susana matos viegas - publicações 2006

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Susana viegas

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  • Resumo

    Abstract

    Palavras-Chave

    Keywords

    NOJO, PRAZER E PERSISTNCIA:BEBER FERMENTADO ENTRE OS TUPINAMB

    DE OLIVENA (BAHIA)

    Susana de Matos ViegasInstituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa

    Este artigo analisa processos de transformao histrica na ingesto, prepa-rao e interpelaes suscitadas pelo consumo de uma bebida fermentada demandioca (giroba) entre os Tupinamb de Olivena (costa sul da Bahia). In-terligando esta etnografia com fontes histricas sobre o cauim entre os Tupi-namb do sculo XVI e XVII e um enfoque de comparao americanista, oartigo mostra a importncia de comer fermentado para uma perspectiva delonga-durao sobre socialidades Tupi.

    Comida Fermentada Tupinamb Socialidades Amerndias TransformaesIndgenas

    This article examines processes of historical transformation involved in theingestion, preparation, and other issues involved in the consumption of afermented beverage (giroba) made from manioc, among the Tupinamb ofOlivena, on the southern coast of Bahia. In connecting ethnographic researchwith sixteenth and seventeenth-century sources on cauim (manioc beer) amongthe Tupinamb within a comparative Americanist focus, the article endeavorsto show the importance of eating fermented brews for a longue-dureperspective on Tupi sociality.

    Fermented food Tupinamb Amerindian Socialities IndigenousTransformations

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    Este gentio muito amigo do vinho, assim machos como fmeas, oqual fazem de todos os seus legumes, at da farinha que comem; maso seu vinho principal de uma raiz a que chamam aipim, que se coze,e depois pisam-na e tornam-na a cozer (...); a esta gua e sumo destasrazes lanam em grandes potes, que para isso tm, onde este vinhose coze, e est at que se faz azedo(Gabriel Soares de Sousa, Que trata do modo de comer e do beberdos tupinambs. In: Tratado descritivo do Brasil em 1587, p. 311).

    Neste artigo exploro a importncia cultural de se sentir prazer em comer certascomidas, particularmente uma bebida fermentada, na elaborao histrica daidentidade entre os Tupinamb de Olivena1. Assumo que a cultura diz respeito antesque tudo experincia vivida, entendendo-a como um complexo de sentimentos,emoes, smbolos e meios materiais que tornam essa experincia possvel2.

    1 Este artigo sustenta-se em trabalho de campo realizado no sul da Bahia no mbito de trs

    projetos de investigao. O primeiro e terceiro foram financiados pela Fundao da Cincia eTecnologia do Ministrio da Cincia de Portugal (ref. PCSH/C/ANT 42/96; POCTI/ANT/61198/2004). A segunda fonte de financiamento enquadra-se no trabalho de campo realizado sob ocontrato que estabeleci com a Fundao Nacional do ndio e a UNESCO para a identificao daTerra Indgena Tupinamb de Olivena (ref. SA-12333/2004; 914BRA3018). Os resultadosdesta ltima investigao ainda em curso no so de forma alguma enunciados neste artigo, masa pesquisa por ele propiciada teve um importante papel no amadurecimento intelectual das questesque aqui abordo. A elaborao deste artigo ganhou muito com as conferncias que proferi em2005 no Seminrio de Investigao em Antropologia do Instituto de Cincias Sociais da Universi-dade de Lisboa em maro de 2005, no CIASE, na Universidade de St Andrews (Esccia) emmaio de 2005 e no Friday Seminars Research Seminars in Anthropological Theory da LondonSchool of Economics (Reino Unido) em dezembro de 2005. Estou muito grata a todos os cole-gas presentes nesses seminrios pelo debate propiciado e a Joo de Pina-Cabral/Joo Vascon-celos, Peter Gow e Charles Stafford pelo convite para participar, respectivamente, em cada umdesses seminrios. O meu agradecimento especial vai ainda para Tnia Stolze Lima cujos comen-trios verso escrita deste ltimo seminrio foram de inestimvel valor na solidificao doargumento. O texto e sustentao etnogrfica que aqui apresento (bem como suas falhas) so deminha inteira responsabilidade. Deste conjunto de seminrios resultou tambm uma verso di-versa, mas de certa forma complementar sobre o mesmo tema da cerveja de mandioca e emingls que est de momento a ser avaliada por referees numa revista de antropologia, sob ottulo A long-term perspective on belonging: the pleasure of eating manioc beer among theTupinamb Indians of Olivena (Bahia, Brazil).2 Ver TOREN, Christina. Introduction: Mind, materiality and history In: Mind, Materiality

    and History: Explorations in Fijian Ethnography. Londres: Routledge, 1999, pp. 1-21;SAHLINS, Marshall. Pessimismo sentimental e a experincia etnogrfica: por que a cul-tura no um objeto em vias de extino (Parte I). Mana 3 (1), 1997, pp. 41-73; e PINA-CABRAL, Joo de. Between China and Europe: person, culture and emotion in Macao.Londres: Continuum, 2002.

