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Caso se aplique uma punio aos denunciantes invejosos, esta no ser
seno o efeito da incidncia de uma norma jurdica vlida.
Vale a pena relembrar a lio de Kelsen acerca da diferena entre o
mundo dos fatos, regido pela lgica da causalidade, do ser, e o mundo das
normas, regido pela lgica da imputao, do dever-ser. Os incautos se
previnam de que essa distino no implica na adoo de uma teoria do Direito
positivista. Trata-se de uma distino acerca da lgica por que se d cada um
dos fenmenos distintos, que, no entanto, capaz de explicar o pensamento
jurdico desde o tempo mais remoto ao mais recente.
Na lio de Kelsen, uma norma pode ser descrita na forma se A, ento
deve-ser B. Podemos chamar a proposio A de hiptese normativa e a
proposio B de sano.
Ora, no caso sub judice, a fim de responder questo da punio destes
denominados denunciantes invejosos, deve-se, em verdade, responder
questo: estes denunciantes perfizeram a hiptese normativa de uma norma
jurdica ento vlida cuja sano seja alguma forma de punio?
A clareza com que se disps o problema no se implica na facilidade de
sua resoluo. Impe-se, no entanto, uma argumentao exaustiva para
qualquer que seja o resultado do processo.
Cabe fazer uma explicao salutar. Quando se faz a pergunta o que o
Direito est-se, a toda evidncia, perguntando qual o sentido da palavra
Direito. O direito que ns podemos perceber enquanto prtica social,
consistente em uma srie de rituais simblicos, carece de sentido. Ora, sentido
algo que a sociedade cria, uma imputao que se faz ao real, e s existe
enquanto na mente das pessoas persistir a ideia. Estas ideias acerca do
sentido do direito transparecem na argumentao que se d a fim de legitimar
uma deciso judicial. Uma pessoa que diz que o direita est contido nas
decises judiciais vai argumentar, em uma deciso que tome, a partir de
referncias a decises passadas. Dizer que o direito aquilo que contribui para
o progresso social quer dizer que se legitima uma deciso a partir de
argumentos que indicam que a deciso , de alguma forma, um contributo ao
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progresso social. Adoto a posio de Ronald Dworkin segundo exposta em seu
livro Levando os Direitos a srio neste parecer.
Segundo a teoria do Direito de Dworkin, determinar a validade de uma
norma jurdica uma tarefa impossvel. Dizer que esta deciso correta e
convencer todos os juristas criteriosos da corretude da deciso impossvel.
No entanto, no se discute que h uma deciso correta para cada caso,e
apenas uma.
Em que pese o juiz no estar capacitado a prolatar uma deciso que esteja
perfeitamente conforme ao Direito, deve ele julgar como se realmente fosse
capaz de atingir o Direito.
O seguinte excerto do livro Levando os Direitos a srio corrobora o que
foi dito:
Em minha argumentao. Afirmei que, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter
o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo
nos casos difceis, de descobrir quais so os direitos das partes, e
no de inventar novos direitos retroativamente, J devo adiantar,
porm, que essa teoria no pressupe a existncia de nenhum
procedimento. Mecnico para demonstrar quais so os direitos das
partes nos casos difceis. Ao contrrio, o argumento pressupe que
os juristas e juzes sensatos iro divergir frequentemente sobre os
direitos jurdicos, assim como os cidados e os homens de Estado
divergem sobre os direitos polticos. Este captulo descreve as
questes que os juzes e juristas tm que enfrentar, mas no garante
que todos eles dem a mesma resposta a essas questes. (R.
Dworkin, Levando os direitos a srio, p.127-128)
Prossegue Dworkin sugerindo que h argumentos de poltica e
argumentos de princpio. Os argumentos de poltica justificam uma deciso
poltica, mostrando que a deciso fomenta ou protege algum objetivo coletivo
da comunidade como um todo. (p.129) Exemplo deste tipo de argumento a
favor da deciso de reduzir os tributos das microempresas por que esta
reduo melhor para a economia nacional. Os argumentos de princpio
justificam uma deciso poltica, mostrando que a deciso respeita ou garante
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um direito de um indivduo ou de um grupo. (p.129) Exemplo de argumento de
princpio, fornecido por Dworkin, o em favor das leis contra a discriminao,
de que uma minoria tem direito igualdade de considerao e respeito.
Dworkin sugere que toda deciso judicial deve ser fundada em
argumentos de princpio e nunca em argumentos de poltica.
