dia mais, vos suplicamos, os preciosos frutos da Redenção e da vossa Compaixão."

Pio XII em Lourdes, 25 de abril de 1935.

A gruta de Massabielle, já agora transformada numa espécie de altar rústico, com velas, imagens piedosas e flores, está literalmente "assediada", segundo as palavras do comissário Jacomet, pelas "pessoas saudáveis que até ali vão a fim de apanhar água para levá-la a alguém", e pelos "doentes, de todas as idades e sexos, que são lavados e friccionados nos pontos afetados". A afluência faz muitos peregrinos permanecerem no local até altas horas, bem depois do cair da tarde, para finalmente poderem se aproximar da gruta, enquanto outros, por cautela, para ali se dirigem antes mesmo do romper do dia. Quinta-feira, 23 de março de 1858. É a festa da Anunciação, que celebra a revelação feita a Maria, pelo Anjo Gabriel, de que ela será a mãe de Cristo. Nessa manhã muito cedo, por volta das 4 horas, Bernadette Soubirous desperta sobressaltada e declara sentir-se "atraída" em direção da gruta, aonde já não ia, fazia três semanas.

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Para lá se dirige, levando uma vela e o terço, acompanhada por uma das tias, Lucile Castérot. Apesar da hora matinal, a multidão já é considerável e ali impera uma extraordinária atmosfera de fervor, como relata uma testemunha da época: "As pessoas comportavam-se como se estivessem na igreja. Os homens mantinham as cabeças descobertas. Todos rezavam. Depois, bebia-se a água da pequena fonte que já era abundante."

"Eu sou a Imaculada Conceição" Quando Bernadette chega, Aquera já está lá: "Tranqüila, sorridente - contará a própria Bernadette mais tarde - olhava a multidão, com o olhar afetuoso da mãe que observa os seus filhos. Ajoelhei-me diante dela e pedi-lhe perdão por ter chegado atrasada. Sempre boa para comigo, fez-me um sinal com a cabeça fazendo-me entender que não havia motivo para eu me desculpar. Então expressei-lhe toda a minha afeição, o meu respeito e a felicidade que sentia em revê-la. Depois de tê-la posto ao corrente de tudo que sentia no coração, peguei meu terço". Bernadette não tem consciência do extraordinário espetáculo que oferece e que a todos fascina. Uma adolescente pertencente à "classe alta" de Lourdes, que se achava presente naquele dia, relata: "Ela permaneceu em êxtase mais tempo do que de costume. Enquanto estava imóvel como uma estátua, suspirou treze vezes, mas bem alto e, de tal forma, que as pessoas presentes pensaram que ela fosse morrer. Contudo, ninguém ousou tocá-la." Durante essa "morte" mística, o que se passou entre Bernadette e a Dama? A jovem pastora analfabeta resolveu, mais uma vez, perguntar à aparição, como se chamava. - Senhora, poderia me fazer o favor de me dizer quem é?

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E repete a pergunta uma segunda e uma terceira vez... A Dama limita-se a cumprimentar Bernadette com uma ligeira inclinação de cabeça sorrindo para ela. Bernadette vai arriscar pela quarta vez, quando a Dama declara: - Que soy ero Immaculada Councepcion ("Eu sou a lmaculada Conceição.") Durante toda a caminhada de volta, Bernadette repete a frase "com medo de esquecê-la", segundo declara a alguém interessada em saber o que estava murmurando. Passa um instante por sua casa. Depois, acompanhada por outra parente, desta vez a tia Basile, trata de ir procurar o cura de Lourdes para relatar o que acabava de se passar. - O que deseja hoje? - indaga o abade Peyramale. - Que soy ero lmmaculada Councepcion! Que soy ero Immaculada Councepcion! - repete Bernadette sem dar bom dia ao padre nem responder à sua pergunta. - O que está dizendo, menina orgulhosa? - Foi a Dama quem acabou de me dizer estas palavras. - Até que enfim! - exclama o abade Peyramale, sentindo-se aliviado. - Sabe o que significa isto? - Não, senhor cura. - Como pode dizer coisas que não entende?

Para Bernadette: O Hospício ou a Prisão? Mas se Bernadette não compreende talvez com exatidão o que fala, o público fiel entende perfeitamente: a "Dama de Branco" de Massabielle é a Virgem Maria, a mãe de Cristo. Mas a coisa já se tornou oficial. De repente, o "caso", que as autoridades julgavam estar em vias de extinção, assume dimensões inacreditáveis, a paixão mística das multidões se inflama ainda mais. Diante disso, o prefeito vê apenas uma solução para acabar com estes excessos religiosos: mandar "colocar" ou "internar" Bernadette

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no hospício de Lourdes. Contudo, o prefeito local põe fim a essas intenções que lhe parecem perigosas: - Mandar internar esta jovem no hospício de Tarbes talvez seja um erro. Acredito que tal medida irritará a população que já leva sua crença bem longe. Não se deve recorrer a isso, a meu ver, a menos que haja desordens ou a tranqüilidade pública corra perigo. De qualquer forma, fica estabelecido que Bernadette se submeterá a um exame médico. Este tem lugar a 27 de março. Muitos fiéis incondicionais da "vidente" (é assim que se referem a ela) consideram essa atitude uma afronta imperdoável e vão dar-lhe seu apoio. Um deles conta: - Ontem à noite conversamos por muito tempo com essa menina, que tudo nos relatou, até mesmo a entrevista mantida com os médicos. Ria muito dizendo que queriam fazê-la acreditar que estava doente, mas que não o estava de forma alguma. Perguntei-lhe se sentia medo de todos aqueles senhores. Respondeu-me que não temia ninguém, nem os médicos, nem o procurador e nem o prefeito, ninguém. Se quisessem colocá-la na prisão poderiam fazê-lo, para ela dava no mesmo.

O Milagre da Vela Os dia passam. Embora Bernadette abstenha-se de retornar à gruta, a afluência dos peregrinos continua imensa e as curas milagrosas multiplicam-se diariamente. E, então, subitamente, ocorre uma nova onda de entusiasmo: na quarta-feira, 7 de abril, pela manhã, antes do nascer do sol, há milhares de fiéis na gruta, segundo as autoridades policiais, perfazendo um total para mais de nove mil pessoas. Isto, porque se ouviu dizer que Bernadette tinha-se sentido "chamada" para retornar mais uma vez à gruta. Será a décima sétima aparição, famosa devido ao "milagre da vela". Vejamos o que se passou. Bernadette está ajoelhada. Na mão esquerda segura o terço e na direita uma grande vela. Após ter desfiado o terço, começa a dirigir-se

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de joelhos na direção da gruta, como costuma fazer algumas vezes. Neste momento, ela junta as duas mãos e a direita fica sobre a vela. As pessoas que se encontram mais próximas a ela vêem, então, as chamas passarem por entre os dedos da jovem que não demonstra estar sentindo absolutamente nada. - Moun Diou! qu 'es brulla! ("Meu Deus, ela se queima!") - exclamam. Mas o Dr. Duzous está presente. Após o caso Bouriette, ele passou a se interessar profundamente por Bernadette, pela gruta e pelos milagres. - Deixem-na! - ordena àqueles que se preparam para arrancar a vela das mãos da jovem. E durante longos minutos, Bernadette permanece assim, o rosto extático erguido para o nicho da aparição e a chama da vela atravessando seus dedos... Deixa cair a vela e volta a si. Então, o Dr. Duzous segura a mão da pastora, retira as marcas de fuligem - negras - e observa que sob elas, a pele permanece intacta e sem queimaduras: - Nou y a pas arré! ("Não há nada!") - brada em patoá, dirigindo-se à assistência. E o médico entrega-se a uma espécie de contra-ataque que ele mesmo nos revela: - Dirigindo-me à pessoa que havia apanhado a vela, pedi-lhe que tornasse a acendê-la e me entregasse. Assim que coloquei por diversas vezes seguidas a chama sob a mão esquerda de Bernadette, ela afastou-a rapidamente, dizendo-me: "O senhor está me queimando!" Portanto, o "milagre da vela" não era devido a uma espécie de insensibilidade especial da pele de Bemadette, mas estava diretamente relacionado a seu êxtase e à visão. O Dr. Duzous dirige-se imediatamente ao comissário Jacomet com o intuito de relatar-lhe este "fato sobrenatural", mas este não demonstrará qualquer emoção. Em contrapartida, numerosas pessoas presentes ficarão profundamente impressionadas por toda a vida. Por exemplo, uma certa Sra. Foch, jovem de Tarbes, mãe de um garotinho de seis anos, chamado Ferdinand, o futuro generalíssimo das forças

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armadas aliadas durante a Primeira Guerra Mundial. E é o próprio Marechal Foch quem dá este testemunho: - Minha mãe conhecia Bernadette. Encontrava-se ajoelhada ao lado da vidente, entre ela e o Dr. Duzous, no momento do milagre da vela. Contou-nos tudo assim que chegou em casa: Foi dela que herdei a minha devoção a Nossa Senhora.

"A Virgem não pode lhe falar em Dialeto" Fazia parte da assistência, naquela quarta-feira, 7 de abril, uma das mais altas personalidades municipais, o deputado dos Altos-Pireneus, um certo Sr. de Rességuier. Profundamente impressionado, manda convocar Bernadette à sua presença e interroga-a longamente. Faz à jovem algumas perguntas "insidiosas" tais como: - A Virgem não poderia ter-lhe falado em dialeto. Deus e a Santíssima Virgem não conhecem o patoá! Como poderíamos nós saber se Eles o conhecem ou não? - retruca Bernadette. Este interrogatório realizado pelo deputado municipal tem lugar na presença de um público selecionado, composto, sobretudo, de mulheres jovens, da melhor sociedade local. Quando o Conde de Rességuier pergunta à pastorinha se a imagem que via era bonita, Bernadette responde: - Oh, sim! Bem mais bonita do que elas! E engloba, com um gesto amplo, a assistência feminina... No final da entrevista, o Conde de Rességuier deseja oferecer a Bernadette uma bela edição de um livro religioso, mais precisamente uma Imitação de Jesus Cristo (então ele ignorava que, naquela época, Bernadette não sabia francês e muito menos ler?). A jovem recusa o presente com delicadeza. - Então rezará por mim uma dezena de terços diante da gruta e, em troca, eu lhe darei este livro. Concorda em aceitá-lo assim? - indaga o aristocrata.

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- Rezarei pelo senhor a dezena de terços mas não vou aceitar o seu livro - replica a jovem. Durante este período organizam-se, espontaneamente, os ritos em Massabielle: surgem os primeiros vendedores de imagens de santos e de medalhas da Virgem, ocorre a primeira procissão de velas, iniciativa das filhas de Maria da cidade de Lourdes. Para tanto, essas jovens puras e tímidas tiveram que enfrentar, corajosamente, as autoridades locais.

Ataque à Gruta! Já no início de abril, por ocasião da décima sétima aparição e do "milagre da vela", o ministro dos Cultos, Gustave Rouland, tinha demonstrado uma certa irritação: - A meu ver - escreve ele ao prefeito municipal - devemos pôr um ponto final em atos que acabariam por comprometer os verdadeiros interesses do catolicismo e debilitar o sentimento religioso das populações. Aliás, ele descobriu em que consistia o delito: - Ninguém pode, de direito, erigir um oratório ou lugar público de culto sem a dupla autorização do poder civil e do poder eclesiástico. Portanto, alicerçados no rigor dos regulamentos, seremos forçados a fechar, de imediato, a gruta que foi transformada numa espécie de capela. O ministro de Napoleão, usando de prudência, apesar de tudo, recua diante de uma medida tão extrema, que teria, julga ele, "inconvenientes graves". Assim, lança pura e simplesmente mão do "tato", da "prudência" e da "firmeza" do prefeito dos Altos- Pireneus... deixando as coisas entregues a ele... Quando chega o mês de maio, o prefeito Massy, que manifestará tanto "tato" e "prudência", não tinha feito nada... As autoridades governamentais parisienses começam a se preocupar seriamente. O ministro da Justiça, De Royer, escreve uma carta decidida ao ministro da Instrução Pública e dos Cultos, a fim de

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convencê-lo da "necessidade de uma intervenção enérgica... para colocar um ponto final nas irregularidades que fogem à ação da justiça e nas superstições que, não tendo sido controladas desde o inicio, são, neste momento, motivos de perturbação e de escândalos para todo o pais". Portanto, o prefeito vê-se colocado de encontro à parede. Era preciso agir. Finalmente, a 4 de maio, ele parte de Tarbes para Lourdes. Após ter entrado em "acordo" com o prefeito local e o procurador imperial, ordena ao comissário Jacomet "ir até a gruta, retirar de lá todos os objetos que ali se encontram e transportá-los para a prefeitura onde ficariam à disposição de seus proprietários" - ordem que o policial executa sem discutir. Depois disto, o prefeito dirige-se até o Conselho de revisão, que tem lugar, como sempre a esta época, na presença de todos os prefeitos locais, ou seja, um total de trinta e sete. O prefeito Massy aproveita-se da presença deste insigne auditório para expor a posição das autoridades oficiais que representa. Expõe-lhes "todo o ridículo das cenas" que se passaram em Massabiene e "a falta de consideração que elas, por sua própria natureza, fariam incidir sobre a religião". Enquanto manifestava seu respeito a "todas as grandes verdades da religião", Massy declara, oficialmente, que a criação de um oratória na gruta seria considerado como "um atentado contra a autoridade do bispo e contra a autoridade civil", que ali existia uma "ilegalidade flagrante" e que era seu dever, como prefeito dos Altos-Pireneus, colocar um ponto final em tudo aquilo. Antes de partir de Lourdes, Massy dá ordens ao comissário Jacomet para mandar proclamar publicamente que "qualquer pessoa que se dissesse visinária seria imediatamente presa e levada para o hospício de Tarbes para ali ser submetida a tratamento na condição de doente mental e às expensas do município". Porém, no relatório remetido ao ministro, a fim de pô-lo à par de sua atividade, adverte-o de que "talvez não esteja tudo acabado". E acusa nominalmente uma parte dos membros do clero de Lourdes e, por outro lado, os hoteleiros, os

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proprietários de restaurantes e os diversos negociantes da localidade, por desejarem manter "a população na sua crença supersticiosa, se bem que por motivos diferentes" . Após o hábil golpe do prefeito, o bispo de Tarbes, Mons. Laurence, decide-se a tomar medidas, mas de formas atenuantes. Assim, declara o abade Peyramale, cura de Lourdes, que o prefeito "considerou que aqueles objetos e símbolos religiosos, dispostos de modo mais ou menos artístico na gruta, constituíam, por assim dizer, um oratório público". Declara "respeitar a interpretação do Senhor prefeito que também é a do Senhor ministro dos Cultos". E contenta-se em aconselhar o cura de Lourdes a evitar qualquer "pretexto" que possa "conturbar a ordem pública". Portanto, foi realmente um ato de coragem terem as filhas de Maria organizado e realizado aquilo que denominaríamos hoje de desfile de protesto, um passeio à noite, levando cada uma, nas mãos, uma vela acesa. Comenta-se, em Lourdes, que oito dentre as nove Marianas participantes desta procissão viram a Virgem. Esta lhes teria dito: - Privaram-me da luz desta gruta. Porém terei outra maior.

O Decreto Municipal de 8 de junho A 3 de junho, Bernadette faz sua primeira comunhão, para a grande satisfação de seu cura: "Ela parecia - diz ele - compenetrada da ação santa que fazia." Também salienta que "tudo nela desenvolve-se de uma forma espantosa". Também testemunha que Bernadette deve evitar, todos os dias, as armadilhas preparadas por pessoas aparentemente bem intencionadas e que, com um ar insinuante, oferecem-lhe somas em dinheiro ou vantagens materiais diversas. Contudo, a jovem possui uma firmeza inquebrantável, um desinteresse total. Todavia, a 8 de junho cai o cutelo. O prefeito de Lourdes manda publicar o seguinte decreto:

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"O prefeito... considerando que é necessário, no interesse da religião, pôr um ponto final nas cenas desagradáveis que se passam na gruta de Massabielle..., que um grande número de seus administrados e de forasteiros vêm buscar a água da fonte na citada gruta... que existem sérias razões que levam a acreditar que essa água contém princípios minerais, e que é prudente, antes de autorizar o seu uso, aguardar que uma análise científica esclareça as aplicações que poderiam ser feitas pela medicina, que, aliás, a lei proíbe a exploração das fontes das águas minerais sem prévia autorização do governo, decreta”: 1. - É proibido retirar água da citada fonte. E o mesmo decreto estipula que fica interditada a passagem pela margem do Gave e que será colocada uma barreira na entrada da gruta.

Dia 5 de outubro: Reabertura da Gruta Bernadette voltará uma décima oitava e última vez a Massabielle. Isto acontecerá a 16 de julho. Devido à interdição oficial, ela para ali se dirige à noite e contenta-se em permanecer na margem oposta. Sua tia Lucile acompanha-a. A jovem ajoelha-se e estende as mãos na direção da gruta, situada do outro lado do Gave. E, novamente, a Virgem lhe aparece. - Jamais a vi tão linda - relataria mais tarde a pastora. Objetam-lhe se a distância em que se encontrava e a barreira das tábuas não a haviam impedido de enxergar com tanta precisão: - Tive a impressão que não havia, entre a Dama e eu, uma distância maior do que das outras vezes. Tudo o que eu via era Ela... - responde Bernadette. Pouco depois, Mons. Laurence. abandonando finalmente a sua reserva, publica um comunicado reticente no qual reprova com vigor todos aqueles que se recusam a crer no sobrenatural e anuncia a criação de uma comissão de investigação.

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E eis que, a 5 de outubro, o guarda-campestre faz ribombar triunfalmente seu tambor pelas ruas de Lourdes. A multidão aglomera-se ao seu redor. O bravo funcionário municipal proclama com seu áspero sotaque pirenaico: Habitantes de Lourdes, A todos, que aguardavam com impaciência o momento em que a entrada da gruta fosse liberada, este momento chegou. Cumprimento-os pelo espírito de calma e moderação que não deixou de animá-los diante das medidas repressivas que foram tomadas a fim de assegurar a tranqüilidade pública... Espero que continuem a manter este mesmo espírito. Procurarei velar por seus interesses que também são meus, a fim de me mostrar digno da confiança de nosso imperador. Artigo Primeiro - A partir deste dia, a entrada da gruta está liberada. Artigo Segundo - Segundo as instruções por nós recebidas, o decreto de 8 de junho fica revogado.

A Cura Milagrosa do Pequeno Príncipe Imperial O que teria acontecido para que a violenta oposição administrativa e ministerial cessasse subitamente? Uma pequena frase no decreto do prefeito de Lourdes esclarece o mistério: como o prudente Senhor Lacadé declara, publicamente, seu desejo em mostrar-se "digno da confiança do Imperador", conclui-se que, na realidade, as "instruções" citadas no final da proclamação partiram do próprio Napoleão III. Este, ao retornar das férias de setembro passadas em Biarritz, segundo o costume instituído pela imperatriz Eugênia, convocou, a 1º. de outubro, o seu ministro dos Cultos, Gustave Rouland. Ele mesmo relata o ocorrido: "Sua Majestade explicou-me que desejava que o acesso à gruta de Lourdes, bem como o uso da água da fonte, fossem liberados. Contudo, o Imperador não julga conveniente autorizar a construção de um oratório ou de uma capela no local."

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Esse fim repentino e quase milagroso dos tormentos administrativos que entravavam o início do santuário mariano de Massabielle, inflama os espíritos e as imaginações. Surgem lendas que pretendem explicar os motivos da intervenção imperial. O mais popular destes mitos, pela sua espontaneidade, é o seguinte: Certa noite, o principezinho imperial é dominado por terrível sufocação: teme-se que seja o terrível crupe, nome como era conhecida àquela época a difteria. A imperatriz, acordada em sobressalto, se desespera. Porém, recorda-se subitamente de que uma de suas damas de honra lhe tinha falado de Lourdes e dos milagres da gruta. Esta dama de honra de Eugênia mantinha correspondência com o abade Peyramale, de quem, recentemente, havia recebido um pouco de relva de Massabielle. A imperatriz pede-lhe um punhado da relva, mas a jovem lhe impõe uma condição: - É preciso fazer uma promessa. Se o príncipe ficar bom, deveis obter do imperador uma ordem para que a gruta de Lourdes seja reaberta. Eugênia promete. Assim que entra de posse da relva milagrosa, precipita-se para o lado do principezinho, entregue aos cuidados do médico do palácio, cujo semblante denotava pessimismo. A imperatriz encosta a relva nos lábios da criança e ajoelha-se para rezar. Ao se erguer, as terríveis sufocações haviam cessado: o doentinho estava milagrosamente salvo! Existem outras versões menos romanceadas sobre a intervenção do imperador em favor de Lourdes. Alguns afirmam terem sabido através de fontes bem informadas que, durante uma conversa mantida em público entre Napoleão III e Eugênia, a respeito dos acontecimentos de Lourdes, a imperatriz teria suplicado a seu imperial marido para mandar anular as medidas repressivas adotadas pela administração. - Ou os fatos da gruta são falsos - teria replicado o imperador - ou são verdadeiros. Se falsos, cairão por si mesmos: a farsa não perdura. Se verdadeiros, nada poderá deter o curso dos acontecimentos. Tanto num caso, como no outro, o decreto que interdita o local é totalmente inútil: deve ser anulado.

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Um Primo do Imperador faz uma Peregrinação a

Massabielle Tudo isto não são coisas certas... Mas, em compensação, é certo, uma vez que existe um processo verbal oficial que o confirma, que a 16 de setembro, diante da gruta, veio ajoelhar-se e procurar um remédio para seus males um parente do imperador, um certo Sr. Tascher de la Pagerie. Devemos recordar a este propósito que Napoleão III descendia, por sua vez, de Luis Bonaparte, irmão de Napoleão e de Josefina de Beauharnais, nascida Tascher de Ia Pagerie, de vez que Luis Bonaparte tinha-se casado com Hortense, filha de Joséphine. Na época dos acontecimentos de Lourdes, havia quatro Tascher de la Pagerie na corte imperial: Louis-Robert, que é grão-mestre da casa da imperatriz Eugênia; Robert-Charles-Emile, primeiro camareiro; Emile, suboficial de cavalaria da casa imperial; e um quarto, de nome desconhecido, capitão de infantaria e ajudante de ordens do imperador. Não sabemos qual dos quatro estava "acometido por uma doença do pulmão que o fazia escarrar sangue", conforme nos revela um texto daquela época. De qualquer maneira, este tal Tascher de la Pagerie; que era tuberculoso, encontra-se em setembro de 1858 em Cauterets a fim de se submeter a um tratamento termal que, segundo consta, só serviu para agravar o seu estado. Por isto resolve voltar a Paris. Mas eis que lhe chega aos ouvidos notícias de curas milagrosas ocorridas na gruta de Massabielle. Decide-se, então, a parar em Lourdes. Ignora a interdição do acesso à gruta ou, talvez, acredite que tal proibição não deva aplicar-se a ele, parente próximo do imperador. Como de hábito, um dos agentes da policia encarregado de fazer obedecer a regulamentação, solicita-lhe que se retire. Tascher de Ia Pagerie finge não o ouvir. O agente segura-o pelo colarinho e tanta arrastá-lo à força para fora da área. O peregrino recusa-se a segui-lo.

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Então, o agente, em desespero de causa, vai procurar o seu superior, o comissário Jacomet. Este chega e realiza um interrogatório em regra. Antes de mais nada, indaga o nome deste rebelde tão teimoso. E o nome declinado deixa atônito o comissário, o agente policial e as testemunhas mais ou menos próximas (pois, apesar do decreto municipal sempre há pessoas que vagueiam pelas cercanias da gruta): - Sou o Sr. Tascher de la Pagerie! Satisfeito ou não, o comissário afasta-se. O Sr. Tascher de Ia Pagerie continua suas orações e bebe um pouco da água. Ficará em Lourdes durante muitos dias e de lá partirá restabelecido. Cessam os escarros de sangue, o apetite reaparece, as forças renascem... Podemos imaginar que, ao chegar a Paris, tenha ido, mais do que depressa, relatar a Napoleão III estes extraordinários acontecimentos. As Verdadeiras Razões da intervenção de Napoleão III Contudo, o exame mais sereno do historiador moderno descobre outras razões para o imperador ter-se transformado no protetor de Lourdes e de Bernadette. Nesse ano de 1858, Napoleão III enfrenta sérias dificuldades em relação à opinião pública francesa. Na realidade, após o atentado de Orsini, a 14 de janeiro, atentado que fracassou, o imperador tomou medidas draconianas que interferem seriamente sobre os direitos e a liberdade pública. Logo, ele suscita uma acentuada oposição de esquerda. No dia 21 de julho, em Plombières, Napoleão III encontrou-se com Cavour, o grande homem de estado italiano que prepara a unificação. de seu país e promete-lhe sua ajuda contra o próprio Vaticano. Atitude que não iria deixar de provocar a oposição de direita. É esta oposição que o imperador quer minimizar e desarmar ao dar provas de boa vontade aos católicos.

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É assim que, a 15 de agosto, realiza uma peregrinação a um famoso santuário bretão, o de Sainte-Anne-d'Auray. O bispo de Rennes recebeu-o com carinho, qualificando-o como "o monarca francês mais devoto desde São Luis..." Ora, nestes primórdios do outono de 1858, todo o clero dos Altos-Pireneus, apoiado por Mons. Laurence, seu bispo, é favorável a Lourdes, à gruta, a Bernadette e opôs-se em bloco à administração local do departamento, reflexo oficial do regime imperial. Portanto, Napoleão III, ao revogar o decreto da proibição, poupa todo o clero da região, deixa entregue à própria sorte alguns funcionários que julgavam estar agindo bem ao obedecerem às ordens recebidas de Paris e que perderão seu prestígio, de forma bastante dolorosa para alguns, entre eles o próprio prefeito Massy. A esta altura, o santuário mariano de Lourdes começa sua grandiosa ascensão que o transformará, rapidamente, num dos principais focos do catolicismo moderno. Mais de três milhões de peregrinos para ali se dirigem anualmente, e as curas "milagrosas" abundam, se bem que até o dia de hoje a Igreja só reconheceu como autênticos sessenta e cinco casos.

O Bispo de Tarbes: "A Aparição é Sobrenatural e Divina"

Oficialmente, o ponto mais elevado desse vôo fulminante foi alcançado no sábado, 18 de janeiro de 1892, por Mons. Laurence, bispo de Tarbes, ao publicar a célebre Mandement portant jugement sur l'Apparition qui a eu lieu à la grotte de Lourdes. E esta "pastoral" é totalmente favorável e positiva: Estamos convencidos que a Aparição é sobrenatural e divina... Nossa convicção formou-se sobre o testemunho de Bernadette, mas, sobretudo, a partir dos fatos acontecidos e que não podem ser explicados senão pela intervenção divina... Tudo que se origina em Deus é verdadeiro. A aparição é divina, uma vez que as curas

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possuem um toque divino... Conseqüentemente, a Aparição, ao se declarar a Imaculada Conceição, coisa que Bernadette viu e ouviu, é a própria Santíssima Virgem. Portanto, brademos: o dedo de Deus está presente! Por estes motivos temos declarado e declaramos o que se segue: Artigo Primeiro. - Julgamos que a lmaculada Conceição, mãe de Deus, apareceu realmente para Bernadette Soubirous, a 11 de fevereiro de 1858 e nos dias sucessivos, perfazendo um total de dezoito vezes, na gruta de Massabielle, perto da cidade de Lourdes; que esta aparição se reveste de todas as características da verdade e que os fiéis estão autorizados a acreditar sem restrições. Submetemos, humildemente, nosso julgamento ao Soberano Pontífice... Artigo Segundo. - Autorizamos, na nossa diocese, o culto a Nossa Senhora da Gruta de Lourdes... Artigo Terceiro. - Para nos submetermos à vontade da Santíssima Virgem, várias vezes expressas através da Aparição, nós nos propomos a construir um santuário sobre o terreno da gruta que passou a ser de propriedade dos bispos de Tarbes..."

Os "Fãs" de Bernadette E no dia 21 de maio de 1866, uma segunda-feira de Pentecostes, tem lugar a inauguração da primeira cripta de Massabielle (o bispo comprou à cidade de Lourdes a gruta e o terreno circundante, no outono de 1861). Em abril de 1864 houve a primeira grande procissão que reuniu uma dezena de milhares de pessoas: a estátua da Virgem, obra de, um obscuro escultor de Lion, chamado Fabisch, foi instalada no nicho das aparições. Mais tarde foi construída uma ferrovia, ligando Lourdes aos centros ferroviários mais próximos, o de Tarbes e o de Mont-de-Marsan. Naquele maravilhoso dia primaveril de 1866, encontram-se presentes cinqüenta mil pessoas no mínimo! Logo, a multidão rompe em gritos:

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- Oh! A bonita santa! A linda virgem! Bernadette encontra-se ali. Apesar de seus vinte e dois anos oficiais, continua com seu ar de adolescente, muito pequena, muito magra, muito pálida - o que entusiasma a multidão. Alguns fanáticos aproximam-se dela e, munidos de tesouras cuidadosamente preparadas e escondidas para este fim, cortam-lhe um pedaço da roupa ou do toucado para relíquia... - Como vocês são tolos! - comenta a "bonita santa" em seu dialeto um tanto rude.

"Pensionista" no Hospital de Lourdes durante seis anos

Muito tempo se passou sem que Bernadette tivesse a oportunidade de ir à gruta querida. Na verdade, há alguns anos, ela é praticamente uma prisioneira em Lourdes, no hospital mantido pelas irmãs da Congregação de Nevers. Após os acontecimentos ocorridos de 1858 até o verão de 1860, Bernadette, acompanhada por alguns membros da família, amigos ou conhecidos, percorreu toda a região de Pireneus. "Os desconhecidos, comenta-se, limitavam-se a perguntar-lhe sobre o que havia visto. Bernadette respondia, com muita simplicidade, a tudo que indagavam." No começo do verão de 1860, o abade Peyramale, cura de Lourdes, o prefeito Lacadé e a madre Ursule Fardes, superiora do hospital, reuniram-se para debater esta situação que lhes parecia representar um "perigo" e pôr fim a ela. Qual o resultado do concílio secreto? A 15 de julho de 1860, Bernadette dá entrada no hospital, na condição de pensionista, onde permanecerá por seis anos. Ali ao abrigo da “admiração excessiva dos peregrinos", a jovem só verá os pais uma vez por semana e, ainda, sempre acompanhada e sob a vigilância de uma religiosa do estabelecimento.

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No entanto, todos os dias ou quase todos, aparecem peregrinos no parlatório do hospital. Desejam ver a "santa" e aguardam... Uma das religiosas, que tinha sido uma das mestras de classe de Bernadette, narra como a jovem pastora reagia a esta permanente curiosidade pública: - Via-a chorar à porta do salão quando ali havia vinte, trinta, quarenta pessoas à sua espera. Grossas lágrimas rolavam de seus olhos. Dizia-lhe: "Coragem!" Então, ela enxugava as lágrimas ao entrar, cumprimentava a todos com graça e respondia às suas perguntas. Entre os visitantes, há simples amantes de autógrafos, colecionadores de relíquias, enfermos em busca de cura para seus males, pessoas da Igreja impregnadas de ceticismo ou portadoras de uma fé inabalável, como aquele bispo que se pôs de joelhos diante da jovem e pediu-lhe sua bênção! Bernadette prestava aos presentes uma espécie de esclarecimento padrão a respeito das aparições, de forma breve, mas precisa. E geralmente terminava declarando: - Eis ai o que vi e o que sei. Se não acreditam em mim, que poderei fazer?

"Ela poderá descascar os Legumes..." Em Massabielle, o culto mariano e as peregrinações assumiam proporções enormes. Aterros nivelaram e sanearam o antigo prado onde pastavam os porcos e o pequeno fio de água lamacenta que Bernadette tinha arrancado da terra com suas unhas transformou-se numa fonte caudalosa, canalizada, inicialmente através de valas; depois foram instaladas bicas e "piscinas", isto é, banheiras ao nível do solo para a ablução dos enfermos. O que fazer de Bernadette? A 25 de agosto de 1863, o bispo de Nevers, Mons. Forcade, que é, concomitantemente, o "venerável superior" da Congregação das irmãs de Nevers, chega a Lourdes para ver Bernadette. É na cozinha do

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hospital que ele encontra a jovem ocupando-se, modestamente, em descascar cenouras. Em seguida, ela o servirá à mesa. O prelado e a moça começaram a conversar tanto em francês como em dialeto. Contudo, quando da entrevista oficial que tem lugar no parlatório, Bernadette preferirá expressar-se "num francês correto, claro e preciso" para narrar, em detalhes, as aparições de Massabielle. - E agora, minha filha, o que pretende fazer? - indaga Mons. Forcade. - Nada! - retruca Bernadette. - Como, nada? É necessário que se faça alguma coisa neste mundo sofredor. - Muito bem, estou morando com as irmãs. O bispo explica a Bernadette que aquela era uma situação provisória e pergunta à ex-pastora se deseja aprender uma profissão, ou, quem sabe, casar-se. - Ah, quanto a isto não! - exclama Bernadette, quase horrorizada. É neste momento que Mons. Forcade propõe a Bernadette que se torne uma religiosa e entre para a Congregação das irmãs de Nevers. Mas a jovem objeta que não tem o dote necessário, nem mesmo saúde. O bispo propõe-lhe dispensa do dote. E no que diz respeito à saúde e à capacidade de viver e trabalhar em comunidade, Mons. Forcade dirá à superiora das irmãs de Nevers, madre Louise Ferrand, nada entusiasmada com aquela idéia de receber a jovem, que, na sua opinião, "não saberia fazer grande coisa" : - Poderá descascar os legumes, como a vi fazendo em Lourdes... Bernadette não se deixará influenciar por esta visita e pouco tempo depois declarará publicamente: - Se me fizer religiosa, não serei irmã de Nevers!

4 de julho de 1866: Partida Definitiva de Lourdes E, no momento, três anos mais tarde, pouco tempo após a inauguração da cripta, Bernadette deixa Lourdes - nunca mais retornará ali - para dirigir-se a Nevers. Neste começo de verão de

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1866, grandes eventos se sucedem na Europa. A 2 de julho, em Sadowa, a Prússia de Bismarck arrasa a Áustria dos Habsburgo. É o fim de um mundo histórico e o início de um outro... Mas, em Lourdes, poucos se preocupam com os fatos. A 3 de julho, dia seguinte a Sadowa, Bernadette dirige-se à gruta de Massabielle pela última vez em sua vida... e, nesse mesmo dia 3, vê também os pais, pela última vez. A grande partida acontece a 4 de julho, na estação de Lourdes, onde toda a família Soubirous agita seus lenços... A jovem passará treze anos em Nevers, enclausurada, doente, sofrendo do espírito e do corpo, vítima da fria perseguição que lhe é feita pela superiora do convento, madre Vauzou que, sendo de origem burguesa (é filha de um tabelião), nada mais vê em Bernadette além de uma camponesinha ignorante, rude, vinda dos cafundós dos Pireneus. Cessaram os milagres e as aparições. Não havia mais extasiados, nem curas, nem exaltações, nem visitas! Nem poder, nem glória... O interminável decênio da estada de Bernadette em Nevers, agora irmã Marie-Bernard, mereceria apenas um trabalho consagrado a esta clausura cruel... A 16 de abril de 1879, quarta-feira de Páscoa, Bernadette repete duas vezes: "Santa Maria, mãe de Deus, rogai por mim pobre pecadora, pobre pecadora!" e morre, aos trinta e cinco anos. É modestamente enterrada numa capelinha construída no recinto da comunidade.

A Conservação Milagrosa do Corpo de Santa Bernadette

Contudo, após a morte terrena da pastorinha dos Pireneus, ainda vão ocorrer acontecimentos milagrosos. Na verdade quando, a 22 de setembro de 1909*, as autoridades eclesiásticas ordenam que seja feita a exumação do seu corpo, trinta anos após o enterro, descobre-se, com assombro, que o corpo de Bernadette está intacto... A horrível

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podridão subterrânea não tomou conta dela. Uma segunda exumação será realizada dez anos mais tarde, a 3 de abril de 1919, portanto, quarenta anos após o falecimento de Bernadette. As carnes brancas e ressequidas, descobertas em 1909, enegreceram, mas o corpo continua intacto... Finalmente, será feita uma última exumação a 18 de abril de 1924. Desta feita o corpo de Bernadette será colocado definitivamente em urna lacrada. A "vidente" de Lourdes é beatificada a 14 de junho de 1925 e canonizada a 8 de dezembro de 1933. Coisa estranha... os restos mortais da nova santa permanecem afastados de Lourdes, pátria da pequena Bernadette, e são colocados, durante algum tempo**, numa capela consagrada a santa Helena... a história tem as suas coincidências!... * Foi nesse ano, deve-se ressaltar, que após séculos de reticência pontificial Joana d'Arc foi beatificada, antes de ser canonizada em 1920. ** Atualmente seus restos mortais encontram-se em Saint-Gildard, também em Nevers, aonde cerca de 500.000 pessoas dirigem-se, anualmente, em peregrinação.

SEGUNDA PARTE

O Milagre das Aparições A fé, para um homem como eu, por exemplo, situa-se num outro nível inteiramente diverso: é a fé em alguém e na sua palavra, sendo este alguém Jesus Cristo. A Eucaristia surge da fé e não do maravilhoso. Pode parecer, no momento atual, que toda importância dada ao maravilhoso corra o risco de distorcer as perspectivas e ameaçar a autenticidade da fé. Para muitas pessoas, este itinerário do maravilhoso pode ser o mesmo da fé. Mas é sempre possível haver uma confusão.

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Abade Marc Oraison, Para vocês, o que é Lourdes?

(Edições Lethielleux)

1. Os Verdadeiros Segredos de Bernadette "O abade Pomiam desejava relatar-me a cena seguinte. O escultor Fabisch, de Lion, ao fazer a maquete da imagem da Virgem, era dirigido por Bernadette, que ali se encontrava acompanhada pelo abade Pomian. Ela fê-lo corrigir vários detalhes, puxar mais o véu. modificar o cinto, corrigir o rosto. E o escultor, chorando (um crente), dizia: “Ela não podia ter inventado, tem que ter visto, obedece a tradições e regras de arte". Quanto a mim, é justamente por estar na tradição, que suponho não ter ela visto outra imagem senão a da Virgem, por quem "estava impressionada. O que se deveria pesquisar é a formação desta imagem, encontrar sua origem."

Emile Zola, Journal (29 de agosto de 1982)

(ed. Fasquelle) "O milagre de Lourdes" - escreve um famoso neurologista, do hospital da Salpêtrière, em Paris, em 1872, o Dr. Voisin - "foi calcado na fé ardorosa de uma criança alucinada que está trancafiada num convento... em Nevers." Um ilustre confrade do Dr. Voisin, o Professor Charcot, que teve a honra de contar entre seus alunos o próprio Sigmund Freud, declara, mais ou menos à mesma época, que Bernadette é "louca". Quanto a Zola, este utiliza o termo "histeria" ... O bispo de Nevers, Mons. Forcade, julga necessário replicar ao Dr. Voisin que "a irmã Marie-Bernard... longe de ser louca, é uma pessoa de uma sabedoria fora do comum e de uma tranqüilidade sem

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paralelos". E convida o médico a visitar Bernadette a fim de submetê-la a um exame. Esta visita não acontecerá, e a polêmica terminará aí, como aliás sempre acontece quando se trata da sanidade mental e do equilíbrio psicológico dos santos da Igreja católica... No entanto, apesar da negativa do bispo de Nevers, não podemos deixar de nos perguntar por que Bernadette esteve reclusa durante seis longos anos no hospital de Lourdes, e depois é mandada em exílio para Nevers, longe de seu local de nascimento e para um lugar a que há muito tempo ela demonstrara profunda aversão. O problema da "loucura" de Bernadette apresenta-se desde o início dos acontecimentos de Lourdes. Isto porque alguns declaram tratar-se de fraude, outros consideram a pastorinha acometida de uma doença mental... Para verificar esta hipótese, o prefeito da região cria uma comissão composta por três médicos que, a 25 de março de 1858, examinam Bernadette. O relatório é entregue quatro dias depois.

De que "Afecção Moral" sofre Bernadette? Os médicos sabem que o prefeito gostaria de trancafiar Bernadette num hospício. Na verdade, este alto funcionário julga que todos aqueles movimentos da multidão, que detesta são suscitados apenas pela presença da jovem. Dois dos médicos que fazem parte da comissão são indicados pelo hospital municipal. Segundo as conclusões que apresentarem, suas carreiras correm o risco de estar em jogo. Portanto, darão provas de uma grande prudência ao apresentar suas conclusões, no momento de responder à seguinte pergunta: "Bernadette foi imposta à credulidade pública ou será que uma lesão mental é suficiente para explicar os vários fenômenos que ela relata?" A isto os peritos objetam, para responder de modo correto, "ser necessário conhecer os antecedentes de Bernadette, as atitudes

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comuns de sua vida, seu modo de viver, enfim, influências de todos os tipos capazes de atuar sobre ela". Entretanto, como devem dissecar e expressar opiniões claras, os três médicos estão acordes sobre as três conclusões seguintes: Nada demonstra que Bernadette tenha querido impor-se ao público. Esta menina possui um temperamento impressionável. Poderia ter sido vítima de uma alucinação. Um reflexo luminoso, sem dúvida alguma, atraiu sua atenção para o lado da gruta. Sua imaginação, sob a influência de uma predisposição moral, gerou uma forma que impressiona as crianças, ou seja, a forma das imagens da Virgem que se vêem sobre os altares. Ela conta sua visão às amigas: estas arrastam-na para a gruta. O boato espalha-se pela cidade. Uma população que a cada dia se torna mais compacta, apressa-se a ir ao seu encontro. Proclama-se o prodígio, a aparição da Virgem. Será que o estado de ânimo da menina não deve ter ficado alterado e sua exaltação atingido o auge? Aquilo, que inicialmente nada mais era que uma simples alucinação, adquire cores mais absolutas, absorve-a mais e mais e chega até a isolá-la do mundo exterior no momento da aparição. E temos então um verdadeiro estado extático, esta lesão da inteligência que coloca aquele que dela sofre sob o domínio de uma idéia absorvente. Além disto, alguns exemplos deste tipo são relacionados pelos autores. Conseqüentemente, os abaixo-assinados acham que a menina Bernadette Soubirous é vitima de um estado extático que se repetiu por várias vezes; que se trata de uma afecção moral cujos efeitos explicam os fenômenos da visão. Porém, quem diz "afecção", ainda que "moral", diz tratamento... Pelo menos na teoria. Realmente, os médicos que compunham a comissão formulam a pergunta: "Há necessidade dela se submeter ao tratamento desta afecção?" A resposta é vaga e delicada: "Pouca coisa temos a declarar sobre a questão. A doença, que julgamos poder atribuir a Bernadette, não pode representar qualquer risco no tocante à sua saúde, dentro dos limites que ela nos oferece. É bastante provável que, ao contrário, tão logo Bernadette deixe de ser

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assediada pela multidão, de atender a pedidos de orações, tão logo readquira seus hábitos normais, cessará de sonhar com a gruta e com as coisas maravilhosas que relata."

Uma Auscultação em Pleno Êxtase Que nome atribuir a esta "afecção moral" de que Bernadette é vitima, segundo a opinião de tais peritos? Alguns decênios mais tarde, à época do apogeu de Charcot e dos primórdios da psicanálise, ter-se-ia, sem a menor sombra de dúvida e de hesitação, empregado o vocábulo "histeria" - como o fará, já o vimos, Zola. Contudo, nessa metade do século XIX, a expressão é ainda muito rara e pouco utilizada. Os jornais reportam-se quase sempre à "catalepsia", os incrédulos ao "êxtase doentio". O Dr. Duzous, ardente defensor verbal de Bernadette, não se decidirá a redigir um relatório sobre o assunto e, portanto, não se envolver publicamente, a não ser em 1874. Antes de mais nada, ele relembra a cena diante da gruta de Massabielle, durante a qual se entregou a uma verdadeira ausculta da pastora em êxtase: "Eu que acompanhava com a maior atenção todos os movimentos de Bernadette, com o objetivo de analisá-los com profundidade em mais de um relatório, desejei saber, naquele dia, qual poderia ser a condição de sua circulação sangüínea e de sua respiração. Peguei um de seus braços e coloquei meus dedos sobre a artéria radial. O pulso batia tranqüilo, regular, a respiração era normal: nada naquela jovem indicava uma superexcitação nervosa, todo o organismo reagia de maneira normal."

O Discurso de Defesa do Dr. Duzous Em seguida, o Dr. Duzous empreende a refutação da hipótese de catalepsia:

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"Portanto, não sonhem com a catalepsia, afecção acompanhada, normalmente, da perda de consciência e de uma rigidez tetânica parcial ou total, mas com esta particularidade: os membros conservam a posição assumida no início do ataque, posição esta que perdura o tempo todo, ou então permanecem na posição que se lhes dá, seja ela dolorosa ou incômoda. A catalepsia, após uma duração variável, dissipa-se gradativamente. Os pacientes, ao voltarem a si, mostram-se cansados, irritados, e não se lembram absolutamente do ataque que os vitimou." Em seguida, o médico de Lourdes descreve aquilo que, segundo ele, é o "êxtase doentio": "Trata-se de um estado durante o qual o indivíduo, totalmente entregue a um pensamento dominante, permanece imóvel e alheio a tudo quanto o cerca. Os indivíduos em êxtase doentio demonstram, como fenômenos comuns, a suspensão dos movimentos voluntários e o exercício dos sentidos. Após os acessos, queixam-se de cansaço, de entorpecimento dos membros. Geralmente ficam muito abatidos. Há alguns que se queixam de opressão, taquicardia, etc." O que lhe permite concluir pomposamente: Podemos ver, associando estes dois estados ao de Bernadette, durante seus momentos de devoção religiosa, na gruta de Massabielle, que é impossível associá-lo ao das pessoas acometidas por doenças nervosas tão violentas. Após seus momentos de devoção e de êxtase que a invadiam, ela abandonava o local das orações, sem cansaço, sem demonstrar contração ou lassidão dos membros, conservando uma lembrança perfeita de tudo aquilo que tinha feito durante o tempo de sua visão.

"Seu corpo enrijece, os olhos ficam fixos..." Análises e considerações deste teor não podem, é claro, satisfazer à curiosidade moderna. Sem contar com tais médicos do século XIX, antes de mais nada, ricos de boa vontade e não de ciência, deve-se

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retornar às fontes, ou melhor, aos testemunhos dos primeiros fiéis de Massabielle. No começo, isto é, fins de fevereiro, inicio de março de 1858, ninguém tem dúvidas de que a pequena "visionária" da gruta é vitimada por um estado nervoso anormal do tipo convulsivo. Le Lavedan, datado de 18 de fevereiro, refere-se a um "estado extático dos mais acentuados" e diz que "algumas lágrimas escapam-lhe dos olhos imóveis que permanecem inteiramente fixos no local da gruta, onde ela acredita ver a Santíssima Virgem". O procurador Dutour, que redige seu primeiro relatório a partir de 1º. de março, declara que "Bernadette" entrega-se ou abandona-se a "todas as convulsões de uma teomaníaca do êxtase" e recorda suas "estranhas convulsões". Le Lavedan, datado de 25 de fevereiro, é especialmente preciso e detalhado: "Ela acende a vela. Mas logo seu corpo se enrijece, a cabeça fica imóvel, os olhos, abertos e fixos. Seu olhar não se distancia da depressão existente na gruta. Bernadette está em êxtase. Seu pequenino corpo cansa-se. Pouco depois, um leve sorriso afIora em seus lábios. Os olhos parecem cansados. Percebe-se que estão úmidos. Os lábios movimentam-se como se estivesse falando. Também ri, mas um riso rápido, intercalado, nervoso e, às vezes, inclina o corpo como se estivesse saudando alguém." Clarens, que a partir de 4 de março faz uma longa descrição a respeito da sessão de 27 de fevereiro, da qual foi testemunha, declara que viu Bernadette "empalidecer consideravelmente" e afirma, de modo formal, que os olhos da adolescente reviravam-se nas órbitas, a ponto de ficar "irreconhecível". Também observou uma "espécie de superexcitação em todos os membros". L'lntérêt Public, de 4 de março, relata que as mãos de Bernadette, no momento das aparições, ficam "trêmulas" e que algumas "crispações nervosas" se manifestam, acrescentando que "este estado desaparece logo para dar lugar a um sorriso encantador e às emoções mais doces e maravilhosas".

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L'Ere Impériale, de 6 de março, noticia: "Seu corpo modifica-se, ela empalidece: os lábios agitam-se convulsivamente. Em seguida, é dominada pela imobilidade do êxtase. Alguns minutos depois, esta imobilidade cessa e a menina começa a sorrir." Irmã Augustine, uma testemunha muito favorável à pastorinha e às aparições, escreve, numa carta de 9 de março, que "os belos olhos de Bernadette inchavam, depois vertiam abundantes lágrimas que secavam na face, sem que precisasse enxugá-las, as narinas contraíam-se, ficava muito pálida, os lábios tremiam e, algumas vezes, pensava-se que ia morrer". E a irmã Augustine conta que a própria Bernadette lhe declarou que no momento das aparições "sentia-se tão pesada que nem podia se mover". Le Mémorial des Pyrénées do dia 9 de março insiste, sobretudo, a respeito da insensibilidade visual e auditiva de Bernadette que, positivamente, sai de seu "estado normal".

Bernadette sob um "Raio de Sol Espiritual" Contudo, gradativamente, todos estes detalhes deploráveis e pouco simpáticos irão desaparecer dos testemunhos dados. Nos documentos datados do final de março, já se começa a fazer referências à "pureza arrebatadora" e ao "sorriso seráfico" de Bernadette. Algumas testemunhas, presentes às sessões na gruta, não temem afirmar que viram a menina "elevar-se do solo e manter-se em pleno ar como se uma força invisível tivesse querido afastá-la dos olhares humanos". Em fins de abril, os olhos de Bernadette já não giram nas órbitas, mas estão "um pouco velados", seu rosto possui "um encanto que cativa a todos os espectadores". Se ela chora - e isto acontece seguidamente, não se pode negar - "estas lágrimas em nada alteram os traços de seu rosto". L'Intérêt Public, de 11 de maio, esqueceu totalmente as "crispações nervosas" citadas dois meses antes: "Seu semblante", escreve o redator, talvez até o mesmo do artigo de 4 de março, "circundado por

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uma auréola virginal, parecia dizer que um raio de sol espiritual tinha-lhe descido sobre a cabeça para nela depositar... uma estranha majestade". Finalmente, a 28 de agosto, o mais famoso jornalista católico daquela época, Louis Veuillot, escreve no seu jornal, L'Univers, um longo artigo sobre Bernadette, artigo este que terá uma enorme repercussão nacional. O jornalista, que se achava no mês de julho fazendo um tratamento termal em Bagnères, passou rapidamente por Lourdes e encontrou-se com Bernadette. Promete então a Mons. Laurence, bem como ao abade Peyramale, escrever um artigo tão logo chegue a Paris. Os elementos deste longo e famoso artigo são essencialmente tirados de Jean-Baptiste Estrade, que lhe relatou suas lembranças. Veuillot faz cortes impiedosos na prosa "romântica" de seu correspondente pirenaico e sobretudo o rewrite a fim de conseguir um estilo mais nervoso e mais jornalístico. O resultado é que Louis Veuillot impõe, assim, uma imagem de Bernadette e dos acontecimentos de Lourdes que não serão mais colocados em dúvida. No que diz respeito às características do êxtase de Bernadette, eis aqui como Louis Veuillot, pretendendo citar um "testemunho" (mas do texto original de Estrade não resta praticamente nada!), descreve: Primeiro, vê-se Bernadette ajoelhar-se "sem constrangimentos nem problemas". A jovem pega seu terço e começa a rezar: o olhar, preso à pedra das aparições, fica "mais animado e inteiramente transformado". Percebe-se uma "outra inteligência" no semblante de Bernadette: "Em seus mínimos gestos, na maneira como, por exemplo, faz o sinal da cruz, há uma nobreza surpreendente..." Louis Veuillot não omite que a pastorinha de Lourdes tem o aspecto de uma "outra pessoa", mas já sem o ar pejorativo dos primeiros testemunhos: se ela "arregala os olhos" é porque eles não se "saciam de ver". Se Bernadette já não baixa mais as pálpebras e as mantém fixas, é para não perder de vista "a maravilha que contempla". "Ela sorria para esta maravilha invisível e tudo isto nos dava uma idéia

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perfeita do êxtase e da beatitude." E a expressão habitual da menina é de uma "grande alegria", embora Louis Veuillot não deixe de ressaltar que às vezes "ela parava de respirar". Quanto aos incontáveis sinais da cruz que faz Bernadette, são "piedosos e nobres". E no fim ela sai "sem agitação" desse estado. Quanto ao abade Junqua, em 1860, colige alguns testemunhos, vários são os habitantes de Lourdes a falar sobre o "semblante radioso da visionária", de seus olhos "ardentes e brilhantes" e da "onda de alegria" que lhe iluminava o rosto... Dez anos mais tarde, o padre Sempé, que realiza a primeira grande investigação sobre Bernadette, escreve um verdadeiro texto apologético sobre os êxtases de Massabielle, mais precisamente em outubro de 1868. A imagem é piedosa e tranqüilizadora, bastante "sulpiciana ": "Ela era linda, proclama o religioso de Lourdes, não possuía o frescor róseo e vivo que nos leva a sorrir diante de um rosto de criança, mas de uma beleza superior e estranha. Tinha as faces extremamente pálidas, mas com um leve toque suave, como se atravessadas pela luz: um ligeiro rosado, colorindo apenas as maçãs do rosto e os lábios, acentuava esta brancura marmórea." O padre Sempé não deixa passar em brancas nuvens o fato de que o olhar de Bernadette era "ávido e sedutor" e que "nem ao pestanejar remexia as pálpebras". Qual a razão desta fixidez? "Estes dois olhos fascinados e felizes pareciam presos por um raio de luz." Quanto à expressão do rosto, onde se estende um “leve sorriso extático", revela "a presença de um ser muito grande e boníssimo". E as lágrimas? "Elas rolavam como gotas de orvalho sobre uma folha glabra, sem se espalhar e sem molhar o rosto, e ficavam oscilando por muito tempo sobre a palidez das faces."

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"Valia a pena quando se Via...”

O padre jesuíta Cros, quando da sua profunda pesquisa em maio-junho de 1878, colige junto às pessoas mais simples e autênticas alguns detalhes que, por vezes, chegavam a ser surpreendentes. Tinha os "lábios mal feitos", comenta um dos entrevistados ao declarar que o sorriso de Bernadette levou-o às lágrimas. Parecia "uma criança morta em seu berço", diz um outro. As observações interessantes sucedem-se: "Uma nuvem cinzenta passava-lhe sobre o rosto, os olhos permaneciam imóveis." "Dava pena quando a víamos ficar branca como um círio: sentia-me perturbado ao vê-la modificar-se, os olhos sempre abertos." "Ela ficava inteiramente alterada: o que me fazia mal era ver-lhe os olhos enormes e o rosto transfigurado." "Ouvi, com freqüência, Bernadette gemer ou respirar ofegante." Um testemunho especialmente interessante é o de Antoine Nicolau, o moleiro que vivia próximo a Massabielle, a quem as companheiras de Bernadette pediram ajuda, a 14 de fevereiro, quando da segunda aparição, pois tinham ficado assustadas com o estado em que se encontrava a jovem. O que diz o moleiro? Declara que o rosto da adolescente era a "coisa mais bonita" que jamais vira, mas que assim mesmo teve medo ao constatar que ela estava "muito pálida". Quando a toma nos braços, ela resiste, tendo os olhos "fixados no alto". Sua respiração estava "um pouco acelerada". Finalmente, o homem consegue arrancar a menina de Massabielle, mas, enquanto caminha, Bernadette continua pálida mantendo os olhos "fixos", e ao mesmo tempo "algumas lágrimas rolavam sem cessar" . Quando das diversas aparições durante a célebre quinzena, uma testemunha viu Bernadette "agitar levemente os braços e todos os membros"; uma outra ouviu como que "um murmúrio, um gemido"; outra ainda declarou que uma vez (parece que a 20 de fevereiro),

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após ter deixado escapar um "sim" prolongado, Bernadette desfaleceu. Contudo, nos testemunhos coligidos a seguir, tanto pelo padre Cros, entre 1878 e 1881, como bem mais tarde, à época do processo de beatificação (entre 1909 e 1919), restam apenas imagens agradáveis, suaves, bonitas, simpáticas. Todas as pessoas interrogadas falam como um certo Lorrain, questionado em 1911, o qual havia servido no exército em Lourdes no ano de 1858: "Guardarei para todo o sempre a imagem da menina quando estava em êxtase, os olhos fixos, atenta, o terço na mão, fazendo repetidos e fervorosos sinais da cruz. Ah! queria ter apenas vinte anos e revê-la. Não existe nada mais belo do que isto..."

