trabalho, educaÇÃo e ideologia

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TRABALHO E FORMAÇÃO HUMANA Prof. Dr. Marcos Cassin Introdução Nesse texto buscaremos defender que não existe uma formação humana universal na busca da essência humana universal, mas uma formação humana histórica determinada pelos diferentes períodos do desenvolvimento das sociedades: que nas sociedades de classes, a concepção de humano é definida pela classe dominante que organiza o trabalho e o Estado, na sua concepção ampliada, para atender os interesses desta classe. Para isso fazemos um percurso partindo do aparecimento do homem e tomando a organização do trabalho como definidora da condição humana historicamente determinada, depois expomos o trabalho e a educação na sociedade primitiva enquanto sociedade sem classes. Em seguida tratamos da organização do trabalho nas sociedades de classes, escravismo, feudalismo e capitalismo e como essa organização determina formas diferentes de conceber a educação na perspectiva do interesse de classe. Por último o texto se reporta à reestruturação Professor de Sociologia da Educação da Faculdade de Filosofia ,Ciências e Letras - Universidade de São Paulo – campus Ribeirão Preto. E-mail [email protected] .

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Page 1: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

TRABALHO E FORMAÇÃO HUMANA

Prof. Dr. Marcos Cassin

Introdução

Nesse texto buscaremos defender que não existe uma formação humana

universal na busca da essência humana universal, mas uma formação humana histórica

determinada pelos diferentes períodos do desenvolvimento das sociedades: que nas

sociedades de classes, a concepção de humano é definida pela classe dominante que

organiza o trabalho e o Estado, na sua concepção ampliada, para atender os interesses

desta classe.

Para isso fazemos um percurso partindo do aparecimento do homem e

tomando a organização do trabalho como definidora da condição humana

historicamente determinada, depois expomos o trabalho e a educação na sociedade

primitiva enquanto sociedade sem classes. Em seguida tratamos da organização do

trabalho nas sociedades de classes, escravismo, feudalismo e capitalismo e como essa

organização determina formas diferentes de conceber a educação na perspectiva do

interesse de classe.

Por último o texto se reporta à reestruturação produtiva do capital na década

de 70 do século XX e suas exigência com relação à formação técnica, política e

ideológica.

Também estamos defendendo a tese que a reestruturação produtiva que o

capitalismo sofreu a partir nos anos 70 do século passado exigiu mudanças na formação

dos trabalhadores no que se refere à qualificação técnica e de formação geral com o

objetivo de adequá-la às novas tecnologias e ao novo padrão de gestão.

E ainda reorganização do aparato ideológico do Estado de educação, com a

tarefa de construir uma concepção de mundo e de homem que atenda aos interesses do

projeto político/ideológico neoliberal.

Professor de Sociologia da Educação da Faculdade de Filosofia ,Ciências e Letras - Universidade de São Paulo – campus Ribeirão Preto. E-mail [email protected].

Page 2: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

O trabalho como condição humana determinada historicamente

O trabalho é a ação do homem que transforma os materiais dispostos pela

natureza em riqueza e que fundamenta a vida humana. Esta transformação é mediada

pela produção de utensílios que “são elementos acessórios ao corpo, que complementam

o trabalho das mãos e dos dentes”.1 Portanto, “no sentido exato da palavra. Pode se falar

em trabalho somente a partir do momento em que surgem instrumentos elaborados,

fabricados”.2

Segundo Engels, o trabalho criou o próprio homem. Esse autor ainda indica

o desenvolvimento da mão como fator decisivo, pois esta se tornando livre, aumentando

a destreza e a habilidade da ação do homem sobre a natureza, faz com que a mão se

constitua como produto do próprio trabalho. Em seu texto, “O papel do trabalho na

transformação do macaco em homem”, Engels avança no estudo do desenvolvimento do

homem a partir do trabalho, afirmando que a linguagem é outro aspecto da constituição

da condição humana.

...com o desenvolvimento da mão, decorrente do trabalho, o

homem foi alargando seus horizontes e descobrindo nas coisas

outras propriedades até então desconhecidas . Por outro lado,

multiplicando-se as circunstâncias e contingências de atividade

em comum para mútuo auxílio e as vantagens para cada

indivíduo, o desenvolvimento do trabalho contribuiu

enormemente para que os homens consolidassem seus laços

societários. Numa palavra, os homens, num determinado

momento de sua evolução, tiveram necessidade de dizer algo uns

aos outros. Dessa necessidade nasceu o órgão vocal.