Prossegue Dworkin definindo o que sejam princpios (no argumentos
de princpio) e polticas (no argumentos de poltica). Os princpios so
proposies que descrevem direitos; as polticas so proposies que
descrevem objetivos. (p.141)
Proposies, a fim de esclarecer exausto a tese de Dworkin, so
afirmativas. Toby um cachorro uma proposio. Quando um determinado
sujeito comunica a outro uma proposio o receptor da mensagem pode dar
proposio um determinado valor, quer a tome como verdadeira, ou outro valor
oposto, quer a tome como falsa. Uma criana, qual se apresenta pela
primeira vez a um gato, pode enunciar que cachorro diferente, que traz em
verdade duas proposies: Isto um cachorro e Este cachorro diferente
dos outros que eu j vi. Seus pais rapidamente a corrigem: Isto no um
cachorro, um gato. Ora, pode-se dizer que, antes de aprender que existem
gatos e cachorros, que so espcies distintas (no sentido de que algo pode ser
um cachorro ou um gato, mas jamais ser os dois ao mesmo tempo) e que
aquilo que ela vira um gato, na teoria da criana, s havia cachorros e que
aquilo que vira um cachorro, apesar de diferente. Os pais, por sua vez, detm
outra teoria interna, qual seja, a de que h cachorros e gatos e aquilo que
viram um gato. Uma teoria, por sua vez, um conjunto de proposies a
partir das quais, por um processo de raciocnio, pode-se valorar uma
proposio como sendo verdadeira ou falsa.
Os comentrio anteriores podem parecer destitudos de relevncia para
a anlise que se faz sobre a Teoria do Direito de Dworkin, mas essencial
para que as dvidas que porventura surjam restem frustradas. Pois bem,
Dworkin define princpios como proposies que descrevem direitos e polticas
como proposies que descrevem objetivos. Esta , note-se, uma definio
formal, uma vez que no acrescenta novas informaes. Na verdade, direitos e
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objetivos exercem suas funo apenas quando inseridos no mbito de uma
teoria poltica individualizada. A mesma expresso poderia descrever uma
direito no mbito de uma teoria, e uma meta no mbito de outra, ou um direito
que absoluto ou poderoso no mbito de uma teoria, mas relativamente fraco
no mbito de outra. (p.145)
Prossegue Dworkin sustentando que, alm dos juzes terem o dever de
decidir com base em direitos, estes direitos nos quais os juzes se baseiam
devem ser institucionais, e no preferenciais, e, ademais, devem ser direitos
jurdicos e no outros tipos de direitos institucionais.
A necessidade de que os direitos sejam institucionais restringe os
argumentos que um juiz pode utilizar. Direitos institucionais so direitos
inseridos em determinada instituio e que devem refletir a finalidade da
instituio, num sentido Aristotlico, pois a finalidade um reflexo da natureza
da instituio. Dworkin, a partir de um hipottico caso difcil de xadrez diz:
Uma vez estabelecida uma instituio autnoma, de tal modo que seus participantes tenham direitos institucionais de acordo
com regras precisas, prprias a essa instituio, podem surgir casos
difceis que, por definio, se supe tenham uma regra - lembrar que
Dworkin sustenta que sempre h uma nica regra para cada caso.
[...] A proposio de que existe uma resposta certa[...] no significa
que as regras do xadrez sejam exaustivas e no ambgua; na
verdade, trata-se de uma completa afirmao sobre as
responsabilidades dos rbitros e dos participantes. [...] Poderamos
dizer que o caso difcil coloca uma questo de teoria poltica. A
questo : o que razovel supor que os jogadores fazem quando
consentem com a regra da aplicao da penalidade? O conceito de
natureza do jogo um artifcio conceitual que serve para articular
essa questo. um conceito contestado, que internaliza a justificao
geral da instituio de maneira a torn-la utilizvel para a formulao
de distines na esfera da prpria instituio. Tal conceito supe que
um jogador concorda no apenas com um conjunto de regras, mas
com um empreendimento que, podemos dizer, tem um carter
prprio. Assim, quando se coloca a questo com o que ele
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consentiu ao dar seu consentimento? a resposta pode examinar o
empreendimento como um todo, e no apenas como regras (p.163)
A instituio cuja natureza deve permear a argumentao da nossa
deciso a nossa Democracia e o que comumente se reconhece como
pertinente ao Direito. Apesar de no vivermos nos Estados Unidos, de onde
escreve Dworkin, nossas tradies jurdicas no so substancialmente
diferentes. Temos uma Constituio a que aceitamos como baliza fundamental
do nosso Direito; temos algumas leis votadas por nossa Assembleia Nacional
s quais devemos respeitar, reconhece-se tambm a influncia dos
precedentes judiciais e, em geral, sabemos que mudanas de entendimento do
Judicirio no podem ser to frequentes a ponto de se chegar a um momento
no qual impera a incerteza jurdica.
A Constituio e os principais diplomas legais permaneceram, neste
regime do qual samos, em vigor. No foram tomadas quaisquer providncias
no sentido de revogar ou reformar esta legislao.
O entendimento de nossos juzes e tribunais, no entanto, foram
radicalmente alterados. Basta verificar que algumas denncias de fatos
absolutamente banais, como a denuncia de se escutar estaes de rdio
estrangeiras, foram apenadas com a sentena capital a partir de interpretaes
perniciosas do Cdigo Penal. Estas interpretaes, de conhecimento de
todos, foram decorrncia da implacvel perseguio aos juzes que no
correspondessem aos interesses dos Camisas Prpuras.