Uma Respiração Ansiosa e Sibilante O que concluir deste acúmulo de testemunhos contraditórios? Nada. Porque a diluição e a divergência dos comentários dão margem a todo tipo de interpretações. Não é por este lado que encontraremos a chave da "verdadeira natureza de Bernadette"... E ao vasculharmos a descomunal quantidade de documentos recolhidos e amontoados em memória da pastorinha de Lourdes, ressalta um fato irrefutável e cuja importância não recebe seu justo valor... na maioria das vezes. Bernadette foi uma inválida, desde o nascimento até à morte, suportando com sacrifícios um corpo sofredor. Na primavera de 1858, no tempo das aparições, um médico protestante do Tarn, o Dr. Delmas, fez questão de examinar esta "vidente católica a quem a Virgem aparece e com quem conversa". "Tendo auscultado seu peito - declara o Dr. Delmas - constatei alguns estertores sibilantes e alguns sinais de uma doença orgânica cardíaca... No dia seguinte... encontrei Bernadette acometida por uma dispnéia que quase chegava à sufocação: o rosto estava pálido, azulado, os lábios e o nariz entumescidos... "

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Isto é tão verdadeiro que os três médicos da comissão de investigação nomeada pelo prefeito, antes de pesquisarem sua saúde mental, interessaram-se pela saúde física de sua paciente. Inicialmente, eles fazem uma espécie de balanço da saúde de Bernadette: ela é, constatam, "possuidora de uma constituição delicada, de um temperamento linfático e nervoso. Aos treze anos, não parecia ter mais do que onze anos. Tem fisionomia agradável. Os olhos possuem uma expressão viva. A cabeça é de conformação regular porém estreita, mais para pequena do que para grande”. Diz ela que goza de boa saúde, nunca sentiu nada na cabeça, também não experimentou crises nervosas, bebe, come e dorme maravilhosamente bem. Contudo, a jovem Bernadette não é assim tão saudável quanto acredita: ela sofre claramente de asma; sua respiração é ligeiramente ansiosa e sibilante e, às vezes, acentuam-se ainda mais estes sintomas. Mas apesar disso, ainda que os médicos da comissão municipal se mostrem excessivamente prudentes com relação à natureza do êxtase e da "afecção moral" de Bernadette, eles minimizam consideravelmente seu precário estado de saúde. Este já é bastante deplorável no momento das aparições, como nos provam certos testemunhos - por exemplo, este, dado por uma das primeiras fiéis de Massabielle, Emmanuelite Estrade: Bernadette tossia sem parar durante toda a caminhada - diz ela. -Tinha a respiração tão difícil, tão penosa, dava pena de se escutar. A partir do instante em que a Santíssima Virgem apareceu, a tosse cessou, e tinha-se a impressão que sua respiração melhorava. Seus pulmões que, um momento antes, aspiravam o ar com tamanha dificuldade, pareciam não mais necessitar dele. No início de maio, seu estado parecia tão grave a ponto de se lhe administrar a extrema-unção. Depois ela recupera-se um pouco, graças sobretudo a diversas curas termais, especialmente em Cauterets. Mas estas melhoras continuarão sendo provisórias.

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Gritos de Sofrimento durante a Noite

Durante os treze anos que esteve no convento de Saint-Gildard, em Nevers, de julho de 1866 a abril de 1879, Bernadette, ou melhor, irmã Maria-Bernard, passou-os constantemente doente; se saia e muito raramente, mal chegava até o pátio ou até os recintos da comunidade, arrastando-se entre os muros, qual sombra pálida e frágil. Os seus dias escoavam-se principalmente num leito de enfermaria... Desde o dia 14 de agosto de 1866, ou seja, quinze dias após ter tomado o hábito religioso, cai tão gravemente enferma e seu estado parece desesperador; a 25 de outubro ela recebe, pela segunda vez, a extrema-unção. Contudo, recupera-se, ainda que muito lentamente, e em fevereiro do ano seguinte, retoma uma vida quase normal. Mas gosta tanto da enfermaria que, quando ali não se encontra na qualidade de paciente, ali trabalha como enfermeira! Até 1873 ela alterna, desta forma, seus dois papéis. A 3 de junho, parece estar novamente perdida e recebe a extrema-unção pela terceira vez. Volta a se recuperar. Contudo, a partir de 1875, vai se transformar naquilo que se costuma classificar como uma "doente às portas da morte": incapaz de se mover, de agir, de fazer seja lá o que for. Às vezes, quando deseja mudar de posição na cama, é preciso mais de uma hora para conseguir deslocar um membro apenas. Passa a maior parte das noites insone e, com freqüência, especialmente durante o último inverno, solta gritos agudos e dilacerantes que, nos informam, "não deixavam dormir as suas companheiras de enfermaria".

Uma Criança Esfomeada e Abandonada Mas o que se passa com ela exatamente? Uma confissão que lhe escapa numa carta escrita a seu confessor de Lourdes, o abade Pomian, datada de 28 de dezembro de 1876, é significativa:

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"O que poderia lhe contar a meu respeito? Muito pouca coisa de bom... Um destes dias, eu dizia ao senhor doutor que isso já se prolongava demais. Ele girou nos calcanhares, declarando-me que eu tinha um terrível inimigo. Começo a crer que ele está perdendo seu latim." O que estaria insinuando este médico do século XIX ao referir-se, a propósito da saúde de Bernadette, sobre esse "terrível inimigo"? Sem dúvida teve a intuição profunda e certa que mais tarde iria se desenvolver a medicina psicossomática. Na verdade a asma, assim como a úlcera estomacal, é uma moléstia essencial e irrefutavelmente psicossomática, isto é, desencadeia-se, não devido a um micróbio, uma lesão, uma disfunção qualquer, mas sim pelo jogo de fatores psicoemocionais. A causa da asma infantil é a angústia - uma angústia de tal porte que bloqueia a respiração e desencadeia crises de sufocação. A repetição das crises, é lógico, acaba por danificar, pouco a pouco, os brônquios e provocar algumas manifestações que são então de ordem puramente fisiológica. Pois bem, não faltam motivos à pequena Bernadette Soubirous para sentir-se angustiada, desde o nascimento: durante os seis primeiros meses de vida a criança passa fome, como acontecia a todos os bebês do povo no século XIX. É alimentada no seio materno, mas a mãe, triste, sofredora, subnutrida, não lhe proporciona a quantidade de leite necessária. Finalmente, Louise Soubirous não quer mais ficar com a filha. Entrega-a a uma ama de leite que recebe cinco francos por mês, soma irrisória. Bernadette continua a passar fome e além disso padece pelo abandono materno. Quando volta para casa, aos dois anos, tinha um temperamento "suave e submisso", dirá mais tarde sua mãe. Mas onde poderia esta criança achar a energia necessária para ser prepotente e rebelde? Sua saúde não melhora de modo algum. Ao completar cinco anos, a mãe, vendo-a sofrer, contenta-se em levá-la até uma "comadre", que deveria ser uma curandeira, e que prescreve, segundo as próprias palavras da Sra. Soubirous, "alguns

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remédios que lhe dão algum alívio". Aos dez anos, durante uma epidemia de cólera que flagelou a região dos Pireneus, é atacada pela terrível doença que faz numerosas vítimas naquela região. Depois disso, continua a mãe, Bernadette ficou "cada vez mais fraca e doentia". Este histórico negativo explica a aparência raquítica que manterá até o fim da vida: "Bernadette está com vinte e um anos, segundo os registros oficiais, escreve o padre Cros em 1865. Contudo, para que se admita este fato é preciso ter muita fé na infalibilidade destes registros. Na verdade, os olhos de quem a vê afirmam que Bernadette continua sendo a mesma menina de treze anos dos tempos da aparição. Não acredito ser possível encontrar uma criança de aspecto mais jovem, aos treze anos, do que o é Bernadette aos vinte e um. E sua juventude possui um encanto sobrenatural impossível de passar desapercebido. Ela é, por si própria, uma aparição...”

Da Aquero de Bernadette ao "Aquilo" de Freud Mas este crescimento mal começado e depois abortado, também explica, para quem tentasse fazer a psicanálise de Bernadette, a natureza de sua neurose e de suas manifestações alucinatórias. Sob esta perspectiva a menina, é claro, projeta todos os fantasmas de seu subconsciente na imagem da aparição. Isto é tão verdadeiro que, inicialmente, ela dará a esta aparição alucinatória a simples denominação de aquero, isto é, "aquilo". Não deixa de ser interessante observar a este propósito que Freud, mais tarde, para designar, no psiquismo humano, tudo o que está fora do controle da vontade e do consciente, tudo o que é primitivo, não estruturado, empregará este mesmo termo - "aquilo". "Seu conteúdo - dirá ele quase como uma conclusão de sua obra, em 1940 - compreende tudo quanto o ser traz ao nascer, tudo quanto foi determinado constitucionalmente, portanto, antes de mais nada, os

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impulsos emanados da organização somática e que encontram no "aquilo", sob formas que permanecem desconhecidas para nós, um primeiro modo de expressão psíquica." Logo, o "aquilo" é projetado violentamente para fora sob a forma de imagens, às quais a pessoa empresta uma realidade densa e objetiva, que se chama de alucinações. E pode-se então analisar a sua estrutura. O que é afinal o aquero de Bernadette? Desde o começo, ela hesita entre duas definições nas suas descrições: uma "menina" e uma "linda senhora" . "Ela é pequena como eu, da minha idade", afirmam o Le Lavedan de 4 de março terem sido estas as palavras de Bernadette. Mas no L'Ere Impériale, de 6 de março, Bernadette referiu-se a "uma dama muito bonita vestida de branco". Fazendo uma síntese aproximativa entre as duas versões, o Mémorial des Pyrénées, de 9 de março, fala de uma "dama pequena". Os médicos, no seu relatório de 31 de março, após terem interrogado demoradamente a jovem, mantiveram-se dentro de uma fórmula muito vaga: referem-se a uma "forma branca com a atitude de uma Virgem". E Bernadette, após ter afirmado que a aparição tinha "mais ou menos sua estatura" (quando da quarta aparição ela refere-se a uo petito damizelo, "uma senhorita pequena"), dirá, depois, que ela era "alta como uma jovem de dezesseis anos", antes de declarar que ela era "jovem como uma moça de vinte anos" e, a seguir, que se tratava de uma "dama", de uma "rainha misericordiosa". Mas estas expressões só aparecerão mais tarde, quando já se encontra no convento Saint-Gildard, em Nevers. Ali, ela esqueceu-se de que, logo no início, tinha falado de uo petito damizelo (uma senhorita pequena). Não se tratava de uma expressão vaga, de vez que ela mesma declarou que a aparição lembrava “a filha do Sr. Pailhasson". Pois bem, as pesquisas demonstraram que a "filha do Sr. Pailhasson" era, na primavera de 1858, uma garotinha de cerca de dez anos, cuidadosamente vestida de branco para a missa dos domingos pela manhã...

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Ao mesmo tempo, Bernadette, quando dos primeiros interrogatórios realizados pelas autoridades policiais e judiciais de Lourdes, não hesitara em declarar que sua "pequena senhorita" parecia-se com "a Virgem Santíssima colocada num dos altares da igreja" que ela habitualmente freqüenta.

A Terrível Tortura dos Sofrimentos Interiores Vemos, portanto, que para Bernadette a aparição assume um duplo papel: às vezes é a projeção idealizada dela mesma, transformada numa "pequena senhorita" rosada, loura e saudável e a encarnação sonhada da mãe que não teve. Assim, a experiência comprova que a projeção alucinatória só produz um alívio rápido e provisório aos sofrimentos morais, quando estes são verdadeiramente graves e dolorosos. E esse era o caso de Bernadette segundo inúmeros testemunhos. Em 1875, ela confessa a uma religiosa em Saint-Gildard, irmã Julie Garros: - É bastante doloroso não poder respirar, mas é ainda mais penoso ser torturada por sofrimentos interiores. É horrível. No ano seguinte, numa carta endereçada ao papa em exercício, Pio IX, escreve: - Minhas armas são a oração e o sacrifício, que sempre usarei até meu último suspiro. Neste momento somente a arma do sacrifício terminará, mas aquela da oração haverá de me acompanhar até o céu, onde será muito mais eficaz do que nesta terra de exílio. É este sofrimento interior, massacrante, que Bernadette experimenta nesta "terra de exílio" que explica o desejo há muito acalentado por ela de se refugiar num convento das Carmelitas - desejo insatisfeito e a propósito do qual declarou, certo dia, à prima e confidente Jeanne Védêre: - Ali, estaria sossegada. Ninguém iria me atormentar. Porém, já me disseram que eu não seria aceita porque não gozo de boa saúde. Não

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poderia fazer nada daquilo que está contido nos regulamentos do convento. E ainda que quisesse experimentar, depois de algum tempo haveriam de me mandar de volta à casa de meus pais e eu não gostaria de voltar para o mundo. Uma vez que o tivesse abandonado, não gostaria de retornar a ele. Mais tarde, já no convento de Saint-Gildard, em Nevers, após ter aprendido a escrever, manterá uma espécie de "diário intimo": ela tem consciência de que não saberia por si mesma encontrar as expressões de seus sentimentos, então folheia os livros da biblioteca do convento a fim de encontrar as palavras e as frases que lhe são convenientes. Copia-as com o maior cuidado - por exemplo, em 1873: "Ó Maria, minha mãe querida, aqui está vossa filha que já não suporta mais. Tende piedade de mim... Ó Mãe das dores, aos pés da cruz, tendes o título de nossa Mãe. Sou a criança de vossos sofrimentos, a criança do Calvário... Vós que vistes e sentistes a extrema desolação de vosso querido Filho; ajudai-me no momento da minha. É em vosso coração que venho depositar as angústias do meu e buscar força e coragem. Que eu permaneça como Vós aos pés da cruz!..." E não podemos deixar de nos emocionar quando encontramos nesse diário uma citação deste tipo: "Farei tudo pelo céu. Aí encontrarei minha Mãe em todo o esplendor de sua glória."

"Meu Deus, se me enganei... Mas a aprendizagem da leitura e da escrita, o fato de estar em contato com pessoas muito mais cultas do que aquelas que conheceu no seu tempo de adolescência e de primeira juventude, a disciplina do convento, tudo isto faz com que, gradativamente, o inconsciente, ou o subconsciente, vá cedendo terreno. - Mas Deus, se me enganei... Foi algum tempo antes de sua morte que Bernadette, no convento de Saint-Gildard, deixa escapar esta reticência surpreendente...

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A partir do dia 26 de agosto de 1878 - já faz mais de doze anos que se encontra em Nevers – até 3 de março de 1879, cerca de um mês antes de seu falecimento, Bernadette é submetida a um interrogatório muito cerrado e pormenorizado, levado a cabo por um jesuíta, o padre Cros. No começo, Bernadette recusou-se a responder, contando para tanto com o apoio da superiora do convento e do bispo de Nevers. Todavia, o padre Cros pediu a intervenção do próprio papa, Leão XIII. Nada mais restou a Bernadette senão inclinar-se à vontade do Sumo Pontífice. No entanto, não será o padre Cros quem entrevistará Bernadette, mas sim um prelado dos Pireneus, o padre Sempé, designado pelo bispo de Tarbes, Mons. Laurence. Por que o aparecimento deste intermediário? Será que se temia uma curiosidade excessiva por parte do jesuíta? Bernadette mostra-se muito aflita diante desta investigação tão longa e minuciosa. Responde algumas vezes: - Já não me recordo mais. Ou então: - Basta reportar-se ao que declarei da primeira vez... Depois, certo dia, extenuada, vulnerável, não conseguindo manter o autocontrole como de hábito, ela deixa escapar: - Isso já faz tempo... bastante tempo... Todas essas coisas... já não me lembro mais. Não gosto de falar muito sobre isto. Porque, meu Deus, se me enganei... Bernadette leva seus "três segredos" para o túmulo

Mas por trás desta barreira que cede, há uma outra que permanecerá intacta até o fim, inexpugnável, inatingível: é aquela que defende seus "segredos". A 18 de março de 1858, Bernadette declara: - Alguns dias antes da quinta-feira, 4 de março, Aquero revelou-me quatro segredos. Um deles, contei aos padres. Relacionava-se ao pedido de Aquero, de mandar construir uma capela na gruta. Quanto aos outros três, foi-me proibido, por Aquero, revelá-los a quem quer

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que fosse. Contudo, posso afirmar que nada têm de terrível e que só a mim dizem respeito. Também acrescentará, além destes três segredos que se recusará a revelar a quem quer que seja - a seu confessor e até ao próprio Papa! a Virgem ensinou-lhe uma oração "secreta", sobre a qual não contamos com mais nenhuma informação: - Non podé pas disé - responde Bernadette com obstinação (isto é, "não posso contar"), quando a interrogam a respeito. A única revelação que consentirá fazer um dia, é que a oração é "especial" para os seus "sofrimentos". Uma atitude igual a esta é muito conhecida dos psicanalistas e psiquiatras, em geral. Os neuróticos sem cultura ou pouco dotados intelectualmente tomam como um dever vital, absoluto, calar-se a respeito daquilo que constitui o próprio âmago de seu sofrimento e martírio. Este martírio, a psicanálise supõe em geral ser aquele da criança abandonada afetivamente e, ao mesmo tempo, sujeita à promiscuidade dos pais, isto é, à "cena primordial" das relações sexuais do pai e da mãe. É certo que no "cárcere", Bernadette foi testemunha involuntária, secreta, apavorada, angustiada, deste mistério vital que, ignoramos a razão, as crianças recusam e odeiam com um horror implacável e uma vergonha inexplicável: - Meu desejo era - escreve um dia Bernadette - que ninguém se recordasse mais de mim a não ser para me desprezar, me humilhar e me dizer injúrias, pois nada mais mereço, na verdade, além de tudo isto. Seja lá como for, aceitando-se ou recusando-se estas ou aquelas extrapolações modernas, deve-se observar que Bernadette - que continuou sendo uma criança raquítica mesmo ao atingir a idade adulta, seus fantasmas em forma de mãe ideal, seu sofrimento e palidez, seus segredos indizíveis, tudo isto também teve uma repercussão fantástica e imediata na sua época, uma repercussão tal que Bernadette já se transformou numa das maiores figuras de uma religião que vem de dois milênios... Na última linha de seu diário, mais

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ou menos consciente de ter-se transformado num símbolo tão rico, não muito distante de uma anotação assustadora ("trabalhar energicamente a fim de destruir o amor e a estima de mim mesma"), Bernadette concluía com um desespero complacente: "Quanto mais eu for crucificada, mais me alegrarei”.

2. O diabo vagueia por Massabielle Após a passagem de um circo por uma aldeia, as crianças, durante algum tempo, brincam de acrobatas... Depois das aparições de 1858, as crianças da região, quase sempre excitadas pelos adultos ávidos pelo maravilhoso, brincaram de videntes. O fato tomou proporções imensas sob um clima de exaltação coletiva. A epidemia de visionários nos mostra o perigo que encerra - excluindo a pura fé teológica - o apetite pelo maravilhoso e pelo sobrenatural sensível.

Abade Laurentin, Lourdes: documentos autênticos,

volume lI. Verão de 1858. Residência dos Labayle, habitantes modestos de Lourdes (o pai é um empregado numa empresa de transporte). O maior cômodo da casa foi transformado numa capela, com imagens do Cristo e da Virgem além de numerosas velas. Diante do altar, há um garotinho em transe, Jean Labayle, que afirma ter visto a Virgem em Massabielle. Está ajoelhado e desfia o terço. Atrás dele, uns vinte adultos, também ajoelhados e orando. Entre eles, encontram-se algumas crianças. Súbito, uma garotinha começa a berrar: - Ai, ai, estou vendo um diabo de chifres!

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"Acredite quem quiser, mas eu vi!"

Trata-se tão-somente de um caso entre tantos outros da epidemia de visionários, desencadeada com amplidão e brutalidade após as aparições da Virgem a Bernadette. Um testemunho, dado vinte anos mais tarde, por um homem já adulto, casado e pai de família, pode começar a fazer compreender o mecanismo da sugestão coletiva e individual que se desencadeou: - Jamais contei a alguém o que vou lhe dizer declara a testemunha, François Lagarde, ao padre Cros, em 1878. Nós morávamos com os frades. Costumava ir até a gruta com outros garotos. Subíamos pelas depressões e costumávamos chegar até o ponto onde se encontra, atualmente, a imagem, dentro da gruta. Comecei a rezar com fervor, usando um terço que tinha sido atirado lá dentro. Enquanto rezava, sem saber onde me encontrava, vi surgir no fundo da gruta uma visão branca, porém não podia distinguir nem o rosto, nem as mãos... Era apenas uma idéia, como acontece quando se vê alguém de muito longe... Quando alguém falava, eu não a via mais. Pedia a meus companheiros, que eram três ou quatro e dos quais não me lembro mais de nenhum, para se conservarem em silêncio. Quando ficavam calados, "aquilo", voltava. Vi-"a" voltar no mínimo umas cinco vezes. Acredite quem quiser, mas eu vi! Era lindo, mas não sabia o que era. Era vago... vago. Quando ouvia vozes, desaparecia como uma lufada de vento. E no entanto, antes mesmo de atingir as crianças, a epidemia irrompeu junto aos adultos - mais precisamente, entre as mulheres: a imagem feminina idealizada e proposta por Bernadette tocou-as de modo profundo.

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Cinco Mulheres no Fundo de uma Gruta

Tudo começou a 10 de abril, ou seja, três dias após a décima sétima e penúltima aparição da Virgem a Bernadette. Nesse dia, três moradoras de Lourdes - Marie Cazenave, uma jovem costureira de vinte e dois anos, duas de suas amigas, Honorine Lacroix, classificada como "uma prostituta horrível e abjeta", posteriormente empregada no trabalho da gruta, e Madeleine Cazaux, com quarenta e cinco anos acompanhadas por duas "estrangeiras", isto é, pessoas que não moravam em Lourdes, decidiram explorar as cavidades superiores e internas da gruta. Noventa e dois anos mais tarde, Norbert Casteret, espeleólogo competente e experimentado, para ali se dirigiu, encontrando sérias dificuldades para penetrar no recinto, porém, sob a excitação do momento, as cinco mulheres dos Pireneus realizam, sem dificuldades, esta pequena exploração apenas com o auxílio de uma escada de mão e duas velas. Assim que penetraram na galeria escura, onde as duas velas projetam sombras fantásticas, as mulheres sentem-se tocadas: - Não somos dignas de colocar nossos pés aqui, neste lugar que a Virgem escolheu para ficar quando vem do céu. Ao menos rezemos, já que aqui entramos - sugere Marie Cazenave. - Estou com medo - diz uma delas -, voltemos. - Deixem-me sozinha - diz Marie Cazenave - pois vou rezar, aqui, o meu terço. As cinco mulheres põem-se de joelhos e começam a orar. Antes de ajoelhar-se, Marie Cazenave tinha notado uma pedra, no fundo, à esquerda, cuja forma retorcida recordava, de modo mais ou menos vago, uma mulher com uma criança nos braços. Enquanto reza, Marie continua a distinguir tal pedra à sua esquerda. Mas eis que, à direita, aparece uma outra mulher carregando uma outra criança...

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- Distinguia perfeitamente - contará ela - um semblante sorridente em alguns momentos, de cabelos encaracolados, cuja cor não sei dizer, caindo-lhe sobre os ombros; sobre a cabeça alguma coisa branca, alta como um pente; enfim, um vestido branco. Quanto à criança, distinguia-a muito mal.

Aquela que "vê", aquela que não vê... Pouco depois, uma das companheiras de Marie, Madeleine Cazaux, puxa-lhe o vestido e começa a gritar: - Marie, você está vendo? Parece a Santíssima Virgem... Olhe só como é linda! Que rosto lindo... Que cabelos maravilhosos... Está com as mãos juntas. Você está vendo, Marie? - Estou, claro que estou - responde Marie. - Onde a estão vendo? pergunta, então, Honorine. As companheiras apontam para o local da visão, Honorine ergue-se e caminha naquela direção levando uma das velas na mão. Mas então, as outras, não vendo mais nada, chamam-na. Honorine volta-se e, finalmente, diz por sua vez: - Como ela é linda! Que cabelos bonitos! Mas o tom que emprega não parece bastante "compenetrado" e suas companheiras dirão, mais tarde, que tinham duvidado de suas palavras. Quanto às duas "estrangeiras", a mais jovem, impressionada com a exaltação de Marie e Madeleine, faz o mesmo que Honorine, exclama sem grande exaltação: - Santíssima Virgem, como sois linda! Que cabelos maravilhosos! Mas a quinta mulher, que nada vê, arrisca-se a dizer: - Como sou infeliz! - murmura. - Não vejo nada. Ó meu Deus! O que foi que eu fiz, para não receber a graça de vos ver? - Será que isto é o resultado de nossa imaginação? - exclama, de repente, Marie Cazenave. - Será que o que estamos vendo é uma realidade? Será possível que estejamos enganadas?

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- Claro que não! - tranqüiliza Madeleine. - Não vê que somos muitas a ver a mesma coisa? Segundo a declaração de Marie Cazenave, o rosto da aparição vai, pouco a pouco, ficando velado por uma névoa e, finalmente, desaparece. "Nas paredes da gruta, à nossa direita - diz ela - percebemos algo parecido com uma cabeça de anjinho. Beijamo-la. Pensei: 'Acho que não é um anjo, foi a água que fez isto'. Porém sentimos prazer em beijá-la, como também, antes de descer, beijamos o solo. Finalmente descemos." Quanto a Honorine Lacroix - que Marie Cazenave supõe não haver visto o que afirmava – fará uma descrição extensa da aparição na gruta. Declarará ter visto não a Virgem com Jesus nos braços, mas "uma garotinha de uns quatro anos, coberta por um véu branco, cujos cabelos caíam sobre as faces e ombros e estavam repuxados sobre a testa", Esta garotinha, segundo Honorine, tinha olhos azuis e cabelos louros: Em determinados momentos, ficava encoberta por uma névoa, em outros, tornava a aparecer. Tinha o rosto muito pálido e os pômulos vermelhos. Assim que terminamos de rezar, ela sumiu. Desapareceu.

"Uma espécie de vapor..." Esta expedição aventureira suscita algumas vocações. A 14 de abril, uma doméstica, com cerca de cinqüenta anos, Suzanne Lavantes, e mais cinco outras mulheres da sua idade, mostram-se ainda bastante lépidas para subir por uma escada de mão que levaram consigo e arrastar-se pela passagem de acesso à gruta. Tão logo atingem a sala abobadada, ajoelham-se e rezam: - Então ergui os olhos - conta Suzanne Lavantes - e notei uma figura branca, mais ou menos da minha altura, uma espécie de vapor, como um véu, sob o qual um vestido se arrastava: Porém eu não via rosto, nem pernas e nem mãos, enfim nenhuma parte do corpo humano.

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Após haver precisado que o que tinha visto era "indeciso e vago", Suzanne Lavantes revela, no entanto, o estado de pânico a que ficou reduzida: - Soltei um grito e juntei as mãos... Comecei a chorar e a tremer assim que vi a névoa... Ao descer fui obrigada a sentar-me. Uma fraqueza extrema se apoderou de mim... Foi apenas quando retomamos o caminho de volta que, a pedido - uma vez que me perguntaram se tinha visto algo - consegui descrever aquela imagem indefinida. Ao chegar em casa, ou mais precisamente, à casa de seu patrão, Sr. Bayle, um negociante de couros e peles, encontra várias pessoas à sua espera, pois a notícia já havia corrido... Embora ela o negue, parece certo que Suzane Lavantes sofreu, naquele momento, uma reação nervosa muito violenta, inicialmente com convulsões e depois um desfalecimento prolongado.

"Retire-se, Satanás, se é você que está aí!" Três dias mais tarde, no sábado, 17 de abril, nova expedição mística! Esta é organizada por dois funcionários da prefeitura de Lourdes, um secretário e um cantoneiro, acompanhados por duas visionárias, sem dúvida as mais célebres daquele tempo, Joséphine Alberio e Marie Courrech. - Não gostam de mim, na minha casa - declarará mais tarde, já no final do Segundo Império, Joséphine Alberio, a esta época prostituta na cidade de Bareges e bastante popular entre os oficiais ali lotados. Nasceu a 8 de dezembro de 1841. Portanto, no momento dos acontecimentos na gruta de Massabielle, está com dezessete anos. É considerada como tendo um "temperamento difícil, estranho". Geralmente, sente-se muito fraca ou doente demais para trabalhar. A irmã mais velha, sobrecarregada de afazeres, maltrata-a seguidamente. Quando têm início as aparições da Virgem a Bernadette\ Joséphine Alberio demonstra uma grande emoção: perde

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o apetite, recusando-se a sentar-se à mesa com a família. Começa a ter alucinações na modesta cozinha familiar. - Ela está aqui! ela está aqui! - exclama ela. Vejo algo que flutua. Vai regularmente à gruta, onde também terá algumas "visões": como há sempre afluência a Massabielle e numerosas testemunhas deixaram relatos a respeito dos mínimos acontecimentos ali presenciados, sabemos que estas "visões" de Joséphine Alberio tiveram lugar nos dias 17, 22 e 23 de abril de 1858, logo após a "quinzena" de Bernadette e antes que a Virgem revelasse a sua identidade. Da primeira vez, a jovem chora e parece sofrer. Os presentes não põem dúvida na autenticidade do estado extático de Joséphine , mas perguntam, entre si, o que ela "vê": - Retire-se, Satanás - diz um dos presentes - se é você que está aí. Joséphine, dizem, parecia "perturbada": dava a impressão de "estar procurando algo que teria perdido". Da segunda vez, o seu êxtase é tão espetacular e barulhento - ela grita, urra, contorce-se - que as pessoas presentes ficam assombradas e começam a duvidar. Uma jovem, a Srta. Peyrard que, profundamente impressionada com as sessões de Bernadette, iria pouco depois entrar para o convento, resolve verificar a autenticidade do êxtase de Joséphine - e para tal fim, emprega um meio, sem dúvida, bastante cruel, mas que ela mesma narra sem hesitação e sem remorsos: "Utilizei - conta ela quando já era uma religiosa - uma comprida agulha de cerzir, a mais grossa e a mais forte que consegui arranjar. Cheguei a pedir permissão ao abade Pomian para fazer o que pretendia; enfiei-lhe no braço, até encontrar o osso. Ela não fez o mínimo movimento. Porém, ainda que estivesse em êxtase e insensível, não era a Santíssima Virgem que via naquele momento: o seu rosto e a sua postura eram realmente assustadores." No momento de um dos "êxtases" de Joséphine Alberio, encontra-se presente Estrade, bastante conhecido pelos seus testemunhos sobre Bernadette. Ele vê a jovem circundada por um grupo atento, formado por umas doze pessoas, e aproxima-se.

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"Encontramos - diz ele - a jovem de joelhos, numa atitude de Mater Dolorosa. O rosto, sem ter os ares inspirados de Bernadette, não deixava de ser belo. Grossas lágrimas brotavam-lhe dos olhos. As mãos estavam unidas numa expressão de dor. No conjunto de seus traços havia uma espécie de reflexo sobrenatural, mal definido sem dúvida, mas que ultrapassava o limite das animações comuns." Dois amigos que acompanham a jovem ficam de tal forma emocionados com o espetáculo, que caem de joelhos...

Da Gruta ao Trottoir

A terceira vez, ela apresenta um aspecto tão triste, tão infeliz, tão desesperado que uma testemunha lhe diz: - O que você está vendo não deve ser bonito... Então, Joséphine conta que, às vezes, vê cenas da Paixão, outras vezes uma grande cruz negra, e também vê a Sagrada Família: "Um homem de barba branca, uma mulher bastante jovem e uma criança. O velho está com algumas chaves numa das mãos e com a outra alisa o bigode". Depois disso, Joséphine revela seu desejo de ser freira. A irmã mais velha leva-a a um convento localizado em Pau e paga as despesas necessárias ao seu noviciado, ao término do qual as religiosas mandam-na de volta para casa. Dirige-se, então, a um outro convento em Toulouse. "Porém -. contará mais tarde a irmã mais velha - ela não se demoraria muito lá; ao voltar, mendigava. Um viajante trouxe-a, ela e a mala, em sua charrete, desde Tarbes. Aqui, sem ousar vir até em casa, foi recolhida por uma senhora que a manteve oito dias. Passado este tempo, nosso pai e eu, seguindo o conselho do senhor vigário que nos mandava surrá-la, trancafiamo-la durante três dias e três noites." Estranha família que trancafia num quarto escuro uma jovem de dezoito anos... Contudo, depois que seus torturadores lhe abriram a porta, ela vai embora e passa a trabalhar como criada num hotel em

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Bagnéres. É quando Joséphine começa a "virar a cabeça", segundo a expressão usada naquele tempo. Pouco depois o pai falece, e ela recebe uma pequena herança e compra uma birosca que lhe permite "disfarçar sua má conduta". - Tínhamos vergonha dela na família e nunca mais foi recebida em nossa casa - diz friamente a irmã mais velha.

O Caso Espinhoso de Marie Courrech Quanto a Marie Courrech, que o abade Peyramale qualifica como "uma santa menina, se é que existe alguma", seu caso é muito mais espinhoso, uma vez que Bernadette iria declarar que, a seu ver, também tinha visto a Virgem... Aos trinta anos, mais ou menos, sozinha no mundo e sem família, Marie Courrech é a empregada do prefeito de Lourdes, M. Lacadé. No começo, escuta comentários desfavoráveis sobre Bernadette. Diante dela fala-se que a menina Soubirous está "enfeitiçada", "alucinada" e, até mesmo, "louca". Contudo, Marie Courrech sente-se compelida, como todo mundo da região, durante a célebre quinzena, a ir até a gruta certa manhã: - Parecia-me - diz ela - que Bernadette enxergava alguma coisa. Senti pena. Rezava como os outros, ajoelhei-me como os outros. Queria muito ver a Virgem. No sábado, dia 17 de abril, no início da tarde, encontra-se novamente na gruta: - Ainda não tinha terminado o terço, - diz ela - quando, olhando para o lado do nicho, tive a impressão de ver ali uma pessoa... Senti-me cativada, dominada de tal modo que não sabia onde me achava. Essa "pessoa", segundo a descrição de Marie Courrech, está vestida toda de branco e aparenta ter quinze ou dezesseis anos. - Quando cheguei de volta em casa, senti uma vontade imensa de ficar só e chorar. E pude fazê-lo à vontade enquanto cuidava da casa. Dizia para mim mesma: "Meu Deus, o que pode ser aquilo?" Pensei numa ilusão do demônio, em muitas outras coisas...

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Alguns dias depois, Marie Courrech está de volta à gruta de Massabielle e à Santíssima Virgem – é ela, sem dúvida - que lhe aparece vestida de branco, loura e descalça. A Virgem diz a Marie Courrech para "rezar pelos pecadores" e beber da água da fonte, como já fizera com Bernadette. As pessoas que se encontram na gruta naquele momento - pois há sempre gente por lá - tentam fazer com que a moça fale: - O que viu? - perguntam-lhe. Contudo, Marie Courrech afasta-se rapidamente a fim de escapar à curiosidade e contenta-se em responder vagamente: - Não sei de nada. Porque, dirá ela mais tarde, "não tinha vontade de dizer". - Mas notamos que você estava vendo alguma coisa - insiste uma mulher que segue Marie Courrech. - O que pretende que eu tenha visto? - protestou a criada do prefeito de Lourdes. - Vocês todos estavam ali como eu.

Com a Permissão de um Padre Porém, o prefeito e sua mulher tão logo tomam conhecimento do que aconteceu à empregada, repreendem-na e proíbem-na de ir a Massabielle. Marie resolve, então, ir aconselhar-se com um padre, o abade Serres, um dos vigários do abade Peyramale. E o abade Serres lhe diz: - Deve voltar lá. Desta forma Marie Courrech vai deixar de cumprir algumas tarefas na casa de seus patrões a fim de ir até a gruta, onde a Virgem é quase sempre fiel ao seu encontro. Contenta-se em mandar a moça beber a água por várias vezes. Os seus patrões, que, no inicio haviam ameaçado despedi-Ia, tornam-se mais indulgentes. Com a gruta interditada, ela continua a ir até lá: - Sempre amei a Santíssima Virgem, desde criança - explica ela. - Quando estudei catecismo compreendi que ela era a porta do céu.

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Na véspera da Assunção, a Virgem apareceu enfeitada com uma coroa brilhante, e sua aparência era tão maravilhosa aos olhos da criada que esta desmaiou: - No dia da Imaculada Conceição, dirigi-me à gruta de madrugada, antes do romper do dia... Encontrei muita gente por lá, mas não lhes dei atenção. Ocupei o lugar de costume. Pouco depois a aparição surgiu. Não estava com a coroa. Mandou-me ir apanhar água na fonte a fim de que me lavasse três vezes: "É aqui que espalharei as minhas graças" -, disse-me ela. Então uma nuvem branca apareceu e nela a Santíssima Virgem se elevou. Tudo desapareceu ao mesmo tempo. Ela fez-me entender - não escutei uma palavra sequer, mas senti em meu intimo - que eu não a veria mais...

“Nós nos olhávamos como duas tolas..." Marie Courrech está rodeada por fiéis que a atormentam, para pedir um "milagre" à Virgem. Sobre isso, comentará mais tarde: - Nunca me dirigi à aparição: não teria ousado. Mas, eram tantos os pedidos que resolveu, um dia, rogar à Virgem para que fizesse um milagre: - Mas ela sorria - acrescentou - não dizia nada. Marie Courrech também escuta reprimendas veementes. Uma das mulheres presentes maltrata-a: - O que foi que ela lhe disse? Você é uma idiota. Não sabe lhe perguntar nada. Fica aí como se fosse uma estátua. Quando Marie arrisca a perguntar o nome da aparição, esta lhe responde: - Eu sou Maria, concebida sem pecado. Num determinado momento, durante um de seus êxtases, ela parece querer agarrar cuidadosamente algum objeto que se acha à sua frente. Ao voltar a si, perguntam-lhe o que tentava agarrar daquele jeito:

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- Eu queria segurar a Santíssima Virgem pela roupa. Mas ela sempre conseguia fugir de mim e sorria ao constatar que eu não conseguia alcançá-la: Certo dia, Marie Courrech fará esta revelação estranha e ingênua: - A primeira coisa que Ela fazia era me cumprimentar. Depois ficávamos nos olhando como duas tolas. Eu sou uma delas...

"Talvez ela tivesse me levado para o céu..." De outra feita, uma testemunha observa que Marie, durante o seu êxtase, estava com o rosto em fogo e pergunta-lhe por quê: - Sentia-me tão contenteI Nunca a tinha visto tão linda. Estou surpresa de ver que não morri de tanta alegria. Havia estrelas no seu vestido, um cinto de ouro, com uma coroa de florezinhas em todas as cores e que cintilavam muito. Perguntei à Santíssima Virgem: "Por que motivo me faz experimentar tamanha alegria?" E ela respondeu-me: "É para lhe dar uma idéia do céu, caso tenha a felicidade de para lá ir algum dia". Quando as aparições cessam, Marie Courrech chora seguidamente. Perguntam-lhe por que se sente tão triste já que teve a felicidade de ver a Virgem tantas vezes seguidas: - Mas como querem vocês que eu permaneça na terra? - pergunta. - Se pelo menos eu tivesse podido segurá-la pelo vestido, talvez me tivesse levado para o céu... Quando deseja abraçar a vida religiosa, Marie Courrech verá as portas do convento se fecharem diante dela. Não porque se suspeite da autenticidade de suas visões, mas unicamente por motivos materiais ou sociais bastante sórdidos: - Procuro ser - diz ela - irmã da Imaculada Conceição em Lannemezan. Disseram-me que eram necessários seis mil francos. No convento de São Vicente de Paulo, em Tarbes, também me disseram

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não, porque eu já tinha sido uma criada. A resposta também foi idêntica junto às Carmelitas, em Tarbes. E a criada de bom coração e de imaginação mística deveria, querendo ou não, voltar humildemente aos seus fornos e aos seus espanadores... As "visões" tinham ocorrido a partir de meados de abril, até o Natal de 1858. Mas, entrementes, a partir do dia 13 de maio, surgiu o fenômeno das crianças visionárias que abalou toda a região. "É engraçado ver todos estes pequenos visionários"

As suas sessões de "êxtase" místico têm lugar, inicialmente, na gruta de Massabielle, depois, quando esta é fechada e interditada, eles vão para a fonte de Brioulante, bem próxima, no prado de Ribêère, às margens do Gave. Também atraem uma multidão para a frente das capelas que montam em suas casas. O fenômeno durará até meados de julho mais ou menos, ou seja, por dois meses. Quase sempre aquelas "visões" cheiram mais a enxofre do que a incenso puro... Desta maneira, vários dentre eles declaram ver, em Massabielle, não a linda "Dama de branco" de Bernadette, mas um monstro negro com um aspecto terrificante... E uma menininha de nove ou dez anos tem por hábito enfiar-se numa depressão do rochedo, não longe da gruta, e ali ela berra como se fosse uma loba agonizante. Ninguém procura entender o que pretende dizer a criança ao se comportar de forma tão estranha e espetacular. Tratam-na de "selvagenzinha" e repreendem-na. Da mesma maneira, os guardas quando surpreendem um grupo de crianças fazendo "fingimentos" na gruta, expulsam-nas gritando: - Saiam dai, seus moleques! A maioria deles imita Bernadette, em Massabielle, quando a gruta ainda está aberta: beijam o solo, caminham de joelhos, e as garotinhas sorriem em êxtase. Em meio a esta atmosfera de fervor místico. e de crença generalizada no sobrenatural que então reina em

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Lourdes, muitos não duvidam dos pequeninos visionários, outros acham que se trata de uma simples e pura comédia, e há também aqueles que interrogam a si mesmos, como, por exemplo, a irmã do abade Pène: - É impossível que um número tão elevado de crianças, de bairros vários, de idades diversas, de sexos diferentes, tenham feito um acordo no sentido de representar uma comédia deste tipo, sem nunca se traírem. Muita gente também assiste a tais sessões como se tratasse de um espetáculo verdadeiro: - É engraçado ver todos estes pequenos visionários - diz um dos espectadores. - Eles erguem as mãos e os olhos na direção do céu, e se agitam. Dir-se-ia que querem agarrar alguma coisa no vazio.

A Capela e os Fiéis de Menino, oito anos O chefe é Julien Cazenave, aos oito anos, tão minúsculo e doentio, que o apelidaram de Menino ou Mínimo. "As visões começaram num dia - revelará ele mais tarde - em que não se trabalhava, talvez numa quinta-feira à noite. Encontrava-me na gruta, com um primo, Jean Crozat, da minha idade. Havia muita gente por lá. Vínhamos de um passeio pela Floresta e descemos para olhar... Rezamos, e alguma coisa passou-me diante dos olhos. Tinha as feições masculinas, já não me recordo nitidamente: Aquilo tocou-me, ri e em seguida comecei a chorar." Contudo, é num prado um pouco mais adiante, às margens do Gave, que o pequeno Menino instala-se e tem suas visões, no prado de Ribère. Ao seu lado estão outras crianças que compartilham de sua exaltação: "As outras crianças faziam, como eu, algumas caretas" - continua ele. Todos eram acometidos por uma espécie de convulsão e soltavam gritos inarticulados, a tal ponto, declara uma testemunha, "que dava pena ouvir".

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Menino atrai uma verdadeira corte de fiéis. Algumas mulheres - afirma ele - vinham procurá-lo, geralmente à noite, e levavam-no até o prado da Ribère, onde ela havia erguido uma espécie de capelinha. Isto acontece em fins de junho e começo de julho de 1858. "Assim que chegava a Ribère, começava a rezar – relata o Menino. Às vezes, não via nada, absolutamente nada. Outras vezes, via a mesma coisa: não era uma mulher e eu não sabia explicar o que era. Eu dizia: É preciso rezar! Ajoelhem-se, beijem o solo... Porque eu sentia medo. Jamais afirmei que a minha visão falava comigo. Nunca escutei nada. Às vezes eu apanhava os terços... e mergulhava-os na água da fonte: agia assim porque esta idéia me passava pela cabeça..." As mulheres que acompanhavam o pequenino Menino fizeram-lhe uma coroa de flores de louro e colocaram-na sobre a cabeça: assim escoltado, gritando e contorcendo-se, o garotinho "vê" sua aparição "deslocar-se e pairar sobre as árvores do prado", e então, ele a segue tentando agarrá-la... - Nem meu pai, nem minha mãe - dirá ainda o garoto - me acompanhavam. Jamais quiseram seguir-me e proibiam-me de ir até lá porque achavam que não se tratava da Santíssima Virgem, mas sim de algo ruim. Contudo, não me chamavam a atenção quando chegava de volta em casa. Sabiam perfeitamente que só me dirigia para lá quando alguém vinha me apanhar. Voltávamos às 10 horas, 10 e meia. Estávamos no verão, havia feno cortado, nós o pisoteávamos e os proprietários reclamavam...

O estranho conselho da pequena Marie Pujol Outro caso significativo dentre todas estas crianças em transe, é o de Marie Pujol, na época com oito anos de idade. Mais tarde, já adulta, ela não se recordará de nada daquilo que fez ou disse durante este famoso verão de 1858. E seu irmão ou sua mãe que relatam os acontecimentos. Uma noite, toda a família Pujol, os pais, o filho mais

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velho Isidoro e a pequena Marie, encontram-se na gruta e rezam. De repente, a garotinha diz: - Devemos voltar para casa em procissão. O pai, a mãe e o garoto - este carregando a garotinha sobre os ombros - formam uma fila indiana e assim retornam a casa. Marie permanece muda, silenciosa a qualquer pergunta que lhe façam, exceto para ordenar: - Quaou pas sourti de reng! ("Não saiam da fila! ") A menina só voltará a falar no decorrer do dia seguinte. A família Pujol volta seguidamente à gruta onde a pequena Marie arma uma espécie de altar, numa depressão do rochedo. Um dia, ao voltar da gruta, ela declara muito séria, ao pai: - Papai, você não ama a mamãe; a Santíssima Virgem disse-me que você faz a mamãe sofrer. A mãe de Marie, ao contar isto cerca de vinte anos mais tarde, revela que, a partir do nascimento da filha, o marido começou a desprezá-la e passaram, então, "a viver como irmãos". O pai de Marie, convicto da autenticidade da ordem divina, decide-se novamente a cumprir seus deveres conjugais, nascendo-lhes desse reencontro uma terceira criança, uma menina. É Marie que, certo dia, na casa de seu pequeno "confrade" Labayle viu o diabo com seus chifres...

O que acontece no Vale de Batsurguère Contudo, dentro em breve surge um clã rival ao dos meninos de Lourdes, formado pelas crianças do vale próximo, o de Batsurguère, onde se localizam as aldeias de Ossen, Omex e Segus. Têm por chefe o menino Laurent Lacaze, que está com dez anos e a quem chamam de Mengellate, nome da fazenda onde vive. Afirma ter recebido a missão de retirar a Virgem da gruta a fim de levá-la para o seu vale... Às vezes o menino põe-se diante de uma cruz erguida no centro de sua aldeia, Ossen, e ali começa a pregar em francês fluente, ele, que

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todos sabem, só fala o dialeto. Diante das multidões assombradas declara: - Eis o instrumento da Redenção! Mas, na maioria das vezes, fica em sua casa, onde inúmeros "fiéis" vão vê-lo. Tão logo entra alguém, apanha o terço e ergue-o até alcançar a altura de um buraco na parece, onde, um dia, viu surgir a aparição: - Assim que entravam, ele apanhava os terços e erguia-os junto à parede. Acho que todos os terços da aldeia foram suspensos por ele. - Relatará mais tarde a Sra. Madeleine Bas, mulher do prefeito de Ossen. Madeleine Bas julga que naquele tempo "fazia-se tudo seriamente, como na igreja". E narra uma das noites passadas ao lado do menino Mengelatte: - Ficamos ali uma parte da noite enquanto o garoto dormia. Cantávamos o Magnificat e outras músicas sacras, outros recitavam o terço, ajoelhados ao lado da parede, na direção do local da aparição. Havia ali algumas velas acesas. Se alguém duvidava, não era com relação às visões, às aparições, nem aos êxtases, duvidavam apenas se vinham do diabo ou do Bom Deus... Madeleine Bas conta que à noite, quando velou e rezou no quarto do menino Mengelatte adormecido, as mulheres que ali se achavam fizeram uma coleta - cada uma dava um centavo - com a finalidade de celebrar uma missa "para saber se aquilo vinhs de Deus". O cura de Ossen, Jean-Pierre Junca, fica profundamente embaraçado. Celebra a missa encomendada, mas logo depois parte para Tarbes a fim de pedir conselho ao bispo. Ao voltar; manda chamar o menino Mengelatte e leva-o até o prebistério. Contudo, soubemos que "a aparição o seguiu até ali": - Quando o menino via a aparição - conta a mulher do prefeito de Ossen - o abade Junca atirava água benta. E imediatamente o garoto via a aparição se retirar... e fugir para o telhado da granja.

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Uma Estranha Procissão na Montanha

E eis que num certo dia, mulheres, crianças e velhos das três aldeias do vale de Batsurguere, formam uma procissão e rumam para Lourdes e Massabielle. As crianças estão num estado de excitação fora do comum: - Oheul Oheul Qu'a tiei! Qu'a tiei! ("Vou pegá-la! Vou pegá-la!”) - gritam. Fazem gestos como se fossem agarrar uma borboleta invisível. Aparentemente já não sabem mais onde estão e perdem a consciência daquilo que os rodeia. Diversos testemunhos comprovam que os adultos que os seguiam tinham que vigiá-los e contê-los, pois caso contrário, comenta-se, teriam despencado dos rochedos ou caído no Gave na caçada à borboleta sobrenatural. Logo chegam a Massabielle. As crianças não só vêem a aparição, que chamam é petit ("o menino" ou "a menina"), como também esta lhes fala. - Nós todos - conta Jean-Pierre Dulac - que no momento destes estranhos acontecimentos estava com cinqüenta e oito anos - acreditávamos que era a Santíssima Virgem. Eles não qualificavam este objeto. Isto prolongou-se por mais de uma hora. Não nos aborrecíamos. Orávamos quando nos retiramos, a visão precedeu-os e durante todo o caminho de volta eles corriam para cá e para lá, iam e vinham, e gritavam: - Qu'ei aci, qu'ei aquiou” ("Ela está aqui, ela está lá!") Perguntávamos às crianças: - O que estão vendo? - Uma coisa linda - diziam, sem deixar nada claro. E nós pensávamos: é a Santíssima Virgem. Todos nós sentíamos uma grande alegria, rezávamos a Deus e cantávamos litanias. Quando essa estranha procissão chega de volta ao vale, os adultos insistem em saber o que a aparição disse. Antes de responder-lhes,

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as crianças vão cantar litanias, fazer algumas preces e rezar o terço. No lugarejo chamado Omex, diante da cruz erguida no centro da aldeia, o pequeno Pitchouli, tenente de Mengelatte, manda todos pararem e faz um verdadeiro sermãozinho. - Deus não está contente conosco - diz o menino. - É preciso fazer penitência. Não esqueçam as orações da manhã e da noite. E não trabalhem mais aos domingos. Os adultos estão ajoelhados e vários dentre eles choram... Em Ossen, sob a influência de Pitchouli e de Mengelatte, a exaltação das crianças vai prolongar-se por vários dias: As crianças - relatará posteriormente o cura de Ségus - estavam como que obcecadas por esta aparição. Pelas ruas e nas casas, corriam atrás dela, procurando agarrá-la, enquanto gritavam: 'Qu'ei assi!' (Ela está aqui!) A aparição surgia sobre uma cornicha, sobre uma viga etc. Os pais acreditavam em parte nessas maravilhas por amor-próprio. As crianças berravam, e estavam desnorteadas com relação ao próprio comportamento. Atiravam-lhe objetos para benzer... Finalmente, o abade Jean-Pierre Junca, cura de Ossen, traz de Lourdes uma medalha de São Bento. E prende-a na parede da casa dos Mengelatte, "no lugar onde a aparição geralmente surgia". E a aparição cessou. E os pais do menino Mengelatte ficaram muito aborrecidos... O Enviado Especial de Deus e da Santíssima Virgem

Portanto, não é de causar espanto se sob esta atmosfera de sobrenatural manifestem-se algumas personalidades profundamente estranhas e esquisitas. A mais surpreendente é, sem dúvida alguma, a de um certo "mago", Jean Marre, que numa quarta-feira, 12 de maio, véspera da Assunção, aparece em Massabielle, todo vestido de branco, exceto o chapéu, cinzento com fitas de veludo negro. Tem cabelos e barbas negras, muito compridos e fartos. Declara-se enviado especial de Deus e da Santíssima Virgem que, diz ele,

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delegaram-lhe plenos poderes, há dezesseis anos - poder de converter os pecadores. Declara que os fenômenos naturais, os tremores de terra, o raio, o granizo, a chuva, assim como as moléstias e a morte, obedecem ao seu comando. É ele, anuncia, que atirou as pragas que devastam a vinha e as batatas. Se se continua a "entravar a religião", destruirá da mesma forma o trigo, o milho, as frutas e os legumes, E veio até Lourdes, revela, a fim de castigar aqueles que mandaram retirar os objetos depositados na gruta de MassabieIle por devotos peregrinos... Após este estranho sermão, ruma para um cabaré de Lourdes, onde recomeça a desfiar seus vaticínios. O comissário Jacomet, ao saber do fato, dirige-se pessoalmente para onde se acha o "profeta". Este ameaça-o de destituição do cargo que ocupa, comunica que o prefeito cairá gravemente enfermo, que o procurador imperial vai perder seu lugar e ficar paralítico, que uma epidemia de peste se alastrará em Lourdes etc. No entanto, Jean Marre afirma que todos estes males poderão ser evitados se se construir, rapidamente, uma capela na gruta. O Comissário prende-o e leva-o até a presença do procurador: então ele se mostra de uma "irreverência extrema", O magistrado conclui simplesmente que esta exaltação "incandescente" nada mais é do que o resultado dos "vapores do vinho". No dia seguinte, um tanto desiludido, o profeta se digna a revelar que é natural da cidade de Maubourguet, onde exerce oficialmente a dupla profissão de agricultor e empreiteiro de obras: "Ele afirma - conta o procurador ao seu superior em Tarbes - que há muito tempo mantém comunicação freqüente com as forças superiores, Deus e a Santíssima Virgem, que lhe apareceram e lhe aparecem quando ele o deseja e que lhe deram a faculdade de realizar milagres."

