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Tolerância religiosa Nunca se falou tanto em tolerância religiosa como hoje. Há, decerto, uma razão para esse apreço do conceito, que reside em ser o tempo atual um período de “extremos”, qualificação que se justifica pelos seus paradoxos: paz e violência, tecnologia e miséria, desenvolvimento e injustiça social etc. Por um lado aguça-se entre religiões e culturas a sensibilidade pela dignidade humana. O discurso sobre a inviolabilidade dos direitos humanos fundamentais pauta-se como imperativo para todos os povos. Por outro lado, a dignidade humana jamais esteve tão ameaçada, seja pelo armamento nuclear, pela fome, pela manipulação genética, pelos conflitos políticos, religiosos, étnicos ou seja por razões múltiplas. A realidade confirma, portanto, a atualidade da reflexão sobre a tolerância. Nesse debate uma questão crucial que se aborda é saber qual o limite da tolerância? Ou dito de outra maneira, é possível ser tolerante com o intolerável? Existe um meio-termo nessa história, uma terceira via que se tece para além da mera aceitação ou do recurso à violência? O limite da tolerância torna-se cada vez mais evidente. Tolerância não significa tolerar o intolerável, o que seria a própria negação da tolerância, sendo que esta consiste na aceitação mínima do diferente como tradução da coexistência pacífica. Se a tolerância não equivale a tolerar o intolerável, que via se lhe aponta, já que a utilização das mesmas armas da intolerância rejeitaria pelo oposto a própria tolerância? Em termos concretos, com que atitude enfrentar as ações do braço de terrorismo do fundamentalismo religioso e político? O recurso às armas da intolerância comprovou-se historicamente como gerador de mais violência. A ofensiva de Bush, em resposta às ações terroristas de 11 de setembro de 2001 contra os EUA, não trouxe nenhuma resolução para a questão, pelo contrário, desencadeou um processo gradativo de violência e insegurança. O exercício da tolerância exige o difícil equilíbrio entre razão e emoção. Tarefa que se torna ainda mais desafiadora quando se está diante do impacto provocado pelo intolerável (11 de setembro de 2001, EUA; 11 de março de 2004, Espanha; julho de 2005, Inglaterra). Mas é exatamente nesse momento que a busca do

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Tolerância religiosa

Nunca se falou tanto em tolerância religiosa como hoje. Há, decerto, uma razão para esse apreço do conceito, que reside em ser o tempo atual um período de “extremos”, qualificação que se justifica pelos seus paradoxos: paz e violência, tecnologia e miséria, desenvolvimento e injustiça social etc. Por um lado aguça-se entre religiões e culturas a sensibilidade pela dignidade humana.

O discurso sobre a inviolabilidade dos direitos humanos fundamentais pauta-se como imperativo para todos os povos. Por outro lado, a dignidade humana jamais esteve tão ameaçada, seja pelo armamento nuclear, pela fome, pela manipulação genética, pelos conflitos políticos, religiosos, étnicos ou seja por razões múltiplas. A realidade confirma, portanto, a atualidade da reflexão sobre a tolerância. Nesse debate uma questão crucial que se aborda é saber qual o limite da tolerância? Ou dito de outra maneira, é possível ser tolerante com o intolerável? Existe um meio-termo nessa história, uma terceira via que se tece para além da mera aceitação ou do recurso à violência?

O limite da tolerância torna-se cada vez mais evidente. Tolerância não significa tolerar o intolerável, o que seria a própria negação da tolerância, sendo que esta consiste na aceitação mínima do diferente como tradução da coexistência pacífica. Se a tolerância não equivale a tolerar o intolerável, que via se lhe aponta, já que a utilização das mesmas armas da intolerância rejeitaria pelo oposto a própria tolerância? Em termos concretos, com que atitude enfrentar as ações do braço de terrorismo do fundamentalismo religioso e político? O recurso às armas da intolerância comprovou-se historicamente como gerador de mais violência. A ofensiva de Bush, em resposta às ações terroristas de 11 de setembro de 2001 contra os EUA, não trouxe nenhuma resolução para a questão, pelo contrário, desencadeou um processo gradativo de violência e insegurança.

O exercício da tolerância exige o difícil equilíbrio entre razão e emoção. Tarefa que se torna ainda mais desafiadora quando se está diante do impacto provocado pelo intolerável (11 de setembro de 2001, EUA; 11 de março de 2004, Espanha; julho de 2005, Inglaterra). Mas é exatamente nesse momento que a busca do consenso racional pode contribuir, evitando-se a traição pela emoção e, consequentemente, uma justificativa cuja lógica possui em sua estrutura a mesma forma de pensar fundamentalista: o império do bem contra o império do mal.

Com que atitude, então, enfrentar o fundamentalismo? O caminho que se vislumbra racionalmente é o do diálogo incessante, do acordo justo e transparente e parece não haver outro meio sensato. Leonardo Boff afirma em seu livro Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade ser necessário dialogar até a exaustão, “negociar até o limite intransponível da razoabilidade”, na esperança de que o fundamentalismo venha a reconhecer o outro e o seu direito de existência. Talvez essa estratégia possibilite romper as bases de sustentação de qualquer fundamentalismo, instaurando uma comunidade de povos.

Embora rejeita-se por inteiro o método, a justificativa e a finalidade das violentas ações fundamentalistas, elas não deixam de indicar algo. Conforme o teólogo Hans Küng, elas apontam os “débitos de uma Era Moderna muitas vezes individualista-libertinista”, que

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deveriam ser levados em conta quando se rejeita as soluções do fundamentalismo. Enzo Pace e Piero Stefani, no livro, Fundamentalismo religioso contemporâneo, argumentam que as ações fundamentalistas denunciam a fragilização do pacto social “(...) e, por isso, [tornam-se] uma espécie de sinal de alarme que indica níveis baixos de solidariedade social e níveis total de desconfiança no sistema político (...)”. Esses aspectos devem ser considerados ao se buscar uma razão para as ações intolerantes decorrentes dos fundamentalismos.

