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Alberto Viegas O QUE NOS DIZEM CERTOS ANIMAIS VERSÃO PEDAGÓGICA

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10 Contos e Fábulas com Provérbios Macuas seleccionados da obra completa de Alberto Viegas edição e publicação apoiadas pela Fundação Girl Move para utilização pedagógica no projeto Mwarusi. Acredita em ti., que a Fundação desenvolve em Marrere, Nampula, Moçambique.

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Page 1: Título: O que nos dizem certos os animais            Escritor: Alberto Viegas

Alberto Viegas

O QUE NOS DIZEM CERTOS ANIMAIS

VERSÃO PEDAGÓGICA

ALBERTO VIEGAS nasceu na povoação de Kharau, Distrito de Cuamba, Província do Niassa, a 10 de Junho de 1927. Aos 17 anos de idade, matriculou-se na Escola do Internato da Missão de São José de Mitúcuè, onde começou a aprender a ler, escrever, contar e adquirir algumas noções da língua portuguesa, da qual, até àquela altura, não sabia sequer uma palavra, pois crescera a falar unicamente o macua, sua língua materna. Depois de ter terminado, com 21 anos, a 3ª classe rudimentar, ingressou na Escola Normal para Formação de Professores Indígenas, em Marrere (Nampula), tendo concluído o curso em 1950. A partir deste ano, leccionou em Mossuril e Lunga. Em Novembro de 1975, passou a leccionar no Curso de Formação de Profes-sores Primários, no Centro de Momola (Nampula), onde esteve até 1984. No ano seguinte, aos 58 anos de idade, ingressou no Instituto Médio Pedagógico, onde completou o Curso de História e Geografia, em 1987, já com 60 anos feitos.

Escreveu alguns livros, tratando de contos e fábulas e outros assuntos, nomeadamente: O QUE NOS DIZEM CERTOS ANIMAIS; LUNGA: À GUISA DE RETROSPECTIVA; O CURANDEIRISMO (opúsculo editado no Centro Catequético do Anchilo); e outros trabalhos ainda não publicados, tais como ALGUNS EPISÓDIOS DA HISTÓ-RIA DE NAMPULA; EDUCAÇÃO TRADICIONAL MACUA (Ritos de Iniciação: Rapazes e Raparigas); ABORDAGEM ÀS PRÁTICAS FUNERÁRIAS EM NAMPULA; ITHALE S’ATTHU – AMÁKHUWA (CONTOS POPULARES – MACUAS), HEROÍSMO SECULAR EM MOÇAMBIQUE – Poema; O ENSINO DE VALORES CULTURAIS (Exemplo da Cultura Emákhuwa) – Palestra; UM PEQUENO HISTORIAL DA IGREJA CATÓLICA EM NAMPULA.

Edição e Publicação apoiada pela Fundação Girl Move www.girlmove.org

facebook.com/girlmove

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Língua Portuguesa sem Acordo Ortográfico

N.º de exemplares: 100Título: O Que Nos Dizem Certos Animais (versão pedagógica)Autor: Alberto ViegasDireitos reservados: Ndjira, Grupo LeyaIlustrações: José AbrantesCapa: Ana de Almeida BrandãoIlustração da capa: José AbrantesPaginação: Ana de Almeida BrandãoRevisão Pedagógica: Ana AvillezImpressão e acabamentos: VASP – DPSEdição e Publicação apoiada pela Fundação Girl Move

Depósito legal: 391802/15ISBN: 978-989-20-5450-6

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Índice

Homenagem ao Escritor Alberto Viegas .......................................................................... 5Ao Leitor .......................................................................................................................... 7A Mosca ........................................................................................................................... 9O Gato e a Mulher ........................................................................................................... 13A Polémica Não Conduz a Bom Resultado....................................................................... 21A Razão da Grandeza do Ninho de “Naphípi” ................................................................. 27O Leão e a Gazela “Naáhe” .............................................................................................. 31A Aranha, Símbolo de Autonomia ................................................................................... 37O Coelho, Adivinho Prudente .......................................................................................... 43Guerra no País dos Animais ............................................................................................. 49A Arrogância do Director Mosquito ................................................................................. 59A Galinha e a Procura ...................................................................................................... 69

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Homenagem ao Escritor Alberto Viegas

Um dos mais célebres contadores de histórias do país, talvez o mais eminente pesquisador e divulgador da cultura Macua em Nampula.

Alberto Viegas conheceu a cultura Macua como um veterinário conhece as costelas de um animal, não só a conheceu como a promoveu, de que é exemplo esta obra: “O Que Nos Dizem Certos Animais”.

Não poderia ter sido mais preciso o amigo Vasco Fenita, quandoo descreveu: “Simples, modesto alérgico à ostentação e à exposição exibicionista, quase que pedindo desculpas de ser o que é: um cidadão íntegro e apru-mado, e um escritor bastante apreciado”.

Viegas não aceitava por nada neste mundo ser para além daquilo que era, uma criatura humilde que pautava pelos caminhos da decência humana.

Alberto Viegas foi docente mais de meio século, apesar do peso da idade que carregava, continuava a debitar os seus conhecimentos a quem mais precisava. A sua companhia deixava instruído a qualquer um. Viegas foi sem-pre “escravo” da sua consciência, procurando servir de igual modo a todos os que o interpelavam.

Entre outras coisas, Alberto Viegas ensinou-me que a natureza é a melhor escola da vida.Recusou ser tratado por “professor” quando assim o chamei, assumia-se simplesmente Alberto Viegas.

O povo, reconhecendo a sua incomensurável sabedoria, chamava-o por “Velho Viegas”. A melhor forma de homenagear Alberto Viegas é fazer com que o mundo inteiro conheça e leia as suas obras, por-quanto as obras de Viegas não são apenas um produto nacional, mas sim de toda a Humanidade.

Gento Roque Chaleca Jr.

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Ao Leitor

Tenho consciência e plena certeza de que, com este modesto trabalho, não te trago novidade alguma. Aliás, a minha intenção não é a de levar-te a um mundo por ti desconhecido. O que aqui procuro narrar é património do povo e, como tal, também do teu conhecimento, em virtude de tu seres parte integrante do mesmo. E talvez algum dos contos e fábulas que aqui apresento tenha eu escutado da tua própria boca. Quem o sabe? ...

Ao empreender esta tarefa, sou movido unicamente pela necessidade de tentar reunir por escrito algumas daquelas riquíssimas lições que através de contos, fábulas e provérbios temos ouvido a ser transmitidas oralmente e com incontestável eloquência pelos nossos progenitores, respeitáveis intérpretes da admirável e inesgotável sa-bedoria popular.

(…)Quero-me atrever a pedir-te, caro amigo, que também tu escrevas algo sobre a nossa oratura, para que as

nossas futuras gerações venham a conhecer e a dar o devido valor à cultura dos seus ancestrais. Lembra-te de que “As palavras voam, os escritos mantêm-se”. Não te esqueças também de que “O ter língua curta não impede al-guém de lamber-se” e que “As pernas esticam-se segundo o comprimento ou extensão da esteira”.

Com isto quero-te dizer que podes muito bem contribuir para mais enriquecimento da nossa literatura, con-forme as tuas capacidades e/ou possibilidades. Pouco?... Muito?... Não importa a quantidade. Regista. Outros acrescentarão algo ao que tiveres escrito.

Repara que os nossos velhos, nossas “bibliotecas vivas”, estão desaparecendo paulatina e inexoravelmente, pois que o tempo não perdoa …

Não esperes pelo dia de amanhã. Começa já a registar o que deles vais e fores ouvindo e colhendo, antes que seja tarde demais …

Estás de acordo?Mãos à obra, então, e … força!

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A MOSCA

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A Mosca

Toda a gente conhece a mosca, pois ela encontra-se em toda a parte. Mete-se em tudo e, nas suas viagens de longo percurso, serve-se de meios de transporte de todo e qual-quer tipo.

Aparentemente inofensivo, este insecto é um perigosíssimo inimigo, pela sua funesta acção de grande propagador de várias doenças infecciosas, motivo pelo qual é objecto de um renhido e implacável combate por parte do homem.

Nascendo e vivendo sempre na sujidade, nada de bom haveria de se esperar dela. Mas será verdade que da mosca vem unicamente o mal e nada de bom a aproveitar? Ana-lisemos cuidadosamente a questão, pois o mundo está cheio de factos contraditórios e iró-nicos.