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"Os Anjos e os Arcanjos realizam minhas vontades"

O profeta de Maubourguet traz sempre consigo um caderno onde começou a escrever a sua própria bíblia. As linhas iniciais deste texto bastante estranho, como bem o podemos imaginar, misturam de modo ágil a tradição cristã e a exaltação taumaturga: o irracional triunfante daquela época, ao penetrar neste cérebro fraco, perturbou-lhe o equilíbrio. Contudo, trata-se de um testemunho precioso sobre estas correntes irracionais tão poderosas e tão pouco conhecidas do século XIX: Maubourguet viu-me nascer. Devo minha vida a pais que se achavam em ótima situação. A morte prematura de meu pai, a pouca experiência de minha mãe e uma série de circunstâncias tristes forçaram-me, aos doze anos, a procurar um trabalho em Petitou, conhecida como Planté Labatut. Seria inútil referir-me, agora, ao abandono que experimentei a partir daí, por parte de minha mãe, e devido às privações que enfrentei. Não me reportarei aos efeitos das perseguições injustamente dirigidas contra mim. Deixarei cair no silêncio as vigílias, os desgostos que uma conduta deste tipo levada a cabo por homens rancorosos, ciumentos e pérfidos me fizeram padecer. Salve, bendito o dia em que, tão brilhante quanto a aurora, a liberdade sorriu para a França. Vitorioso na luta, eu lhes perdôo os males que me causaram. Devo ao esquecimento das injúrias sofridas a proteção que o céu se digna me proporcionar. De que fonte esgotei esta paixão pelo bem-estar de todos, apanágio exclusivo das almas sensíveis? Da fonte divina. Conhecedor dos segredos da Providência, tenho o poder de dispor, a meu grado, do bem e do mal, a fim de fazer com que o homem maligno volte aos caminhos do Senhor... Tenho o poder de predizer o futuro. Ah! é uma felicidade imensa: é a Virgem querida quem me diz, no parlatório: "Ouça, é sua amiga,

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escute bem a sua voz". É ela quem me inspira. É ela quem me desvenda todos os segredos. Tenho o poder de curar todos os males, tanto nos homens como nos animais. Escute-me, francês, a testa enfiada na terra. Utilizarei o granizo, a geada, a seca a fim de trazer o homem de volta aos caminhos da justiça. Tenho ao meu dispor os quatro elementos, a água, o ar, a terra e o fogo. Os anjos e arcanjos estão sempre prontos para executar meus desejos. Protegido de qualquer mal, nada poderia impedir o meu avanço. A morte faria bem em me tocar com sua mão gélida: eu não recuaria nunca. Senhor, fazei com que os homens saibam, por meio de meus milagres, que me enviastes à terra apenas para Vossa glória e para o bem deles. Assim seja. Em 1848, ele tinha enviado, por meio de diversos jornais, um "Aviso aos homens de Estado", assim redigido: "Comunico-lhes que o fim do mundo deve chegar por um descomunal tremor de terra. Eu dou as ordens na qualidade de profeta enviado por Deus. Ordeno que a calma reine na França - que Luis Napoleão seja nomeado imperador pelo voto do povo francês. Caso minhas ordens não sejam executadas, correrei até a capital para ali declarar a guerra e a pilhagem. Imobilizarei o sol e a lua e a desgraça cairá sobre o povo que será aniquilado. Caso minhas ordens sejam executadas, darei anistia a todos aqueles que a merecem. O ouro e a prata circularão". E assina: "Marre, profeta". Intervenção de Satanás ou Exaltação da Imaginação?

Não devemos imaginar que acontecimentos tão extraordinários tenham tumultuado os crentes daquela época nem lançado dúvidas no seu espírito a respeito da autenticidade da visão de Bernadette. A sua posição está maravilhosamente firmada neste artigo de uma pequena publicação católica chamada A Roseira de Maria:

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"O aparecimento de novos visionários, a nossos olhos, nada tem de assombroso. O Demônio, constatando a impossibilidade de bloquear a fé e a confiança das populações, não encontrou nada melhor do que intervir diretamente. Ao examinarmos a história dos acontecimentos milagrosos encontramos sempre uma contrafação do demônio para dar troco, perturbar os espíritos e afastar à confiança daquilo que vem de Deus... Tais visionários, longe de afastar a verdade da visão da jovem Bernadette, confirmam-na. São a nosso ver, uma prova a favor da Aparição, porque indicam uma oposição da parte de Satanás, que só pode explicar-se pela veracidade deste acontecimento. " Porém, o ponto de vista dos teólogos é diverso: eles reconhecem, como explica o padre Laurentin, que o demônio encontrou um "terreno favorável" em Lourdes, naquele período, mas sua ação consistia numa "sugestão sobre a imaginação". Os visionários, contemporâneos de Bernadette, não são, contudo, considerados como "endemoniados". São as vitimas de um "jogo febril da imaginação", de "vaidade exibicionista", de "imitações grotescas", exceção feita a Marie Courrech, em quem o "processo se desenrola durante o prolongamento de uma oração bem intencionada". Do mesmo modo, o Diabo que vagou em Massabielle à sombra da Virgem não passou de uma obra da imaginação...

3. O Triunfo da Igreja "Mons. Laurence conquistou, por sua sabedoria e suas virtudes, por sua habilidade e inteligência, uma posição tão elevada, tão excepcional junto à opinião pública do País, que todo o respeito, todo o prestígio que um prelado deve gozar na sua diocese já foram tributados. A elevação do abade Laurence à dignidade de bispo de Tarbes é, sob todos os aspectos, uma medida de justiça, de conveniência e até mesmo de necessidade política."

Achille FOULD, Futuro ministro de Estado e da Casa do Imperador,

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18 de abril de 1844. Será que a atração irresistível dos fantasmas místicos de uma adolescente alucinada e a permeabilidade das imaginações frágeis do povo serão suficientes para explicar o fenômeno de Lourdes? Não se pode deixar de refletir que é necessário algo mais para levar a bom termo uma operação deste tipo, que é preciso objetivo, determinação, energias... Uma vez mergulhados neste caso estranho e extraordinário sem espírito preconcebido e informado, somos surpreendidos a cada momento com a atitude indulgente, complacente e depois monopolizante do clero local O que existe por trás disto? Antes de mais nada, o abade Peyramale, o cura de Lourdes. Seria de espantar que, em nenhum momento, desde os primeiros instantes dos acontecimentos, ele não tivesse manifestado nem dúvidas, nem oposição. Muito pelo contrário. O "ardor irrefletido" dos vigários do abade Peyramale

A 9 de março, ao término da quinzena prodigiosa, mas antes da revelação da lmaculada Conceição, o abade Peyramale escreve a seu irmão declarando que as aparições de Lourdes constituem "um fato divino ou um fato psicológico, estranho talvez, e que a ciência terá muito trabalho para explicar". Durante o correr dos acontecimentos precedentes, a única vez que se mostra um tanto contrafeito com Bernadette é a 27 de fevereiro, o dia do "'aparecimento" da fonte, quando a repreende: - Soube que comeu relva, como os animais! Demonstra interesse profundo pelas curas milagrosa, bem mais do que pelas próprias aparições. Vimos, por exemplo, que desde o início mostrou-se favorável ao caso de Eugénie Troy e que, já no princiípio de abril, decantava as virtudes da fonte:

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- Depois disso, somos forçados a reconhecer que a água desta gruta possui propriedades naturais até agora desconhecidas, ou uma propriedade sobrenatural concedida por Deus. Aliás, as autoridades civis vão dar-se conta de imediato que o abade Peyramale e seus vigários, o abade Pomian, confessor de Bernadette, e o abade Serres, longe de denegrir as visões da jovem e de se opor aos movimentos de fé popular, deixam o barco correr e, às vezes, dão até a impressão de favorecê-los. Também constatamos que Vital Dutour, o procurador de Lourdes, acusa o cura de ter-se deixado "enganar por informações que não tinha verificado com bastante cuidado" e de ter ficado "por demais impressionado por eventos aos quais teria refutado todo valor caso tivesse confiado menos no discernimento e na condição moral das pessoas que os reportaram". E o mesmo Vital Dutour manifesta-se contra os vigários do abade Peyramale, acusando-os de darem provas de um "ardor irrefletido": - Membros de suas famílias e seus penitentes freqüentam com assiduidade a gruta e, de certa forma, tomaram posse dela - declara alto e bom som. E ainda estamos a 2 de abril, no momento em que o procurador faz suas acusações...

Um meio providencial para reavivar o sentimento religioso

Contudo, o grande combate dar-se-á entre o bispo, Mons. Laurence, e o prefeito Massy. As hostilidades começam no dia 17 de abril quando o prefeito solicita, oficialmente, a ajuda do prelado: - Vossa Reverendíssima há de reconhecer diz ele - que é conveniente pôr termo a essa exaltação que vem ocorrendo em Lourdes e... venho lhe pedir para valer-se da influência da autoridade eclesiástica no sentido de fazer cessar, sem tumultos, um estado de coisas que só pode desservir o interesse da religião.

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E o que faz o bispo? Aconselha, não resta dúvida, ao abade Peyramale, que oriente seus vigários a serem mais prudentes e reservados, mas, ao mesmo tempo, manda o vigário geral, o cônego Fourcade, procurar a própria mãe do prefeito, a Sra. Massy, muito favorável aos acontecimentos da gruta, a fim de que essa "santa mulher" possa fazer "algum bem em sua casa". Quanto ao prefeito, envia-lhe uma resposta bastante reticente, na qual afirma com clareza: - Creio no sobrenatural. No final do mês de abril, o procurador geral Falconnet, de Pau, superior hierárquico dos magistrados dos Altos- Pireneus, analisa com uma lucidez fora do comum o grande projeto secreto de Mons. Laurence ao declarar ao ministro da Justiça: - O Monsenhor de Tarbes poderia, sozinho, atuar sobre seu clero de modo enérgico, direto e sem rodeios, a fim de terminar com o grande escândalo. Mas o fará? Trata-se de um homem leal, dotado de autoridade e decisão. Mas não é de supor que ele se deixe influenciar por esse engano do clero, que considera este acontecimento, verdadeiro ou falso, um meio providencial, um pensamento inspirado por Deus a uma criança, cuja finalidade é reavivar o sentimento religioso? Após o fechamento da gruta, Mons. Laurence esperará o mês de julho para dar, finalmente, seu golpe de mestre: o célebre decreto de 28 de julho.

"Negar o sobrenatural é abjurar a religião cristã" Neste texto de importância capital para a história de Lourdes, Mons. Laurence resume, antes de mais nada, com uma brevidade fascinante, o conteúdo e o sentimento dos acontecimentos: A partir de 11 de fevereiro passado aconteceram alguns fatos de alta gravidade ligados à religião e que perturbam a diocese e repercutem ao longe.

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Bernadette Soubirous, jovem habitante de Lourdes, de quatorze anos de idade, teria tido algumas visões na gruta de Massabielle, localizada na região oeste desta cidade. A Virgem lmaculada ter-lhe-ia aparecido. Ali teria jorrado uma fonte. A água desta nascente, usada como bebida e como loção, teria operado um grande número de curas. Estas curas seriam consideradas milagrosas. Inúmeras pessoas foram e ainda vêm pedir a esta água a própria cura, sejam elas pessoas de nossa diocese, sejam de dioceses vizinhas... A autoridade civil está assombrada e, a partir do mês de março passado, solicita que a autoridade eclesiástica se explique a respeito dessa peregrinação improvisada. O que Monsenhor Laurence vai declarar, após esse preâmbulo solene, corresponderá a essa expectativa. Ora, o bispo de Tarbes, lançando mão de algumas reservas de praxe (deseja uma "discussão ampla, sincera, conscienciosa, iluminada pela ciência e pelo progresso"), assume, nitidamente, uma posição favorável à autenticidade das aparições e à realidade dos milagres. Na verdade ele declara: "Negar a possibilidade de fatos sobrenaturais é seguir uma escola decadente, é abjurar a religião cristã e arrastar-se na trilha da filosofia incrédula do século passado." E acusa, com severidade, as "pessoas que negam a Deus o poder de fazer exceções às regras gerais que Ele estabeleceu para governar o mundo". Monsenhor Laurence comunica que será criada uma comissão episcopaI com o objetivo de examinar as aparições e as curas milagrosas, mas enquanto aguarda a execução de seus objetivos não faz nenhuma restrição, não pronuncia nenhuma proibição provisória, não expressa nenhuma oposição às "peregrinações improvisadas..." É como, se ele anulasse as decisões administrativas concernentes ao fechamento da gruta e permitisse a cada um desobedecê-las sem impunidade religiosa.

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Agosto de 1859: Napoleão III e Eugênia em Lourdes

Monsenhor Laurence, graças a algumas manobras hábeis, realizadas tanto naquela região como em Paris, sobretudo com a ajuda do ministro Achille Fould, seu amigo particular, conseguirá arrasar com o infeliz Massy, que desde o final do ano de 1858 encontrava-se bem longe dali, em Isere. É com tristeza que seu sucessor, de nome Garnier, constata que a "influência do clero no departamento dos Altos-Pireneu é incontestável". Ele prediz ao seu ministro do Interior, Delangle, o próximo sucesso da "lenda", da "ignorância" e da "superstição", uma vez que o clero nada faz para opor-se às devoções e às peregrinações. Contudo, o grande triunfo de Monsenhor Laurence, vitorioso sem reservas sobre todos os inimigos civis ou religiosos de Bernadette e de Massabielle, ocorre quando, em agosto de 1859, o imperador Napoleão III vem a Lourdes pessoalmente! Na quinta-feira, 18 de agosto, o prelado recebe o imperador e seu séquito, em Tarbes. No seu discurso sublinha que, se "Napoleão I reconstruiu nossos altares, Napoleão III consolidou-os". Agradece ao soberano por ter concedido à Igreja "as prerrogativas que lhe eram caras e das quais já não se valia há três séculos", o que permite à sociedade francesa tornar-se "mais cristã, mais moralizada e mais estável". Na manhã seguinte, Napoleão III e Eugênia permanecem em Lourdes onde são acolhidos "com um entusiasmo impossível de ser descrito". Suas Majestades Imperiais não vão a Massabielle, porém, pública e longamente, dialogam com o abade Peyraniale. Aliás, é ele, e não o prefeito, nem o subprefeito, que pronuncia o discurso de boas-vindas -coisa bastante significativa. Napoleão III, elevado ao trono por um referendum triunfal que soube suscitar em seu favor, sabe muito bem o que representa a opinião pública. Aqui em Lourdes, nesse mês de

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agosto de 1859, sua intuição não o engana, compreende claramente a importância profunda do acontecimento. Porém, qual o significado de tudo isto? Por que toda esta conivência ativa do clero pirenaico, em todos os escalões da hierarquia, com esta pastorinha raquítica, sonhadora e inculta?

O Dogma da Imaculada Conceição Antes de mais nada é preciso saber que esse ano de 1858 possui um sentido todo especial na história do catolicismo do século XIX: o papa Pio IX declarou-o ano "jubilar"; Extraído da tradição hebraica que o proclamava a cada quarenta e nove anos, o rito do jubileu cristão, instituído a partir de 1300, tem como objetivo celebrar um "ano santo" a intervalos regulares mas muito espaçados. Inicialmente a cada cem anos, em seguida a cada cinqüenta anos, finalmente a cada vinte e cinco anos. Desde 1470, os jubileus chamados "comuns" caem nos anos 00, 25, 50 e 75. Mas o papa sempre pode proclamar um "ano santo" extraordinário, fora desse calendário. Foi exatamente isto que fez o papa Pio IX com relação ao ano de 1858. Por quê? Para marcar, através de uma grande solenidade e um amor filial acentuado, o grande evento de seu reinado pontifical: a proclamação de um novo dogma? O da lmaculada Conceição, proclamação feita a 8 de dezembro de 1854. Segue-se o texto original em latim, seguido da tradução em português: Auctoritate Domini nostri Jesu Christi, beatorum apostolorum Petri et Pauli ac Nostra, declaramus, pronunciamus et definimus doctrinam, quae tenet beatissimam Virginem Mariam in primo instanti suae conceptionis fuisse singulari omnipotentis Dei gratia et privilegio, intuitu meritorum Christi Jesu Salvatoris humani generis, ab omni originalis culpae labe praeservatam immunem, esse a Deo revelatam, atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque credendam. Quer dizer:

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"Pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo, e da Nossa, declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina segundo a qual - por uma graça e privilégio singular de. Deus todo-poderoso e tendo em vista os méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano - e muito bem-aventurada Virgem Maria foi, no primeiro instante de sua concepção, preservada de qualquer mácula do pecado original, é uma doutrina revelada por Deus e que, conseqüentemente, todos os fiéis nela devem crer com firmeza e constância..." Aqui não é o lugar apropriado para se fazer uma análise teológica a respeito. Contudo, deve-se estar a par de que este novo dogma desencadeia, desde o inicio, oposições violentas no seio do catolicismo. Aquelas que se manifestam de modo mais forte procedem, de um lado, dos jesuítas (mas isto nada mais é do que um novo episódio deste folhetim interminável constituído pela luta entre a Companhia de Jesus e Roma) "e, por outro, dos "velhos católicos" dos países germânicos. Um de seus lideres," o teólogo Doollinger,após deploradas reticências deixadas no ar, declarará em 1874: - Nós, teólogos alemães, - explica Doellinger - temos um duplo motivo para nos pronunciarmos resolutamente contra a nova doutrina. Em primeiro lugar, a história mostra que ela deve sua introdução na Igreja a uma cadeia de intrigas e falsificações. Depois, a definição dogmática desta doutrina feita pelo papa teve, indubitavelmente, como objetivo, preparar a definição da própria infalibilidade papal..

Da Religião Cristã à Religião Mariana Por seu lado, os protestantes vêem a coisa com um olhar crítico e lúcido, mas sem paixão excessiva: "A história do culto de Maria - comenta um historiador calvinista chamado Réville – oferece um paralelo dos mais instrutivos ao da divindade de seu filho. Nos nossos dias e apesar das mais poderosas razões que a antiga ortodoxia católica podia alegar, a grande maioria

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dos católicos fervorosos declarou-se a favor do dogma da Imaculada Conceição, sem saber ao certo do que se tratava, mas antes de mais nada porque a devoção a Maria encontra mais prazer em proclamar essa doutrina do que em negá-la. A divinização gradativa de Maria, no seio da Igreja romana, segue marcha análoga, se bem que bem mais lenta, àquela que a Igreja dos primeiros séculos seguiu ao elaborar a divindade de Jesus. Maria é considerada praticamente por quase todos os autores católicos atuais como a medianeira universal: foi-lhe dado todo o poder no céu e na terra. Sou eu que o digo? Já foi feita mais de uma tentativa séria no campo ultramontano para anexar, de alguma forma, Maria à Trindade e, se a mariolatria perdurar por muito mais tempo, isto ainda acontecerá." E os sucessivos comentários pontificais a respeito do culto mariano, que tende a modificar profundamente a religião católica - a tal ponto que às vezes chega a parecer, senão uma nova, pelo menos uma outra religião - parecem dar amplas razões à análise protestante: Pio IX declara a 2 de fevereiro de 1849: "Sabeis muito bem que toda a nossa confiança repousa na Santíssima Virgem, porque Deus nela colocou a plenitude de todo o bem. Portanto saibamos: tudo aquilo que existe em nós, com relação à esperança, à graça e à saúde, emana dela. Tal é a vontade Daquele que quis" que tudo nos seja dado através de Maria." Leão XIII vai ainda mais longe: "Toda a graça concebida a este mundo aqui chega através de três níveis perfeitamente ordenados: do Pai ao Cristo, do Cristo à Virgem, e da Virgem a nós." Pio X: "É uma lei divina que obtenham a beatitude eterna somente aqueles que tiverem reproduzido em si mesmos, através de fiel imitação, a forma da paciência e a santidade de Jesus Cristo. Mas tal é a nossa fraqueza que a sublimidade deste exemplo desencoraja facilmente. Portanto, trata-se de uma atenção toda providencial, por parte de

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Deus, a de nos proporcionar um outro exemplo tão próximo de Jesus Cristo e mais semelhante à natureza humana, não obstante maravilhosamente concorde com a nossa fraqueza. É a Mãe de Deus e mais ninguém." Pio XI: "A Virgem dolorosa, ainda que designada por Jesus Cristo como a Mãe de todos os homens, recebeu-os como se lhe fossem confiados por um sentimento de infinita caridade... Que a amável Mãe de Deus digne-se a sorrir a nossos votos e a. nossos esforços, Ela que nos deu Jesus, nosso Redentor, que o ofereceu como Vitima aos pés da cruz e que através de sua misteriosa união com o Cristo e de uma graça sem par, também foi Reparadora e usa com justa razão este titulo." Pio XII: "Nosso pontificado, assim como a época em que vivemos, encontra-se sob o peso de muitas inquietações, atribulações e angústias devido às calamidades do momento e às aberrações de muitos homens que se afastam da verdade e da prática da virtude. Mas, é para nós um grande consolo ver que, enquanto a fé católica, se manifesta pública e eficazmente, a devoção para com a Mãe de Deus cresce dia a dia em vitalidade e fervor, e oferece, praticamente por todos os lados, motivos para esperarmos uma renovação de vida, mais santa. Enquanto a bem-aventurada Virgem desempenha com muito amor seu papel de Mãe em favor dos homens resgatados pelo sangue do Cristo, seus filhos são antes estimulados a uma contemplação mais fervorosa de seus privilégios... Ninguém goza de uma graça tal e nem de um poder mais amplo do que Ela, junto ao Pai ceIestia!" E a 8 de dezembro de 1942, Pio XII consagra a Igreja a Maria. Porém, em 1858, ainda não se chegou lá: o novo dogma ainda é frágil e mal aceito. Precisa ser fortalecido e consolidado nos corações e nas almas. Como?

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"Menos de quatro anos após a definição do dogma - lemos no Dicionário de teologia católica de Vacant e Mangenot, que data do inicio do sécUlo XX - sobreveio um acontecimento que contribuiu de modo extraordinário para a extensão e a popularidade do culto (da lmaculada Conceição): de 11 de fevereiro a 16 de julho de 1858, a Bem-aventurada Virgem apareceu dezoito vezes à humilde jovem de Lourdes... Bernadette Soubirous."

1830: a Virgem aparece na rua du Bac, em Paris Portanto, Bernadette não possui nem a exclusividade, nem a iniciativa das aparições da Virgem: sem contar a visionária alemã Catherine Emmerich (1774-1824), que anunciou ao mundo que a casa onde morreu a mãe do Cristo encontra-se em Éfeso (foi organizada uma peregrinação até o local, e outras continuam sendo realizadas); na França, neste século XIX, duas aparições famosas já tiveram lugar. Paris, 1830. Na noite de 18 para 19 de julho, quando germinam ocultamente as primícias da Revolução e das Trois Glorieuses, uma corajosa irmã de São Vicente de Paulo, de origem camponesa, Catherine Labouré, dorme o sono dos justos no seu quartinho de religiosa, pegado à capela da rua du Bac. De repente, desperta, e ao abrir os olhos vê, junto ao seu leito. uma criança bem pequenina, de cinco a seis anos, que a sacode e chama: - Venha depressa à capela - diz o menino misterioso -, a Santíssima Virgem a espera. Venha, estão todos dormindo. Catherine levanta-se, veste-se apressada e segue a criança. Diante deles as velas acendem-se e as portas abrem-se. Ei-los dentro da capela. A jovem religiosa ajoelha-se. Ouve-se um rumor quase que imperceptível. Eis a Santíssima Virgem - anuncia a criança angelical. E, mais tarde, Catherine Labouré relatará o que se passou então: Dei um salto. A Santíssima Virgem senta-se. Apóio minhas mãos sobre seus joelhos. Ela me diz: 'Minha filha, o bom Deus deseja

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confiar-lhe uma missão. Encontrará dificuldades, mas há de vencê-las pensando que é para a glória de Deus. Tenha confiança. Os tempos estão ruins, desgraças irão se abater sobre a França, o trono do rei será derrubado. O arcebispo morrerá, a cruz será ameaçada, o sangue correrá pela ruas; o mundo inteiro mergulhará na tristeza. Perguntei: Quando acontecerão tais coisas? Ela responde-me: Dentro de quarenta anos... Venha rezar aos pés deste altar, aqui as graças serão estendidas aos grandes e aos pequenos. Fiquei aos pés da Virgem não sei por quanto tempo. Ai, o menino me diz: Ela já se foi. Eram duas da madrugada, voltei para minha cama, mas não consegui mais dormir.

"A França e o mundo inteiro mergulharão na tristeza" Catherine Laboure verá a Virgem mais duas vezes: a 27 de novembro e no inês de dezembro desse mesmo ano de 1830. A 27 de novembro, encontra-se ela na capela, mergulhada em orações e meditações: "No silêncio profundo, - diz ela - tive a impressão de ter escutado um ruído ao lado do púlpito e vi a Santíssima Virgem. Estava de pé. Vestia: uma roupa branca, comprida, um véu branco cobria-a. Tinha os pés apoiados sobre uma bola branca e sob elas uma serpente esverdeada com manchas amarelas. Tinha um semblante maravilhoso, mas não seria capaz de descrevê-lo. Estendeu os braços. Havia alguns anéis em suas mãos, três em cada dedo, cobertos por pedrarias que lançavam raios que iam se alargando. Olhou-me e escutei: Esta bola que está vendo representa o mundo inteiro, especialmente a França e cada pessoa em particular... Estes raios são os símbolos das graças que eu derramo sobre aqueles que me solicitam... Neste momento - prossegue Catherine Labouré - formou-se um quadro ao redor da Santíssima Virgem com estas palavras escritas em letras de ouro: Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que

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recorremos a Vós. E uma voz me disse: Mande cunhar uma medalha igual a este modelo, todas as pessoas que a usarem receberão grandes graças. Neste instante o quadro virou-se e vi o monograma da Virgem encimado por uma cruz; e embaixo havia os dois corações, de Jesus e de Maria, um envolto em espinhos, o outro trespassado por um gládio. Circundando o conjunto, viam-se doze estrelas. E durante o correr de dezembro, no final de uma tarde, a Virgem aparece pela terceira vez à jovem religiosa. Segura o globo nas mãos e declara: "Minha filha, esta bola representa o mundo inteiro, especialmente a França e cada pessoa em especial." Torna a repetir: "A França... o mundo inteiro mergulhará na tristeza... Estas pedras que não lançam raios, são as graças que as pessoas se esquecem de me pedir." Catherine Labouré só contará estas visitas ao seu confessor, e é ele quem assumirá a responsabilidade de obedecer à ordem da Virgem, isto é, fabricar e distribuir a medalha milagrosa. Duas crianças da Provença e uma linda senhora que

chora Afinal de contas, o fato de um personagem divino aparecer a uma religiosa está longe de ser coisa rara na história do cristianismo: o Cristo, os apóstolos, os santos, os arcanjos, freqüentam os conventos há séculos. Isso não mais inflama as imaginações populares... Em compensação, a aparição da Virgem a pessoas do povo, aos pobres, aos ignorantes, aos miseráveis vai ser uma espécie de revolução religiosa. Contudo, o "inventor" pertence ao Novo Mundo, aquele índio mexicano do século XVIII que viu surgir diante dele uma maravilhosa princesa asteca e nela reconheceu a Virgem Maria... Tratava-se de Nossa Senhora de Guadalupe, que se tomou a padroeira da América Latina e cuja aparição marca, realmente, a conversão em massa de todo o subcontinente.

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Setembro de 1846. Numa pastagem árida nos Altos Alpes, em Salette, dois pequenos pastores, Mélanie e Maximin, tomam conta de seus carneiros. Ao meio dia, junto a um riacho, comem uma frugal refeição, composta apenas de pão e queijo, em seguida deitam-se para a sesta. Quando despertam, ficam assombrados por não verem mais o rebanho. Correm de cá para lá à procura dos carneiros desgarrados. De repente, Mélanie solta um grito: - Olha, Maximin, olhe aquela luz imensa lá embaixo! É uma bola luminosa que logo se entreabre e revela uma forma humana. Esta sai da bola e senta-se sobre uma grande pedra. As crianças notam que se trata de uma "bela dama" - uma bela dama que chora sob um diadema refulgente. Mas, logo depois, ela se levanta: - Venham aqui, meus filhos - diz ela aos dois pequeninos provençais - não tenham medo, estou aqui para lhes revelar uma grande notícia. Começa a falar, mas em francês. Notando que Mélanie e Maximin não a compreendem, recomeça a falar em dialeto: "Se o meu povo não quer se submeter, sou obrigada a soltar o braço de meu Filho, ele é tão pesado que não posso agüentá-lo... Já faz muito tempo que padeço por vocês! Se quero que meu Filho não os abandone, tenho que lhe rogar sem cessar e vocês nem se importam. Vocês devem rezar muito, agir bem, mas ainda assim nunca poderão recompensar o trabalho que tive por vocês... Dei-lhes seis dias para trabalhar, reservei-me o sétimo e não me querem dá-lo, é isto o que toma pesado o braço de meu Filho..." A Virgem continua: "Aqueles que dirigem as charretes não sabem jurar sem meter o nome de meu Filho no meio. Estas são as duas coisas que tomam mais pesado o seu braço." E prossegue: "Se a colheita se perde, é por causa de vocês. Haverá uma grande fome, as criancinhas morrerão entre os braços que as sustentam, as nozes ficarão amargas, as uvas apodrecerão." Ela continua falando, mas Mélanie já não a escuta mais, depois é Maximin que a vê falar e não a ouve mais.

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Recebem cada um deles a revelação de um segredo. E a Virgem recomeça: "Vocês fazem suas orações bem direitinho?" As crianças entreolham-se, depois confessam: "Não muito, minha senhora." "Ah! meus filhos, devem fazê-lo pela manhã e à noite. Quando não puderem fazer melhor, rezem um Padre Nosso e uma Ave- Maria. Mas quando dispuserem de mais tempo, é preciso rezar muito mais." E Maria prossegue: "Só as mulheres de mais idade vão à missa, as outras trabalham durante todo o verão aos domingos: e no inverno, quando não sabem como dispor de seu tempo, vão à igreja apenas para zombar da religião. Na Quaresma vão ao açougue como cães." Isto é tudo. Maria olha para as crianças e em seguida diz simplesmente em francês: "Muito bem, tudo isso, meus filhos, vocês revelarão ao meu povo." E a Virgem desaparece numa nuvem que se afasta rapidamente. Deste episódio místico, de aparência ingênua e infantil, a hierarquia católica saberá extrair um sentido apologético: "O sentido da mensagem de Salette - explica por exemplo Monsenhor Guerry - são as faltas contra as leis da Igreja. Se são tão graves aos seus olhos, se atingem o coração de seu Filho bem amado e, ao mesmo tempo, o seu, é porque esta santa instituição que é a Igreja, foi fundada por Jesus Cristo, que a anima com seu Espírito todos os dias e até o fim dos tempos, e a quem confiou o cuidado de fixar, ela mesma, suas leis. A mensagem de Salette vem dar mais uma vez o significado da Igreja à nossa geração que dele tanto necessita. A mensagem de Salette convoca-nos a uma cooperação ardente de todo nosso ser com relação à missão redentora da Igreja. A Virgem Maria suplica-nos transmitir esta mensagem a todo o povo." Contudo é em Lourdes que a lmaculada Conceição, esta nova divindade cristã, segundo a acusação protestante, vai realmente se encamar e dar início ao seu reino glorioso. Graças, sem dúvida, à corijugação de três condições excepcionais: a predestinação do lugar,

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a vontade de um homem e o poder imaginativo de uma criança médium.

A Mãe de Deus surge na charneca do Diabo Antes de mais nada, deve-se saber que não era a primeira vez que a Virgem. aparecia nos Pireneus: antes de Massabielle, existe uma verdadeira tradição de epifanias marianas - e inicialmente Nossa Senhora de Garaison. Ao norte do platô de Lannemezan, no. centro da selvagem lana de boc ou "charneca do bode", assim denominada porque se acredita que o diabo ali morou e ali se praticam os sabás das feiticeiras, encontrava-se, no inicio do século XVI, uma aldeiazinha chamada Garaison. Trata-se de algumas casas aglomeradas às margens do córrego Cier. Ai vive a família Sagazan que tira o essencial de um rebanho, uma horta e um vinhedo. É a menina, de uns dez anos e chamada Anglèse, que toma conta dos carneiros. Num belo dia de primavera, em 1500 e pouco, não se sabe a data exata, a pastorinha, cansada, senta-se junto a uma fonte, à sombra de uma moita de espinheiro em flor. Está com fome, mas deve contentar-se com um pedaço pequeno e duro de pão preto. Chora baixinho de fome e de tristeza. Mas eis que, de repente, aparece diante dela uma linha senhora vestida de branco e que refulgia: - Não tema - diz a aparição à menina - sou a Virgem Maria, mãe de Deus. Vá dizer a seu pai que transmita ao reitor de Montléon o meu desejo de erguer-se aqui uma capela, pois escolhi este local para disseminar minhas graças. E, após ter dito isto, a aparição desaparece como uma névoa matinal que se dissipa ao sol nascente. Anglèse corre, apressada, para junto do pai, Guilhem Sagazan que, sem duvidar nem por um segundo da palavra da filha, abandona tudo

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e corre, por sua vez, até a casa do cura de Montléon. Este, ao contrário, demonstra um grande ceticismo. Na manhã seguinte, quando Anglêse encontra-se no mesmo local, perto de seu espinheiro em flor, eis que a Virgem lhe aparece pela segunda vez. A pastorinha relata a missão frustrada de seu pai junto ao reitor de Montléon. E a Virgem renova seu pedido. Desta feita ficam todos assombrados, a gente do vale e das redondezas... E ao terceiro dia, parentes e vizinhos acompanham a pequena Anglèse até o seu espinheiro. Não se vê nada, porém ouve-se uma voz celestial que diz: - Procure na sua cesta de pão aqui e em casa, também. Anglèse enfia a mão na sua cesta, como acaba de lhe ser ordenado e, oh milagre!, dali retira ao invés do triste naco de pão preto, uma maravilhosa trança de pão branco... E na casa de seus pais, a cesta de pão também está cheia até a boca de pão branco!

Luis XIV - criança milagrosamente curada em Garaison

Pouco tempo depois, uma primeira procissão, guiada pelo cura de Montléon, dirige-se ao local das aparições. Coloca-se ali uma cruz e pouco depois constrói-se uma capela. Os peregrinos afluem: bebem da água da fonte próxima, as curas milagrosas multiplicam-se. É necessário erigir uma nova capela, bem maior, o que é feito a partir de 1540. Sobre o altar-mor, erguido exatamente sobre o lugar da aparição, foi então colocada uma imagem de madeira representando a Mater dolorosa, tendo sobre os joelhos o corpo inanimado de seu filho crucificado. Anglèse Sagazan irá se sentir atraída, por volta de 1525, pela vida monástica. Mas, por ser pastorinha do platô de Lanneniezan pobre e analfabeta, as bernardinas de Fabas, em cujo convento quer ingressar, irão obrigá-Ia a fazer um longo noviciado, tão demorado que somente em 1543 é que se tornará uma religiosa. Continuará indo

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com freqüência à capela de Garaison, onde passará noites inteiras em orações e preces. Mas os peregrinos e os fiéis presentes espreitam-na: querem tocá-Ia, chega-se até a retalhar seu hábito para conseguir relíquias. Anglèse Sagazan morrerá com idade bem. avançada, em 1582. É então que se desenrolam as guerras religiosas. Em 1590, um oficial protestante ataca Nossa Senhora de Garaison: acende uma fogueira e ali atira uma imagem em madeira da santa. Duas horas mais tarde, a tropa dos huguenotes retira-se, mas os habitantes do vale, que assistiram impotentes a esta profanação, aproximam-se da fogueira. Deu-se um milagre, a imagem está intacta! No início do século XVII, um jovem padre do arcebispado de Auch, Pierre Geoffroy, resolve dedicar-se a Garaison. Restaura a capela, organiza peregrinações, há sempre a esperança de curas milagrosas, consegue a autonomia do santuário. Sua fama aumenta sensivelmente. É assim que, por exemplo, Eléonore de Montaigne, a filha do grande filósofo humanista, doará a famosa biblioteca de seu irmão a um dos capelães de Garaison, Godefroy de Rochefort. Pierre Geoffroy, com o objetivo de tomar mais conhecido o santuário tão caro a seu coração, escreve um trabalho de vulgarização e publicidade a esse respeito, no qual, por exemplo, alista nada menos do que trinta e seis milagres! A mais prodigiosa destas curas, no século XVII, é, sem sombra de dúvidas, a de Luis XIV, menino, sobre a qual não se possui muitos detalhes. Sabe-se apenas que a mãe do jovem príncipe, Anne d'Autriche, envia para a capela de Garaison uma coroazinha e um livro de orações ricamente decorado em sinal de reconhecimento e devoção! Pierre Geoffroy também descreve as procissões detalhadamente. Os peregrinos, relata-nos ele, tão logo avistam a flecha da capela, "ajoelham-se no solo e arrastam-se, até alcançarem praticamente a porta ou o altar-mor. Austera peregrinação, tanto pela distância do caminho acidentado, que, de vários lados, - deve ter cerca de meia légua, quanto pela dificuldade da caminhada".

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Monsenhor Laurence quer preparar o povo para

"apreciar" o novo dogma A Revolução condena Garaison que permanecerá fechada e abandonada por quarenta e três anos. E quem vai ser o restaurador de Garaison no século XIX? O próprio Monsenhor Laurence! O bispo de Tarbes resgata a capela e declara: "Garaison deve ser, antes de tudo, casa de visionários, casa de devoção, asilo de piedade." E em Garaison quer uma juventude "educada à sombra do altar de Marie". O objetivo é reevangelizar a região. Monsenhor Laurence confia a realização desta pesada tarefa a um jovem padre que conhece muito bem, pois fora seu aluno no seminário de Saint-Pé, Jean-Louis Peydessus, apelidado mais tarde “O Apóstolo mariano da Bigorra". Este sacerdote, em quatorze anos, ou seja, de 1836 a 1850, realiza um número inacreditável de oitenta e duas missões pela região! A 4 de junho de 1848, tem lugar um dos pontos altos desta campanha religiosa. Nesse dia,os restos da "senhora" Anglèse, milagrosamente encontrados, são solenemente transportados para Garaison numa procissão de quarenta quilômetros! A 8 de dezembro de 1848 é fundada a "Sociedade dos padres de Nossa Senhora de Garaison", cujo objetivo consiste em fazer executar o "plano mariano" de Monsenhor Laurence e pôr em ação a divisa "Por Maria e graças a Maria". Nos regulamentos desta sociedade de padres lê-se: "A congregação destina-se aos serviços de Nosso Senhor Jesus Cristo, numa total consagração de si mesma à Bem-aventurada Virgem Maria, concebida sem pecado. Dedicada à santificação das almas através das tarefas comuns do ministério católico, a congregação se propõe, como principal objetivo, a fazer frutificar, segundo a humilde medida de suas forças, a graça contida na

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proclamação dogmática da lmaculada Conceição. Seus membros adotam, portanto, como objetivo especial, conduzir não só seus irmãos como a si mesmos. Até Jesus Cristo, até o culto e o apostolado da lmaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria. Acrescentam, em segundo lugar, a devoção às santas Dores da Mãe de Deus e a São José, padroeiro da Igreja universal. A Congregação envidará esforços para extrair do Coração imaculado da Mãe misericórdias, e principalmente caridade para com as almas, assim como para dar a si própria um espírito sadio e um caráter de família religiosa." O objetivo "político" desta operação tão cuidadosamente planejada é revelada de forma clara, pelo próprio padre Peydessus, ao recomendar aos padres de Garaison "fazer compreender e amar a lmaculada Conceição e conduzir o povo a estender o grande acontecimento da promulgação dogmática do dia 8 de dezembro de 1854". No final do século XIX, um célebre pregador capuchinho, o padre Marie-Antoine, afirmará que Garaison é a "prefiguração de Lourdes". Em-1880, ele declarará liricamente na gruta de Massabielle: "Sem dúvida, já naquela época (refere-se ele ao despertar de sua vocação religiosa) eu amava muito a Marie! Contudo ainda não tinha visto minha Mãe, escutado minha Mãe, ainda não tinha sentido seus beijos maternais. Em Garaisón, pela primeira vez em minha vida, encontrei minha Mãe, compreendi o que significava amar apenas minha Mãe do Céu!"

A renovação da prática religiosa graças ao culto de Maria

Mas ao mesmo tempo que organiza a promoção de Garaison, Monsenhor Laurence deseja incluir este antigo santuário numa estranha cadeia de "Nossa Senhora dos Pireneus": Betharram, animada pelo célebre Michel Garicoits, que também foi seu discípulo

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no seminário de Saint-Pé; Nossa Senhora de Héas, incrustada a 1500 metros no coração de uma paisagem espetacular e datando do século XIV; a seguir Nossa Senhora de Poueylaün, próximo a Arrens; e mais Nossa Senhora de Pietá, a seis quilômetros de Tarbes, Nossa Senhora de Sabart, próximo a Pamiers - todos eles lugares considerados mais ou menos legendários, favorecidos por aparições da Virgem Maria. As coisas correm como se o bispo de Tarbes procurasse encontrar o melhor santuário mariano da região dos Pireneus. Após os acontecimentos de Louro des, durante a primavera de 1858, não estará mais em questão esta cadeia mística. Finalmente, Monsenhor Laurence descobriu seu porto seguro. Um escritor católico escreve de modo uniforme e sem rodeios numa biografia de Jean-Louis Peydessus: "De fevereiro a julho de 1858, aqueles que foram os primeiros a acreditar na realidade das aparições de Lourdes, aqueles que, em Massabielle, honraram a lmaculada antes de todos os outros, com orações, aqueles que, contra ventos e marés, mantiveram-se diante da gruta, apesar das autoridades oficiais, apesar das pressões policiais e, finalmente, conseguiram vencer todas as dúvidas e todas as oposições, são as pessoas boas de Bigorre. As multidões que assediaram a gruta a partir do instante em que começaram as aparições eram, no inicio, habitantes dos Pireneus e, em grande maioria, procedentes de Bigorre. Ora, são essas as pessoas que o padre Peydessus e os missionários, influenciados e animados por ele, tinham reunido, ao preço de muito suor e fadiga para a prática religiosa, através do culto de Maria. Eles tinham enchido o coração popular com o mais temo amor pela Mãe de Deus e é, desta forma, que alcançaram o movimento irresistível na gruta de Massabielle." Portanto, não é de espantar que, em 1866, Monsenhor Laurence convoque para o serviço da gruta de Massabielle os padres de Garaison e, especialmente, o padre Sempé, cuja vida, de 1866 a 1889, confunde-se com a de Lourdes.

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Zola acusa o abade Ader de ter manipulado

Bernadette E Bernadette? Pois todas estas conjunções de fatos e de vontade não teriam podido surgir se Bernadette não se encontrasse lá. E a grande questão que surge, dentro da perspectiva da teoria desenvolvida nesta obra, é: a pastorinha analfabeta e asmática foi manipulada? Existem dois argumentos importantes que podem permitir uma resposta positiva a esta inquietante pergunta. Se Monsenhor Laurence, na época, vigário geral do arcebispado e superior do seminário de Saint-Pé, é nomeado bispo em 1844, em decorrência da morte do titular do posto, Monsenhor Double, foi devido a uma série de inúmeras petições que pesaram no resultado, na decisão dos responsáveis. Ora, o que encontramos na origem destas petições? Uma certa Senhora de La Fitte, proprietária do domínio de Savy: é nesta propriedade que se localiza o moinho onde o pai de Bernadette trabalhará por algum tempo antes de se tornar um simples operário (aliás, permanece o tempo suficiente neste emprego para que seus filhos, segundo o costume da época, tomem o seu nome. Em numerosos documentos há referências a Bernadette Savy e não Soubirous) e onde, por outro lado, está situada a gruta de Massabielle... Há uma coincidência, pelos menos curiosa. Será que a Senhora de La Fitte e Monsenhor Laurence conversaram a respeito de Bernadette? Se este for o caso, de que modo a atenção desses importantes personagens teria sido atraída para essa humilde adolescente? É neste ponto que intervém uma pessoa misteriosa e pouco conhecida: o abade Ader, cura de Bartres, a comuna onde Bernadette trabalhava como pastora para sua ama de leite. No final do século passado, Emile Zola, famoso pela arte de levantar suspeitas, se é que havia alguma..., acusou frontalmente o cura, Ader de ter realizado, na adolescente de psiquismo tão frágil, aquilo que nós classificaríamos

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atualmente de lavagem cerebral, e de têla levado, sabiamente, à alucinação de 1858... No seu livro intitulado Lourdes, publicado em 1894, meio romance, meio documentário, o grande escritor explica inicialmente que, vitima da avareza de sua ama de leite, Bernadette jamais foi mandada à escola da aldeia de Bartres. E que apenas aos quatorze anos começa a aprender o catecismo (ela prosseguirá esse estudo em Lourdes, conforme já vimos) com o abade Ader: O padre - conta Zola - gostava muito de Bernadette. E referia-se muito a ela junto a seu professor. Dizia-lhe que não conseguia vê-la sem recordar-se das crianças de Salette, uma vez que estas crianças deviam ter sido simples, boas e piedosas como ela, para que a Santíssima Virgem lhes aparecesse. Certa manhã, estando os dois homens fora dos limites da aldeia, viram, à distância, Bernadette desaparecer com o pequeno rebanho, em meio às grandes árvores. O padre virou-se por várias vezes repetindo sempre: 'Não sei o que se passa comigo, mas todas as vezes que me encontro com esta menina, tenho a impressão de estar vendo Mélanie, a pastorinha, a companheira de Maximin'. Sem dúvida, ele estava obcecado por este pensamento singular... E, um dia... não tinha ele contado a maravilhosa história, ocorrida doze anos atrás, de uma dama de vestido cintilante que caminhava sobre o mato sem esmagá-lo, a Santíssima Virgem que aparecera para Mélanie e Maximin lá na montanha, às margens de um córrego para... lhes comunicar a cólera de seu Filho? A partir deste dia, uma fonte nascida das lágrimas da Virgem curava todas as moléstias... Bernadette, com toda a certeza, ouviu assombrada essa história admirável, com sua aparência plácida de dorminhoca despertada, depois, levara-a consigo à região árida onde ela costumava passar os dias, para revivê-la atrás de seus carneiros, enquanto que, conta a conta, o terço deslizava entre os seus dedos delicados.

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Estaria Bernadette influenciada pela medalha milagrosa?

Imaginação de romancista em busca do sensacionalismo? No entanto, a própria Bernadette - que aliás sustentará até a morte jamais ter escutado, antes da aparição de 25 de março, a expressão "Imaculada Conceição" - não negará ter conhecimento dos visionários que a precederam. Quando Bernadette descreve a atitude de Aquero, não se pode deixar de pensar, naquela época, na Virgem da medalha milagrosa, de cujas mãos estendidas escapam raios luminosos - medalha muito difundida em toda a França de então. Quando o padre de Lajudie, no decorrer do verão de 1859, para ficar em paz com sua consciência, interroga Bernadette precisamente sobre esse ponto, eis aqui o que a jovem responde: - E as mãos da Virgem, como estavam? Cruzadas? - Ela mantinha-as abertas e estendidas – diz Bernadette. - Como na imagem da lmaculada Conceição? - Sim, senhor abade. - Ela estava como quando apareceu a uma irmã de caridade? - Não sei, senhor abade. - Tinha raios nas mãos? - Não, senhor abade. - Quer dizer que ela não parecia igual à medalha milagrosa? - Oh, não, senhor abade. Pode-se observar aqui a contradição de uma resposta para a outra. Inicialmente, Bernadette diz que ignora se Aquero parecia-se com a Virgem surgida a Catherine Labouré (a "irmã de caridade"); depois de alguns segundos afirma que a aparição que viu não se parece com a da medalha milagrosa. Ao ser interrogada pelo abade Junqua, em fevereiro de 1860, este também procura possíveis semelhanças entre a aparição de Massabielle e a da rua du Bac. Segue-se o seu relato:

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- Minha filha, levante-se e assuma todas as atitudes dessa personagem tão interessante, sobretudo quando desfiava seu terço. Faça também as pausas que fazia a visão nos outros momentos. Bernadette levanta-se e fica de pé, as mãos unidas, os dedos entrelaçados, os dois polegares um sobre o outro. Finge desfiar o terço, rolando conta após conta com a ajuda do polegar e do indicador da mão direita, enquanto seus lábios ficam imóveis como os da visão. - Minha filha, quando a visão não desfiava o terço, de que modo ficava? A esta altura, Bernadette assume nova posição. Ergue levemente os braços ao longo do corpo e vira as mãos de forma a que fiquem com as palmas voltadas para fora, imitando, com perfeição, a reprodução da Virgem na medalha milagrosa. Nesse instante, digo-lhe: - Está querendo dizer que a visão mostrava-se como representamos a Virgem nesta medalha? (Mostrei-lhe então a medalha milagrosa...) Sim, exatamente, mas não tinha isso nas mãos (apontava para os raios que se desprendiam das mãos na medalha). Em 1879, pouco tempo antes de sua morte, em resposta às perguntas do padre Cros, esse jesuíta cético e curioso, Bernadette responderá por intermédio de uma das religiosas do convento de Saint-Gildard, em Nevers: "Ao pronunciar as palavras: Eu sou a Imaculada Conceição, Nossa Senhora estendeu os braços na direção do solo e imediatamente uniu as mãos de modo a transformar estes dois movimentos num único ato." Lourdes, uma segunda edição do milagre de Salette... Os acontecimentos de Salette também causaram grande tumulto. E quando o caso de Massabielle estoura, todos fazem comparações. A imprensa refere-se a "uma segunda edição do milagre de Salette" ou

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de "um acontecimento prodigioso que revolve as cinzas de Salette". Leitores inflamados escrevem: "Por que a aparição que se revelou em Salette não iria honrar Lourdes com sua presença? A Bigorre vale tanto quanto o Dauphiné e os Pireneus também são dignos de um milagre similar ao dos Alpes." Um ex-voto deixado na gruta de Massabielle, em abril, nada mais é que um simples quadro religioso representando Nossa Senhora de Salette, com a seguinte inscrição: "O braço de meu Filho abate-se sobre os pecadores: está pesado e não agüento mais sustentá-lo" . As autoridades civis também fazem automaticamente a comparação: "Deve-se pôr um termo a atos que acabam comprometendo o verdadeiro sentimento religioso como o caso de Salette", escreve o ministro dos Cultos Rouland, a 26 de março. E, no dia 20 do mesmo mês, o procurador geral de Pau, escreve: Encontramo-nos em pleno milagre de Salette. Ademais, a comparação parece tão natural para todo mundo que as autoridades religiosas de Lourdes, no momento em que desejam mandar fazer uma estátua para o nicho da gruta de Massabielle, convocam o escultor que já tinha feito a Virgem de Salette: o esquecido Fabisch que, aliás, julgará as descrições de Bernadette menos "excêntricas" (o termo é dele) do que as que lhes fizeram Mélanie e Maximin... Louis Veuillot, no famoso artigo datado de 28 de agosto de 1858, escreve com bastante penetração e inteligência a respeito do papel de Lourdes, de Salette e de outros locais sagrados onde vigora o espírito: "Parece-nos que aquilo que acaba de acontecer em Lourdes lança uma luz interessante sobre as origens gerais das peregrinações. Quase sempre encontram-se, no inicio, alguns fatos análogos a esse que focalizamos. Trata-se de uma aparição, de uma revelação, uma imagem encontrada, unia graça inesperada, atestadas pela fé popular, contestadas tanto pelos cientistas, como pelos sábios, ou por aqueles que julgam sê-lo. A fé popular persiste apesar de tudo. A Igreja intervém... E se a Igreja, tendo examinado os fatos, reconhece a obra de Deus, não há mais recusa que prevaleça e a peregrinação fica

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estabelecida. O fluxo de oração dirige-se para esses lugares eleitos com um vigor que os séculos não conseguem enfraquecer. Se interrompidos algumas vezes, recomeçam plenos e irresistíveis como no passado, conforme estamos vendo atualmente. Através de contradições incomparáveis foi que se estabeleceu a peregrinação a Salette. E assim, caso a Igreja o consinta, haverá de se estabelecer a peregrinação a Lourdes, não importa o que possam fazer para impedi-lo." A imprensa racionalista da época atribui as piores intenções à manipulação das multidões e à influência exercida sobre os anseios e as consciências, a propósito destes dois acontecimentos tão semelhantes, talvez semelhantes demais, o de Salette e o de Lourdes. Assim, em setembro de 1858 La Presse, o célebre jornal fundado anos antes por Emile de Girardin, um editorialista, após ter precisado que acredita "profundamente em Deus" e que "respeita todas as liberdades, mesmo aquelas relativas aos milagres, acusa: "Os milagres que o clero católico adota ou consagra... transformam-se numa fonte de exploração católica, sede de superstição, de preconceito, uma causa de embrutecimento e de preguiça. Pessoas que trazem, da montanha de Salette ou de uma peregrinação qualquer, medalha benta, frascos com água provida de todas as virtudes, esta gente não necessita nem de instruir-se, nem de trabalhar. Caso a moléstia os ataque, nem se dão ao trabalho de se cuidar. Não possuem a medalha e a água milagrosa que os curará?" Nossa Senhora de Lourdes e a "renovação cristã da

sociedade" Bernadette, apesar de admitir conhecer a "medalha milagrosa", jamais pretenderá desconhecer Salette. Assim, a 12 de novembro de 1859, quando o padre Azun de Bemétas vai visitá-la e pergunta-lhe: - Você, por certo, já ouviu falar das crianças de Salette, não é mesmo? Ela responde sem hesitação:

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- Sim, senhor. Contudo, as relações entre Salette, e Lourdes não existem a não ser nos espíritos dos comentadores. Isto se concretizará rapidamente no próprio local, uma vez que a 5 de julho de 1859, o padre Sibillat, primeiro superior dos missionários de Salette, encontra-se em Lourdes. Nessa oportunidade é organizada uma cerimônia grandiosa e significativa: diante da gruta, na frente de numerosa multidão, o padre Sibillat manda vir Bernadette e pela enésima vez faz com que a menina relate as circunstâncias e os detalhes das aparições do ano anterior... Se a mensagem de Salette restituiu, segundo a expressão de Monsenhor Guerry, o "sentido da Igreja" a uma geração inteira, quais foram as conseqüências de Lourdes em relação à Igreja e ao catolicismo? Evidentemente, as palavras dirigidas pela Virgem a Bernadette possuem um conteúdo político mais velado do que as endereçadas a Catherine Labouré ou a Mélanie e Maximin e, sobretudo, às emitidas mais tarde, em 1917, em Fátima, onde será realmente lançada a cruzada anticomunista da Igreja Católica. Contudo, Lourdes continua sendo o núcleo da nova orientação mariana dessa Igreja. Nas obras pias lê-se, com freqüência, "Lourdes revela a verdadeira imagem da Igreja e de seu Fundador" ou "manifesta a Divina Missão da Igreja". E Pio XII, na sua mensagem pontifica! emitida em 1958, por ocasião do centenário das aparições, coloca nitidamente sob a invocação de Nossa Senhora de Lourdes a expansão e o impulso da influência do catolicismo no século XIX, denominada "renovação cristã da sociedade": "Que as orações dos enfermos, dos humildes, de todos os peregrinos de Lourdes", declara o soberano Pontífice, "Maria volta também igualmente o seu olhar maternal na direção daqueles que ainda permanecem fora do início aprisco da Igreja a fim de reuni-los na unidade! Que dirija seu olhar àqueles que buscam e que têm sede de verdade, a fim de conduzi-los à fonte das águas vivas! Que, finalmente, percorra com seu olhar esses continentes imensos e esses

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aglomerados humanos, onde o Cristo é tão pouco conhecido, tão pouco amado e que conceda à Igreja a liberdade e a alegria de corresponder, em todos os lugares, sempre jovem, santa e apostólica, às expectativas dos homens!"

TERCEIRA PARTE

O Milagre das Curas "É impossível que fenômenos de ordem natural curem as doenças deste modo... Para mim, trata-se da atuação direta da Virgem, através de um fenômeno sobrenatural."

Alexis CARREL A Viagem a Lourdes

(Ed. Plon)

O AUTO DOS CASOS

1. A primeira onda (1858) Ninguém, certamente, conheceu cegos, surdos, mudos, paralíticos etc... que, após se terem lavado na gruta, tenham recuperado a visão, a audição, a fala, o uso dos membros. E, no entanto, numerosos são aqueles que vão pedir à maravilhosa piscina para lhes dar ou manter a saúde, para evitar ou acabar com a dor. Interrogue-os para descobrir em que se calça essa esperança; eles respondem que outros foram curados ou aliviados. Onde se encontram? Não o sabemos. Quem são eles? Ninguém o revela. E no que se refere àqueles que nos foram

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apontados, não é necessário fazermos uma investigação minuciosa a respeito da exatidão das afirmativas. das quais foram alvo...

Vital DUTOUR Procurador de Lourdes, 1858.

Outono de 1858. Uma encantadora casa de campo nas redondezas de Aire-sur-l'Adour, bonita e pitoresca aldeiazinha dos Pireneus. No jardim. mãe e filha - a primeira muito inquieta e profundamente angustiada, porque sua filha Marie, maravilhosa adolescente de quinze anos, está a caminho de uma perda total da visão. Marie, que pertence a uma rica família de Tartas nas Landes, os Moreau, estava há muitos anos interna num dos mais célebres colégios de toda a Aquitânia,.o colégio Sacré-Coeur em Bordeaux. Em janeiro de 1858, começa a sofrer da vista, a ponto de se ver impossibilitada de continuar os estudos. As religiosas procuram um oculista famoso na capital da região, o Dr. Bermond, e tratam da jovem segundo suas prescrições. Contudo, alguns meses depois a situação se agrava: um olho está "perdido" e o outro "bastante atingido". É somente então que a mãe da jovem vai buscá-Ia. Recebe orientação das religiosas e continua o tratamento prescrito pelo Dr. Bermond (tratamento sobre o qual, aliás, não se possuem detalhes). Chegam até mesmo a levar Marie para tomar banhos de mar, o que não surte um "resultado melhor", coisa que duvidamos.