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    Os Tupinamb de Olivena viveram vrios projetos verdadeiramente mo-dernos. Fizeram parte de um aldeamento jesuta, sendo os habitantes da aldeiade Nossa Senhora da Escada, edificada em 1680 e localizada a cerca de 15 kma sul da cidade de Ilhus, no sul da Bahia3. Uma das mais consistentes orientaescivilizacionais dos jesutas nesse perodo foi a de impedir que se perpetuassemos costumes dos povos Tupi que mais abertamente eram contrrios morali-dade da pessoa crist, entre os quais, para o que aqui importa relevar, estavamas festividades e rituais demonizados pela ingesto exacerbada de uma bebidafermentada conhecida por cauym. Como mostrou recentemente Joo AzevedoFernandes, o que foi considerado uma ameaa moralidade crist pelos jesutasno foi apenas a embriaguez, mas especificamente a embriaguez cerimonialdos ndios, isto , as cauinagens4.

    Neste artigo sigo os sentidos de longa durao e a relao dos Tupinambde Olivena com o passado atravs de interpretaes e observaes sobre aingesto de uma bebida que os Tupinamb designam de giroba, aproximadas imensas variedades que conhecemos para a Amaznia sob as designaes decauym, chicha, cachiri, Ouicou, caissuma5. Essa anlise leva-nos a ultrapassar

    3 Ver LEITE, Serafim, S.I. Ilhus. Histria da Companhia de Jesus no Brasil: Da Baa ao

    nordeste: estabelecimentos e assuntos locais. Tomo V. Lisboa/Rio de Janeiro: LivrariaPortuglia/Civilizao Brasileira, 1945, p. 222; e LISBOA, Balthasar da Silva, Officio doJuiz Conservador das Mattas da comarca dos Ilhos, Balthasar da Silva Lisboa, para o Vis-conde da Anadia, no qual se refere aos seus servios e remessa da seguinte memria sobrea comarca dos Ilhos. Villa de Valena, 27 de Junho de 1802 (Documento n 24.002 e n24.003, Annexa ao n 24.002). In: ALMEIDA, Eduardo Castro. Inventrio dos Documentosrelativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar de Lisboa. Vol IV Bahia:1798-1800. Rio de Janeiro: Oficinas da Biblioteca Nacional, 1916, p. 10. No relatrio doOuvidor da Bahia que em 1758 elevou o aldeamento jesuta a Vila de ndios de OlivenaLuiz Freire de Veras explicita que o primeiro livro de assentos de batismos encontrado naigreja da aldeia de Nossa Senhora da Escada data de 20 de Novembro de 1682 e foi iniciadopelo padre Teodsio de Moraes (Cf. DIAS, Marcelo Henrique. A Insero Econmica dosAldeamentos Jesuticos na Capitania de Ilhus. In: CARRARA, ngelo Alves e DIAS,Marcelo Henrique (orgs.). Um Lugar na Histria: a Capitania e Comarca de Ilhus antesdo cacau. Ilhus: Editus, no prelo, p. 16). O relatrio tem por referncia Respostas aos quesi-tos retro respectivos Aldeia de N. S. da Escada, hoje V. de Nova Olivena, Bahia e mais:N. S. das Candeias; Santo Andr e So Miguel de Serinhaem. 1768. 33 f., Biblioteca Nacio-nal do Rio de Janeiro, ms 512 (28) (cf. DIAS, A Insero Econmica, op.cit.).4 Ver FERNANDES, Joo Azevedo. Selvagens Bebedeiras: lcool, embriaguez e contatos

    culturais no Brasil Colonial. Tese de Doutoramento do PPGH, Universidade FederalFluminense, Niteri, 2004, pp. 312, 315, 330.5 Ver ERIKSON, Philippe. Lart de couler des jours heureux: les boissons traditionelles en

    Amazonie. In: Brsil Indien: les arts des Amridiens du Brsil. Paris: Galeries Nationalesdu Grand Palais, 2005, p. 244.

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    os conceitos de emergncia ou ressurgimento para descrever os processosde identidade de ndios que, como os Tupinamb de Olivena, viveram histriascomplexas e longas de sujeio a processos civilizatrios, propondo uma visomais etnogrfica da histria6. Contextualizando esta etnografia nos debates ame-ricanistas sobre a pessoa, o corpo e a alimentao e fazendo articulaes comas fontes dos cronistas do sculo XVI, proponho que pensemos em quatro epis-temologias da histria dos Tupinamb de Olivena.

    Chamo nojo a uma dessas epistemologias, por se associar com a idia derepelir, cortar, rejeitar partes do passado, aqui ligado etnograficamente e expres-so literalmente num sentimento de nojo.

    Chamo persistncia a outra, por lidarmos com formas de dar continuidadea prticas e sentidos (culturais) do passado que constituem linhas de repetioou fixidez, mas tambm indicaes ontognicas sobre a pessoa Tupinamb.

    Sem nostalgia define processos de rememorao de prticas associadas preparao da bebida que se deixaram de fazer, sem que com isso tenham passado aser objeto de recuperao cultural, como acontece nos processos de re-tradicionalismo.

    Prazer o sentido central da histria como experincia vivida. Estamos afalar do prazer como habitus, isto , como disposio existente no corpo. Decerta forma ele que explica a persistncia de prticas como a ingesto deuma bebida fermentada considerada azeda para o paladar regional da Bahia. tambm atravs dele que mais diretamente ligamos a socialidade dos Tupinambde Olivena com o que tem sido dito sobre a centralidade do corpo como locusde socialidade amerndia7. Nesta ltima linha analtica, aquilo que se ingeretorna-se no apenas num alimento no sentido nutritivo, mas tambm um par-metro de sensaes constitutivas da sociedade.