A terceira via, o como enfrentar o intolerável se constrói pela sensibilização pacífica, através de protestos e outras atitudes e, sobretudo, pela busca incessante de diálogo como tentativa de encontrar um meio-termo para os extremos. O exemplo de Jesus ao convidar seus discípulos para baixar a espada é inspirador. Contudo, além da atitude democrática e tolerante, é necessário também que sejam suprimidas as condições que fazem surgir as atitudes intolerantes, principalmente, aquelas originárias do fundamentalismo. Do contrário, também a tolerância será insuficiente.

Há um problema sério de tolerância religiosa afetando milhões de pessoas e deveríamos poder discuti-lo"

Em maio, um tribunal no Sudão condenou uma mulher cristã, casada com um norte-americano, à forca — não sem antes receber 100 chibatadas por se recusar a renunciar à sua fé.

No Iraque, extremistas muçulmanos exigem que cristãos paguem uma taxa sob o risco de serem crucificados, diz o governo.

Na Malásia, os tribunais proibiram quem não é muçulmano a usar a palavra "Alá".

Em diversos países, fundamentalistas islâmicos estão usando a medida da própria devoção religiosa para regular o grau de supressão ou violência àqueles que consideram hereges, gerando assim uma catástrofe em termos de direitos humanos, com pessoas sendo punidas ou mortas por suas crenças religiosas.

Sim, estou entrando em um assunto sensível, eu sei. Muita gente nos EUA — e no Ocidente de modo geral — usa incidentes como esses para denunciar o Islã como uma religião maligna e violenta, enquanto os liberais politicamente corretos têm medo de falar qualquer coisa com medo de alimentar o preconceito. No entanto, há um problema sério de tolerância religiosa afetando milhões de pessoas e deveríamos poder discuti-lo.

Tenho pensado no assunto em parte por causa do assassinato recente de um amigo: Rashid Rehman, um advogado de direitos humanos de Multan, no Paquistão. Muçulmano, ele assumiu a defesa de um professor universitário que corria o risco de ser condenado à morte por ter sido falsamente acusado de insultar o Profeta Maomé. Com isso, Rashid também passou a ser alvo, e dois homens entraram em seu escritório e o mataram a tiros.

Sem dúvida, os assassinos se acham muçulmanos fervorosos; o único problema é que atos extremos como esse fazem mais mal à reputação da religião que todos os islamófobos do mundo juntos.

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O paradoxo é que, historicamente, a crença era relativamente tolerante. Em 628, por exemplo, Maomé criou um documento de protegia os monges do Monastério de Santa Catarina.

"Nenhuma compulsão deve afetá-los. Se uma mulher cristã for se casar com um muçulmano, só poderá fazê-lo mediante seu consentimento e não pode ser impedida de visitar sua igreja para rezar", escreveu.

Atualmente o antissemitismo é muito forte em alguns países muçulmanos, mas durante a maior parte da história, eles toleravam mais os judeus que os cristãos. Mais ou menos na época do Caso Dreyfus na França, há mais de um século, os islâmicos defenderam um judeu contra o antissemitismo de um grupo de cristãos.

Da mesma forma, o caso moderno de perseguição religiosa mais radical envolveu europeus tentando eliminar os judeus no Holocausto. Desde então, um dos piores massacres religiosos foi a matança de muçulmanos por cristãos em Srebrenica, na Bósnia e Herzegovina.

Também é verdade que alguns dos defensores mais corajosos da liberdade religiosa atualmente são muçulmanos. Mohammad Ali Dadkhah, advogado iraniano, representou um pastor cristão, sem cobrar honorários, e conseguiu defendê-lo das acusações de renegação de sua fé — só que acabou preso e hoje cumpre uma sentença de nove anos.

A Arábia Saudita pode brigar com o Irã por praticamente tudo, mas ambos são idênticos em termos de repressão religiosa. Os sauditas proíbem igrejas; é um insulto ao Islã sugerir que o credo seja tão frágil e, por isso, não pode tolerar templos cristãos.

Mais insidiosa ainda nesses países é a ideia de que qualquer um nascido na fé muçulmana não possa se tornar cristão. Foi o que aconteceu no caso que mencionei ocorrido no Sudão: a justiça considerou Meriam Ibrahim muçulmana, mesmo tendo sido criada na fé cristã pela mãe. O tribunal a condenou à morte por apostasia, mas a sentença acabou sendo anulada e ela agora está abrigada na embaixada norte-americana daquele país, aguardando permissão para sair de lá.

Segundo pesquisa do Pew Research Center, há muçulmanos vítimas de repressão religiosa em mais ou menos o mesmo número de países que os cristãos, mas os casos de violência extrema acontecem em nações de maioria islâmica. No Paquistão, por exemplo, acontece uma campanha brutal contra a minoria xiíta. Da mesma forma, o Irã reprime os pacíficos bahai, enquanto o Paquistão e outros países maltratam os ahmadi, que se consideram muçulmanos, mas são vistos como apóstatas. No Paquistão eles podem ser presos simplesmente por dizerem: "Que a paz esteja contigo".

Tudo isso representa um triste índice de intolerância cada vez mais alto. O primeiro Ministro do Exterior do Paquistão era ahmadi; hoje, ocupar tal cargo seria impossível.

Pensei duas vezes antes de escrever este artigo porque a repressão religiosa é um tópico complicado, embora muito comum em países muçulmanos. Islâmicos de Gaza à Síria, do Saara Ocidental a Mianmar já têm que aguentar muita coisa sem precisarem levar bronca por intolerância. É verdade também que, no Ocidente, vivemos em redomas de vidro e não quero dar voz aos chauvinistas ou incentivar a Islamofobia.