A "fonte milagrosa" cura os "mais belos olhos do mundo"

- Então a senhora Moreau e sua filha resolvem aproveitar o "ar excelente" de Aire-sur-I'Adour. E no jardim, a mãe costuma ler para Marie a fim de distraí-Ia. Certo dia, folheando um exemplar do Messager catholique, depara com o relato da cura milagrosa de uma tal "senhora de Nay*" ocorrida em Lourdes.

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*Trata-se da viúva Rizan. Mais adiante encontra-se seu caso em detalhes. "Nossa fé e nossa esperança na Santíssima Virgem, relata a senhora Moreau, despertaram de imediato e chegamos à conclusão, em comum acordo, de que deveríamos nos apressar em solicitar as graças que a Rainha do Céu se dignava a prodigalizar a fim de comprovar sua nova aparição. Nossa confiança era ainda maior, uma vez que tínhamos consagrado a ela a nossa filha no momento de seu nascimento e de um modo todo especial, por isto mesmo, Ela haveria de atender às nossas orações." Portanto, às dez da noite do dia 8 de novembro começam a fazer uma novena: "Prometemos, conta a senhora Moreau, à Santíssima Virgem que, se nossa filha ficasse curada durante o curso dessa novena, iríamos levá-la a Lourdes para consagrá-Ia, a Ela, uma segunda vez, toda vestida de azul e branco." Um prelado, amigo da família Moreau, o abade Peyrous, forneceu-lhes uma garrafa com a "água da fonte milagrosa". Naquela noite, antes de deitar-se, Marie faz uma compressa com a água e coloca-a sobre os olhos. E no dia seguinte pela manhã... Marie tira a bandagem. Vê! Antes de mais nada chama pela irmã, Marthe, e pede-lhe um livro: lê! Então, sai correndo para junto dos pais a fim de comunicar-lhes a grande notícia. "Recebemos essa noticia com alegria e agradecimento mas não tínhamos muita coragem de divulgá-Ia", conta a senhora Moreau. - A 26 de novembro a família Moreau dirige-se em peregrinação até Lourdes a fim de cumprir a promessa feita. E claro que ali se encontram com o abade Peyramale que é posto a par da novena, do milagre e da promessa feita à Virgem. Numa carta por nós achada e endereçada ao irmão, o cura de Lourdes escreve a seguinte frase reportando-se a Marie: "Ela possui os mais belos olhos do mundo".

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Durante a missa de ação de graças, "é bento um vestido azul da jovem miraculada que prometera usar somente esta cor durante um ano em honra à Santissima Virgem. O pai, a mãe e a filha comungam com um fervor sem par sob os olhares emocionados de quase toda a população local que praticamente invadiu a igreja, "entusiasmada com o relato dessa assombrosa cura". Marie Moreau não faz o menor sigilo sobre o caso. As suas colegas e professoras do Sacré-Coeur de Bordeaux são postas de imediato a par de tudo. No dia 11 de novembro, a melhor amiga de Marie no colégio, Louise Bruneau, envia-lhe uma carta de congratulações: "Minhas companheiras juntam-se a mim, querida Marie, no sentido de felicitá-Ia por ter sido objeto de uma proteção toda especial da Virgem Maria, e ao mesmo tempo, expressar-lhe o prazer que experimentam ao pensar que, dentro de alguns dias, gozarão da companhia de uma colega que lhes parece ainda mais querida." Deve se sentir feliz por ter sido a escolhida por esta boa Mãe para comprovar a verdade de uma de suas novas aparições e, para contribuir, através do milagre que se dignou conceder-lhe, a despertar uma confiança ainda maior no coração de todos os seus filhos. Pode estar certa de que compartilhamos de todo o coração da sua felicidade e da de seus pais. E durante a novena que fizemos a fim de nos prepararmos para a comemoração da maravilhosa festa da Imaculada Conceição, uma de nossas intenções foi agradecer à Santíssima Virgem em seu nome." E a 10 de fevereiro de 1859, depois de quase um ano inteiro acreditando, dia após dia, estar cega, Marie Moreau retorna ao colégio em Bordeaux, "em meio às alegrias e às felicitações de suas mestras e companheiras" . Marie representou tão esplendidamente seu papel de miraculada, cujos belos olhos renascem para a vida, que certas pessoas chegaram a imaginar não haver existido nenhuma família Moreau em Tartas e que ela não passava de uma jovem atriz parisiense, enviada por Louis Veuillot, ansioso por reunir provas, mesmo truncadas, em

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favor de Lourdes... Evidentemente a acusação não persistiria e pouco depois ficaria comprovada a verdadeira identidade de Marie Moreau... Entretanto, esta maledicência prova que o "milagre" de Marie Moreau levanta algumas suspeitas, aqui e ali, apesar do entusiasmo geral.

O testemunho do oculista A comissão de investigação, a famosa comissão episcopal anunciada com estardalhaço por Monsenhor Laurence, em julho de 1858, e que iniciou seus trabalhos a partir do outono, nada mais pôde fazer além de examinar esse caso. E, antes de mais nada, requisita o testemunho do médico assistente de Marie Moreau, o Dr. Bermond. Este remete o seguinte atestado a 12 de janeiro de 1859: Eu, abaixo-assinado, doutor em medicina, cirurgião, chefe honorário do hospital Saint-André, em Bordeaux, certifico ter assistido, com intervalos regulares a senhorita Moreau, de Tartas, aluna do colégio Sacre-Coeur de Bordeaux, nas congestões sangüineas que surgiam ora num olho, ora no outro, com alterações e sensibilidade da vista, sobretudo no olho direito, cuja capacidade visual bastante reduzida apresentava o caráter de miopia. Estas congestões sangüineas, complicadas com lacrimejamento e, às vezes, com erupções cutâneas nas pálpebras, estavam relacionadas com a transição da idade e a função periódica. Apesa do tratamento enérgico e constante, haviam conservado uma característica recidiva que ainda persistia quando a senhorita Moreau partiu de Bordeaux, no mês de maio de 1858: Em testemunho do quê, assinei. Bordeaux, 12 de janeiro de 1859. Dr. Bermond. A comissão não fica satisfeita com este atestado médico tão vago e que evita, deliberadamente, abordar o problema da cura. O Dr. Bermond, após solicitações insistentes, emitirá um novo atestado datado de 8 de fevereiro, portanto, três semanas mais tarde. Este é

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entregue por intermédio da madre Rombeau, superiora do Sacré-Coeur de Bordeaux, que junta uma palavra, explicando haver, no mês de maio último, sido forçada a entregar a "jovem" à sua fanúlia "porque não conseguia ler, nem escrever, nem bordar" . Neste novo atestado, o Dr. Bermond deixa transparecer claramente que foi, mais ou menos, sigilosamente solicitado a redigi-lo pelas autoridades eclesiásticas. E dá a impressão de se curvar, de boa vontade, aos desejos que lhe foram expressos: "Apresso-me em responder às perguntas precisas que a mim foram dirigidas pelo bispado de Tarbes por intermédio da Reverenda Superiora da casa do Sacré-Coeur de Bordeaux. O atestado, por mim redigido anteriormente, correspondia estritamente às observações que tivera oportunidade de constatar durante o período em que fui o responsável pelo tratamento da senhorita Moreau. Além das constatações físicas reveladas, fizera, à parte, algumas previsões de métodos e outras com relação ao futuro. Dissera que a perturbação visual já sobrevinda merecia muito cuidado e poderia transformar-se, com o passar do tempo e o adiantamento da moléstia, talvez numa cegueira ou, pelo menos, numa diminuição bastante acentuada da visão. Ao comunicar estas possibilidades à senhora Moreau, cujos olhos ficaram cheios de lágrimas, esta julgou conveniente afastar sua filha de Bordeaux e mantê-la junto a si. A partir de então, o que aconteceu? Resta-me apenas citar a narrativã da senhora Moreau. Esta narrativa justifica a gravidade dos receios por mim expressos e revela-me, bem como as informações fornecidas ainda hoje pela senhorita Moreau ao ser interrogada a respeito, que sua visão tinha tido ulteriormente uma piora considerável (percepção confusa e dificil de objetos, ainda que volumosos) e que a cura sobreveio de modo repentino, após o emprego das águas da gruta de Lourdes usadas em compressas. Essa cura persistiu e ainda persiste. No que se refere ao imediatisIno da cura, tal como aconteceu, trata-se de um fato excepcional que foge inteiramente dos procedimentos ao alcance da ciência médica. Como prova de verdade assino.

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Bordeaux, 8 de fevereiro de 1859. Dr. Bermond. Madre Rombau explica, na exposição dirigida a um dos membros da comissão, o cÔnego Fourcade (vigário-geral de Monsenhor Laurence) que o médico submeteu Marie Moreau a um teste de leitura a fim de assegurar-se "de que ela enxergava muito bem". E quanto ao atestado, que para a religiosa significou que o médico considera a cura da jovem como “sobrenatural" ("embora o oculista não empregue em nenhum momento este àdjetivo"), a religiosa conclui: "Desejo, meu senhor, que esse documento o satisfaça e possa contribuir para aumentar a devoção e a confiança na Virgem lmaculada que se mostra tão misericordiosa para com a nossa pátria."

"Toda a França está com os olhos fixos em você" O voto piedoso de madre Rombau será satisfeito. O caso de Marie será uma das sete primeiras curas milagrosas oficialmente reconhecidas após os trabalhos da comissão de investigação, instituída, como tivemos oportunidade de constatar anteriormente, por Monsenhor Laurence, em julho. Ao que se sabe, esta comissão, que examinou tudo o que aconteceu e acontece em Lourdes, é muito grande, uma vez que se compõe de nove membros pertencentes ao capitulo da catedral de Tarbes, dos superiores do seminário maior e menor, do superior dos missionários da diocese, do cura de Lourdes, o abade Peyramale, de professores de dogma, de moral e de física do seminário. Mas, na verdade, é sobretudo a "subcomissão" encarregada de pesquisar as curas milagrosas que vai trabalhar incessantemente após a intervenção de Monsenhor Laurence que, a 15 de novembro de 1858, remete a seus membros uma grave nota ameaçadora: "A comissão - diz o bispo - funcionou até o momento com bastante lentidão. As férias terminaram. É chegado o momento de retornar aos

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trabalhos com vigor e diligência. Toda a França está com os olhos fixos em vocês e não apenas o público. Quanto mais esperarmos, mais dificuldade encontraremos em constatar os fatos conhecidos. Que à comissão revele os fatos já existentes." A subcomissão, composta por um número variável de membros, vai obedecer sem delongas a Monsenhor Laurence. De 29 de novembro de 1858 a 23 de março de 1859, será visitado o próprio local, em cada região, a fim de examinar dezenove casos e organizar o processo de um vigésimo, o de Marie Moreau, já que os diligentes eclesiásticos dos Pireneus recusam-se a ir a Bordeaux para interrogar a jovem. Nas aldeias visitadas, os investigadores são recebidos pelo cura, pelos "miraculados", pelos membros de suas fanúlias, pelas testemunhas, e quase sempre pelo médico local. Trata-se de um acontecimento inédito e extraordinário em toda a história das religiões. Pela primeira vez no mundo, graças à decisão e à vontade de Monsenhor Laurence, fatos considerados até então como sobrenaturais, são submetidos ao controle de uma época que preconiza o naturalismo, a ciência e o progresso racional... Para cada um dos vinte casos examinados durante esses quatro meses, contamps com o processo verbal da subcomissão, após seu deslocamento, um relatório final sintetizado e atribuído ao cônego Baradare, designado unanimemente por seus pares, uma crítica circunstanciada estabelecida pelo Dr. Vergez, professor da faculdade de Medicina da Montpellier e conselheiro técnico-medical da Comis-são. Ademais, em 1958, ano do centenário de Lourdes, solicitou-se a um determinado número de especialistas modernos que examinassem os casos de 1858 à luz da medicina moderna e tecessem comentários a respeito das antigas conclusões.

O que é uma doença "histérica"? O que diz o Dr. Vergez a respeito do caso de Marie Moreau? Declara ser o prognóstico médico, antes do emprego da água de Lourdes,

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muito ruim, pois a jovem, de olhos atacados por "congestões sangüineas" e "erupções cutâneas nas pálpebras", estava ameaçada de cegueira. O Dr. Vergez também afirma "estar de pleno acordo" com as conclusões a que chegou o Dr. Bermond: "Independentemente do resultado imediato que sempre provoca, quando isso ocorre, o traço característico dos fatos produzidos contra a ordem da natureza, encontramos nessa cura todos os elementos ne-cessários ao aparecimento de uma profunda convicção: a gravidade do mal vencido pela água física e quimicamente natural, a inanidade dos esforços da ciência médica e a persistência da cura apesar da teildência obstinada do mal às recidivas." Contudo, o Dr. Vergez não deixou de observar que as perturbações visuais da bela Marie estavam "relacionadas com a transição de idade e com a função periódica". Cem anos depois, alguns médicos não deixarão de diagnosticar, com referência ao caso, uma cegueira "histérica". Como esse termo, com relação às curas de Lourdes, tende a aparecer com freqüência, é conveniente dar-lhe uma definição exa-ta, pois muitas são as pessoas que o utilizam num sentido vago, amplo e sobretudo falso. A histeria é um "termo do diagnóstico médico para as afecções caracterizadas pela presença de sintomas físicos e pela ausência de sinais fisicos", sendo que essas afecções "nos fazem pensar em sintomas que preenchem alguma função psicológica*". Os psiquiatras modernos distinguem a "histeria de angústia" da "histeria de conversão", a primeira caracterizando-se pelos comportamentos anormais (claustrofobia etc.), a segunda por alguns males fisicos (tipo cegueira, paralisia, anorexia etc.). O bom senso popular afirma, com freqüência e sobretudo nestes casos, que o doente "procura tomar-se interessante" . Para a maioria dos psiquiatras e neurologistas modernos, Marie Moreau foi vitima, apenas, de uma cegueira histérica, provocada pela adolescência e por conflitos existenciais. Mas, o Professor Thiébaut, da faculdade de medicina de Strasbourg, defendeu a hipótese de uma afecção orgânica e não histérica, explicando que:

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Na histeria: 1. As perturbações visuais se instalaram repentinamente e não durante o transcorrer de vârios meses. 2. Quando há amaurose (isto é, perda da visão), ela é total. Meu mestre, o Dr. Clovis Vincent, que era sem dúvida o melhor especialista de sua geração, ensinava que a histérica não faz as coisas pela metade: se há amaurose, esta é total. E meu outro mestre, o Dr. Charles Foix, ensinava que a perturbação histérica, uma vez instalada, é sabidamente fixa e não está sujeita a flutuações ou a um agravamento progressivo. Por... estas razões, o diagnóstico de histeria deve ser afastado; segundo o que tudo indica, a afecção de Marie Moreau era de natureza orgânica. O caso de Marie Moreau e dos "mais belos olhos do mundo" só restabelece, em parte, a atmosfera das primeiras curas milagrosas: há um lado romanesco e encantador apesar de ou devido à... histeria subjacente e à mitomania latente. Contudo, os outros vinte e nove casos estudados pelos investigadores eclesiásticos nomeados e despachados por Monsenhor Laurence são mais banais, mais comuns, não raro, mais lamentáveis. Eles constituem, realmente, a pré-história e o fundamento dos milagres de Lourdes. Ei-Ios, por ordem de investigação.

O cortador de pedra era cego de um olho há vinte anos

Louis Bouriette é um cortador de pedra com cinqüenta e quatro anos. Vinte anos antes, isto é, em 1838, foi vitima de um grave acidente. Quando, na companhia do irmão, fazia explodir uma pedreira, os dois homens foram atingidos por uma avalancha de pedras. O irmão de Louis Bouriette morreu. Bouriette, no entanto, recebeu um golpe no rosto que o desfigurou em parte, ao atingir-lhe o olho direito. Nessa época de medicina bastante primâria, o infeliz cortador de pedra

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sofreu atrozmente durante alguns meses, a ponto de quase perder a razão. Finalmente, pôde retomar ao trabalho. Contudo, a visão do olho direito estava terrivelmente diminuída. Longe de melhorar, com o passar do tempo, essa situação só se agravou. Dois meses antes das aparições de Lourdes, o médico de Louis Bouriette tinha lhe comunicado que precisava resignar-se e estar preparado para perder, dentro em pouco e totalmente, a vista afetada. E, então, Bouriette ouve falar a respeito dos acontecimentos maravilhosos da gruta de Massabielle, da fonte nascida aos pés de Bemadette e dos efeitos milagrosos que lhe eram atribuídos. Pede, então, à sua filha, para ir apanhar uma garrafa de água da Virgem. Na gruta, nada tinha ainda sido organizado. A fonte não passava de um minguado filete de água lamacenta onde a memna encontrou dificuldades para encher a garrafa. Apressa-se em levar o precioso frasco ao pai que lava imediatamente o olho doente com a água suja, mas sagrada. E o milagre acontece! Vejamos o que diz o relatório da comissão de investigações: “Assim que acabou de lavar o olho, conseguiu perceber a claridade. Duas horas depois já conseguia distinguir os objetos. Pôde até mesmo ler, embora com alguma dificuldade." Uma gravura singela da época representa a cena com um encanto pitoresco: num interior rústico e humilde, mobiliado com uma cama de ferro, cortinas, um relógio imenso, uma chaminé descomunal e alguns móveis simples, onde uma galinha e sua ninhada de pintinhos ciscam tranqüilamente o chão de terra batida, vemos o pai que se pôs de joelhos a fim de agradecer à Virgem, enquanto a filha ergue as mãos e os olhos para o céu... Louis Bouriette continuará fazendo as abluções com a água da gruta durante quinze dias, porém, a partir do terceiro dia, segundo suas palavras, vê perfeitamente bem. O cônego Baradere, relator da comissão de investigação, comenta o caso Bouriette da seguinte maneira:

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"Tratava-se de uma lesão grave, profunda, de algumas partes essenciais do olho, partes indispensáveis, constitutivas das funções da visão. Ora, a alteração dessas partes, causada pela explosão da mina, não desapareceu. Essas partes não voltaram, de forma alguma, ao estado normal e, no entanto, após as lavagens realizadas com a água milagrosa, o sentido da visão desenvolvia-se com regularidade. Por tanto, a visão só pôde ter sido recuperada fora das leis da natureza, uma vez que isso aconteceu, apesar do defeito e da ausência de partes do olho destinadas a essa função. Trata-se, portanto, de uma exceção às regras, de um efeito sobrenatural." Qual a opinião do Professor Vergez? "Este caso, diz ele, possui o caráter sobrenatural do mesmo tipo que o da senhorita Moreau. A gravidade do mal, sua condição crônica e a impotência da medicina para bloquear o seu progresso, todas estas circunstâncias, comparadas com a rapidez da cura, com a simplicidade do agente que foi empregado, não nos permitem ter a minima dúvida a este respeito, pelo menos com alguns aspectos cujas bases são sérias."

A viúva surda tinha-se esquecido de lavar as orelhas...

O segundo caso, o da viúva Crozat (cujo nome de solteira era J eanne- Marie Arqué) é engraçado e não tão emocionante. Eis o relato do caso: Em 1858, a viúva Crozat já é surda há vinte anos, completa e totalmente surda. Não escuta nem os sinos, nem o órgão na igreja e, na casa onde trabalha, como servente na lavoura, não ouve os gritos, as gargalhadas e nem o choro das sete crianças de seus patrões. Também ela, a partir do instante em que soube dos acontecimentos da gruta de Massabielle, decide experimentar as virtudes curativas da

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água da fonte. Para lá se dirige, acompanhada por uma pessoa amiga a quem pede para injetar-lhe um pouco da água da fonte nos ouvidos, com o auxilio de uma seringa: "Tão logo a água penetra-lhe na cabeça, que sempre lhe parecera pesada e onde sentia pulsações constantes, teve a impressão de que ficara mais leve. Começou a ouvir. Chegou até mesmo a distinguir o murmúrio das águas do Gave que margeia a gruta... Jeanne-Marie Arqué declara que após estas operações, uma chama parecia atravessar-lhe o canal dos ouvidos, que sua audição melhorava sensivelmente dia a dia e que, ao fim de uma quinzena, escutava tão bem quanto antes de sua doença." Doença? Que doença? A vizinha caridosa que tinha injetado a água da gruta nos ouvidos da surda testemunhará que, a partir das primeiras aplicações, viu - triste detalhe! - "sair dos ouvidos umas substâncias viscosas, misturadas com sangue pisado e, de um deles, uma espécie de tampão". A "doença" de Jeanne-Marie Arqué consistia muito simplesmente em dois enormes tampões de cera que lhe tinham obstruído completamente os canais auditivos. Eis o que acontece quando se deixa de lavar as orelhas com regularidade! O cônego Baradére, perfeitamente consciente de que a prolongada surdez da infeliz e negligente viúva Crozat nada mais era do que o resultado de uma "falta de limpeza", conclui que a sua cura não pode ser qualificada como milagrosa. Contudo, acrescenta com uma piedade ingênua, que foi graças a "uma inspiração misericordiosa de Deus" que ela teve, enfim, a idéia de lavar os ouvidos... Justin (dois anos): um quarto de hora dentro da água

gelada Pobre menino Justin Bouhort! Está com dois anos, mas desde o nascimento permanece deitado em seu leito miserável, magro de fazer

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dó, de uma palidez cadavérica, respirando com dificuldade. No dia 28 de fevereiro de 1858, seu estado parece tão alarmante que sua mãe, Croizine Bouhort, de trinta e oito anos, de uma ignorância proverbial conhecida em toda a região, chega 'a pensar que o filho está prestes a morrer. A sua maior preocupação é tentar arranjar um pedaço dê linho limpo para envolver o menino assim que estiver morto: vivo, não tem direito a mais do que alguns trapos imundos. De repente, vem-lhe à mente "a inspiração de levá-lo à tão decantada gruta", da qual já muito havia ouvido falar. Inicialmente, o pai se opõe, achando que o pequenino Justin iria sucumbir durante o trajeto. Croizine insiste e não obedecendo ao marido, pega a criança nos braços e ruma para a gruta de Massabielle. Lá chegando, despe a criança, mergulha-a na água fria durante uns quinze minutos, o que deixa a assistência presente apavorada. Há cerca de trezentas a quatrocentas pessoas no local. Algumas mulheres insultam Croizine Bouhort e uma delas chega mesmo a gritar: - Ora! Deixe-a fazer o que quiser! A infeliz está impaciente para ver o filho expirar! Após tão dura prova, tendo enxugado o menino "como pôde", envolve-o no seu avental e leva-o de volta para casa. "A criança não se alimentou nem tomou qualquer bebida nesse dia, mas dormiu um sono calmo e profundo. A mãe aproximou-se do berço por diversas vezes, tanto durante a tarde como durante a noite, a fim de certificar-se de que ainda respirava. Pela manhã, o menino acorda normalmente e quer levantar-se. Embora tenha dois anos, ainda não sabe andar. Croizine Bouhort julgou que seria temerário tirá-Io do berço. No decorrer do dia dá-lhe o seio por várias vezes - ao que parece o pequeno Justin ainda não fora desmamado - e é no dia seguinte que começa a andar pela primeira vez, tão facilmente como se já soubesse caminhar há vários meses!" O bom cônego Baradère concorda com as testemunhas horrorizadas que "mergulhar uma criança de dois anos, enferma desde o momento

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do nascimento, magra, devorada pela febre ou esgotada por uma prolongada moléstia que a consumia, numa bacia de água fria, praticamente no seu estado glacial, ao ar livre, e ali mantê-la durante um quarto de hora, só podia, é claro, apressar o fim dessa criatura débil, fazê-Ia exalar o seu último suspiro". Na opinião do cônego Baradêre, o pequeno J ustin sofria de uma "fraqueza congênita", de um "langor de nascença" devido a um "defeito na constituição do seu organismo": "Neste caso, portanto, a natureza da doença, o estado desesperador da criança, a rapidez da cura e o meio que a produziu tão repentinamente, tudo parece concorrer para estabelecer um fato, não só estranho, mas também contrârio à ação comum dos agentes naturais, sob todos os aspectos e por isso mesmo maravilhoso, sobrenatural, e que testemunha que o dedo de Deus esteve presente nessa cura." Este também será o ponto de vista do Dr. Vergez, que declarará em 1860: "Existem, nesse caso, três circunstâncias fora do comum: a duração da imersão, seu efeito imediato e a capacidade de andar manifestada cerca de trinta e seis horas mais tarde". Após ter ressaltado que "os banhos de água fria podem surtir ótimos resultados nas afecções adinâmicas graves", o Dr. Vergez declara que "este meio está sujeito a regras cuja transgressão representa verdadeiros riscos para a vida". E a regra primordial é que a aplicação de água fria não deve exceder de alguns minutos: para um médico consciencioso, um banho de um quarto de hora na água fria infligido a "uma criança esgotada" seria, portanto, "digno de reprovação". E o Dr. Vergez conclui em "vista disso: “A mulher Duconte, mãe de Justin Bouhort, tentou portanto a cura do filho através de processos condenados pela experiência e pela razão e esta não foi obtida de imediato. "E para que este caso seja es-clarecido em profundidade, para que nenhuma dúvida venha a pairar sobre a sua realidade e sobre o imediatismo de sua realização, a criança, que jamais andara, foge do berço, no segundo dia, na

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ausência da mãe, e começa a caminhar com a segurança gerada pelo hábito, demonstrando desta forma que sua cura ocorreu sem um periodo de convalescença, de um modo inteiramente natural." De um modo geral, os médicos contemporâneos não se pronunciam sobre esse caso afirmando que as informações são "insuficientes".

Um caso de "lobinho" Blaise Maumus é um botiquineiro de quarenta e dois anos. Já faz algum tempo que sofre do punho direito. Apareceu-lhe na articulação aquilo que se chamava então um "lobinho", isto é, uma verruga. Esta excrescência é do "tamanho de uma avelã comum". Isso o incomoda impossibilitando-o de fazer determinados movimentos. Porém não se preocupa muito com o problema. Um dia, encontra-se, na rua, com o Dr. Dozous, mostra-lhe o "lobinho" e pede-lhe "um remédio qualquer a fim de fazê-Io desaparecer". O que faz o Dr. Dozous? Pura e simplesmente, manda o seu paciente ir até a gruta de Massabielle: - Vá até lá e lave a mão! - diz ele. Maumus, sem se espantar com o conselho, segue-o à risca. Ao voltar de Massabielle, percebe que o lobinho "está diminuindo": "à noite, quase não se via mais nada". No dia seguinte, volta a lavar a mão na gruta e o lobinho desaparece completamente: "Com ele, também acabam a dor e a fraqueza que sentia na articulação do pulso." O relator da comissão reconhece haver algo de "insólito, de surpreendente no desaparecimento imediato dessa excrescência". Mas, enfim, pode-se falar de milagre e de sobrenatural? Afinal de contas, não se sabe a que atribuir tal excrescência. O Dr. Dozous deu uma espiadela rápida e não formulou, realmente, nenhum diagnóstico, além do que, em tudo isso não havia nada de tão espetacular... Na opinião do Dr. Vergez, tratava-se apenas de um caso de quisto

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sebáceo curado "ou pela ruptura do saco, ou por uma inflamação ou amaciamento de suas paredes" .

Os olhos lacrimejantes da mulher do carpinteiro Blaisette Cazenave, Soupêne em solteira, está com cinqüenta anos de idade. É casada com um carpinteiro. Já faz três anos que padece daquilo que os médicos lhe disseram ser uma "oftalmina crônica das pálpebras". Seus olhos encontram-se num estado deplorável: "Lacrimejamento constante, ardores acentuados, às vezes simultâneos, outras vezes alternados, reviramento de pálpebras estriadas, voltadas para o lado de fora, desprovidas de cílios, com as duas bordas inferiores recobertas por excrescências múltiplas". O tratamento? As águas de Barèges, de Cauterets, de Gazost... Sem o mínimo resultado. Desse modo, tão logo ouve falar das "virtudes maravilhosas" da água da gruta de Massabielle, para lá se dirige. Lava os pobres olhos doentes. Experimenta, de imediato, um "grande alivio". "E na segunda ablução, consegue a cura completa". Apesar disso continua a ir até a gruta durante vários dias, até ver que seus cílios cresceram e que seus olhos adquiriram um aspecto inteiramente normal. "Essa cura, explicam os padres da comissão de investigação, foi obtida pelo emprego de um elemento comum, de uma água simples, natural, reconhecida sem propriedades, sem qualquer virtude. Se esta oftalmia tivesse que ceder com o emprego da água, teria sem dúvida alguma regredido com as abluções feitas com as águas de Barèges, Cauterets e Gazost. Se tivesse que ceder com a água natural, já teria cedido há muito tempo com a água de Lourdes, do Gave e das redondezas, já que Blaisette Soupêne usava-a diariamente e várias vezes por dia, apenas por uma questão de asseio. Portanto não poderíamos atribuir a cura, quase que instantânea, de uma afecção que atacava órgãos tão sensíveis quanto os olhos, que havia gerado desordens tão intensas, tão numerosas, tão

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profundamente, enraizadas, nem aos meios terapêuticos da ciência, nem à eficácia das águas termais, nem à propriedade da água da gruta, usada sob o ponto de vista de sua composição química. "Logo, se a água da gruta, usada em abluções, resultou numa cura tão profunda e espetacular, isto só pode ter ocorrido por intermédio de uma propriedade estranha, comunicada intencionalmente com esse fim, através de um privilégio de misericórdia, no qual a água da gruta serviu como instrumento, o meio aparente e sensível por trás do qual existe uma intervenção superior e realmente sobrenatural." O Professor Vergez confirmará esta opinião, ressaltando que a "lesão material" era mais "evidente" neste caso do que nos precedentes, e "que ao restabelecimento rápido dos tecidos dentro de suas condições orgânicas e vitais normais tinha-se associado a recuperação das pálpebras". Para o médico de Montpellier, Blaisette Soupère, antes do tratamento com a água de Lourdes, não podia alimentar esperanças de cura a não ser através de uma intervenção cirúrgica ou de uma cauterização das intumescências da mucosa palpebral.

Um outro caso de "lobinho" No sexto caso analisado encontramos mais uma vez um "lobinho", o de Jean-Pierre Malou, um "manobreiro" como se costumava dizer naquela época. No dorso de uma das mãos ele tem, há dezoito anos, um imenso "lobinho", do tamanho de um ovo! O manobreiro jamais se preocupou com isso, nunca procurou a orientação de um médico, como também não seguiu qualquer tipo de tratamento especifico. Mas eis que, há pouco tempo, começou a surgir um segundo "lobinho" próximo ao primeiro, na articulação do pulso. Desta vez, Jean-Pierre Malou inquieta-se. - Tenho uma irmã - diz-lhe certo dia um vizinho - que tem o dom de curar as verrugas e os "lobinhos" apenas com o contacto da mão. Vive numa aldeia perto daqui. Se quiser poderei levá-lo até lá.

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Todavia, quando Jean-Pierre resolveu ir até a casa da curandeira, ouve falar a respeito de Bernadette e da gruta. Terminada a semana de trabalho, dirige-se a Massabielle num domingo e lava as mãos afetadas na fonte. "Esta primeira ablução - revela-nos o relatório da comissão de investigação datado de 17 de novembro de 1858 - teve como resultado desencadear uma inchação bastante visível. O lobinho pareceu fundir-se e perder a consistência, estendendo-se. Durante o decorrer da semana; a inchação diminuiu pouco a pouco, o lobinho reapareceu, porém visivelmente menor. No domingo seguinte, Jean-Pierre retorna à fonte, volta a lavar a mão afetada e sente-se bem melhor. Enfim, na terceira ablução, os dois lobinhos desaparecem inteiramente e hoje sua mão não tem deles o mais leve vestígio." O cônego Baradère "inclina-se a atribuir essa cura a uma causa fora e acima dos agentes naturais", porém o Dr. Vergez colocará o lobinho na categoria dos "fatos susceptíveis a interpretações naturais" e diagnostica este "lobinho" como um "tumor dérmico ou epidérmico, com o formato de uma calosidade".

As terríveis seqüelas de uma febre tifóide O jovem Henri Busquet, de treze anos, não é natural de Lourdes. Nasceu em Nay, uma cidadezinha situada entre Pau e Lourdes, distante cerca de trinta quilômetros desta última. Em novembro de 1856, é vitimado pela febre tifóide e consegue sobreviver. Contudo, durante dezoito meses, as conseqüências da terrível moléstia vão deixar seqüelas horríveis no infeliz garoto, segundo comprova o processo verbal de seu interrogatório, levado a cabo pela comissão de investigação, cujos membros vão visitá-lo e interrogá-lo a 29 de novembro de 1858: "Restabelecido desta perigosa doença (a febre tifóide), ele foi acometido por um tumor, muito volumoso, que se formou em seu pescoço. Os remédios que lhe foram administrados para esta nova

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enfermidade, segundo a prescrição do médico, deslocaram o tumor que se fixou no alto do peito. Novos medicamentos foram empregados inutilmente e o médico foi obrigado a lancetá-Io. Esta intervenção que provocou a drenagem de uma grande quantidade de matéria e cujo talho se fechou no dia seguinte teve um feliz resultado e, durante mais ou menos quatro meses, Henri Busquet parecia estar recuperado. No entanto, ao cabo de poucos meses, houve nova incidência de febre, nova abertura do corte e, de quando em quando, apareciam pequenos orifícios como que para dar saida a essa violenta inflamação. Em outubro de 1857, a chaga que se fechara, revestiu-se de uma crosta que não se poderia extirpar sem expor o jovem a um novo sangramento da ferida e ao reaparecimento da supuração. O garoto é levado então para Cauterets a fim de se submeter a um tratamento termal. O resultado não é bom. A partir do primeiro contato com a água, a chaga rompe-se. Após quinze dias sem qualquer melhora, o doente é transportado para Nay onde passa um inverno muito triste. E eis que chega a Semana Santa: enquanto a Virgem aparecia a Bernadette o estado de Henri Busquet piorava. No local da ferida, forma-se um "grande tumor" que vem a supurar - o que proporciona ao rapaz um "alivio acentuado". "Mas esse alívio não teve longa duração pois, a partir do dia 15 de abril, além da chaga sempre supurada, surgiram dois gânglios entumescidos, um no pescoço, o outro próximo à face esquerda, gân-glios que levaram o médico a considerar a possibilidade da formação de um novo abscesso que poderia desfigurar o jovem Busquet." Em abril, o jovem ouve comentários sobre os acontecimentos de Lourdes. - Essa água vai curar-me - diz ele à sua família. Ao saber que um vizinho partiria em peregrinação para Massabielle, pede-lhe para trazer um pouco da água milagrosa. Tão logo vê em suas mãos a preciosa garrafinha que a contém, faz o sinal da cruz, uma oração e bebe alguns goles do líquido. Em seguida, com um gesto decidido e irritado, arranca a casca que recobre a ferida

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incurável e lava-a, bem como os novos tumores e os gânglios, com a água gélida. Ele asperge-a sobre o corpo carcomido e febril, deixando-a escorrer até os pés. E pouco depois adormece... Ao se levantar, no dia seguinte, quinta-feira, 23 de abril, o milagre tinha acontecido, está curado. Não sente mais nenhuma dor, não há supurações, nem chaga, nem inflamações! Chama pela mãe a fim de fazê-Ia constatar a cura milagrosa. Porém, a senhora Busquet é mãe de família muito sobrecarregada: tem mais seis filhos, dois dos quais estão para fazer a primeira comunhão. Portanto, somente no terceiro dia é que tem tempo disponível para examinar Henri. Ele está curado mesmo! A horrenda úlcera aberta já não existe mais. A 29 de novembro, quando os investigadores o examinam, encontram-no totalmente recuperado: "A febre, a chaga, os gânglios, tudo havia desaparecido... " Este fato, para os membros da comissão, "parece evidenciar que em tal cura houve um resultado contrário e fora das vias normais da natureza". "Todas as afecções de natureza idêntica a esta - escreverá o Dr. Vergez em 1860 - são de recuperação prolongada, porque estão ligadas à diátese escrofulosa e implicam a necessidade de uma modificação profunda no organismo. Se levarmos em consideração apenas o imediatismo da cura, isso já será suficiente para provar que este caso afasta-se da ordem natural." Um médico contemporâneo, Dr. Thiébault, ao diagnosticar uma midriase tifóide do músculo esterno-cléido-mastoidiano e uma "adenopatia inflamatória", reconhece o "caráter extraordinário" desta cura repentina.

O milagre da "senhora de Nay" Magdeleine Rizan (é a sua história que a senhora Moreau e a filha Marie lerão), uma viúva de cinqüenta e oito anos, moradora em Nay,

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havia sido acometida pela cólera em 1834, ou seja, um quarto de século antes das aparições ocorrerem. A partir daí, torna-se deplorável seu estado de saúde. Além de ter os membros esquerdos enfraquecidos, sofria de escarros sangüineos e, sobretudo, padecia de uma anorexia terrível Na verdade, há vinte anos sua alimentação consistia tão-somente de um copo de vinho misturado com água e café, ingerindo apenas muito raramente, um ovo ou um minguado pedaço de carne. Está claro que já nem tinha mais condições de locomover-se. Esse ano de 1858, passa-o quase que constantemente acamada: no leito, permanece encolhida como uma bola, os joelhos apoiados de encontro ao peito. Há quatro meses a filha passa as noites velando, à sua cabeceira. Recebeu a extrema-unção por diversas vezes. Ao ouvir falar a respeito dos aconteciment.os em Massabielle, pede que lhe tragam um pouco de água da fonte milagrosa. Isso aconteceu no outono de 1858. No dia 17 de outubro, domingo, uma vizinha caridosa traz-lhe, às sete da manhã, o precioso líquido. Magdeleine Riian trata de ingerir de imediato alguns goles... Então, parece-Ihe, como ela própria relatará, que "lhe arrancam uma luva" da mão esquerda semiparalítica. A sua filha, com a água milagrosa, lava-lhe o rosto, onde ela experimenta um "formigamento", e também o corpo, de onde desaparecem as inchações. "E após todas estas operações - contam-nos às oito da manhã, ou seja, uma hora mais tarde, ela comeu com prazer e apetite uma salsicha e um pão e, duas horas depois, levantou-se sem qualquer tipo de ajuda". Alguns dias depois "já não sente nenhuma dor, ingere todo o tipo de alimento, passeia e executa as tarefas comuns a uma pessoa de sua idade". "Este fato é complexo - comenta o Dr. Vergez em 1860 - porém, todas as circunstâncias que o compõem trazem a marca do caráter sobrenatural Fica-se imbuido desta certeza ao examinar o seu mal crônico, cuja origem remonta a 1834 e a força que o gerou: a cólera, a instalação de alguns de seus sintomas num órgão importante da vida,

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o estômago; a inutilidade dos tratamentos prescritos e orientados por um médico capaz, Dr. Superbielle, a diminuição progressiva de suas forças, conseqüência inevitável da Syspepsie e das diminuições causadas pelo elemento dor sobre a enervação, a ineficácia da água natural empregada apenas uma vez e o imediatismo do resultado obtido."

Curar a senilidade... Eis agora uma mulher muito, muito velha, da comuna de Bordères, Marie Lanou-Domengé, que, tem oitenta anos. Até três anos antes ela estava perfeitamente bem para a sua idade. Mas, agora, já mal consegue andar; para deslocar-se, tem que se apoiar numa bengala. E, além disso, necessita de duas pessoas para sustentá-Ia e ajudá-Ia a caminhar. O Dr. Poueymiro, que a visita e trata-a regularmente mas sem resultados, só pode dizer à octagenária: - A Senhora ficará boa quando Deus quiser! No dia 3 de maio alguém lhe traz um pouco da água de Lourdes. Se esta água cura todas as moléstias, por que não irá curar a pior de todas elas, a senilidade? Marie Lanou-Domengé bebe um gole do líquido e, molhando o dedo, faz uma unção sobre a própria testa. "No ato, descreve o relatório da comissão de investigação, larga a bengala, declara estar totalmente boa, anda sozinha com todo o desembaraço e pode cuidar de todo o trabalho da casa. A mudança alcançada é tão assombrosa que, tendo ido ao campo na época da ceifadura do trigo, pediu uma foice e meteu mãos à obra." O seu médico assistente afirma em alto e bom som que esta cura era "estranha aos meios de que dispõe a ciência e que leva a marca do dedo de Deus" . O Dr. Vergez também admitirá o caráter sobrenatural dessa cura, considerando-se "a dificuldade que existe para curar e até mesmo diminuir as afecções crônicas dos anciãos".

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Os primeiros passos de Dominique, aos sete anos de

idade O menino Dominique Lasbareilles, de sete anos, é um infeliz monstrinho: uma corcunda na frente, uma corcunda atrás e pernas tão finas que nunca andou. Fica estendido no "berço" de onde a mãe o tira de vez em quando. Alguns dias antes da Semana Santa, portanto, no mesmo momento em que ocorriam as aparições, o pai de Dominique Lasbareilles vai apanhar uma garrafa de água da fonte e com ela faz fricções no filho. "Na quinta-feira santa, contam-nos, o menino começou a andar e subiu ao celeiro. A sua mãe, amedrontada, seguiu-o até ali e aproximando-se dele, tomou-lhe uma das mãos, colocou-o de pé, deixou-o só e ficou feliz ao vê-lo dar alguns passos. No domingo de Páscoa, o menino foi até o jardim e deu várias voltas sozinho." Após este dia, ainda experimenta uma "visível dificuldade" em caminhar, mas consegue deslocar-se sozinho. Os pais consideram a mudança "prodigiosa". Ademais, o corpo do menino fortifica-se e torna-se menos desengonçado, enquanto a timidez e o medo demonstrados para com os estranhos, timidez e medo anteriormente doentios, atenuam-se sensivelmente. "Não será plausível que a constituição física do jovem Lasbareilles - comenta o bom cônego Baradere - auxiliada pelas abluções feitas com água da gruta tenha experimentado um princípio de liberação de seus entraves, obtido com certa facilidade pelo desdobramento de sua energia que, através de um trabalho interior constante, teria começado a proporcionar um pouco de agilidade, um desvio dos humores, uma tendência de retorno ao estado normal, seja pela diminuição das protuberâncias, seja pelo desenvolvimento ou força das pernas?" Porém o Dr. Vergez se mostrará cético. Julga que o aprendizado gradual do andar numa criança, mesmo aos sete anos, não pode ser de forma alguma considerado milagroso ou sobrenatural.

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As crises nervosas de um homem de vinte e sete

anos Jean-Marie Amaré está com vinte e sete anos. Há cinco anos, é acometido de “ataques nervosos" que o fazem perder a consciência. "Às vezes parece morto" - comenta-se durante essas crises apavorantes. Dois tratamentos de dois meses levado a cabo em Cauterets não surtiram o menor efeito. Na Sexta-feira Santa, 2 de abril de 1858, a Sra. Amaré resolve levar o filho à gruta de Massabielle. Manda-o beber a água da fonte e também lava-o com o maravilhoso liquido. Esta operação acontece por três vezes. Após o quê, Jean-Marie Amaré parece estar definitivamente livre de suas convulsões. O Dr. Dozous, médico do rapaz, tinha diagnosticado uma "epilepsia tipicamente caracterizada". Contudo, desta feita, o pr6prio cônego Baradere mostra-se reservado. Evidentemente, seus conhecimentos em psicologia são nulos em plena metade do século XIX. Mas, apesar de tudo, revela uma surpreendente precisão intuitiva: "A moléstia que atormentava Jean-Marie Amaré seria realmente uma epilepsia? pergunta a si mesmo. Não se trataria apenas de uma violenta superexcitação nervosa, crescendo às vezes até o paroxismo, sobrevinda numa determinada idade, devido a causas várias, interiores ou exteriores? Não teria essa superexcitação nervosa uma intensidade tão constante a ponto de tornar-se posteriormente incurável? Ou então, não poderia ela abrandar, regredir de forma lenta e desaparecer definitivamente com o passar do tempo, por meio do desenvolvimento de uma reação do temperamento auxiliado por cuidados constantes, por medicações inteligentes aplicadas com exatidão?" Quanto ao Dr. Vergez, sua opinião está formada. Para ele, o caso de Jean-Marie Amaré é um caso de "falsa epilepsia" que, aliás, já estava "em vias de cura" .

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Mais um “lobinho"

Mais um "lobinho", o de Marcel Pyregne, um homem de quarenta anos, da aldeia de Agos. Este "lobinho" apareceu-lhe há quatro anos na mão esquerda. Inicialmente tinha o tamanho de um "grão de milho" e agora é igual "a uma noz". . Certo dia, Peyregne vai a Lourdes "a negócios" e aproveita a oportunidade - seria mesmo? - para ir até a gruta e "ali lavar as mãos". "A partir do primeiro dia, relata a comissão de investigação, a eficácia da água se fez sentir: o "lobinho" tornou-se avermelhado e inflamou. Diminuiu ligeiramente. Oito dias mais tarde, uma segunda ablução determinou a cura total. Mais oito dias e não restava dele o mínimo vestígio." O cônego Baradere reconhece que se ignora inteiramente a "natureza" e a "causa" do tumor de MareeI Peyregne, porém mais uma vez fica assombrado com a "instantaneidade" da atuação da água da gruta de Massabielle. Todavia, o Dr. Vergez nada encontra de maravilhoso. Como aconteceu com relação a Blaise Maumus, interpreta o caso como um quisto sebáceo, curado "ou pela ruptura do saco ou pelo amolecimento das suas paredes provocado pela inflamação".

As dificuldades de uma puberdade No dia 20 de dezembro de 1858, quando se realiza a quarta sessão da comissão de investigação, esta dirige-se ao presbitério da pequena comuna de Loubajac, "onde o senhor cura tinha tido a gentileza de reunir diferentes pessoas que se julgavam devedoras de alguns favores à água da gruta de Lourdes". O primeiro caso estudado em Loubajac - o décimo terceiro examinado pelos membros da comissão - é o de uma adolescente de quinze anos, Jeanne Pomiès. Esta, alguns meses antes, tinha sofrido "uma

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perda de sangue quase que contínua". Os remédios prescritos pelo Dr. Amadou não tinham alcançado "nenhum resultado". A jovem e sua família, é claro, escutam comentários sobre a "eficácia maravilhosa" da água de Lourdes: "A senhora Pomiès, certa noite, foi dominada pelo pensamento de obter um pouco dessa água para a filha beber", segundo nos revela o relatório. Mas tal inspiração se dá justamente na época em que a gruta está fechada e algumas barreiras interditam o acesso. Uma vizinha, a quem a mãe da jovem revela seu desejo, oferece-lhe para atravessar as barreiras às escondidas e trazer-lhe um pouco de água. E assim foi feito. A jovem experimentou uma "sensível melhora" desde o instante em que tomou o primeiro gole. O tratamento vai prolongar-se durante três semanas "após o quê, as perdas de sangue cessarão completamente". Mais uma vez, o cônego Baradère, no seu comentário pessoal, dá provas de uma perspicácia psicológica absolutamente impressionante, ao prever que a jovem Jeanne Pomiès recusava-se a enfrentar a puberdade, fenômeno normal entre muitos adolescentes: É bem possível, arrisca o religioso, que este fluxo sangüíneo se origine de uma exaltação ou de uma preocupação íntima preexistente que aflora na tentativa de transpor algum obstáculo a fim de regularizar as perdas sangüíneas que habitualmente aparecem nessa fase da vida das meninas. Este esforço do organismo, penoso e doloroso no inicio, para atingir uma periodicidade normal, essa luta interior, contida por muito tempo, recalcada, teria podido vir à tona através de uma espécie de explosão tanto mais impetuosa quanto mais longa e obstinada fosse a sua resistência. O impulso orgânico, para libertar-se, para estabelecer suas funções, talvez tivesse se manifestado com uma violência excessiva, ultrapassado os limites esperados, provocando momentaneamente esta continuidade, esta superabundância de perda de sangue. Dai, teria resultado o mál que atacava cruelmente a jovem Jeanne Pomiès com uma intensidade violenta demais para resistir, durante algum tempo, aos meios terapêuticos conhecidos."

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E o cônego Baradère concluiu que o papel da água de Massabielle foi acalmar o problema íntimo e permitir a facilidade das funções, através de sua limpidez, seu frescor e leveza. O Dr. Vergez, pouco sensível à delicadeza destes processos psicossomáticos, contenta-se em ressaltar que Jeanne Pomiès sofria de uma metrorragia comum "cujo restabelecimento seguiu o processo norma!" .

Ela cai de um carvalho e fica maneta Continuamos ainda em 20 de dezembro de 1858, no salão do presbitério do cura de Loubajac. Após a jovem que não desejava tornar-se uma mulher, eis uma mulher que espera um filho. Catherine Latapie (apelidada "Chouat", alcunha cujo sentido se ignora) está com trinta e oito anos e tem vários filhos. Está grávida. Mas, se ali se encontra não é para falar dos problemas inerentes à maternidade. Em 1856, dois anos antes, quando tinha subido num carvalho para apanhar algumas glandes, exercício perigoso, caiu da árvore luxando ou deslocando várias articulações do braço direito. Tudo voltou a seus lugares, exceto dois dedos da mão direita que ficaram dobrados. Por isto mesmo não tinha condições para fiar, tricotar nem cuidar da casa. Enfermidade cômoda e bem aventurada, diriam alguns! Eis o que diz o relatório da comissão de investigação: "Começava-se a falar sobre as maravilhas da gruta de Lourdes. Um pensamento domina essa mulher. Um calor interior que ela não sabe explicar incita-a a ir até a gruta. Para ali se dirige acompanhada por seus filhos e várias outras pessoas. Ao chegar, lava as mãos e, de imediato, sente-se inteiramente curada. Os dedos readquirem a antiga elasticidade; já pode abri-Ios, fechá-Ios e usá-Ios. A partir daí não sentiu mais dores na mão, que voltou a ser exatamente como era antes do acidente ocorrido no mês de outubro de 1856." Contudo, esse primeiro milagre é seguido por um outro. Catherine Latapie está grávida no momento dessa ablução que a liberta de uma

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paralisia. Ora, ao mesmo tempo, começa a sentir as dores do parto, segundo nos explica o relatório oficial: "Com a força de sua fé, explica esse relatório, ela pede à Santissima Virgem a graça de chegar em casa antes do parto. Confiante na sua oração, põe-se a caminho com os filhos e não sente nenhuma dor durante o trajeto. Deve-se ressaltar que não comentou com ninguém, sobre suas preocupações, nem mesmo com a parteira que se encontrava em Lourdes. Tinha apenas se passado um quarto de hora que chegara em casa, quando deu à luz de modo feliz e praticamente sem dores... O trajeto feito por Catherine Latapie é de cerca de doze quilômetros e através de um caminho muito acidentado." O cônego Baradère fica admirado com este "fato maravilhoso", conquanto reconheça que não se sabia exatamente a causa da deformação da mão de Catherine Latapie, "lesão funcional dos nervos ou dos tendões flexores" ou então "anquilose nas articulações dos dedos". O Dr. Vergez coloca, sem maiores hesitações, o caso da senhora Latapie na categoria dos "fatos que possuem um caráter'sobrenatural de modo pleno e de forma evidente". Após a sessão de investigação, o cura de Loubajac havia sugerido à sua paroquiana que fosse procurar o médico que a assistira por ocasião de sua queda do carvalho e que, pouco tempo depois, tinha declarado publicamente que ela nunca mais teria condições de usar os dedos. Catherine Latapie faz, então, uma coisa estranha: vai visitar o médico porém não ousa mostrar-lhe a mão, agora inteiramente recuperada. - Mas por quê! - pergunta-lhe o cura. - Pra quê? - responde a miraculada. - Se eu estava curada e ele não acreditava na aparição da gruta...

O eczema de uma senhorita de trinta anos Neste mesmo 20 de dezembro de 1858, a comissão de investigação parte do presbitério de Loubajac para o de Lamarque-Pontacq, onde o

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cura do local também reuniu os seus miraculados bem como o médico da região, o Dr. Amadou. Inicialmente vejamos Marianne Garrot, uma celibatária de trinta anos. Há anos sofria de uma moléstia da pele, muito desagradável, que o vocabulário médico da época denomina de uma "dermatose leitosa" (um tipo de eczema). Esta doença desfigurava-lhe terrivelmente as feições causando inchações nas pálpebras. Todas as pomadas e ungüentos da farmacopéia da época de nada tinham adiantado. Um dia, também ela se decide a recorrer à água da gruta de Massabielle: uma ablução, duas abluções... e a "dermatose leitosa" desapareceu como que por encanto. O resultado alcançado é ainda mais significativo porque, durante o tempo em que a senhorita Garrot faz as abluções com a água da gruta, o Dr. Amadou mandou-a suspender o tratamento que ele próprio prescrevera, numa louvável preo,cupação com a constatação científica. O cônego Baradére ressalta em seu comentário que as moléstias da pele do tipo desta "dermatose leitosa" não são, evidentemente, incuráveis, porém necessitam de "cuidados longos e perseverantes" e de "assiduidade no tratamento" e que não há exemplos de resultados satisfatórios, obtidos apenas com duas abluções de um preparado qualquer. O Dr. Vergez, no entanto, demonstrará hesitação em se pronunciar: "Resistência do mal a uma terapia ativa, melhora manifesta quando da primeira ablução, saúde perfeita seis meses depois, conseqüentemente, exclusão da metástase como meio de cura, estas são as circunstâncias que nos levariam a pensar que este fato pertence, realinente, à ordem sobrenatural. Contudo, estas circunstâncias são insuficientes, mediante a constatação de que as dermatoses podem desaparecer sem uma causa conhecida, não apenas no decorrer de poucos dias, como aconteceu com a senhorita Garrot, mas ainda de uma forma quase súbita, da noite para o dia, por exemplo."

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Denis (oito anos) não sabe andar nem falar

Depois da senhorita Garrot, livre da sua moléstia de pele, comparece diante da comissão de investigação um garoto de oito anos, Denis Boucher. Mais uma dessas crianças de subdesenvolvimento físico e mental assustador, das quais o século XIX rural parecia tão pródigo. Praticamente nunca tinha andado. Sua única exploração motora consistia em dar a volta a uma cadeira segurando-se com força em suas traves de madeira. É mudo sem ser surdo - disseram - e "possuidor de uma fisionomia muito interessante" . O pequeno Denis foi levado à presença da comissão de investigação por sua tia, Jeanne-Maria Pouzac, de trinta e quatro anos. Os três membros da comissão constatam que, se a criança não saltita como um cabritinho, desloca-se todavia quase que normalmente, embora ainda com "um pouco de dificuldade". É durante a quaresma que os pais do garoto conseguiram a água de Lourdes e com ela fizeramlhe quatro abluções. Não obtiveram qualquer resultado. Resolveram, então, levar Denis até a gruta e lavá-Io com água direta da fonte. A partir do dia seguinte, "a pobre criança caminha sozinha, sem ajuda nem apoio". O cônego Baradère ressalta; sobre esse caso, que o tratamento em casa com a água de Massabielle demonstrou-se inoperante e que só a partir do momento em que o pequeno Denis foi lavado no próprio local é que a cura foi realizada. E recorda que em outros casos a água opera curas longe da fonte, "na própria casa dos enfermos". E conclui num acentuado arrebatamento mistico: "Essa constatação demonstra, como última evidência, que a água de Massabielle, idêntica à da fonte e transportada para longe, age, não em virtude de um principio curativo que lhe seja inerente, mas sim pela inteligência e indulgência espontânea de uma força misericordiosa que distribui dádivas a seu bel~ prazer, e superior a qualquer energia criada."

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Porém, para o Dr. Vergez, o caso do pequeno Boucher é duvidoso: "O fato de andar e o emprego da água da gruta - diz ele - constituem fatos independentes, ainda que contemporâneos? O primeiro está subordinado ao segundo e, neste caso, será que houve a intervenção de uma força sobrenatural, ou terá havido apenas uma simples coincidência? Eis algumas perguntas a cujas soluções não saberíamos fazer muitas restrições. Na verdade, quanto ao imediatismo do resultado, a observação pode apresentar alguns casos em que a faculdade de caminhar desenvolveu-se subitamente. Além do mais, pode-se objetar que a cura em foco não aconteceu rapidamente, e que, no seu desenvolvimento gradual, ela submeteu-se às leis da natureza, e que vários meses após a viagem a Lourdes, havia ainda uma visível dificuldade no andar."

