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TRABALHOS MARGINAIS

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Jorge Luiz Souto Maior Noa Piatã Bassfeld Gnata

Trabalhos Marginais

organizadores

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EDITORA LTDA.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:

Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-001 São Paulo, SP — Brasil Fone (11) 2167-1101 www.ltr.com.br

Todos os direitos reservados

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: R. P. TIEZZI Projeto de Capa: FABIO GIGLIO Impressão: BARTIRA GRÁFICA E EDITORA

Novembro, 2013

Trabalhos marginais / Jorge Luiz Souto Maior, Noa Piatã Bassfeld Gnata, organizadores. — São Paulo : LTr, 2013.

Vários autores.

Bibliografia

1. Direito do trabalho I. Maior, Jorge Luiz Souto. II. Gnata, Noa Piatã Bassfeld.

13-11602 CDU-34:331

1. Direito do trabalho 34:331

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Versão impressa - LTr 4935.5 - ISBN 978-85-361-2741-5Versão digital - LTr 7699.6 - ISBN 978-85-361-2839-9

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Sumário

Apresentação — Jorge Luiz Souto Maior ........................................................................................... 7

Às Suas Ordens! (Ela, Eles e Eu) .......................................................................................................... 23 Paulo Sérgio Jakutis

O Histórico Constitucional do Concurso Público e as Consequências Jurídicas para sua Ausência a Luz da Posição do Tribunal Superior do Trabalho .............................................. 68 Fábio Gonzaga de Carvalho

A Advocacia e a “Inclusão” da Marginalidade: Notas para uma Pesquisa .............................. 88 Thiago Barison de Oliveira; Danilo Uler Corregliano

Estágio Acadêmico: Ato Educativo ou Trabalho Marginal? ...................................................... 106 Marco Aurélio Serau Jr.; Patrícia Cândido Alves Ferreira

Alienação em Duas Mãos: Trabalho Eleitoral, Precarização e Estranhamento Político . 119 Gustavo Seferian Scheffer Machado

Marginalidade Jurídica das Migrações Internacionais na Prática dos Direitos Humanos .128 Noa Piatã Bassfeld Gnata

Proteção do Trabalho da Prostituta: Modelo Laboral e Princípio da Justiça Social ......... 145 Rosângela Rodrigues Dias de Lacerda

O Homem-Seta........................................................................................................................................ 164 Claudia Urano de Carvalho Machado

A Diarista, o Vínculo de Emprego e os Direitos Trabalhistas: Perspectivas Histórica, Legislativa e Jurisprudencial. Uma Proposta de Inclusão Social ........................................ 175 Francisco Pereira Costa; Marcele Carine dos Praseres Soares

Cuidadoras: a Invisibilidade do Trabalho de Cuidado e o Papel do Direito em seu Eco-nhecimento ........................................................................................................................................ 195 Regina Stela Corrêa Vieira

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Quem é o Trabalhador Boia-Fria? ..................................................................................................... 210 Victor Emanuel Bertoldo Teixeira

Os Limites Jurídicos do Trabalho Eventual: Uma Análise da Figura do “Chapa” ................ 234 Aparecido Batista de Oliveira

O “Chapa” e o Processo de Desvalorização da Profissão ........................................................... 248 Welington Castilho Garcia

Entre o Crime e o Castigo: a Situação Jurídico-Trabalhista do Apontador de Jogo do Bicho no Brasil ................................................................................................................................. 260 Eduardo Rockenbach Pires

Trabalhos Marginais: Breves Considerações sobre a Manicure ................................................ 273 Fernando Antônio de Carvalho Borges Garcia

Frentes de Trabalho Versus Direito Fundamental ao Trabalho Digno: Redimensio-namento (Urgente) das Políticas Públicas ................................................................................. 285 Juliane Caravieri Martins Gamba

No Zigue-Zague da Marginal: o Trabalho do Motociclista Profissional (Motoboy) ........... 315 Sandra Donatelli

O “Motoboy”. Uma Figura ainda Marginal no Direito do Trabalho ....................................... 329 Paulo Roberto Lemgruber Ebert

Os Catadores de Materiais Recicláveis e a Nova Lei das Cooperativas de Trabalho .......... 344 Sabrina Bowen Farhat Fernandes

O Direito Achado no Lixo: de Carolina ao MNCR — Trabalhadores à Cata dos Elementos Contributivos para um Direito Social Possível e Desejável ............................. 359 José Raimundo de Souza

O Regime Especial de Inclusão Previdenciária .............................................................................. 375 Mariana Preturlan

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ApreSentAção

Jorge Luiz Souto Maior(*)

Este livro é fruto das análises e debates realizados durante o desenvolvimento da disciplina, Teoria Geral do Direito do Trabalho, por mim ministrada no 1º semestre de 2012, no curso de mestrado em Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Sem desprezar a análise em torno da origem do Direito do Trabalho dentro do contexto da sociedade capitalista, reconhecendo o seu papel reacionário no sentido da preservação das estruturas desse mesmo modelo de sociedade, as investigações teóricas tiveram por objetivo identificar a alteridade como ponto de partida da racionalidade do Direito do Trabalho, tomando como ponto de partida as abordagens desenvolvidas no livro Curso de Direito do Trabalho — v. I — Parte 1 — Teoria Geral do Direito do Trabalho, notadamente no aspecto pertinente à identificação do método jurídico trabalhista.

Como dito na obra em questão:

A racionalidade que se impõe ao jurista pelo Direito Social é a de ver o outro ou, até, de se perceber no outro, mas não a partir de uma perspectiva do homem isolado, idealizado, glorificado, mas na realidade coletiva, contextualizada a partir das complexidades que envolvem o modelo capitalista de produção.

Na perspectiva do Direito do Trabalho este homem, por certo, é o trabalhador, buscando o propósito da melhoria de sua condição social.

Essa afirmação retoma o debate acerca do poder transformador do direito. O fato concreto é que, por mais razões que tenham os teóricos que acusam a forma burguesa de organização e aplicação do direito, o fato é que o direito, queira-se ou não, se correlaciona com a realidade, e, nesta perspectiva, servirá tanto para conservá-la quanto para transformá-la. Tullio Ascarelli, que pinçara suas ideias sob a égide do Direito Social em formação, deixara claro desde então que “A ideia de que o direito não poderia transformar a economia era, pura e simplesmente, o reflexo de uma ideologia (reacionária), isto é, do desejo de que o direito não interviesse para a transformação vantajosa às classes deserdadas pelo sistema econômico existente. Era o reflexo da concepção que

(*) Graduação em Direito pela Faculdade de Direito Sul de Minas (1986), Mestrado (1995) e Doutorado (1997) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisa, em nível de pós-doutorado, realizada na França em 2001, financiada pela CAPES, sob orientação do Prof. Jean-Claude Javillier, professor da Universidade de Paris-II. Atualmente é professor livre docente da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito do Trabalho, Teoria Geral do Direito do Trabalho, História do Direito do Trabalho, Direitos Humanos, Processo do Trabalho e Justiça do Trabalho.

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se apresentava como científica, mas que era, na realidade, política, segundo a qual existe uma economia natural, à qual corresponde a ideologia do direito natural”(1).

E, não se dedicou o autor citado à formulação da proposição em sentido da força transformadora do direito, dedicando-se a apresentar as modificações econômicas produzidas pelas mudanças legislativas, tendo, inclusive, participado ativamente de movimentos de reforma legislativa(2).

Esse reconhecimento é por demais importante para explicitar ao jurista o tamanho de sua responsabilidade quando cria, por meio da interpretação, o direito. Neste sentido, Ascarelli exprimia, com toda razão, que “não há interpretação que não obrigue o intérprete a tomar posição diante desta ou daquela alternativa e, portanto, a expressar uma valoração pessoal”(3), a qual não adviria no conjunto normativo, mas da vivência do jurista. Neste sentido, a interpretação não seria declarativa, mas criativa. Assim, “rejeitando as costumeiras metáforas da interpretação como cópia reprográfica ou como reflexo do direito já posto, ele adotou a metáfora da semente e da planta, segundo a qual o ordenamento jurídico cresce sobre si mesmo e desenvolve-se por meio do trabalho do intérprete, do qual a lei é o gérmen fecundador. Sem metáforas, a interpretação, independentemente do que o jurista pense do próprio trabalho, jamais é apenas desenvolvimento lógico de premissas, ou seja, mera explicitação do implícito, mas é sempre, também, acréscimo, adaptação, integração, em suma, trabalho contínuo de reformulação, e, portanto, de renovação do corpus iuris. O jurista não é um lógico que apenas manipula algumas regras, mas um engenheiro que se serve de regras para construir novas casas, novas fábricas, novas máquinas”(4).