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Apesar disso, a liberdade religiosa é um dos direitos mais básicos do ser humano e corre riscos na maior parte do planeta. Alguns muçulmanos heróicos, como meu amigo Rashid, no Paquistão, sacrificaram suas vidas para protegê-la. Vamos seguir seu exemplo e nos manifestarmos, pois o silêncio poderia ser a deturpação da boa educação.

A tolerância religiosa e o Estado Laico

“Ninguém, nem um indivíduo, nem igrejas, não!, nem mesmo comunidades têm algum título apropriado para invadir os direitos civis e os bens terrenos dos outros, sob a desculpa da religião.” (John Locke)

Durante seu exílio na Holanda, John Locke escreveu em latim a sua Epistola de Tolerantia, que foi traduzida e publicada anonimamente em 1689 na Inglaterra, sob o título de A Letter Concerning Toleration. Nesta carta, Locke defende a liberdade religiosa em amplo sentido, e propõe a separação total dos poderes político e religioso. Para a época, em que pessoas ainda podiam ser queimadas por causa da crença religiosa, tais idéias eram revolucionárias.

Locke considerava que as guerras, torturas e execuções, em nome da religião, eram na verdade culpa da intervenção indevida de crenças religiosas no mundo político, e não do cristianismo em si. O alvo principal de Locke, portanto, era a Igreja Católica Romana, que não aceitava a separação dos poderes religioso e civil de forma alguma. Muito daquilo defendido por Locke na carta tornou-se lugar-comum, e hoje é aceito sem dificuldades. No entanto, ainda restam resquícios fortes de uma intolerância religiosa e de uma mistura perversa entre os diferentes poderes mundanos e divinos. Neste sentido é que se torna útil rever os principais argumentos do filósofo.

Para Locke, a comunidade é “uma sociedade de homens, constituída somente para que estes obtenham, preservem e aumentem seus próprios interesses civis”. Por interesse civil, ele entendia a vida, a liberdade e a salva-guarda do corpo e a posse de bens externos. O magistrado civil, portanto, tem como dever assegurar a cada um dos indivíduos a posse justa desses bens, através da execução imparcial de leis equânimes.

As questões ligadas à fé, portanto, não dizem respeito ao magistrado. Ou seja, “o cuidado das almas não está sob responsabilidade do magistrado civil”. Ninguém pode ser compelido à crença numa coisa qualquer por meio de força externa. O religioso deve usar como arma a persuasão dos argumentos, nunca a espada. Em resumo, “todo poder do governo civil relaciona-se apenas com os interesses civis dos homens, está limitado aos cuidados com as coisas deste mundo e não tem nada a ver com o mundo que virá depois”.

Uma igreja é uma sociedade de membros voluntariamente ligados para um fim comum, que está voltado para questões da alma. Locke encara tais associações livres como qualquer outro tipo de união voluntária, e, por isso, suas regras são de caráter interno, aderindo quem quer. Por outro lado, “nenhuma igreja é obrigada pelo dever da tolerância a manter em seu seio qualquer pessoa que, depois de continuadas admoestações, ofenda obstinadamente as leis da sociedade”. Este outro lado da moeda tem sido ignorado com certa freqüência atualmente.

Entra para uma determinada igreja quem quer, e ela, em contrapartida, possui suas próprias regras. Isso quer dizer que o governo civil não tem direito de invadir tais associações, contanto

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que suas regras não firam os princípios básicos civis, da vida, liberdade e propriedade. Locke é claro neste ponto: “Este é o direito fundamental e inextirpável de uma sociedade espontânea, o de expulsar quaisquer de seus membros que transgridam as regras da instituição, sem, no entanto, adquirir, pela admissão de novos membros, qualquer direito de jurisdição sobre os que não fazem parte dela”. Como exemplo atual, podemos pensar na pressão para que a Igreja Católica aceite o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, o que significa uma invasão absurda das liberdades da própria igreja.

Muitos confundem tolerância com aceitação, mas estão errados. O próprio Locke defende a tolerância com base no princípio grego de indiferença, ou seja, não se faz necessário aceitar como legítima ou verdadeira a crença alheia, bastando tolerar os diferentes cultos. Uma igreja não deve ser forçada a aceitar certos grupos por imposição do governo. Ninguém deve ser obrigado a respeitar uma crença que considera estúpida ou falsa. Os diferentes grupos devem se tolerar mutuamente, e só. Se a religião não deve invadir o campo do magistrado civil, muitos esquecem que o contrário também é verdadeiro.

O Estado laico é uma avenida de mão dupla. Os regimes comunistas foram um bom exemplo dessa confusão nefasta. O Estado estabelecido por eles não era laico, mas anti-religioso. Não havia tolerância alguma, mas sim perseguições religiosas. A carta de Locke não defende em momento algum a substituição do poder religioso pelo civil, e sim sua divisão. Um dos grandes males da modernidade foi, sem dúvida, a substituição do Deus religioso pelo Deus Estado. Há claros limites para o poder estatal, sob risco de exterminar a liberdade individual caso sejam avançados estes limites.

A tolerância religiosa exige que cultos diferentes convivam entre si. Cada um terá “certeza” de que está com a verdade ao seu lado, que conhece o único caminho da salvação, mas é crucial que as escolhas dos demais sejam toleradas. O pecado, apenas por ser pecado, nunca deve ser punido pelo magistrado. Locke diz: “Mesmo os pecados da mentira e do perjúrio em nenhum lugar são puníveis pelas leis, exceto nos casos em que a verdadeira baixeza da coisa e a ofensa contra Deus não são consideradas, mas somente a injúria cometida contra os vizinhos e contra a comunidade”.