Uma análise comparativa entre os homens e os animais nos leva à

constatação de que esta teoria da origem da linguagem a partir do

1 Kenneth B. OAKLEY, O homem como ser que fabrica utensílios, p.30.2 Friedrich ENGELS, O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, p.17.

2

Page 3: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

trabalho e pelo trabalho é o que mais satisfaz3.

Outro fator importante, junto com o aumento da destreza e habilidade e do

aparecimento da linguagem do homem enquanto produtor, é o desenvolvimento do

cérebro, possibilitando um aperfeiçoamento dos órgãos dos sentidos. Segundo Engels,

a cooperação na mão, da linguagem e do cérebro, tornou o homem capaz de executar

operações cada vez mais complexas não só do indivíduo, mas do conjunto da

organização social. O que nos leva a afirmar que a condição humana é determinada pela

evolução do homem em sua dimensão social.

Por isso, ao pensarmos na formação humana, ou condição humana, ou ainda

na essência humana, esta deve-se ao trabalho. É o trabalho que nas suas diferentes

formas permanece em toda a história do desenvolvimento humano e a partir dele que as

sociedades surgem e desaparecem em decorrência do desenvolvimento das forças

produtivas e o estabelecimento de novas relações de produção. Nestas diferentes

composições das forças produtivas e das relações de produção é que se constitui o que

Marx e Engels vão chamar de Infra-Estrutura ou base econômica da sociedade e esta

determina, em última instância, a superestrutura. Com relação a isso Engels afirma:

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do

cérebro, não só em cada indivíduo mas na sociedade como um

todo, os homens foram se desenvolvendo cada vez mais,

tornando-se capazes de executar operações complexas e alcançar

objetivos mais elevados. O próprio trabalho foi se diversificando,

aperfeiçoando-se a cada geração e estendendo-se a novas

atividades. A agricultura surgiu como alternativas para a caça e

pesca, e mais tarde a fiação e tecelagem, a manipulação de

metais, a olaria e a navegação. Concomitantemente ao comércio e

aos ofícios (hoje profissões) apareceram as artes e a ciência; das

tribos saíram as nações e os Estados. Vieram depois o direito e a

política, e a religião apareceu como o reflexo fantástico das

3 Ibid., p.13.

3

Page 4: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

coisas na mente do homem. Com essas criações produzidas pelo

cérebro e que começavam a dominar as sociedades humanas, as

produções mais simples, resultado das atividades manuais, foram

deixadas em segundo plano4.

É Importante destacarmos a relação da infra-estrutura e a superestrutura no

que se refere à questão da condição, ou essência, humana e de como no

desenvolvimento das sociedades e da divisão do trabalho manual e intelectual foram

construindo uma concepção idealista da essência humana, fazendo com que o trabalho

deixasse de ser o elemento da condição humana, sendo substituído pelos valores, a

moral e a ética. Desta maneira, inverte-se a relação determinante do trabalho para a

relação determinada do trabalho. Nesse sentido, é necessário novamente recuperarmos

Engels.

A rapidez com que a civilização progredia foi atribuída

exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do

cérebro. Daí os homens terem se habituado a explicar seus atos

pelos seus pensamentos, em vez de entendê-los através de suas

necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça que delas vai

tomando consciência gradativamente). E assim, com o passar do

tempo, essa concepção idealista do mundo foi dominando o

cérebro dos homens, mormente após o desaparecimento do

mundo antigo. Ainda hoje esta concepção é dominante, a ponto

dos próprios naturalistas da escola darwiniana, ligados ao

materialismo, não conseguirem elaborar com clareza um conceito

sobre a origem do homem, porque essa influência idealista não

lhes permite conceber o papel que o trabalho exerceu na evolução

inicial do homem5.

4 Ibid., p.19.5 Ibid., p.20.

4

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A partir do exposto acima, entendemos que não podemos falar da formação

humana como um processo universal, mas como processo histórico em que a formação

do homem é determinada pelas condições materiais da vida. Logo, para

compreendermos a formação humana, aqui no sentido mais amplo de educação, esta

deve ser entendida nas diferentes formas da organização do trabalho.