Para já, observemos com atenção a mosca que acaba de pousar na nossa mesa ou em qualquer objecto à nossa frente. O que é que ela faz? Como primeiro acto, levanta as patas dianteiras, esfrega-as uma na outra, tornando a pousá-las; logo a seguir, levanta as de trás, esfrega-as também e pousa-as. E vai repetindo isto, de cada vez que muda de lugar.

Que é que ela nos diz com estes dois gestos? Ora bem. Esfregando as patas da fren-te, além de nos dizer que “devemos lavar as mãos quando estamos para tomar qualquer refeição, mesmo que esta seja considerada tão reles como são as fezes”, a mosca também nos ensina a olhar com confiança para o futuro e a trabalhar para a vida, para um melhor amanhã; com o gesto de esfregar as patas de trás, ela diz-nos que, trabalhando para o de-

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senvolvimento da nossa vida presente e futura, não nos devemos esquecer de olhar para o passado, analisar o que foi feito por aqueles que nos antecederam e ver quais foram os factores que contribuíram para os erros cometidos e para os fracassos e sucessos obtidos.

Mensagem: “À frente está o futuro; atrás, as experiências da vida” – diz a mosca, esfregando as patas anteriores e posteriores.

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O GATO E A MULHER

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O Gato e a Mulher

Não sei se todos temos notado o particular comportamento do gato, vivendo ele, quase sempre, em lares onde esteja presente uma mulher e mudando-se para a casa vizinha no caso de a mulher da primeira casa se ausentar durante alguns dias.

Quem ainda não tenha reparado neste fenómeno observe-o, a partir de agora e, então, confirmará ou negará com conhecimento de causa a veracidade da história que se segue.

No início da sua existência na Terra, o gato vivia no mato e, sentindo-se fraco, tinha medo de tudo e de todos.

Cansado de passar a vida sempre em sobressaltos e tribulações de vária ordem, resol-veu procurar quem fosse mais forte e poderoso que os outros, para lhe pedir protecção para si. Foi observando, de longe, os animais de grande porte, tendo sido o búfalo o primeiro po-deroso que encontrou, já que a respectiva compleição física lhe infundiu muita admiração e profundo respeito.

Numa manhã fresca, quando o búfalo estava pastando tranquilamente a erva da pla-nície, o gato aproximou-se do suposto poderoso senhor da floresta e, timidamente, disse: – Miyóó!1 (Eu!).

De imediato, o búfalo olhou para o sítio de onde partira a voz e, vendo o pequeno ani-mal, perguntou-lhe: – Quem és tu?1 Miyóó! : é pronúncia lamentosa do pronome pessoal miyo (eu), na 1ª pessoa do singular, em emákhuwa. Aqui, indica o miar um pouco alongado do gato, em estado de quem se apresenta com humildade.

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O gato explicou ao búfalo a sua história e terminou-a pedindo-lhe que o aceitasse como seu criado, acrescentando que sentir-se-ia orgulhoso e seguro quando tivesse por protector aquele forte e poderoso senhor.

Satisfeito com a humildade do gato e por este lhe ter elogiado as qualidades de força e poder, aceitou-o em sua companhia e protecção.

Tempos depois, apareceu um leão que, travando luta com o búfalo, acabou por o matar. O gato que, escondido nuns arbustos, assistira à luta terminada com a morte do búfalo, concluiu que se tinha enganado na escolha do protector, porque, afinal, o mais forte e poderoso era o leão, e, naquele mesmo instante, aproximou-se dele, dizendo: – Miyóó!

Levantando os olhos para o gato, o leão perguntou-lhe quem era. O pobre animal re-petiu a sua história e, em seguida, pediu protecção, pedido que foi aceite pelo rei da selva.

Quando passou a andar em companhia do leão, o gato sentiu-se e continuou a sentir--se imensamente de grande importância, pois descobrira que em si havia semelhança de algumas qualidades e características do seu novo protector, embora nele em miniatura, tais como a forma das patas, das garras, das orelhas, da cauda, do nariz, dos olhos, do focinho e o modo de rastejar para apanhar alguma presa, incluindo até o facto de ambos serem carní-voros e da família dos felinos…

Um dia, leão e gato encontraram-se com um enorme elefante. O gato, que nunca tinha visto tal monstro, disse ao leão, em voz baixa: – Patrão! Patrão! Veja aquela montanha em movimento e em direcção a nós…

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E o leão, não querendo mostrar-se fraco e medroso diante do seu protegido, não se preocupou em procurar algum esconderijo nem se pôr em fuga aberta, pelo que o elefante investiu contra ele e esmagou-o com uma só patada, como se se tratasse de um lagartinho.

Morto o seu senhor e protector, o gato pôs-se a chorar desesperadamente, chamando sobre si a atenção do elefante. Efectivamente, este olhou para ele e perguntou-lhe por que chorava, ao que o animalejo respondeu contando a sua desventura desde o início até àquele momento e, depois, pediu-lhe ajuda e protecção.

Ouvida a triste situação do gato, o elefante ficou profundamente comovido e levou-o consigo, garantindo-lhe toda a segurança e afirmando-lhe que não havia em toda a floresta um outro vivente maior em tamanho, mais forte e mais poderoso que ele.

Passados dias, surgiu na floresta um ser que o gato também nunca tinha visto. Era um ser de feitio estranho e vinha em posição vertical, levando consigo um pau a tiracolo… Pas-mado e encolhendo-se junto do seu protector, o gato disse, em voz baixa, apontando para o tal ser estranho: – Senhor! Senhor! O que é aquilo ali?...

O elefante levantou a tromba, abanou medonhamente as orelhas e afinou a vista para desco-brir o intruso a quem o gato se referia… Quando o avistou, atirou-se contra ele a toda velocidade, com o intuito de amedrontá-lo ou mesmo esmagá-lo, como havia feito ao leão, dias atrás. Mas, de repente, ouviu-se um forte estrondo, cujo eco encheu e estremeceu a floresta toda. O elefante caiu por terra, levantando uma espessa nuvem de poeira e… não se mexeu mais. Estava morto!

Afinal de contas, aquele ser em posição vertical era um homem, e o pau que trazia ao ombro não era um pau qualquer, mas sim uma espingarda… E das mais potentes!

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O gato, que com o ensurdecedor estrondo da espingarda havia caído e desmaiado no chão, abriu os olhos no momento em que o homem apreciava o tamanho e a beleza do marfim do elefante que acabava de abater. Reunindo o que de energia ainda lhe restava, conseguiu emitir numa débil, mas audível, voz um: –Miyóó!

Voltando-se para ele, o homem perguntou-lhe quem era e por que tremia. O coitado do bichano não teve alternativa senão contar novamente a sua triste história e a sina que o perseguia e, mais uma vez, implorar a protecção de que tanto necessitava, tendo sido aceite o seu lastimoso pedido.

De regresso a casa, acompanhado do gato, o homem disparou de novo o seu mortífero engenho, matando duas galinhas-do-mato. Pegou nelas e continuou a viagem.

O gato interrogava-se intimamente quem era aquele indivíduo, cujo tossir fazia estre-mecer os ares, matando quem quer ou o que quer que estivesse à frente dele, mesmo a uma grande distância!

Foram andando para casa… Vendo o marido a chegar, a esposa levantou-se e foi ao seu encontro. Recebeu as galinhas-do-mato e a arma. Guardou esta na sala e levou a caça para cozinha, a fim de a preparar.

O homem sentou-se na varanda e ali a mulher foi-lhe dar comida e água. À vista disto, o gato disse de si para consigo: “Este indivíduo, todo-poderoso lá no mato, que com um sim-ples tossir tudo mata à sua frente, afinal aqui em casa não passa de um parvo qualquer? Ve-jam só: a mulher arrancou-lhe o objecto com que matou o elefante e as galinhas-do-mato; tirou-lhe também estas e ele nem sequer esboçou um mínimo gesto de protesto e reacção!...

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Até comida e água é ela quem lhe dá! Não, não é este o protector seguro de quem preciso”. – rematou o gato os seus pensamentos.

Dali, tomou a decisão de ficar junto da mulher e nunca mais dela se apartou, pois ainda não surgiu quem tenha conseguido vencê-la. E, até aos nossos dias, o gato não vive em casa de um solteiro, porque nela não encontra a protecção da mulher, a mais segura das segu-ranças que há no mundo..

