trabalho filosofia

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Caso se aplique uma punição aos denunciantes invejosos, esta não será senão o efeito da incidência de uma norma jurídica válida. Vale a pena relembrar a lição de Kelsen acerca da diferença entre o mundo dos fatos, regido pela lógica da causalidade, do ser, e o mundo das normas, regido pela lógica da imputação, do dever-ser. Os incautos se previnam de que essa distinção não implica na adoção de uma teoria do Direito positivista. Trata-se de uma distinção acerca da lógica por que se dá cada um dos fenômenos distintos, que, no entanto, é capaz de explicar o pensamento jurídico desde o tempo mais remoto ao mais recente. Na lição de Kelsen, uma norma pode ser descrita na forma “se A, então deve-ser B”. Podemos chamar a proposição A de hipótese normativa e a proposição B de sanção. Ora, no caso sub judice, a fim de responder à questão da punição destes denominados denunciantes invejosos, deve-se, em verdade, responder à questão: estes denunciantes perfizeram a hipótese normativa de uma norma jurídica então válida cuja sanção seja alguma forma de punição? A clareza com que se dispôs o problema não se implica na facilidade de sua resolução. Impõe-se, no entanto, uma argumentação exaustiva para qualquer que seja o resultado do processo. Cabe fazer uma explicação salutar. Quando se faz a pergunta “o que é o Direito” está-se, a toda evidência, perguntando qual o sentido da palavra Direito. O direito que nós podemos perceber enquanto prática social, consistente em uma série de rituais simbólicos, carece de sentido. Ora, sentido é algo que a sociedade cria, é uma imputação que se faz ao real, e só existe enquanto na mente das pessoas persistir a ideia. Estas ideias acerca do sentido do direito transparecem na argumentação que se dá a fim de legitimar uma decisão judicial. Uma pessoa que diz que o direita está contido nas decisões judiciais vai argumentar, em uma decisão que tome, a partir de referências a decisões passadas. Dizer que o direito é aquilo que contribui para o progresso social quer dizer que se legitima uma decisão a partir de argumentos que indicam que a decisão é, de alguma forma, um contributo ao

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  • Caso se aplique uma punio aos denunciantes invejosos, esta no ser

    seno o efeito da incidncia de uma norma jurdica vlida.

    Vale a pena relembrar a lio de Kelsen acerca da diferena entre o

    mundo dos fatos, regido pela lgica da causalidade, do ser, e o mundo das

    normas, regido pela lgica da imputao, do dever-ser. Os incautos se

    previnam de que essa distino no implica na adoo de uma teoria do Direito

    positivista. Trata-se de uma distino acerca da lgica por que se d cada um

    dos fenmenos distintos, que, no entanto, capaz de explicar o pensamento

    jurdico desde o tempo mais remoto ao mais recente.

    Na lio de Kelsen, uma norma pode ser descrita na forma se A, ento

    deve-ser B. Podemos chamar a proposio A de hiptese normativa e a

    proposio B de sano.

    Ora, no caso sub judice, a fim de responder questo da punio destes

    denominados denunciantes invejosos, deve-se, em verdade, responder

    questo: estes denunciantes perfizeram a hiptese normativa de uma norma

    jurdica ento vlida cuja sano seja alguma forma de punio?

    A clareza com que se disps o problema no se implica na facilidade de

    sua resoluo. Impe-se, no entanto, uma argumentao exaustiva para

    qualquer que seja o resultado do processo.

    Cabe fazer uma explicao salutar. Quando se faz a pergunta o que o

    Direito est-se, a toda evidncia, perguntando qual o sentido da palavra

    Direito. O direito que ns podemos perceber enquanto prtica social,

    consistente em uma srie de rituais simblicos, carece de sentido. Ora, sentido

    algo que a sociedade cria, uma imputao que se faz ao real, e s existe

    enquanto na mente das pessoas persistir a ideia. Estas ideias acerca do

    sentido do direito transparecem na argumentao que se d a fim de legitimar

    uma deciso judicial. Uma pessoa que diz que o direita est contido nas

    decises judiciais vai argumentar, em uma deciso que tome, a partir de

    referncias a decises passadas. Dizer que o direito aquilo que contribui para

    o progresso social quer dizer que se legitima uma deciso a partir de

    argumentos que indicam que a deciso , de alguma forma, um contributo ao

  • progresso social. Adoto a posio de Ronald Dworkin segundo exposta em seu

    livro Levando os Direitos a srio neste parecer.