A história do trabalho começa quando o homem buscou os meios

de satisfazer suas necessidades – a produção da vida material.

Essa busca se reproduz historicamente em toda a ação humana

para que o homem possa continuar sobrevivendo. Na medida em

que a satisfação é atingida, ampliam-se as necessidades a outros

homens e criam-se as relações sociais que determinam a condição

histórica do trabalho. O trabalho fica então subordinado a

determinadas formas sociais historicamente limitadas e a

correspondentes organizações técnicas, o que caracteriza o

chamado modo de produção. Em síntese, o modo de produção

dominante, que convive com outros modos de produção

subordinados, determina a organização e a execução dos

processos do trabalho, que são produto das relações sociais6.

Como primeira forma de organização social encontramos as comunidades

primitivas baseadas na propriedade comum dos meios de produção, sendo a terra seu

principal recurso, e com desenvolvimento bastante rudimentar das forças produtivas

que impunha uma organização do trabalho baseada na divisão do trabalho pelo sexo e

pela idade de seus membros. Nestas condições a produção de excedente era quase

impossível de existir, quanto era possível, este se constituía como excedente social.

Sobre essas comunidades, Aníbal Ponce em seu livro “Educação e Luta de Classes”

afirma:

Coletividade pequena, assentada sobre a propriedade comum da 6 Carlos Roberto de OLIVEIRA, História do Trabalho, p.5-6.

5

Page 6: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

terra e unida por laços de sangue, os membros eram indivíduos

livres, com direitos iguais, que ajustaram as suas vidas às

resoluções de um conselho formado democraticamente por todos

os adultos, homens e mulheres, da tribo. O que era produzido em

comum era repartido com todos, e imediatamente consumido. O

pequeno desenvolvimento dos instrumentos de trabalho impedia

que se produzisse mais do que o necessário para a vida cotidiana

e, portanto, a acumulação de bens.7

Portanto, a formação humana do homem primitivo deve ser analisada a partir

das condições naturais e sociais que cercam esse homem e do desenvolvimento das

forças produtivas, da organização e divisão do trabalho e das relações de propriedade

dos meios de produção.

O que estamos afirmando é que a formação ou educação humana é um

processo de socialização do individuo e é a partir dela que ele se torna membro da

sociedade, incorporando as formas de viver e de pensar do grupo social a que passa

fazer parte. A respeito da educação nas sociedades primitivas, Ponce entende a

educação como um processo espontâneo da comunidade e de suas crianças.

Na comunidade primitiva, as mulheres estavam em pé de

igualdade com os homens, e o mesmo acontecia com as crianças.

Até os 7 anos, idade a partir da qual já deviam começar a viver às

suas próprias expensas, as crianças acompanhavam os adultos em

todos os seus trabalhos, ajudavam-nos na medida das suas forças

e, como recompensa, recebiam a sua porção de alimentos como

qualquer outro membro da comunidade. A sua educação não

estava confiada a ninguém em especial, e sim à vigilância difusa

do ambiente. Mercê de uma insensível e espontânea assimilação

do seu meio ambiente, a criança ia pouco a pouco se amoldando

aos padrões reverenciados pelo grupo. A convivência diária que

7 Aníbal PONCE, Educação e Luta de Classes, p.17.

6

Page 7: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

mantinha com os adultos a introduzia nas crenças e nas práticas

que o seu grupo social tinha por melhores. Presa às costas da sua

mãe, metida dentro de um saco, a criança percebia a vida da

sociedade que a cercava e compartilhava dela, ajustando-se ao

seu ritmo e às suas normas e, como a sua mãe andava sem cessar

de um lado para o outro, o aleitamento durava vários anos, a

criança adquiria a sua primeira educação sem que ninguém a

dirigisse expressamente.8

O aprendizado para a vida adulta no que diz respeito à obtenção dos

alimentos e no fabrico de instrumentos como barcos, arcos, flechas, cerâmicas, abrigos

etc, eram aprendidos pela observação e pelo fazer, aprendia-se navegar construindo

barcos e navegando, caçar fabricando arco e flechas e caçando e todas as atividades

exigidas pelas comunidades eram aprendidas executando-as.