    6 Ver ARRUTI, Jos Maurcio Andion. A Emergncia dos Remanescentes: notas para o

    dilogo entre indgenas e quilombolas. Mana 3(2) 1997, pp. 7-38 e OLIVEIRA, Joo Pacheco.Uma Etnologia dos ndios Misturados? Situao colonial, territorializao e fluxos cultu-rais. In: OLIVEIRA, Joo Pacheco, (org.). A Viagem da Volta: Etnicidade, poltica e reela-borao cultural no Nordeste indgena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999, pp. 11-40.7 Ver por exemplo SEEGER, Anthony, VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, e DA MATTA,

    Roberto. A Construo da Pessoa nas Sociedades Indgenas Brasileiras. Boletim do Mu-seu Nacional 32, 1979, pp. 2-19; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Apresentao In:VILAA, Aparecida. Comendo como gente. Rio de Janeiro: ANPOCS, UFRJ Editora, 1992,pp. XI-XXIII; e VILAA, Aparecida. Chronically unstable bodies: reflections on Amazoniancorporalities. Journal of the Anthropological Royal Institute (n.s.) 11, 2005. pp. 445-464.

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    Argumento, por fim, que a fora histrica deste tipo de alimento se associade forma muito estreita ao fato de estarmos a falar em primeiro lugar de umabebida preparada com mandioca e em segundo lugar a um fermentado preparadoatravs de um triplo ou qudruplo cozimento.

    Ainda esto a?

    O meu conhecimento dos Tupinamb de Olivena resulta de trabalho decampo com observao participante que realizei no perodo continuado de umano entre Agosto de 1997 e Agosto de 1998, quando convivi mais intensamentecom a populao indgena que vive na localidade de Sapucaeira. Nesta locali-dade, o cultivo de mandioca e a preparao de mltiplos derivados culinriosda mandioca a atividade de auto-subsistncia mais comum. Nesse perodo osTupinamb de Olivena chamavam-se a si-prprios ndios ou caboclos, tendosabido resignificar positivamente este ltimo termo. A sua identificao comoTupinamb de Olivena formalizou-se em 2000, quando enviaram um pedidoformal para a Fundao Nacional do ndio reivindicando o seu reconhecimentoindgena. Imediatamente passaram a ser classificados numa das mais recentese problemticas categorias do indigenismo: ndios emergentes. Num rumooposto ao que a caracterizao mais clssica da histria indgena lhes guardava a histria fria de Lvi-Strauss a categoria ndios emergentes tem promo-vido um pernicioso naturalismo que remete qualquer caso de reivindicao deidentidade indgena no nordeste para o re-tradicionalismo.

    Na etnografia que resultou deste primeiro perodo de trabalho de campo abor-dei a importncia de dar de comer como uma dimenso central do que sig-nifica ser parente, ao mesmo tempo que prestei ateno dimenso do prazerem ingerir certos alimentos como uma dimenso central da socialidade8. Foi, no

    8 VIEGAS, Susana de Matos. Eating with your favourite mother: time and sociality in a

    South Amerindian community (South of Bahia/Brazil). Journal of the Royal AnthropologicalInstitute (including Man). Vol 9 (1), 2003, pp. 21-37, e VIEGAS, Susana de Matos. Socia-lidades Tupi: identidade e experincia vivida entre ndios-caboclos (Bahia, Brasil). Tese dedoutoramento. Universidade de Coimbra, Portugal, 2003. Sobre este mesmo assunto da ali-mentao e comensalidade nas socialidades amerndias veja-se BELANDE, Luisa Elvira.The Convivial Self and the Fear of Anger amongst the Airo-Pai of Amazonian Peru. In:PASSES, Alan e OVERING, Joanna (orgs.). The Anthropology of Love and Anger: the es-thetics of conviviality in Native Amazonia. Londres e Nova York: Routledge, 2000, p. 209;BELANDE, Luisa Elvira. Viviendo Bin: gnero y fertilidad entre los Airo-Pai de la

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    entanto, numa segunda etapa/perodo do meu conhecimento antropolgico dosTupinamb de Olivena iniciada em 2003, no mbito de um contrato UNESCO/FUNAI para fazer o estudo antropolgico de identificao da Terra IndgenaTupinamb de Olivena, que os dados sobre a giroba ganharam maior relevnciaemprica. Ao percorrer as diferentes reas do territrio acabei por integrar a ques-to da giroba nas perguntas que com sistematicidade fui repetindo nos inquritosetnogrficos a um conjunto muito vasto de casas e unidades compsitas deresidncia ou lugares9. Esta ltima experincia de terreno decorreu em apenasdois meses repartidos entre agosto de 2003 e fevereiro-maro de 2004, inscre-vendo uma forma de levantamento de dados empricos que em antropologiaaproximaramos mais ao tipo expedio (pela rapidez e a cobertura extensivaexigida), do que ao trabalho de campo.