Mensagens: • “O poder não é agressão” ( Ikuru kahí owali )• “Lar sem mulher não é lar” ( Etthoko ehi muthíyana kahí etthoko ) – diz a sabedoria

do povo.

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A pOLéMiCA nãO COndUz A bOM RESULTAdO

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A polémica não Conduz a bom Resultado

Numa manhã de uma noite em que havia chovido torrencialmente, um homem saiu para a sua machamba. Olhando para o chão molhado, reparou que uma vara de porcos do mato tinha atravessado o caminho, pois viam-se por ali várias pegadas daqueles animais.

Seguiu o rasto, cautelosamente, e viu que o mesmo se dirigia a uma mata, onde havia crescido uma considerável quantidade de capim alto. Circundou-a, observando todos os sítios de possível saída dos animais que ali se tinham abrigado.

Após se ter certificado da permanência deles naquela mata, foi convocar os vizinhos para que viessem matar a caça que ele acabava de localizar naquela manhã.

Compareceram no local os convocados, trazendo algumas redes, e começaram a traçar o plano de acção.

– Vamos armar as redes no lado do oriente da mata, que é por onde normalmente pas-sam os animais quando saem deste lugar! – dizia um homem, em voz baixa.

– Não é assim! – contradisse um outro homem, em voz um pouco elevada. – Os porcos sairão por ali! – e apontou para o lado ocidental. – Nada, nada disso! – contestou um terceiro, em voz ainda mais elevada, argumentan-

do que os porcos saíram pelo lado sul. – Já se vê que vocês todos nada entendem da movimentação destes animais! – inter-

veio um outro indivíduo.

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– Eles vão sair por acolá! – disse, apontando algures e visivelmente aborrecido pelas indicações dos outros, para ele inadequadas.

– O quê?! – disse mais um, sem se preocupar com o tom sobremaneira elevado de voz. – Garanto-vos que desta vez, com certeza, estes animais escapulir-se-ão por além! – e

indicou um ponto a norte.Não querendo cada um dar-se por vencido, envolveram-se numa discussão acesa, cada

qual procurando fazer valer para os companheiros o seu ponto de vista pessoal no assunto da caça. As vozes foram-se elevando cada vez mais…

Nisto, ouviu-se o tropel de passos de corrida dos porcos, fugindo para muito longe dali e deixando os homens a discutir e com as redes ainda por armar.

– Que proveito nos trouxe a nossa tão calorosa discussão? – perguntou um ancião, que até àquele momento se mantivera calado.

– Se, em vez de desperdiçarmos o tempo com discussões, nos tivéssemos posto em ac-ção, não teríamos perdido a rara oportunidade de apanhar num só momento tantas peças de caça como estas que estiveram nas nossas mãos!…

Não houve quem ripostasse ao velhote, pois “contra os factos não há argumentos”… A partir deste acontecimento, até hoje, para evitar a perda de tempo com discussões

desnecessárias na resolução de problemas, os nossos velhos recorrem ao provérbio que diz: “Ovaanyihana otthyáwiha ikuluwe” (= A discussão afugenta os porcos). Isto é para dizer que “a polémica não leva a bom resultado”

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Que se medite seriamente nisto … e evitar-se-ão polémicas que, além de fazerem per-der tempo e não serem proveitosas, são sobretudo prejudiciais a todos os envolvidos.

Mensagens: • “Ovaanyihana otthyáwiha ikuluwe” (= A discussão afugenta os porcos). • “A bom entendedor, meia palavra basta”. • “ A polémica não leva a bom resultado”

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A RAzãO dA GRAndEzA dO ninHO dE “nApHÍpi”

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A Razão da Grandeza do ninho de “naphípi”

Quando, por qualquer circunstância, somos levados a passar em locais pantanosos, geralmente encontramos neles uma ave de cor parda e lodosa, de que é uniformemente revestida do alto aos joelhos.

Por vezes, levanta as penas da cabeça, o que lhe empresta a aparência de um ser com dois bicos, à semelhança de um pequeno martelo …

Não tem aspecto de uma ave de constituição robusta e o seu voo é, de certo modo, curto e cambaleante. Em suma: é uma ave frágil.

Alimenta-se basicamente de peixes de pequeno porte, de rãs e de girinos, por lhe se-rem de fácil alcance, sendo este o principal motivo da sua frequência e assiduidade nas águas de pequena profundidade dos pântanos.

Em língua macua, essa ave chama-se “naphípi”2, “naxékwa”, ou “ntíki”, e não sei qual é o nome que se lhe dá em português.

Seja como for, penso que para o nosso conto o nome da personagem em português ou em outra língua qualquer não interessa tanto como tal. O importante nesta ave não é, de facto, o seu nome, nem o seu aspecto físico, nem o seu hábito de passar horas e horas com as patas mergu-lhadas na lama dos pântanos cheios de sujidade e de mosquitos …, mas sim o ensinamento que dela a sabedoria popular tira para aplicá-lo à vida real da sociedade dos homens.

2 Naphípi: significa cegonha em português.

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O “naphípi” (“naxékwa” ou “ntíki” – para quem preferir qualquer destas designações…) é de entre todas as aves a que possui o maior ninho dos que se conhecem na nossa zona, o qual se encontra construído numa bifurcação de grandes árvores das margens dos rios ou das encostas dos montes. Tal ninho é, exteriormente, coberto com ramos secos e capim grosso e, por dentro, revestido de palha fina e fofa plumagem.

Mas, como é que o “naphípi” consegue construir um ninho de tão grandes dimensões, sendo ele de compleição física fraca?

Dizem os nossos versados na matéria, os da sociedade macua, que o “naphípi”, apesar da sua aparente insignificância, é o bondoso e estimado rei de todos os pássaros e aves, e que o seu casarão é resultado da contribuição de cada um daqueles seus queridos súbdi-tos, os quais lho constroem durante a noite, fora dos olhares dos homens e de outros seres curiosos, indiscretos e … invejosos da vida alheia…

Mensagem: • “Ser autoridade não é ser autoritário”.• “Ottittimihiwa kahí woóviwa” (= Ser respeitado não é ser temido).

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O LEãO E A GAzELA “nAáHE”

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O Leão e a Gazela “naáhe”

Há muitos, muitos anos, um casal de leões teve três filhos. Quando estes atingiram a idade de adolescência, o leão disse para a esposa:

– Penso que seria bom que submetêssemos os nossos filhos a uma prova psicológica, para vermos o nível de crescimento do seu carácter moral e, assim, sabermos mais ou me-nos qual vai ser a conduta de cada um deles perante a comunidade desta nossa honrada e linda floresta.

– Tens muita razão! – respondeu a mulher. – Também eu tenho andado a pensar nisso desde há algum tempo para cá, tanto mais que já notei no nosso terceiro filho umas atitudes estranhas que, embora pequeninas, muito me preocupam! – disse ela a terminar.

No dia seguinte, o leão foi à caça e convidou a mulher e os filhos para o acompanharem. Chegados a um pequeno rio, cujo leito se podia atravessar saltando por cima dele, o

leão deu um salto para a margem oposta e disse em voz alta, de modo a ser ouvido por to-dos: – Confio na minha mulher e nos meus filhos!

Saltou a mulher, por sua vez, e, junto do marido, disse: – Confio no meu marido e nos meus filhos!

Saltando, o filho mais velho disse: – Confio nos meus pais e nos meus irmãos! O mesmo fez e disse o segundo filho …

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Aquando da vez do mais novo, isto é, o terceiro e último filho, todos ficaram espanta-dos com a revelação que dele acabavam de ouvir, pois este, já junto deles, disse: – Confio unicamente em mim mesmo e em mais ninguém! …

Indignados, os irmãos mais velhos quiseram repreendê-lo, mas o pai disse: – Não o molestem, nem se preocupem com ele. Só que, a partir de já, ele fica excluído desta família e passa a viver sozinho, para saber quanto custa a vida.

– Não me importo com isso. Sou suficientemente crescido para resolver por mim mes-mo os meus problemas! – disse arrogantemente o leãozinho e, retirando-se do grupo, afas-tou-se para longe.

Daquele dia em diante, passou a levar uma vida solitária e a preocupar-se ele próprio pelos alimentos de que necessitava e pelos lugares onde devia abrigar-se durante as horas de repouso.