Os crentes de cada seita costumam encontrar bastante dificuldade para compreender que blasfêmia e heresia são conceitos restritos somente à sua fé particular. Para quem não comunga da mesma fé, não faz sentido algum falar em blasfêmia, pois não há crença de que se trata de algo sagrado. A reação que charges satíricas do profeta Maomé num jornal dinamarquês causaram, denota esta intolerância ainda existente, especialmente no Islã. Quando Salman Rushdie escreveu Os Versos Satânicos, um romance que critica a religião muçulmana, ele foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini. Um caso evidente de completa intolerância religiosa e mistura da religião com o governo.

Por mais que uma seita esteja completamente certa de que a verdade está ao seu lado, jamais deve buscar o uso da força para fazer valer tal crença. Segundo Locke, “o objetivo das leis não é prover a verdade das opiniões, porém a segurança e integridade da comunidade, e a pessoa e as posses de cada homem em particular”. A verdade deve prevalecer através do convencimento pacífico. Locke entende que, “se a verdade não penetra no entendimento por

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sua própria luz, ela será ainda mais fraca por qualquer força emprestada que a violência pode lhe adicionar”.

Cabe destacar que a tolerância de Locke tinha certos limites, o que deve ser colocado em contexto, já que sua época era de extrema intolerância. Para ele, “não podem ser tolerados aqueles que negam a existência de Deus”. Ele argumenta da seguinte forma: “As promessas, os pactos e os juramentos que formam as ligaduras da sociedade humana não podem ter valor para um ateísta”. Tal como para Dostoievsky depois, Locke acreditava que “a retirada de Deus, mesmo que só em pensamento, a tudo dissolve”.

O problema com esta postura é que ela é totalmente especulativa, e parte de uma crença subjetiva que é extrapolada. Em outras palavras, não passa de um preconceito. Vários ateus ou agnósticos vivem de forma adequada no que diz respeito ao convívio social, isto é, não agridem as liberdades alheias. Para Locke, isso podia não parecer possível, mas a verdade é que a experiência nos prova o contrário. Neste caso, creio que Humboldt estava certo: “A moralidade humana, até mesmo a mais elevada e substancial, não é de modo algum dependente da religião, ou necessariamente vinculada a ela”. Mas talvez fosse injusto exigir de Locke, em pleno século XVII, que até os ateus fossem tolerados. Ele já estava à frente do seu tempo o suficiente sem chegar a tanto.

Por fim, vale mencionar apenas uma importante restrição à tolerância: aquela com os intolerantes. Para Locke, “aqueles que, sob o pretexto da religião, desafiam qualquer tipo de autoridade que não esteja associada a eles em sua comunhão eclesiástica, desses eu digo que não têm o direito de ser tolerados pelo magistrado, assim como não podem ser tolerados aqueles que não aceitam e não ensinam o dever de tolerar os homens em assuntos de mera religião”.

É impossível ler esse trecho e não se lembrar do fanatismo islâmico atual, onde muitos pregam um jihad – ou guerra santa – contra os “infiéis”. Creio que Karl Popper resumiu de forma brilhante esse limite da tolerância: “Não devemos aceitar sem qualificação o princípio de tolerar os intolerantes senão corremos o risco de destruição de nós próprios e da própria atitude de tolerância”.

Espero que a mensagem de Locke, disseminada há mais de três séculos, ainda possa ser melhor compreendida e assimilada pelas pessoas. O mundo seria um lugar muito melhor se houvesse ampla tolerância religiosa, inclusive com os ateus, e se os poderes do governo e da religião fossem de fato completamente separados. Desde Locke, muito se conquistou nesse sentido. Mas ainda resta um longo caminho pela frente.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, meu livro de resenhas de 2008.

Tolerância Religiosa. Qual é o limite?

Qual é o limite entre aquilo que podemos chamar efetivamente de tolerância religiosa, ou daquilo que eu chamo de “liberdade para acreditar”, e uma obscena conivência com atos criminosos contra a humanidade, perpetrados por pessoas que se dizem representantes de alguma religião?

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Dito de outra forma, até onde temos o dever de tolerar uma religião, em nome de preceitos humanistas como a liberdade religiosa e o estado laico? Será que o custo não tem sido alto demais? Quantos mais precisarão ser assassinados ou terem suas vidas destruídas, até que a humanidade se dê conta de que deve haver um limite para a atuação das religiões?

E quando eu digo crimes contra a humanidade, eu não me refiro apenas às barbáries cometidas pelos homicidas do estado islâmico. Eu falo de qualquer ato que de alguma forma prejudique o bem estar do ser humano, e isso inclui coisas como, atrasos culturais e intelectuais que resultam da negação das descobertas científicas, em favor de alguma “verdade” revelada, me refiro ao inculto que é enganado por sacerdotes charlatões, e que sofre incontáveis perdas financeiras e emocionais, falo da mulher que, considerada por alguns deuses patriarcais, inferior ao homem, é humilhada e reduzida a uma mera serviçal do marido ou do pai, ou simplesmente mais um objeto da casa. E o que dizer das milhões de crianças expostas diariamente a doses cavalares de ensino religioso; a maioria delas aprende a rezar ao “papai do céu” primeiro que a falar corretamente sua língua materna; ensinadas que devem aceitar aquilo que a ciência diz apenas se não contradisser as mitologias das religiões dos seus pais. Um total desrespeito ao direito delas, quando na maturidade, escolherem seu próprio caminho de fé ou não fé, e de poderem confrontar com liberdade as afirmações que lhes são ensinadas. E os exemplos poderiam se multiplicar.