    Amazona Peruana. Lima: Centro Amaznico de Antropologa y Aplicacin Prctica, 2001,p. 182; GOW, Peter. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford:Clarendon Press, 1991; GOLDMAN, Irving. Cubeo Hehnewa Religious Thought: metaphy-sics of a Northwestern Amazonian People. Nova York: Columbia University Press, 2004, p.142; McCALLUM, Cecilia. Alteridade e sociabilidade Kaxinau: perspectivas de uma antro-pologia da vida diria Revista Brasileira de Cincias Sociais 13 (38), 1998, pp. 127-136;FAUSTO, Carlos. Banquete de Gente: comensalidade e canibalismo na Amaznia Mana 8(2), 2002, p. 15; SISKIN, Janet. To hunt in the morning. Oxford: Oxford University Press,1973, p. 9, VILAA, Aparecida. Fazendo corpos: reflexes sobre morte e canibalismo entreos Wari luz do perspectivismo Revista de Antropologia 41 (1), 1998. pp. 9-67; VILAA,Chronically unstable bodies, op.cit., p. 446; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O concei-to de sociedade em antropologia. In: A inconstncia da alma selvagem e outros ensaios deantropologia. So Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp. 297-316. Discuti esta questo mais apro-fundadamente em VIEGAS, Susana de Matos. A long-term perspective on belonging: thepleasure of eating manioc beer among the Tupinamb Indians of Olivena (Bahia, Brazil).Seminrio Apresentado no Friday Seminars Research Seminar on Anthropological Theory.Departamento de Antropologia, London School of Economics, Londres. UK. 2005.9 Designo estes lugares de unidades compsitas de residncia, na medida em que cada

    lugar constitudo por diversas casas que mantm entre si relaes simultneas de dependnciae independncia. O termo unidade compsita de residncia corresponde grosso modo aoque por exemplo o antroplogo Mark Harris designa de cluster, no seu estudo da organiza-o social dos caboclos das terras ribeirinhas de Parus na Amaznia: uma rede densa decasas multi-familiares, organizadas em torno de um casal HARRIS, Mark. Life on the Amazon:the anthropology of a Brazilian peasant village. Oxford: Oxford University Press, 2000, p.85. De fato, cada unidade compsita de residncia habitada, normalmente, pelo que seconvencionou designar em antropologia de famlia extensa, j que em cada lugar habitampelo menos o casal principal que o fundou ou que descendente direto de quem o fundou eem casas separadas seus filhos com respectivos descendentes.

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    A regio de Olivena situa-se no sul do estado da Bahia, entre os paralelos1426 Sul e a linha da costa, e entre os meridianos 39 02 e 39 30, fazendoparte do municpio de Ilhus. A regio faz parte da faixa de Mata Atlntica dosul da Bahia, apresentando considervel diversidade em termos de recursosnaturais, abrangendo reas de solo muito pobre Tropudultus Variao Curu-rupe, solos com horizonte xido B Latosslico, Haplorthoxs variao tabu-leiro e apenas uma faixa menor de solos mais ricos, como aquela que se ins-creve na chamada regio cacaueira do sul da Bahia.

    Histrica e culturalmente os ndios que habitam atualmente na regio deOlivena pertencem inequivocamente grande famlia Tupi, ainda que no esteja-mos aqui a recorrer ao termo Tupi como uma categorizao lingstica, mas comouma identificao social, cultural e histrica, j que os Tupinamb de Olivenano falam qualquer derivao da lngua Tupi. O seu modo de vida aproxima-se,porm, em mltiplas frentes, de socialidades amerndias, em alguns casos especifi-camente Tupi, como tive oportunidade de verificar no que respeita s filosofiassociais que orientam as suas vidas, entre as quais a nfase na necessidade de umavigilncia diria da troca de afetos e o sentido constitutivo de socialidade atravsda alimentao so de relevar para o presente argumento10.

    As fontes e estudos histricos mais confiveis permitem-nos avaliar comsegurana que estamos perante ndios Tupi. Serafim Leite, por exemplo, insistena preponderncia Tupi na regio, ao referir que no final do sculo XVII aaldeia de Nossa Senhora da Escada era constituda por ndios Tabajaras eTupinaquins, 130 casais, que Silveira individualiza em 600 ndios11. aindaa favor desse etnnimo que se pronuncia o Ouvidor da Bahia Lus Freire deVeras em 1768, no referindo sequer a existncia de outro povo na vila deOlivena que ele prprio erigiu, dizendo que eram os ndios da nao Tupye falavam a lngua chamada de geral dos ndios12. No incio do sculo XIXesta mesma identificao corroborada pelo naturalista Wied-Neuwied no livroViagem ao Brasil, quando passa nesta regio de Olivena13. John Monteiro temsublinhado que a diviso entre Tupiniquins e Tupinamb se tem constitudo

    10 Cf. VIEGAS, Socialidades Tupi, op.cit.

    11 Cf. LEITE, Ilhus, op.cit., p. 224.

    12 Citado em DIAS, Insero Econmica, p. 16.

    13 Wied-Neuwied citado em SALES, Fernando. Memria de Ilhus. So Paulo: Editora Na-

    cional, 1981, pp. 74-75.