Como ainda era miúdo e sem experiência em assuntos de técnica venatória3, não con-seguia apanhar animais para seu sustento e, por isso, começou a passar fome e a sofrer carência de vária ordem, pelo que foi emagrecendo.

Certo dia, após uma noite de infrutífera caçada, sentindo-se muito cansado, o jovem leão embrenhou-se numa pequena mata que cobria um morro de muchém4 e, no cimo des-te, deitou-se, adormecendo logo a seguir.

3 Venatória: relativa à caça.4 Morro de muchém: significa morro de formiga termiteira, em Cabo Verde é denominado morro de bagabaga e em Angola por morro de salalé.

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Enquanto dormia, veio uma gigantesca jiboia que, em forma de um grande cinto, envol-veu a base do morro de muchém e, deixando ali a pele, foi-se embora.

Quando o pequeno leão acordou, espreguiçou-se, esticando os braços e as pernas, e começou a descer… De repente, imobilizou-se e ficou com os olhos esbugalhados de susto: estava diante de um monstro que nunca tinha visto desde que nascera!

Horrorizado, dirigiu-se para o lado contrário do morro. Lá estava o mesmo monstro terrível …

O leãozinho tentou procurar saída pelos diferentes sítios do morro, mas em todos eles estava o temível e desconhecido inimigo!

Não encontrando outra solução, ali permaneceu dois dias, sem comer nem beber, esperando que o desconhecido monstro se retirasse do lugar onde se encontrava enroscado. Apertado pela fome e sede, pôs-se a chorar desesperadamente.

Passou por ali um antílope. O leão pediu-lhe que o salvasse da crítica situação em que se encontrava, mas ele negou-se a prestar-lhe auxílio, dizendo que não só não acreditava que lhe agradecesse o favor, como também temia que o comesse, depois de o tirar do peri-go que corria naquele momento.

E isto foi-lhe sendo repetido por todos os animais que por ali passavam, aos quais pe-dia, chorando, que o salvassem.

Horas depois, apareceu uma gazela, das que em língua emákhuwa se chamam “naáhe”. O leão fez-lhe o pedido de o livrar da sua triste e melindrosa situação. A gazela disse-lhe que receava que a comesse, após socorrê-lo; mas o leão tanto choramingou e tanto lhe pediu,

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que ela acabou por se condoer dele e disse: – Isto, de que tens tanto medo, não é mais nem menos do que uma simples pele de jiboia, que ela aqui deixou na sua habitual exuviabili-dade5. Queres ver?– dizendo isto, pegou na pele deixada pela jiboia , fê-la em pedacinhos, atirou estes ao ar e o vento levou-os para longe …

Refeito do susto, o leão pediu humildemente à gazela que não fugisse dele, garantindo--lhe com toda a segurança de que não lhe iria fazer mal algum, e aproximando-se dela, pe-gou-lhe os pêlos do alto da cabeça, sem os arrancar, e fez com eles uma pequena madeixa, ao mesmo tempo que lhe jurava que aquele era o sinal de que nunca ele, o leão, faria mal a ela e a todas as gazelas da sua família. A partir daquela altura, todas as gazelas “naáhe” passaram a nascer com uma trança no alto da cabeça, sinal de amizade do leão para com elas. E, de facto, até aos nossos dias, nunca se ouviu dizer que o leão tenha morto alguma gazela daquela espécie.

5 Exuviabilidade: faculdade que certos animais têm de mudar de pele, sendo exúvia a pele por eles deixada. ( Em língua emákhuwa, tal pele chama-se niíhuuwa, niíhuwela, nuúhuuwa, nuúhuuwela, nikáha-hápa, niká-haápa e nikátxapha ).

Mensagens: • “O bem com o bem se paga” – diz um ditado popular. • “Vankhuma yoóreera, enkélavo yoóreera” (= De onde sai o bem, entra o bem).• “O filho que amargura os pais jamais conte com ventura” – João de Deus

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A ARAnHA

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A Aranha

No campo, no mato, no capim, nos ramos de árvores e até nas varandas e tectos de casas e outros edifícios, sobretudo os abandonados e os não higienicamente cuidados, encontra-mos um insecto da família dos aracnídeos, vulgarmente chamado aranha. Não é por acaso que se diz que este insecto é da família dos aracnídeos, porque, na verdade, existem muitos animais articulados a cuja família pertence o de que se quer falar nesta divagante narrativa.

Há variadíssimas espécies de aranhas, diferindo entre si tanto nos tamanhos como nas cores e outras estruturas físicas suplementares. Algumas são altamente venenosas, cuja picada pode criar sérios problemas no organismo de quem tiver o azar de, por alguma delas, ser atingido.

Utilizando uma substância produzida no seu corpo, a aranha faz um fio muito delgado, mas suficientemente resistente, com o qual tece uma rede, conhecida pelo nome de “teia de aranha”, com que, estendida de um ramo para outro, captura de modo traiçoeiro bichi-nhos para seu sustento.

Algumas variedades de aranhas têm umas teias que, para além de poderem emaranhar, são pegajosas, bastando encostar-se a elas, mesmo ao de leve, para ficar irremediavelmente preso, razão pela qual se encontram nelas em suspensão, com ou sem vida, as moscas, as borboletas, os louva-a-deus e até alguns gafanhotos.

Apesar de pertencer a uma família tão numerosa, como o é a família aracnídea, a ara-nha prefere levar uma vida solitária, sendo por isso que não se encontra em grupo. Quanto muito, pode-se encontrá-la em par, provavelmente um casal.

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Esconde-se num dos cantos da sua teia, geralmente no sítio onde se encontra localiza-do o seu ninho (com ovos ou com crias ainda pequenininhas), à espera da presa que há-de cair nas malhas da insidiosa rede, saindo do seu esconderijo nessa altura, para “dar o golpe de misericórdia” ao infeliz caído na sua armadilha… Por vezes, encontramo-la transportando debaixo do seu corpo o casulo, que contém ovos, por chocar.

– Mas isso de aranhas nada tem a ver connosco, nem nós com isso! – dirão os leitores ou os ouvintes desta historieta …

Tem algo a ver connosco, sim, bem como nós temos algo a ver com este insecto e com outros seres que, no nosso orgulho de homens e mulheres, julgamos de nenhuma impor-tância. Nada teria a ver connosco, nem nós com isso, se não fosse a eterna insatisfação da nossa curiosidade, que nos induz à prática de vasculhar o que se passa na vida alheia … (atitude negativa!) e no que acontece na Natureza … (qualidade positiva = investigação científica …).

Se nos dermos ao trabalho de reflectir com um pouco de profundidade e sem precon-ceitos de superioridade intocável, veremos, com assombro nunca por nós imaginado, que a aranha nos dá muitas e valiosas lições para a nossa correcta vivência na sociedade humana. Ora, vejamos:

a) A aranha não necessita de comprar, nem de pedir a alguém, os recursos materiais para com eles tecer a rede com que apanha os alimentos para viver: o fio é pro-duzido no seu próprio organismo, o que indica autonomia material, económica e

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financeira.b) Vivendo isoladamente e não caçando em grupo, evita muitos problemas para consi-

go e para com os outros: o que revela cautela e prudência.c) Transportando consigo o casulo onde se encontram os seus ovos ou as suas criazi-

tas, demonstra a solicitude que os progenitores devem ter para com os seus filhos: exemplo de verdadeiro amor parental.

d) Mantendo-se horas a fio a aguardar o momento em que a caça há-de cair na rede, ensina-nos saber esperar: calma, paciência e perseverança.

– “Continuai a reflectir pacientemente no modo de vida da aranha, e vereis que as lições a tirar dela são intermináveis. Vede, depois, se ela não é o símbolo de autonomia em muitos (se não em todos) aspectos do viver neste complexo Mundo da Terra!” – dizem os nossos filósofos naturais terminando esta explanação sobre a aranha …

Mensagens: •“Antes só, que mal acompanhado”.•“Não sejas um peso para os outros”.

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O COELHO, AdivinHO pRUdEnTE

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O Coelho, Adivinho prudente

Um dia, o leopardo estava a perseguir renhidamente um antílope. Depois de muita e desesperada volta na floresta, o perseguido, não vendo outra forma de se livrar do seu per-seguidor, atirou-se a uma lagoa, mergulhando todo, de tal maneira que apenas ficaram à vista, fora da água, os chifres e, muito disfarçadamente, as narinas.