Em sentido ainda mais revelador, Márcio Túlio Viana explica que por detrás da fantasia de que o direito está, todo ele, inscrito nas leis, esconde-se o próprio juiz que tenta fazer crer à sociedade que nada mais faz do que aplicar a lei ao fato, não assumindo, pois, qualquer responsabilidade sobre o resultado a que chega.

Em suas palavras: “como foi o legislador que fez a lei, o tribunal pode se eximir, aos olhos da sociedade, de qualquer responsabilidade — pois ela não conhece o seu segredo, não o percebe como coautor, não sabe que quem interpreta, recria. Como também não sabe, por isso mesmo, que o que ele fez foi uma escolha; que a sua aparente descoberta foi, na essência, uma invenção”(5).

Essa revelação, que demonstra, pois, a um só tempo, a responsabilidade do jurista e a própria função transformadora — ou reacionária — do direito, é por demais importante para a fixação de um método para o Direito Social, até porque, como dizia Ascarelli, na mesma linha das abordagens críticas do Direito, “O chamado direito espontâneo, que se forma, ou se acredita formar-se, diretamente pelo livre jogo das forças em luta, é sempre o direito do mais forte”(6).

O método do Direito Social, no sentido de lhe fornecer o potencial transformador da realidade, será, necessariamente, estabelecido a partir da perspectiva das pessoas que nas relações sociais detenham uma posição inferiorizada, buscando soluções emancipatórias e não legitimações para as injustiças.

Assim, a crítica ao direito não deve significar o efeito de destruir o direito, mas de reconstruí--lo. Não se trata, por certo, de uma reconstrução que se baseie nos mesmos postulados dos debates

(1) Apud BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. p. 250.(2) Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 250.(3) Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 253.(4) Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 252-253.(5) Prefácio. In: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; MELO FILHO, Hugo Cavalcanti; FAVA, Marcos Neves; MAIOR, Jorge Luiz Souto (orgs.). Coleção O mundo do trabalho. São Paulo: LTr, 2009. p. 10. v. 1: leituras críticas da jurisprudência do TST: em defesa do direito do trabalho.(6) Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 248.

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abstratos do conhecimento jurídico. Trata-se de uma reconstrução que, partindo dos argumentos reveladores das análises críticas, afaste, por conseguinte, a ideia do direito como ordenamento ou como sistema, que elimine, pois, o desafio da compreensão do direito como uma ciência autoexplicativa, procurando, isto sim, produzir os saberes necessários para problematizar a realidade social, fixando os parâmetros de análise dos fatos. Em outras palavras, a abordagem crítica do direito deve se voltar a explicitar o método(7) de análise que melhor atenda aos objetivos do direito e identificado este, historicamente, como um Direito Social, qual o método necessário para que o intérprete respeite os objetivos traçados pelo pacto humanitário da construção de uma sociedade mais justa e humana dentro do sistema capitalista de produção.

Não há como não extrair da raiz do Direito Social a compreensão de que o seu significado concreto está vinculado ao propósito de construir, continuamente, de forma evolutiva, a justiça social, para que a atração do sentido do justo para o direito não represente, meramente, a legitimação de situações injustas, que se avaliam, ademais, evolutivamente. O trabalho de crianças de 5 anos de idade em fábricas, aos olhos de teóricos do século XIX, já pareceu normal, mas hoje, por certo, ninguém o defenderá, valendo-se a mesma proposição de natureza progressiva em diversos outros assuntos ligados às relações de trabalho no contexto da exploração capitalista.

Desse modo, e por consequência da lógica inserida no Direito Social, o pressuposto teórico fundamental do Direito do Trabalho, é o de que sirva como instrumento da melhoria da condição social e econômica do trabalhador. Toda a racionalidade ligada ao Direito do Trabalho, cientificamente considerada, deve partir desse pressuposto e a ele servir, não para estabelecer verdades incontestáveis e eternas, mas para propor problemas a serem superados. Dito de forma mais clara, o método de análise do Direito do Trabalho é o do jurista posicionado no lugar do trabalhador, para que possa ver a realidade com os olhos deste, possibilitando-lhe, então, compreender suas aflições possíveis frente às formas de opressão impostas pelo poder econômico.

Como explicitado por Márcio Túlio Viana, “não creio em solução para o Direito do Trabalho que não avance para a frente, em direção ao trabalhador”(8).

Tomando por base esse direcionamento, os estudantes, autores dessa obra, se predispuseram a examinar a realidade de alguns tipos de trabalhadores que têm sido excluídas da proteção social trabalhista, procurando demonstrar o quanto o Direito do Trabalho, no contexto da proposição de um instrumento em favor da construção da justiça social, ainda precisa percorrer.

As análises, de modo geral, atingiram, ademais, esse caráter instrumental, deixando claro que a exclusão referida é indevida, não se tratando, pois, de uma falha estrutural do Direito do Trabalho.

Os trabalhadores, tratados neste livro como “marginais”, por terem sido colocados à margem da proteção jurídica, como se verá nas abordagens que se seguem, não foram excluídos da proteção jurídica trabalhista pelo próprio Direito. Na verdade, por deficiência acadêmica, por ajustes político-ideológicos não revelados ou por interesses econômicos obscuros, lhes foram negados direitos trabalhistas legítimos, decorrentes da sua inegável inserção na lógica capitalista da venda da força de trabalho para satisfação alheia.

Neste aspecto, aliás, convém reproduzir a abordagem feita acerca da amplitude do conceito de relação de emprego:

(7) Método “é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação das explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses.” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do direito..., p. 11).(8) Op. cit., p. 9.

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A dificuldade concreta que existe, portanto, não é da inserção do direito do trabalho em outras relações de trabalho e sim a da identificação da relação de emprego onde está mascarada por intenção fraudulenta ou pelas características especiais da prestação do serviço. Esse problema, como se está demonstrando, foi eterno na vida do direito do trabalho e a sua solução não foi, nem deve ser agora, pelos motivos já manifestados, a mera ampliação do campo de aplicação do direito do trabalho, para fugir do desafio de se indagar, no caso concreto, acerca das características do trabalho prestado.

Na luta constante do D ireito do Trabalho para alcançar todas as formas de exploração do capital sobre o trabalho, o primeiro e decisivo passo é o de identificar a relação de emprego sempre que uma pessoa venda a sua força de trabalho para a satisfação de um interesse pessoal (que pode se reduzir à mera comodidade) ou econômico de outrem, o qual, em razão de contrato, tácito ou expresso, submeta aquela pessoa a uma prestação de serviços continuada (habitual), sendo que os serviços prestados são direcionados pelas necessidades dos interesses em questão.

A continuidade não se dá, necessariamente, numa perspectiva concreta, ou seja, não depende de ter, efetivamente, ocorrido. Basta que haja a intenção, provada ou presumida pelas circunstâncias fáticas da vinculação, de que assim fosse.

A eventualidade é o inverso da continuidade (ou como dito por Barassi, o “aspecto negativo da continuidade”) e por continuidade deve se entender o trabalho prestado de forma habitual(9), com certa frequência, mesmo sem ser diário, e que se insere no contexto da necessidade alheia.

Não tem influência, para a legislação brasileira (embora parte da doutrina tenha adotado a tese, mas por influência estrangeira), o fato de o trabalho se inserir na ordem normal das atividades exercidas por quem se vale de seus serviços, pois quando este tipo de serviço deixa de ser ocasional ou fortuito, passando a ter um traço de continuidade (ou seja, um prolongamento, ainda que determinado), integra-se ao conceito de contrato por prazo determinado, na qualidade de serviço de natureza transitória, que pressupõe, por óbvio, a existência de uma relação de emprego. Como explica Antonio G. Pereira Leite(10), “Ao limitar os contratos a prazo, tendo em vista o seu objeto ou sua causa, o artigo em referência (art. 443 da CLT) pressupõe o conceito de contrato de trabalho, de relação de emprego e de empregado. Nele não se afirma que um serviço transitório caracterize a relação de emprego, mas, antes, diz-se que um empregado — por definição (CLT, art. 3º) prestador de serviço não eventual — só poderá ajustar validamente um termo resolutivo para este serviço contínuo se o mesmo, por sua natureza ou transitoriedade, justificar o prazo. O transitório aqui distingue-se forçosamente do eventual e deve ser entendido como temporário, no sentido de limitado no tempo”.