    Segundo a teoria do Direito de Dworkin, determinar a validade de uma

    norma jurdica uma tarefa impossvel. Dizer que esta deciso correta e

    convencer todos os juristas criteriosos da corretude da deciso impossvel.

    No entanto, no se discute que h uma deciso correta para cada caso,e

    apenas uma.

    Em que pese o juiz no estar capacitado a prolatar uma deciso que esteja

    perfeitamente conforme ao Direito, deve ele julgar como se realmente fosse

    capaz de atingir o Direito.

    O seguinte excerto do livro Levando os Direitos a srio corrobora o que

    foi dito:

    Em minha argumentao. Afirmei que, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter

    o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo

    nos casos difceis, de descobrir quais so os direitos das partes, e

    no de inventar novos direitos retroativamente, J devo adiantar,

    porm, que essa teoria no pressupe a existncia de nenhum

    procedimento. Mecnico para demonstrar quais so os direitos das

    partes nos casos difceis. Ao contrrio, o argumento pressupe que

    os juristas e juzes sensatos iro divergir frequentemente sobre os

    direitos jurdicos, assim como os cidados e os homens de Estado

    divergem sobre os direitos polticos. Este captulo descreve as

    questes que os juzes e juristas tm que enfrentar, mas no garante

    que todos eles dem a mesma resposta a essas questes. (R.

    Dworkin, Levando os direitos a srio, p.127-128)

    Prossegue Dworkin sugerindo que h argumentos de poltica e

    argumentos de princpio. Os argumentos de poltica justificam uma deciso

    poltica, mostrando que a deciso fomenta ou protege algum objetivo coletivo

    da comunidade como um todo. (p.129) Exemplo deste tipo de argumento a

    favor da deciso de reduzir os tributos das microempresas por que esta

    reduo melhor para a economia nacional. Os argumentos de princpio

    justificam uma deciso poltica, mostrando que a deciso respeita ou garante

  • um direito de um indivduo ou de um grupo. (p.129) Exemplo de argumento de

    princpio, fornecido por Dworkin, o em favor das leis contra a discriminao,

    de que uma minoria tem direito igualdade de considerao e respeito.

    Dworkin sugere que toda deciso judicial deve ser fundada em

    argumentos de princpio e nunca em argumentos de poltica.

    Prossegue Dworkin definindo o que sejam princpios (no argumentos

    de princpio) e polticas (no argumentos de poltica). Os princpios so

    proposies que descrevem direitos; as polticas so proposies que

    descrevem objetivos. (p.141)

    Proposies, a fim de esclarecer exausto a tese de Dworkin, so

    afirmativas. Toby um cachorro uma proposio. Quando um determinado

    sujeito comunica a outro uma proposio o receptor da mensagem pode dar

    proposio um determinado valor, quer a tome como verdadeira, ou outro valor

    oposto, quer a tome como falsa. Uma criana, qual se apresenta pela

    primeira vez a um gato, pode enunciar que cachorro diferente, que traz em

    verdade duas proposies: Isto um cachorro e Este cachorro diferente

    dos outros que eu j vi. Seus pais rapidamente a corrigem: Isto no um

    cachorro, um gato. Ora, pode-se dizer que, antes de aprender que existem

    gatos e cachorros, que so espcies distintas (no sentido de que algo pode ser

    um cachorro ou um gato, mas jamais ser os dois ao mesmo tempo) e que

    aquilo que ela vira um gato, na teoria da criana, s havia cachorros e que

    aquilo que vira um cachorro, apesar de diferente. Os pais, por sua vez, detm

    outra teoria interna, qual seja, a de que h cachorros e gatos e aquilo que

    viram um gato. Uma teoria, por sua vez, um conjunto de proposies a

    partir das quais, por um processo de raciocnio, pode-se valorar uma

    proposio como sendo verdadeira ou falsa.