O leopardo, na sua ânsia de apanhar rapidamente o animal que as circunstâncias lhe ofereciam, mergulhou também e pôs-se a procurá-lo. Não o tendo localizado, emergiu para respirar um pouco. Vendo uns galhos que sobressaíam à superfície da água da lagoa, julgou que eram dois ramos de uma árvore já seca e agarrou-se a eles, a fim de descansar, com o intuito de tornar a mergulhar para novas buscas ao antílope.

Naquele instante, passou por ali o coelho, que na zona era considerado um adivinho de grande e incontestável fama, o qual, vendo o leopardo agarrado aos galhos, com o cor-po todo molhado, perguntou-lhe o que estava a acontecer, ao que o leopardo respondeu: – Amigo Coelho, estava eu a perseguir um antílope e quase me caía nas garras, pois ele ia tão cansado de correr que não haveria maneira de se safar. Só que, para azar meu, o esper-talhão viu esta lagoa e meteu-se nela. Ando à procura dele e não o vejo. Peço-te que, através dos teus processos de adivinhação, me ajudes a localizá-lo …

– Não há problemas, amigo Leopardo! – volveu o coelho e abrindo a sacola, que trazia a tiracolo, retirou dela os objectos de adivinhação, colocou-os nas mãos e pôs-se a agitá-los, monologando e olhando de soslaio para o leopardo.

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O coelho sabia muito bem que aqueles galhos, a que o leopardo estava agarrado, eram precisamente os chifres do antílope procurado, mas para não ser cúmplice na morte de tal animal e para o salvar da melindrosa situação em que o mesmo se encontrava, terminou a operação de adivinhar, dizendo em voz alta ao leopardo: – Amigo, estas coisas que se adi-vinham6 estando nas mãos são difíceis de se ver!7 … – e ficou olhando ora para o leopardo, ora para os objectos de adivinhação que mantinha nas suas próprias mãos.

Ouvindo estas palavras, o leopardo pensou que o coelho se referia aos objectos de adivinhação que ele estava agitando nas mãos, para a direita e para a esquerda, e que, por-tanto, não estava a conseguir descobrir onde se localizava o antílope ... Largando os chifres a que estava agarrado, saiu da água e foi-se embora, ficando salvo deste modo o antílope, que também saiu da água e foi para a sua vida.

Por que motivo foi que o coelho, sabendo muito bem que os galhos que o leopardo tinha nas mãos eram os chifres do antílope por ele procurado, não lho disse com clareza? …

Foi para nos ensinar que a sabedoria e os conhecimentos que possuímos nunca devem servir para prejudicar os inocentes, os perseguidos ou quem quer que seja.

Também foi para nos alertar que, muitas vezes, desconhecemos o que está connosco, o que está nas nossas mãos, como é o caso das formas e métodos de correcto relacionamento com a população rural, que não conhecemos, apesar de nós próprios sermos produto dessa mesma população … 6 … que se adivinham = que se procuram.7 … difíceis de se ver = difíceis de se acertar , difíceis de localizar.

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– “Continuemos procurando e analisando com sincero interesse os ensinamentos das historietas sobre os animais, e encontraremos a rica sabedoria e a maravilhosa cultura do nosso povo!” – dizem os que o sabem.

Mensagens: • “não uses teus conhecimentos em prejuízo de alguém”.• “protege o inocente e não te alies ao mais forte”.

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GUERRA nO pAÍS dOS AniMAiS

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Guerra no país dos Animais

Os nossos filósofos congénitos8, extraordinários conhecedores e contistas de histórias de animais, dizem que, no princípio dos tempos, não havia diferença de vida entre os habi-tantes do país dos animais. Todos conviviam pacificamente e sustentavam-se dos mesmos tipos de alimentos, constituídos essencialmente por folhas, frutos, raízes de plantas e outros vegetais. Portanto, todos eram vegetarianos.

À medida que os animais se iam multiplicando sobre a Terra, tais alimentos começaram a escassear e, então, começaram também a surgir as manifestações de disputas a respeito deles: primeiro, em casos esporádicos e de impulso natural; a seguir, em casos mais fre-quentes e generalizados; e, mais tarde, em formas organizadas e comandadas por alguém.

Deste modo, tiveram origem as guerras entre os animais, em cujas batalhas e recontros saíam vitoriosos não sempre os mais corpulentos, mas sim os mais bem armados. (Neste caso, os armados de fortes e afiadas garras e de poderosos colmilhos9).

Para incutir respeito, medo e terror nos mais fracos, os bem armados e vitoriosos passaram a comer a carne dos que eram vencidos e mortos em tais batalhas e recontros, acabando por se habituarem a matar e alimentar-se dos outros. Foi assim que nasceu o grupo dos carnívoros.

Cansados de viver sempre em sobressaltos, os mais fracos, que continuavam a alimen-tar-se de vegetais, constituindo o grupo dos herbívoros, um dia decidiram separar-se dos carnívoros e passar a viver na outra margem do rio que por ali passava. Assim o fizeram.

8 Congénitos (adj.): naturais; inatos; que nasceram com a sua sabedoria. 9 Colmilhos (subst).: dentes caninos de certos animais.

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Passados alguns meses (não se sabe quantos …), caiu sobre a região dos herbívoros uma grande fome, por se ter acabado a erva de que se alimentavam, não havendo tempo suficiente para brotar e crescer a nova, que era devorada logo que espreitava fora do chão … Bem desejavam atravessar de novo o rio e voltar a viver no lado onde haviam ficado os que se tinham transformado em carnívoros, mas não podiam fazê-lo, porque estes já não comiam erva e, por várias formas, à luz do dia ou na calada da noite, se introduziam na área dos herbívoros, onde apanhavam um e outro destes, levando-os para a sua zona e lá os co-miam regaladamente. Assim, a erva do seu lado crescia à vontade, chegando a atingir uma altura bastante considerável e tomando, neste caso, a designação de capim.

Quando um herbívoro, apertado pela fome, se atrevesse a tentar ir comer o capim que abundava no outro lado, era certo que nunca mais voltava à sua área, pois acabava sendo morto e comido pelos senhores da referida região de abundância de comida, que eles nem sequer tocavam para nada.

Sentindo que a vida na terra dos herbívoros (e dele, naturalmente …) era cada vez mais insuportável, o coelho convocou-os e propôs-lhes a ideia da possibilidade de invadir e ocu-par a zona habitada pelos carnívoros.

– Como será isso possível? – perguntaram-lhe, incrédulos, os mais velhos e experien-tes da vida, recordando a morte trágica dos que alguma vez se atreveram a atravessar o rio para aquele lado, tais como o búfalo, o palave, o elande, o cudo e outros animais de grande porte que, tendo ido àquela margem, nunca mais foram vistos, por ali terem sido mortos e comidos, evidentemente.

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– Pois claro! – retorquiu o coelho, continuando a expor a sua audaciosa ideia:– Se nós quisermos ir para lá isoladamente, um por um, acabaremos morrendo todos às suas mãos; mas, se para lá avançarmos juntos e organizados, segundo o plano estratégico que concebi, todos eles vão fugir cobardemente diante de nós, que ficaremos com tudo aquilo! ... Que acham, vocês? – perguntou-lhes, terminando a exposição da sua proposta, com um tom trocista e desafiador, que serviu para infundir neles a coragem de tomarem uma decisão a favor da luta pela sobrevivência folgada. Todos concordaram com a ideia, apesar de ser de realização arriscada, e pediram ao coelho que tomasse ele próprio o comando da operação de assalto, para garantir a eficiência e eficácia do plano de guerra que havia arquitectado.

Preparação

No dia combinado, e reunidos os herbívoros, o comandante coelho pôs-se a organizá--los e dispô-los para a batalha decisiva, dividindo os combatentes em grupos, de acordo com as suas espécies. Assim, colocou na vanguarda, junto à margem do rio, o grupo dos perus bravos (mipisa, na língua emákhuwa), divididos em dois subgrupos; por detrás destes, ali-nhou o grupo das perdizes (as da variedade conhecida pelo nome napíri, na mesma língua); a seguir, dispôs o grupo das raposas, (que, embora carnívoras, se alimentam também de frutos …); depois, vinham os pombos e os patos (estes últimos, acompanhados dos seus patinhos); à retaguarda deste grupo, seguia o das pintadas (ikhaka), vulgarmente chamadas

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galinhas-do-mato ou galinhas-da-índia; e, finalmente, o das rolas grandes (variedade de nome kurúkukhu, em emákhuwa do litoral, e nuúvaátte, no falar do interior da nossa terra).