Esse caráter de formação espontânea e de assimilação do conjunto das

experiências do grupo social, tomam outros contornos com o desenvolvimento das

forças produtivas e o estabelecimento de novas relações de produção. O

desenvolvimento das forças produtivas possibilita a criação de excedente na produção,

a apropriação privada dos meios de produção favorece o aparecimento das classes

sociais e as relações de dominação e de exploração das classes proprietárias dos meios

de produção sobre as classes não proprietárias dos meios de produção, sendo estes

últimos propriedade (escravos) dos primeiros.

...o trabalho escravo aumentou o excedente de produtos de que a

comunidade dispunha, produtos esses que os “administradores”,

como representantes da comunidade, comerciavam, tanto com as

tribos vizinhas, quanto com as longínquas. As coisas continuaram

assim até que as funções dos “organizadores” passaram a ser

hereditárias, e a propriedade comum da tribo – terras e rebanhos –

passou a constituir propriedade privada das famílias que a

8 Ibid., p.18-19 (itálico do autor).

7

Page 8: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

administravam e defendiam. Donas dos produtos, a partir desse

momento as famílias dirigentes passaram também a ser donas dos

homens. 9

Esse processo que determinou o aparecimento das classes sociais foi

exigindo que a educação deixasse de ter um caráter comum para ir se constituindo em

uma educação com conteúdo de classe. A transformação de uma formação humana que

atendesse aos interesses comuns da sociedade para uma formação humana que

atendesse as necessidades e interesses das classes dominantes. Conseqüentemente, as

desigualdades econômicas, políticas e sociais em que se encontravam as diferentes

classes sociais vão exigindo uma educação desigual que atenda aos interesses das

classes dominantes.

Aqui se faz necessário retomarmos as idéias iniciais: a condição humana é

determinada pelo trabalho, assim, ao falarmos de formação humana estamos afirmando

que a idéia de essência humana só tem sentido a partir do trabalho e, ao falarmos do

trabalho temos que nos remeter às várias formas que os homens organizam o trabalho

para a produção, apropriação, distribuição e consumo dos bens produzidos por eles.

Nesta lógica, não podemos deixar de destacar o surgimento do Estado com o

aparecimento das classes sociais e, como esse se constitui enquanto instrumento das

classes dominantes e como a educação, formação dos homens, oferecida pelo Estado, ou

sobre seu controle, passam a ter como objetivo reproduzir as relações de produção,

mantendo as relações de dominação e exploração das classes dominantes sobre as

classes dominadas.

Ainda tomando como referência a obra de Aníbal Ponce, “Educação e Luta

de Classes”, ela nos dá a dimensão do papel da educação nas sociedades de classes e

como as mudanças que vão ocorrendo no percurso da história destas sociedades são

resultados das lutas de classes e do atendimento às novas frações da classe dominante

ou de novas classes sociais que compõe o poder da sociedade. Por exemplo, como o

aparecimento e fortalecimento do comércio marítimo e do trabalho artesanal na Grécia

foram recompondo as classes sociais no poder, modificando os valores, a moral e

9 Ibid., p.25-26 (itálico do autor).

8

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exigindo a formação de um novo homem ameaçando as velhas classes no poder no

terreno econômico, político, moral e educacional. Na Roma Antiga o processo da luta

de classes e as exigências de uma nova educação aparecem muito semelhante ao da

Grécia, segundo Ponce:

A necessidade de uma “nova educação” começou a se fazer sentir

em Roma a partir do século IV a.C., da mesma forma que, um

século atrás, na Grécia, no mesmo momento em que a antiga

classe aristocrática e rural começa a ceder posições a outra

classe que se firmava, a comerciante e industrial. Unidos em

confrarias e corporações, os comerciantes e os artesões, que

haviam aprendido a defender-se desse modo, começaram a ter

influência política e a gozar de consideração social. A partir do

século III a.C., eles têm lugar de honra nos espetáculos e passam

a ser convidados para os banquetes.10

As alterações na formação humana em decorrência de uma nova composição

das classes dominantes são determinadas no interior de uma mesma formação social,

como citamos acima, Grécia e Roma antigas que tinham como pilares de sustentação a

propriedade privada da terra, principal meio de produção e da força de trabalho escrava.

Como também podemos afirmar que a passagem de uma formação social para outra vai

exigir uma nova uma nova concepção de homem e, portanto, novas formas de conceber

a formação deste. Na passagem do escravismo para o feudalismo, a organização do

trabalho tem ainda como principal meio de produção a terra, mas agora em dimensões

menores do que as grandes propriedades do império. A força de trabalho deixa de ser

escrava e passa a ser servil, a composição social se divide em três grandes segmentos

sociais: os guerreiros, os religiosos e os trabalhadores.