Ainda as verrugas...

Terceiro presbitério, neste mesmo dia 20 de dezembro de 1858, para os incansáveis membros da comissão de investigação. O presbitério de Montac, onde são aguardados pelo cura e pelo vigário da paróquia, acompanhados por seus miraculados... Tratavam-se de miraculados bastante comuns. Primeiro comparece Jeanne Germa, de vinte e sete anos, a quem a água de Massabielle livrou de uma verruga "do tamanho de uma avelã", na mão esquerda. Esta verruga fazia-a sofrer, pois supurava de tempos em tempos e sangrava. Quando foi a Lourdes "a negócios", acompanhada por alguns amigos, aproveitou a ocasião para ir molhar a mão esquerda na fonte. Recolhe um pouco do líquido com o objetivo de prosseguir o tratamento. Um mês mais tarde, a horrível excrescência de carne desapareceu totalmente. O Dr. Amadou, que lhe propusera cauterizar a verruga ou extrai-Ia, constatou esta cura pela qual Jeanne Germa "dá graças à Santíssima Virgem, a quem não pode deixar de atribuir o seu restabelecimento" .

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O cônego Baradère, no seu comentário, lastima que tal cura não tivesse tido aquele caráter de rapidez e espontaneidade que toca as imaginações, mas enfim ele "tende a julgar que ela apresenta os indi-cios de uma graça sobrenatural". Contudo, o Dr. Vergez nada vê de milagroso neste "caso de cura de verruga através de abluções que tiveram a duração de um mês". O homem com o tornozelo luxado retira-se correndo

Quanto a Auguste Bordes, também presente ao presbitério de Pontacq, é um jovem (trinta anos) que teve uma entorse, não sabemos se no pé direito ou esquerdo. Após o acidente, primeiro o tornozelo e em seguida toda a perna, incham desmesuradamente. Vê-se forçado a ficar acamado durante um mês. O médico recomenda uma sangria: a antiga medicação do tempo de Moliere ainda é empregada! O intumescimento diminui muito pouco. Auguste Bordes tenta levantar-se, porém não conseguindo encostar o pé no chão é obrigado a recorrer ao auxilio de uma bengala. Mas não é este o curso normal de uma torção? Contudo, Auguste Bordes fica impaciente, a inatividade pesa-lhe, resolve arranjar alguém que o leve de charrete até a gruta de Massabielle. Piedosamente, assiste primeiro a missa e depois dirige-se sozinho até a gruta, mancando bastante. Ali lava o pé e a perna e asperge-os com água em abundância. Subindo o outeiro pelo famoso caminho do "precipício", já se sente melhor. Pode voltar para Pontacq a cavalo e não de charrete. Alguns dias mais tarde, renovará sua visita à fonte milagrosa com tanto sucesso que se retira correndo... O cônego Baradère relembra que as luxações "necessitam, em geral, de cuidados prolongados e constantes" e que as circunstâncias da cura de Auguste lhe parecem tão "surpreendentes" que "tende" a admitir a atuação do sobrenatural. Mas para o Dr. Vergez este não

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passará de um simples "caso de torção de pé sem particularidades a observar".

As dificuldades de uma menopausa Somente um mês mais tarde é que a comissão de investigação recomeçará seus trabalhos. A 17 de janeiro de 1859, o abade Peyramale, o arcipreste Nogaro e os cônegos Baradère e Fourcade encontram-se no presbitério da comuna de Arras. São duas horas da tarde. A primeira pessoa a apresentar-se à comissão é Jeanne Crassus, cuja idade ainda é imprecisa mas relativamente avançada, entre cinqüenta e sessenta anos. É uma solteirona. Já faz vinte anos que padece de uma moléstia não menos imprecisa que sua idade, mas com manifestações espetaculares. Tratase de "ataques nervosos bastante freqüentes com convulsões assustadoras". Outros testemunhos falam em "doença cardíaca" e de "reumatismo agudo". Jeanne Crassus, por várias vezes, julgou que estivesse prestes a morrer e solicitou a administração dos últimos sacramentos. Vários médicos, chamados para examiná-Ia, desistiram de tratar dela e, ao que nos conta, viu-se "abandonada inteiramente aos cuidados da providência..." Quando ouve falar sobre as aparições da Virgem a Bernadette, resolve ir até a gruta, "sem, no entanto, pretender pedir a cura de sua enfermidade, mas tão-somente graças espirituais". Primeiro faz uma novena "muito fervorosa", depois arrasta-se até a gruta onde reza "com toda a alma" e em voz bem alta: - Santíssima Virgem Maria, faça de mim o que quiser, mas salve fi minha alma e devolva-me a saúde para que eu ainda possa trabalhar em favor do alívio das almas do purgatório. Jeanne Crassus ainda irá por três vezes à gruta. Isto aconteceu durante o mês de maio de 1858. Quinze dias após a quarta peregrinação, os ataques nervosos cessam. E o apetite volta.

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Então, quando assistia a missa na sua paróquia, uns quinze dias após a última peregrinação, Jeanne Crassus é acometida, em plena igreja, por "uma crise" particularmente violenta, mas muito rápida. Teve a impressão de que ia morrer... E não teve nenhum outro ataque. Foi a Virgem Maria quem a salvou... proclama ela por todos os lados. O cônego Baradère, numa análise subjetiva sobre o caso, revela-nos, mais uma vez, dotes psicológicos realmente notáveis. Chama a atenção para o fato de que Jeanne Crassus provavelmente não sofria de nenhuma "lesão orgânica interna", caso contrário "não teria resistido por tanto tempo". Conclui que Jeanne Crassus padecia de uma "irregularidade dos fluxos sangüineos periódicos, uma tarefa cuja finalidade era alcançar e estabelecer um curso normal, tarefa cujo incessante esforço, entravado por obstáculos que ela procurava ultrapassar, ter-lhe-ia causado estes ataques nervosos, estas convulsões assustadoras". Pois bem, a chegada da menopausa iria levá-Ia naturalmente a uma "calma reparadora". Foi para realizar esta "esperança secreta, misteriosa para ela mesma" que Jeanne Crassus dirigiu-se àgruta. Essas peregrinações foram a ocasião e não a causa da cura... Isto é o que afirma rápida, brutalmente e sem rodeios, o Dr. Bergère, para quem Jeanne Crassus representa àpenas um "caso de afecção nervosa de sintoma histérico curado pela menopausa".

"O Bom Deus acaba de me aliviar, também quero aliviá-Ia"

Jeanne-Marie Massot Bordenave. também residente em Arras, é uma mulher da mesma idade de Jeanne Crassus. Em maio de 1858, portanto bem próximo das aparições, tinha estado doente (não sabemos com exatidão de que moléstia se tratava) e sua recuperação não foi total. Na realidade, ficara "entrevada" dos pés e das mãos: nem mesmo podia cortar o pão para comer ou calçar os sapatos. Para se vestir sozinha, necessitava bem de uma hora. Tinha as mãos permanentemente "inchadas, violáceas e sensíveis". No final do mês

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de setembro, vai até Tarbes visitar o irmão. Ao voltar, resolve fazer uma parada em Lourdes e visitar a gruta de Massabielle: "Ela enfiou as mãos na água - relatam os investigadores - e de imediato, instintivamente, apanhou a faca no bolso, cortou o pão e comeu-o. Deu-se conta, então, de que acabava de ficar curada das mãos. Encorajada por essa primeira graça, quis submeter os pés à ação da água: o resultado imediato foi uma dor muito violenta, porém uma segunda tentativa proporcionou-lhe o mesmo feliz resultado das mãos." Ao retornar a pé da gruta, caminhando alegremente, cruza com uma garotinha sentada à margem da estrada, que acabava de recolher lenha na floresta e que, exausta, havia ali depositado seu pesado fardo. - O Bom Deus me trouxe um grande alívio diz-lhe Jeanne-Marie Massot, parando junto da menina - também desejo aliviá-Ia. E a cinqüentenária recolhe o fardo e com movimento ágil, como se não representasse o mínimo esforço, coloca-o em cima da cabeça - estamos numa época em que a maioria dos pequenos fardos são carregados desse modo, sobre a cabeça das mulheres e leva-o até as portas de Lourdes. Uma cena emocionante que inspirou várias imagens ingênuas feitas naquele tempo. Ao analisar esse caso, o cônego Baradère ressalta que uma vez extinta “a moléstia principal", Jeanne-Marie Massot Bordenave deixara de chamar médico e de se tratar. Logo, "a contração dos nervos dos músculos" de que padecia era devida, provavelmente, à "incúria e à ausência de qualquer medicamento" . Não deixa de reconhecer, porém, que a rapidez da cura, após uma única imersão na água da fonte, possui "um caráter fora do comum e bastante surpreendente". O bom cônego hesita, no entanto, em ver naquilo alguma coisa decididamente sobrenatural: contenta-se em dizer que a própria Jeanne-Marie Massot Bordenave "se julga objeto de uma cura realmente milagrosa". Desta feita, é o Dr. Vergez quem se entrega a uma engenhosa análise psicológica do caso:

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"Não se pode deixar de reconhecer que todos os aspectos desse caso, escreve ele, falam a favor da intervenção de uma causa sobrenatural. Contudo, examinando-o com atenção, não poderíamos deixar de formular algumas objeções justificáveis. A origem do mal remonta hâ quatro meses apenas e sua natureza não é séria. Trata-se de uma debilidade de convalescença, uma redução da energia nos músculos extensores e flexores dos dedos e dos artelhos. Basta que a enervação aflua nesses músculos, sob a influência de uma forte excitação moral para que, de imediato, eles readquiram sua função. Ora, não é possível reconhecer nesse caso a interferência de uma exaltação pelo sentimento religioso e pela esperança de ser o objeto de uma graça milagrosa?"

A mulher que sofria de uma "dor no peito"

No dia seguinte, 18 de janeiro, os quatro membros da comissão de investigação estão de volta a Lourdes, onde vão examinar sete casos de enfiada. Esta longa sessão tem lugar na sacristia da igreja paroquial. A primeira a apresentar-se é Benoite Cazaux, uma mulher de cinqüenta e cinco anos. Já fazia três anos que estava "doente". Debilitada e sem forças, foi obrigada a passar, por duas vezes, seis meses seguidos de cama. Entre outras coisas, sentia uma "dor no peito quase permanente". Foi uma das primeiras pessoas que freqüentou a gruta, pois foi levada, ou melhor, carregada até lá, no dia 5 de março: "Assim que ingeriu a água, experimentou uma melhora sensível. A febre, que era constante há muito tempo, diminuiu de imediato e desapareceu totalmente após alguns dias. Teve condições de retornar à cidade sem o auxílio de ninguém e sem usar bengaIa. No dia seguinte, volta à gruta sem qualquer ajuda. Várias pessoas que ali se aéhavam, vendo-a chegar caminhando com tamanha facilidade, demonstraram imensa surpresa e ofereceram-lhe sua assistência. Ela

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agradeceu a todos. A dor do peito, a febre, a fraqueza generalizada e as outras dores declinaram sensivelmente logo após o primeiro gole da água da fonte. Sentiu-se tão feliz com o resultado obtido que nunca mais deixou de beber a água que acredita milagrosa." O cônego Baradère admira o efeito quádruplo e curativo da água da fonte exercido sobre ela: "abrandou as dores generalizadas, diminuiu a febre constante e tenaz, fez desaparecer o ponto dolorido no peito, restabeleceu-lhe as forças", o que determinou, afirma ele, "o equilíbrio da economia animal". Contudo, o Dr. Vergez não se pronunciará devido à "confusão reinante no relatório dessa mulher", diria ele.

Os reumatismos de Marie Vendôme A senhora Marie Vendôme está com vinte e oito anos. Já fazia sete semanas que estava acamada, sofrendo das pernas e dos joelhos, bastante inchados e doloridos, quando o tempo melhorou e o sol iluminou o seu pobre quarto. Com o auxílio de uma cadeira, consegue sair da cama, pôr-se de pé e ir acomodar-se na soleira da porta de entrada. Encontra-se ali, respirando o suave ar primaveril, quando vê passar uma de suas vizinhas e amiga: - Vou até a gruta de Massabielle - diz ela a Marie Vendôme. - Quer ir comigo? - Não zombe de mim, replica Marie Vendôme. Não vê o estado em que me encontro? Mal consigo mexer-me. Mas bem que gostaria de ir até lá um dia. A vizinha continua seu caminho. E Marie Vendôme observa-a com inveja - com tanta inveja que poucos dias depois dirige-se para Massabielle, apoiada na mãe e numa parente. O trajeto é longo e penoso até se alcançar a parte superior da gruta. Porém como descer a encosta? Marie Vendôme não permite que a carreguem. Senta-se e, arrastando-se sobre as roupas, deixa-se deslizar até em baixo, bem

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devagarinho. Na fonte, após uma oração feita em comum, as pernas e os joelhos são lavados e friccionados com todo o cuidado. "A doente, lê-se no relatório de investigação, experimenta de imediato uma sensivel melhora. Sobe o barranco, com muito menos dificuldade e sofrimento do que sentira ao descer. Chegando ao platô, percebe que está praticamente curada. Anda com facilidade, chega à cidade sem qualquer apoio. Em casa, cuida da arrumação que fora forçada a abandonar já fazia sete semanas e prepara o jantar do marido que a olha estupefato." Durante vários dias, devido à alegria de se sentir curada, Marie Vendôme não anda, corre "como uma criança", todas as vezes que se desloca. O cônego Baradère não se sente muito inclinado a considerar essa cura como milagrosa: "As dores de que padecia Marie Daube, então senhora Vendôme, parecem ter um caráter reumático: poderiam originar-se numa torção provocada por algum passo em falso, algum esforço violento, ou de algum golpe de ar frio que poderia tê-la surpreendido com o corpo suado, após algum trabalho demorado e difícil. Sob este ponto de vista a situação da doente nada tinha de grave ou de perigoso." Ele também acha que Marie Vendôme não necessitava de mais nada além de "cuidados, é claro" e também "de um estimulo enérgico": "Pois bem - comenta ela - o impacto causado pela limpidez, pelo frescor da água provocou esta revolução salutar que, ajudada, secundada, fortalecida pelas fricções, manifestou-se rapidamente através da diminuição das dores, da agilidade inicial nas duas pernas, logo desenvolvida pela ascensão do outeiro e pelo trajeto até a cidade." Contudo, o Dr. Vergez coloca a cura de Marie Vendôme na categoria dos "fatores possivelmente sobrenaturais". Seu diagnóstico pessoal é que ela padecia de um "reumatismo fibroso bastante intenso", do qual se "livrou instantaneamente" após a ablução com a água da "fonte". "Existe nestes casos - diz o médico - um toque de sinceridade que nos levaria a reconhecê-Io como de caráter sobrenatural se ignorássemos

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que o reumatismo já se achava em vias de recuperação, e que a reação que se seguiu ao emprego da água fria, auxiliada pela alegria da pessoa em questão, foi capaz de gerar um aumento da enervação e provocar o repouso nos músculos do tronco e, sobretudo, nos músculos dos membros."

Fabien, Suzanne e a malária Fabien Baron tem oito anos e sua irmãzinha Suzane cinco. Moram com os pais no bairro mais insalubre de Lourdes, o bairro Marcadal, localizado próximo aos pântanos do Monge. Há dois anos as crianças sofrem daquilo que na época se chamava de "febres quartãs", "isto é, uma forma de impaludismQ ou malária". Um dia o pequenino Fabien ao sentir os prenúncios de um acesso da doença, resolve ir até Massabielle acompanhado por alguns amiguinhos. O bando de garotos segue cheio de confiança, acompanhando o pequeno Fabien que bebe alguns goles da água milagrosa. O acesso de febre tem início, porém cessa quase que de imediato. A criança volta correndo para casa e exclama dirigindo-se aos pais: - Sinto que vou ficar bom! Sinto que vou ficar bom! Os pais, ao verem aquilo, resolvem levar a pequenina Suzanne à gruta. Mas a pobrezinha está tão magra, tão debilitada, que tem de ser carregada nos braços como se fosse um bebê. Dão-lhe alguns goles da água e lavam-lhe o rosto. Isto aconteceu na quinta-feira santa, 1º. de abril de 1858. E no dia da reunião da comissão de investigação, ou seja, cerca de dez meses depois, são duas crianças robustas e rosadas que se apresentam com um aspecto saudável e são admiradas por sua "esplêndida aparência" e "perfeita saúde". O cônego Baradère considera que o menino Fabien foi inspirado pela Providência Divina quando decidiu ir à gruta de Massabielle com seus amiguinhos. Todavia, o que deixa este prelado pouco à vontade a respeito do "efeito benéfico" produzido na criança pela água da gruta,

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é o fato de ter-se declarado o acesso de febre ainda que "visivelmente mais fraco tanto no que se refere à duração como à intensidade": A rapidez desta salutar influência", observa o cônego como se quisesse desculpar a Virgem pela imperfeição desse milagre, "poderia ter sido mais evidente se esta bebida tivesse evitado o acesso, se o tivesse bloqueado, destruído, por assim dizer, de imediato. Contudo, se tal tivesse ocorrido, poder-se ia objetar que a febre havia cedido, desaparecido por si mesma, por ter concluido seu curso, passado seu tempo, devido a uma reação violenta do organismo de Fabien. Portanto, o reaparecimento da febre, no dia e hora habituais, indica e comprova ainda a presença e o esforço do princípio mórbido, princípio e esforço que a água, por uma espécie de premeditação, deixa acontecer livremente, com o intuito de demonstrar, de forma incontestável, a sua força cura tiva, primeiro pela redução imediata da moléstia e, logo depois, pelo seu desaparecimento definitivo. Quanto à pequena Suzanne, o cônego Baradere sublinha um fato muito importante: ela também ficou radicalmente curada "apesar de haver continuado a morar no mesmo domicílio, isto é, no mesmo ambiente insalubre, nas mediações dos mesmos pântanos, cujas emanações contaminadas deveriam, naturalmente, provocar o reaparecimento da enfermidade, especialmente em duas pessoas já a ela predispostas" . A sua conclusão não deixa a mínima dúvida: "A recuperação de Fabien e Suzanne Baron, escreve o cônego Baradère, não pode ser considerada senão como uma graça compassiva Daquele de quem depende a saúde e a doença, a vida e a morte, e que concede aos homens, a seu bel-prazer, as virtudes mais estranhas à essência de sua natureza." O Dr. Vergez declarará sentir "repugnância em excluir esta cura do domínio da ordem natural". E explica o porquê desta repugnância: "Quando se sabe que os sentimentos vivos da alma, a esperança, a alegria, a expectativa, quando se sabe que algumas coisas, alguns pontos tocam profundamente a imaginação, especialmente nas

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pessoas possuidoras de uma inteligência limitada, como um aborrecimento profundo, em resumo, quando se sabe que meios morais e físicos que atuam sobre o sistema nervoso, de modo violento, fizeram desaparecer alguns tipos de febre intermitente e persistente; quando se sabe ainda que, em nossos dias, uma das pretensões da hidroterapia é a cura das febres intermitentes, e que, durante os dias de acesso, as duas crianças beberam vários copos de água da fonte, a qual sob o ponto de vista natural, é uma água potável de rocha, não podemos entregar-nos a esse arrebatamento sem nos expormos a substituir o erro pela verdade." Uma criança de três anos aprende a andar dentro da

fonte Outra criança com deficiência no que se refere ao aprendizado de andar: trata-se do menino Laffitte (não sabemos seu nome). Tem três anos e sua mãe, Augustine, quarenta e quatro. O menino é capaz de manter-se sentado, porém incapaz de ficar de pé ou andar. Augustine leva o filho, por três dias seguidos, a Massabielle, onde o banha. Após a terceira ablução, o garotinho começa a caminhar e continua fazendo progressos. "Esta melhora, pergunta a si mesmo o cônego Baradère, não será uma recompensa, uma graça celeste concedida à fé ardente da mãe?" O cônego Baradère recusa-se a ver uma "intervenção sobrenatural" no caso. Na sua opinião as abluções com "água natural, pura, fria", foram suficientes para "introduzir nos músculos e nervos um pouco de tonicidade e vigor" e "produzir uma reação salutar". O Dr. Vergez concordará com ele, pois, na sua opinião, "todos os pormenores parecem ter seguido o curso normal".

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Uma criança raquítica Bernadette Soubies tem sete anos e anda, porém é vítima de raquitismo: há dois anos e meio a garotinha sofre da coluna vertebral. Foi levada às águas de Barèges e Cauterets, sem contar os diversos remédios disponíveis à medicina daquela época - porém sem alcançar nenhum resultado. Sua mãe, Jeanne-Marie, de trinta e oito anos, ao ouvir referências sobre as aparições da Virgem em Massabielle e sobre o aparecimento da fonte, vai buscar um pouco da água "com muita dificuldade", segundo as noticias que nos chegam, porque esta era ainda escassa e praticamente no estado de ressudação. A ablução feita com essa água não ofereceu o minimo alívio à pequena. Porém, um domingo, achando-se na igreja com os pais que assistiam as vésperas, pede-lhes para levarem-na até a gruta. O seu pedido é satisfeito. Lavam-na na fonte e, desta feita, "a menina parecia estar padecendo menos; foi até capaz de subir uma parte da encosta sozinha, segurando apenas no dedo do pai". Quando chega ao topo da encosta, seus olhos estalam tão alto que seu progenitor escuta: - Quebrou alguma coisa? - pergunta-lhe preocupado. - Não, papai - responde a menina Bernadette Soubies. Mas, por uma questão de segurança, ele toma-a nos braços para levá-Ia de volta a casa. Quanto à mãe, retorna à gruta com regularidade para buscar água que, entrementes, tinha-se tornado "muito abundante", e duas vezes por semana banha a filha com o líquido. Qual foi o resultado? "A pequena Bernadette caminha há muito tempo com imensa facilidade." O cônego Baradére, contrariamente aos outros membros da comissão de investigação que, segundo ele, são reservados demais a respeito do aspecto "sobrenatural dessa cura", argumenta a favor dela. Ressalta que a coluna vertebral é "uma das partes mais delicadas da

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economia animal” e que as dores da pequena Bernadette Soubies não cederam nem com as águas de Baréges, nem com as de Cauterets. E toma a si o encargo de demonstrar que a água da gruta de Massabielle age com muito mais eficácia sob o ponto de vista sobrenatural do que natural. Além disso, gaba-lhe a "admirável rapidez" de ação: "Sem dúvida, reconhece ele, esta rapidez não levou a uma cura total e completa, mas a melhora não deixou de ser menos real e muito mais surpreendente do que se fossem utilizados diversos medicamentos, assim como as águas termais, com todas as suas propriedades, não conseguiram produzir o menor resultado. Por outro lado, essa rapidez do poder curativo foi o indício de um meio especial,o encorajamento para perseverar no uso da água como uma promessa e uma garantia de cura definitiva, alcançada através dos banhos com essa mesma água." O Dr. Vergez não concorda com o cônego Baradére. Para ele não passou de um "caso de raquitismo curado após o emprego prolongado da água da gruta que parece ter agido sobre o mal através de suas propriedades naturais".

Dez anos com os dedos retorcidos... Ainda na sacristia da igreja paroquial de Lourdes, vem agora apresentar-se diante da comissão, a fim de dar seu testemunho, a senhora Jeanne Crozat. Está com quarenta anos e nos últimos dez, todos os dedos de suas mãos estavam "inteiramente retorcidos", como ganchos, fato este que, além de tudo, provocava-lhe o aparecimento de chagas nas palmas. Tomam conhecimento de que "lhe era impossiível fiar, coser, segurar qualquer coisa com os dedos, cuidar dos afazeres domésticos, então feitos pela filha mais velha, sob sua orientação". Certo dia, quando estava levando o jantar para o marido (cuja profissão ignora-se), passou perto da gruta de Massabielle,

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acompanhada por uma vizinha. Esta aconselha-a com empenho a "experinientar uma água sobre a qual já se diziam tantas coisas boas". E a senhora Crozat assim fez: mergulha as mãos na água cristalina e gélida e "sente-se logo aliviada" . Depois de mais duas visitas à gruta, a cura é total. "Os dedos abriram-se totalmente, readquiriram sua elasticidade e as chagas das mãos desapareceram quase que de imediato." Para o cônego Baradêre, não resta a menor dúvida que esse caso se encontra "além das vias normais da natureza": "Recorre-se, em vão, à eficácia do tratamento hidroterápico a fim de dar uma explicação natural a essa cura. Apesar de toda a sua força jamais poderíamos atribuir-lhe esse resultado repentino, uma rapidez tão surpreendente e completa, já que tal tipo de tratamento exige sempre mais tempo, requer aplicações mais freqüentes e repetidas. Ainda que a energia desse procedimento pudesse ser invocada através da relação entre a contração dos dedos e sua recuperação, não poderíamos reconhecer, de forma alguma, o desaparecimento das chagas. Além disto, se quiséssemos atribuir à água de Massabielle - aplicada por três vezes em forma de abluções - o mérito da eficácia hidroterápica, Jeanne Crozat jamais teria sido acometida por sua doença, ou, no mínimo, já se teria curado há tempos. Isto porque, tanto antes como durante sua enfermidade, tinha usado com freqüência, ou melhor, todos os dias, a água natural parecida ou idêntica à da gruta como, por exemplo, a do Gave, ao fazer em casa seu asseio pessoal, ao dirigir-se ou ao retornar do campo. Seria, portanto, ainda mais estranho e inteiramente inexplicável que essas aplicações quotidianas de água natural nada tivessem evitado, nada produzido, e que esta cura tivesse ficado reservada à água de Massabielle. Apesar da longa argumentação do cônego Baradêre, o Dr. Vergez hesitaria em se pronunciar. Considera essa história de "dedos retorcidos... muito mal contada..."

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Quatro meses de abluções com a água de Lourdes

para o tratamento de uma acne juvenil A última "miraculada", cujo caso é examinado nesta tarde exaustiva de terça-feira, 18 de janeiro de 1859, chama-se Pauline Bordaux. Tem quinze anos, cerca de doze anos antes, portanto quando contava apenas três anos, apareceu a primeira espinha em seu rosto, seguida de imediato por várias outras que lhe deformaram o pescoço e supuravam sem cessar. Vários foram os médicos que tentaram curá-la sem conseguir qualquer sucesso. Tinham-na mandado às águas de Cauterets, de Bagnères, de Barèges. Desfigurada, muito magra e enfraquecida, a jovem parecia deixar-se morrer. Mas a partir do momento em que se lhe fizeram algumas abluções com a água da gruta, teve um "alívio sensível". Essas abluções devem ter sido feitas ininterruptamente durante quatro meses até que a infeliz Pauline ficasse livre das horríveis pústulas e seu estado geral se tornasse "mais satisfatório": "O emprego constante dessa água - comenta com lirismo o cônego Baradêre - domina esse mal pela base, ataca~o na raiz, o destrói gradativamente, atingindo de alguma forma a sua origem, desenca-deia uma melhora que não regride mais, continua progredindo sem cessar, até o momento em que atinge a cura completa pela supressão de qualquer supuração, pela destruição dos gânglios e cicatrização das feridas." Trata-se de uma cura "maravilhosa" oriunda de uma "causa superior" às virtudes termais. Mas o Dr. Vergez recusou-se a reconhecer neste caso, por ele definido de "afecção escrofulosa" atualmente falaríamos de "acne juvenil" - a ocorrência de um milagre, uma vez que o tratamento teve que ser seguido durante quatro meses!

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"Estou vendo o Bom Deus e a Virgem Santíssima", diz a criança paralítica

A 23 de março de 1859 dá-se a sétima e última viagem da comissão de investigação. Esta viagem, a mais longa de todas, leva os investigadores dos milagres ao norte, a Saint-Justin, pequena comuna do departamento de Gers. François e Marie Tambourré apresentam seu filho, o pequeno Jean-Marie. No momento, conta cinco anos e meio. No ano anterior, em junho de 1858, quando toda a família estava na igreja onde se oficiava a missa de primeira comunhão, o menino é acometido por uma súbita paralisia das pernas. Não consegue mais manter-se de pé e muito menos andar. Além de tudo, a partir desse momento, Jean-Marie começa a queixar-se de uma dor no joelho direito que o faz chorar e gritar, especialmente à noite. É o pai quem se levanta sempre para fazer fricções ou aplicar cataplasmas no menino. Em setembro, o médico prescreve um tratamento termal nas águas de Blousson. O infeliz garotinho é submetido a treze banhos e tudo quanto se consegue é uma "leve melhora". Um outro médico que ali se encontra, examina a criança e explica que ela só poderia curar-se com um tratamento bastante longo, de uns três ou quatro anos, acompanhado por um regime alimentar especial. A mãe, que não é rica, assusta-se diante da idéia dessas despesas, as quais não poderia assumir, e parte das águas de Blousson levando o filho consigo. O estado do pequeno Jean-Marie piora. Não só está paralítico mas inapetente. Com muita dificuldade engole, de tempos em tempos, um biscoito ou um bombom. A 23 de setembro, o senhor e a senhora Tambourré dirigem-se à gruta de Lourdes. A mãe carrega o menino nas costas. Uma vez lá, despe-o totalmente e coloca-o "embaixo das torneiras da fonte". Após a ducha gelada, torna a vesti-lo sem nem mesmo enxugá-lo. E então...

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"O menino calçou o sapato, sem nenhuma ajuda, coisa que não tinha condições de fazer já há três anos e logo após dirigiu-se sozinho até a abertura do rochedo onde se diz que a Santíssima Virgem tinha aparecido." A mãe corre atrás dele, segura-o, coloca-o nos braços e ergue-o para que seus olhos fiquem à altura do nicho: - Está vendo alguma coisa? - indaga a mãe, cheia de fervor. - Estou vendo o Bom Deus e a Virgem Santíssima - responde a criança ingênua. Jean-Marie continua a andar normalmente durante toda a noite. No dia seguinte, a senhora Tambourré e seu filho voltam a Lourdes. A mãe manda celebrar missa e acende uma vela, depois retorna à gruta a fim de dar uma segunda ducha em Jean-Marie. Ao voltar a Saint-Justin, o menino "entra em casa cabriolando e atira-se feliz nos braços do pai, gritando que está curado". Isto acontece na sexta-feira. No domingo, o garotinho continua a andar normalmente e acompanha os pais à missa. Na igreja, o abade Soulas, que conhecia a criança muitíssimo bem, não acredita no que seus olhos estão vendo: "Eu mesmo, devo dizê-lo - escreverá ao cônego Baradare, secretário da comissão episcopal de investigação -, fiquei agradavelmente surpreso quando no domingo, após a volta do inocente peregrino, vi-o na igreja todo alegre e gozando saúde. Também bendisse ao Senhor pelo que lhe deu, conservou e até mesmo acrescentou com relação ao vigor natural, à recuperação da perna e a seu caminhar desembara-çado." Quanto ao cônego Marque, cura decano de Rabastens, de onde depende a paróquia de Saint-Justin, também fez questão de prestar seu testemunho a respeito da cura milagrosa do pequeno Jean-Marie Tambourré e declarar que "toda a comuna pode atestá-lo; contudo, acrescenta, os médicos não querem ouvir falar sobre isso". O cônego Baradére fica entusiasmado com esse caso, aliás, um dos mais conhecidos e mais famosos na região, àquela época:

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"O membro afetado, a violência e a continuidade das dores levariam a crer, no caso do menino Tambourré, numa alteração da medula espinhal ou num reumatismo profundamente enraizado. Não importa se se tratava de uma ou outra afecção, o incontestável é que a enfermidade dessa criança apresentava um caráter da mais alta gravidade, ameaçando-lhe o futuro, comprometendo sua vida dentro de um prazo talvez bastante próximo." Quanto a seu restabelecimento, apresenta a eficácia instantânea do milagre: “1º. - suspensão súbita das dores; 2º. - a repentina possibilidade de andar e com desembaraço", o que empresta "um caráter de sobrenatural à cura dessa criança". Quanto ao Dr. Vergez, ele diagnostica uma coxalgia de primeiro grau, de evolução rápida e grave. Sem dúvida, é possivel, comenta o médico, curar uma coxalgia por meios e processos científicos. As águas sulfurosas naturais não podem ser responsáveis por este tipo de cura. Porém, em nenhum caso, conseguiram uma recuperação com tal rapidez. A instantaneidade do resultado está tão fora do alcance do poder curativo, poder esse cujo intermédio é imprescindível para que as águas sulfurosas possam operar a cura, que se pode afirmar haver um fator de ordem sobrenatural em todos os casos complicados de lesão material nos quais ela se manifestou. É necessário recordar que o menino Tambourré chegou à gruta nas costas da mãe e que, alguns instantes depois, subia uma encosta ingreme, andava e corria o resto do dia sem sentir qualquer tipo de dor e com tanta facilidade quanto o fazia antes. de ser dominado pela moléstia.

Curada por intermédio de Bernadette ou por intercessão da gruta?

É em Rabastens, já no caminho de volta, próximo ao limite entre os Altos- Pireneus e Gers, que a comissão de investigação examina seu

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vigésimo nono caso e também o último: o de Marie-Pascaline Abbadie. Esta jovem doceira de vinte e um anos sofria de reumatismo nos joelhos, o que, às vezes, a prendia ao leito durante oito a dez dias de padecimentos. Conhecia apenas um remédio: o "bálsamo tranqüilo", sem dúvida, receita caseira das redondezas, cuja composição desconhecemos. De qualquer forma, este "bálsamo tranqüilo" é totalmente ineficaz no caso da jovem. Ela então resolve ir à gruta de Lourdes. Antes, porém, assume uma atitude ímpar entre todos os "miraculados". Vai visitar Bernadette Soubirous e "pede-lhe para passar a mão nos seus joelhos, no local afetado pela doença". Bernadette, que sempre declara não se entregar a esse tipo de intervenção, "presta-se de boa vontade, dizem-nos, a essa solicitação, o que irá ajudar Marie-Pascaline Abbadie a experimentar algum alívio". Após a visita a Bernadette, continuando a andar com dificuldade e apoiada no braço de uma parenta, ruma para a gruta. Deparou com muita gente e uma água terrivelmente gélida. "Porém ela lavou-se com obstinação e logo sua fé foi recompensada: as dores desapareceram subitamente" e nunca mais voltaram. "Pascaline Abbadie - acrescenta o cônego Baradère - durante algum tempo sentiu um pouco de fraqueza, proveniente, sem dúvida, da inchação que ela declara não ter desaparecido de imediato." E, nessa oportunidade, o cônego relembra que os médicos de seu tempo proíbem terminantemente aos reumáticos o emprego de água fria, pois esta pode "fazer aumentar a inchação e intensificar as dores". O comentário do Dr. Vergez sobre esse caso demonstra ser bastante moderno e muito psicológico: "Essa senhorita - diz ele - parece possuir uma imaginação muito fértil, cuja exaltação representou, provavelmente, um papel importante na sua cura. Essa suposição parecerá arriscada para aqueles que ignoram a influência do psiquismo sobre o físico. Contudo, tal

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influência é tão acentuada que alguns médicos são capazes de alcançar resultados surpreendentes através de agentes insignificantes: evacuações abundantes com o emprego de alguns placebos, o desaparecimento de dor e supressão de crises nervosas com o uso de fécula de batata etc., tendo advertido antecipadamente seus clientes que iriam utilizar um medicamento maravilhoso."

Os sete primeiros milagres oficiais Enfim, em 1862, ao mesmo tempo que reconhece oficialmente a autenticidade da aparição da Virgem a Bernadette, na gruta de Massabielle, Monsenhor Laurence julgará milagrosas sete das inúmeras curas ocorridas em 1858. Estas são, segundo a ordem citada (e com os termos médicos modernos caracterizando seus casos): Catherine Latapie-Chouat, de Loubajac, curada a 1º. de março de uma paralisia devido à distensão do plexo braquial direito; Louis Bouriette, de Lourdes, curado em março de uma amaurose traumática no olho direito; Blaisette Soupène, casada com Cazenave, de Lourdes, curada em março de uma afecção ocular (blefarite, ectropia); Henri Busquet, de Nay, curado entre 28 e 29 de abril de uma miose tifica do esterno-Cléidomastoidiano; Justin Bouhort (ou Bouhohorts), de Lourdes, curado a 6 de julho de uma afecção tuberculosa e de uma paralisia dos membros inferiores; Madeleine Rizan, de Nay, curada a 17 de outubro de uma hemiplegia talâmica; Marie Moreau, de Tartas, curada a 9 de novembro de uma amaurose de um olho.

2. A Segunda onda (1900) ''Zola deseja comprovar que as curas não passam de embuste e mentira... Lança o ultraje e calúnia sobre os padres de Lourdes que tinham concordado em derrubar todas as barreiras diante dele. Quanto a mim, após toda a profunda afeição que lhe demonstrei, afirma que o detesto! Acreditava então que aquilo que existia entre

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nós não passava de pura cortesia? Um abismo nos separa. Defendemos princípios que foram objeto de estudo durante nossa vida inteira e sobre os quais não podemos admitir nenhum acordo."

Dr. BOISSARIE, Diretor da Junta de Constatações médicas de Lourdes

(1891-1913) "Marie Moreau foi O sétimo caso de cura milagrosa oficialmente reconhecido no decorrer do ano de 1858, ou seja, o próprio ano das aparições... Como tivemos oportunidade de ver, a decisão de reconhecimento eclesiástico data de 1862. Contudo, será necessário aguardar quase meio século para esta mesma autoridade eclesiástica reconhecer um outro milagre: na verdade, é apenas a 27 de outubro de 1907 que é aceita uma oitava cura milagrosa, a de Jeanne Tulasne, natural de Tours, salva de um mal de Pott lombar (quer dizer, tuberculose vertebral) a 8 de setembro de 1897. Qual a razão desse intervalo tão longo?" Próximo a Laval, uma terceira aparição da Virgem na

França Após sua grande decisão de 1862, de reconhecer a autenticidade e as aparições da Virgem a Bernadette, bem como as sete curas milagrosas acontecidas na fonte de Massabielle, Monsenhor Laurence vai dedicar-se inicialmente e sobretudo à organização do culto neste grande santuário do catolicismo: a criação de uma administração religiosa, a construção e a inauguração da primeira basilica. Não se interessará mais pelas curas, pelo menos sob um enfoque oficial. Delega esse cuidado a seu vigário, o cônego Fourcade, ex-secretário-geral da comissão episcopal encarregada da investigação, cujos trabalhos seguimos em detalhes.

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Mas as curas continuam ocorrendo farta e regularmente. Não é apenas o cônego Fourcade que as registra fielmente, mas também o abade Peyramale. Sobre o plano médico, o Dr. Dozous em Lourdes e o Dr. Vergez em Montpellier acumulam processos. Em 1868, é criado um jornal, Les Annales de Notre-Dame de Lourdes, cujo objetivo principal é publicar regularmente uma crônica das curas. Contudo, estas permanecem em domínio privado durante todo o Segundo Império. E então, a 17 de janeiro de 1871 eis que a Virgem aparece uma terceira vez na França, mais exatamente em Pont-Main, na região de Laval. Apresenta-se para alguns camponesinhos, Eugéne, de doze anos, Joseph, de dez e três garotinhas; Augustine, Françoise e Jeanne-Marie. No céu, por sobre a aparição estava escrito o Magnificat, que termina com as seguintes palavras: "Mas orai meus filhos". Pouco tempo depois, em 1872, serão organizadas em Lourdes grandes festas litúrgicas, especialmente para a inauguração da basilica da lmaculada Conceição - enquanto já se prepara a construção da descomunal basilica do Rosârio, iniciada em 1881 e concluída em 1889.

O "reino" do Dr. Boissarie: cem curas anuais! Entrementes, Massabielle transformou-se num verdadeiro "pátio de milagres", no sentido mais deplorável do termo: loucos, simuladores, histéricos, moribundos de causar espanto ali se sucedem, enquanto os racionalistas e os anticlericais desencadeiam uma batalha contra a superstição e o "ópio do povo"... Sucedem-se peregrinações quase surrealistas. Certo dia, chega-se a ponto de ver um padre acompanhante mandando dar um banho num cadáver - esperava uma ressurreição, como no tempo de Cristo, indubitavelmente...

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Isto até o dia em que um médico belga resolve colocar em ordem esse cafarnaum. Em 1884, o Dr. Dunod de Saint-Maclou, da faculdade de Louvain, muda-se para Lourdes. Supervisiona, com muita severidade, a crônica das curas dos Annales de Notre-Dame de Lourdes e organiza uma junta médica, ainda embrionária, que dirigirá até a sua morte, ocorrida em 1891. Quem o sucederá será o Dr. Boissarie que, desde o inicio, irá assinalar cerca de cem curas por ano. Isso é demais. O papa Pio X, sem dúvida, inquieto diante desta excessiva recrudescência de milagres, envia-lhe seu médico pessoal, o Dr. Lapponi. É então que será posta em vigor uma verdadeira organização de exames médicos e de atestados canônicos. Desta maneira, entre 1907 e 1913, o Dr. Boissarie conseguirá o reconhecimento oficial de trinta e três curas milagrosas. Contudo, o corajoso médico envelhece. Em 1915, aos setenta e nove anos de idade, parte de Lourdes e falece dois anos depois. Apesar desse verdadeiro esforço de rigor médico, seu "reino" foi para Lourdes um tempo de polêmicas violentas... especialmente por causa de ZoIa:.

Zola e os horrores de um "Trem branco" A 20 de agosto de 1892, um "Trem branco", ou seja, um trem transportando doentes em peregrinação, entra na estação de Lourdes. Num dos vagões encontra-se um dos homens mais célebres da França: Emile Zola, glória do romance naturalista e que, aos cinqüenta e dois anos de idade, já deixava atrás de si a maior parte de sua obra. Para lá se dirige com o objetivo de ver o que se passa na cidade dos milagres, para constatar se acontece realmente alguma coisa ou se tudo não passa de simples escroqueria... Ora, nesse mesmo trem viajam duas doentes que são futuras miraculadas e que, atualmente, figuram na lista das curas milagrosas reconhecidas oficialmente. São elas: Marie Lebranchu e Marie

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Lemarchand. Zola, que durante a viagem perambulou demoradamente ao longo dos vagões e dos compartimentos, viu-as, a ambas. Marie Lemarchand oferece um espetáculo difícil de ser suportado e que o escritor assim descreverá no seu livro exatamente intitulado Lourdes: "O lúpus* tinha-lhe invadido o nariz e a boca. Uma ulceração latente desenvolvia-se sob as crostas e devorava as mucosas. A cabeça estava alongada como um focinho de cachorro. Com os cabelos desalinhados e os imensos olhos redondos, ela se tornara horrenda. A cartilagem do nariz achava-se quase carcomida, a boca tinha-se retraído, repuxada para a esquerda devido à inchação do lábio superior, semelhante a um talho oblíquo, imundo e disforme. Uma transudação de sangue, mesclada com pus, escorria da horrível ferida esbranquiçada." * Afecção cutânea de natureza tuberculosa. E Zola, fiel à sua ideologia de escritor naturalista, não poupa nenhum detalhe: "Olhando-a introduzir com cuidado os pedacinhos de pão no buraco sanguinolento que lhe servia de boca, o vagão inteiro tinha empalidecido diante dessa aparição abominável." A seguir, o escritor nos mostra, enfim, a infeliz lambendo a água com sua língua saída do "talho oblíquo de sua chaga". Quanto a Marie Lebranchu, Zola notou-a antes mesmo da partida do trem, ainda encostada à plataforma da estação. Sente-se tão impressionado com aquela presença, que exclama: - Se esta aqui ficar curada, então acreditarei... Marie Lebranchu, de trinta e cinco anos, tuberculosa, pesa apenas trinta quilos. No rosto, a pele encarquilhada, estendida sobre os ossos salientes, dá-lhe o aspecto de uma cabeça de morte. Zola, no seu livro, relata - e sem dúvida escutou-o com os próprios ouvidos - aquilo que a enferma diz de si mesma, com simplicidade e ingenuidade:

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- Estou com um pulmão perdido e do outro sobra pouco. Cavernas, entende... Emagreci... uma verdadeira lástima! Estou sempre transpirando, tusso tanto que quase o coração me salta fora do peito. Não consigo mais escarrar, o catarro é espesso... Não me agüento em pé. Não como nada. Marie Lebranchu andou por todos os hospitais de Paris: o último a que recorreu, o Hôtel-Dieu, limitou-se a diagnosticar a "tísica" em último grau.

O romancista inicia sua investigação Enquanto Marie Lemarchand, Marie Lebranchu, e todos os outros doentes e seus acompanhantes vão, se assim se pode dizer, cuidar de seus interesses, Zola ruma para a Junta das Constatações, que é, àquela altura, dirigida pelo Dr. Boissarie. Tem a impressão de estar realizando-se ali uma cruzada de salubridade moral e espiritual, de tal forma está persuadido da falta de autenticidade de tudo quanto acontece em Lourdes: "Se eu tivesse uma fonte que cicatrizasse as feridas, exclama, iria deixar o mundo transtornado. Convocaria os povos e os povos viriam. Comprovaria os milagres com uma tal evidência que seria o senhor da Terra. E a Terra inteira viria e acreditaria." O corajoso Dr. Boissarie não se sente nada encantado ao ver chegar este destruidor de falsos milagres. Mais tarde, contará que achou a atitude de Zola "muito estranha". O escritor, que se tinha apresentado como "doutor em ciências humanas" (este título ainda não existia àquela época e soava estranhamente), fala de imparcialidade, verificações, exames, fotografias etc. E, então, acontece um incidente que vem incitar ainda mais sua desconfiança e as suas exigências científicas. Enquanto Zola encontrava-se no escritório do Dr. Boissarie, apresenta-se ali uma jovem chamada Clémentine Trouvé, que vem de uma aldeia protestante de Viena e afirma ter sido milagrosamente curada de um

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sarcoma no osso do pé. Como testemunho do sucedido, mantém na mão um curativo "ainda cheio de pus". Tira o sapato e a meia e mostra uma cicatriz impecável. Quem viu a ferida antes da cura? Ora, dezenas de pessoas, responde o Dr. Boissarie, de modo temerário... O "milagre" de Clémentine Trouvé será confirmado mais tarde, porém, longe de convencer Zola, acentua ainda mais sua extrema desconfiança. Contudo, ele ainda não chegou ao fim de suas penas iconoclastas: Marie Lemarchand e Marie Lebranchu vão lhe causar muita preocupação...

Onde foi parar o lúpus de Marie Lemarchand? Marie Lemarchand, apesar da repulsa geral, conseguiu autorização para tomar um banho nas piscinas no dia seguinte à sua chegada, ou seja, no domingo, 21 de agosto. Um médico, o Dr. d'Hombres, testemunha o que então se passou. Começa por ressaltar o aspecto "particularmente repulsivo" da infeliz, de rosto devastado por uma úlcera tuberculosa purulenta. Portanto, não seria possível esquecê-Ia. Algumas horas mais tarde, torna a encontrá-Ia no hospital quando fazia visita aos doentes: "Reconheci-a perfeitamente bem, ainda que o aspecto de seu rosto estivesse totalmente modificado. Em vez da chaga repugnante que acabara de ver, encontrei uma superfície ainda vermelha, é verdade, mas seca e recoberta por uma epiderme de nova formação. As ataduras que tinham servido como curativos antes de sua imersão na piscina estavam a seu lado e todas manchadas de pus. Esta pobre doente também tinha, antes do banho, uma ferida da mesma natureza numa das pernas, e esta, como a do rosto, tinha secado na piscina." O médico mostra-se "muito impressionado" diante desse resultado conseguido "através de uma simples imersão em água fria". Recorda ele que o "Iúpus" é conhecido como sendo "rebelde a qualquer tipo de medicação". Decide conduzir logo a ex-doente à Junta de Constatações onde estava Zola! A surpresa do escritor é extrema.

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Verifica, por si mesmo, a mudança extraordinária a respeito da qual assim se refere em seu livro: "Estava visível que o lúpus, cuja ferida carcomia-lhe o rosto, tinha-se retraído... A ferida, já empalidecida, um pouco seca, estava longe de ter cicatrizado, mas já se iniciava um trabalho silencioso de cura." É digno de nota que Marie Lemarchand, sem qualquer cicatriz no rosto, irá se casar, terá cinco filhos e morrerá aos setenta anos, após ter voltado a Lourdes durante quarenta anos em peregrinação de agradecimento!

O moribundo sai de dentro d'água cantando a "Ave Maria"

No entanto, o espanto de Zola não terminará aí. Marie Lebranchu também pediu permissão para banhar-se nas piscinas. Porém, como a temperatura da água da gruta mal chega a dez graus, o Dr. Boissarie hesita em dar autorização para que Marie Lebranchu, essa grande tuberculosa, ali se banhe. Contudo, ela entra na piscina, sustentada por dois maqueiros em cujos braços pesa bem pouco. Quando se acha n'água, a enferma é sacudida por uma espécie de espasmo terrível que lhe retorce o corpo descamado como se estivesse sendo acometida por uma convulsão mortal... Logo depois, afasta os dois enfermeiros, pôe-se de pé sem ajuda, caminha e sai da água cantando a pleno pulmão a Ave Maria. Não seria difícil imaginar a emoção de que foi tomada a assistência! Marie Lebranchu, após ter-se enxugado e vestido, dirige-se a pé até a gruta - recusando-se terminantemente a usar sua cadeira de rodas - e ali, durante meia hora, faz uma longa oração de agradecimento à Virgem. Em seguida, dirige-se para a Junta das Constatações, onde ainda se encontra Zola. A cena será, mais tarde, relatada pelo Dr. Boissarie:

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"Diante do escritor, aturdido por tanta emoção, mandei entrar a miraculada. Não tinha mais estertores, mais nada. Tudo é novo naquele pulmão que, poucos momentos antes, estava perdido." O Dr. Boissarie, triunfante, declara: - Senhor, eis aqui restabelecida aquela que julgava moribunda. Mande auscultá-Ia quem quiser; A pessoa que o fizer dirá o mesmo que eu. Qual foi a reação de Zola? Em seu livro, ele mostra a tuberculosa miraculada seguindo de modo impulsivo a procissão noturna à luz de velas diante da basílica: "Sem dúvida alguma, ela teria dançado até o romper do dia se a Santíssima Virgem tivesse dado um baile" - escreve ele. Contudo, assim mesmo, faz-se necessário explicar essa cura assombrosa... Afinal de contas, pergunta o espírito racional de Zola, por que razão um banho gelado não poderia salvar uma tísica? "Podemos falar em nome das leis absolutas da ciência?" - argumenta ele contra si mesmo. - "Onde estão as leis da medicina? Que me façam vê-las! A partir daí, por que razão não aconteceria tudo por milagre, já que no mundo, seja pela atuação da natureza ou de uma força sobrenatural, os médicos não se mostràm. menos surpresos diante destas conclusões que não puderam prever? Forças, ainda pouco conhecidas, atuam..."

"Esta mulher faz do seu corpo o que bem entende!" Estas forças, que Zola qualifica, de modo vago, de "nervosas", levam-no a pensar que Marie Lebranchu, após o banho gélido na piscina de Lourdes e a emoção experimentada, teve a "impressão" de estar curada logo, e comporta-se como tal... mas por tempo limitado e provisório. Mostra, em seu livro, Marie Lebranchu vítima de uma recaída trágica durante o trajeto de volta a Paris e acometida por seu "terrível acesso de tosse". E, mais do que depressa, o romancista mata essa heroína...

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Porém, tal não foi o desfecho verdadeiro. Marie Lebranchu, após ter sido examinada, com assombro, por seus antigos médicos (um deles dirá: "Essa mulher faz do seu corpo o que bem entende!"), vai levar uma vida normal, embora monótona, como operária parisiense, esposa e mãe de família... Isto irá permitir ao Dr. Boissarie realizar, em Paris, uma conferência sobre os milagres de Lourdes, na qual critica violentamente a má fé de Zola. Este se contentará em responder que "fez um romance". Aliás, a história finda de modo pouco simpático e pouco digno para o futuro cavalheiro sem medo e sem mácula do caso Dreyfus. Vai visitar Marie Lebranchu, já então senhora Wuiplier, no seu modesto apartamento térreo e propõe ajudá-Ia a ir morar longe dali, no coração do campo belga... Os motivos dessa atitude não são claros: Será que Zola quis ressarcir a miraculada de Lourdes dos inconvenientes resultantes da campanha por ele mesmo desencadeada contra ela? Ou então, de modo menos honesto, será que pretendia afastá-Ia de Paris, dos curiosos e dos jornalistas, por ser esta mulher a negação viva de suas próprias teses? Quase um século mais tarde, é muito dificil desvendá-lo...

Um futuro prêmio Nobel de medicina a caminho de Lourdes

Contudo, contra o ceticismo do romancista dos Rougon-Macquart, um outro grande nome ocidental defenderá, alguns anos mais tarde, o direito ao milagre. O Dr. Alexis Carrel, prêmio Nobel de fisiologia e medicina em 1912. Este, ainda um jovem cientista - está com trinta anos - assistirá uma cura milagrosa em Lourdes, no momento em que era médico acompanhante de uma peregrinação realizada em 1903. Somente um ponto em comum o aproxima de Zola: ele também não prestará contas do acontecimento que testemunhou à primeira pessoa que lhe aparecer e sob a forma documentária, mas escreverá um romance sobre o assunto... Aliás, podemos nos perguntar o que

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motivou esta escolha entre estes dois homens tão diversos e por que razão nem um nem outro assumiu claramente sua opinião. Seja lá porque for, Le Voyage de Lourdes, de Alexis Carrel, é uma das principais obras da interminável produção literária consagrada a Lourdes. O herói do livro chama-se Lerrac, nome que é simplesmente o anagrama de Carrel. Portanto, eis o Dr. Lerrac instalado num compartimento de primeira, na companhia de eclesiásticos famosos e de uma nobre dama que praticamente financia a peregrinação, embora ela mesma esteja doente. Lerrac mergulha nos processos médicos que lhe foram entregues e propõe a si mesmo alguns problemas: "Sempre se recusou, sistematicamente, a estudar o que sucede em Lourdes. E por que não tentar? Caso haja apenas curas imaginárias, a perda de tempo não será tão grande assim! Se, por acaso, existir um resultado verdadeiro, quaisquer que sejam as causas, já seria um fato que, pesquisado de modo realmente científico, poderia ter um interesse considerável. Sob o ponto de vista biológico, conhecemos pouquíssimo a respeito de possíveis fenômenos. Não é necessário negar nada em nome de leis que tão pouco conhecemos." Lerrac, ao debater o assunto com os religiosos com quem divide o compartimento, tem a surpresa de escutar um deles afirmar: - A Virgem Maria sempre nos favoreceu com grandes graças. Em cada grupo de trezentos doentes, cinqüenta ou sessenta, na volta, afirmam estar melhor ou curados. Quanto àqueles que não se curam, voltam, de qualquer forma, "consolados" e até mesmo morrem "felizes”!

"Se esta aqui se curasse, eu acreditaria em tudo" Ao nascer do dia, o jovem Dr. Lerrac faz a visita médica no trem. Observa sobretudo certa moça, acomodada num vagão de terceira classe, que no seu livro se chama Marie Ferrand. Na verdade, trata-se de Marie Bailly que não figura na lista das curas milagrosas

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reconhecidas pela Igreja, mas cuja história é relatada em várias das antologias consagradas ao assunto. - Ela está tão fraca que temo um desenlace - diz o padre que a acompanha. Na noite seguinte, ao tornar a ver Marie Ferrand, ela acaba de voltar de uma espécie de síncope e murmura: - Jamais conseguirei chegar a Lourdes. Lerrac aplica-lhe uma injeção de morfina. Em seguida, entrega-se a um exame detalhado da doente: constata uma peritonite tuberculosa. O ventre está distendido e inchado devido aos liquidos purulentos contidos no abdômen, as pernas estão intumescidas, o coração bate rápido demais. Ao conversar com Marie, o médico fica sabendo que é órfã, de pai e mãe, ambos vitimados pela tuberculose. Antes da peritonite, Marie sofria dos brônquios. Chegou a ter uma pleurisia. Em Lourdes, Lerrac encontra um amigo com quem debate, longamente, a respeito da realidade das curas e de sua provável evolução. Segundo ele, as curas constatadas relacionam-se com as doenças ditas "nervosas" e, em caso algum, com moléstias realmente orgânicas: os tumores cancerosos, por exemplo, ou tuberculoses, pulmonares ou outras. Refere-se ao problema de Marie Ferrand com quem viajou: - Se ela se curasse - diz ele - seria realmente um milagre. Acreditaria em tudo e iria ser monge. De tarde, faz as visitas no hospital e encontra Marie Ferrand em estado praticamente comatoso. Imóvel, a respiração difícil, os olhos circundados de roxo, os lábios ressequidos e acinzentados, o pulso disparado, ela parecia estar nas últimas. O médico aplica-lhe uma injeção de cafeína para ajudar o coração a agüentar um pouco mais. Porém, a acompanhante do grupo do qual faz parte Marie Ferrand pergunta a Lerrac, para seu assombro: - Doutor, poderemos levar Marie Ferrand até as piscinas? - E se ela morrer no caminho, que fará? - retruca o médico. - Ela me disse que fazia questão de mergulhar na piscina - argumenta a acompanhante. - Veio exatamente com esse objetivo.