Nesta organização, o coelho atribuiu a cada grupo uma tarefa específica, que devia ser executada rigorosamente ao som cavo e modificador das vozes dos respectivos membros. Os restantes herbívoros deviam ir atrás dos outros, sem estorvar o trabalho dos combaten-tes.

Diga-se, em abono da verdade, que os preparativos dirigidos pelo coelho não passaram despercebidos aos carnívoros que, por sua vez e sob as ordens dos leões, se aprontaram, afiando com afã as já afiadas garras e os poderosos dentes, «para receber os invasores» – diziam eles.

Vimos o modo como estavam organizados e dispostos os herbívoros, numa margem do rio. Vejamos agora a organização e disposição dos carnívoros, na outra margem: à frente, ficaram os lobos; atrás destes, os leopardos; a seguir, as hienas; e, por último, os leões, em cujas mãos estava a direcção da defesa.

Posições tomadas

Enquanto os herbívoros estavam de pé e prontos para avançar em direcção ao alvo, os carnívoros tomaram a posição de agachamento, de bruços, rentinhos ao chão e encobertos pelo superabundante capim da sua área, à espera que os invasores se aproximassem, para

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lhes saltarem em cima, de surpresa, tendo recebido dos leões ordens terminantes de ne-nhum arredar o pé, acontecesse o que acontecesse …

O assalto

Dado o sinal de ataque (pelo coelho), os herbívoros avançaram todos juntos, atraves-saram o vau do rio, galgaram impetuosamente a margem oposta e invadiram a região dos carnívoros, ao mesmo tempo que lançavam o grito de guerra, cada um no sotaque dos da sua espécie, num barulho ensurdecedor nunca imaginado, até àquele dia …

Dizia um grupo de perus bravo, em alta e medonha voz: – Yookhala, yookhala yiirale lápaa!10 Yookhala, yookhala yiirale lápaa! ... (isto é: Há algo, há algo agachado no chão! Há algo, há algo agachado no chão …). A isto fazia coro o outro grupo dos mesmos, dizendo: – Tiívi? Tiívi? Kittottevo! Tiívi? Tiívi? Kittottevo! ... (quer dizer: Qual é? Qual é? Para eu apanhá-lo! Qual é? Qual é? Para eu apanhá-lo! …).

As perdizes napíri gritavam: – Nnóomukorokotxa!11 Nnóomukorokotxa! (=Provoquemo--lo no seu esconderijo! Provoquemo-lo no seu esconderijo!).

10 lápaa: expressão que indica a posição de quem ou do que está agachado ou deitado de bruços, como os sáurios (jacarés, lagartos e outros rép-teis).11 nnómukorokotxa: primeira pessoa, plural, do verbo okórokotxa, que significa provocar ou mexer com uma vara o que está escondido dentro de um buraco ou entre o capim.

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Entrando, simultaneamente, em acção, regougavam as raposas: – Nimwiire lwé!12 Ni-mwiire lwé! (que se traduz por: Partamos-lhe a cabeça! Partamos-lhe a cabeça!).

Por cima, voavam os pombos que, descendo à terra como aviões, levantavam com as asas espessas nuvens de poeira, ofuscando os olhos dos inimigos, e arrulhavam: – Murima wookírukunuwa! Murima wookírunuwa! (que quer dizer: “O coração já se me transformou!”, ou: “Já não sou o mesmo!”, ou, ainda: “Estou muito zangado!”, “Estou fora de mim!”).

Do lado dos patos, ouvia-se: – Mwaalo aka! Mwaalo aka! Mwaalo aka!... (que significa: Minha faca! Minha faca! Minha faca! …), grito este reforçado pelos patinhos, que iam após os pais, dizendo: – Kinoóna mmirimani lyoo-lyoo-lyoo-lyoo-lyoo!13 (isto é: “Sinto perturba-ções na barriga!” … – o que indica diarreia, provocada pelo consumo excessivo de carne …).

Por sua vez, as pintadas ikhaka faziam-se ouvir, ameaçadoras: – Thikií! Thikií! Thikií! (indica othíkila, isto é, cortar ou corte …).

E as rolas de variedade maior, as de nome kurúkukhu ou nuúvaate? … Elas, secundando as ikhaka, diziam: – Wáni14, mpurúleke! Wáni, mpurúleke! Wáni, mpurúleke! … (=Tomai, ide arrastando! Tomai, ide arrastando! …).

12 lwé: palavra onomatopaica que exprime o som produzido pelo partir violento de um objecto seco ou um tanto duro; som que indica um estouro; ruído de coisa dura, quando se parte.13 lyoo-lyoo-lyoo-lyoo: expressão derivada do verbo defectivo olyoolyowa, isto é, ser doce, ou simplesmente doçura, ,sentir prazer. Também indica a sensação que ocorre na barriga ou no recto, provocada por diarreia: uma espécie de “prazer” ambíguo, que só se pode entender no contexto de uma frase completa, ou num contexto situacional. 14 Wáni (= tomai) é diferente de waáni (= vinde). Em lugar de wáni! (tomai), também diz-se éni!.

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O desfecho

Acossados pela vozearia tão poderosa e ameaçadora da numerosa multidão, os carní-voros entraram em pânico e puseram-se em fuga: primeiro, um por um, começando pelos lobos, que formavam a ala de vanguarda e de muralha para embate dos atacantes; a seguir, os leopardos, as hienas e outros.

Os leões tentaram fazer tudo o que estava ao seu alcance para ultrapassar a situação dramática em que se encontravam eles e o seu exército de defesa da área, procurando a todo o custo que, mediante as suas autoritárias ordens de comando e ameaças de punição aos desertores, o resultado final da batalha fosse a seu favor. Mas todo o esforço foi em vão! ... Em pouco tempo, a fuga cresceu e tornou-se em debandada geral, preocupando-se cada qual em salvar a sua pele!

Tomados pelo horror da derrota inevitável, os leões acabaram por “se pôr ao fresco”, também eles, atrás dos outros fugitivos.

Sempre em correria desenfreada, os carnívoros conseguiram contornar o perigo que os ameaçava e atravessaram o rio a montante, detendo-se na margem oposta só depois de se certificarem de que já não eram perseguidos pelos seus imperdoáveis inimigos

(Analisando os factos com sinceridade e justiça, chega-se à conclusão de que eram ini-migos suscitados pelos próprios carnívoros, devido ao uso abusivo e ganancioso do preten-so poder por parte destes sobre aqueles).

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Particularidade importante

Alcançada a vitória sobre os carnívoros, nunca se ouviu dizer que os que tiveram tarefa concreta e parte activa no combate se pusessem, depois disso e em alguma vez, a ques-tionar aos outros herbívoros, mais ou menos em termos deste género: – O que fizestes vós, para merecerdes tomar parte connosco no usufruto do bem-estar por nós conquistado corajosa e duramente, se nem sequer se ouviu tão somente um fiozinho da vossa voz, em apoio ao nosso esforço?

– “Não o disseram, porque muito bem conheciam o maravilhoso exemplo dos membros e órgãos de um corpo vivente: o produto do trabalho dos olhos beneficia a todos, e vice--versa, até mesmo aos que à primeira vista parece não terem tarefa alguma! ” … – concluem os contadores destas histórias à volta da lareira.

Mensagens: • “Quem não arrisca não petisca”.• “A união faz a força”.• “Cada um para todos e todos para cada um”.

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A ARROGânCiA dO diRECTOR MOSqUiTO

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A Arrogância do director Mosquito

Ouvi dizer que, tempos atrás, os mosquitos trabalhavam harmoniosamente numa al-deia, estruturados em direcções, departamentos, sectores e não sei em que mais, dirigidos por chefes das respectivas divisões hierárquicas e coordenados por um director de escalão mais alto na zona.