É nessa passagem que a igreja católica toma para si a responsabilidade da

instrução pública através das escolas monásticas que se destinavam à instrução dos

futuros monges e também instruía a plebe, neste último caso, essas escolas não

10 Ibid., p.66 (itálico do autor).

9

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ensinavam a ler e nem escrever, “A finalidade dessas escolas não era instruir a plebe,

mas familiarizar as massas campesinas com as doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo,

mantê-las dóceis e conformadas”11.

O feudalismo também viveu períodos de mudanças no sistema de ensino em

decorrência do aparecimento de novas classes sociais determinadas por transformações

na economia e nas relações entre as classes. O surgimento da burguesia nas cidades e

seu enriquecimento foram exigindo mudanças no ensino e as escolas monásticas vão dar

lugar às escolas catedráticas, que passam a responsabilidade do ensino dos monges para

o clero secular, de escolas rurais a escolas urbanas. São essas escolas catedráticas que se

constituem em germes das universidades que passarão ao controle da burguesia.

As exigências de mudanças no ensino não se limitaram à burguesia mais

rica, a pequena burguesia também o fez ocupando as escolas primárias Este movimento

tanto da burguesia mais rica como da pequena burguesia não se deu, sem duro combate

com a igreja.

Nos meados do século XIII, os magistrados das cidades

começaram a exigir escolas primárias, que as cidades custeariam

e administrariam. Tratava-se de uma iniciativa que se dirigia

diretamente contra o controle mantido pela Igreja. Os avanços da

grande burguesia no terreno universitário não comprometiam

muito esse controle, mas pretender dirigir escolas municipais

equivalia a um verdadeiro desafio. Neste terreno, a luta não foi

fácil, e dois séculos transcorreram antes de a burguesia conseguir

uma vitória. Nesse interregno, as cidades se viram forçadas a

aceitar a inspeção eclesiástica em suas escolas, e muitas vezes

aconteceu de as escolas catedráticas e as municipais terem o

mesmo professor.12

Nessas escolas municipais ensinava-se o idioma nacional, noções de

11 Ibid., p.91 (grifo do autor). 12 Ibid., p.105 (grifo do autor).

10

Page 11: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

geografia, história e de ciências naturais, acabando o predomínio do Trivium

(gramática, dialética e retórica) e do Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e

música) do ensino eclesiástico e contribuindo na construção de uma concepção de

homem na perspectiva antropocêntrica contrapondo a concepção teocêntrica da Idade

Média.

O crescimento, enriquecimento e interesses econômicos da burguesia levam-

na a alianças com a nobreza empenhada em acabar com a fragmentação dos territórios e

do poder nas mãos dos senhores feudais, dando assim, origem aos Estados nacionais e

as monarquias absolutas.

A constituição dos Estados nacionais e das monarquias absolutas permitiram

facilidades no comércio da burguesia e no capital estatal necessário para grandes

investimentos no comércio marítimo, que resultaram em novas rotas comerciais com o

oriente e a descoberta das Américas, que permitiram uma acumulação do capital para o

processo de industrialização da produção. Nesse movimento que a burguesia toma

“consciência de classe para si” e num processo revolucionário disputa e conquista o

poder, se constituindo como classe dominante, organizando a produção e o Estado para

atender suas necessidades nesse novo contexto.

A produção é organizada a partir da propriedade privada dos meios de

produção e da força de trabalho livre enquanto mercadoria para ser vendida aos

proprietários dos meios de produção. O Estado é organizado através seus aparatos

repressores e ideológicos com o objetivo de reproduzirem estas relações de produção

enfatizando a liberdade e igualdade no mercado, das competências individuais como

determinantes das desigualdades sociais. Portanto, a sociedade e o Estado burguês exige

uma educação liberal que reafirme a liberdade do mercado, os individualismos e a

competição em todas as esferas da sociedade.