Neste sentido, conclui Octavio Bueno Magano: “Consequentemente, para a nossa lei, serviços cuja natureza ou transitoriedade justificam a predeterminação do prazo são os intermitentes, também denominados de temporada, em cuja categoria se incluem os de safra; são os das pessoas contratadas para substituir trabalhadores em férias ou licenciados, recebendo prestações previdenciárias ou exercendo funções sindicais ou públicas, ou tratando de interesses particulares; são os interinos ou temporários, como os que se contratam para uma tarefa específica, a saber, a montagem de uma máquina, o desenvolvimento de um curso, a organização de um serviço, a apresentação de um show etc., supondo-se, todavia, sempre, subjacente, a existência de um contrato de trabalho”(11).

(9) Neste sentido, MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1980. p. 124. v. II, D ireito individual do trabalho.(10) Contrato de trabalho por safra. São Paulo: LTr, 1976. p. 19.(11) Op. cit., p. 140.

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Assim, para a legislação brasileira, o sentido de eventual se reduz a ocasional, fortuito, que pode, ou não, ocorrer, sendo que quando apresenta traços de continuidade, no sentido de habitualidade, independente da natureza do serviço, deixa de ser eventual, sendo, portanto, um passo decisivo à configuração da relação de emprego.

Os avanços preconizados por alguns, no que tange a estender o D ireito do Trabalho a trabalhadores eventuais, quando a aplicação de normas trabalhistas se mostra possível, trata-se, na verdade, de um retrocesso jurídico, pois o D ireito do Trabalho já considera estes trabalhadores como empregados. Um jardineiro, por exemplo, que vende seus serviços a uma loja de comércio, para cuidar de seu belo jardim, e o faz de forma reiterada, vinculando-se pela habitualidade, não é um trabalhador eventual e sim empregado.

Como explica Octavio Bueno Magano, é preciso “reconhecer que a eventualidade não está necessariamente ligada a serviços estranhos à finalidade da empresa e buscar outro critério para a sua determinação”(12).

O direcionamento, o aproveitamento contínuo e planejado do trabalho alheio como forma de implementar uma atividade econômica ou mesmo de satisfazer um interesse determinado (daí porque nem mesmo a exploração econômica do trabalho é determinante para a configuração da relação de emprego), é característico da relação de emprego e o modelo de produção capitalista depende, essencialmente, do desenvolvimento deste tipo de relação social (denominada, juridicamente, de relação de emprego).

De todo modo, a ideia de aplicação do D ireito do Trabalho a trabalhadores autônomos (liberais e eventuais) é um argumento utilitarista que, no fundo, acata como natural a prática da incorreta aplicação do D ireito do Trabalho no mundo do trabalho, com o risco, ainda, de que se venha a dizer que como tais trabalhadores não são empregados a eles se aplica um D ireito do Trabalho parcial e não aquele integral, voltado às relações de emprego.

Quanto à subordinação, explica Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, “o desenvolvimento da atividade industrial e a evolução das práticas de negócios, as linhas mestras desses padrões conformadores do estado de subordinação também se alteram e evoluem. A missão do pesquisador reside em detectar essas alterações, por meio das quais o conceito jurídico sofreu revisão em suas bases. E foi exatamente o que se deu com a subordinação, que hoje não mais é vista dentro da mesma forma conceitual com que a viram juristas e magistrados de vinte, trinta ou cinquenta anos passados. Debite-se o fenômeno à própria evolução do Direito do Trabalho (com força expansiva constante) ou à incorporação de quaisquer atividades em seu campo de gravitação (o trabalho intelectual, por exemplo), o fato é que a subordinação é um conceito dinâmico, como dinâmicos são em geral os conceitos jurídicos se não querem perder o contato com a realidade social a que visam exprimir e equacionar”(13).

Nesta evolução, ademais, não é de hoje que a doutrina trabalhista vem alargando o conceito de subordinação. Em 1969, De Ferrari já destacava que o D ireito do Trabalho se aplica ao “trabalho prestado em estado de subordinação”(14). (grifou-se)

Importante, ainda, o destaque dado por Ribeiro de Vilhena ao aspecto de que embora a relação de emprego seja uma relação intersubjetiva, a subordinação, como elemento que a caracteriza, é objetiva. Em suas palavras: “O conceito de subordinação deve extrair-se objetivamente e objetivamente ser fixado”(15).

(12) Ibidem, p. 125.(13) Relação de emprego: estrutura legal e supostos. São Paulo: LTr, 1999. p. 463-64.(14) Apud VILHENA, Ribeiro de. Op. cit., p. 465.(15) Op. cit., p. 471.

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Mauricio Godinho Delgado, com a mesma preocupação expressada neste texto, no que tange ao alargamento do sentido de relação de emprego, também pauta-se pela ampliação do conceito de subordinação, propondo que seu ponto de identificação seja “a inserção estrutural do obreiro na dinâmica do tomador de seus serviços”(16). Nas suas palavras: “Estrutural é, pois, a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento”(17).

A subordinação, vale lembrar, não se caracteriza por uma relação de poder entre pessoas, mas sobre a atividade exercida. Como destaca Vilhena, “à atividade, como objeto de uma relação jurídica, não pode ser assimilado o trabalhador como pessoa. Qualquer acepção em sentido diverso importará em coisificá-lo”(18).

Neste contexto, Vilhena adverte para o fato de que a subordinação, tal qual como fora inicialmente concebida, é, na verdade, a representação de um momento histórico, que na concepção atual perde sentido. No fundo, o elemento caracterizador da relação de emprego deve ser visto como a “participação integrativa da atividade do trabalhador na atividade do credor do trabalho”, o que se pode, até, entender como o conceito atual de subordinação(19).

Quanto à dependência econômica, é importante não confundir as coisas. Este aspecto, relevante, mas não determinante da relação de emprego, não deve ser visto a partir da vinculação da pessoa com seu próprio trabalho. Em outras palavras, a característica da dependência não pode ser enunciada pela vinculação que toda pessoa tem com o seu próprio trabalho. O autônomo, obviamente, depende de seu trabalho para viver e, portanto, todas as pessoas que usufruem algum benefício do serviço prestado pelo trabalhador autônomo, remunerando-o por isto, contribuem para a satisfação do interesse econômico daquele. Nesta medida, pode-se dizer que o autônomo é dependente de todos aqueles que consomem o seu trabalho. Mas aí não se tem a dependência típica da relação de emprego, pois este “consumidor” é uma personalidade difusa. Além disso, geralmente não explora economicamente os serviços prestados, ainda que estes serviços, de algum modo, possam trazer-lhe algum benefício econômico de forma imediata ou diferida. Fato é que o trabalhador autônomo depende de seu trabalho, mas não extrai de um vínculo preciso a sua sobrevivência e sim do feixe de relações que possui com contratantes diversos.

Neste sentido, Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena: “Se, por um lado, é decisiva, na lição de Bobrowski-Gaul, a dependência econômica com relação a certas pessoas, via de regra, nelas falta, quando a prestação de trabalho é diversificadamente ofertada. Citam julgado do Tribunal do Trabalho (RAG-Reichsarbeistsgericht), para quem a dependência econômica de uma contraparte não pode existir se o rendimento da obrigação por ela prestada é diminuto e a sua manutenção vital depende de uma maior quantidade de iguais serviços prestados. Exemplifica-se com o professor de piano que ministra aulas particulares”(20).

De todo modo, como dito, o aspecto da dependência econômica não é decisivo para a configuração da relação de emprego, pois primeiro, a exclusividade não é elemento essencial do vínculo empregatício e assim um trabalhador pode depender economicamente de mais de um contratante, tendo com cada um deles um vínculo de emprego específico; e, segundo, em uma dada relação jurídica o trabalhador pode se vincular sem uma situação de dependência econômica

(16) Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista LTr 70-06/667.(17) Ibidem, p. 667.(18) Op. cit., p. 476. (19) Ibidem, p. 478.(20) Ibidem, p. 469.

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com o seu contratante e mesmo assim caracterizar-se a hipótese de uma relação de emprego (vide, por exemplo, o caso de juízes que se vinculam a uma instituição de ensino para ministrar aulas).

Como explica o mesmo Vilhena, há uma separação entre dependência econômica e subordinação jurídica, tendo esta uma conotação de natureza pessoal, aparecendo o aspecto econômico apenas como “dado de fundo” e mesmo assim relativo(21).

A desconsideração de que o dado da exploração econômica do trabalho não é essencial para separar a relação de trabalho da relação de emprego, não é argumento para dizer que o direito do trabalho se aplique, indistintamente, a estas duas relações. Primeiro, porque, potencialmente, o dado da exploração é muito diverso (mesmo no trabalho eventual em que o prestador de serviços apresenta precárias condições econômicas); e segundo, porque há uma incompatibilidade natural das normas do D ireito do Trabalho com as relações de trabalho não subordinadas e eventuais, pois o D ireito do Trabalho pressupõe, com dito, uma vinculação continuada, de trato sucessivo, que serve, a ambos os lados da relação, para previsibilidade e organização.