Periodicamente, cada colectivo elaborava um relatório e enviava-o às estruturas ime-diatamente superiores, para elas ficarem informadas sobre o número de pessoas que ti-nham sido picadas por cada mosquito; a quantidade das que foram favoráveis ao processo de transmissão da malária e de quantas cruzes; quantas haviam sucumbido, perdendo a vida; quantas e quais tinham sido resistentes ao ataque, impedindo o sucesso das suas in-vestidas e picadas mediante o uso de redes mosquiteiras; que metodologias, técnicas e tác-ticas militares usavam os mosquitos, para eficácia e eficiência das suas invasões à população humana da aldeia; em que bases se abrigavam durante o dia e onde se reproduziam, para o aumento do efectivo do seu exército; se tinham necessidade ou dificuldades de aquisição de instrumentos e produtos para afiação e reenvenenamento das suas sondas de trabalho da perfuração da pele das pessoas para injectar nelas os germens do antigo paludismo, hoje denominado por malária; e mencionavam, nesses relatórios, outros dados e informações inerentes à sua actividade nocturna…

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Acho importante salientar que tais relatórios eram canalizados ao topo da hierarquia através de vias estabelecidas em ordem crescente, à excepção de problemas de cariz indi-vidual ou particularmente delicado, cuja apresentação ao dirigente máximo não era con-veniente fazê-la em documento público ou habitual, devido ao seu carácter estritamente confidencial, e à urgência do momento.

Assim decorriam as coisas, até que, passados anos, ali foi colocado um novo director dos mosquitos, transferido não se sabia donde. Era um mosquito arrogante, autoritário, de complexo de superioridade e sempre com cara de poucos amigos. Logo nos primeiros dias da sua chegada, convocou uma reunião extraordinária, a ter lugar ao lusco-fusco, na copa de um determinado cajueiro, para falar com todos os chefes de sectores, depar-tamentos e directores de escalão imediatamente inferior ao dele, reunião alargada aos simples trabalhadores nocturnos da aldeia (os mosquitos, logicamente, incluindo os per-cevejos, as carraças caseiras, as larvas subterrâneas, as baratas e as pulgas …). Avisado de que estavam todos já reunidos e prontos a escutar e executar as suas sábias orientações, dirigiu-se para lá, exibindo ares de pavão e, ao aproximar-se do sítio, pôs-se a fazer sinais com as mãos, de baixo para cima, em movimentos de vaivém, dando a entender com isso de que dava ordens aos reunidos que se levantassem para o cumprimentar, o que efecti-vamente aconteceu.

Após tê-los mandado sentar, tomou a palavra e falou de muita coisa relacionada com o trabalho, frisando que deviam realizá-lo com todo o rigor contra a saúde dos seres humanos,

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sem olhar se eram adultos, jovens, mulheres grávidas, puérperas15 ou não, e as crianças, não interessava de que idade fossem … Também falou longamente sobre o respeito devido aos superiores hierárquicos, em especial o devido à sua pessoa, como director máximo de todos eles, e terminou o seu discurso dizendo:

– Eu não vim cá para brincar, mas sim para vos endireitar a todos, pois tenho conheci-mento de que reina aqui, nesta aldeia, uma anarquia total, de tal modo que não se consegue distinguir a diferença entre chefes e subordinados! … Comigo, isso não cola! … Acabou-se! … Eu falo só, e somente só, com directores imediatamente abaixo de mim. Portanto, a partir de hoje, quem tiver algum problema ou alguma informação a dar-me não venha directa-mente a mim. Coloque a preocupação ao respectivo chefe, e este ao seu director, que irá ter comigo, a informar-me de que se trata … Estão a ouvir-me?– perguntou, com ares sober-bamente ostensivos, para persuadir os presentes de que de facto ele era uma personalidade muito importante e dirigente indiscutível.

– Sim, Senhor!!! – mais que responder, berraram todos, em simultâneo, como se, de re-pente, tivessem sido violentamente sacudidos por uma invisível mola de força extraterrestre …

– Sim, Senhor? … Senhor quem? ... Que Senhor? …– perguntou o vaidoso director, so-bremodo irritado por não ter sido mencionada na resposta a elevada e honrosa categoria que mui dignamente o colocava acima dos restantes funcionários da instituição da mosqui-tada ali representada e, na altura, por ele dirigida.

15 Puérperas: mulheres que deram à luz recentemente.

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– Siim, Seenhoor Diireectoooor!!! – rectificaram, de modo irónico, os subordinados, ironia essa que a cegueira da arrogância do visado não lhe permitiu notar ou dar conta dela.

– Isso é que é! … “Sim, Senhor Director!”, é que se diz, e melhor ainda é dizer “Sim Senhor, Senhor Director!” … Ouviram? ... Não é só “Sim Senhor!”. Isto é vago, nada diz de concreto … Sim, Senhor quem? … Com isto, não se chega a saber de que hierarquia é a indi-vidualidade a quem vocês respondem! … Yáaa! … Voltando um pouco atrás: Nunca ninguém se atreva a violar as minhas ordens, se não estiver com vontade de levar um pesado pro-cesso disciplinar de que nunca se há-de esquecer em toda a sua longa ou curta vida sobre a Terra! … Estão a ouvir? … Yáaa! ... Agora, vamos lá saber: Alguém tem alguma dúvida a colocar aqui? … Ou melhor: Quem é que não entendeu algo? … – perguntou com modos de superioridade, terminando a sua alocução.

Nenhum tossiu nem mugiu e, tendo recebido ordens para dispersar, cada um voltou para o seu local de serviço, nas casas ou palhotas onde, àquelas horas, estava dormindo a sono solto a gente da aldeia. A noite já ia alta e escura como breu, propícia à nociva activi-dade dos mosquitos.

Nas reuniões posteriores, a tónica e os modos do discurso do director mosquito não diferiam muito do que havia proferido na primeira reunião por ele convocada e dirigida. Os participantes nada diziam, limitando-se a ouvi-lo a falar e a entreolharem-se, fazendo com os olhos sinais enigmáticos uns aos outros. A harmonia anteriormente ali conhecida desa-pareceu. Ninguém contribuía com o seu saber e experiência. Era só cumprir o que o senhor director mosquito ditava.

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Vivia-se este ambiente de tensão, quando, um dia, surgiram na aldeia homens trajados de modo diferente do dos habitantes locais, pois vinham equipados de uma farda de cor esquisita e usavam máscaras que lhes escondiam a boca e o nariz, transportando às costas umas bombas que, accionadas, vomitavam nuvens de fumo mortífero, em lugar de balas costumeiras, vasculhando os abrigos e destruindo implacavelmente as bases ou centros de reprodução, recenseamento, busca, mobilização e integração de indivíduos, para revigorar o exército dos trabalhadores da morte.

Eram homens dos Serviços de Saúde Pública, encarregues de proceder ao saneamento do meio habitacional, que tinham vindo pulverizar com insecticidas a zona.

Imaginem vocês a surpresa, o pânico e a aflição dos mosquitos, perante o horror do ataque inesperado, protagonizado por um inimigo invulgar, desconhecido por eles, e mu-nido de um armamento bélico incomparavelmente superior em material de fabrico e em poderio militar!!!

Atingidos pelos gases insecticidas, uns caíam de bruços, mordendo o pó da terra; ou-tros estatelavam-se de costas, todos eles para nunca mais se levantarem, tornados eterna-mente reféns da morte.

Julgo supérfluo mencionar o número dos que ali pereceram, juncando o terreno com os seus cadáveres, além daqueles que foram caindo para sempre ao longo do itinerário da fuga para algures, inebriados pelo fumo venenoso que haviam inalado na aldeia. Os que conseguiram escapar com vida puseram-se em debandada desenfreada, cheios de pavor, fugindo para longe dali …

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E o mosquito director? … O que foi feito dele? … Estava a dormir no quarto da casa que, na sua qualidade de dirigente de escalão superior, lhe havia sido atribuída, ficando relativamente distante dos seus subordinados. Acordou sobressaltado, devido ao ruído produzido pelo tropel dos passos dos fugitivos. Apercebendo-se do perigo que dele se aproximava, deu um salto pela janela traseira e desapareceu pelo mato dentro, longe do povoado ...

Dias depois do fatídico acontecimento, os prófugos começaram a espreitar a aldeia, a ver se se tinha restabelecido a calma e, a medo, foram regressando, um por um. Entre os primeiros a chegar, contava-se o déspota director mosquito, que não se fez demorar em convocar uma reunião de emergência com os sobreviventes e, em tom de repreensão, disse: – Colegas! (pela primeira vez os tratava por colegas …). – Afinal, vocês são assim tão maus?! … Souberam do perigo iminente e não me vieram avisar, para eu fugir a tempo! Por que procederam assim para comigo? – perguntou, calando-se a seguir.