Chocado? O problema é que nos condicionamos a considerar apenas o terrorismo islâmico ou a inquisição católica como males que a religião causou (a) a humanidade. Mas não é! Na verdade, isso é apenas a ponta do iceberg. Aquilo que é latente, ou que fica apenas nos porões das comunidades locais, proibições e imposições que prometem uma liberdade que nunca se concretiza. Sim, eu até concordo que o terrorismo e a inquisição são e foram de muitas formas o “dark side“ mais evidente e sombrio da brutalidade que a religião é capaz de produzir. Mas será que a aniquilação da vida imposta por esses dois casos é tão pior para a humanidade do que a manipulação que a religião como um todo quer impor as massas? Será que a tortura do corpo é menos danosa que a tortura emocional ou a perda da dignidade, que gays, mulheres e membros de religiões “rivais” sofrem? Será que o assassino que mata um inocente em nome de Alá é tão mais cruel do que um pai cristão que obrigado seu filho de dez anos a acreditar que a Terra tem só seis mil anos, e que os primeiros seres humanos foram feitos do barro e de uma costela masculina, respectivamente? Eu tenho minhas dúvidas! Basta lembrar que ambos, o assassino “sagrado” e o pai cristão, usarão o mesmo argumento para justificar seus atos. Ambos dirão que fazem a vontade de deus. Ambos clamarão pelo respeito a sua religião. Ambos dirão que cumprem uma missão sagrada, e ambos estarão dispostos a ir ainda mais longe por amor a suas convicções de fé.

Sei que muitos humanistas, como eu, têm dificuldade em confrontar o direito de crer das pessoas, principalmente por acreditar que a liberdade está acima de tudo. Porém, quando percebemos que esse direito não está produzindo o bem estar que é prometido, ao contrário, penso que chegou a hora de revermos essa nossa “fé” na liberdade. Deixo claro que eu não estou fazendo uma apologia à intolerância. Continuo acreditando que as pessoas devem ter o direito de acreditar no que quiserem. No entanto, a partir do momento que a fé de alguém fere o direito das demais pessoas, causando inclusive a morte de muitos, assassinados por doentes que agem em nome de deus, essa é uma invasão que não podemos tolerar mais. Tem

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momentos em que o diálogo não é mais eficaz. E esse momento chegou. A humanidade precisa agir, antes que retrocedamos a uma idade de trevas que será o fim de qualquer civilidade aceitável.

Confesso que, indo contra tudo o que, como humanista, eu acredito, já não consigo mais esconder meu profundo desejo de ver um mundo sem a sombra de qualquer religião. Até por que já não tenho dúvidas sobre o fato de que podemos viver muito bem sem nenhuma delas. Não concorda comigo? Ok! Mas, talvez, se você estivesse vendo seu filho querido ser iludido por uma dessas religiões e hoje ser cassado como terrorista, ou, se você estivesse com uma faca de pão pairando ameaçadoramente sobre seu pescoço, sendo usado como moeda de troca numa luta que não é sua, você teria uma opinião mais próxima da minha.

É verdade que uma fé pessoal e privada não me incomoda em nada, não vejo perigo algum em alguém levantar em um domingo e se dirigir ao templo da sua religião para rezar ao seu deus. O problema é que os religiosos nunca se satisfazem com esse tipo de fé, eles nunca conseguem se manter dentro desses limites. Eles estão sempre querendo invadir o “quintal” alheio, sempre buscando um novo prosélito, sempre atuando politicamente contra a laicidade do estado, sempre minando a conquista de novos direitos que contradizem seus próprios interesses religiosos, se dizem a favor da família, mas apenas se for no formado que o seu dogma estabelece.

Honestamente eu não saberia definir o limite de uma justa liberdade religiosa, mas sei bem que da forma como as coisas estão estabelecidas não podemos mais suportar. Ou a religião aprende a respeitar o espaço do outro ou nós, a humanidade, temos o dever de coloca-los em seu lugar, e isso, para mim, já é uma questão de vida e morte.

William de Oliveira

JE SUIS LOCKE

Charges do Charlie Hebdo: liberdade de expressão x tolerância religiosa

Lamento profundamente o assassinato dos jornalistas da Charlie Hebdo. Repudio o terrorismo e a violência. Mas não sou Charlie. Je suis Locke, que em fins do século XVII escreveu sua “Carta sobre a tolerância”, um dos textos fundantes da modernidade sobre a laicidade e a convivência entre as religiões. Não se trata de tolerância com os intolerantes. Nenhuma trégua ao terrorismo. Nenhum recuo na laicidade conquistada a duras penas nos países ocidentais. A imposição de preceitos religiosos na vida civil já era rejeitada por Locke. Mas a laicidade existe justamente para que as religiões possam conviver em paz.

odo direito tem limites, mesmo os direitos fundamentais. Nenhum direito é absoluto, eis a lição comezinha dos manuais de direito constitucional. A regra geral da liberdade pode ser atribuída ao utilitarista John Stuart Mill, com seu princípio do dano (harm principle): somos livres para fazer o que quisermos, desde que não prejudiquemos o outro. As fronteiras entre os direitos e o que pode ou não ser considerado prejuízo para os outros variam, evoluem. Alguns consideram que os direitos fundamentais têm limites intrínsecos — ninguém, em nome da liberdade artística, tem direito de armar seu cavalete e pintar atrapalhando o trânsito. O limite integraria o conceito do próprio direito em questão. Outros entendem que direitos

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fundamentais são a priori ilimitados e os limites só aparecem se e na medida do necessário, segundo a lei do sopesamento entre os princípios e direitos em colisão. Controvérsias teóricas à parte, a ideia de limites aos direitos é intuitiva e aceita amplamente no mundo jurídico.

A liberdade de expressão tem lugar de destaque entre os direitos fundamentais. Em termos de importância talvez só sofra concorrência da liberdade de locomoção. E se desdobra numa miríade de outros direitos: liberdade política, religiosa, de imprensa, liberdade artística e científica, etc. É extremamente difícil lhe impor limites. Mesmo o politicamente correto em voga não pode servir de censura. Lolita, de Nabokov, considerada uma obra-prima da literatura universal, trata de um caso de pedofilia, narrado com vigor, erotismo e profundidade psicológica. Querer suprimir trechos supostamente racistas de Mark Twain e Monteiro Lobato é ridículo.