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Finalmente, fica resolvido que Marie será levada até as piscinas. Uma vez que parece estar fatalmente condenada a morrer, pelo menos terá experimentado essa "felicidade suprema". Lerrac, junto com seu amigo e um outro médico que também fazia visita aos doentes, decide acompanhar Marie às piscinas de Lourdes. Sobre a maca, algumas moscas verdes já esvoaçam ao redor deste quase cadáver... Ao redor dela, um espetáculo atroz de "monstruosidades apresentadas em plena luz do dia": rostos devastados por lúpus horríveis, jovens, de ambos os sexos, imobilizados pela paralisia, débeis em último grau, levados pelas famílias que esperam o improvável fim do calvário. E é a oração em comum que ressoa na suavidade da paisagem de Lourdes, explodindo do fundo destas existências torturadas: "Santíssima Virgem, curai-nos!" - exclamam os doentes, tentando erguer-se e estendendo os braços macilentos: "Uma espécie de sopro percorria a multidão - relata Lerrac. - Algo etéreo, irresistível e silencioso deslizava em meio a ela, levantando os ânimos como a tormenta sobre a montanha."

"Acho que estou louco" Finalmente, os enfermeiros e as acompanhantes desistem de dar o banho em Marie Ferrand. Acertaram entre si que se contentariam em conduzi-Ia à imensa esplanada diante da gruta de Massabielle. Lerrac postou-se a seu lado. Olhando-a, tem a ligeira impressão de que está menos pálida, que havia trocado de pele. - Estou louco - diz a si mesmo. Aproxima-se de Marie, pega-lhe o pulso e conta os batimentos. Verifica uma clara diminuição. Um outro médico presente, a quem Lerrac comunica sua constatação, retruca que aquilo é o sinal do fim. Mas não é essa a opinião de Lerrac. Ele tem o pressentimento de que vai acontecer "alguma coisa". Daí em diante não afasta mais seus olhos de Marie Ferrand: pois bem, o semblante da jovem continua a

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se modificar sensível e rapidamente. Mais ainda: a coberta que protegia Marie e que até aquele instante parecia volumosa, levantada pelo ventre inchado devido à peritonite, diminui e vai abaixando pouco a pouco. Em alguns minutos, a colcha repousa inteiramente plana sobre o corpo de Marie. "Acho que estou ficando louco" - pensa inicialmente Lerrac. Aproxima-se da jovem e toma-lhe mais uma vez o pulso: este bate com absoluta regularidade. - Como se sente? - decide-se, enfim, a perguntar. - Sinto-me muito bem - responde Marie, em voz baixa mas perfeitamente articulada e audível - Ainda não me sinto muito forte, mas pressinto que estou curada. A acompanhante, advertida e pouco surpresa - Carrel nos diz que ela está "habituada" com os milagres! - serve uma xícara de leite à ressuscitada que, logo, mexe-se, senta-se e olha ao seu redor. Lerrac julga tratar-se apenas de uma simples "melhora funcional" e que não pode ter havido cura das lesões. O jovem médico discute algum tempo com o Dr. Boissarie, a quem descreve como um "homenzinho de idade, atarracado, de rosto gordo e imberbe", cujos "olhos ternos" parecem estar de emboscada, sob "sobrancelhas escuras e hirsutas". O doutorzinho gordo não se mostra nem um pouco surpreso com o que escuta de Lerrac. Confessa-lhe que já constatou em Lourdes a cura de alguns casos de tuberculose tanto pulmonar como peritonal. "Uma indefinivel sensação de calma que irradiava ao seu redor" À noite, quando Lerrac volta a visitar Marie Ferrand no hospital, a transformação que constata é "prodigiosa”: "A jovem - escreve Carrel - usava camisola branca e estava sentada na cama. Os olhos resplandeciam naquele rosto, ainda pardo e descarnado, porém irrequieto e vivo, com um leve colorido nas maçãs do rosto. A comissura dos lábios em repouso exibia um sulco de sofrimento, deixado pelos anos de padecimentos. Porém, de toda a

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sua pessoa, emanava uma indefinível sensação de calma que irradiava ao seu redor e iluminava de alegria a triste sala." Lerrac continua achando que só pode tratar-se de uma "chicotada aplicada no organismo por uma auto-sugestão intensa". Não quer acreditar que as lesões tenham realmente desaparecido. Só existe um meio para se assegurar do fato: uma auscultação detalhada e profunda. E é exatamente isso que faz. Apalpa, demoradamente, o ventre, já agora sem qualquer sinal de inchação. Não percebe sob a pressão dos dedos nenhuma das tumefações e das "massas duras" que determinavam, ainda na véspera, a peritonite tuberculosa. A impressão de Lerrac é de ter recebido uma bordoada na cabeça. Pede a dois outros médicos que examinem Marie Ferrand e procedam a uma contra-auscultação. As mesmas conclusões. Então Lerrac se interroga. Pergunta a si mesmo se o diagnóstico de "peritonite tuberculosa" estava certo e se não teria sido uma "peritonite nervosa"... Porém ele viu, com seus olhos de médico, Marie Ferrand prestes a varar a soleira das portas da morte e, de repente, desprender-se dali e retornar ao mundo dos vivos. E, finalmente convencido do milagre, sente sua fé, então tíbia e tranqüila, tornar-se "desvairada". Sete anos de fratura exposta para o jardineiro belga

Sem a menor sombra de dúvida, a cura mais extraordinária da época Boissarie é a de Pierre de Rudder, notável por três motivos. Antes de mais nada, trata-se da cura milagrosa oficial mais próxima da grande vaga de 1858; a seguir, envolve uma lesão que, aparentemente, não suscita nem sombra de discussão (fratura exposta na perna); finalmente, é o único caso em que uma autópsia permitiu a alguns médicos comprovarem o milagre, ao vivo... Pierre de Rudder, nascido em 1823, é um jardineiro belga. Vive em Jabbeke, na região oeste da Bélgica, próximo ao mar do Norte. Durante o inverno de 1867, é vítima de um grave acidente de trabalho.

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No momento em que ajudava alguns lenhadores a levantar uma árvore abatida, o tronco desaba sobre ele e fratura-lhe a perna esquerda. É examinado e tratado pelo Dr. Affenauer, de Oudenbourg, que constata fratura dupla nos ossos da perna (tíbia e perônio), logo abaixo do joelho. Ao invés de se consolidar, surgem graves complicações. Na verdade, algumas semanas após o acidente, formaram-se duas feridas gangrenosas, uma ao nível da própria fratura, a outra sobre o peito do pé. A perna deveria ser amputada, mas Pierre de Rudder recusa-se terminantemente a autorizar a operação. Em janeiro de 1875, portanto sete anos mais tarde, um médico que o examina, o Dr. Hoestenberghe, redige o seguinte relatório cuja leitura nos deixa sensibilizados: "Rudder tinha uma ferida na parte superior da perna, no fundo da qual podia-se ver os dois ossos distanciados cerca de três centímetros, um do outro. Não se notava nenhum indício de cicatrização. Pierre padecia muito e este mal já durava oito anos. A parte inferior da perna deslocava-se em todas as direções. Podia-se levantar o calcanhar de modo a dobrar a perna ao meio, podia-se retorcê-la e colocar o calcanhar para diante e os dedos para trás. Todos estes movimentos só eram limitados pela resistência dos tecidos moles." Uma outra testemunha, um tanoeiro vizinho de Rudder, oferece alguns detalhes ainda mais terríveis. Relata, na verdade, que diante dele Pierre de Rudder "dobrou a perna com a mão, de modo a fazer sair pela ferida as duas extremidades dos ossos fra turados". Não satisfeito com esta demonstração, Pierre de Rudder mostra ao seu amigo tanoeiro "como pode virar o calcanhar para diante e os artelhos para trás". Um mês mais tarde, a 16 de abril de 1875, Pierre de Ruddeir convidou três amigos para irem a sua casa, e estes, mais tarde, testemunharão ter visto, pessoalmente, a perna do jardineiro: dirão que "as duas partes do osso fraturado rasgavam a pele e estavam separadas por uma ferida purulenta". Chegarão a ponto de dar as medidas exatas da

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chaga: "a ferida purulenta" em questão media três centímetros mas esta observação já estava escrita num relatório médico.

Falsa gruta e milagre verdadeiro No dia seguinte, 7 de abril de 1875, Pierre de Rudder parte em peregrinação e vai rezar a Nossa Senhora de Lourdes, mas não nos Pireneus franceses: Na verdade, em Oostacker, na Flandres oriental, fervorosos belgas católicos construíram uma réplica exata da gruta de Massabielle... Muitos peregrinos, por falta de tempo ou de dinheiro, para lá se dirigem e acham que, como a gruta de Oostacker retrata traço por traço a de Massabielle, a Virgem também ali está presente, de certa maneira... Eis, portanto, o jardineiro de Jabbeke rezando diante da reprodução da gruta. De repente, acometido por uma espécie de "tremor", levanta-se de um pulo, deixando cair as muletas. Atravessa a massa de assistentes e vai atirar-se aos pés da estátua, também uma réplica da imagem feita por Fabisch para Lourdes. - O que há com você? O que está fazendo? O quê? - exclama sua mulher em voz alta. Quando retorna a Jabbeke, circula na aldeia belga uma petição, assinada pela maioria de seus habitantes e assim redigida: "Nós, abaixo-assinados, paroquianos de Jabbeke, declaramos que a tíbia de Pierre de Rudder, nascido e domiciliado nesta cidade, de cinqüenta e dois anos de idade, estava tão comprometida pela queda de uma árvore, fato este ocorrido a 16 de fevereiro de 1867, que, uma vez esgotados todos os recursos da cirurgia, o enfermo foi abandonado e declarado incurável pelos homens desta profissão e considerado como tal por aqueles que o conheciam; que invocou Nossa Senhora de Lourdes, venerada em Oostacker, e voltou para casa inteiramente curado e sem muletas, de modo a poder realizar todos os trabalhos como acontecia antes do acidente. Nós declaramos

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que esta cura, repentina e assombrosa, aconteceu no dia 7 de abril de 1875." A estranha redação deste texto despertará reticências diversas... Não se pode deixar de pensar em alguma fraude astuciosa. Mas por que motivo? Existem algumas versões da história do milagre que se inclinam a demonstrar que Pierre de Rudder era, na realidade, o idealizador e o proprietário, se assim se pode dizer, da réplica belga da gruta de Massabielle. De qualquer forma, tanto as autoridades médicas quanto as religiosas hesitarão longo tempo antes de se pronunciar. Depois de sua morte, procede-se a uma autópsia. É o próprio Dr. Van Hoestenberghe quem retira a tíbia e o perônio comprometidos. Uma comissão médica, reunindo em Lille uma centena de médicos da região, declara que "Rudder ficou instantaneamente curado de uma fratura supurada, que a recuperação óssea, revelada pela autópsia, não poderia se processar por meios naturais". E o milagre é oficialmente reconhecido pela Igreja a 25 de julho de 1908.

O famoso caso Gargam Mas se a cura de Rudder foi reconhecida pela Igreja, o mesmo não acontecerá a um dos casos mais célebres da época, o famoso Gargam. A 20 de agosto de 1901, a procissão do Santíssimo Sacramento desfila, como o faz diariamente, em meio a milhares de enfermos presentes, sentados ou deitados, assistidos por acompanhantes benevolentes - maqueiros, médicos, religiosos ou religiosas... Na primeira fila, um homem ainda jovem, com cerca de trinta anos, deitado em mangas de camisa sobre uma padiola, acompanhado por sua piedosa mãe... É magro, paralítico da cintura para baixo, e os pés e as mãos mostram alguns sinais de gangrena... Comenta-se que está nas últimas e que sua morte é uma questão de horas... De repente, ao

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passar da procissão, e sob os olhos de seu maqueiro, o moribundo tem um sobressalto que lhe enrijece todo o corpo. Aquele inclina-se na direção da mãe do doente e murmura: - Senhora, seu filho está morto... Temos que o levar de volta ao hospital! . - Não, por favor, deixe-o aqui! - responde a senhora. - Colocarei o meu lenço sobre o rosto dele e ninguém verá que está morto! E a procissão termina. Então, aquele que se acreditava estar morto move os braços e as pernas, agarra-se à maca e, sob um esforço demorado e espetacular, ergue-se. A mãe e o maqueiro gritam de emoção. Todos os olhos se fixam, então, sobre ele. O ex-paralítico coloca os pés no chão e assim, as pernas nuas, usando apenas a camisola branca que o faz parecer um burguês de Calais, começa a caminhar com um andar bnisco atrás da procissão... Um quarto de hora mais tarde, encontra-se na Junta das Constatações que registra a cura "milagrosa" desse doente declarado incurável. O caso de Gabriel Gargam (é esse o seu nome) provocará uma das mais violentas polêmicas da época sobre a questão de Lourdes. Isto porque, dentro em breve e graças a um médico de Bordeaux, o Dr. Vachet, que aliás escreverá um livro sobre o rapaz, fica-se a par dos segredos que se encontram sob o "milagre". E o caso não é claro, é o mínimo que se pode dizer. Gabriel Gargam, nascido em 1872, mora em Angoulême e trabalha na estrada de ferro. No dia 18 de dezembro de 1899, encontra-se no carro postal do rápido Bordeaux-Tours. E à noite acontece o terrível desastre: o rápido é engavetado por um outro trem. Gargam, projetado do vagão uns vinte metros, sobre a neve, é transportado para o hospital. Imediatamente, entrou com uma ação de perdas e danos contra a Companhia das estradas de ferro de Orléans (naquela época as ferrovias eram administradas por companhias particulares). Mas esta procura se eximir dos compromissos. Então, o estado de Gabriel Gargam agrava-se: se a clavícula quebrada foi tratada, em

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compensação, agora não pode mais mexer as pernas nem comer. Imobilizado numa cama e subalimentado, seu aspecto torna-se cada dia mais lamentável. O tribunal de Angoulême, confirmado pelo tribunal de apelação de Bordeaux, condena a Companhia de Orléans a depositar, em favor de Gargam, uma pensão anual de seis mil francos! Uma quantia imensa. Finalmente, a 12 de agosto de 1901, a Companhia de Orléans, acreditando que Gargam não passa de um moribundo em "sursis", resolve bloquear o processo judiciário e aceita a sentença do tribunal de apelação de Bordeaux. E é apenas uma semana mais tarde que o moribundo vai ressuscitar em Lourdes! O Dr. Vachet tem a sorte de suspeitar que Gargam, tendo fingido a paralisia dos membros inferiores e simulado não ter mais condições de se alimentar, encontrou, graças a Lourdes, o meio de recomeçar uma vida normal, sem correr o risco de ser acusado de fraude por parte da Companhia das estradas de ferro de Orléans... Durante cinqüenta e três anos, o "miraculado" voltará todos os anos a Lourdes, em peregrinação, onde é uma verdadeira vedeta, deixando-se fotografar continuamente. O resto do tempo organiza viagens, conferências... Piedoso, sorridente, barbudo como Landru, Gabriel Gargam desdenha os ataques que lhe fazem: declara consagrar-se inteiramente à fé e à caridade... Morreu a 24 de fevereiro de 1953, aos oitenta e um anos de idade. A história detalhada de seu caso, que o Dr. Boissarie tinha declarado ser "o mais sensacional" do ano de 1901, encontra-se com freqüência nos trabalhos dedicados à história dos milagres de Lourdes, embora jamais tenha sido reconhecido oficialmente pelas autoridades eclesiásticas. É desta mesma época de Boissarie que datam algumas curas legendárias, encontradas com freqüência nos relatos da literatura consagrada a Lourdes: o soldado queimado, cego e descrente, chamado Vion-Dury, curado apenas pelo simples umedecimento das pálpebras; a pequena surda-muda de sete anos, Octavie Bureau, que ao voltar de Lourdes começará a cantar como um anjo; a jovem de vinte anos, mais esquelética do que um sobrevivente de Dachau,

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Henriette Hauton, que pesa dezessete quilos... e que ressuscitará e engordará com tamanha rapidez que algumas pessoas suspeitarão de uma grave fraude (morte de Henriette e apresentação de uma outra jovem em seu lugar) etc. O caráter extremamente espetacular de todos estes casos causará assombro às autoridades eclesiásticas, mas ofusca, ligeiramente, a reputação de Lourdes. Em compensação, o mecanismo da simulação semiconsciente, semi-inconsciente que estes casos revelam, assim como as conclusões a que podemos chegar agora, através da análise da histeria, e do estudo do psicossomatismo, tornam estes casos significativos para quem estuda o fenômeno Lourdes.

A Concorrência de Fátima Seja lá como for, após a renovação suscitada pelo Dr. Boissarie, Lourdes vai, após a Primeira Guerra Mundial, passar por uma segunda decadência. Os responsáveis pela Junta médica, o Dr. Le Bec (1918-1921), auxiliado pelo Dr. Vallet (que se demitirá em 1946) e pelo Dr. Marchand (1918-1925), terão apenas uma atividade reduzida. Por quê? Regressão da fé? Impacto provocado pela guerra e pelos conflitos sociais? Há também a concorrência de um novo santuário famoso, onde a Virgem apareceu em 1917, o de Fátima: aí, durante várias aparições, a Virgem fala sobre guerra e politica e anuncia seu triunfo final. O cardeal Pacelli, secretário de Estado do Vaticano, apoiará profundamente o desenvolvimento do novo santuário, a tal ponto que, eleito papa em 1939, será apelidado de "papa de Fátima". E ele quem em 1950, proclamará um novo dogma relativo à Virgem, o dogma da Assunção (a Virgem subiu aos céus com seu corpo). Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, Lourdes vai reencontrar sua prioridade e voltará a ser a capital universal da Virgem Maria - fato que será acompanhado por uma terceira onda de curas milagrosas.

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3. A terceira Onda

(Depois da Segunda Guerra Mundial)

"A prece e a comunhão são o combustível para a estrada da vida. Este suprimento é indispensável se quisermos conservar nossos lugares no pelotão. É necessário colocar a Santíssima Virgem no lance. Foi o que eu fiz a partir da mais tenra idade."

Eddie MERCKX; Para vocês, o que representa Lourdes?

(Ed. Lethielleux) Sessenta mil peregrinos em 1872, um milhão em 1908 durante os festejos do cinqüentenário, mais de três milhões em 1970... Tal é a fantástica progressão da gruta da roseira silvestre e do prado de pastagem para porcos, onde uma linda "Dama de branco" apareceu, em 1858, para uma pastorinha dos Pireneus, asmática e analfabeta. O papa João XXIII, o papa do ecumenismo, declara solenemente, durante o encerramento das festividades do centenário de Lourdes: “Após os pontífices que, há um século, recomendaram aos católicos para se manterem atentos àmensagem de Lourdes, nós vos incitamos a escutar com simplicidade de coração e retidão espiritual os conselhos salutares - e sempre atuais - da Mãe de Deus. Portanto, que ninguém se espante quando os pontífices romanos insistem na grande lição espiritual transmitida pela criança de Massabielle. Se se constituem guardiães e intérpretes da Revelação divina contida nas Sagradas Escrituras e na Tradição, também consideram um dever recomendar à atenção dos fiéis - quando após demorado exame julgarem oportuno para o bem geral - as luzes sobrenaturais que apraz a Deus distribuir livremente a certas almas privilegiadas, não para proporem doutrinas novas mas para orientar nossa conduta."

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Desta forma, o bom papa João responde favoravelmente à renovação das necessidades espirituais da humanidade de pós-Segunda Guerra Mundial que, depois dos horrores militares ou científicos, anseia pelo maravilhoso, pelo sobrenatural, podendo os sonhos divinos satisfazer a todos aqueles que são "puros de coração".

Quarenta declarações de milagres por ano! Contudo, ao mesmo tempo, a exigência da "retidão espiritual" faz com que a terceira onda de milagres em Lourdes apresente-se de um modo sensivelmente diverso das outras duas. Antes de mais nada, as enfermidades levam nomes totalmente científicos. Não se trata mais de "flegmão", de "fratura aberta", de "ferida purulenta", de "tumor branco", mas sim de causalgia simpática, de "mal de Budd-Chiari", de "ósteo-periostite" etc. Entre 1946 e 1978 serão reconhecidos como milagrosos vinte e quatro casos de cura. Destes vinte e quatro casos, cinco. datam de entre as duas guerras, às vezes; de muito tempo atrás: Henriette BressoIles, curada em 1924 de um mal de Pott e de uma paraplegia; Lydia Brosse, curada em 1930 de fístulas tuberculosas múltiplas: Françoise Capitaine, (irmã MarieMarguerite), curada em 1937 de uma nefrite aguda e de um edema generalizado; Louise Jamain, também curada em 1937 de uma tuberculose pulmonar, intestinal e peritonal; Francis Pascal (um menino), curado em 1938 de cegueira e de paralisia dos membros inferiores. Apenas um caso aconteceu em plena guerra: GabrieIle Clauzel, originária de Oran, ficou curaçla em 1943 de uma espondilose reumática. E sob o impulso de Monsenhor Théas, bispo de Lourdes a partir de fevereiro de 1947, que a antiga Junta das Constatações médicas vai se transformar em Comissão médica internacional, cujo primeiro presidente é o Dr. Leuret, ao qual sucederão o Dr. Olivieri, e depois o Dr. Mangiapian. Em torno deles, médicos procedentes do mundo inteiro - daí, é claro, a denominação de internacional - vêm ver de perto como age sua incompreensível rival; a água de Lourdes.

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Tivemos oportunidade de ver anteriormente que o Dr. Boisserie, na BeIle Époque, comunicava, norma.lmente, uma boa centena de casos por ano. Poder-se-ia julgar, após os progressos consideráveis efetuados em meio século na medicina, na cirurgia, na fisiologia, na quimioterapia, que este número diminuiu consideravelmente. Atualmente, a Junta internacional registra por ano quarenta declarações de milagres! Cifra assim mesmo impressionante.... Sem dúvida os médicos peritos, diante desta recrudescência milagrosa, não quiseram deixar um vazio nas curas milagrosas extraordinárias por um período tão longo quanto o lapso de tempo compreendido entre as duas guerras e assim escolheram os casos que lhes pareciam menos sujeitos a dúvidas. Porém, a terceira onda de milagres em MassabieIle, após a de 1858 e a da BeIle Époque, por volta dos 1900, começa em 1945. A seguir damos uma relação completa dos casos reconhecidos pela Comissão internacional e pelas autoridades diocesanas, exceção feita ao caso de Rose Martin, curada em 1947 de um câncer no útero, caso sobre o qual possuímos pouquíssimos detalhes, talvez devido à natureza da doença; também há a exceção do caso de Edeltraud Fulda, a quem dedicamos um próximo capítulo, já que seu caso é particularmente significativo e ilustrativo. A ocorrência de tais fatos será descrita em ordem cronológica, segundo foram acontecendo.

Yvonne Foumier (1945): a cura típica de Lourdes A cura de Yvonne Fournier, acontecida a 19 de agosto de 1945, é considerada uma "cura típica de Lourdes" . Yvonne Fournier, nascida em Limoges, está com vinte e três anos quando participa de uma peregrinação nacional que teve lugar de 18 a 22 de agosto de 1945, em Lourdes. De que padecia ela? De uma "impotência completa do membro superior esquerdo", e já há cinco anos. O atestado médico que traz consigo no momento da peregrinação está assim redigido:

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"A senhorita Fournier apresenta uma paralisia completa do membro superior esquerdo com resfriamento da mão, edema acentuado na mão e antebraço esquerdos que se alastra até o cotovelo. Queixa-se de dores insuportáveis nesse membro, ainda mais acentuadas no ombro. Ela mesma solicita que lhe seja feita uma amputação. Submeteu-se a várias intervenções no simpático cervical e no gânglio estelar... Essas intervenções só lhe proporcionaram uma melhora passageira das dores e do edema que parecem estar, atualmente, além de qualquer recurso terapêutico." Na origem da enfermidade de Yvonne Fournier existe um acidente físico e traumático. No dia 12 de janeiro de 1940, quando estava com dezessete anos, ficou com o braço preso a uma correia. Não houve fraturas, mas declarou-se logo uma "paralisia", uma ferida no pulso e dores violentas no ombro. Após isto, Yvonne Fournier começa a pedir obstinadamente que lhe amputem o braço. O médico assistente vai tentar durante vários anos tratar este caso através de aplicações elétricas e radioterápicas e por meio de mini-intervenções cirúrgicas ao nível do gânglio estelar. Outros médicos consultados realizarão diversas outras tentativas cirúrgicas (incisões musculares, secionamento de nervos etc.) De qualquer maneira, a partir de 1942, Yvonne Fournier recebe uma pen-são de 70% devido à "paralisia total do braço esquerdo" e "dores intoleráveis". Portanto, ei-Ia em Lourdes em agosto de 1945. Na manhã do dia 19, bem cedinho, toma um banho completo na piscina. Ao sair da água, sente, segundo suas próprias palavras, "que o braço recupera sua força". Pela primeira vez em cinco anos consegue mover os dedos. E, o mais importante, as "dores insuportáveis" tinham desaparecido. A 19 de agosto de 1946, ou melhor, um ano mais tarde, a Junta das Constatações reconhece como "clinicamente inexplicável" a cura de Yvonne Fournier. Contudo, somente doze anos depois, em fevereiro de 1959, é que a Comissão médica internacional examinará tal caso. No relatório, ressalta-se, antes de mais nada, a ausência de qualquer

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"sinal neurológico ou psiquiátrico" capaz de confirmar as "hipóteses de histeria ou simulação". Tudo se explica por uma "distensão do plexo braquial", de origem. traumática. A decisão canônica, tomada pelo cardeal Feltin, arcebispo de Paris, será revelada a 14 de novembro do ano de 1959. Marie-Thérese Canin (1950): o mal de Pott durante a

guerra Marie-Thérese Canin é uma meridional. Nasceu em Salon em 1910. Seus pais morrem de tuberculose, duas irmãs são recolhidas a um sanatório. Ela mesma tem crises constantes de bronquite. A partir de 1934 - a jovem está então com vinte e quatro anos - o seu estado agrava-se. Porém, somente dois anos mais tarde é que é diagnosticado um mal de Pott (isto é, uma tuberculose óssea na coluna vertebral). A moça passará dez meses num colete de gesso antes de lhe ser prescrito um tratamento heliomarinho (tratamento básico do mal de Pott) em Hyêres, onde a libertam do colete, mas, em compensação, deve ficar estirada sobre um plano duro. Esta longa imobilização forçada provoca graves reações abdominais: mau funcionamento dos intestinos, peritônio dolorido, aumento do ventre, apendicite etc. Somente em 1938 é que Marie-Thérese pode retomar uma vida mais ou menos normal, mas é forçada a permanecer dentro de um colete rígido que vai desde a nuca até o sacro. Contudo, pouco tempo depois, apresenta uma grave recaída do mal de Pott. Colocam-na, mais uma vez, no gesso. Tem que passar a maior parte do dia estirada. A fim de acalmar as dores resultantes da disfunção intestinal, colocam-lhe permanentemente uma bolsa de gelo sobre o ventre. Mas estamos em plena guerra e em plena ocupação: as restrições alimentares e as carências resultantes da situação polí-tica impedem a cura da doente, pouco tempo depois acometida por uma afecção no sacro direito. E necessário operá-Ia.

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O estado de Marie-Thérêse Canin é desastroso ao terminar a guerra: cansaço, emagrecimento, vertigens, descalcificação, vômitos. Além disso, suas menstruações tornam-se irregulares e sobrevém uma nova complicação: uma fístula, isto é, uma infecção interna envolvendo o reto, a vagina e o períneo. A febre é constante, oscilando entre os 38º e 38º5. Marie-Thérêse Canin praticamente não consegue mais se alimentar. Seu coração começa a falhar. "Então - escreve seu médico, o Dr. Sivan -, cai num estado de caquexia profunda, em plena peritonite tuberculosa, com fenômenos nas meninges e, sem esperanças de curar-se, a enferma parte para Lourdes, no dia 6 de outubro de 1947, no trem da peregrinação do Rosário que sai de Marselha." Na tarde de 8 de outubro ela é levada às piscinas. Depois assiste a procissão do Santissimo Sacramento. E nesta mesma noite acontece o milagre: come, levanta-se e veste-se. Antes de mais nada, ruma para a Junta médica. Ela é, observa o relatório, "volúvel e emotiva". Ao chegar de volta a Marselha, seu médico, o Dr. Sivan, constata o "desaparecimento completo dos sinais clínicos anteriores. As funções fisiológicas retomaram seu curso normal e a fistula vaginal está curada". Dos trinta e oito quilos que pesava a 16 de outubro de 1947, passará para cinqüenta e cinco em junho do ano seguinte. Volta então a Lourdes, onde a Junta das Constatações médicas (composta por trinta e três médicos) verifica o "desaparecimento quase súbito de todos os sintomas" da peritonite tuberculosa. Será no dia 21 de fevereiro de 1950 que Monsenhor Delay, arcebispo de Marselha, proclamará como "milagrosa" a cura de Marie-Thérêse Canin e declarará que se deve "atribui-Ia a uma intervenção especial da Bem-aventurada e Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus".

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Jeanne Gestas (1947): "depressão nervosa, úlcera e milagre controvertido

Quinto "milagre" reconhecido após o término da Segunda Guerra Mundial: novamente uma mulher e mais uma vez um caso de "peritonite", desta feita não tuberculosa mas "aderente". A senhora Jeanne Gestas, nascida a 8 de janeiro de 1897 (em solteira, Jeanne Pelin) submete-se a uma primeira operação em Bordeaux, em dezembro de 1943, devido a uma úlcera crônica e uma segunda vez, em maio de 1944, devido a"uma hérnia no estômago. Apesar de um ano todo de convalescença, nova hérnia diafragmática de estômago aparece e ela é mais uma vez submetida a uma cirurgia, a 4 de janeiro de 1946. Contudo, uma "rede fechada de aderências" torna a intervenção cirúrgica muito demorada, o que acarreta algumas complicações: estado de choque, congestão pulmonar, fistula na parede abdominal etc. E, para completar, sente ânsias de vômito, oclusões intestinais etc., em conseqüência de sério comprometimento do aparelho digestivo. A senhora Gestas não é pessoa piedosa. Contudo, deixa-se convencer por uma vizinha amiga a ir em peregrinação a Lourdes. A viagem tem lugar em agosto de 1946. Sofre de prisão de ventre, dores abdominais, síncopes, vertigens etc. Seu médico assistente acha que estes são sintomas de uma "distonia neurovegetativa" (expressão que se pode considerar como um sinônimo científico para "depressão nervosa") e continua a empregar meios farmacológicos para curá-Ia. Ela retorna a Lourdes em agosto de 1947. No dia 22, é levada às piscinas onde experimenta uma sensação estranha, "como se certa mão - dirá ela tivesse me agarrado e me arrancasse as entranhas". Na manhã seguinte, sente-se perfeitamente bem. Volta às piscinas onde experimenta "muito frio dentro da água, um frio intenso e, ao sair, um bem-estar maravilhoso". Começa então a comer como um lobo. AJunta médica de Lourdes constata o fato. A seguir é

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encaminhada ao professor Mauriac, de Bordeaux, para investigação complementar. Este declara em relatório datado de 1948: "Uma mulher de cinqüenta anos, tendo-se submetido a três operações cirúrgicas de úlcera estomacal, pericolite inflamatória, aderências, vê-se, após um banho na piscina, curada de suas perturbações gástricas, dores, prisão de ventre, crises de suboclusão, de que padecia há anos. O exame clínico desta doente é, hoje em dia, totalmente normal, só nos resta aguardar a confirmação de tudo isto com o passar do tempo. Falta discutir as lesões orgânicas e o desequilíbrio neurovegetativo durante os "acidentes que apresentou." Dois anos depois, a Junta médica de Lourdes constata que a senhora Gestas continua gozando de perfeita saúde e que a "distonia neurovegetativa", que havia desaparecido, deveria ser uma conseqüência das perturbações orgânicas. Finalmente, a 13 de julho de 1952, Monsenhor Richaud, arcebispo de Bordeaux, declara ver "o dedo de Deus" nessa cura, "sem que se possa de forma alguma, segundo o resultado de exames ultraminuciosos, supor que tenha havido alguma influência nervosa ou qualquer tipo de sugestão". Logo, este caso apresentou várias controvérsias. Em verdade, na época, tornava-se cada vez mais corrente a admissão de que a úlcera gastroduodenal resultava tão-somente de um "desequilíbrio do sistema nervoso parassimpático": reflete um conflito psicológico muito antigo, que teve, de alguma maneira, o tempo necessário para "se organizar", isto é, instalar-se no corpo. Aliás, a psicoterapia é muito mais eficaz neste caso do que a cirurgia. Os médicos agregados a Lourdes estão concordes, porém consideram que o "milagre" situa-se, no presente caso, menos na cura propriamente dita da senhora Gestas do que no desaparecimento das aderências intra-abdominais deixadas no peritônio peIas três intervenções cirúrgicas sucessivas.

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Madalena Carini (1948): uma cura milagrosa

reconhecida pelo futuro papa Paulo VI

Veremos agora uma miraculada italiana: Madalena Carini, nascida em Pávia, no dia 11 de março de 1917 e curada em Lourdes a 15 de agosto de 1948, de uma "tuberculose peritonal, pulmonar e dorsal" - enfermidade de que padecia desde 1935, ou seja, há mais de treze anos. A familia de Madalena, pelo lado paterno, tem uma forte hereditariedade tuberculosa. O pai e as duas tias paternas são vitimas da terrivel enfermidade, enquanto sua mãe sucumbe a uma angina do peito, isto é, a uma moléstia cardiovascular. Aos dez anos, Madalená tem uma 'pleurisia. Depois disso, a coluna vertebral é atacada. Aos treze anos, fazem-lhe o diagnóstico: portadora do "mal de Pott". Aos dezesseis anos, ingressa numa clinica chamada "helioterápica". Em 1935, tem que se submeter a uma cirurgia a fim de extirpar o apêndice. Nesta ocasião, estava com dezoito anos e o cirurgião constata a presença de um "sêmen de granulações tuberculosas no peritônio parietal e visceral". Após uma estada bastante rápida num sanatório, fica em casa até o final da guerra, sofrendo não só de peritonite tuberculosa, mas também, pouco tempo depois, de uma anemia profunda. Ao partir em peregrinação para Lourdes, em agosto de 1948, pesa trinta e oito quilos e padece de uma "poliserosite"*, se bem que, precisa o atestado, "jamais se tenha achado bacilo de Koch presente nos escarros". A temperatura oscila constantemente entre 39°5 e 40°, e seu médico assistente mostra-se bastante reticente diante da idéia de permitir que faça tão longa viagem a Lourdes. Portanto, Madalena parte sob a inteira responsabilidade de seus pais. A 15 de agosto de 1948, a jovem italiana reza o Rosário diante da gruta. Experimenta, então, uma repentina "sensação de calor", um

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"formigamento no peito", alguns "batimentos no coração" e uma "sensação de bem-estar fora do comum". Na hora da bênção do Santíssimo Sacramento, Madalena se dá conta de que suas dores desapareceram. Porém, somente na manhã seguinte, na viagem de regresso, é que se decide a comunicar a fantástica transformação ocorrida no seu estado de saúde. Na Itália, será examinada por diversos médicos. Um deles, no dia 10 de março de 1949, declara que o processo de cura observado em Madalena "foge às leis naturais". Um outro afirma ser tal cura "contrária a qualquer pressuposição lógica relacionada com o passado da enferma". No ano seguinte, a ex-doente já havia recuperado vinte quilos. A 11 de setembro de 1950, os vinte e um médicos da Junta internacional declaram unanimemente ser esta uma cura "inexplicável sob o ponto de vista da medicina". A 2 de junho de 1960, o cardeal Monti, arcebispo de Milão e futuro papa sob o nome de Paulo VI, declara "formalmente" tal restabelecimento como um "fato milagroso". A partir de então, Madalena dedicou-se a uma obra de caridade intitulada "a Familia da Ave-Maria" que se consagra ao alívio dos sofrimentos morais e físicos.

Jeanne FreteI (1948): dez anos de hospital e sete intervenções cirúrgicas

Jeanne FreteI, nascida a 27 de maio de 1914 na Bretanha, teve uma infância sofrida: rubéola, escarlatina, difteria etc. Em janeiro de 1938, quando conta vinte e quatro anos, é operada de apendicite no Hôtel-Dieu em Rennes. Depois disto, passará dez anos' no hospital, praticamente sem interrupções. Primeiro tem que operar um quisto tuberculoso nos ovários, depois, uma peritonite tuberculosa que a acometeu, logo seguida por uma fístula estercoral. É somente no fim da guerra que sai, finalmente, do hospital, porém aparece uma erisipela, em seguida um hallux valgus bilateral,

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finalmente uma osteíte do maxilar superior, que não lhe deixou mais do que três dentes na arcada superior e seis na inferior. A "3 de dezembro de 1946, dá entrada no hospital de Pontchaillou, em Rennes, onde já estivera internada durante algum tempo após a guerra. Desta feita, diz ela, é "para morrer lá". Está sempre acamada e todas as noites a febre atinge os 39° 5. Tem o abdômen inchado, distendido, terrivelmente dolorido: faz-se necessário uma aplicação diária de seis centigramas de morfina. Apesar de se ter submetido a um prolongado tratamento de estreptomicina, cuja descoberta era recente, o estado de Jeanne FreteI não apresenta melhoras, segundo o demonstra este atestado médico redigido pelo Dr. Pellé: "De agosto de 1948 a outubro de 1948, a enferma mostra-se cada vez mais cansada: só consegue ingerir pequenas quantidades de líquido. Surgem sinais meningíticos. Um deles é o ventre, volumoso e dolorido. Há um escoamento abundante de pus com as fezes, bem como nos vômitos, acompanhado de sangue negro. Os desfalecimentos cardíacos são freqüentes e colocam em perigo a vida da paciente. Toda esperança parece estar perdida." Pela terceira vez em cinco anos, a 20 de setembro de 1948, a doente recebe a extrema-unção. A temperatura oscila todos os dias entre 40° à noite e 36° pela manhã. As aplicações de morfina são feitas de três a quatro injeções diárias de dois centigramas cada uma: "O simples esforço para sentar-se na cama já lhe é quase impossível". Deixa-a extenuada. E, no entanto, é neste estado que empreende a peregrinação a Lourdes, no dia 4 de outubro de 1948, levando consigo o seguinte atestado do Dr. Pellé: "Peritonite tuberculosa. A enferma foi submetida a sete intervenções cirúrgicas abdominais a partir de 1938. Há três anos encontra-se em completo repouso, alimenta-se muito pouco e as dores no ventre obrigam-na a permanecer quase que totalmente imóvel" Ao ser levada a Lourdes, está semiconsciente, sempre acometida por vômitos que a impedem de alimentar-se e dormir. Na sexta-feira, 8 de outubro, levam-na muito cedo, às 7h30, para assistir a missa dos

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doentes no altar de Santa Bernadette. O padre que oficia a cerimônia, assustado e constrangido com a presença dessa doente dominada pelas náuseas, hesita em lhe administrar a comunhão. O maqueiro que carrega Jeanne FreteI insiste. E assim a enferma recebe a hóstia... Foi então - contará ela mesma mais tarde - que comecei a perceber que estava melhor e que me achava em Lourdes. Perguntaram pela minha saúde. Respondi que me sentia outra! Meu ventre continuava duro e inchado, mas já não padecia nenhuma dor. Deram-me uma xícara de café com leite que tomei com apetite e prazer. Após a missa, levaram-me até a gruta, sempre carregada na maca. Chegando ali, ao cabo de alguns minutos, tive a impressão que uma pessoa me amparava sob as axilas para me ajudar a sentar. E vi-me sentada. Virei-me a fim de ver quem me havia auxiliado, porém não vi ninguém. Tão logo me sentei, tive a sensação de que as mesmas mãos que me tinham ajudado a sentar seguravam as minhas para colocá-Ias sobre minha barriga. Perguntei a mim mesma o que estava me acontecendo: se estava curada ou saindo de um sonho. Notei que meu ventre tinha voltado ao normal. E então senti uma fome fora do comum. Volta para o hospital ainda na maca. Pede algo para comer. O Dr. Guégan examina-a e dá-lhe autorização para alimentar-se. Faz uma refeição frugal: um pedaço de vitela e purê de batatas com três pedaços de pão. Mas para ela é um banquete extraordinário: já faz dez anos que não tem uma refeição igual. "Ao terminar ainda continuava com fome. Pedi mais uma porção. Fui atendida e pedi mais. Então trouxeram-me como sobremesa um prato de sêmola de arroz, com receio que me sentisse mal." À tarde, a recuperada, satisfeita sem estar saciada, levanta-se, veste-se sozinha e sai para dar um passeio: "Já fazia três anos que eu não andava e naquele instante caminhei com a mesma desenvoltura de hoje - esclarece Jeanne Fretel. - Assim que cheguei às piscinas, tomei um banho de pé, sem me cansar."

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À noite, torna a ingerir uma refeição (sopa, pão e patê, sobremesa) e adormece, mas desperta por volta da meia-noite, ainda atormentada pela fome; serve-se de pão, manteiga, doces, bolo e readormece. No dia seguinte, levam-na até a Junta das Constatações onde cinco médicos assinam em conjunto um boletim em que declaram: "Enorme melhora, talvez cura completa." Jeanne Fretel sente-se tão aliviada no trem de volta que pede e suporta muito bem a parada brusca das injeções de morfina, sem experimentar as perturbações graves e costumeiras de uma desintoxicação tão violenta. E podemos imaginar o assombro do médico assistente da doente, o Dr. Pellé, que escreve a 13 de outubro de 1949: Voltamos a ver a senhorita Fretel no mesmo dia de seu retorno de Lourdes para Rennes, onde a examinamos e observamos o desaparecimento completo de todos os sinais patológicos. Temos acompanhado a paciente com regularidade e constatamos que a melhora do seu estado geral prossegue. Seu peso que era de 44 quilos no dia 5 de outubro de 1948 passou para 58,200 quilos. Durante os oito primeiros dias, esta jovem ganha 1,350 por dia. A temperatura é normal: 36°8 pela manhã, 37°2 à noite. O apetite e o sono são muito bons. Jeanne Fretel, após o seu regresso, teve condições de reencetar uma vida ativa que prossegue sempre sem qualquer acidente patológico. Nunca mais sentiu qualquer tipo de dor. A vida normal retomou seu curso na plenitude de uma saúde perfeita. Todos os dias levanta-se às 5h30 e recolhe-se às 11 da noite. E, no entanto, tem que fazer as tarefas mais cansativas da casa. Um ano depois, a jovem comparecerá diante dos vinte e oito médicos da Junta médica de Lourdes. Em 1950, após terem concluído tratar-se de uma "cura inexplicável", o processo de Jeanne Fretel é enviado à Comissão canônica criada expressamente para examinar este caso pelo cardeal Roques, arcebispo de Rennes. E a 8 de novembro de 1950, a Comissão canônica declara:

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"O caso da senhorita Fretel situa-se na série das curas extraordinárias, cientificamente inexplicáveis, na presença das quais só podemos repetir: 'O dedo de Deus se faz sentir'." Em seguida, o cardeal Roques, na data de 20 de novembro, apresenta um "reconhecimento de milagre" assim redigido: "Reconhecemos que a senhorita Jeanne FreteI, acometida de peritonite tuberculosa com sinais meningíticos e em estado muito grave de caquexia, foi curada súbita e radicalmente a 8 de outubro de 1948, no momento em que comungava no altar de Santa Bernadette em Lourdes, e nós julgamos e declaramos que a cura é milagrosa e deve ser atribuída à Nossa Senhora de Lourdes."

Tenente-Coronel Pellegrin (1950): os estafilococos dourados desaparecem instantaneamente

Veremos agora o caso do tenente-coronel Pellegrin, nascido a 12 de abril de 1898, oficial da Infantaria colonial. A 7 de janeiro de 1949, dá entrada no hospital marítimo de Toulon devido a uma "dor muito violenta na base do tórax à direita e atrás, acompanhada de febre e indisposição generalizada". Durante um mês e meio, os médicos tentam diagnosticar a enfermidade que o acometia, mas não chegaram a um resultado concludente. Em meados de fevereiro, o tenente-coronel Pellegrin deixa o hospital, sempre no mesmo estado, mas sem saber o que tem. No mês seguinte, um tisiólogo de Toulon descobre que o doente sofre de um abscesso no figado. É operado imediatamente. Porém, a intervenção cirúrgica deixará uma fístula que exige uma nova hospitalização, em pleno mês de maio. A temperatura sobe todas as noites, oscilando de 39° a 39°5. Os antibióticos administrados em doses maciças não produzem resultado positivo. Em setembro de 1950, a situação está estacionária: os estafilococos dourados, da fístula resistiram a todas as terapias usadas. O tenente-coronel Pellegrin é forçado a fazer dois curativos por dia.

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A 1º. de outubro de 1950, o enfermo encontra-se em Lourdes. O banho de piscina provoca uma desagradável sensação de frio. No dia seguinte, 2 de outubro, dedica-se apenas a atividades religiosas. Contudo, a 3 de outubro, domina o medo da água fria e volta a tomar outro banho na piscina. No dia seguinte, portanto, ao levantar-se, a ferida da fístula está seca. Dois anos depois, os médicos da Junta de Constatações escrevem: "Embora a etiologia da fístula e do abcesso subjacente que a provocou continue imprecisa, os abaixo-assinados acham que o desaparecimento quase instantâneo de uma fístula que supurava sem cessar há dezoito meses merece ser considerado como um fato extraordinário." A 8 de dezembro de 1953, esta cura será declarada milagrosa por Monsenhor Gaudel, bispo de Fréjus e Toulon.

Evasio Ganora (1950): morto num acidente com um trator dois anos depois da cura milagrosa

Evasio Ganora é um agricultor italiano. No final de 1949 (está com trinta e seis anos e é pai de cinco crianças) começa a sentir uma indisposição generalizada. Cansaço, inapetência, febre. Logo depois hospitaliza-se. São necessárias várias semanas e inúmeros exames para se obter o diagnóstico: trata-se de "linfogranulomatose maligna", também chamada "doença de Hodgkin", um tipo de tumor mais ou menos canceroso que fica preso aos gânglios do sistema linfático. Apesar dos tratamentos intensos a que foi submetido (quimioterapia, transfusões de sangue, radioterapia), o estado de Evasio Ganora, além de não melhorar, agrava-se. No dia 5 de maio de 1950, seu médico assistente, o Dr. Pietro Capra, não lhe dá mais do que alguns meses de vida. A 31 de maio, Evasio Ganora parte para Lourdes. No dia 2 de junho, é levado num carrinho a fim de ser mergulhado numa das piscinas. Tem, então, a impressão de que uma corrente muito quente

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atravessa-lhe o corpo. Ao sair do banho, já não necessita mais do carrinho de enfermo: entra só, a pé, no seu hotel. No dia seguinte, após uma boa noite de sono, o médico que o examina fica profundamente surpreso por não mais sentir os gânglios linfáticos. A febre também havia cedido. Ganora já consegue alimentar-se normalmente. Melhor ainda, no terceiro dia de sua estada em Lourdes, o homem, da condição de doente, passou a ser maqueiro. Ao retornar a Lourdes, quatro anos mais tarde, a Junta médica constata que as condições do ex-doente são excelentes e que goza de perfeita saúde. A Comissão médica internacional examina o caso em 1955 e declara: "a evolução da moléstia de Ganora difere profundamente daquela que a experiência médica julga ser a doença de Hodgkin" e afirma, além disso, "que raramente viram casos assim tão insólitos". Contudo, quando a Comissão canônica italiana realiza o que se acredita ser um último exame, constata-se a presença de um gânglio linfático na axila esquerda. Seria uma recaída? Mas a análise do sangue não confirma, de forma alguma, que se trate de uma recidiva do mal de Hodgkin. Aliás, ao submeter-se a um novo exame clínico, verifica-se a inexistência do gânglio. No dia 31 de maio de 1955, Monsenhor Giuseppe Ailgrisani, bispo de Casale, proclama ser a cura de Evasio Ganora milagrosa e graças à interyenção da Virgem Maria. Porém, dois anos mais tarde, em dezembro de 1957, o miraculado, que trabalhava nas suas terras, caiu de um trator cujas rodas lhe passaram sobre o corpo e o esmigalharam...

Thea Angele (1950): um milagre admitido com reservas

A alemã Thea Angele sofria de esclerose em placas*, quando, em maio de 1950, aos vinte e nove anos, vai em peregrinação a Lourdes. Seu passado médico já era bastante acidentado: operação de um

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bócio em 1938, apendicite perfurada em 1940, msteropexia (ou fixação do útero) em 1942. A partir de 1944 surgem alterações graves de deficiência motora: dificuldade crescente para andar e manter-se de pé, fala entrecortada, perturbações esfincterianas, prisão de ventre, amenorréia e, é claro, um emagrecimento fora do normal. O médico assistente diagnostica: "Lesão do sistema nervoso central. Indicios sintomáticos de uma esclerose em placas”. Como se isto não bastasse, em 1945, durante um ataque aéreo sobre a estrada de Tübingen, Thea Angele é soterrada! A partir deste momento a enferma não poderá mais deixar a cama, quer em sua casa, quer nos estabelecimentos hospitalares. Além dos sintomas anteriormente citados, Thea Angele é agora vítima de vômitos constantes ao longo do dia. Logo, tem que ser alimentada através de uma sonda e sua magreza, pouco a pouco, toma-se assustadora: uma intervenção cirúrgica denominada "alcoolização bilateral" da "cadeia simpática" permite uma espécie de anestesia generalizada, porém de rápida duração. * Formação de placas de desmielinização repartidas não-sistemati-camente em todo o sistema nervoso (a miellna é a substância que protege determinadas fibras nervosas). Sintomas muito numerosos e variáveis. Prognóstico fatal. Pouco depois, as dores reaparecem, tomando-se necessârio o uso de fortes doses de novocaina - tão fortes que a paciente é incapaz de suportá-las sem desmaiar. Thea Angele mergulha num torpor inconsciente e, neste estado lastimável, é levada em peregrinação a Lourdes, procedente de Ulm, em maio de 1950. Em Lourdes, a moribunda - esta é a impressão dos médicos - recebe a extrema-unção. Contudo, é conduzida às piscinas: um banho a 18 de maio, dois a 19, e mais outro a 20 do mesmo mês. Uma testemunha - a médica, Dra. Wimmer - relata o que assistiu:

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"O que aconteceu à saida causou-me forte impressão. Sorridente, vira a cabeça na minha direção, a cabeça que até aquele momento estava sempre inquieta. Seus traços estavam relaxados e obedeciam novamente aos comandos da enervação mímica." E Thea começa a falar: - Doutora, sinto, agora, uma fome terrível! Com o passar das horas, músculo após músculo, articulação após articulação, a paralisia vai passando até desaparecer. A Junta médica de Lourdes constata o fato. Quando Thea Angele retorna a sua casa, em Wurtemberg, o médico da companhia de seguro social observa que "a imagem clássica da esclerose em placas não existe mais". Além disto, por alimentar-se normalmente, recupera os quilos perdidos. Em 1952, alguns médicos da Comissão internacional solicitam um suplemento de informação, pois, segundo eles, o processo não comprovava de modo determinante que Thea Angele sofresse, anteriormente, de esclerose em placas. Em abril de 1961 (nesse interim, Thea Angele entrou para o convento da Imaculada Conceição em Lourdes onde tomou o nome de irmã Marie-Mercedès), a Junta médica declara, não por unanimidade, como geralmente acontece, mas "quase unanimemente", ser essa cura "inexplicável sob o ponto de vista da medicina". A autoridade eclesiástica confirmará e concluirá pelo "caráter milagroso" algumas semanas depois.

Alice Courteault (1952): mais um caso de esclerose em placas

A senhora Alice Courteault, uma habitante de Deux-Sèvres, está com trinta e dois anos, em meados de 1949, quando sente os sinais de uma moléstia a principio indeterminada: febre, dores musculares, perda dos reflexos, locomoção dificil etc. Seu médico assistente, cirurgião em Thouars, diagnostica uma esclerose em placas - diagnóstico que um especialista de Bordeaux

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recusa-se a confirmar no final do ano. Em 1951, as condições da senhora Courteault, apesar de um ano de tratamentos intensivos, agravam-se. Não consegue mais andar, emagreceu, praticamente já nem se alimenta mais. "Para andar - contará seu marido posteriormente - ela se apoiava em duas cadeiras, não conseguia mais manter o equilíbrio. Quando permanecia sentada por mais de quinze minutos, era tomada por perturbações do equilíbrio e pedia-me para segurá-Ia, pois sentia tudo girando a seu redor. Já não podia mais despir-se sozinha, encontrava dificuldades em segurar qualquer coisa e tremia violentamente quando desejava apanhar um objeto. Também não tinha mais condições para costurar ou escrever. Finalmente, a fala era dificil e sua visão diminuía sensivelmente... Ninguém pode imaginar o estado em que se achava a minha mulher. Quase sempre, quando a carregava nos braços, à noite, ela desmaiava. E assim eu a colocava na cama." É neste estado que ela parte rumo a Lourdes em maio de 1952. Sente-se melhor tão logo chega a seu destino. Levam-na até as piscinas três dias depois. Ainda experimenta sensações bastante fortes: palpitações, zumbidos, vertigens... Na parte da tarde começa a falar e à noite, recupera o uso total da palavra! Antes de retornar a sua casa, deixa-se examinar pela Junta médica. A senhora Courteault volta a Lourdes durante três anos seguidos e comunica à Junta médica a persistência da cura. A 19 de agosto de 1955, é convidada a apresentar-se diante da Comissão internacional que constata a ausência de qualquer perturbação funcional, um aumento de nove quilos, força muscular e equilíbrio normais, e os reflexos, normais e rápidos. O bispo de Poitiers, Monsenhor Vion, declara esta cura milagrosa a 16 de julho de 1956, após o julgamento positivo revelado pela Comissão canônica, que assim se manifesta: "A doente, cristã fervorosa e que foi a Lourdes a fim de pedir seu restabelecimento, sabia, há muito tempo, ser vitima de moléstia incurável e estar irremediavelmente condenada. Também afirma ter tido, desde a partida e durante toda a peregrinação, uma confiança

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sem fim na eficiência dos banhos de piscina, enquanto se dizia indigna de uma tal graça, caso acontecesse." Por que tanta insistência? Porque a esclerose em placas é uma doença que se conhece muito mal: os médicos ainda não conseguiram determinar as causas que provocam a deterioração dos grãos de mielina que cercam as fibras nervosas. Por outro lado, sua evolução obedece também a algumas regras desconhecidas até o presente momento e, quase sempre, prossegue por um longo lapso de tempo, uns vinte anos em média. Enfim, vemos com freqüência não apenas uma regressão parcial da moléstia, mas com bastante freqüência, regressões totais, com o desaparecimento integral de todos os sintomas, enquanto outros doentes, acometidos por essa mesma enfermidade, acabam paraplégicos, entrevados e condenados a um resultado fatal.

Irmão Léo Schwager (1952): a comissão médica reconhece "a cura inexplicável" por 18 votos contra 4 O terceiro caso reconhecido de esclerose em placas é o do monge beneditino Léo Schwager. Nascido a 19 de maio de 1924, acumula durante a infância, a adolescência e a juventude, acidentes traumáticos graves: queda de bicicleta em 1936, seguida de vertigens que duram um ano inteiro; um coice recebido durante o serviço militar em 1945; e um mês depois um afogamento em piscina, quase fatal, que o obriga a uma demorada sessão de reanimação. Deve-se observar que a partir da idade de doze anos padece de insônia, dores de cabeça e inapetência. Em 1947, sob este quadro doloroso, aparecem alguns sintomas mais graves: dificuldade para falar, retenção de urina, perturbações do equilíbrio. Finalmente, em 1951, um especialista de Zurique diagnostica uma esclerose em placas. Logo aparecerá a afasia, e depois uma hemiplegia intermitente.