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    apenas a partir dos estudos arqueolgicos e etno-histricos sobre a origem edisperso da cultura Tupi-Guarani e suas diferentes tradies histricas, che-gando-se diviso dos Tupi-Guarani do sculo XVI em Tupinamb os quaisse localizariam entre a capitania de So Vicente e a boca do Amazonas e osGuarani para sul de So Vicente. De acordo com esta divisria, os ndios habi-tantes na regio de Ilhus nesse perodo seriam Aimor e Tupinamb14.

    Como tem sido mostrado por Manuela Carneiro da Cunha ou JohnMonteiro, no sculo XIX as descries dos Tupinamb informaram uma nos-talgia imperialista da sociedade moderna: um sentimento de perda que ro-mantiza a diferena cultural e a projeta para o passado15. Como refere Carneiroda Cunha so os Tupi e os Guarani, j ento virtualmente extintos ou suposta-mente assimilados, que figuram por excelncia na auto-imagem que o Brasilfaz de si mesmo. o caboclo nacionalista da Bahia. o ndio bom e conveniente-mente o ndio morto16. John Monteiro considera ter sido em pleno perodode etnognese que os Tupinamb da costa ocupam o lugar do passado de umanova nao do Novo Mundo:

    No tendo as runas espetaculares das civilizaes antigas (...) e depa-rando-se com um conflito aberto com sociedades nativas existentes, agerao de elite que cresceu com o Imperador Dom Pedro II comeou adesenvolver uma mitografia nacional que colocou no centro o nobre,valente e (especialmente) extinto Tupi da costa.17

    Perante um fundo histrico desta natureza, seria de esperar que o impactodo reconhecimento da existncia de ndios Tupinamb costeiros em pleno sculo

    14 MONTEIRO, John. The Crises and Transformations of Invaded Societies: coastal Brazil

    in the sixteenth century. In: The Cambridge History of the Native Peoples of the Americas.Salomon, Frank & Stuart B. Schwartz (orgs.). Vol III (Part 1): South America. Cambridge:Cambridge University Press, 1999, pp. 976-977.15

    CUNHA, Manuela Carneiro da. Poltica Indigenista no sculo XIX. In: CUNHA, ManuelaCarneiro da, (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992,pp. 133-154 e MONTEIRO, John. The Heathen Castes of Sixteenth-Century PortugueseAmerica: unity, diversity, and the Invention of Brazilian Indians. Hispanic American HistoricalReview 80 (4), 2000, pp. 698-719. Sobre a idia de nostalgia imperialista, ver ROSALDO,Renato. Imperialist Nostalgia. Representations 26, 1989. pp. 107-122.16

    CUNHA, Poltica Indigenista, op.cit., p. 136.17

    MONTEIRO, The Heathen Castes, op.cit., p. 710.

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    XXI oscilasse, como tem vindo a suceder, entre o encanto, a surpresa, o repdioe o descrdito. O fato de viverem num espao geogrfico que no corresponde,no imaginrio nacional, regio onde os ndios existem hoje (a Amaznia) esim no passado (a costa nordestina do Brasil) coloca ainda maior resistncia auma moldura cognitiva que por um lado assumiu a extino dos Tupi da costa,e por outro re-significou o nordeste como uma regio de populao assimilada18.A experincia de relao dos Tupinamb de Olivena com outros povos indgenastem os confrontado, como aconteceu em 2005 quando se juntaram a ndios vindosde vrias partes do Brasil nos Jogos Indgenas, ocorridos em Porto Seguro, comuma recepo de surpresa e felicidade: ainda esto a?!

    A histria de ocupao e significao do territrio habitado pelos Tupinam-b de Olivena importante para situar a sua existncia na atualidade. A regiode Olivena habitada sensivelmente por 2500 ndios e 11.000 no-ndios.Olivena est hoje conectada cidade de Ilhus e ao pequeno centro urbano erural de Una, a cerca de seis quilmetros ao sul, ao mesmo tempo que os ndioshabitantes das regies de fronteira montanhosa tm vindo a criar relaes comoutros centros urbanos, entre os quais se destaca Buerarema. Os Tupinamb deOlivena vivem em sete localidades. Junto da costa, numa faixa percentualsignificativa do territrio, os Tupinamb so os mais exmios extrativistas depiaaba das palmeiras que nessa regio so nativas. Em alguns casos com esseconhecimento que se tornam assalariados de fazendeiros e noutros casos coletame vendem diretamente a piaaba. Estima-se que h pelo menos um sculo a colheitade piaaba seja das atividades que melhor favorece o acesso dos Tupinamb aomercado, primeiro atravs de um sistema de aviamento cujas implicaes abordeinoutro lugar e atualmente como assalariados ou como vendedores de piaaba aintermedirios que percorrem as estradas de terra batida da regio19.

    O trabalho agrcola realizado pelos Tupinamb de Olivena est normal-mente associado ao cultivo de mandioca. Numa destas localidades onde con-centrei o primeiro estudo etnogrfico pude historiar a ocupao do territrio

    18 Cf. DANTAS, Beatriz G., CARVALHO, Maria Rosrio e SAMPAIO, Jos Augusto. Os

    Povos Indgenas no Nordeste Brasileiro: um esboo histrico. In: CUNHA, Manuela Carneiroda (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras. 1992, pp. 431-456.19

    VIEGAS, Susana de Matos. Compatibilidades Equvocas: A permuta de terra entre bran-cos e ndios Tupi na costa sul da Bahia In: FAUSTO, C. e MONTEIRO, J. (orgs.). Temposndios: Narrativas do Novo Mundo. Lisboa: Assrio e Alvim, no prelo.