O equívoco que se comete é o de tentar vislumbrar a existência de um tipo de relação de trabalho eventual, que represente uma exploração econômica continuada. Na verdade o que se faz neste aspecto é deixar de reconhecer a existência de uma relação de emprego onde, efetivamente, relação de emprego há.

Como se sabe, a continuidade não exige prestação de serviços diários. A continuidade foi traduzida, juridicamente, inclusive com previsão legal, como habitual, ou seja, algo que se repete no tempo e que gera previsibilidade de condutas. Assim, é empregado um trabalhador que, por exemplo, trabalha todo domingo para alguém, que remunera e dirige a execução dos serviços, para a satisfação de seus interesses.

Vale lembrar que é exatamente por conta deste aspecto que parte da jurisprudência diz que a “diarista” não é empregada, aduzindo que a lei, no caso específico da empregada doméstica, exigiu, para a configuração da relação de emprego, a “continuidade” na prestação de serviços, não servindo apenas a habitualidade (ou “não eventualidade”).

Trata-se, evidentemente, de uma interpretação equivocada, pois se baseia na literalidade do dispositivo(22), mas, enfim, serve para demonstrar que não se pode vislumbrar, fora do contexto desta lei, a existência de uma exploração continuada do trabalho alheio que não representa relação de emprego.

Bem verdade que existe na lei do trabalhador rural (Lei n. 5.889/70) a previsão de aplicação de normas trabalhistas trazidas em dita lei a um tipo de trabalhador que não se encaixe na qualificação de empregado rural: “As normas da presente Lei são aplicáveis, no que couber, aos trabalhadores rurais não compreendidos na definição do art. 2º, que prestem serviços a empregador rural” (art. 17).

Mas, é relevante lembrar que no Brasil, por previsão legal, os trabalhadores rurais somente vieram a ter direitos trabalhistas em 1963, por intermédio da Lei n. 4.214 — Estatuto do Trabalhador Rural —, imperando, assim, em nosso país, sobretudo no meio rural, durante longa data (e, infelizmente, até hoje), uma concepção escravagista do trabalho rural. A própria Lei n. 5.889/70

(21) Ibidem, p. 469.(22) Vale verificar, ademais, que a lei não alude a trabalho contínuo mas a “serviços de natureza contínua”, o que só pode ser traduzido como um tipo de serviço que seja habitual no contexto familiar, ainda que não seja necessário em todos os dias. Assim, a chamada “faxina”, que se faça com habitualidade, gerando a previsibilidade de condutas, dá ensejo à configuração do vínculo de emprego, independente do número de dias na semana em que ocorra.

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representou um retrocesso ao que fora previsto no Estatuto do Trabalhador Rural, o que serve para demonstrar o aspecto cultural a que se está aludindo.

O texto da Lei n. 5.889/70 foi muito tímido quanto aos direitos conferidos ao trabalhador e talvez por isto tenha trazido no seu bojo o disposto no art. 17, já que não se teve a coragem, que ainda hoje não se tem, de dizer que o “parceiro” rural, aquele que presta serviço nas terras de outra pessoa, para recebimento da parte do lucro líquido da venda dos produtos colhidos, é, na verdade, um autêntico empregado, ainda que se tenha a aparência de sociedade.

Os livros de história do Brasil são ricos na demonstração de como o sistema de parceria serviu para manter, após a abolição, as péssimas condições de trabalho no campo. Em tal sistema, a única coisa previsível é a prestação dos serviços, muitas vezes de sol a sol, já que tanto a colheita quanto sua venda estão sujeitas às intempéries climáticas e econômicas. Em suma, a divisão do lucro, no máximo, poderia ser vista como salário diferido, mas que não retira do trabalhador a condição de empregado, qual seja, aquele que vende sua força de trabalho de forma contínua, para a satisfação do interesse alheio.

É esta lei, feita para se amoldar aos interesses escravagistas, que se utiliza para fundamentar a existência de uma relação de trabalho em que “algumas” normas trabalhistas se aplicam sem que se tenha por base uma relação de emprego. Lei, portanto, que não passa pelo crivo constitucional. A Constituição de 1988, finalmente, equiparou os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, tendo fixado no inciso primeiro, que a relação de emprego é o direito fundamental dos trabalhadores e ficamos, inadvertidamente, tentando aplicar um dispositivo infraconstitucional, dos idos da ditadura, que nega ao trabalhador a condição de empregado, passando por cima da Constituição.

O mesmo se diga, aliás, quanto aos diversos outros exemplos que se vem citando para buscar demonstrar a aplicação do D ireito do Trabalho em relações de trabalho que não se apresentam como relação de emprego: representante comercial (Lei n. 4.886/65); estagiário (Lei n. 6.494/77, ampliada pela Lei n. 8.559/94 e pela Medida Provisória n. 1.952-24/00); vendedor ambulante (Lei n. 6.586/78); e cabo eleitoral (Lei n. 9.504/97).

Todas essas leis servem, de um modo ou de outro, a interesses determinados, facilitando a exploração do trabalho humano sem a contrapartida do direito social. Desconfiguram, expressamente, a relação de emprego, em hipóteses fáticas em que a relação de emprego está presente.

Isto não significa que se esteja negando aos trabalhadores autônomos (liberais e eventuais) uma proteção jurídica, pois, por óbvio, integrando relações sociais relevantes, serão abarcados pelo direito com um todo, mas não pela ótica do D ireito do Trabalho , que possui uma lógica que não se encaixa na perspectiva do trabalho autônomo, a não ser, repita-se, que se esteja vislumbrando um tipo de trabalho que apenas possui a aparência de autônomo, mas aí o resultado é a sua consideração como empregado, para efeito de aplicação do D ireito do Trabalho e não o de aplicar--lhe as normas trabalhistas como uma espécie de favor.

Esta visão, também, não constitui óbice à consideração de que aos trabalhadores autônomos devem ser aplicadas normas pertinentes ao direito social, tais como as pertinentes à seguridade social.

O que não se pode fazer, de jeito nenhum, é continuar dizendo, de forma amplamente equivocada, que só existe relação de emprego: se o trabalhador receber ordens do empregador; se o trabalhador prestar serviços sob os olhos do empregador; se o trabalhador cumprir horário determinado de trabalho; se a paga pelo trabalho não for exclusivamente por comissão; se o trabalhador não se constituir em uma pessoa

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jurídica; se o trabalhador depender economicamente do empregador; se o trabalhador não tiver uma condição cultural elevada que lhe permita abrir mão da proteção das leis trabalhistas...

(...)

...para atender aos objetivos almejados de efetiva aplicação do direito do trabalho nas relações de trabalho em que sua incidência é exigida, o importante é ampliar o sentido de relação de emprego, deixando claro que:

a) a continuidade, um dos traços marcantes desta relação jurídica, não está sujeita, para sua configuração, à ocorrência de uma repetição diária da prestação de serviços ou mesmo à ocorrência, em concreto, desse fato, bastando a intencionalidade das partes quando se vincularem com tal característica atemporal. Como explica Evaristo de Moraes Filho, “É próprio do contrato de trabalho esta facienda necessitas que, diluída no tempo constitui e justifica a sua própria continuidade. O trabalhador eventual, ocasional, mero biscateiro, fazedor de bicos, não chega a ser um empregado, não se reveste de tal status, nem faz com que se desencadeiem em sua proteção as normas da legislação do trabalho”(23);

b) o conceito de subordinação, outro traço relevante da relação de emprego, restrinja--se à ideia de inserção da atividade exercida pelo trabalhador no contexto do interesse (econômico, ou não) de outrem, o qual, por isto mesmo, tem, potencialmente, a permissibilidade de determinar o modo de execução dos serviços, a fim de atingir objetivos marcados pela quantidade, qualidade e utilidade do resultado do trabalho.

A respeito da tendência naturalmente expansiva do Direito do Trabalho, vide a passagem abaixo, extraída da mesma obra:

Essas alterações frequentes das técnicas produtivas, que, como demonstrado, apenas revigoram a lógica existencial do direito do trabalho, não devem impressionar o intérprete e aplicador do direito do trabalho, fazendo com que, diante das aparências, pense- -se na aproximação do trabalhador subordinado ao profissional liberal, que trabalha autonomamente.