Mas os limites existem. Alguns mais banais, como a proibição de caluniar, difamar e injuriar. Outros podem surpreender. Em alguns países da Europa é crime praticar o “negacionismo”: não se pode negar que o Holocausto existiu. Jean-Marie Le Pen, ex-líder do Front National-FN, que propõe agora o fechamento das fronteiras da França, já foi condenado criminalmente por declarações desse tipo. O artigo 20 da nossa Lei 7.716/89 assevera ser crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

E em 2003 o Supremo Tribunal Federal manteve a condenação de Ellwanger por crime de racismo, em razão de publicações de conteúdo nazista.

A pergunta que me faço, e que de alguma forma foi ventilada nos últimos dias, ao lado da indignação com os atos terroristas, é se as charges do Charlie Hebdo não extrapolam esses limites. Se não do ponto de vista jurídico, quiçá de uma perspectiva ética ou política. Não sou religioso, mas as religiões fornecem a seus fiéis suas crenças e valores mais caros. Será que precisamos desse humor? Um ato sexual entre Deus, Jesus e o Espírito Santo, a nudez de Maomé com alusão à estrela de Davi, etc? Parece divertido para alguns, podemos admirar a irreverência e coragem dos cartunistas, mas por que se veria aí uma liberdade ilimitada, incapaz de respeitar o sentimento religioso?

Devemos tentar conviver melhor com o islamismo moderado, ele existe e é majoritário. Levá-lo a criticar o extremismo “de dentro”. Com os que são capazes da tolerância, ela é o melhor, talvez o único caminho para o século XXI. E tolerância exige aceitação do outro, consideração por seus valores, respeito e comedimento: até quanto aos limites do nosso riso.

1.4 - Características da TolerânciaComo abordado anteriormente, existem algumas características comuns nasdoutrinas que discorrem sobre a tolerância. Convém salientar que algumas dessascaracterísticas estão presentes na Declaração dos Princípios da Tolerância e da 28 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri FavarimDeclaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e DiscriminaçãoFundadas na Religião ou nas Convicções.Como o objetivo dessa pesquisa não é fazer um estudo no direito comparado,a base jurídica escolhida para fundamentar os temas abordados se encontra noDireito Internacional, mais especificamente nas Declarações editadas pela ONU. As

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Declarações citadas foram escolhidas por tratarem especificamente dos temasabordados, e também porque seu conteúdo deve ser conhecido e ratificado pelosEstados que fazem parte da ONU.Portanto, com base nas declarações citadas e no que foi exposto até omomento pode-se dizer que as características da tolerância são três: a separaçãoentre o Estado e a Igreja, a garantia da liberdade de consciência e as limitações àliberdade religiosa.1.4.1 - Separação entre o Estado e a IgrejaA separação entre o Estado e a Igreja é entendida como uma “obrigaçãonegativa69” do Estado, onde este não favorece, nem discrimina as confissõesreligiosas, onde a liberdade religiosa é garantida e o poder público se mantémdistante da igreja.O Estado laico tem o dever de proteger e garantir o livre exercício de todas asreligiões, pelas igrejas e por seus membros, é o que estabelece o art. 2º, item 2.1.da Declaração dos Princípios da Tolerância70.No âmbito do Estado a tolerância exige justiça e imparcialidade nalegislação, na aplicação da lei e no exercício dos poderes judiciário e

69 SILVA JR., Hédio da: Painel: Cotidiano e Tolerância in: SESC/SP. Seminário Internacional de Cultura e (in) Tolerância.Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?Referencia=2826&ParamEnd=470 ONU. Op. Cit. 29 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri Favarimadministrativo. Exige também que todos possam desfrutar deoportunidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação. Aexclusão e a marginalização podem conduzir à frustração, àhostilidade e ao fanatismo.Além disso, também compete ao Estado adotar medidas que eliminemqualquer forma de discriminação por motivos de religião, como prescreve o art. 4º daDeclaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e DiscriminaçãoFundadas na Religião ou nas Convicções71.1. Todos os estados adotarão medidas eficazes para prevenir eeliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções noreconhecimento, o exercício e o gozo dos direitos humanos e dasliberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica,política, social e cultural.2. Todos os Estados farão todos os esforços necessários parapromulgar ou derrogar leis, segundo seja o caso, a fim de proibir todadiscriminação deste tipo e por tomar as medidas adequadas paracombater a intolerância por motivos ou convicções na matéria.A postura de separação entre Estado e Igreja, também aponta para oentendimento de que as crenças fazem parte da esfera privada do indivíduo,fazendo da esfera pública um lugar neutro, que busca o bem comum de todos oscidadãos independente de suas convicções72.Dessa forma, esse princípio de separação entre o Estado e a Igreja, trazimplícita a idéia de que a crença religiosa, o fato religioso, as confissões religiosas, oculto, a liturgia e a organização religiosa são fenômenos situados na esfera privada,

71 ONU. Op. Cit72 SCHNAPPER, Dominique. A neutralidade religiosa do Estado, instituição de tolerância. In: ACADEMIA Universal

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das Culturas. A intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 145 30 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri Favarimno sentido de que o Estado se declara incompetente para tentar regulamentar oudisciplinar essas matérias73.Assim, pode-se dizer que ao Estado cabe se preocupar com o bem-estarsocial, estabelecer as instituições públicas como ambientes de neutralidade religiosae garantir a convivência pacífica entre populações religiosamente distintas. Cabe aIgreja se preocupar com a forma de expressão de fé de seus membros e com ainterpretação e aplicação de suas doutrinas.1.4.2 - Garantia da liberdade de consciênciaA liberdade de consciência abrange a liberdade de pensamento e de crença.Essa liberdade deve garantir ao indivíduo a liberdade de ter ou não religião e demanifestá-la, é o que estabelece o art. 1º, item 1, da Declaração Sobre a Eliminaçãode Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nasConvicções74.Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, deconsciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter umareligião ou qualquer convicção a sua escolha, assim como a liberdadede manifestar sua religião ou suas convicções individuais oucoletivamente, tanto em público como em privado, mediante o culto, aobservância, a prática e o ensino.De fato, não se pode deixar de pensar que as opiniões a respeito de religiãopertencem apenas à consciência do indivíduo, se elas são boas ou ruins não fazdiferença alguma, o que realmente importa é não se deve haver qualquerinterferência que impeça essa manifestação individual de pensamento.