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    e concluir que o processamento de mandioca para fazer farinha foi um recursolaboral de grande sucesso na dcada de 1960, tendo comeado com a iniciativade um fazendeiro que se apercebeu da mais-valia da mo-de-obra indgena, pro-duzindo farinha para venda. Nessa poca mais ainda do que atualmente, muitosndios fabricavam e vendiam diretamente a sua farinha. O reconhecimento daqualidade da farinha produzida na regio de Olivena e muito especificamenteem Sapucaeira uma garantia de escoamento do produto no mercado de Ilhus.Numa regio onde a produo de mandioca muito comum e historicamenteprofunda a fama ganha pela farinha dos Tupinamb de Olivena projeta-se natabuleta de um comrcio de venda de farinha num bairro popular de Ilhus ondese chamam clientes anunciando: vendemos farinha de Sapucaeira20.

    Entre outras fontes de rendimento dos Tupinamb de Olivena esto pe-quenos e muito variados comrcios: de coco ou de cocada no perodo de veraneiode populao vinda de Ilhus ou do interior de Minas Gerais, de molhos de piaabae de artesanato. Nunca conheci um ndio que vivesse de vender peixe, ou caa,ou qualquer tipo de fruto (como o mamo, a banana ou mesmo seringa) cultivosmuito comuns nas fazendas da regio e menos ainda da venda de gado ou daproduo de cacau, rarefeita mas existente na regio.

    O territrio que os Tupinamb de Olivena habitam reproduz um conjuntomultifacetado de uso dos recursos naturais que intrnseco sua forma de habi-tao dispersa. Mas a mandioca e seus derivados ganham um lugar de destaquena sua vida. Alimentar-se envolve inevitavelmente ingerir um qualquer prepa-rado de mandioca. Pe-se farinha de mandioca em gua ou caldo de peixe parafazer pilo, ou para fazer escaldado, come-se farinha com coco, farinha no caf,aipim cozido pela manh. O beiju no apenas mais um alimento, mas um dospreferidos pelos Tupinamb, estando ligado a diversas elaboraes simblicas21.Em suma, o cultivo e alimentao ligados com a mandioca ocupam um lugarcentral na vida dos Tupinamb, inscrevendo-se em disposies alimentares quefazem desejar certos alimentos. Entre estes est a cerveja de mandioca.

    20 Cf. DIAS, A Insero Econmica, op.cit.

    21 Cf. VIEGAS, Socialidades Tupi, op.cit.

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    Persistncia

    Aquilo a que os Tupinamb de Olivena chamam de giroba uma bebidabranca e leitosa, preparada com mandioca mansa (Manihot esculenta Cranzt),normalmente aipim ou mandioca Caravela, ambas com um nvel de cianetoem raiz fresca muitssimo baixo22. Este fato explica a simplicidade do processo,se comparado com as mltiplas e complexas formas de preparao que conhe-cemos entre os povos contemporneos da Amaznia, os quais usam com maiorfreqncia mandioca com nveis mais elevados de cianeto.

    Os Tupinamb concordariam conosco se lhes dissssemos que ningum tomaa deciso de preparar giroba para si prprio. A giroba quase invariavelmentepreparada por mulheres e sempre a pedido de outrem. Como em muitos outroscontextos amerndios, a ligao entre quem prepara e quem consome giroba muito freqentemente intermediada pela relao entre esposa e esposo. Este fatotem levado diversos antroplogos a notar a importncia desta bebida na com-plementaridade das relaes entre sexos, particularmente no casamento23.

    A preparao da giroba pode ser feita por vrias mulheres. Inicia-se coma raspagem do aipim, que de seguida colocado numa panela a cozer no fogo,at que amolea. Deixa-se depois esfriar e verte-se num pilo ou um recipientede alumnio. Os Tupinamb preferem o pilo de madeira, mas nem sempre asunidades domsticas possuem um pilo suficientemente grande para amachucar

    22 Cf. BORGES, Maria de Ftima, FUKUDA, Wnia Maria Gonalves e ROSSETI, Adroaldo

    Guimares. Avaliao de variedades de mandioca para consumo humano. Pesquisa AgropecuriaBrasileira, Braslia, Volume 37 (11), 2002, p. 1560. ERIKSON, Lart de couler, cit., p. 244,diferencia a cor das cervejas de acordo com o tipo de tubrculo usado: a cor da cerveja de mandi-oca branca, diferindo da de milho que ser amarela e a de inhame violeta. Segundo Tnia StolzeLima (comunicao pessoal) s mesmo a cerveja feita com aipim pode ficar branca. O Cauim dosYudj cor de caf com leite, assim como dos Waipi; a cerveja dos Piro e dos Aruaque sub-andinos cor-de-rosa e a dos Ashaninca (brasileiros) branca e feita de aipim.23

    Ver GOW, Peter. The Perverse Child: Desire in a Native Amazonian Subsistence Economy.Man 24 (4), 1989, p. 570; GUZMN, Mara Antonieta. Para que la yuca beba nuestrasangre. Trabajo, gnero y parentesco en una comunidad quichua de la Amazonaecuatoriana. Quito: Abya-Yala, 1997; UZENDOSKI, Michael A. Manioc beer and meat:value, reproduction and cosmic substance among the Napo Runa of the Ecuadorian Amazon.Journal of the Anthropological Royal Institute (n.s.)10, 2004, pp. 883-902, p. 888; e LIMA,Tnia Stolze. A Parte do Cauim: etnografia Juruna. Tese de doutorado. Rio de Janeiro. PPGAS:Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1995, pp. 288-289.