A legislação trabalhista, vale lembrar, foi, inicialmente, direcionada à proteção da classe proletária, exatamente, porque as teorias liberais, que se desenvolveram para privilegiar a valorização do trabalho não manual, acabavam por justificar, em termos jurídicos, a exploração do homem, que vendia força de trabalho manual, no contexto da produção capitalista. No caso do Brasil, por exemplo, a própria abolição foi impulsionada pela classe média burguesa, composta por profissionais liberais, com o objeto definido de, na comparação livre das aptidões, proporcionar uma valorização do trabalho não manual, permitindo a sua consideração como classe política, negando-a, por conseguinte, aos ex-escravos(24). Prova disto é o fato de que os ex-escravos não participaram da reformulação do Estado monarquista em Estado burguês, que se concretizou um ano após a abolição. Para adquirir direitos, os trabalhadores manuais, operários, tiveram que se organizar para uma ação reivindicatória e até revolucionária ou anarquista. Sem adentrar os complicadores que envolvem a formação da legislação trabalhista no Brasil, pois há vários outros aspectos a considerar, o fato relatado é suficiente para demonstrar que os interesses dos profissionais liberais são, essencialmente, distintos dos trabalhadores subordinados.

(23) MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1978. p. 198.(24) Cf. SAES, Décio. A formação do estado burguês no Brasil (1888-1891). São Paulo: Paz e Terra, 1985. p. 292-297.

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Esta separação, no entanto, com o tempo tornou-se nebulosa não pelo fato de que os trabalhadores subordinados tiveram seus interesses equiparados aos liberais e sim o contrário, na medida em que o trabalho intelectual também passou a servir a uma exploração de natureza capitalista, visto ter o conhecimento se transformado em um dos maiores bens de consumo no último século. Desse modo, a expansão do D ireito do Trabalho , que se deu com a equiparação do trabalho intelectual ao trabalho manual, representou, na verdade, o reconhecimento da “proletarização” do trabalho intelectual, que passou, assim, a ser merecedor da proteção jurídica conferida ao trabalho manual.

Partir do pressuposto de que a legislação equipara trabalho intelectual e trabalho manual para dizer que o D ireito do Trabalho pode alcançar a todo o tipo de trabalho, subordinado (assalariado) e autônomo, significa revigorar a leitura liberal das relações humanas, legitimando as desigualdades no mundo do trabalho, a partir da noção retórica da aptidão (sempre escamoteada no argumento das oportunidades socioeconômicas), que fornece a base para uma divisão das pessoas em raças mais desenvolvidas que as outras, ao mesmo tempo em que, conferindo ao trabalhador braçal uma pretensa igualdade de tratamento frente aos liberais, faz com que perca a sua identidade de classe verdadeiramente explorada, passando a concordar com sua pouca sorte na vida.

Buscar a expansão do D ireito do Trabalho nada tem a ver, portanto, com a eliminação da dicotomia, trabalho subordinado e trabalho autônomo, a não ser, é claro, que o trabalhador autônomo não seja, efetivamente, autônomo, mas isto já é outra conversa (travada mais adiante).

A ideia de expansão do D ireito do Trabalho não é, ademais, uma novidade, como se pode verificar das manifestações a seguir expostas.

Na década de 1970, o autor mexicano, Néstor de Buen(25), já tratava do problema pertinente aquilo que denominava de “La expansión del derecho laboral”, abordando, exatamente, a “insuficiência da subordinação” para identificar a relação de trabalho à qual se volta o D ireito do Trabalho . Destaca este autor, ademais, que lhe parecem, igualmente, insuficientes os critérios da dependência econômica (ou condição social do trabalhador, como aludido por Mário de La Cueva) e da continuidade e ao final conclui: “El problema parece difícil resolverlo en una etapa de la evolución del derecho del trabajo en que aún escapan de sus normas ciertas relaciones de prestación de servicios. Nosotros consideramos esta etapa como transitoria. Llegará el dia, como ya lo anunciamos en otro ensayo (La expansión del derecho laboral) en que el único dato importante lo constituya, precisamente, la prestación personal de un servicio. Esta será entonces, la nota característica de la relación laboral”(26).

Mas, este mesmo autor, em outra passagem da mesma obra, esclarece bem a sua ideia. A ideia central é conferir a todos os trabalhadores a proteção do Seguro Social, o que, aliás, houvera sido realizado no México por uma lei de 1973, que já fazia menção expressa aos “trabalhadores independentes”, os quais define como “profesionales, comerciantes en pequeño, en artesanatos y demás trabajadores no asalariados” (art. 206), pois na sua visão “claro está que no parece próprio plantear una cadena de normas a propósito de salarios mínimos, descansos, vacaciones, permisos, despidos, etc..., respecto de los no asalariados. En rigor respecto de ellos debe de cuidarse sólo el problema de su salud y de la eventual posibilidad de que reciban pensiones de invalidez y vejez”(27).

Assim, tanto o autônomo quanto o subordinado são considerados trabalhadores, “pero sólo respecto de éstos operará la legislación laboral”(28), até porque estender-se, sem definição precisa,

(25) Derecho del trabajo. México: Porruá, 1977. p. 522.(26) Ibidem, p. 523.(27) Ibidem, p. 438.(28) Ibidem, p. 439.

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o campo do D ireito do Trabalho pode ter por consequência a diluição da figura do patrão(29), que é definido, segundo o mesmo Nestor de Buen, como “quien puede dirigir la actividad laboral de un tercero, que trabaja em su beneficio, mediante retribución”(30).

Camerlink, em obra publicada em 1968, chega mesmo a dizer que a preocupação de estender o conceito de trabalhador foi uma preocupação do passado justificada pela intenção de aplicar uma maior proteção social a indivíduos vulneráveis. Esta preocupação, no entanto, resultou na ampliação do conceito de trabalhador para efeito de vinculação à Previdência Social, não se mostrando como própria para fins de aplicação do Direito do Trabalho. Assim se pronuncia o citado autor: “Concernant le droit du travail, pareille conception extensive, surtout justifié à l’époque par le souci de faire beneficier des dispositions protectrices du droit social la catégorie des travailleurs à domicile encore non protégée, a été finalement rejetée par la jurisprudence approuvée par la doctrine contemporaine. Le critère élargi de l’article 241, propre à la Sécurité sociale, par suite des préoccupations particulières qui l’inspirent, ne saurait en principe être transposé en notre matière”(31).

Guillermo Cabanelas de Torres(32), por sua vez, esclarecendo, inicialmente, que trabalhador é toda pessoa que “realiza un labor socialmente útil y de contenido económico”, destaca a diferença existente entre trabalhador “independente” e trabalhador “dependente” ou subordinado. Na visão de Cabanelas, o trabalhador dependente é aquele que realiza uma atividade econômico- -social por sua iniciativa, por sua conta e segundo normas que ele mesmo estipula, conforme sua conveniência o os imperativos das circunstâncias, enquanto que o trabalhador dependente é o que executa uma tarefa ou presta um serviço com sujeição a outra pessoa, voluntária ou forçadamente, contra um salário ou meio de subsistência. Para Cabanelas, “tanto o trabajador dependiente como el independiente pueden ser sujetos del Derecho Laboral; pero sólo el trabajador subordinado se rige por una contrato laboral”(33). Nestes termos, o trabalhador característico, do ponto de vista laboral, é o sujeito de um contrato de trabalho(34).

Mozart Victor Russomano, em sua obra O empregado e o empregador, de 1978(35), deixava claro que “há distinções profundas entre relação de emprego e relação de trabalho, pois elas constituem dois vínculos jurídicos nitidamente distintos”, deixando claro que “em todas as fases históricas por que passou a humanidade, sempre encontramos o grupo social dividido entre os que trabalham e os que utilizam o trabalho de seus semelhantes”.

A relação de emprego é a expressão jurídica que traduz uma das fases da evolução da exploração do trabalho alheio: o trabalho assalariado. Também o dado distintivo deste tipo de relação de trabalho das demais sofreu evolução. Na época, segundo Russomano, havia quatro teorias a explicar qual o sentido daquilo que considerava o “ponto nevrálgico” da relação de emprego: a dependência: a) dependência econômica; b) dependência técnica; c) dependência pessoal, subordinação jurídica ou dependência hierárquica; e d) dependência social, teorias estas que surgiram, exatamente, em razão da constatação de que o critério da dependência econômica demonstrava-se insuficiente para a identificação da relação de emprego. Conclui, no entanto, Russomano, que “o traço que define a relação de emprego é a sujeição hierárquica em que se coloca o obreiro diante do empresário, na vigência do contrato individual do trabalho”(36).

(29) Ibidem, p. 438.(30) Ibidem, p. 453.(31) Traité de droit du travail – contrat de travail. Paris: Dalloz, p. 54.(32) Compendio de derecho laboral. Buenos Aires: Heliasta, 1992. p. 320.(33) Ibidem, p. 324.(34) Ibidem, p. 324.(35) O empregado e o empregador. São Paulo: LTr, 1978. p. 88.(36) Op. cit., p. 92 a 94.