    Os comentrio anteriores podem parecer destitudos de relevncia para

    a anlise que se faz sobre a Teoria do Direito de Dworkin, mas essencial

    para que as dvidas que porventura surjam restem frustradas. Pois bem,

    Dworkin define princpios como proposies que descrevem direitos e polticas

    como proposies que descrevem objetivos. Esta , note-se, uma definio

    formal, uma vez que no acrescenta novas informaes. Na verdade, direitos e

  • objetivos exercem suas funo apenas quando inseridos no mbito de uma

    teoria poltica individualizada. A mesma expresso poderia descrever uma

    direito no mbito de uma teoria, e uma meta no mbito de outra, ou um direito

    que absoluto ou poderoso no mbito de uma teoria, mas relativamente fraco

    no mbito de outra. (p.145)

    Prossegue Dworkin sustentando que, alm dos juzes terem o dever de

    decidir com base em direitos, estes direitos nos quais os juzes se baseiam

    devem ser institucionais, e no preferenciais, e, ademais, devem ser direitos

    jurdicos e no outros tipos de direitos institucionais.

    A necessidade de que os direitos sejam institucionais restringe os

    argumentos que um juiz pode utilizar. Direitos institucionais so direitos

    inseridos em determinada instituio e que devem refletir a finalidade da

    instituio, num sentido Aristotlico, pois a finalidade um reflexo da natureza

    da instituio. Dworkin, a partir de um hipottico caso difcil de xadrez diz:

    Uma vez estabelecida uma instituio autnoma, de tal modo que seus participantes tenham direitos institucionais de acordo

    com regras precisas, prprias a essa instituio, podem surgir casos

    difceis que, por definio, se supe tenham uma regra - lembrar que

    Dworkin sustenta que sempre h uma nica regra para cada caso.

    [...] A proposio de que existe uma resposta certa[...] no significa

    que as regras do xadrez sejam exaustivas e no ambgua; na

    verdade, trata-se de uma completa afirmao sobre as

    responsabilidades dos rbitros e dos participantes. [...] Poderamos

    dizer que o caso difcil coloca uma questo de teoria poltica. A

    questo : o que razovel supor que os jogadores fazem quando

    consentem com a regra da aplicao da penalidade? O conceito de

    natureza do jogo um artifcio conceitual que serve para articular

    essa questo. um conceito contestado, que internaliza a justificao

    geral da instituio de maneira a torn-la utilizvel para a formulao

    de distines na esfera da prpria instituio. Tal conceito supe que

    um jogador concorda no apenas com um conjunto de regras, mas

    com um empreendimento que, podemos dizer, tem um carter

    prprio. Assim, quando se coloca a questo com o que ele

  • consentiu ao dar seu consentimento? a resposta pode examinar o

    empreendimento como um todo, e no apenas como regras (p.163)

    A instituio cuja natureza deve permear a argumentao da nossa

    deciso a nossa Democracia e o que comumente se reconhece como

    pertinente ao Direito. Apesar de no vivermos nos Estados Unidos, de onde

    escreve Dworkin, nossas tradies jurdicas no so substancialmente

    diferentes. Temos uma Constituio a que aceitamos como baliza fundamental

    do nosso Direito; temos algumas leis votadas por nossa Assembleia Nacional

    s quais devemos respeitar, reconhece-se tambm a influncia dos

    precedentes judiciais e, em geral, sabemos que mudanas de entendimento do

    Judicirio no podem ser to frequentes a ponto de se chegar a um momento

    no qual impera a incerteza jurdica.

    A Constituio e os principais diplomas legais permaneceram, neste

    regime do qual samos, em vigor. No foram tomadas quaisquer providncias

    no sentido de revogar ou reformar esta legislao.

    O entendimento de nossos juzes e tribunais, no entanto, foram

    radicalmente alterados. Basta verificar que algumas denncias de fatos

    absolutamente banais, como a denuncia de se escutar estaes de rdio

    estrangeiras, foram apenadas com a sentena capital a partir de interpretaes

    perniciosas do Cdigo Penal. Estas interpretaes, de conhecimento de

    todos, foram decorrncia da implacvel perseguio aos juzes que no

    correspondessem aos interesses dos Camisas Prpuras.

    Denncia consiste no ato de denunciar, acusar, revelar, delatar. Quem

    denuncia, denuncia algo a algum. No que se refere denncia

    institucionalizada em nosso sistema poltico, aquilo que se denuncia algo

    ilcito. A denncia apresentada a um funcionrio estatal a fim de que este

    tome providncias no sentido de conter a ilicitude denunciada e retomar a

    normalidade.

    Parece-me que a finalidade da denuncia justamente a de conter a

    ilicitude. O denunciante, movido pela percepo de uma agresso que aflige os

    sentimentos sociais mais profundos, age, denuncia, movimenta o aparelho

  • estatal, que deve averiguar e contar a agresso. Se um habitante de um prdio

    escuta gritos, improprios e agresses vindos do andar superior, ele

    imediatamente liga para a polcia e denuncia o que acredita ser um ato ilcito. O

    propsito deste cidado me parece ser no o de ver punido o possvel agressor

    por razes pessoais, mas o de por um fim possvel agresso e resguardar a

    integridade do agredido.