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    a quantidade mnima de vinte litros de giroba que se faz de cada vez. medidaque se vai pisando o aipim, junta-se gua, sendo necessrio ser bastante vigorosonesta tarefa porque o aipim, depois de cozido, deita uma goma que vai grudandoa massa ao tacho tarefa facilitada com o pilo, porque a massa se descola damadeira. A massa volta ento ao fogo para ligar, aps o que vertida parauma vasilha. Este o momento crucial do processo, pois neste repouso quea bebida vai fermentar 24. O fato do recipiente ser de barro ou de no passado severter a bebida em cabaas de grandes dimenses (sobre as quais falaremosmais frente) so os diversos elementos implicados na fermentao. Os Tupi-namb de Olivena associam a maior fermentao da bebida ao sabor maisamargo, isto , azedo e por isso falam em giroba doce e giroba azeda.Este ltimo termo quase um pleonasmo, j que por definio a giroba paraos Tupinamb uma bebida fermentada e azeda. Mas a diferena est em queem alguns casos se adiciona acar, por vrias razes que trataremos mais frente. Os Tupinamb de Olivena fazem ainda meno especial giroba detrs dias, reforando uma correlao direta entre o tempo de repouso da bebida(ao calor do clima da regio, sem qualquer preocupao de refrigerao) e oaumento do grau de fermentao25. Apesar de esta exposio temperatura

    24 Uma das descries mais concisas do processo foi-me feita por uma mulher nos seus quarenta

    anos de idade: Eu arranco ela, descasco ela, bato com ela miudinha e boto para cozinhar. Aquando est cozida a pessoa bota dentro de uma bacia e pisa ela com um pilozinho, com amo de pilo. A depois que faz aquela papa, a pessoa bota gua, envolve ela toda e despejaou num caldeiro, ou num catuto, ou num pote, e bota ela l para avinhar. Quando ela avinha,a j est na hora da pessoa tomar.- E tem pessoas que deixam ficar fermentando uns dias?- Deixa sim. Quando muito mesmo, a pessoa comea a tomar e quanto mais a pessoa toma que ela fermenta mesmo. E volta ao fogo.25

    Esta definio dos paladares de cervejas de mandioca do doce ou inspido at ao amargo eazedo consoante o grau de fermentao que em parte se afere do nmero de dias em que abebida fica a fermentar relativamente comum (cf. ERIKSON, Lart de couler, op cit., p. 246;LIMA, A Parte do Cauim, op.cit., pp. 296-297). Para o caso dos Yudj, Lima especifica estaseqncia de paladares: os sabores do cauim vo de par com o processo da fermentao, partindodo inspido (im) e do doce ( ku), atingindo o amargo ou forte (i ahu), e finalmenteo azedo ou podre ( ) (LIMA, Tnia Stolze. Um peixe olhou para mim: o povo Yudje a perspectiva. So Paulo: Editora Unesp. 2005, pp. 294-295). Erikson chama a ateno paramais um aspecto interessante por relao aos paladares: o fato do gosto da cerveja depender emgrande parte da levedura presente no ambiente em que preparada, sendo por isso que qualquertentativa de as preparar em Paris estar sempre condenada ao fracasso.

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    ambiente j assegurar uma temperatura tpida, a etapa final da preparao dagiroba consiste em esquentar a bebida antes de beber, porque os Tupinambde Olivena tm uma preferncia muito explcita por beberem a giroba.

    A mandioca mansa cultiva-se com facilidade e sucesso perante as condiesde solo e clima existentes em Olivena e a preferncia dos Tupinamb de Olivenapor este tipo de mandioca para fazer cerveja explica que o processamento da girobaseja mais simplificado do que aqueles descritos para muitos outros contextos ame-rndios, onde se usa mandioca brava26. No deixa de ser igualmente significativo,contudo, que exista um decalque entre o processo usado hoje pelos Tupinamb deOlivena e o procedimento descrito por Hans Staden para a preparao da cervejade mandioca pelos Tupinamb do Rio de Janeiro no sculo XVI:

    Tupinamb de Olivena:1. Cozer a mandioca no fogo.2. Deixar esfriar3. Pisar no pilo4. Voltar a cozer no fogo acrescentando gua5. Verter para uma vasilha onde fica a descansar/fermentar

    Descrio de Hans Staden (sculo XVI) para os Tupinamb27:

    1. Cozinhar a mandioca no fogo2. Deixar esfriar3. Mascar4. Voltar a cozer no fogo, acrescentando gua5. Verter para uma vasilha onde fica a descansar/fermentar

    Teremos que deixar para mais adiante as consideraes sobre a diferenaentre mascar e pisar a massa, bem como sobre a vasilha utilizada para

    26 Ver, por exemplo, HUGH-JONES, Christine. From the Milk River: spatial and temporal

    processes. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, pp. 174-181; JACKSON, Jean.The Fish People: Linguistic Exogamy nad Tukanoan Identity in Northwest Amazonia. Cambridge:Cambridge University Press, 1983; e LIMA, Um Peixe Olhou para Mim, pp. 287-294.27

    STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil: arrojadas aventuras no sculo XVI entre osantropfagos do Novo Mundo. Livro Segundo: A terra e seus habitantes. So Paulo: Ed.Martins, 1942, p. 265.