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Da mesma forma, Orlando Gomes e Elson Gottschalk, em 1981, enfrentavam a questão, nos seguintes termos: “O interesse de distinguir o contrato de trabalho dos demais contratos de atividade é tanto maior, atualmente, quanto se sabe que o Direito do Trabalho somente protege os empregados, isto é, os sujeitos de um contrato de trabalho. Os que trabalham por obrigação decorrente de empreitada, sociedade, mandato, parceria ou comissão mercantil, não desfrutam das prerrogativas outorgadas por esta legislação. Isto não significa, como pondera Mario de La Cueva, que o trabalho, em todas as suas formas, não deva ser objeto de proteção, mas, apenas, que está obrigado a distinguir e a outorgar, consequentemente, a proteção que cada qual exija”(37).

Após apresentarem os fundamentos das mesmas teorias lembradas por Russomano, concluem no mesmo sentido, ou seja, apontando a subordinação jurídica ou hierárquica como critério definidor(38).

José Martins Catharino, na 2ª edição de seu livro, Contrato de Emprego, publicada em 1965, também já explicava que a teoria da dependência social como critério definidor da relação de emprego surgiu “inspirada na ideia justa e humanitária de estender ao máximo a aplicação das leis do trabalho, principalmente as relativas a acidentes de trabalho”(39).

Relata Martins Catharino que, no Brasil, Oliveira Viana “mostrou simpatia pela dependência social, achando que os conceitos de subordinação e de dependência econômica acabaram reduzindo-se a um único, de dependência social, caracterizador do contrato de trabalho”, visão esta que teria sido expressa em um trabalho publicado em 1937(40).

Como se vê, esteve na base de formação do D ireito do Trabalho esta preocupação quanto a quais seriam os tipos de relação de trabalho que o D ireito do Trabalho deveria atingir, até porque esta questão, a do campo de aplicação do direito, é um problema essencial da identificação de um ramo específico do direito. Mas, como dito acima, neste caminho expansivo, não se perdeu a linha mestra da existência do D ireito do Trabalho que foi a identificação da exploração da força de trabalho para a satisfação do interesse de outrem, interesse este que, conforme qualificação jurídica, deixou de ser, unicamente, o econômico.

Assim, por mais que se queira, mesmo que seja, como diz Catharino, por uma razão humanitária, abranger as leis trabalhistas a todas as relações de trabalho, deve-se ter bem claro o critério que define a relação de emprego, como objeto específico do D ireito do Trabalho, sob pena de o D ireito do Trabalho não se aplicar, por inteiro, a nenhum tipo de relação de trabalho.

Da ampliação teórica resulta, inevitavelmente, a redução do campo de atuação, na realidade, do Direito do Trabalho

Avaliemos, com efeito, a seguinte proposição: se toda relação de trabalho, não importando as suas características, está sujeita às leis trabalhistas, quando se estiver diante de uma relação de trabalho, que hoje consideramos tipicamente como autônoma, vai se acabar dizendo que diversas normas do D ireito do Trabalho não têm como serem aplicadas a tal relação jurídica, em razão das características com que o trabalho é prestado. Este resultado gera ineficácia da legislação trabalhista também quando se estiver diante de uma relação de trabalho que hoje identificamos como relação de emprego, pois a ineficácia das normas já foi posta como uma possibilidade pressuposta. A

(37) Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 172.(38) Op. cit., p. 184.(39) Contrato de emprego. Guanabara: Trabalhistas, 1965. p. 37.(40) Ibidem, p. 38.

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cada relação de trabalho, conforme as suas características individuais, se verá a aplicação de um número impreciso e indeterminado de leis trabalhistas.

Ora, como sempre se concebeu que o campo de aplicação do D ireito do Trabalho é o de uma relação de trabalho específica, a eficácia das normas trabalhistas não é posta em questão. Reconhecida a relação de emprego, todas as leis do trabalho lhe são aplicadas, excetuando-se aquelas que a própria lei, por uma razão justificada — em uma situação ainda mais específica —, exclua, sendo certo, como já dito, que essa própria lei limitadora pode — e deve — ser examinada na perspectiva do controle de constitucionalidade e até mesmo em conformidade com os princípios que norteiam o D ireito do Trabalho. Mas, se qualquer lei trabalhista vale para qualquer relação de trabalho, nas adaptações jurisprudenciais da aplicação das leis ao fato e nas inserções de leis específicas, com restrição de direitos, para certas relações de trabalho, não se terá mais o arcabouço jurídico teórico doutrinário, no que se constitui o Direito do Trabalho, para avaliação dos resultados propostos. Perde-se o argumento jurídico-dogmático (ao qual se integra a noção de princípios) que seria essencial para negar legitimidade às iniciativas precarizantes de parte da legislação assim como de alguns instrumentos coletivos.

Do ângulo positivista, ademais, perde-se a grande coerção normativa que se tem com a constitucionalização dos direitos sociais e com a integração dos princípios ao status de normas jurídicas.

A destruição da base teórica do D ireito do Trabalho, portanto, é o efeito desastroso da aplicação indiscriminada (sem critério preciso) das normas trabalhistas a qualquer relação de trabalho.

O D ireito do Trabalho, lembre-se, não é apenas a atribuição de um valor econômico pelo trabalho prestado (isto o direito civil pode fazer e faz). O D ireito do Trabalho procura impor ao sistema capitalista um retorno de cunho social, transformando a solidariedade em um valor jurídico. Ao mesmo tempo em que organiza o sistema de produção capitalista, viabilizando-o, o D ireito do Trabalho busca humanizar o sistema, estabelecendo as bases de uma almejada justiça social. O D ireito do Trabalho, também, em certa medida, limita a própria vontade do trabalhador, coibindo-lhe a venda da força de trabalho em quaisquer padrões socioeconômicos. Por isto o Direito do Trabalho é um direito social e sua inserção na realidade é uma questão de ordem pública.

Desse modo, é possível verificar, primeiro, que não há nenhuma novidade nesta discussão (da ampliação do D ireito do Trabalho a outras relações de trabalho) e, segundo, que a proposição teórica atual a respeito do assunto, além de se vender como novidade, ainda desconsidera, exatamente, o limite, que no curso expansivo do D ireito do Trabalho, foi mantido como fórmula essencial de sua evolução e sobrevivência: a necessária separação entre trabalhador assalariado e trabalhador autônomo. Foi, ademais, por conta dessa separação que o D ireito do Trabalho pode surgir (consolidar-se) e ampliar o leque de sua aplicação.

Não se trata, portanto, de ser contra a expansão do D ireito do Trabalho para outras relações de trabalho. O que se deve fazer, no entanto, é integrar essas relações ao conceito de relação de emprego, para que se mantenha uma coerência sistêmica normativa e principiológica que é essencial para a eficácia do D ireito do Trabalho.

Neste sentido, ademais, impõe-se observar o relevante papel da jurisprudência na catalogação, como relação de emprego, dos tipos de relação de trabalho que vão surgindo na realidade social.

Como já destacava Camerlink(41), em 1968, a subordinação jurídica em muitas situações é difícil de ser identificada, fazendo menção às “zones frontières” (zonas fronteiriças) entre o

(41) Contrat de travail. Paris: Dalloz, 1968. p. 51.

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trabalho subordinado e o trabalho autônomo. Para a solução desses problemas, Camerlink aponta a importante função da jurisprudência: “Le problème être résolu par le juge en fonction de l’espèce particulière que lui est soumise et par une motivation suffisante permettant à la Cour de cassation d’exercer son contrôle. Doit être cassé le jugement statuant par une décision de principe relative à l’ensemble d’une profession — affirmant en l’espèce que par les conditions d’exercice de leur activité les artistes du spectacle sont nécessairement des travailleurs salariés — au lieu de rechercher et de vérifier l’existence effective d’un lien de subordination caractérisant la convention litigieuse. Aussi suivant les cas titulaires d’une même activité professionnelle seront-ils considérés comme salariés ou au contraire travailleurs indépendants”.

Traduzindo: na perspectiva da jurisprudência, mais importante que fixar, caso a caso, a existência, ou não, do elemento subordinação, para fins de configuração da relação de emprego, cabe criar o modelo jurídico respectivo do tipo profissional, estabelecendo que o exercício de tal ou qual profissão se insere, pelo menos a priori, no contexto de uma relação de emprego, ou não.