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A 18 de abril de 1952, o irmão Léo Schwager deixa Fribourg dirigindo-se em peregrinação a Lourdes. O futuro miraculado contará, com abundantes detalhes, o que lhe aconteceu na cidade milagrosa de Bernadette: "Tinha vindo a Lourdes - diz logo de início - com muita confiança em Deus e na intercessão da Santíssima Virgem." Na manhã de 30 de abril, comunga e em seguida ruma para as piscinas: "No banho, experimentava uma sensação estranha, especialmente na perna direita. Percebia que possuía novas pernas. De início, acreditei que poderia caminhar mas tal não aconteceu. Apesar de tudo, a minha confiança aumentava sem cessar." À tarde ele vai à gruta para rezar, retornando às piscinas antes da bênção aos enfermos: Meu Deus - implora o jovem beneditino suíço - se esta for a Vossa vontade, curai-me. Santíssima Virgem, rogai por mim! De repente - prossegue o monge - senti um choque, como uma descarga elétrica, e imediatamente larguei o meu carrinho, sem saber o que acontecia comigo. Estava de joelhos, acompanhando com os olhos o Santíssimo Sacramento até o final da procissão, mergulhado nas minhas orações. Somente ao ver-me ajoelhado junto ao meu carrinho é que me dei conta do sucedido. Em seguida, ergui-me, totalmente curado, sem necessidade de apoio. O miraculado sente-se "pleno de júbilo" e "totalmente à vontade". Uma testemunha, professor de medicina em Nantes, relata o que assistiu quando o irmão Léo Schwager caiu de joelhos ao lado de sua cadeira de rodas: "Com um ar de êxtase inaudito, olhava fixamente o Santíssimo Sacramento que se afastava e não despregava os olhos dele... Ao mesmo tempo, tive a impressão de que estava oprimido, como tendo recebido um golpe ou passado por uma emoção violenta e encontrava muita dificuldade para inspirar fundo”.

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Na volta da peregrinação, um médico suíço constata o bom estado de saúde do ex-enfermo que - diz ele - não dá a impressão de "ser um homem nervoso, nem ansioso, nem angustiado". Nos anos seguintes, o irmão Léo Schwager retorna a Lourdes com regularidade, porém como maqueiro. Na primavera de 1959, a Comissão internacional examina o processo e conclui tratar-se de um caso "inexplicável sob o ponto de vista médico", conclusão que, no entanto, não é conseguida por unanimidade mas sim por dezoito votos contra quatro. Em 1960, Monsenhor Charrière, bispo de Fribourg, "julga e declara" a cura do irmão Léo Schwager como milagrosa. A partir daí, o beneditino suíço organiza, anualmente, uma peregrinação de enfermos a Lourdes.

Marie-Louise Bigot (1953 e 1954): um milagre em duas etapas!

"Um dos mais belos e mais autênticos milagres de Lourdes", segundo as palavras de um membro da Junta médica, é o de Marie-Louise Bigot, curada uma primeira vez, parcialmente, em outubro de 1953 e uma segunda, desta feita, totalmente, em outubro do ano seguinte. Ela padecia de uma "síndrome neurológica" de graves manifestações: hemiplegia, surdez e cegueira. Nascida na região de Rennes em 1922, Marie-Louise Bigot foi uma criança doente: padece de várias afecções cutâneas (impetigo, piodermites etc.) que a acompanham durante a adolescência e se revelam rebeldes a qualquer tipo de tratamento. Em 1950, aos vinte e oito anos de idade, o estado físico da jovem agrava-se. Sua acuidade visual sofre uma redução sensível (visão de 3/10 em ambos os olhos) e é acometida por uma dor de cabeça intensa, acompanhada de febre (39°). Na primavera de 1951, apesar do uso intenso de antibióticos, MarieLouise Bigot cai numa semicoma que exige hospitalização. Após vários exames, submetem-na a uma

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operação intracraniana: o cirurgião não encontra nenhum tumor, mas uma aracnoidite no occipital, do lado direito do cérebro. Durante o ano de 1951, a acuidade visual de Marie-Louise Bigot continua em decréscimo; enquanto surgem algumas vertigens, começam a aparecer os primeiros sinais de surdez e uma semiparalisia insensibiliza e paralisa o lado esquerdo de seu corpo. Um médico diagnostica uma "moléstica orgânica de origem nervosa". Em outubro de 1952, ela realiza a primeira peregrinação a Lourdes, sem obter qualquer resultado. Quando da segunda peregrinação, em outubro de 1953, logo no ano seguinte, a semiparalisia desaparece, porém a cegueira e a surdez persistem. Marie-Louise Bigot voltará ainda numa outra ocasião a Lourdes, mais precisamente em outubro de 1954. Desta vez, acontecerá o milagre. O fato teve lugar no final da procissão do Santissimo Sacramento e Marie-Louise Bigot relata, pessoalmente, como se passaram as coisas: De repente, ouvi algo que me pareceu um barulho descomunal. Senti medo, não entendia o que estava acontecendo comigo. Ouvi, claramente, a multidão Cantando a Rainha do Rosário. Então, Marie-Louise Bigot descobre que as dores na nuca desapareceram e que já pode virar a cabeça. Sua atitude revela claramente aos enfermos vizinhos que recupera a audição. Um deles exclama: - Marie, você está escutando! Ela pede-lhe para que se cale, porém a novidade propaga-se com rapidez e murmúrios excitados são ouvidos aqui e ali. A enfermeira. acompanhante aproxima-se, então, de Marie-Louise Bigot e pega-lhe a mão a fim de acalmá-la. Isto aconteceu a 8 de outubro. No dia seguinte, uma especialista em otorrinolaringologia que fazia parte da Junta médica redige o seguinte atestado: "Desaparecimento de todas as perturbações vertiginosas. Volta da. audição normal com relação aos sons graves e agudos."

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Marie-Louise. Bigot anda e escuta novamente, porém padece de uma dor de cabeça tão alucinante que pensa não poder chegar viva a sua casa em Saint-MaIo. No trem noturno, na viagem de regresso, por volta das duas da madrugada, recupera subitamente a visão. Inicialmente pensa estar vendo clarões, logo distingue a touca branca da enfermeira de plantão e a braçadeira clara das religiosas presentes no compartimento. Ao término de uma série de exames médicos, em Rennes e posteriormente em Lourdes, a Comissão médica internacional examina o caso da senhorita Marie-Louise Bigot, a 18 de março de 1956: "A origem orgânica das perturbações apresentadas pela senhorita Marie-Louise Bigot - declara o professor Thiébault - não deixa nenhuma dúvida." O médico evoca a intervenção cirúrgica que havia revelado uma aracnoidite, esclarecendo que esta afecção sozinha não era suficiente para explicar "todas as perturbações observadas". O médico encontra uma prova da realidade orgânica da doença pelo fato de Marie-Louise Bigot, no tempo em que sofria, ou dizia sofrer, de cegueira, ter aprendido o braille "a fim de poder comunicar-se com aqueles que a rodeavam". Ele quer dizer com isto que não se tratava de uma cegueira fingida, destinada exatamente a cortar a comunicação com o seu mundo. "A cura súbita da surdez, seguida da cura da cegueira - concluía ele - que se reportava há mais de dois anos, não parece ser explicada naturalmente." E é a 15 de agosto de 1956 que o cardeal Roques, arcebispo de Rennes, declara esta cura milagrosa. Marie-Louise Bigot, cujo caso extraordinário despertou o interesse de inúmeros historiadores de Lourdes, bem como de médicos, jamais sofreu uma única recaída.

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Ginette Nouvel (1954): dezesseis anos depois, uma recaída fatal

Ginette Nouvel representa o único caso de cura milagrosa, reconhecida oficialmente, seguida de uma recaída da moléstia, uma recaída tão grave que a leva à morte. É verdade que isto aconteceu após um longo lapso de tempo (dezesseis anos). Ginette Nouvel, casada, está com vinte e cinco anos quando, repentinamente, a 7 de novembro de 1953, é acometida por crises violentas de mal-estar, vômitos, dores de estômago, vertigens. É levada imediatamente para uma clinica. Está sem sentidos. Um cirurgião, acreditando tratar-se de um quisto no pâncreas, começa a operá-la. Percebe, então, que na verdade ela sofre de uma moléstia rara, chamada de Budd-Chiari: trata-se de um aumento das veias hepáticas, acompanhada de ascite (denominação atual da hidropsia) - o que vai exigir numerosas e contínuas punções. Durante o verão de 1954, por exemplo, retiram-se do abdômen da enferma seis litros de líquido hidrepático: a 14 de agosto, quatro litros; a 24, cinco litros; a 7 de setembro, oito litros; a 17... Estas punções, os tratamentos quimioterápicos ou radioterápicos, novas intervenções cirúrgicas (ligadura de uma artéria hepática), tudo isto não dá o menor resultado. E a 21 de setembro desse mesmo ano de 1954, ela se encontra na piscina de Lourdes. Ginette Nouvel contará mais tarde que, no momento do primeiro banho, teve a "sensação" de estar "sem" o ventre, de estar "livre". Porém ao sair, olha para baixo e vê que o abdômen continua inchado e seu aspecto continua o mesmo de sempre, de mulher "magra e grávida". Retorna às piscinas nos dois dias seguintes, porém sem experimentar a estranha "sensação" do primeiro dia. Contudo, ao chegar de volta a casa, em Carmaux, as crises de mal-estar tinham desaparecido e, pouco a pouco, seu ventre inchado vai-se esvaziando, naturalmente, sem que o fígado doente fabrique o líquido hidrepático... E a 8 de

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agosto ela já havia recuperado 8 quilos: já não tem mais aquele aspecto lamentável de "mulher magra e grávida". Em abril de 1961, a Comissão internacional concluirá: "Parece evidente que Ginette Nouvel está realmente curada da moléstia gravíssima (síndrome de Budd-Chiari) da qual padecia." O relator, o professor Mauriac, declara que, se a cura em si não foi imediata é porque a "reversão da tendência evolutiva" da moléstia ocorreu subitamente, uma vez que, depois de meses, a situação mantinha-se estacionária, embora não apresentasse nenhum sinal de melhora. A 23 de janeiro de 1963, o arcebispo de Albi declarará a cura milagrosa. Na realidade, tratou-se mais de um alívio prolongado e não de uma cura propriamente dita, pois, em 1970, a síndrome de Budd-Chiari declarava-se novamente e pouco depois a ex-miraculada morria. No entanto, os médicos ressaltam que a duradoura melhora de que se beneficiou a enferma em questão é caso único na história dessa enfermidade.

Elisa Aloi (1958): curada por injeções com a água milagrosa.

Elisa Aloi nasceu em Patti, na região de Messina, a 26 de novembro de 1931, filha de pai tuberculoso e mãe cardíaca. Aos dezessete anos aparece-lhe um abscesso no joelho direito. Apesar dos tratamentos, das incisões, das curetagens e dos antibióticos usados, ele não desaparece e as fístulas renovam-se perpetuamente. Aliás, pouco depois outros focos de infecção surgirão ao nível de uma vértebra lombar, depois no cotovelo direito, em seguida na coxa direita. Elisa passa períodos regulares no hospital e em sanatórios. Em junho de 1957, faz sua primeira peregrinação a Lourdes. Não obtém nenhum resultado positivo, muito ao contrário, seu estado piora seriamente. Mas apesar disto a enferma volta à cidade de Bernadette e ali permanece de 4 a 13 de junho de 1958.

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Nessa época ela está toda engessada. A temperatura oscila constantemente em torno dos 39°5. E está consumida da cabeça aos pés por fístulas e abscessos, de onde saem continuamente secreções purulentas abundantes e fétidas. Durante dois dias toma injeções subcutâneas com a água de Lourdes. E, no terceiro dia, todas as feridas estão secas e fechadas... A cura é reconhecida milagrosa a 25 de maio de 1965. Nesse ínterim tornou-se senhora Vacarelli, pois casou-se com um guarda siciliano com o qual teve quatro filhos.

Juliette Tamburini (1959): fim de um calvário para uma chefe de banbeirantes

Juliette Tamburini é uma jovem de Marselha. Nascida em 1936, sofre uma congestão pulmonar complicada por uma pleurisia aos três anos e meio, coisa rara e portanto perigosa. Segundo uma técnica atualmente condenada, fazem-lhe um "abscesso de fixação" na coxa esquerda (face externa). Forma-se, é claro, um abscesso que é lancetado de imediato. A pequena Juliette continua sendo uma criança doente, a tal ponto que, em 1948, faz-se necessário interná-la num preventório localizado em Corrèze. Tem crises de febre que vão até os 40°. Todos julgam tratar-se de uma tuberculose. Contudo, na verdade, percebe-se pouco tempo depois que o ex-abscesso de fixação provocou uma osteomielite. Surge uma fístula que se abre periodicamente e que não aceitará qualquer tipo de tratamento durante mais de dez anos. A adolescente torna-se uma freqüentadora das clínicas e hospitais, pois se submete a onze intervenções círúrgicas, principalmente curetagens na fístula e no osso. Os exames revelam que o agente infeccioso da osteomielite é o estafilococos dourado. Concomitantemente, é claro, Juliette faz uso de uma quantidade fantástica de antibióticos, uma vez que estamos na década dos cinqüenta e a descoberta de Fleming já está sendo usada em todo o

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mundo. Além dessas osteomielites fistulosas, a jovem Juliette Tamburini começa, pouco tempo depois, a sofrer de epistaxe, ou seja, sangramentos nasais tão abundantes que se faz necessário proceder periodicamente a cauterizações e até mesmo, de uma feita, a uma transfusão. Estes sangramentos tornam-se tão freqüentes e copiosos que a membrana divisória do nariz perfura. Em julho de 1959, Juliette Tamburini, então com vinte e três anos, vai a Lourdes em peregrinação. Nos dias 12, 13 e 14 de julho, deitada na maca, assiste a procissão do Santíssimo Sacramento e não ousa, se bem que tivesse vontade de fazê-Io, tomar um banho na piscina. A 15 de julho a enfermeira da jovem enferma tem uma idéia: injetar água da fonte de Massabielle dentro da fístula. Dito e feito. À noite, Juliette é acometida por um violento sangramento de nariz que a deixa com "aspecto cadavérico". Na manhã seguinte, a enfermeira que faz o curativo observa que o anterior está muito pouco úmido. À noite (estamos na quinta-feira, 16 de julho) a jovem marselhesa resolve ir às piscinas. Tomará um segundo banho na sexta-feira, 17, pela manhã. E nesse dia, no momento da troca do curativo, constata-se que a ferida está completamente fechada. Durante o trajeto de volta, um insignificante sangramento nasal... que será o último na vida dessa chefe de bandeirantes que a partir de então, poderá levar sua turma para passear por quilômetros e quilômetros... Três exames serão. realizadas pela Junta médica de Lourdes: em julho de 1960, em maio de 1961 e em julho de 1963 - exames que permitem constatar a cura total e a volta ao normal do osso. Anteriormente fistulado. A partir do dia 11 de maio de 1965 Juliette Tamburini figura na lista oficial dos milagres de Lourdes e tem oportunidade de testemunhar pessoalmente a sua cura na famosa transmissão televisada, Les Dossiers de l'écran, quando de um programa consagrado a Lourdes. Declararia a este propósito: - Eu não tinha pedido a minha cura. Fui a Lourdes buscar a fé necessária, para suportar a minha moléstia.

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Vittorio Micheli (1963): cura secreta de um câncer

Contrariamente ao que geralmente acontece, a cura do italiano Vittorio Micheli ficará ignorada e oculta durante muitas meses. Vejamos sob que condições curiosas. Vittorio Micheli, nascido em 1940 em Trento, no Tirol italiano, está com vinte e dois anos e quase terminando o serviço militar no Batalhão dos Caçadores alpinos quando dá entrada no hospital. Acusa dores violentas na região lombo-sacra bem coma nos quadris e coxa esquerda. Após longas semanas de exames, fica diagnosticado um osteossarcoma, isto é, um tipo de tumor canceroso no osso. Os médicos engessam sua bacia e administram-lhe analgésicos fortíssimos, pois o infeliz Vittorio padece bastante. Pensa-se em submetê-Io a uma cobaltoterapia, porém a localização da neo-formação torna impraticável este tipo de tratamento. No hospital militar de Verona, tudo que se pode fazer por ele é ministrar-lhe vitaminas e, de quando em quando, uma aplicação de rádio, além de renovação periódica do gesso. De 29 de maio a 5 de junho, Vittorio encontra-se em peregrinação a Lourdes. Apesar do gesso que lhe envolve a bacia, toma alguns banhos na piscina. Sente-se muito melhor de imediato, a tal ponto que ele mesmo suprime os medicamentos analgésicos. Percebe, também, a volta do apetite. Contudo, não julga necessário comunicar estas informações a seu médico acompanhante. De volta à Itália, retorna obedientemente ao hospital militar de Trento. Embora se conserve deitado e com o gesso, o estado de saúde do soldado Micheli não vai parar de melhorar. Mas é apenas em fevereiro do ano seguinte que um controle radiológico permite que se faça uma constatação assombrosa:

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"Restabelecimento singular dos tecidos ósseos da semibacia esquerda que estavam totalmente destruidos", é a conclusão do relatório médico. Finalmente, em abril, Vittori Micheli volta para casa, curado, livre das dores e do gesso, podendo andar normalmente, trabalhar, fazer esforços. Quando a Junta médica de Lourdes recebe a série de radiografias que tinham sido feitas no início da doença e as outras realizadas até sentir-se restabelecido, não terá qualquer dúvida: este desaparecimento de "uma neo-formação maligna" (para não usar o termo câncer...) é de tal monta que "não se pode dar qualquer explicação médica para essa cura". Em maio de 1976, o arcebispo de Trento julgará esta cura de tal forma extraordinária que tecerá um comentário bem mais longo do que o habitual em casas desse tipo. "Após termos pedido a assistência do Divino Espírito Santo, declara Monsenhor Gottardo, acreditamos ser de nosso dever assinalar que esse caso é digno de um estudo especialmente atento. Diante de um acontecimento tão extraordinário, ligado de modo íntimo ao contexto religioso de Lourdes, temos que admitir, por força, que existem aqui elementos suficientes para que reconheçamos a intervenção especial do poder de Deus, Criador e Pai. Manifesta-se, através dele, além do sinal da misericórdia divina com relação ao homem sofredor, a realidade da intercessão da Virgem Imaculada."

Serge Perrin (1970): cego e paralítico Serge Perrin, de origem bretã (nasceu em 1929 em Morbihan), é contador em Angers. No dia 4 de fevereiro de 1964, é acometido por graves sintomas: dor de cabeça praticamente insuportável, a quase impossibilidade de andar, dificuldade para falar etc. Numerosos exames são realizados a fim de tentar descobrir a lesão neurológica que teria podido provocar essa hemiplegia. Porém, não

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acusam nada. Após três meses de afastamento do trabalho, Serge Perrin retoma sua vida normal. Durante cinco anos nada acontece. Contudo, na segunda-feira, 2 de dezembro de 1968, declara-se uma nova crise mais violenta do que a primeira. A radiografia revela uma trombose carotidiana esquerda. Desta vez, não haverá cura espontânea e a situação de saúde de Serge Perrin vai agravar-se tanto (cegueira, perturbações de consciência etc.) que a Previdência Social lhe concede a "invalidez de terceira categoria com terceira pessoa": já não pode mais realizar sozinho os "atos comuns da vida". Ele faz uma primeira peregrinação a Lourdes do dia 4 ao dia 9 de maio de 1969, sem obter qualquer resultado. Na primavera do ano seguinte, diante da insistência de sua mulher, parte novamente para Lourdes. No último dia de sua estada, assiste, na basílica, o ofício religioso que se chama "Unção Comunitária dos Enfermos". Então, repentinamente, ele experimenta algumas "sensações" que não consegue definir e que qualifica de estranhas. Tem a impressão de poder locomover-se sozinho, sem bengala e sem ajuda. Mas não ousa tentar. Deixa-se, portanto, conduzir para o hospital. Na parte da tarde, está em frente à gruta e percebe que sua visão voltou ao normal. Mas deve partir logo depois. É no trem, portanto, que será examinado. Em 1971, o exame neurológico é "normal". A perícia efetuada nota que a série de radiografias realizadas não comprovam indubitavelmente uma trombose na origem da enfermidade de Serge Perrin que, no entanto, "apresentava sinais claramente orgânicos de origem circulatória". Serge Perrin será examinado quatro vezes pela Junta médica de Lourdes, enquanto que a Previdência Social o deslocou da terceira para a segunda categoria, que quer dizer simplesmente que "não tem condições de trabalho". O último exame tem lugar a 17 de outubro de 1976. A conclusão a que chegou a Comissão médica internacional é a seguinte: O senhor Serge Perrin apresentava uma hemiplegia recidiva orgânica, com lesões oculares, devido a perturbações circulatórias cerebrais,

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sem que fosse possível descobrir com exatidão a natureza e o nível das lesões vasculares. Diante da ausência de verdadeiras seqüelas, a cura observada, segura e estável há seis anos, pode ser considerada, sob o ponto de vista clínico, como tendo sido alcançada de forma inteiramente fora do normal. A decisão oficial, após este atestado médico menos positivo do que de hábito, só será proclamada dois anos mais tarde, pois é no dia 17 de junho de 1978 que o bispo de Angers reconheceria o caráter milagroso desta cura.

LOURDES EM DEBATE

1. Os que crêem "Sim, há milagres em Lourdes. Ainda que o número pareça restrito, eles apresentam-se com todas as garantias desejáveis e isto, pode-se dizê-Io com todo o rigor do termo, para cada uma das sessenta e quatro curas reconhecidas e declaradas como tais pela autoridade eclesiástica."

Dr. OLIVIERI, Presidente da Junta médica (1959-1971)

Ainda há milagres em Lourdes? (com a colaboração de dom Bernard Billet)

Sessenta e quatro milagres e quinze mil médicos! Sessenta e quatro, este é o número, sabemos agora muito bem, das curas milagrosas acontecidas em Lourdes desde 1858 e reconhecidas como tais pela Igreja após decisões canônicas (isto é, tomadas segundo a lei católica). Quinze mil é o número dos médicos do mundo inteiro que estão, atualmente, agregados à A.M.I.L., Associação Médica Internacional de Lourdes. Tivemos oportunidade de ver anteriormente como a Igreja do

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século XIX e XX havia institucionalizado as aparições da Virgem a Bernadette e proporcionado um impulso fabuloso ao santuário criado no próprio local.

Seis mil "proposições e curas" No que diz respeito às curas milagrosas, a institucionalização do fenômeno é antes de tudo obra dos próprios médicos. Na verdade, é devido à sua presença permanente há um século em Lourdes que se sabe que os "milagres" jamais deixarão de ser considerados botões na ramagem das curas extraordinárias, ocorridas cada dia em maior número. Em 1858, o Dr. Dozous recenseia uma centena e no período que vai de 1858 a 1914 um recenseamento realizado pelo abade Bertrin atingiu a cifra quase inacreditável de 4.445! Aliás os médicos são tão zelosos com relação às suas prerrogativas que os dirigentes da Junta das Constatações no período contido entre as duas grandes guerras, ao Dr. Le Bec (1917), o Dr. Marchand (1918-1925) e o Dr. Valet (1925-1946) não entregarão nenhum processo a qualquer autoridade diocesana, seja ela qual for. Muito bem, sabe-se no entanto que de 1924 a 1946 esta mesma Comissão de Constatações confessou como "clinicamente inexplicáveis" cento e setenta curas! A partir de 1947, setenta e uma pessoas, segundo o Dr. Olivieri, diretor da Comissão de 1959 a 1971, foram reconhecidas como apresentando uma cura certa, definitiva e inexplicável". No total, segundo uma estimativa geralmente aceita, contra os sessenta e quatro "milagres" oficiais, teria havido em Lourdes, a partir de 1858, seis mil "proposições de curas". Tudo teve início com o célebre Dr. Dozous. Da mesma forma como praticamente auscultou Bernadette em transe, vai interessar-se apaixonada e sobretudo cotidianamente pelas curas. Desde o búcio, quando os peregrinos bebem a água; fazem abluções com ela, e engarrafam-na para levar consigo, o Dr. Dozous mantém-se permanentemente na beira da fonte. Interroga numerosas pessoas e

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faz anotações. Sua presença cria uma espécie de confirmação oficial e médica das propriedades da água. As "propriedades curativas especiais" da água de Lourdes Aliás, esta água tinha sido analisada no dia 6 de maio, por requisição do próprio prefeito Lacadé, por uma sumidade local, o farmacêutico Jean-Pierre-Auguste Latour, diplomado pela faculdade de medicina de Paris e pela Sociedade de ciências físicas e químicas e artes agrícolas e industriais. Ele é o prefeito de sua pequena comuna, Trie, conselheiro do seu cantão, cavalheiro da Legião de Honra e insigne maçom. "Esta água - diz o farmacêutico Latour que, na época, está com cinqüenta e dois anos - é muito límpida, inodora e sem sabor. Seu peso especifico está bem próximo ao da água destilada. Contém os seguintes princípios: 1. Cloretos de cálcio, sódio e magnésio (abundantes). 2. Carbonatos de cálcio e de magnésio. 3. Silicatos de cálcio e de alume. 4. Óxido de ferro. 5. Sulfato de sódio. 6. Fosfato (traços). 7. Matérias orgânicas, alume. Observamos, na composição desta água, uma ausência completa de sulfato de cálcio ou selenita. Esta particularidade, bastante notável, muito representa em seu favor e faz com que a devamos considerar como sendo muito leve, de fácil digestão e fornecendo à economia animal uma disposição favorável ao equilíbrio da ação vital. Não julgamos estar adiantando demais ao afirmar, tendo em vista o conjunto e a qualidade das substâncias que a compõe, que a ciência médica não tardará, talvez a reconhecer-lhe algumas propriedades curativas especiais que poderão fazê-la classificar-se entre as águas que formam a riqueza mineral de nosso departamento.

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Apesar da inexistência patente de dados numéricos, o Dr. Dozous abraçará este ponto de vista termal por sua conta quando, no jornal local, L'lntérêt Public de Tarbes, no número de 22 de maio de 1858, formulará peIa primeira vez publicamente a sua opinião. Segundo ele, os milagres que acontecem na gruta de Massabielle são simplesmente "curas" termais ocasionadas pelos "princípios ativos" da água da fonte de "natureza alcalino-salina" e cujo poder é "ímpar". Segundo ele, a descoberta desta fonte "deverá prestar grandes serviços à humanidade".

Massabielle cura tudo A seguir, o Dr. Dozous estabelece a lista das enfermidades que, na sua opinião, podem ser curadas peIa fonte de Massabielle. Agrupa as moléstias em quinze itens: 1. Cefalalgias, cefaléias. 2. Enfraquecimento da vista. 3. Amaurose ou "gota serena". 4. Nevralgia crônica. 5. Paralisias parciais ou gerais. 6. Reumatismos crônicos. 7. Debilidades parciais ou gerais do organismo. 8. Raquitismo. 9. Fraquezas da primeira infância. Nestas circunstâncias, a ação curativa da água foi tão rápida que, por isto mesmo, muitas pessoas negaram de início a realidade de tais curas. Porém, logo foram obrigadas a aceitá-Ias como fatos reais, verdades incontestáveis. Tratava-se de crianças excepcionais, cujas condições de saúde e de vida eram as mais desfavoráveis, que não andavam, isso numa faixa etária de seis a nove anos, e que após alguns dias de abluções parciais ou gerais com a água da gruta aquecida, tiveram condições de usar com agilidade e segurança os seus membros. 10. Algumas dermatoses.

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11. Leucorréia e outras moléstias femininas. 12. Doenças crônicas do aparelho digestivo, prisão de ventre, dilatação do fígado, do baço. 13. Hipertrofia da glândula tireóide. 14. Esta água pode ser empregada, devido aos sais que contém, como purgativo. Como tal ela apresenta uma ação derivativa que, em diversas circunstâncias doentias, pode produzir resultados muito satisfatórios e imediatos. 15. Surdez como conseqüência do enfraquecimento do nervo auditivo. Posteriormente, uma verdadeira análise química realizada por um cientista de Toulouse chamado Filhol demonstrará que, na realidade, a água da fonte de Massabielle é uma água normal, muito ligeira-mente mineralizada (bicarbonato de cálcio), de sorte que não pode ser qualificada como "água termal" ou "mineral" e não pode concorrer, sob esse ponto de vista, com as várias fontes termais da região pirenaica. O Dr. Dozous continua a interessar-se pelas curas de Massabielle durante todo um ano, como se aquilo se tratasse de um serviço hospitalar cuja responsabilidade lhe coubesse.

Uma "derrogação às leis aparentes do mundo" Encontraremos este mesmo estado de espírito junto aos médicos que ocuparão a direção da Comissão de Constatações após sua criação pelo belga Saint-Maclou. Vimos como o Dr. Boissarie sentiu-se pessoalmente insultado e visado quando ZoIa dirigiu-se a Lourdes para pesquisar e contestar determinadas coisas que ali aconteciam. Como se, duvidando deste ou daquele milagre de Massabielle, não se acreditasse na sua éompetência como médico... Também vimos que o Dr. Vallet tinha cuidadosamente omitido, durante cerca de vinte anos, transmitir aos bispos responsáveis os processos de cura que ele mesmo tinha constatado e admitido...

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Quais são os médicos que trabalham em Lourdes desde o término da Segunda Guerra Mundial? O que pensam destas curas milagrosas e como as explicam? Para o Dr. Leuret, diretor da Junta médica de Lourdes de 1947 a 1954, o milagre que parece uma "derrogação às leis aparentes do mundo", é "na realidade a ação excepcional porém não surpreendente de Deus, num mundo que não existe e não se sustenta a não ser por Ele". E refere-se quanto a isto a Santo Agostinho que, em A Cidade de Deus, declara: "Temos por hábito afirmar que todos os milagres são obras feitas contra a natureza, mas não é assim. Como é possível que aquilo que tem como causa a vontade de Deus possa ir contra a natureza, quando a natureza de cada coisa nada mais é do que a vontade deste Soberano Criador?" "Na escala de Deus - comenta o Dr. Leuret - as leis da matéria não possuem qualquer caráter imperativo." Conseqüentemente, argumenta o médico crente, estas leis nada mais são do que os "objetos" da vontade divina. Se as ações humanas no mundo só podem acontecer pela intermediação do corpo e "em conformidade com as leis que regem nosso corpo e matéria", o mesmo não sucede com as ações de Deus, que "evidentemente, pode fazer agir seu pensamento onde bem Lhe aprazo Disto resulta, portanto, que "em caso de necessidade a natureza pode ser submetida a uma realização especial da vontade divina". E aquilo que dentro da escala humana é "milagre" é portanto uma "ação racional na escala de Deus". Na escala humana e médica, o importante é, antes de mais nada, ter certeza da existência da enfermidade: "Deve-se - diz o Dr. Leuret, assistido pelo Dr. Bon - afastar as falsas moléstias ocasionadas por uma sugestão: por exemplo, a reprodução inconsciente dos sintomas de uma coxalgia, cuja causa encontra-se na testemunha impressionada; ancilose ou paralisia após um ferimento, seja pelo medo experimentado de uma conseqüência como essa, seja pelo choque diante da visão dessa impotência em um ferido

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análogo; enfim, o aparecimento dos sintomas descritos em algum trabalho ou artigo médico consultado no momento de um mal-estar." O critério essencial para que uma cura seja declarada "milagrosa" parece ser subjetivo. Diz-se, na verdade, que é conveniente que esta cura apresente um aspecto "anormal". O que quer dizer isso? O Dr. Leuret explica que é o caso das moléstias incuráveis, enfermidades que poderiam ter sido curáveis mas atingiram um estado irreversível, doenças normalmente curáveis, mas para as quais os métodos terapêuticos ou cirúrgicos indicados ainda não tenham sido postos em ação; contudo, é especialmente a rapidez, às vezes a instantaneidade do processo de cura e a ausência de um período de convalescença que constituem as características essenciais do milagre.

Os falsos milagres: a culpa é de Satanás Ademais, é preciso poder detectar, praticamente à primeira vista, as fraudes e simulações perpetradas com regularidade em Lourdes. Para o Dr. Leuret, elas não dependem apenas das más intenções dos homens, são realmente feitas por Satanás: "A Santíssima Virgem - diz ele - tem um inimigo irredutível, o diabo, no qual talvez tenhamos deixado de acreditar. Muito bem, ele existe. E age. E tenta, em Lourdes talvez mais do que em qualquer outro lugar, combater a influência irresistível e cada vez mais envolvente da Virgem." E de que modo age o diabo? "Ele suscita - explicam-nos - falsas curas, fatos que, à primeira vista, parecem prodigiosos mas que não resistem à crítica e que, sobretudo, provocam desmentidos fáceis." Estes "milagres do demônio" têm objetivos humanos e materiais, como a maldade, a vaidade, o espírito de lucro. E o Dr. Leuret dá um exemplo de cada uma dessas três categorias. Vejamos, inicialmente, um "falso milagre da maldade". A cena desenrola-se a 27 de agosto de 1947. Na Comissão das

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Constatações, cerca de vinte médicos, no momento sem trabalho, conversam tranqüilamente. De repente ouvem-se alguns gritos e uma correria. E eis que aparece uma estranha mulher morena: "Cachinhos caindo em cascatas sobre as maçãs do rosto, sobrancelhas depiladas, lábios recobertos de um batom muito gorduroso, unhas pintadas de vermelho, proeminências exteriores bastante acentuadas na frente e no lado oposto!" O bom Dr. Leuret acha que ela tem o aspecto de uma "peixeira do Halles"... Mas lendo-se sua descrição, é evidentemente uma outra palavra que nos vem à mente... Peixeira ou seja lá o que for, a morena bem fornida exclama em alto e bom tom: - Estou curada! Estou curada! Vem acompanhada por uma enfermeira assistente das piscinas, que, sem fôlego mas entusiasmada, repete: - Ela está curada! Ela está curada! Vi-a curar-se com meus próprios olhos! A primeira a ser submetida ao interrogatório é a enfermeira a quem se pedem algumas explicações. Viu a pretensa miraculada ficar curada de quê? - De uma fístula no ânus, Doutor! – responde com embaraço a mulher. Surpresa por parte dos médicos... Como foi que ela pôde ver? - A senhora deve tê-Ia banhado na piscina com a cabeça para baixo e o traseiro para cima! - dizem os médicos que resolvem aceitar a coisa com humor. - Poderia tê-Ia afogado! Finalmente, a enfermeira em questão revela que tudo que viu, realmente, foi a "roupa branca ensangüentada". Diante disso, os médicos da Comissão de Constatações de Lourdes, bancando mais uma vez os estudantes de medicina que não se atemorizam com piadas pesadas sobre assuntos delicados, ministram-lhe um rápido curso a respeito da fisiologia feminina. Agora chegou a vez da "miraculada". Esta revela-se estupefata quando os médicos lhe dizem que precisam examiná-Ia e não podem satisfazer-se com suas declarações. Finalmente ela concorda e como vestígio de sua pretensa fístula, aponta para um ponto entre os dois omoplatas... E resmunga por entre os dentes:

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- Foi esta droga (sic) de tarefa que me deram por lá! Se tivesse sabido, não teria vindo aqui... Interrogada minuciosamente, a morena "peixeira do Halles" revelará enfim toda a história: na realidade, tinha sido enviada em missão por uma organização anti-religiosa preocupada em provar que os milagres eram reconhecidos e admitidos em Lourdes sem que os enfermos fossem realmente examinados!

Inveja de uma vizinha miraculada... Vejamos agora um "falso milagre da vaidade". O caso acontece oito dias após o episódio anterior. Desta feita, é uma encantadora jovem que se apresenta: é timida, corada e não usa pintura. - Já faz três anos que estou presa à cama, sem andar, e desde hoje pela manhã, ando - diz ela. Perguntam-lhe, é claro, de que sofria: ela não sabe... Onde está o seu atestado médico? Não o possui... Deixar-se-ia examinar? Sim, não vê nenhum problema. Os médicos descobrem então um corpo jovem e em pleno gozo de saúde, músculos firmes. Os pés, especialmente, revelam a olhos experientes que é impossível aquela jovem ter permanecido três anos sem caminhar... - Está mentindo! - acusam-na. Então a falsa miraculada começa a chorar e revela o que se passou. Numa aldeia vizinha, uma de suas amigas tinha sido realmente curada milagrosamente em Lourdes: - Então - diz a jovem aos prantos - ao voltar, foi recebida com coroas de flores, arcos de triunfo. O senhor cura abençoou-a e o senhor prefeito beijou-a... Queria que fizessem o mesmo comigo!

Falsos milagres e verdadeiros assaltantes Terceiro motivo inspirado aos homens pelas "manobras do inimigo" nestes casos de falsos milagres: o "espírito de lucro".

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Isto aconteceu no dia 18 de julho de 1948. Eis que corre a notícia de que um surdo-mudo de nascença, filho de pais também surdos-mudos, acaba de recuperar a audição e a palavra na piscina... Trata-se de um rapaz louro, entre quinze e dezesseis anos, de cabelos ondulados, olhos azuis, aspecto cuidado.. Infelizmente está acompanhado por alguém que não inspira tanta confiança: um estranho "protetor" moreno, com suíças espessas, sobrancelhas feitas, lábios e unhas pintados... Quem fala é ele. A fim de comprovar que seu pequeno protegido é realmente surdo-mudo, mostra um caderninho de notas que este teria usado até aquele momento para se comunicar com os outros e que trazia sempre consigo. Por exemplo, na primeira página, está escrito: "Meu nome é Antonin X... Sou surdo-mudo de nascença, filho de pai e mãe surdos-mudos. Em caso de necessidade ajudem-me." Na segunda página: "Preciso comer" etc. Mas qual a prova de que aquele caderninho pertencia realmente ao lourinho? Nenhuma. Enfim, habilmente interrogado, o "protetor" não consegue mais esconder o fato de que o rapaz já está há quatro anos num instituto de surdos-mudos. E o próprio Antonin, interrogado paternalmente, revela que, na realidade, já fala há dois anos. O Dr. Leuret expulsa os dois... Naquela mesma noite, protetor e protegido percorrem Lourdes vendendo dois mil cartões-postais da cidade, muito comuns e corriqueiros, escritos no verso: "Lembrança do surdo-mudo miraculado na piscina, no dia 16 de julho de 1948." Cada cartão custa dez francos (da época). Às 19 horas, os jovens escroques conseguem vender o último cartão... Em seguida, insaciáveis, irão assaltar uma casa que julgavam estar desabitada... São agarrados. A fim de defender-se, o "protetor" grita para a policia: - Não podem tocar! Somos miraculados!

O banho numa piscina: "É atroz!"

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Uma vez afastadas as "falsas moléstias e os "milagres do demônio", restam as verdadeiras doenças e os milagres da Virgem. Antes de dar as suas explicações meio científicas, meio teológicas, o Dr. Leuret realizou uma tentativa que nenhum de seus confrades tinha feito ainda: quis tomar um banho nas piscinas como os enfermos que para ali mandava. "Eu o fiz não por espírito de penitência, nem mesmo por espírito de fé, confesso-o; fiz por um dever profissional, pois não podia suportar a idéia de que mandava às piscinas (pois sou eu quem distribui os cartões para a piscina) todo o tipo de doentes, entrevados, infectados, cardíacos, às vezes pessoas moribundas, tuberculosos, sem que eu mesmo soubesse como se sentiam ali. Pois muito bem, existe uma única palavra capaz de exprimir a coisa, é atroz. As pessoas são mergulhadas bruscamente e sem a mínima consideração naquela água gélida: são dominadas por uma sensação de constrição torâxica e de estrangulamento tal que, se não houvesse ali, à direita e à esquerda, os maqueiros compassiveis para dizer as orações regulares por elas, seriam incapazes de dizer uma única palavra à Santíssima Virgem; e aí reside, sem dúvida, o maior milagre permanente das piscinas de Lourdes, o fato de que nenhum dos doentes ali mergulhados, seja qual for a gravidade de seu estado, nenhum se sente mal, nem apresenta piora. Ao sair da piscina, o Dr. Leuret volta seu pensamento para o infeliz menino Justin Bouhohorts que, em 1858, foi deixado, durante quinze minutos, nessa água ultragelada, pela própria mãe...

Ação diapsíquica e ação parapsíquica de Deus

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Segundo a opinião do Dr. Leuret, a intervenção divina se faz de dois modos nas curas milagrosas: pela ação diapsíquica e pela ação parapsíquica. A primeira é uma espécie de dinamização da alma, sendo que esta dinamização atinge "um nível inaudito, de tal sorte que o organismo se torna capaz de dominar o mal normalmente irremediável". Em que caso há a intervenção desta ação diapsiíquica? "Todas as anciloses, explica o Dr. Leuret, as retrações dos tendões, as fraquezas de músculos atrofiados, as inatividades glandulares ou outras são, num instante, sobrepujadas ou corrigidas e permitem a retomada de uma vida normal, sem demora ou com uma demora bem curta." Esta recuperação maravilhosa é a conseqüência de uma superativação do "principio vital" - noção psicológica antiga e já esquecida, que o Dr. Leuret vai buscar depois de prolongado esquecimento no meio científico. Esta ação diapsíquica, por exemplo, manifestou-se no caso de Jeanne FreteI, examinado anteriormente, da mesma forma que aparece nos casos de lesões mais ou menos localizadas e nas enfermidades microbianas, como, por exemplo, na tuberculose. Quanto à ação, parapsíquica, isto é, etimologicamente "ao lado da alma", ela produz um efeito sobre o próprio corpo: destruição do micróbio, produção de anticorpos e de antitoxinas, restauração da integridade dos tecidos. E o Dr. Leuret cita como exemplo deste modo de ação o caso da irmã Marie-Marguerite (Françoise Capitaine), milagrosamente curada em Lourdes no ano de 1937 de uma nefrite aguda e de um edema generalizado. E é verdade que este caso apresenta algo muito estranho. Eis o caso: A irmã Marie-Marguerite, nascida em 1872, freira em Rennes, é acometida em 1936 por um edema generalizado que se manifesta através da retenção de vários litros de água, sobretudo nas pernas. Estas têm que ficar cuidadosamente enfaixadas. A 20 de janeiro de 1937, a comunidade à qual pertence a doente começa uma novena dirigida a Nossa Senhora de Lourdes:

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"No dia 22 de janeiro, segundo o testemunho do Dr. Philouze, médico assistente da religiosa, às 8 horas da manhã, a enferma arrasta-se com grande dificuldade até a capela a fim de assistir à missa. No momento da Elevação, ela experimenta repentinamente uma sensação de pressão em todo o corpo e sobretudo à altura das pernas que parecem desinchar instantaneamente. As faixas que as envolvem caem por si mesmas. Tão logo a missa termina, a enferma retorna à sua cela sem a mínima dificuldade e constata o desaparecimento completo do edema. Calça os sapatos que já não conseguia usar há um ano, desce as escadas e circula durante todo o dia pela comunidade sem sentir o mínimo cansaço, nem crise cardíaca."

Alquimia Divina A pergunta que se faz a um médico católico e que acredita nesse milagre é: afinal para onde foi esse liquido dos edemas, liquido que deveria ter formado um verdadeiro laguinho?... Estando excluidas to das as soluções comuns e normais, ou seja, pelos rins, pulmões, pele, levando-se em consideração a quantidade do liquido e o imediatismo de seu desaparecimento, como se pode explicar este golpe de varinha mágica? O Dr. Leuret imagina, então, que Deus utilizou um procedimento puramente físico, e não orgânico ou químico. Uma transformação das ligações energéticas do liquido edematoso teria permitido que este, a titulo de átomos ou de particulas elementares e não mais de moléculas, atravessasse o corpo da doente sem deparar com as habituais resistências do tipo orgânico ou químico. Portanto, a atuação di vina situa-se "no próprio nível das forças constitutivas da matéria". A explicação é semelhante quando, em vez de perda de substância, ocorre uma produção, como no famoso caso de Pierre de Rudder. Na verdade, a ca

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losidade, detectada pela radiografia e substituindo a matéria óssea destruida no local da fratura pela supuração, era tão importante que seriam necessários uns cinqüenta dias a um corpo humano normal e comum para gerá-la. Ora, para o jardineiro belga, o fenômeno foi quase que instantâneo. De onde veio todo o câlcio necessário? Na opinião do Dr. Leuret, o cálcio surgiu pela "transmutação de elementos retirados do edema que desapareceu, ou de uma anexação vinda do exterior que teria penetrado nos tecidos sob forma atômica ou subatômica". Mas há também o problema das "curas sem desgaste anatômico", isto é, os casos nos quais as lesões orgânicas permanecem intactas e constatáveis; porém onde as alterações funcionais, consideradas como sua conseqüência inevitável, desapareceram. Tomemos como exemplo o caso da senhora Biré, que mora em Saint-Gemme-de-Plaine, em Vendée. A partir de 1904, sua saúde vai piorando progressiva e gravemente. A 11 de fevereiro de 1907, um "acidente meningitico" desencadeia um coma que perdura durante cinco dias. Ao sair do coma, a 25 de fevereiro, a senhora Biré está cega. Em agosto, parece estar prestes a morrer, mas apesar disto exige que a levem a Lourdes. Não tem condições de ir às piscinas, mas repentinamente, quando passava diante dela um padre levando o Santíssimo Sacramento, ela recupera de imediato a visão e sente-se em pleno gozo de saúde. Milagre banal, sentimos vontade de dizer... Porém, a coisa torna-se muito mais extraordinária do que parece, quando, após a realização de um exame oftalmológico, constata-se que os olhos da senhora Biré estavam acometidos de "atrofia branca". "Esta moléstia - declara o médico que realizou o exame - é das mais graves, reconhecida por todos os autores como totalmente incurável." O que já não impede que a senhora Biré leia o jornal e até mesmo sem fazer uso de óculos! No entanto, quando um ano mais tarde os olhos desta senhora são novamente submetidos a um exame, verifica-

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se que desta feita tudo está normal; a incurável atrofia branca desapareceu. A explicação? Acontece que neste caso, e em outros parecidos, os tecidos lesados e atrofiados não perderam inteiramente todas as aptidões, e as aptidões restantes, graças a uma "ação vitalizante diapsíquica", sabem suprir rapidamente aquelas desaparecidas, enquanto aguardam que o organismo se recupere.

As seis grandes perguntas Já o Dr. Olivieri, sucessor do Dr. Leuret, preocupa-se menos em tentar compreender a "força que cura" em Lourdes do que em organizar o controle médico da forma mais perfeita possível. A cura milagrosa é para ele, antes de mais nada, uma simples cura "que se transforma em manifestação de poder do Espírito, parte integrante da saúde pessoal, como também um dom gratuitamente concedido graças à edificação de toda a Igreja chamada em testemunho". Logo, trata-se de uma "graça" que manifesta a "vitória de Deus, de Jesus Cristo e de sua Mãe, sobre o mal". Sob um enfoque deste tipo, o Dr. Olivieri não se preocupa; evidentemente, em buscar explicações para o mecanismo do fenômeno. Seu papel, ao que parece, consiste não somente em isolar esta "graça", mediante o controle médico, em toda sua pureza e autenticidade. O exame de cada doente curado em Lourdes é realizado por cerca de vinte médicos designados pela Comissão de Constatações e que devem responder às seis perguntas seguintes: 1. A enfermidade descrita no atestado ou nos atestados existia com certeza no momento da peregrinação a Lourdes? 2. A moléstia cessou bruscamente, quando já não havia possibilidade de melhora? 3. Houve cura? Esta se realizou sem o uso de medicamentos? 4. É oportuno adiar a conclusão?

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5. É possível dar uma explicação médica a esta cura? 6. Ela foge às leis naturais? As respostas a todas estas perguntas não podem ser dadas de imediato. Para determinadas moléstias como o câncer, a esclerose em placas, sobretudo - cuja evolução é, nas condições atuais da medicina, quase sempre iInprevisível, e cuja regressão espontânea continua a assombrar os especialistas ao acontecer - deve-se aceitar a prova do tempo. Trata-se, neste caso, de uma demora de quatro a cinco anos.

Tribunal de instância e Tribunal de apelação do milagre

De qualquer modo, o processo da cura presumivelmente extraordinária deve ser reconhecido como "clinicamente inexplicável" por três quartos dos médicos indicados para estudá-Ia pela Comissão de Constatações, antes de ser remetido à Junta médica internacional: Segundo a expressão usada pelo próprio Dr. Olivieri, a Comissão de Constatações representa o papel de um Tribunal de alta instância. Quem são estes médicos-peritos que decidem em primeira instância? São todos católicos ou não? "O médico católico - afirma um expoente parisiense, o professor Bariéty - não tem por missão imprimir no exame dos fatos milagrosos uma mentalidade de" disputa com recompensa. A glória e a misericórdia de Deus não têm a menor necessidade de serem confirmadas ou por nós aceitas. O número de milagres, sejam eles poucos ou muitos, não as aumenta em nada." Vejamos agora a segunda instância, instância de apelação destinada a avaliar o milagre de Lourdes, ou seja, a Junta internacional (a C.M.I.L.) que só seria criada em 1954 (anteriormente era uma junta nacional).

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As nacionalidades ali representadas são: França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Luxemburgo, Alemanha, Escócia, Itália e Espanha. Quanto às especialidades, são elas: neurologia, psiquiatria, endocrinologia, oftalmologia, otorrinolaringologia, tisiologia, bem como a radiologia e a radioterapia.

Nada de "Frívolo, Ridículo, desonesto, vergonhoso, violento..."

Este tribunal de apelação de milagre reúne-se uma vez por ano em Paris. Aliâs, deve-se observar que o bispo de Tarbes estâ sempre presente. Como acontece na C.M.I.L., as decisões não necessitam de unanimidade para serem tomadas. Contudo, é isso o que em geral acontece. De qualquer modo, é conveniente que a C.M.I.L. reúna uma "grande maioria de votos" sobre um caso, para que seja entregue à autoridade diocesana encarregada de se pronunciar a respeito. Em seguida, cabe à comissão canônica interessada (na diocese a que pertence a pessoa miraculada) decidir se a cura partiu realmente de Deus. Foram adotados os critérios qualificativos, promulgados em 1734 pelo futuro papa Benedito XIV, com relação "à beatitude dos servidores de Deus e à canonização dos santos". É necessário que, nas circunstâncias que cercam o acontecimento, nada seja "friívolo, ridículo, desonesto, vergonhoso, violento, Ímpio, orgulhoso, mentiroso, defeituoso", e que, ao contrário, prevaleça a "conveniência, a seriedade, dirigidas à piedade, à religião, à santidade". Aliás, deve-se ressaltar que os decretos positivos declarando milagrosas as curas são feitos sob reserva da aprovação da Santa Sé, porém, até o dia de hoje, nenhum papa interveio num sentido ou no outro, fosse para confirmar uma aprovação ou para anular uma decisão.

"Proclamar sem hesitação os fatos milagrosos"

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O sucessor do Dr. Olivieri em Lourdes, o Dr. Mangiapan, muda claramente de tom com relação ao seu predecessor, pois declara que os médicos de Lourdes "não devem se limitar ao estudo atento, profundo e meticuloso" dos casos que lhes são submetidos. Há quarenta anos, diz o Dr. Mangiapan, o médico de Lourdes era um "controlador", uma "testemunha imparcial", um "perito". Ora, "os progressos da medicina e de todo seu aparelho técnico" modificaram profundamente esse papel e remanejaram-lhe os dados - isso sempre segundo a opinião do Dr. Mangiapan. Então, o que é atualmente um médico que atua no seio da Junta médica de Nossa Senhora de Lourdes? Eis a definição tripla segundo o Dr. Mangiapan: - um peregrino, com os doentes que lhes são confiados; - um médico, assistente e responsâvel, capaz de controlar um tratamento anteriormente prescrito e também administrar um outro de urgência em caso de necessidade; - enfim, um membro de uma comunidade flutuante, pesquisadora, particularmente atento aos apelos, a uma conversão pessoal e aos meios reais, concretos e coletivos que devem ser rigorosamente analisados. O Dr. Mangiapan chega mesmo a recuar com relação à posição oficial da Igreja. Assim, recorda que, se para o Vaticano I "o milagre é um sinal ao alcance da inteligência de todos", esse ponto de vista não pode ser o do médico-controlador atual. Este, na verdade, caso não chegue a ponto de desconfiar da "mentalidade primitiva" da "massa", deve ao menos ter consciência e saber que a credulidade popu lar anseia por "acontecimentos inesperados onde a reputação de Lourdes e sua imagem permita-lhes ver a materialização do sobrenatural". Todos os médicos crentes que se interessam por Lourdes estão inteiramente conscientes desta bulimia do maravilhoso que persegue seus contemporâneos. Um psiquiatra de Lion, Dr. Robert Côte,

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resume com perfeição e conclui este longo encaminhamento médico de Lourdes ao declarar: "Neste momento em que a superstição, o ocultismo, a astrologia, os horóscopos e outras expressões mais ou menos espíritas vêm provocar nas consciências um certo enfraquecimento da fé, a Igreja deve, mais do que nunca, cercar-se de todos os especialistas honestos que concordam em colaborar com ela e proclamar, sem hesitações, os fatos milagrosos que ela afirma serem autênticos."

2. Aqueles que não acreditam "Num certo sentido, poder-se-ia dizer, sem irreverência, que foram os doentes que deram às águas de Lourdes seu poder de curar."

Alfred STILL, Professor da Universidade Purdue, Indiana.

Nos confins da ciência. O procurador de Lourdes, Vital Dutour, observa judiciosamente em 1858, após as aparições e no momento em que ocorreram: Já não é mais seguindo os passos de Bernadette que a multidão voltou à gruta. O sofrimento que origina o fluxo de pessoas já não parte mais dela. Ela pessoalmente, no papel bastante reduzido que agora representa, tornou-se apenas a vitima de um impulso. A atenção concentra-se cada vez mais na gruta. Foi ali que a Virgem dignou-se a aparecer; é ali que Ela deseja ser venerada, numa capela a ser erigida no local. E lá que as almas vão saciar-se, numa fonte inesgotável de graças e que os corpos, vitimas das moléstias e dos sofrimentos, encontram uma outra fonte, esta visível e tangível, nas águas que brotam do rochedo, possuidora da preciosa propriedade de aliviar os padecimentos e até mesmo de curá-Ios. Não se pode compreender os milagres de Lourdes sem tomar conhecimento desta sede pelo maravilhoso e pelo sobrenatural, ainda

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tão acentuada no século XX e observada pelo psiquiatra de Lion, cita-do no final do capítulo precedente. Esta sede e esta fé assumiram no século de Bernadette algumas formas que causam assombro: pois as curas de Massabielle nada mais eram do que milagres entre tantos outros; numerosos e, às vezes, tão extraordinários, como aquele da multiplicação do pão e do vinho digno das bodas de Caná. Assim, em 1825, em La Puye, no departamento de Vienne, o padre André (atualmente santo AndréHubert Fournet), às instâncias da comunidade das Filhas da Cruz, que passavam grandes necessidades materiais devido à fome que imperava então, abençoa, em meados de junho, seus últimos trinta alqueires de trigo. Estes só seriam suficientes para alimentar a comunidade por uma semana. Porém, logo após a sua bênção, o monte de trigo parou de diminuir e durou seis meses! Mais ainda: em 1833, quando o padre André já tinha falecido, as religiosas invocaram-no. Dessa feita, aconteceu o milagre do vinho, uma vez que os tonéis mostraram-se inesgotáveis! Observamos nesta época numerosos outros casos parecidos: São François- Régis que intervém em 1829 a pedido do cura d'Ars; santa Germaine Cousin, que atende à oração de santa Marie-Madeleine PosteI em 1871; dom Bosco em 1886 e outros.