73 SILVA JÚNIOR, Hédio. Painel: cotidiano e tolerância. In: SESC/SP. Op. Cit.74 ONU. Op. Cit. 31 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri FavarimA garantia à liberdade de pensamento é um direito reconhecido praticamenteem todas as nações do mundo e é classificado como um dos direitos fundamentaisdo homem, que deve ser preservado em qualquer circunstância.1.4.3 - Limitação à liberdade religiosaA única forma de privação que a liberdade religiosa pode ser submetida se dápor dispositivo legal, quando necessário para proteger a segurança, a ordem, asaúde, a moral pública, e os direitos e liberdades fundamentais do outro75.Cabe ao Estado a responsabilidade de garantir a ordem pública e nesse caso,sempre que houver abuso em relação às formas de se exercer a liberdade religiosa,que afetem tanto à esfera pública quanto a espera privada, o Estado deve intervircom a privação dessa liberdade. Esses limites devem ser impostos para que não seuse a liberdade religiosa como forma de proteção a atividades religiosas ilícitas ouatos que atentem contra a incolumidade pública, a moral e os bons costumes76.Como se encontra nas sociedades multiculturais o pluralismo religioso,limitações a certas práticas religiosas podem ser necessárias para conciliar ointeresse de diferentes grupos, que se dividem maiorias e minorias religiosas77.Além disso, alguns atos como sacrifícios humanos e mutilações, presentesem algumas formas de manifestação religiosa, são contrários a moral e a ordempública e, dessa forma, devem sofrer limitações. É dever do Estado conter qualqueratividade religiosa considerada subversiva, e que prejudique a segurança dasociedade.

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75 Artigo 1º, item 3, da Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e DiscriminaçãoFundadas na Religião ou nas Convicções.76 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional internacional. São Paulo: Juarez deOliveira, 2002. p. 38 32 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri FavarimDe fato, não se pode pensar numa liberdade religiosa que não se preocupecom o mínimo de privação, pois isso certamente implicaria atos de intolerância.A tolerância sem limites liquida com a tolerância assim como aliberdade sem limites conduz à tirania do mais forte. Tanto a liberdadequanto à tolerância precisam, portanto, da proteção da lei. Senãoassistiremos à ditadura de uma única visão de mundo que nega todasas outras. O resultado é raiva e vontade de vingança, fermento doterrorismo78.Dentro de qualquer sociedade para que haja uma convivência pacífica entreos indivíduos são necessárias regras comuns a todos, regras essas que devem serestabelecidas pelo poder público impondo algumas limitações à liberdade individual,limitações essas que visam garantir que não haja interferências de um indivíduo naesfera da liberdade individual do outro.Assim, havendo conflito entre direitos fundamentais e interferência na esferada liberdade individual do outro, será necessário procurar uma solução harmônicapara o conflito através da aplicação do princípio da proporcionalidade. Esseprincípio, “permitirá, por meio de juízos comparativos de ponderação dos interessesenvolvidos no caso concreto, harmonizá-los, através da redução proporcional doâmbito de aplicação de ambos ou de um deles apenas79”.Pode-se concluir que o princípio da tolerância, para ser colocado em prática,necessita estar inserido em uma sociedade revestida de um Estado Laico quegaranta a liberdade de consciência e todas as suas dimensões. Que mantenha aIgreja afastada da esfera pública ocupando apenas sua posição de líder religiosa e

77 GUERREIRO. Sara. Op. Cit. p. 6278 BOFF, Leonardo. Limites da tolerância. Disponível em: http://www.voltairenet.org/article126328.html79 ROLIM, Luciano Sampaio Gomes. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. JusNavigandi. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?Id= 2855. 33 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri Favarimque limite os exageros em matéria de manifestações religiosas quando estesafetarem a segurança e a liberdade individual. Sem que essas características sejamrespeitadas, esse princípio tende a tornar-se vazio, cuja referência encontra-seapenas nas doutrinas filosóficas.1.5 – A IntolerânciaForam os livres pensadores, adeptos de iluminismo, que “mobilizaram aopinião pública contra os horrores da intolerância, proclamaram o direito sagrado dediscordar, de guiar-se por sua consciência e por sua razão, e não mais pela religiãooficial do Estado80”.É interessante a abordagem de Umberto Eco quando descreve que aintolerância nasce na infância, naquela idéia de se apropriar de tudo o que segosta81. Desta forma, pode-se considerar que a intolerância faz parte da naturezahumana, e quando se pratica atos de tolerância se está indo contra essa natureza,tão enraizada nos seres humanos, que preferem ser donos da verdade a aceitar a

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opinião alheia.De certa forma a intolerância esta intimamente ligada a questões de foroíntimo, o indivíduo só se torna intolerante quando se encontra diante de situaçõesque se colocam contrárias àquilo em que ele acredita.A intolerância religiosa “tem sido responsável pelas mais sangrentas páginasda história da humanidade82”, isso pelo fato, de não se aceitar que o outro pense ouhaja diferente quando o assunto é religião. Na verdade, quando se está praticando