Segundo o sociólogo Gorän Therbon em seu texto “A crise e o futuro do

capitalismo” apresenta quatro etapas do capitalismo: o Capitalismo competitivo

clássico, Capitalismo organizado ou monopolista, Capitalismo de bem-estar e a fase do

Novo capitalismo competitivo ou neoliberal. Estas fases se constituem em momentos

específicos do desenvolvimento das forças produtivas e da organização do Estado e da

sociedade, mas estas não significaram mudanças estruturais no sentido de alterações das

11

Page 12: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

relações de produção capitalista, ou seja, independente do desenvolvimento das forças

produtivas, as relações de exploração e dominação do capital não se alterou.

Nesse sentido, pensar a educação das diferentes fases do capitalismo é

pensar numa educação técnica para atender as exigências do capital em relação ao

desenvolvimento das forças produtivas como também atender as exigências

políticas/ideológicas das relações de produção capitalista. Por isso, a formação humana

tomada como educação do homem do seu tempo é capacitá-lo para atender as

exigências técnicas, políticas, ideológicas e sociais, ressaltando que numa sociedade de

classes, estas exigências são determinadas a partir dos interesses das classes

dominantes.

A formação humana que atende as necessidades do capital a partir da

reestruturação produtiva com a nova revolução técnico-científica, a globalização da

economia e da política neoliberal são os pilares do capitalismo atual.

Com relação à recente revolução técnico-científica, também chamada

revolução eletrônica-informática, significou mudanças fundamentais nas

telecomunicações, na microbiologia e nas indústrias, onde as máquinas-ferramenta de

controle numérico computadorizado (CNC) com capacidade de memorizar informações,

fazer cálculos e transmiti-los a uma máquina que efetua a operação produtiva, os

sistemas CAD/CAM (Computer Aided design/ Computer Aided Manufacturing),

equipamentos que permitem projetar e definir peças numa tela de computador e enviar

as especificações diretamente a máquinas de CNC, os Controladores Lógicos

Programáveis (CLPs) que são equipamentos que administram processos contínuos de

produção. Quanto aos robôs, esses já representam um salto qualitativo na automação da

produção, pois possibilitam uma manipulação reprogramável e multifuncional.

A reestruturação produtiva do capital não se limitou à revolução técnica,

mas esta foi acompanhada de um novo modelo gerencial, o toyotismo. Este modelo de

gestão é um método empregado primeiramente pelas empresas automobilísticas do

Japão em oposição ao método fordismo/taylorismo. O sucesso desse novo modelo é

decorrente de uma melhor adaptação à economia global e ao sistema de produção

flexível.

Esse sistema refere-se a uma produção mais personalizada e à colaboração

12

Page 13: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

entre a direção da empresa e os trabalhadores, por uma mão-de-obra polivalente e pelo

controle de qualidade total.

Essas mudanças no processo produtivo são acompanhadas de uma

internacionalização cada vez maior do capital. Mesmo entendendo que a globalização

dos mercados faz parte da própria constituição desse modo de produção, temos que

reconhecer que a velocidade, como vem ocorrendo hoje, é de uma forma jamais

presenciada na história. Isto, possibilitado pelos avanços tecnológicos, principalmente,

na informática e nas comunicações que proporcionaram condições favoráveis à

constituição de uma economia mundial, caracterizada pela expansão extraordinária dos

mercados financeiros internacionais.

A dominação da lógica financeira sobre os investimentos produtivos é

conseqüência da crise da acumulação do capital, segundo Samir Amin, citado por

Harnecker:

o aumento de excedentes de capital que não podem encontrar

saída na expansão do sistema produtivo devido à estrutura da

distribuição das receitas, marcada por uma crescente

desigualdade, ameaça o capital com sua desvalorização.

A gestão capitalista da crise, portanto, consiste em procurar

arranjar, para esse excedente sem saída rentável na expansão do

sistema produtivo, colocações financeiras para evitar a sua

desvalorização. Mas a formação de lucro suplementar sem ter

como base a produção de novos valores agrava o desequilíbrio

da economia real, ou seja, a crise.13

Esse novo contexto do capital, também, é marcado por mudanças

qualitativas no terreno da produção, como a internacionalização do próprio processo de

produção, o que significou a possibilidade de fabricação de diferentes partes do produto

final em diferentes lugares.