    Os denunciantes invejosos so aquelas pessoas que denunciaram

    inimigos pessoais em razo de inveja. Conhecedores da interpretao que

    ento se dava nossa Lei Penal, estes denunciantes utilizaram o aparelho

    estatal para vinganas pessoais.

    O objeto das denncias invejosas, aquilo que foi denunciado, foram fatos

    que s se pode conceber como ilcitos num Estado de maior exceo, como de

    fato foi este que felizmente deixamos para trs. Apesar de se ter reconhecido

    os fatos como ilcitos, no posso concordar com esta posio. Estas decises,

    reitere-se, foram fruto de interpretaes perniciosas, uma vez que os juzes

    temiam perseguies. Tais decises no apresentam qualquer conjunto

    coerente de princpios e esto em franca dissonncia com os princpios que

    vinham sendo reconhecidos por nosso histria institucional anterior. Uma teoria

    que justifique com coerncia estas decises no pode, em meu pensar, ser

    desenvolvida. Tal teoria envolveria necessariamente posies arbitrrias. Por

    estes motivos, entendo que estas decises so erros, equvocos histricos de

    nosso Judicirio. Ademais, estes erros so insuscetveis de correo, portanto

    minha argumentao no confere qualquer fora de influncia a estas

    decises.

    A finalidade da instituio que a denuncia foi evidentemente deturpada com

    base em decises erradas. Dizer que os denunciantes tinham o direito de ver

    cumpridas as determinaes daquele governo uma afirmao incorreta,

    porquanto a justificao daquelas decises era o desejo de no ser perseguido

    politicamente, por parte dos juzes. Percebe-se que esta fundamentao no

    baseada em argumentos de princpio e sequer em argumentos de poltica, mas

    sim em caprichos pessoais, em medo, que, em que pese seja um medo

    fundado, no da ao juiz o direito de decidir daquela forma. Como disse

  • Dworkin: Se permitirmos que a especulao fundamente a justificao de uma

    emergncia ou de uma vantagem definitiva, mais uma vez teremos aniquilado

    os direito. (p.300)

    A finalidade das denuncias realizadas de maneira invejosa, como visto,

    era a de ver um inimigo ser punido com a pena de morte. O dolo de matar

    exsurge cristalinamente em minha percepo. Aqueles que praticam homicdio,

    ou seja, matar algum, devem sofrer uma punio, prevista em nosso Cdigo

    Penal, no alterado e ainda em pleno vigor. Os princpios de nossa histria

    institucional so claros no sentido de que aquele que pratica condutas

    criminosas deve sofrer uma sano penal prevista em lei. Aplicando este

    princpio no caso de cada denunciante, reconhecendo que a norma que probe

    o homicdio estava em vigor e que a conduta de denunciar algum

    invejosamente se confunde com a conduta de homicdio, v-se que a hiptese

    normativa da norma proibitiva foi perfeita. A sano penal do crime de

    homicdio deve ser imposta aos denunciantes invejosos.

    Vale tambm diferenciar duas situaes. No primeiro caso temos os

    denunciantes invejosos que desvirtuaram o instituto da denuncia para a prtica

    homicida, conforme argumentado nos pargrafos anteriores, cabendo ento

    sano penal. J na segunda situao temos pessoas que fizeram as

    denuncias no com a finalidade de se livrar dos denunciados, mas para a

    prpria proteo contra aes e suspeitas do partido. A estas no cabe a

    sano penal, uma vez que no podemos exigir o sacrifcio da vida em funo

    de outra pessoa, princpio este revelado pelo instituto penal do estado de

    necessidade. Acredito que a situao dos juzes se enquadre no segundo caso.

    Embora o juiz possua deveres institucionais para com o direito e a sociedade,

    no podemos deles exigir, da mesma forma, que desafiassem o partido tirano e

    violento dos Camisas-Prpuras na formulao de suas sentenas.

    Devemos analisar com cuidado cada caso para que possamos identificar

    e punir apenas aqueles a quem cabe esta punio, e assim deixar para trs

    esta amarga pagina de nossa histria e comearmos a pensar na construo e

    desenvolvimento desta bela nao em que vivemos.