80 MENESES, Paulo. Filosofia e Tolerância. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, Vol. 23, nº 72, p. 7, 199681 ECO, Umberto. Definições léxicas. In: ACADEMIA Universal das Culturas. Op. Cit. p. 1782 SILVA JÚNIOR, Hédio. Painel: cotidiano e tolerância. In: SESC/SP. Op. Cit.34 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri Favarimatos de intolerância quanto à religião, se está querendo impor a sua própria verdadereligiosa ao outro que pensa diferente.Enquanto houve respeito pelas religiões politeístas à intolerância eradesconhecida, é o que se observa na Antiguidade Clássica, após o advento docristianismo e a pregação da existência de Deus uno, as práticas intolerantescomeçaram a surgir em virtude das diferentes opiniões sobre os deuses83.As primeiras manifestações de intolerância são encontradas a partir da IdadeMédia, com Inquisição da Igreja Católica84. Esta perseguia e condenava todosaqueles que se colocavam contra a sua doutrina, considerando-os hereges. Nesseperíodo a Igreja Católica além de exercer seu papel religioso, tinha forte influênciana política, e usava dessa influência para alcançar seus objetivos.Pode-se pensar, portanto, em intolerância como “uma atitude de ódiosistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e gruposespecíficos, à sua maneira de ser, ao seu estilo de vida e às suas crenças econvicções85”.Para que a intolerância religiosa se manifeste é necessário primeiramente,que exista a desaprovação quanto à crença e quanto às idéias do outro e,posteriormente, que existam meios através dos quais se impeça o outro demanifestar a sua crença86.Como já colocado anteriormente, Voltaire em pleno século XVII criticava aintolerância de uma forma bem agressiva, considerando a intolerância absurda e

83 ROUANET, Sérgio Paulo. O eros da diferença. Revista Espaço Acadêmico, nº 22, ano II, Março de 2003.Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br /022/22crouanet.htm84 SESC/SP. Op.Cit.85 ROUANET, Sérgio Paulo. Op. Cit.86 RICCEUR, Paul. Etapa atual do pensamento sobre intolerância. In: ACADEMIA Universal das Culturas. Op. Cit. p. 20.35 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri Favarimbárbara87. Já Rawls no século XX, analisa a questão da intolerância numaperspectiva mais equilibrada, colocando que a liberdade dos intolerantes só podeser limitada quando ameaçar a segurança e as instituições de liberdade88.Hoje, vemos a manifestação da intolerância religiosa através do fanatismoreligioso e do fundamentalismo, que transformam a religião no principal autor daintolerância. O termo fundamentalismo é usado para se referir àquela doutrinareligiosa que se apega a interpretação literal dos livros sagrados, sem aceitarqualquer interpretação ou discussão humana. Os fundamentalistas, ao tornarem suaverdade absoluta, acabam por não reconhecer e respeitar a verdade dos outros,

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passando a impor sua maneira de pensar89.Analisando a tolerância e intolerância, pode-se dizer que enquanto aintolerância é exclusão a tolerância é partilha, que a intolerância vem da ignorância,do medo, da cegueira, e a tolerância vem do conhecimento, que implica aceitação,que a intolerância é apropriação total da verdade e a tolerância é a aceitação doerro90.Não pretende-se trazer uma definição de intolerância, mas sim analisar seusaspectos, afinal os atos de intolerância não limitam-se à religião, alcança tambémos cenários políticos e culturais.O problema da intolerância não se encontra na discordância das idéiasalheias, mas sim quando essa discordância é exteriorizada em atitudespreconceituosas e violentas, que atentam contra a dignidade da pessoa humana.

87 VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Op. Cit. p. 3888 RAWLS, John. Op. Cit. p. 23989 BOFF, Leonardo. Op. Cit. p. 79 36 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri Favarim1.6 – A Tolerância no CotidianoÀ medida que a história evolui ampliou-se o aspecto conceitual de tolerânciae de sua aplicabilidade. Sabe-se que o conceito de tolerância surgiu num primeiromomento como uma forma de preservar a liberdade de consciência religiosa, masesse conceito foi evoluindo e outros direitos relacionados com essa consciênciareligiosa passaram a se revestir do conceito de tolerância, como é o caso daliberdade de culto.É com o reconhecimento do direito à liberdade de consciência, de crença e deculto, que o princípio da tolerância deixa de caminhar sozinho e passa a fazer partedos ideais da Democracia e dos Direitos fundamentais do homem91.E então esse princípio deixa de ser visto apenas como uma garantia deliberdade e passa a fazer parte do chamado Estado de Direito, onde não se pensamais em defender apenas seus próprios direitos, mas sim e principalmente, o direitodo outro92.Desta forma, o conceito contemporâneo de tolerância apresenta um novosentido, o do respeito à diversidade cultural. E essa diversidade cultural vai envolveras comunidades que possuem língua, religião e costumes diferentes. A prática datolerância passa então, a preservar não só a religião, mas também o respeito, odiálogo e a convivência entre as diferentes culturas93.

90 SHAHID, Leila e PAZNER, Avi. As intolerâncias e o processo de paz no Oriente Médio. In: ACADEMIA Universaldas Culturas. Op. Cit. p. 16391 TAPIES, Antoni. A arte entre o despotismo e a anarquia. In: ACADEMIA Universal das Culturas. Op. Cit. p. 12092 DOUSTE-BLAZY, Philippe. A ação dos políticos. In: ACADEMIA Universal das Culturas. Op. Cit. p. 229.93 CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Op. Cit. p. 137. 37 Limites da tolerância nos conflitos entre grupos religiosos – Flávia Negri FavarimA tolerância hoje, não é apenas o respeito a formas de pensar diferentes donosso, nem o respeito a uma religião diferente, esse conceito vai mais além, eleimplica a aceitação e o respeito ao diferente seja pela língua, raça, cor, credo oucondição social.