Fora assim, ademais, que muitas categorias de trabalhadores, antes afastadas da aplicação do Direito do Trabalho, alcançaram o status de trabalhadores abrangidos pela proteção trabalhista. Nesta linha, por exemplo, a jurisprudência, já na década de 1950, deixou claro que o empregado de condomínios não deveria ser considerado empregado doméstico, mas empregado comum(42); em 1966, dizia que o pedreiro que trabalha na construção de imóvel residencial do reclamado é deste empregado(43); em 1959, dizia que um jardineiro que presta serviços na sede de uma empresa imobiliária é empregado(44); e, em 1963, reconhecendo a competência da Justiça do Trabalho, para julgar o conflito, declarava como empregado, regido pela CLT, o servidor de Ofício de Notas(45).

Isto demonstra como a Justiça do Trabalho pode cumprir grande papel na integração social de diversos trabalhadores (sobretudo nos casos em que esta evolução não se deu completamente: vendedores ambulantes; “chapas” etc.).

Serve, também, para mostrar que para se atingir a meta de consolidar os objetivos do Estado Social é essencial a padronização dos efeitos jurídicos da relação entre o capital e o trabalho. Essa relação se apresenta das formas mais variadas (até como efeito da natural intenção do capital de se ver livre dos efeitos econômicos que o D ireito do Trabalho lhe impõe), mas isto não impede a padronização que, como dito, diz respeito aos efeitos jurídicos.

Portanto, fazer com que o D ireito do Trabalho acompanhe as mudanças, buscando sua aplicação às formas disfarçadas de exploração do trabalho humano, nada tem a ver com a aplicação do D ireito do Trabalho a relações de trabalho verdadeiramente autônomas. Querer aplicar o D ireito do Trabalho a todas as relações de trabalho, para não correr o risco de que uma forma de exploração disfarçada de trabalho consiga desviar-se das normas trabalhistas pode ter uma boa intenção, mas gera o dano gravíssimo de eliminar a identificação da especificidade da relação de trabalho assalariado e subordinado. Dizer que todo o trabalho merece igual proteção é o modo diverso de dizer que não há certo tipo de exploração do trabalho que justifique uma atenção especial. Em suma, todos são explorados pelo sistema, mas, ao mesmo tempo, ninguém é, verdadeiramente, explorado e, consequentemente, não há exploradores.

(42) Vide, neste sentido, a seguinte Ementa: “Empregado de edifício de apartamento. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a qualidade de empregado àqueles que prestam serviços a condomínio como porteiro, zelador ou faxineiro.” (Relator Otávio de Aragão Bulcão, publicado no DJU 24.2.1956, in Revista LTr, n. 224-225, p. 140, abr./maio 1956).(43) TRT, 2ª Reg., 5.114/66, Rel. Juiz Fernando de Oliveira Coutinho, in Revista LTr, n. 32, p. 448, jul./ago. 1968.(44) TRT 1ª Reg. 1.940/59, Rel Juiz César Pires Chaves, in Revista LTr, n. 23, p. 135, jan./fev. 1959.(45) TST RR-3.725-61, Rel. Ministro Luiz Menossi, in Revista LTr, n. 27, p. 309, maio/jun. 1963.

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A presente obra, portanto, insere-se no contexto histórico de ampliação do conceito de relação de emprego, visando ao alargamento da proteção jurídica trabalhista, percurso este, ademais, extremamente necessário, na medida em que o capital, conhecendo os pressupostos jurídicos fixados, tenderá a formalizar modos de exploração de trabalho fora desses mesmos padrões estabelecidos.

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(*) Filho de Jonas — advogado desses que faz rodar a roda — e para com quem o autor sempre terá uma impagável dívida de gratidão, não só pelo fato de ter aprendido com ele a gostar de Direito do Trabalho, mas, mais que isso, por ter recebido no DNA esse sentimento inexplicável em relação àquele time da marginal Tietê, sem número. É juiz federal do trabalho, titular da 18ª Vara do Trabalho de São Paulo e professor de Direito e Processo do Trabalho. Formou-se em Direito (bacharel) em 1986, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde também se tornou especialista em Direito do Trabalho em 1991. Posteriormente, através dessa mesma faculdade, recebeu o título de mestre em Direito do Trabalho, apresentando a dissertação Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos no Processo do Trabalho, em 2000, sendo orientado pelo professor doutor Wagner D. Giglio. Em 2004 foi escolhido como bolsista da Fundação Rotary International e passou dois anos estudando Direito na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia Berkeley, onde recebeu os títulos de Master of Laws — LLM, com a dissertação Globalization, Discrimination and Hope e Juris Scientiae Doctor (sob orientação da professora Mary Louise Frampton) — e JSD, com a tese A Study of Discrimination and Its Possible Remedies in Brazilian Legislation in Comparison with the United States Law (sob orientação do professor David D. Caron). Retornou ao Brasil em 2006, retomando as atividades como juiz do trabalho e como professor. Em 2012 iniciou doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (área de Direito do Trabalho) sob a orientação do professor doutor Homero Batista Mateus da Silva. É autor do livro Manual da Discriminação no Direito do Trabalho, publicado em outubro de 2006, pela LTr e de artigos publicados em revistas especializadas em direito do trabalho. Atua como voluntário de instituições paulistas voltadas para o auxílio e amparo de crianças e outros necessitados, dentre elas o Serviço Social Perseverança e a ONG Amigos do Bem.

ÀS SuAS ordenS! (elA, eleS e eu)

PauLo Sérgio JakutiS(*)

Sumário: 1. A vida como ela é (Introdução); 2. Bonitinha, mas ordinária (A visão estrangeira); 3. Viúva, porém honesta (A ADC n. 16 e o Direito do Trabalho); 4. Perdoa-me por me traíres (A terceirização face à discriminação no emprego); 5. Álbum de família (Conclusões); Obras de referência.

Consideramos que a falácia do argumento do requerente consiste na suposição de que a separação forçada das duas raças estampa na raça de cor uma etiqueta

de inferioridade. Se isso ocorre, não é decorrência de nada que se encontre na Lei, mas somente porque a raça de cor escolhe dar essa interpretação ao diploma. (...)

O argumento também assume que o preconceito social pode ser superado pela legislação e que direitos iguais não podem ser assegurados ao negro se não por uma

obrigatória mescla das duas raças. Nós não podemos aceitar essa proposta. Se as duas raças vão se acertar em termos de igualdade social, isso deve ser resultado de afinidades naturais, mútua apreciação dos méritos uns dos outros e concordância particular dos indivíduos. (...) A legislação não tem força para erradicar instintos

raciais, ou abolir distinções baseadas em diferenças físicas, e a tentativa de fazê- -lo pode somente resultar em acentuar as dificuldades da situação presente. Se os

direitos políticos e civis de ambas as raças são iguais, uma não pode ser inferior à outra civil ou politicamente. Se uma raça é inferior à outra socialmente, a

Constituição dos Estados Unidos não pode colocá-las no mesmo nível.” Justice Brown, manifestando-se pela maioria, em Plessy v. Ferguson (1896).

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“Eu sou da opinião que o Estado de Louisiana é inconsistente com a liberdade pessoal dos cidadãos, branco e preto, no Estado, e hostil ao espírito e letra da

Constituição dos Estados Unidos. Se leis dessa espécie fossem publicadas nos vários Estados da União, o efeito seria altamente pernicioso. A escravidão, como

instituição tolerada pela lei, teria, é verdade, desaparecido do nosso país, mas remanesceria um poder nos Estados, através de legislações sinistras, de interferir

com o pleno gozo das bênçãos da liberdade, regulando direitos civis, comuns a todos os cidadãos, à base da raça, e colocando em uma condição de inferioridade

jurídica uma grande massa de cidadãos norte-americanos, que agora fazem parte da comunidade política, chamada de “Povo dos Estados Unidos,” para quem, e

por quem, através de representantes, o nosso governo é administrado. Tal sistema é incompatível com a garantia dada pela Constituição para cada Estado de uma

forma republicana de governo, e pode ser deposto pelo Congresso, ou pelos tribunais no cumprimento do dever solene que estes têm de manter a lei suprema do país...”

Justice Harlan, única divergência dentre os 9 juízes da Suprema Corte, em Plessy v.

Ferguson (1896).(1)

1. A vida como ela é. (Introdução)

Ela pede licença. Entra na sala, meio sem jeito. Senta na cadeira que indico, em frente à escrivaninha. Noto que, apesar do inusitado da situação, ela está curiosa e, de certa forma, lisonjeada:

— Posso citar o nome de você?

— Claro, doutor, o senhor fique à vontade!

Não consigo evitar a comparação com o outro. Ele desconfiado, ela solícita. Ele fugindo de mim, me evitando nos corredores, desviando das perguntas, sempre dizendo que passaria mais tarde para a entrevista, enquanto ela vem ao meu encontro, sentindo- -se importante e querendo contar coisas que eu não pergunto, sem nem ter certeza da finalidade daquilo tudo.