– Senhor Director! – atreveu-se (também pela primeira vez …) um dos presentes a res-ponder. – Ninguém teve tempo de ir falar ao seu chefe sobre o ataque, para ele ir ter com o seu director, a fim de, por sua vez, este correr para casa do nosso director máximo e alertá--lo! Cada qual tratou de salvar a sua vida! O Senhor Director deu-nos ordens terminantes de que nenhum de nós devia atrever-se a ir ter consigo, para lhe colocar problemas, fossem de que índole fosse! … Estou a mentir, colegas? …

– Nâãão!!! – gritaram os mosquitos, em resposta ao colega.Perante a evidência dos factos, o arrogante director nada teve a dizer!

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Mudou de comportamento? … Não se sabe. O que se sabe é que, como função não é profissão, pouco depois foi despromovido do cargo de director, passando para a categoria de um funcionário simples, igualzinho aos que menosprezava no seu áureo tempo, em que pensava ser chefe incontestável da mosquitada, esquecendo-se que acima dele havia “os mais mais ”! … Foi então que, olhando para si mesmo, se lembrou que não era diferente de um mosquito qualquer e, em tudo, igual a todos os outros mosquitos, como se passa com todos aqueles que são mosquitos …

– “Quantos e quantos mosquitos humanos não pululam entre nós, à semelhança do desta história e em idênticas condições e circunstâncias?! ” –terminam o conto os narrado-res, convidando-nos desta forma a reflectir sobre a nossa conduta social e sobre o que nos pode acontecer na nossa vida profissional.

Mensagens: •«Quem se exalta será humilhado» (Mt. 23, 12; Lc. 14, 11; 18, 14).• «Aquele que se julga firme tenha cuidado para não cair» (1Cor. 10, 12)..

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A GALinHA E A pROCURA

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A Galinha e a procura

No princípio da existência do mundo, a galinha foi pedir a Deus que lhe desse poderes semelhantes aos d’Ele, para ela viver com felicidade sem fim.

Após escutar com atenção e ter analisado minuciosamente a preocupação e os desejos que Lhe eram expostos pela descontente criatura, Deus descobriu que o que ela tinha era uma tamanha ambição pela supremacia em relação às outras criaturas.

A galinha não se sente satisfeita, nem Me agradece a sorte que lhe dei, isentando-a da preocupação que teria pelos alimentos e vestuário, como fiz com as outras aves, de todos os tamanhos e espécies que vivem sobre a Terra e sulcam os ares do céu em todos os senti-dos! Não vê ela como estão contentes os pássaros e os outros animais com aquilo que têm e com as condições em que cada espécie se encontra? Só ela é que não se sente feliz com a sua sorte! Agora quer poderes semelhantes aos Meus! … Logo, quer ser igual a Mim. Que atrevimento!!! … Ok! Vamos ver … – assim pensou e concluiu o Criador e, em seguida, disse para a galinha: – Vai em busca da procura e trá-la aqui, para Eu dizer-te o que deves fazer depois, a fim de possuíres o que desejas e Me pedes.

A galinha, desprovida de inteligência que é, e na ânsia de rapidamente ser senhora de poderes como os do Criador do Universo, não procurou informar-se de Deus o que era a tal procura, nem Lhe perguntou de que cor era, que tamanho tinha, que características a distinguiam de outros seres, onde habitava, etc., etc. Em suma: não se interessou em saber

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mais nada, preocupada apenas em obter os poderes da felicidade a todo o custo (e quanto mais depressa, melhor!).

Saiu da presença de Sua Divindade o Senhor Deus, a correr. E o primeiro lugar onde parou foi a casa de um ser chamado Homem. Ali, pôs-se a procurar a localização da procura que lhe foi pedida pelo Senhor de todos os poderes. Não levou muito tempo a descobrir que a casa do Homem não era o sítio apropriado para o seu objectivo, porque ali as disputas e discussões ou brigas eram constantes: ora, entre marido e mulher; ora, entre pais e filhos; ora, entre irmãos e irmãs; ora, irmãos entre si; ora, irmãs entre elas; ora … , ora … , ora … e oras sem fim! … Contudo, a galinha ali estabeleceu o seu quartel-general, de onde todos os dias sai à procura da procura que Deus mandou procurar …

Não a tendo encontrado, até hoje ainda anda em busca dela, sendo por esta razão que a vemos a esgaravatar constante e continuamente na própria casa do Homem, nas lixeiras imundas, no capim, nas regiões ao seu alcance, etc., etc., etc. e etc. Mesmo que se junte em montinho qualquer cereal para a galinha comer, vê-la-emos a esgaravatar, porque pensa que aquele montículo de comida pode ser o lugar onde se encontra localizada a tal procura, exigida por Deus como condição para receber os poderes divinos que lhe farão alcançar a felicidade por ela desejada e a autoridade sobre as outras criaturas.

Não sabendo identificá-la, está sempre à procura da procura , vasculhando todos os cantos onde pode chegar …

Por ordem de Deus, e como castigo da sua desmedida cobiça pelos poderes do Cria-dor, a galinha não deve nem pode voltar a comparecer perante Ele de mãos vazias … (oh!,

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perdão!: de patas vazias, queria eu dizer …), isto é, sem levar-Lhe a procura que Ele a mandou pro curar … E como nada paga pela protecção que recebe do Homem, em cuja casa também vive de borla, este mata-a e come-a, de quando em vez, ou vende-a, ao preço que lhe apetece.

– O homem e a mulher não estão a proceder de modo semelhante ao comportamento da galinha, se não de maneira pior? Quando é que o ser humano se sentirá plenamente feliz, apesar de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus?16 – perguntam os nossos contistas, ao mesmo tempo que nos convidam a moderar ou regrar as nossas insaciáveis ambições, acrescentando que a galinha e o ser humano procuram a felicidade fora de Deus, quando a Felicidade Infinita é o próprio Deus17.

16 «Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança» (Gén. 1, 26).17 “O nosso coração foi feito para Vós, Senhor, e não descansará enquanto não estiver em Vós” (Santo Agostinho).

Mensagens: • “O mal não está no pedir, mas sim no que se pede e como se pede”.• “Quem tudo quer tudo perde”.

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Alberto Viegas

O QUE NOS DIZEM CERTOS ANIMAIS

VERSÃO PEDAGÓGICA

ALBERTO VIEGAS nasceu na povoação de Kharau, Distrito de Cuamba, Província do Niassa, a 10 de Junho de 1927. Aos 17 anos de idade, matriculou-se na Escola do Internato da Missão de São José de Mitúcuè, onde começou a aprender a ler, escrever, contar e adquirir algumas noções da língua portuguesa, da qual, até àquela altura, não sabia sequer uma palavra, pois crescera a falar unicamente o macua, sua língua materna. Depois de ter terminado, com 21 anos, a 3ª classe rudimentar, ingressou na Escola Normal para Formação de Professores Indígenas, em Marrere (Nampula), tendo concluído o curso em 1950. A partir deste ano, leccionou em Mossuril e Lunga. Em Novembro de 1975, passou a leccionar no Curso de Formação de Profes-sores Primários, no Centro de Momola (Nampula), onde esteve até 1984. No ano seguinte, aos 58 anos de idade, ingressou no Instituto Médio Pedagógico, onde completou o Curso de História e Geografia, em 1987, já com 60 anos feitos.

Escreveu alguns livros, tratando de contos e fábulas e outros assuntos, nomeadamente: O QUE NOS DIZEM CERTOS ANIMAIS; LUNGA: À GUISA DE RETROSPECTIVA; O CURANDEIRISMO (opúsculo editado no Centro Catequético do Anchilo); e outros trabalhos ainda não publicados, tais como ALGUNS EPISÓDIOS DA HISTÓ-RIA DE NAMPULA; EDUCAÇÃO TRADICIONAL MACUA (Ritos de Iniciação: Rapazes e Raparigas); ABORDAGEM ÀS PRÁTICAS FUNERÁRIAS EM NAMPULA; ITHALE S’ATTHU – AMÁKHUWA (CONTOS POPULARES – MACUAS), HEROÍSMO SECULAR EM MOÇAMBIQUE – Poema; O ENSINO DE VALORES CULTURAIS (Exemplo da Cultura Emákhuwa) – Palestra; UM PEQUENO HISTORIAL DA IGREJA CATÓLICA EM NAMPULA.

Edição e Publicação apoiada pela Fundação Girl Move www.girlmove.org

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