Uma aparição extraterrena em Massabielle? Naquele século abusivamente qualificado de racionalista e burguês, nada mais existe além do maravilhoso católico. É também o tempo do aparecimento e da extraordinária expansão do espiritismo, ou seja, "técnicas" de comunicação entre vivos e mortos. Os espíritas não se espantam com o que se passa em Lourdes: têm a este respeito explicações feitas, explicações surpreendentes e poéticas. No início de maio de 1858, o L'lntérêt Public de Tarbes publica um artigo, cujo autor, adepto do espiritismo, analisa o que denomina de "aparição extraterrena" da gruta de Lourdes. Na opinião do autor do texto, Bernadette está em comunicação com um "ser divino e

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misterioso". Tão logo entra em "estado de êxtase", diz o autor do artigo, "seu rosto, circundado por uma auréola virginal, parece revelar que um raio de sol espiritual tinha descido sobre sua cabeça para nela depositar, em caracteres que deviam logo desaparecer, certa majestade desconhecida". O signatário do texto declara acreditar "que existe entre o céu e a terra algumas correntes simpáticas, que todos os corpos na ordem natural são submetidos à radiação fluídica, que os menores corpúsculos aéreos possuem, como todos os corpos terrestres, seus pólos de atração e de repulsão". Declarando enfileirar-se "entre os que não confundem as verdadeiras sensações com as ilusões e que não consideram o êxtase como loucura", o espírito pirenaico preocupa-se em dar uma explicação de aparência cientifica a esses fenômenos: "Acreditamos no magnetismo animal porque cremos no magnetismo terrestre e acreditamos no magnetismo terrestre porque cremos na eletricidade. Achamos até que o magnetismo humano é um agente que pode levar à comprovação da existência das forças espirituais, e como escrevia em 1º. de março de 1826, no seu testamento, o célebre médico da faculdade de Paris, Georget, "que ele pode servir para atestar em nós e fora de nós a existência de um principio inteligente inteiramente diverso das existências materiais. Assim será, se o quisermos, a alma e Deus. Quanto a isto, acrescenta o sábio médico, nutro uma convicção profunda baseada em alguns fatos que considero incontestável." Antes de assiná-lo, o autor deste texto espantoso conclui que "a ação magnética, ao secundar as excitações da alma, pode elevar a humanidade a horizontes maravilhosos". No que diz respeito à própria Bernadette, nosso adepto do espiritismo afirma que seu estado intelectual "nada demonstra de contrário à razão" e que a "superexcitação" que, às vezes, nela observamos é o sinal de um "acúmulo de fluído nervoso".

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Bernadette: uma "jovem dotada de qualidades mediúnicas"

Um outro escritor espírita, Paul Anguez, manda para o mesmo Intérêt Public uma carta aberta, na qual declara gostar "de todo o coração" de Bernadette, porque os favores transcendentes que ela possui são o apanágio das naturezas de elite, o selo da fé e da caridade. Ai daqueles que, sem um exame, negam a existência dessas maravilhas celestes, daqueles que não temem em insultar as almas privilegiadas que as produzem! Esses trazem em si as causas de sua incredulidade, e as trevas de seu espírito aumentam ainda mais tudo aquilo que existe de revoltante na sua intolerância. Quanto à La Revue Spiritualiste, uma pequena publicação parisiense que se dedica "ao estudo das faculdades da alma, à demonstração de sua imortalidade e ao retorno às luzes das verdades da religião universal: filosofia e exegese religiosa, manifestação de espíritos, magnetismo, taumaturgia, ciências ocultas, profecia, teosofia, cosmogonia, ontologia, pneumatologia, psicologia, filosofia na história etc. (programa vasto e ambicioso, como se pode ver!), toma, por sua vez, a defesa de Bernadette, considerada como uma jovem dotada de qualidades mediúnicas e revolta-se ao ver a "verdade espiritualista" uma vez mais contestada e perseguida...

Do lado dos taumaturgos Quando a onda espírita ficar esgotada e, aos poucos, exaurida, o prodigioso católico retomará seus direitos. Mais uma vez, os corpos vitimados pelas doenças e dominados pelos sofrimentos", pressentindo, apesar das aparências e de modo confuso, que não se encontram apenas sob a jurisdição da medicina, hão de procurar alívios mágicos e abençoados.

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Esta busca se fará quase sempre junto aos taumaturgos, espécie de feiticeiros ou medicine men reconhecidos pela Igreja. Aqui citaremos dois exemplos entre muitos outros: O modesto operário canadense Alfred Bassette (1845-1937) foi ser frade André no convento da Congregação da Santa Cruz. Venera especialmente a São José. Usando um pouco do óleo da lamparina que deixa queimar permanentemente diante da imagem de seu santo predileto e fazendo uma oração, obtém numerosas e surpreendentes curas. Apesar da extrema reticência de seus superiores e das autoridades médicas, a onda de fundo popular, como aconteceu com Bernadette em Lourdes, apóia e impulsiona o humilde frade André: logo ele mandará construir uma basilica em honra a São José... Em São Paulo, um missionário de origem holandesa, Hubert van Lieshout (1890-1943), começa a distribuir água de Lourdes. Porém, explode a Segunda Guerra Mundial. A água milagrosa de Massabielle não pode mais cruzar o Atlântico. Então, o padre van Lieshout abençoa a água de seu poço - estamos em 1940 - e esta revela-se tão milagrosa quanto a de Bernadette... As autoridades eclesiásticas ficam aborrecidas. Mas o taumaturgo redige uma carta comovedora ao arcebispo de São Paulo que, após lê-Ia, muda inteiramente de opinião. "Deus - diz o padre van Lieshout – mostrou-me claramente o caminho que devo seguir... Que posso dizer deste dom que Deus, na sua Misericórdia, deu a mim, pobre pecador? A matéria é a estrada que conduz ao espiritual... As curas corporais nada mais são do que meio para se alcançar outra muito mais importante, a cura da alma, não apenas as almas dos miraculados, mas as das testemunhas... Eis ai a santa vocação que sinto dentro de mim: renovar a fé através das obras da fé." É o próprio arcebispo que presidirá os funerais do taumaturgo, em setembro de 1943, de cujo túmulo continuam as curas milagrosas...

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Os milagres de Fátima

É aí que a Virgem ainda aparece algumas vezes. Depois de Lourdes, o mais famoso destes locais de aparições é Fátima, onde a Virgem foi vista de 13 de maio a 13 de outubro de 1917, por três crianças chamadas Lúcia, Jacinta e Francisco. O grande período de peregrinação teve lugar entre 1926 e 1937. Por lá passaram quinze mil doentes, entre os quais não se contam menos que oitocentos casos de cura presumidamente "milagrosa". Lá também existe uma Junta de Constatações, que não é estruturada e organizada com tanta rigidez e seriedade quanto a de Lourdes. Se tomarmos ao acaso um, dentre as centenas de supostos milagres, veremos que ele se parece extraordinariamente com os de Lourdes. Os miraculados da Virgem, a alguns decênios do ano 2000, tendem a parecer, ou pelo menos ter um ar familiar. Eis, por exemplo, Margarida de Jesus Rebelo. Nascida em Guarda, em 1921, perde os pais aos quatorze anos. No Natal de 1939, aos dezoito anos, sofre uma queda muito grave: despenca de um segundo andar. A pós voltar a si, passa uns quinze dias acamada. Posteriormente, aparecerá uma dor lombar que vai acentuando-se progressivamente apesar de todos os tratamentos. Resultado: paralisia total dos membros inferiores, retenção vesicular e intestinal completa (tornando-se necessária a instalação permanente de uma sonda), cistite e dores vaginais. Os exames radiológicos apresentam um "esmagamento do corpo da segunda vértebra lombar", bem como o afilamento de um certo número de discos invertebrados. Na primavera de 1942, Margarida dá entrada no hospital universitário de Coimbra onde permanecerá durante um ano. O primeiro boletim declara: "Diagnóstico provisório: fratura antiga da segunda vértebra lombar. Dores e paralisia (?)."

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Numerosos e repetidos exames revelam "alguns claros sinais de compressão lenta da medula", mas nenhuma alteração na estrutura óssea da vértebra fraturada". Devemos esclarecer que a compressão da medula não pode ser causada por esta vértebra fraturada pois o cone terminal da medula encontra-se situado acima desta. Apesar da inexistência de sinais radiológicos precisos, os médicos diagnosticam o mal de Pott. Margarida de Jesus Rebelo está sempre com febre (de 38 a 39 graus), sendo que esta temperatura é o resultado de vários focos infecciosos (bexiga, fístulas diversas). A enferma não pode alimentar-se, apresenta uma "intolerância gástrica a qualquer alimento, até mesmo à água". Em maio de 1944, ela resolve participar de uma peregrinação a Fátima, quando os médicos já a consideram oficialmente moribunda. E então, no largo de Fátima, no momento da bênção do Santíssimo Sacramento, eis que a moribunda sente, segundo suas próprias palavras, "uma coisa extraordinária que nem sei como explicar. Senti-me radicalmente curada, livre de todos os sofrimentos. Já começava a erguer-me para ir ajoelhar diante de Jesus-Sacramentado, mas os médicos não o permitiram". O médico que acompanhava a peregrinação, Dr. Pereira Gens, declara ter visto a ex-moribunda "comendo com apetite e conversando com as pessoas presentes. Ela mexia-se em todos os sentidos, des-contraida, sem queixar-se de dores. A causa da compressão da medula tinha desaparecido subitamente". Margarida fica livre da sonda e urina de modo espontâneo: "a urina estava límpida e normal". Pois bem, um exame radiológico ulterior vai provar que a sua segunda vértebra lombar continua no mesmo estado...

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A Virgem na Bélgica e Hitler na Alemanha Mas a Virgem cura miraculosamente em muitos outros lugares além de Lourdes e Fátima. Para registrar estes loçais sagrados, praticamente todos de criação recente, ou seja, datando dos séculos XIX e XX, seria necessário um livro inteiro. Convém ressaltar que entre eles existem alguns ancestrais, veneráveis, por exemplo, o de Nossa Senhora de Loreto, em Recanati, na Itália, onde se presume encontrar-se a casa que a Virgem ocupava em Nazaré há dois mil anos. Miraculosa e magicamente transportada inicialmente para Tersat na Ilíria (hoje Iugoslávia), isto em 1291, esta casa aí ficou durante apenas três anos, antes de surgir em Recanati. Portanto, as peregrinações locais datam do século XIII - o mesmo acontecendo com os milagres. Montaigne, nos seus Essais, narra uma cura milagrosa ocorrida em Nossa Senhora de Loreto... A última aparição da Virgem, reconhecida pela Igreja teve lugar em 1933 - data sombria do século XX, pois este é o ano em que Hitler assumiu oficialmente o poder na Alemanha. Foi de 29 de novembro de 1932 até 3 de janeiro de 1933 que a mãe de Cristo apareceu a quatro criancinhas belgas na provincia de Namur, mais exatamente em Beauraing. Em dezembro de 1942, o papa Pio XII delega ao bispo de Namur "a faculdade de julgar livremente e decidir a respeito desses fatos". O bispo em questão refletirá durante alguns anos antes de tomar uma decisão. Finalmente, Monsenhor Charue autoriza o culto a Nossa Senhora de Beauraing, "pois, argumenta ele, não foi formulada nenhuma objeção decisiva contra o caráter sobrenatural divino daquilo que chamamos de aparições da Santíssima Virgem às crianças de Beauraing. Mas o bispo coloca sobretudo em evidência o fato de que, a partir daí, uma "corrente de piedade sincera e profunda dirigiu, durante dez anos, os fiéis rumo a Beauraing” e também ressalta as "conversões numerosas e quase sempre impressionantes, ditas

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prodigiosas... que estão relacionadas aos acontecimentos de Beauraing". Vemos que o Monsenhor Charue tem a mesma preocupação de proselitismo eficiente em favor da religião católica demonstrada, um século antes, por Monsenhor Laurence, em Lourdes. Contudo, mais prudente do que seu colega dos Pireneus, o bispo belga declara para todos os fins úteis manter em reserva o "julgamento. definitivo sobre os fatos de Beauraing e seus cafacteres".

O caso de Irmã Prudentia Tanto em Lourdes, como em Salette ou Fátima, quem diz peregrinação a um santuário onde a Virgem apareceu, diz curas milagrosas. Coisa estranha, a primeira dessas curas milagrosas controladas e reconhecidas em Beauraing, tanto por autoridades médicas como religiosas, está relacionada com uma doente que fora cinco vezes a. Lourdes sem obter qualquer resultado! Oficializado apenas em 1949, o caso aconteceu em 1933 e diz respeito a uma religiosa belga, Irmã Prudentia (cujo nome civil era van Laer). A jovem, desde a idade dos dezessete anos, padecia de diver-sos males, "revelando - segundo os médicos - uma intoxicação profunda do organismo". Tratava-se de erupções eczematiformes na parte interna das coxas e na região da virilha, bem como do aparecimento de alguns furúnculos também na virilha e nas coxas, ocasionando à doente temperatura elevada e dores de cabeça violentas. A síndrome infecciosa alcançava, paulatinamente, os joelhos e as vértebras cervicais onde se multiplicavam abscessos e ftstulas. De 1919 a 1928 agravou-se ainda mais o seu estado ao ser diagnosticada uma quadriplegia, ou seja, impotência dos quatro membros. Os especialistas concluem tratar-se então de uma osteomielite tuberculosa ou estafilocócica. Porém, o acúmulo de medicamentos surtiu efeitos satisfatórios, embora limitados. A

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quadriplegia regride parcialmente e as supurações diminuem a olhos vistos. Mas a moléstia persiste ainda. Manifesta-se pela presença de "grandes tumefações" no pescoço e na perna direita e por uma temperatura da ordem dos 38 graus. Portanto, após cinco peregrinações infrutíferas a Lourdes, a religiosa belga resolve recorrer ao novo santuário local e bastante próximo. E acontece o milagre. No espaço de uma noite Irmã Prudentia torna-se curada! "Declaramos - afirmam os médicos encarregados do exame deste caso, os Drs. Picard e Robaux não poder explicar que apenas o auxilio de fatores naturais tenha contribuído para o desaparecimento da impotência funcional e do inchaço, sej a no pescoço, seja na perna; os fatores psíquicos não podem, eventualmente, prestar contas nem do desaparecimento brusco das dores nem da melhora repentina do estado geral."

Duas vezes mais mulheres do que homens Vemos, portanto, que as curas milagrosas de Lourdes constituem um fenômeno social que nada tem de marginal. Pelo contrário, no interior de um meio ambiente favorâvel e bem estruturado, elas canalizam no seio das multidões disciplinadas e felizes algumas aspirações pessoais, sejam elas aberrantes ou lamentáveis. Estando isto esclarecido, as perguntas fundamentais que todo mundo faz são: o que acontece no âmago do corpo e da alma destes miraculados? E como acontece isto? E por quê? Nas vinte e uma curas ocorridas em Lourdes desde o término da Segunda Guerra Mundial e inicialmente reconhecidas como "clinicamente inexplicâveis" e posteriormente como "milagrosas", apenas seis são de homens contra quinze de mulheres, proporção idêntica às curas das ondas precedentes. Esse fato faz com que os céticos pensem ou digam que as doenças curadas não são "verdadeiras" moléstias, mas sim enfermidades de origem histérica.

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"Não sei muito bem o que é a histeria - responde o Dr. Olivieri a esta objeção - e muitos de nossos confrades empregam com freqüência -essa palavra sem estabelecer o seu sentido exato." Normalmente não se deve empregar a palavra histeria a não ser nos casos das histerias de conversão (expressão criada por Freud), formas de neuroses, isto é, moléstias ou perturbações mentais que se manifestam não por particularidades de comportamento mas sobretudo por sinais físicos. Era comum, antigamente, a histeria de conversão encontrar-se na origem de várias paralisias totais ou parciais, de cegueiras etc., assim como nas crises nervosas violentas e espetaculares de aparência epiléptica, freqüentes nos tempos passados, e praticamente desaparecidas na atualidade. É certo que os casos de 1858 revelam, quase todos, uma histeria de conversão mais ou menos intensa. Mas, sente-se vontade de dizer: e daí? Numa época em que não existiam nem a psiquiatria nem a psicanálise; estes doentes não contavam praticamente com nenhum recurso - e aqueles ou aquelas que não iam implorar em Lourdes, ou noutros locais similares, o alívio de seu mal arrastavam-no consigo por toda a vida. E todos os psiquiatras e psicanalistas sabem muito bem que em numerosos casos de histeria de conversão, às vezes é suficiente um leve choque emotivo, uma palavra dita, uma repentina tomada de consciência, para que se produza "uma cura milagrosa".

Pode-se lançar a culpa no "psiquismo"? Outra objeção: o "psiquismo". Sob este termo vago, em geral queremos dizer que muitas moléstias parecem ser de origem mental, não mais de modo inconsciente como na histeria de conversão, mas de forma mais evidente e quase consciente. Um certo número de curas alcançadas em Lourdes são, realmente, dignas desta explicação, desde que limitemos de modo restrito o sentido que se possa dar ao "psiquismo".

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É preciso, neste caso, nos referirmos a Freud, mas não ao Freud da teoria dos sonhos e da libido, mas ao Freud de após 1920. Na verdade, o pai da psicanálise sofreu uma profunda modificação nesta época: acha que o ser humano é regido por duas forças ao mesmo tempo contraditórias e complementares: o instinto de vida e o instinto de morte, Eros e Tanatos. O desenvolvimento da psicologia animal e a etiologia comprovaram que se tratava de uma intuição certa, ainda que formulada erroneamente. Na verdade, o instinto de morte parece de certa forma com o instinto de vida degenerado e alterado. Quando um ser vivo, animal ou homem, teve uma aprendizagem errônea das funções essenciais, quando as estruturas normais que permitem seu desenvolvimento falham, ou quando algum stress excessivo ultrapassa sua capacidade de defesa ou de proteção, este ser vivo soçobra naquilo que se convencionou chamar de "marasmo", inicialmente mental, e depois psíquico. O caso mais conhecido é o do "hospitalismo". Nas creches onde são recebidas criancinhas órfãs ou separadas de sua mãe por um motivo ou outro, por mais perfeitas que sejam a higiene e a alimentação, a mortalidade é assustadora, da ordem dos 50% na melhor das hipóteses. Mesmo bem nutrido, bem vestido, vacinado, lavado, etc., um bebê humano encontra as maiores dificuldades para sobreviver longe da presença materna. Tudo acontece como se ele não desejasse viver nestas condições. E quando sobrevive, o faz com seqüelas mentais e físicas graves (fala tardia, moléstias infantis etc.).

Henriette Hauton: vinte anos e dezessete quilos Contudo, a incompetência ou a indiferença materna podem produzir os mesmos resultados que a ausência total da mãe. Vimos anteriormente, quando da onda das curas de 1858, que havia muitas crianças da época mergulhadas em pleno marasmo. Numerosos

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estudos históricos e sociológicos demonstram que em certas esferas populares durante o século XIX, devido à pobreza, ao analfabetismo, ao alcoolismo feminino muito difundido, o instinto materno empobrecia-se, chegando às vezes a desaparecer. Tudo se passava como se na maior parte do tempo a criança se sentisse abandonada. Aliás, a biografia de Bernadette prova que ela mesma foi muito abandonada pela mãe. Não morreu, mas nunca se tomou realmente uma pessoa adulta. Quando da segunda onda de curas, aquelas estudadas pelo Dr. Boissarié por volta de 1900, não faltam exemplos deste tipo, seja nos "milagres" como tal ou nos casos reconhecidos apenas pela medicina. O mais espetacular é, sem dúvida alguma, o de Henriette Hauton, nascida em Lisieux em 1888. Criança pequena, raquítica, doentia, desde a idade de dez anos é tuberculosa e sofre, sobretudo, de anorexia: Henriette recusa-se a comer! Todavia ela sobrevive, não se sabe como, até os vinte anos: nesta época, já sem sair da cama há cinco anos, pesa apenas dezessete quilos! Quando chega a Lourdes as pessoas ficam assombradas: para que fazia uma peregrinação esta veImnha descamada de oitenta ou noventa anos? Era essa a impressão que transmitia... A água das piscinas a ressuscitará, e três semanas mais tarde seu peso estará dobrado. Qual o mecanismo de uma metamorfose deste tipo? Sem dúvida alguma, a permanente presença em Lourdes da imagem daquela mãe doce, tema, boa e indulgente e o próprio ato de entrar nas águas das piscinas, semelhantes, apesar da temperatura gélida, ao saudoso liquido uterino, tudo isto deve dar aos doentes deste tipo a impressão de estarem nascendo pela segunda vez...

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Psicossomático e sugestão

Terceira objeção: a que vem da medicina psicossomática. "É certo, realmente - responde o Dr. Olivieri que os métodos empregados pela medicina psicossomática, podem levar à cura moléstias orgânicas... Mas... eliminamos sistematicamente, em no"ssas investigações, tudo aquilo que possa ser explicado pela auto - ou hetero - sugestão e quando há um tratamento relevante por parte da medicina psicossomática." Eis aqui uma afirmação impossível de ser aceita como tal, pois isto é reduzir a medicina psicossomática a uma espécie de charlatanismo simpático. Atitude que representa uma grave simulação da verdade. De fato, a medicina psicossomática não é uma especialidade entre tantas outras mas sim uma medicina que aborda as moléstias de outro modo. Para ela, não existem precisamente doenças mas apenas doentes, cada qual com suas particularidades, sua história, sua estrutura pessoal e a imbricação inextrincável entre o psíquico e o mental. Não há aí uma solicitação inicial de ordem filosófica. A medicina psicossomática nasce quando tentamos compreender o fenômeno do "me dá água na boca"... Na verdade, o que significa esta frase tão tola e comum? Imaginamos um prato de que gostamos e apenas por pensar nele salivamos, isto é, uma glândula endócrina dependente do sistema neurovegetativo, portanto independente de nossa vontade consciente, começa a funcionar. É um pouco semelhante à maçã de Newton; quando nos fazemos esta primeira pergunta, seguese uma porção de conseqüências e descobertas. Assim, a "neurose de guerra" foi uma epidemia surgida nas linhas de frente que ,se disseminou entre os combatentes das trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial. Alguns especialistas pensavam que se tratasse de lesões causadas no cérebro pelas ondas de choque dos tiros e bombardeios. Porém, um médico alemão

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entendia, e sua opinião era ímpar, que nos achávamos simplesmente diante do que agora denominamos de traumatismo psíquico e que, portanto, os tratamentos a serem usados deveriam ser meramente psicológicos. Os numerosos resultados positivos alcançados comprovaram a validade de seu diagnóstico.

Conte-me a sua vida, e eu lhe direi a sua doença... Logo depois, pesquisas mais profundas e precisas trouxeram à tona revelações sensacionais. O grande pioneiro da medicina psicossomática é o americano Alexander, que clinicava em Chicago. É a ele que devemos a descoberta de ser a úlcera do estômago e do duodeno, apesar da indubitável presença de lesões na parede do estômago, exclusivamente de origem psíquica. Alexander tinha aprofundado tanto seus conhecimentos neste domínio que, diante do simples relato da história de uma vida ou do caráter de uma pessoa, era capaz de diagnosticar a enfermidade, sem entrar em contato com o interessado! Serve como testemunho esta pequena e extraordinária historieta. No hospital onde ele ministrava seu curso, um dos médicos escolheu, em segredo, os doentes que seriam em seguida submetidos ao exame de Alexander. A sessão começa. Os doentes ainda não se achavam presentes. O médico do hospital faz alguns retratos psicológicos sem dar nenhuma indicação física. Primeiro caso: trata-se de uma jovem de cor negra, com cerca de vinte anos, explica o médico, que perdeu os pais aos quatro anos de idade. Aos seis, precisa ganhar a vida vendendo pelas ruas cordões de sapatos e jornais a fim de se alimentar e alimentar os irmãos mais novos. Quando começa a freqüentar a escola, tem que trabalhar ao mesmo tempo fora (faz faxinas e limpezas) e em casa, nos afazeres domésticos. Atualmente está hospitalizada. De que mal ela sofre?

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O Dr. Alexander pensa por um momento e revela o seu diagnóstico: trata-se, possivelmente, diz ele, de um bócio exoftálmico ou doença de Basedow. A doente é chamada. E, efetivamente, vê-se entrar a moça com os olhos exorbitados, com a tireóide saltada, vítima de uma clara e profunda instabilidade nervosa.

A alma e o corpo Também foram feitas experiências significativas e apaixonantes com os animais, especialmente com gatos. Se colocarmos um gato numa jaula, próximo a um cachorro ameaçador, o gato não pode escolher nenhuma das duas soluções que lhe são possíveis numa situação normal, ou seja, o ataque ou a fuga. Resultado? Rapidamente sua pressão se eleva! Esta experiência permitiu-nos compreender que as emoções, sejam elas de que tipo forem, atuam sobre o sistema neurovegetativo e, conseqüentemente, sobre as glândulas endócrinas que dele dependem, através de mecanismos que ainda não foram inteiramente esclarecidos. Como o metabolismo geral e o funcionamento dos órgãos encontram-se sob a dependência destas glândulas, vemós de imediato como pode funcionar em caráter permanente este circuito entre a alma e o corpo. Contudo, as modalidades deste circuito mudam segundo os indivíduos e a fragilidade, momentânea ou hereditária, deste ou daquele órgão. Assim, um mesmo tipo de emoção terá como conseqüência uma crise de asma num determinado indivíduo, uma hipertensão noutro, num terceiro causará perturbações intestinais, a um quarto uma moléstia de pele; entre essas reações encontram-se os vômitos, as dores de cabeça, os distúrbios cardíacos, os problemas urinários, as impotências sexuais etc. As perturbações funcionais repetidas sobre um mesmo órgão chegam a criar, mais ou menos rapidamente, lesões orgânicas concretas. Neste caso, não basta tratar desta lesão se não

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se tratar ao mesmo tempo da causa psíquica - pois, em caso contrário, esta renovará a moléstia ou criará uma outra em algum outro ponto do organismo. Recenseamento das enfermidades psicossomáticas

No estágio atual de nossos conhecimentos, pertencem a sete grupos as enfermidades analisadas e pesquisadas em profundidade pela medicina psicossomática com relação a este tipo de processo: - as doenças endócrinas e nutricionais, sobretudo o hipertireoidismo, o diabetes, a obesidade, a anorexia. São elas o resultado de tensões afetivas prolongadas; - as alergias (asmas, eczema, urticária, "febre do feno" etc.). Elas traduzem uma necessidade de amor, uma insegurança profunda, um apego excessivo e regressivo com relação à mãe; - as afecções cardiovasculares (a hipertensão, perturbações do ritmo cardíaco, determinados casos de enfarto). São as conseqüências de uma agressividade constantemente refreada e incapaz de achar uma válvula de escape; - as moléstias da pele (de tipo psoríase, pruridos etc.), que assinalam uma ansiedade crônica. - a tuberculose pulmonar. É a doença dos abandonados, dos privados de amor, cuja respiração incompleta e curta fragiliza os pulmões que são, em seguida, atacados sem a menor dificuldade pelo bacilo de Koch; - as doenças digestivas e especialmente a úlcera que é a enfermidade dos hipersensíveis inibidos e incapazes de se entregarem a confidências, ruminando em segredo e em silêncio humilhações reais ou imaginárias; - o glaucoma (aumento da pressão interna do olho, podendo levar à cegueira) que pode ser desencadeado por um choque emocional. É particularmente instrutivo, temos que convir, comparar esta lista com aquela das moléstias curáveis em Massabielle estabelecida em 1858

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pelo Dt. Dozous, e também com a dos sessenta e quatro milagres oficiais. Aliás, existe quase sempre nestes casos a conjugação entre uma moléstia psicossomática pertencente a um destes sete tipos e as conseqüências inevitáveis de uma anorexia persistente e de uma imobilidade prolongada.

O romance verdadeiro de um milagre Mas tudo isto é muito teórico. Para que se possa. compreender bem o duplo mecanismo da formação de uma doença, tais como aquelas que acabaram de ser citadas, e da sua cura, seria conveniente conhecer o verdadeiro romance de um milagre de Lourdes. Ora, isto existe. Uma miraculada austríaca, Edeltraud Fulda, escreveu um livro intitulado E serei curada!, onde sua história é relatàda quase que dia após dia, desde o inicio de sua moléstia até o seu restabelecimento milagroso, treze anos mais tarde. E veremos como uma pessoa pode ficar realmente doente, organicamente doente, a ponto de deixar-se levar, lenta mas inexoravelmente, às portas da morte, e como esta mesma pessoa pode recuperar-se graças a uma emoção proporcionada por Lourdes, seu mito, e pelo fervor demonstrado pelas multidões que ali se congregam. "Minha vida dependia da dança. A dança devia ser a razão de minha esperança, como era o objetivo de minha vida." Assim começa a biografia de uma das mais célebres miraculadas de Lourdes, Edeltraud Fulda, uma austríaca curada em 1950 de um mal de Addison. O pai ia mandar matriculá-Ia na classe infantil do corpo de baile da ópera de Viena, quando morre de repente. A menina está com seis anos e tem duas irmãs. A mãe, tendo que assumir sozinha a educação das três filhas, não se vê em condições de pagar o curso de dança. Edeltraud passa a freqüentar um curso comercial, antes de começar a trabalhar muito cedo, aos quatorze anos, como vendedora numa confeitaria.

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Porém, não renunciou à dança e pouco depois, conta-nos, procura arranjar contratos para um número que ela montou com sua irmã Úrsula, ou Uschi: as "Irmãs X". Não se trata absolutamente de dança clássica, mas do que se costuma denominar de dança "típica" ou mesmo "exótica", pois as duas moças austríacas apresentam-se fantasiadas de orientais, com cetim rosa ou azul e com bijuterias. E eis as Irmãs X a caminho, em vias de realizar uma tournée "pela Europa, inicialmente em Praga, depois em Roma. Contudo, já faz algum tempo que Edeltraud sofre de uma "terrível dor de estômago". Corre diversos médicos que se referem, sem exceção, a "nervosismo" ou "amor contrariado". Estas expressões banais revelam uma boa intuição. Na verdade, tomaremos conhecimento através de seu relato que Edeltraud permanecerá resolutamente virgem, recusando-se a ter relações sexuais nesse ambiente de cabaré que freqüenta, ambiente muito livre para o seu nível de educação. E quando se lêem determinadas páginas por ela escritas, compreende-se que se trata mais de uma repressão do que uma simples recusa e que isto conduz a um comportamento fora do comum tanto física quanto fisiologicamente.

Coração disparado devido à colocação de uma sonda... É em Roma, em junho de 1937, ao fim de um dia passado na praia com a irmã e dois jovens romanos, que se declara a sua primeira "grande crise". Tem então vinte e um anos. Faz-se necessário levá-Ia imediatamente ao hospital onde é operada. É submetida a uma ressecção do estômago, porque a parede deste órgão fora perfurada por uma úlcera. Mas se a intervenção cirúrgica resolve sua "terrível dor de estômago", eis que outras perturbações físicas se declaram. Inicialmente a micção (ação de urinar) torna-se impossivel. Fala-se em passar uma "sonda" e, ao escutar esta palavra, revela-nos ela, experimenta "alguns espasmos de pavor" e seu coração dispara como um alucinado".

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Quando é levada para que se realize a intervenção, treme como "vara verde" e seu coração bate tanto "que tem a impressão de que vai sair" do peito. O relato que nos faz sobre o acontecimento revela, de forma clara, implicações sexuais inconscientes: "Acompanho com os olhos todos os movimentos, todos os gestos do Dr. B... Um tubo niquelado que traz na mão, deixa ver uma ampolazinha nas duas extremidades e isto aumenta ainda mais a minha angústia. Injetam-me um líquido na bexiga que B... começa a explorar com o auxilio do referido instrumento munido com as ampolas. Isto é muito doloroso. Obrigo-me a ficar imóvel, não obstante a vergonha que sinto por estar sendo assim remexida. O assistente bole numa gaveta, escolhe um tubo fino que B... introduz na minha bexiga. Sinto-me mal. Aperto os dentes. De repente uma dor intolerável remói as minhas entranhas. Grito, peço para que parem um instante, apenas um instante. Eles prosseguem assim mesmo e a dor é tamanha que me agarro ao braço de B...: - Parem! Parem! Sinto-me desfalecer, os cabelos úmidos, as faces banhadas de lágrimas. Apesar da "dor insuportável", sem dúvida, fora do controle de sua consciência, ela gostou da coisa, pois, seja em Roma ou no hospital de Viena para onde foi levada, é submetida a uma sondagem de dois em dois dias.

"Tenho medo de ser tomada por uma histérica" Durante o outono de 1937, sua situação piorou. A micção natural continua impraticável, as regras são interrompidas, o estômago rejeita qualquer tipo de alimento e surge uma inflamação purulenta na bexiga. A jovem chora e grita dia e noite sem cessar. Colocam-lhe um dreno. E eis novos e terríveis detalhes que nos são complacentemente fornecidos:

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"O tubo preso na minha ferida sai pelo quadril, corre ao longo da cama e termina num bocal. O tubo tem uma seção em vidro na sua parte central e assim posso ver o pus que por ali escorre, viscoso e esverdeado.” Mais um detalhe horrível: sua pele sai por completo. "Quando me aborreço, diz a doente, posso tirar tiras finas de pele durante horas." Está pesando quarenta e três quilos! No início de outubro o dreno é retirado e ela volta para casa. Declara ter vontade de "usar vestidos elegantes e agir novamente como uma pessoa adulta" - desejo bastante significativo. Mas, na realidade, não quer comer e fica deitada: "Envergonha-me confessar que quase não me levanto e se o faço é por muito pouco tempo. Tenho medo de ser tomada por uma histérica, pois, na verdade, nada tenho de mal e nada parece justificar a minha incapacidade de reagir." Portanto, pode-se ver que se a "doença" é uma manifestação de seu modo de viver, ao mesmo tempo permite-lhe um início de tomada de consciência... Mas a lamentável higiene de vida transforma-a realmente numa doente. Em janeiro de 1938, ei-Ia novamente no hospital. Novas transfusões de sangue. Desta feita, Edeltraud descobriu um novo meio de ser "perscrutada". Já não se trata mais de sondas de bexiga que ela necessita desta feita, mas de clísteres, quer dizer, lavagens intestinais... Não faltam detalhes sórdidos: "A enfermeira tortura-me sob o pretexto de me aplicar um clister. A água, quente demais, penetra com dificuldade. A enfermeira recusa-se a esfriá-Ia um pouco e abaixar o aparelho para que o líquido pese menos dolorosamente nas minhas entranhas destruídas. Finalmente, a sessão termina e a enfermeira coloca-me, pequeno balão, sobre o urinol. Em vão. A água injetada não volta, meu intestino não tinha

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condições para fazer as contrações exigidas. Choro de vergonha, de revolta, de confusão." Conta-nos sentir um "peso pavoroso" que "esmaga" seu ventre e rins, e que não a deixa dormir. Ela repete sem cessar aos médicos que está sofrendo do coração e que não pode mais andar. Um dos médi-cos passa-lhe uma descompostura: - É uma questão de opção!

Uma garrafinha com água de Lourdes É nesse momento que sua avó envia-lhe uma garrafinha com água de Lourdes: "Desconheço praticamente tudo a respeito de Lourdes e não faço a menor idéia de como usar a água contida no recipiente. Digo de mim para mim que seria bom friccionar o peito, sobre o coração e depois o rim que tanto me dói. Faça-o lenta e calmamente, com, como dizer?, com toda a fé e devoção. Murmuro: - Meu Deus, ajudai-me... Naquele momento, o resultado deste primeiro encontro com Lourdes é nulo. Na verdade, levam-na do hospital para casa, o que desencadeia de imediato uma nova "crise": "Meu ventre ficou duro como uma pedra e a atadura que envolve meu umbigo arranca-me lágrimas." Fica em casa apenas dois dias, o ventre "sacudido por espasmos", e logo está de volta ao hospital - mas a outro hospital. Trata-se, nesta Viena de duas guerras, de um estabelecimento mantido quase que exclusivamente por judeus. Ali ninguém fala de "nervosismo", nem lhe diz que seu problema é uma "questão de opção". Um médico, sem dúvida mais ou menos discípulo de Freud, tenta utilizar a hipnose para vencer-lhe a insônia rebelde. Outro lança mão de um interrogatório no estilo "neutralidade vigilante" tão do agrado do pai da psicanálise: é quando Edeltraud revela nunca ter tido relações sexuais. Finalmente, é nesse hospital judeu que, pela primeira vez,

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alguém vai preocupar-se em dar um nome à tal moléstia: será conhecida por "doença de Addison".

A doença de Addison: um diagnóstico difícil De que se trata? Devemos fazer neste ponto um parênteses necessário para explicar: a doença de Addison designa uma insuficiência endócrina das glândulas supra-renais. Estas, localizadas de encontro aos rins, são duas: a medula-supra-renal produz os hormônios corticóides que agem sobre o metabolismo. A insuficiência destas secreções hormonais indispensáveis à vida traduz-se por quatro sintomas: - astenia, isto é, um cansaço rápido, prostração, uma tendência à imobilidade e algumas perturbações de caráter como a irritabilidade e o desgosto de viver; - a hipotensão; - perturbações gastrointestinais e sobretudo violentas dores epigástricas e uma anorexia (falta de apetite e recusa à alimentação) total; - finalmente e, sobretudo, uma pigmentação escura da pele análoga ao bronzeamento do sol, porém disposta irregularmente e com uma aparência doentia e "suja". É este último sintoma que dá autenticidade à moléstia de Addison, pois na sua ausência os outros três podem constituir tão-somente uma psicastenia ou depressão nervosa grave. Como a psicastenia é tratada, na maior parte das vezes, pela cortisona, o diagnóstico da doença de Addison torna-se então aleatório. No caso de Edeltraud Fulda, os médicos do hospital Lend que a examinam procuram, portanto, sinais de pigmentação: ela tem ou não marcas escuras nas palmas das mãos? O que é certo é que tem cálculos urinários: coisa estranha, ela os recolhe e coleciona-os. Coloca aquelas minúsculas concreções numa caixa de fósforos e deixa-as à sua volta...

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Depois, uma rápida passagem por uma clínica "ariana", onde os médicos se recusam a diagnosticar a doença de Addison e a repreendem com severidade: "Há muito tempo que você percorre os hospitais. Já é tempo de voltar para casa." Ela volta ao hospital judeu onde finge que um de seus velhos médicos está apaixonado por ela...

"Uma irritação que me deixa louca" Mas é a época do Anschluss e da guerra ameaçadora... Edeltraud e a família refugiam-se na casa de um parente na Iugoslávia. Sofre novas transformações físicas. No fim de 1939, declara-se uma "violenta erupção no ânus" - o que nos proporciona novamente detalhes interessantes: "As comichões tornaram-se insuportáveis. As costas, os dedos, a parte interna das coxas, o baixo ventre foram atingidos em poucos dias... Era como se retirada de um campo de urtigas, minha pele tivesse sido picada em mil pontos de uma vez. E quanto mais me coçava mais coceira sentia. Não conseguia descansar nunca." Como se isto não bastasse, descobre-se que tem o intestino delgado com o formato de um oito e também uma infecção nas amígdalas. "Há muito tempo, confessa ela, que a situação de ser forçada a comer deitada me deixava sem jeito. Isto assemelhava-se demais à histeria e só de pensar no caso, o sangue me afluía ao rosto..." Enquanto Edeltraud fica deitada se coçando e engolindo medicamentos à base de cortisona, sua bonita irmã Regina, chamada Ina, diverte-se com um rico iugoslavo que, se não é indiferente à guerra, dela tira proveito. Mas em 1941, a família Fulda deve retornar à Áustria. Edeltraud, cujo estado geral continua lamentável, é tratada por médicos que se aproximam dela dizendo Heil Hitler! A "solução final" já estando mais ou menos sendo preparada (devemos recordar que isto não se

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relacionava apenas com os judeus ou os ciganos, mas também com os dementes e os doentes incuráveis), Edeltraud quase é mandada para uma daquelas horríveis antecâmaras da morte... De qualquer modo, os médicos nazistas que tratam dela continuam cuidadosamente recusando-se com insistência a considerá-Ia vítima da doença de Addison, pois este diagnóstico foi feito por judeus. Aconselham-na a usar bromato e açúcar de uva, isto é, um calmante para os nervos e uma superalimentação glicosada... Desiludida, Edeltraud volta para a Iugoslávia onde médicos mais complacentes prescrevem-lhe injeções de hormônios e uma operação das amígdalas. A jovem sente vontade de "arrancar a pele". "Penteio-me, lavo-me com apenas uma das mãos pois a outra está ocupada em me coçar até sair sangue... Gostaria de poder meter-me numa toca como um animal, quando nada me ajuda a dominar esta irritação que me deixa realmente louca."

Lourdes: um "conto de fadas real" Ela procura consolo na religião. Mantém correspondência com um padre austríaco. Graças a ele, convence-se de que os sofrimentos que suporta são "a mais bela oferenda" que pode fazer a Deus, para "resgatar-se" e resgatar os outros. Quanto ao padre iugoslavo que vai procurar, fica assombrado, isto é o mínimo que podemos dizer, com o estranho pedido que ela lhe faz. Na verdade, Edeltraud Fulda está persuadida que todo padre recebeu "como herança o poder de Cristo de curar os enfermos". - Era assim nos tempos idos - responde-lhe o sacerdote. - Atualmente, isto seria tentar a Deus e arriscar a sorte. Nada convencida, a jovem austríaca pede-lhe, na condição de sucessor dos Apóstolos, para curá-Ia pela imposição das mãos. Diante disto - conta-nos Edeltraud - "ele despediu-se precipitadamente..."

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Durante o verão de 1942, vai passar as férias na montanha austríaca. Ali, vai acontecer um caso estranho que lança um raio de luz sobre a psicologia profunda da futura miraculada de Lourdes. Apaixona-se por seu médico assistente. Escreve-lhe versos. Sai com ele para passeios e obriga-o a levá-Ia junto quando vai correr os doentes. Como lhe diz o seu confessor, trata-se de uma "brincadeira de criança" . Mas não é bem isso. O que Edeltraud deseja é que esse homem, por quem está infantilmente apaixonada, conheça sua maravilhosa e excitante irmã Ina que ela afirma ser "extraordinariamente bela" de cabelos louro veneziano. Prepara este encontro cujo bom êxito ultrapassará, sem dúvida, seus desejos inconscientes mais alucinados: o médico e a irmã de Edeltraud apaixonam-se à primeira vista e dois meses depois estão casados! Seguem-se tristes e longos anos sem que ela diga alguma coisa. Em 1945, ela lê Notre-Dame de Lourdes de Henri Lasserre, o primeiro historiador leigo de Bernadette e de Massabielle. "Sente-se perturbada por esta leitura." Tem a impressão de que se trata de um "conto de fadas real", que se passa não em país imaginário, mas também "não muito longe daqui". "Não existe um tapete mágico que possa me levar até lá!"

"Incapacidade para olhar a realidade de frente" Logo chega o fim da guerra. Os russos surgem, depois os ingleses. A avó de Edeltraud morre num campo de concentração na Iugoslávia, sua irmã está num campo de trabalhos forçados na Tchecoslováquia mas o prisioneiro francês empregado na fazenda onde ela se encontra é um cabeleireiro de Lourdes! Em 1946, interessa-se cada vez mais por Lourdes e, após a leitura de um livro consagrado ao assunto, a decisão finalmente aflora-lhe na consciência: "Quero ir a Lourdes - diz ela. - Como? Isto não me preocupa ainda. Minha vontade saberá triunfar sobre todos os obstáculos. Eu e minha

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mãe conversamos a respeito como sendo coisa certa, o que nos dá um novo entusiasmo. Até agora eu dizia: quando ficar boa, farei isto ou aquilo. Agora digo: vai chegar o dia em que irei a Lourdes, e quando voltar curada..." Em 1947, volta a Viena. Encontrou um médico que confirma o diagnóstico do mal de Addison. Fato que conduz automaticamente a um tratamento à base de cortisona, medicamento difícil de achar. Seu desejo de ir a Lourdes faz com que recorra ao auxílio dos Aliados. Procura um avião. Os americanos recusam pura e simplesmente; os franceses propõem-se a levá-Ia somente até Paris. Ela já não se alimenta mais, bebe, apenas, uma colher de água por dia: pesa trinta e quatro quilos! Finalmente, renuncia à sua anorexia e recomeça a comer, mas só aceita carne de vitela. Em 1948, isso era luxo em Viena! As irmãs são forçadas a contribuir financeiramente para manter esse cardápio requintado. Entretanto, encontra alguns laboratórios que lhe fornecem os medicamentos raros de que necessita. Em 1949, Edeltraud tenta convencer as irmãs a lhe pagarem a viagem a Lourdes. Mas estas mostram-se pouco entusiasmadas com a idéia. No ano seguinte, escreve ao cardeal Spellmann a fim de lhe solicitar ajuda: mais um revés. O cunhado, seu ex-médico, tenta dissuadi-Ia deste projeto, criticando sua "incapacidade para olhar a realidade de frente". Afinal, os padres que ela conhece é que se vão cotizar, vencidos por sua insistência, a fim de financiar-lhe a viagem a Lourdes. Ela vai partir com a primeira grande peregrinação alemã do pós-guerra, que ocorre durante o verão de 1950. Durante a viagem acontecem coisas estranhas: a mãe e a filha desembarcam quando não deviam, não conseguem arranjar carregador, as poltronas reservadas não estão disponíveis... e, na França, o trem corre tanto que Edeltraud acha que o maquinista está embriagado e que vai ocorrer um desastre horrível!

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Engolida por uma onda de fervor

E eis Lourdes: "Não tenho dificuldade para imaginar Bernadette rodeada por suas ovelhas na paisagem que se descortina diante de meus olhos beatos." A 12 de agosto, sentada numa cadeira de rodas, empurrada pela mãe e depois por um maqueiro, a jovem austríaca assiste a primeira cerimônia em Lourdes. Deixa-se "conduzir" pela "imensa onda de fervor" que a circunda e sente-se "em segurança, protegida por um escudo de bondade". Em seguida, vai à Junta médica para ser examinada e para que depois não digam que ficou curada de uma moléstia que não tinha... Estas são suas próprias palavras. O médico que a recebe examina-a, a ela e aos atestados que leva em seu poder, e prescreve-lhe: - Um banho diariamente e também a procissão:esta é a terapia usada em Lourdes. Levam-na, então, rumo às piscinas: "O medo, o frio, o peso do desespero acumulado durante muitos anos fazem com que algumas lágrimas rolem, mornas, ao longo de minha face." Uma cortina é aberta, empurram-na suavemente e ela desce os degraus que vão até o fundo da Piscina "que não é mais larga do que uma cama". Despem-na e cobrem-na com um lençol: "Estou ofegante, perdida. Sinto o coração bater descompassado. Penso que vou, morrer. Meus dentes rangem uns contra os outros, meus membros agitam-se ao redor do corpo. E, no entanto, tudo em mim resiste, opõe-se à morte que tenta me agarrar. Empurram-me novamente com suave firmeza. A água sobe ao longo de minhas pernas, envolve-me o ventre, cinge-me as costelas." Murmura: - Meu Deus, perdoai os meus pecados, fazei com que eu possa sobreviver a esta prova.

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Em seguida, ela beija a imagem da Virgem. Ao sair da água, retiram o lençol encharcado que lhe envolve o corpo, enxugam-na e tornam a vesti-Ia.

"As faces rosadas e os olhos brilhantes" Aconteceu ou não alguma coisa? "Um estranho bem-estar, relata Edeltraud Fulda, esparrama-se até o fundo de meus músculos. Digo a mim mesma que isto é devido ao aquecimento de meu corpo após o banho gelado que acabei de tomar e, quem sabe?, também devido ao fato do medo ter-me deixado. Desloco-me com toda a facilidade, meu passo vai ficando cada vez mais firme à medida que avanço." Antes de regressar ao hotel, a jovem e sua mãe vão dar uma volta pela gruta. A senhora Fulda, ao reencontrar a filha na saída das piscinas. achou que ela estava com "a face rosada e os olhos brilhantes". A doente, à mesa, "come como uma pessoa normal". À tarde, durante a procissão, Edeltraud experimenta uma grande exaltação mística: tem a impressão de ser transportada "ao tempo de Cristo quando ele próprio espalhava sua palavra, evangelizava as multidões". À noite, à mesa, come tudo que lhe é oferecido sem se restringir à vitela que há muito tempo constituía sua única alimentação. E resolve não tomar mais nenhum medicamento. No domingo, 13 de agosto, vai tomar o segundo banho nas piscinas. A descrição que faz da multidão de enfermos é alucinante: Toda a miséria do mundo congrega-se neste lugar. De que padece esta encantadora jovem sentada a meu lado? Os olhos giram nas órbitas, o corpo é sacudido dos pés à cabeça durante alguns momentos. Mais adiante, uma criança abre os olhos espantados sobre um mundo de sofrimentos. A sua cabeça descomunal está plantada estranhamente sobre um corpo doentio. A minha frente, uma mulher ainda jovem, terrivelmente magra e pálida, quase toca num homem mais velho cujo pescoço se dilata quando ele respira dando a

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impressão de que vai arrebentar. Ao meu redor há um oceano de sofrimentos... São os condenados, sem remissão, pela ciência humana.

"Noto que alguma coisa excepcional está acontecendo comigo"

Na refeição do meio-dia, pela primeira vez depois de uma "eternidade", ela toma um sorvete. À noite, assiste a procissão das velas... No dia 15 de agosto, devora com avidez alimentos que há muito tempo era incapaz de ingerir, sobretudo frutas. E resolve renunciar "definitivamente" ao seu remédio, a cortisona, que era como uma droga para ela, já fazia tantos anos. Não surgiu nenhuma alteração. "Estarei curada? - pergunta a si mesma. Não ouso dizê-lo a mim mesma. Noto perfeitamente que alguma coisa excepcional está acontecendo comigo. Todavia, ainda estou muito presa a uma falsa imagem do milagre: bem-estar súbito, faces coloridas, aspecto geral muito melhor, aumento de peso." No dia 17 de agosto, pede para ser recebida pela Junta médica. Os doze médicos que estão reunidos para recebê-la parecem-lhe "desconfiados". Ela exibe seus papéis. Não fazem comentários. Apenas o Dr. Leuret, que era o presidente da Junta àquela época, faz um gesto ao mesmo tempo encantador e inesperado: apanha um cravo num vaso de flores que se achava a seu lado e oferece-o a Edeltraud... dizendo-lhe: - Até logo, senhorita. O que a anima a retornar no ano seguinte para ser reexaminada. No trem de volta, não tem mais necessidade de padiola: fica de pé, anda e sente-se exuberante. Ao chegar a Viena, começa a comer avidamente. Sua irmã Uschi, aparentemente maravilhada por vê-la, se não curada, pelo menos bem disposta, propõe lhe pagar um curso de datilografia:

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Ela me aborrece - diz Edeltraud que, ao que tudo indica, não tinha refletido que a sua cura milagrosa importaria na obrigação de ganhar a vida. - Ela poderia ao menos aguardar até os progressos de minha cura mostrarem-se bastante evidentes. Quanto a seu médico assistente no momento, exclama: - Isto me assombra! Um homem de boa vontade dá o melhor de si durante anos sem conseguir chegar a nada que valha a pena, e de repente tudo acontece sem a intervenção da ciência! A cura da austríaca não é mantida em sigilo. Jornalistas surgem de todos os lados. Assim como um sacerdote tenciona escrever uma história sobre ela, também um estranho chefe de uma seita deseja organizar algumas cerimônias à sua volta. Após a publicação de um artigo intitulado "Será um novo milagre de Bernadette?", Edeltraud recebe uma correspondência enorme, especialmente de pessoas doentes. E então tem a idéia de organizar, pessoalmente, uma peregrinação. Também irrita-se com aqueles que duvidam do milagre e dizem que, se Edeltraud está curada, é graças ao clima de Lourdes que despertou sua força de vontade. Poderíamos dizer que você jejuou voluntariamente...

No ano seguinte, quando retorna a Lourdes e reapresenta-se diante da Junta médica, sofre uma grande decepção: - Os médicos que compõem a comissão dizem-lhe - não podem considerar sua cura como "milagrosa, pois daqui a alguns anos será possivel curar a doença de Addison pelos cuidados médicos adequados. A jovem austríaca vai então lutar para restabelecer a "verdade". Seu empenho máximo é conseguir que sua cura seja reconhecida como milagrosa. Como parece que houve uma tradução mal feita com relação ao seu processo e que os médicos franceses tinham pensado que ela continuara a receber cuidados médicos quando de sua volta de Lourdes, manda traduzir novamente toda aquela papelada médica

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amontoada durante os seus treze anos de doença.... E, finalmente, decide-se a ganhar a vida. Resolve comprar uma máquina de tricô e executar modelos criados por ela. Mas continua sendo alvo da dúvida e do ceticismo de um determinado número de pessoas, especialmente de um sacerdote que conhece em 1952. Este, pouco favorável aos milagres, ao que tudo indica, diz-lhe: - Qualquer pessoa, veja bem, estou dizendo qualquer pessoa e não eu, qualquer pessoa que não tenha fé, não poderia dizer que você jejuou voluntariamente para alcançar um determinado estado de magreza, que se deixou fotografar neste estado com o único objetivo de publicar estas fotos para fazer os outros acreditarem num milagre que teria acontecido em Lourdes?

"Você também é uma pequena Bernadette" Contudo, os médicos que a conheceram e trataram, ficam, ao contrário, admirados com o acontecido e atônitos também. Finalmente, a 23 de agosto de 1954, a Junta médica de Lourdes declara, segundo a fórmula costumeira, a cura de Edeltraud Fulda como "clinicamente inexplicável". E em março de 1955, acontece uma coisa que a jovem esclarece estranhamente ser "a última pessoa" a esperar por aquilo: a Igreja reconhece sua cura como "milagrosa". "Senti-me como se estivesse nas nuvens! Uma alegria sem par apoderou-se de mim como se fora o próprio Deus que tivesse vindo me dar a grande noticia." O cardeal de Viena, Theodore Innitzer, recebe-a com muita amabilidade e diz-lhe: - Você também é uma pequena Bernadette. Em julho, este "príncipe da Igreja" faz uma viagem a Lourdes para levar pessoalmente o decreto do reconhecimento do milagre. Edeltraud Fulda acompanha-o até o trem. Na estação há uma multidão imensa presente. O cardeal diz, então, apontando para a jovem a seu lado:

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- Não a reconhecem? Esta é Edeltraud Fulda, que foi salva em Lourdes. Participemos todos de sua alegria.

Vontade de viver e razão de existir E agora, o que concluir, depois de uma história tão rica e tão significativa, que completa vários exemplos citados anteriormente? Sem dúvida, não devemos cometer o mesmo erro que encontramos com freqüência nos trabalhos consagrados a Lourdes. Tivemos oportunidade de ver que o próprio Dr. Olivieri afirma eliminar impiedosamente dos casos estudados com seriedade, as "histéricas", as "psicóticas", as "psicossomáticas". Aliás, há um autor que reconhece que em "Lourdes inúmeros doentes 'nervosos' e 'histéricos' ficam curados de doenças imaginárias", mas isto não é uma razão suficiente para “condenar" Lourdes. Como se tão-somente as "verdadeiras" doenças orgânicas tivessem direito de cidadania no universo médico e se recusasse o direito de entrada àqueles que sofrem, não apenas na sua carne, mas muito mais em seu coração e sua alma. O que chamamos de uma "doença imaginária" é tão real quanto uma enfermidade real: o mal de viver que uma doeriça imaginária revela é grave e deve ser tratado. No estado atual das coisas, Lourdes é uma das raras estruturas onde tantos sofredores encontram um ambiente acolhedor e se sentem à vontade entre seus semelhantes. Sem pretender criar um paradoxo muito grande, poderíamos até mesmo dizer que a cura, em Lourdes, de tantas doenças de origem nervosa e histérica - casos não recenseados devido à sua própria natureza - é, de certa maneira, mais milagrosa que a dos casos oficiais. Sem nos estendermos mais, é preciso compreender sobretudo que em Lourdes, contrariamente ao resto do mundo, o instinto de morte é quase sempre vencido pelo instinto de vida. Há muito poucos exemplos parecidos com esses "voluntários do sofrimento" italianos que, a cada ano, vêm depositar flores aos pés da Virgem de Lourdes,

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gesto que simboliza a oferenda de sua moléstia como uma complementação da Paixão do Cristo... O que melhor resume o fenômeno social, médico e psicológico, de que Lourdes se tornou o centro, é esta reflexão dita um dia por um deficiente em peregrinação: - Tenho vontade de dizer aos outros deficientes que, se por momentos, ou em virtude de sua moléstia, deficiência ou pobreza, sentem-se rejeitados, inúteis, tenho vontade de aconselhá-Ios a ir a Lourdes para ali descobrir, como o fiz, a vontade de viver e a razão de existir.