— O senhor já usou a carteira?

É minha vez de ficar sem jeito. A carteira de trabalho dela está sobre a ponta da mesa que nos separa e ela olha para o documento como quem sabe que ele permaneceu naquele exato lugar, intocado, desde a chegada, naquele mesmo dia, pela manhã.

— Eu vi, sim. Então, aqui foi o seu primeiro emprego em São Paulo, certo?

Enquanto pergunto, fujo daqueles olhos pequenos e espertos, folheando a CTPS de capa vermelha e, depois, abrindo uma tela em branco, no computador que está ao meu lado. Ela não se aborrece e responde afirmativamente. Acresce que quando chegou de

(1) Plessy v. Ferguson foi o caso julgado pela Suprema Corte do EUA, em 1896, que concluiu pela constitucionalidade de uma lei do Estado da Lousiania que obrigava cidadãos brancos e negros a ocuparem lugares diferentes, quando viajando em trens de passageiros. Plessy, que era um americano com traços de um homem branco, era considerado negro, por lei, em razão da ascendência dele. Intentando desafiar o diploma em questão, ocupou lugar no vagão dos brancos e declarou-se negro, motivo pelo qual foi preso e teve o caso julgado por vários tribunais, até que os recursos alcançaram a Suprema Corte. Lá, uma maioria de 8 dos 9 juízes votantes concluiu pela constitucionalidade da lei, consagrando a doutrina jurídica que ficaria conhecida como separate but equal, ou seja, as leis estaduais que determinavam que negros e brancos deveriam viver em mundos apartados (utilizar transportes públicos, escolas, bem como frequentar restaurantes, clubes, etc.), não feriam o princípio da igualdade perante a lei, desde que houvesse estabelecimentos (públicos principalmente) tanto para negros, como para brancos.

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Pernambuco, em 1995, não era ascensorista, como hoje. Começou trabalhando no setor de limpeza:

— Naquele tempo, todos os oito elevadores tinham ascensoristas. Foi doutor Floriano que mudou isso, e só deixou dois com, um em cada torre.

— Quem era o presidente, quando você começou?

— Nossa...já foi tanta gente, né doutor? O senhor lembra?

Não tem como não lembrar, penso. 1995 foi o ano em que eu também comecei a trabalhar, como juiz, no TRT de São Paulo. A diferença é que comecei em abril, ligado diretamente ao tribunal e minha entrevistada em julho, como empregada da LSI, uma empresa terceirizada.

— Umm... doutora Pellegrina, doutor, será?

Mais uma vez a comparação entre ela e o outro me absorve. Tenho certeza que ele seria capaz de declinar todos os presidentes a quem tinha servido café, nos trinta anos de trabalho como garçon, por entre os muitos gabinetes do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Não só os nomes, mas os clubes para os quais cada um deles torcia. É assim, imagino, que se sobrevive tanto tempo, enquanto as terceirizadas passam.

— Você e ele sempre trabalharam para as mesmas terceirizadas?

— Sempre. Quer dizer, ele já tá aqui desde sei lá quando, né doutor? Mas desde que eu comecei, nós sempre trabalhamos para as mesmas empresas e todo o resto do pessoal também. Limpeza, ascensorista, jardineiro, garçon, cozinha... só o pessoal da segurança que é outra empresa...

— A segurança também sempre foi terceirizada?

— Foi. Não. Quer dizer.. tem o pessoal da terceirizada e tem os concursados, que são os agentes...

— Qual a diferença?

— Num sei doutor. Tudo é segurança, né? Mas uns tem concurso...

Na CTPS dela, constam sete empresas terceirizadas que figuram como empregadores: LSI (17.7.1995 a 7.2.2002); Orbral (1º.2.2002 a 8.11.2005); Essencial (1º.11.2005 a 30.10.2007); Patrimonial (1º.11.2008 a 6.5.2008); Exulta (2.5.2008 a 30.6.2011); Núcleo (4.7.2011 a 6.4.2012) e Atival (2.4.2012 até os dias atuais). Como cada presidente do tribunal tem mandato de 2 anos, a média é de quase uma terceirizada por presidente, durante os dezessete anos de trabalho dela.

— Quem foi o melhor presidente, nesse tempo todo?

Essa pergunta, na verdade, eu queria ter feito para ele, embora ele já tivesse antecipado a resposta, numa das nossas conversas, quando ele vinha servir café no gabinete:

— Na minha profissão doutor, a gente vê muita coisa. Mas faz parte dela saber ser discreto. É muito tempo!

Tempo demais, com a água sempre no pescoço. Não é mesmo para qualquer um. Como era o mundo de trinta anos atrás? Ela vai contando uma história longa e eu digito 1981 no Google, fingindo estar atento. Entre as várias opções que aparecem, surge uma linha do tempo. Em janeiro de 1981, Ronald Reagan tornou-se presidente, substituindo

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Jimmy Carter. Os dias que se seguiram foram turbulentos. O chefe da administração americana, pouco tempo depois da posse, em março, levou um tiro na saída de um hotel, em Washington. Em 13 de maio foi a vez do papa João Paulo II tornar-se alvo de um atentado. Dessa vez são três os tiros, mas a vítima, a exemplo da anterior, conseguiu sobreviver. No Brasil as coisas também não iam muito bem. O presidente ainda era um general (Figueiredo)(2) e em 25 de fevereiro daquele ano a Justiça Militar condenava Lula e mais 10 sindicalistas do ABC, com base na Lei de Segurança Nacional, pela greve deflagrada no ano anterior (as penas mais tarde seriam revogadas). Logo depois, em abril, acontecia o que ficou conhecido como atentado do Riocentro. Daqueles dias tumultuados até os dias de hoje, os olhos dele testemunharam muitas mudanças, por trás da fumaça que sobe das pequenas xícaras do café servido às autoridades. Reagans e Buschs, Gorbachevs, Bóris Yeltsins e Putins, muros de Berlim, sonhos de diretas já, seguidos de pesadelos de hospitais de base e Tancredos percorreram a linha do tempo que desfila na minha pequena tela. Olho para ela que se diverte contando alguma coisa sobre o filho pequenino e o marido que não gosta de ir passear no shopping:

— Tô falando muito alto doutor?

Foram caraspintadas, Collors, FHCs e Lulas (agora presidente e não réu) e vieram Dilmas e Obamas. O Brasil perdeu seis copas do mundo e ganhou outras duas. A URSS desmoronou e a inflação brasileira domesticou-se com o plano Real (1994), após derrotar os planos Cruzado (1986), Bresser (1987) e Collor (1990).

Outra história, outra tela. Agora da Justiça do Trabalho brasileira. E aqui também o tempo cobrou seu preço. A Segunda Região, por exemplo, que até julho de 1981 — quando foi criada, pela Lei n. 6.927/81 (de 8.7.1981), a 10ª Região — abarcava Mato Grosso e, até 1986, Campinas, bem como o interior do Estado de São Paulo, hoje está restrita praticamente à Capital e ao litoral do Estado. Embora o território tenha diminuído consideravelmente, o serviço dele, nesses anos todos, aumentou muito. O cafezinho, em 1981, era servido para 27 juízes, entre classistas e togados e agora, em 2012 — embora não mais existam os classistas — são mais de 90 desembargadores. O presidente do TRT/SP era o (depois) ministro Antônio Lamarca, enquanto as máquinas de escrever (mecânicas, não elétricas) confeccionavam quase artesanalmente as atas de audiência, com cópias em papel carbono, para partes e advogados(3). Foram mais de quinze presidentes servidos pelas mãos dele, dentre eles o juiz Nicolau dos Santos Neto (1990/1992), que daria nome ao prédio da Justiça do Trabalho da Barra Funda — projetado e construído para acabar com o martírio de partes e advogados, divididos, até então, entre vários pequenos e precários prédios do centro de São Paulo —, não fosse o fato deste ter perdido a honraria (e até o nome de batismo) ao ganhar as manchetes dos jornais com a alcunha de Lalau, sempre ladeada de cifras milionárias.

Mas essas tantas mudanças nunca alteraram o hábito do brasileiro de tomar café, nem a necessidade de as autoridades serem servidas por garçons e ascensoristas.

— Foram dois anos na limpeza, doutor. Aí, em 97, a encarregada começou a me colocar para cobrir o almoço das ascensoristas e quando uma delas foi mandada embora, ela me chamou pro lugar. E tô aqui, né, assim... Desde aquela época.

(2) João Batista de Oliveira Figueiredo ocupou a presidência entre 1979 a 1985. (3) A OAB/SP contava com cerca de 65.000 inscritos, no ano de 1981 e hoje, como se sabe, são mais de 300.000.

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