13 Marta HARNECKER, Tornar possível o impossível, p. 171 (grifo da autora).

13

Page 14: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

Esse novo projeto do capital econômico se consolida através de um projeto

social, político e ideológico. Esse conjunto de intervenções na sociedade também é

chamado de projeto neoliberal. Ele nasce na Europa e na América do Norte, após a 2ª

Guerra Mundial, como intervenção teórica e política iniciada pelo texto “O Caminho da

Servidão” escrito por Fredrich Hayek em 1944, tendo como objetivo atacar a proposta

programática do Partido Trabalhista da Inglaterra para as eleições de 1945.

Com a vitória do Partido Trabalhista inglês e demais partidos social-

democratas, na Europa, foram se construindo e se consolidando as bases do Estado de

Bem-Estar.

As idéias neoliberais defendidas por Hayek passaram a ganhar terreno vinte

anos depois, decorrente da grande crise econômica do início da década de setenta do

século passado, crise que levou o mundo capitalista a cair numa longa recessão.

Com a crise, a proposta neoliberal ganha força como alternativa para sua

superação, desde que seguindo as referências apontadas pelo projeto neoliberal, ou seja,

manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o

poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em

todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A

estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer

governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária,

com contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da

taxa “natural” de desemprego, ou seja, a criação de um exército

de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais,

reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os

agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava

reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as

rendas. Desta forma, uma nova e saudável desigualdade iria

voltar a dinamizar as economias avançadas.14

14 Perry ANDERSON, Balanço do neoliberalismo, In: Emir SADER & , Pablo GENTILI (orgs), Pós-Neoliberalismo, p.11.

14

Page 15: TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA

Esse receituário neoliberal, descrito por Perry Anderson, para tirar as

economias capitalistas avançadas de suas crises, só se torna proposta hegemônica no

final da década de setenta e início da de oitenta, marcados pela eleição de Margareth

Thatcher na Inglaterra em 1979, um ano depois, a eleição de Ronald Reagan nos

Estados Unidos da América.

O projeto neoliberal na década de oitenta passa a ser hegemônico no

conjunto dos países capitalistas desenvolvidos, nas décadas seguintes, avança pelos

países da América Latina e Ásia e, favorecido pelo fim da experiência socialista no

leste europeu, o neoliberalismo, também, implanta-se entre os países do antigo bloco

socialista.

Conclusão

A discussão que buscamos trazer foi a de analisarmos a questão da

formação humana numa perspectiva histórica e de classes e de que a educação,

formação, no contexto atual do capital deve ser compreendida a partir de seu projeto

político/ideológico e de sua universalização.

Segundo Göran Therbon, o “neoliberalismo é uma superestrutura ideológica

e política que acompanha uma transformação histórica do capitalismo moderno”15, esta

afirmação pode ser interessante e levar à análises importantes da relação neoliberalismo

e a formação humana nos dias de hoje e do papel que a escola tem contribuído na

construção de uma concepção de mundo dominante que atenda aos interesses do capital.

Isto nos leva a crer que a “Conferência Mundial de Educação para Todos”

realizada em Jomtien, na Tailândia, em março de 1990, “A Declaração de Nova Delhi”,

assinada em dezembro de 1993 pelo Brasil, reafirmando os compromissos assumidos na

Conferência Mundial, são expressões da necessidade da escola reorganizar-se para

cumprir seu papel político/ideológico de reprodutora da concepção de mundo neoliberal

e da reprodução das relações de produção capitalista.

No Brasil, essa lógica se materializa com a nova Lei de Diretrizes e Bases

15 Göran THERBON, A crise e o futuro do capitalismo, In: Emir SADER & Pablo GENTILI (orgs), Pós-Neoliberalismo, p.39.

15

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da Educação Nacional, o novo Plano Nacional de Educação, Parâmetros Curriculares,

Diretrizes Curriculares, a política de privatização do ensino entre outras tantas reformas

pelas quais a educação passa são mudanças que reafirmam o país na lógica do capital

globalizado e do projeto político/ideológico neoliberal.

Por fim, a formação humana na perspectiva do homem onilateral ou do novo

homem só se realizará na construção de uma nova sociedade, numa sociedade que

organize o trabalho a partir de novas relações de produção que permitam que as forças

produtivas se desenvolvam na lógica de atender às necessidades do conjunto da

sociedade e que tenha como horizonte a extinção das classes sociais e da construção da

sociedade comunista. Portanto, a tarefa de formação hoje é de criar uma concepção da

necessidade da superação do capitalismo, de transformação da sociedade e pela

revolução socialista.

BIBLIOGRAFIA.

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