Denncia consiste no ato de denunciar, acusar, revelar, delatar. Quem
denuncia, denuncia algo a algum. No que se refere denncia
institucionalizada em nosso sistema poltico, aquilo que se denuncia algo
ilcito. A denncia apresentada a um funcionrio estatal a fim de que este
tome providncias no sentido de conter a ilicitude denunciada e retomar a
normalidade.
Parece-me que a finalidade da denuncia justamente a de conter a
ilicitude. O denunciante, movido pela percepo de uma agresso que aflige os
sentimentos sociais mais profundos, age, denuncia, movimenta o aparelho
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estatal, que deve averiguar e contar a agresso. Se um habitante de um prdio
escuta gritos, improprios e agresses vindos do andar superior, ele
imediatamente liga para a polcia e denuncia o que acredita ser um ato ilcito. O
propsito deste cidado me parece ser no o de ver punido o possvel agressor
por razes pessoais, mas o de por um fim possvel agresso e resguardar a
integridade do agredido.
Os denunciantes invejosos so aquelas pessoas que denunciaram
inimigos pessoais em razo de inveja. Conhecedores da interpretao que
ento se dava nossa Lei Penal, estes denunciantes utilizaram o aparelho
estatal para vinganas pessoais.
O objeto das denncias invejosas, aquilo que foi denunciado, foram fatos
que s se pode conceber como ilcitos num Estado de maior exceo, como de
fato foi este que felizmente deixamos para trs. Apesar de se ter reconhecido
os fatos como ilcitos, no posso concordar com esta posio. Estas decises,
reitere-se, foram fruto de interpretaes perniciosas, uma vez que os juzes
temiam perseguies. Tais decises no apresentam qualquer conjunto
coerente de princpios e esto em franca dissonncia com os princpios que
vinham sendo reconhecidos por nosso histria institucional anterior. Uma teoria
que justifique com coerncia estas decises no pode, em meu pensar, ser
desenvolvida. Tal teoria envolveria necessariamente posies arbitrrias. Por
estes motivos, entendo que estas decises so erros, equvocos histricos de
nosso Judicirio. Ademais, estes erros so insuscetveis de correo, portanto
minha argumentao no confere qualquer fora de influncia a estas
decises.
A finalidade da instituio que a denuncia foi evidentemente deturpada com
base em decises erradas. Dizer que os denunciantes tinham o direito de ver
cumpridas as determinaes daquele governo uma afirmao incorreta,
porquanto a justificao daquelas decises era o desejo de no ser perseguido
politicamente, por parte dos juzes. Percebe-se que esta fundamentao no
baseada em argumentos de princpio e sequer em argumentos de poltica, mas
sim em caprichos pessoais, em medo, que, em que pese seja um medo
fundado, no da ao juiz o direito de decidir daquela forma. Como disse
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Dworkin: Se permitirmos que a especulao fundamente a justificao de uma
emergncia ou de uma vantagem definitiva, mais uma vez teremos aniquilado
os direito. (p.300)
A finalidade das denuncias realizadas de maneira invejosa, como visto,
era a de ver um inimigo ser punido com a pena de morte. O dolo de matar
exsurge cristalinamente em minha percepo. Aqueles que praticam homicdio,
ou seja, matar algum, devem sofrer uma punio, prevista em nosso Cdigo
Penal, no alterado e ainda em pleno vigor. Os princpios de nossa histria
institucional so claros no sentido de que aquele que pratica condutas
criminosas deve sofrer uma sano penal prevista em lei. Aplicando este
princpio no caso de cada denunciante, reconhecendo que a norma que probe
o homicdio estava em vigor e que a conduta de denunciar algum
invejosamente se confunde com a conduta de homicdio, v-se que a hiptese
normativa da norma proibitiva foi perfeita. A sano penal do crime de
homicdio deve ser imposta aos denunciantes invejosos.
Vale tambm diferenciar duas situaes. No primeiro caso temos os
denunciantes invejosos que desvirtuaram o instituto da denuncia para a prtica
homicida, conforme argumentado nos pargrafos anteriores, cabendo ento
sano penal. J na segunda situao temos pessoas que fizeram as
denuncias no com a finalidade de se livrar dos denunciados, mas para a
prpria proteo contra aes e suspeitas do partido. A estas no cabe a
sano penal, uma vez que no podemos exigir o sacrifcio da vida em funo
de outra pessoa, princpio este revelado pelo instituto penal do estado de
necessidade. Acredito que a situao dos juzes se enquadre no segundo caso.
Embora o juiz possua deveres institucionais para com o direito e a sociedade,
no podemos deles exigir, da mesma forma, que desafiassem o partido tirano e
violento dos Camisas-Prpuras na formulao de suas sentenas.
Devemos analisar com cuidado cada caso para que possamos identificar
e punir apenas aqueles a quem cabe esta punio, e assim deixar para trs
esta amarga pagina de nossa histria e comearmos a pensar na construo e
desenvolvimento desta bela nao em que vivemos.