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    fermentar. Mas importa desde j referir que face pergunta sobre em que etapado processo que se fazia a mastigao, os adultos identificaram aquela detransformar o aipim em massa, hoje assegurada pelo pisar no pilo: S mas-tigava quem tinha os dentes perfeitos. Depois usou o pilo. A acabou.

    Hans Staden no refere o fato dos Tupinamb aquecerem a bebida antesde a beberem. Porm, encontramos outras referncias a este mesmo procedi-mento e, mais ainda, ao seu significado cultural para os Tupinamb habitantesna costa brasileira no sculo XVI. Lry, Thevet, Gabriel de Sousa e mesmoMontaigne explicitam o fato da bebida ser aquecida antes de se beber, porqueos Tupinamb preferiam tom-la morna:

    Quando querem divertir-se e principalmente quando matam com sole-nidade um prisioneiro de guerra para o comer, seu costume (ao con-trrio do que fazemos com o vinho que desejamos fresco e lmpido)beber o cauim amornado e a primeira coisa que fazem as mulheres umpequeno fogo em torno dos potes de barro para aquecer a bebida28.

    ainda Montaigne quem refere de forma peremptria que os Tupinambbebem o cauim morno: Sua bebida feita de uma raiz e tem a cor dos nossosvinhos claretes. S a bebem morna29. Recorrendo tanto a Lry como a Thevete Gabriel Soares de Sousa Florestan Fernandes tambm sublinha que: nas caui-nagens ultimavam a preparao das bebidas aquecendo-as ao fogo30.

    Entre os Tupinamb de Olivena so mltiplas as formas de insistir nestapreferncia pela bebida morna, muitas vezes afirmada sob subterfgios Quemquiser bebe frio, quem no quiser esquenta. A fica gostosa! ou, pelo contrrio,de forma peremptria: no usamos fria, s quente mesmo!. A preferncia pelatemperatura amornada da bebida fica bem clara tanto nas prticas atuais como nasdescries relativas ao passado: Deixava azedar e de manh esquentava e bebia.Minha me enchia um caldeiro assim de giroba, botava para esquentar l no fogo

    28 LRY, Jean de. Das Grossas Razes e do Milho com que os selvagens fabricam a farinha,

    comida em lugar do po; da bebida a que chamam Cauim. In: Viagem Terra do Brasil. SoPaulo. Editora da Universidade de So Paulo. 1972 [1578], p. 90.29

    MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. Os Ensaios: Livro I. So Paulo: Martins Fontes,2000 [1579], p. 310)30

    FERNANDES, Florestan. A Organizao Social dos Tupinamb. Braslia: Editora UnB,1989 [1948], p. 114.

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    e quando estava morninho dava para todo o mundo beber (homem Tupinambde Olivena com cerca de quarenta e cinco anos, residente no Curupitanga); Eumesmo, eu e minha famlia no usa fria no, s quente mesmo (...) Bota na panelae aquece. Gosto assim morna, quente de mais no gosto no (mulher Tupinambde Olivena, cinqenta anos de idade, residente em Sapucaeira/Olivena). Veremosmais frente como esta preferncia pela bebida morna faz parte do campo deprazeres associados giroba, sendo mais importante notar de momento aidentificao desta mesma preferncia com a dos Tupinamb do sculo XVI31.

    A relao entre o fogo e a giroba estreita a muitos nveis. Apesar da girobaser lquida, para os Tupinamb de Olivena bebida como um alimento, umaalimentao, de uma forma muito mais literal do que acontece, por exemplo,com o leite materno, sobre o qual se diz que alimenta o nen, mas no que secome leite materno. No caso da giroba as expresses usadas para descrever o seuconsumo so, literalmente, comer giroba. De fato, o valor nutritivo e fortifi-cante da giroba comea por se explicar pelo fato de ser a bebida que substitui oleite materno no perodo de desmame. A este propsito uma ndia com seis filhosj adultos disse-me que quando os filhos eram pequenos, a meio da noite elaacordava-os para lhes dar uma colher de giroba de forma a garantir que cresces-sem fortes e saudveis. No h nenhuma evidncia de que efetivamente as crianassejam ou fossem acordadas para beber giroba, mas aquilo que ela quis enfatizarcom esta referncia foi o valor fortificante e nutritivo da giroba32.

    31 Agradeo a Tnia Stolze Lima o comentrio a uma verso anterior deste texto onde mencio-

    nou a singularidade da preferncia dos Tupinamb de Olivena pela bebida morna contrastantecom os hbitos indgenas na Amaznia, tendo sido em resultado desta indicao e incentivoque aprofundei a minha reflexo sobre as fontes relativas aos Tupinamb do sculo XVI.32

    De fato, o teor nutritivo da mandioca aumenta com a fermentao. A mandioca no-fermen-tada possui 1,5% de protenas, enquanto que fermentada as protenas aumentam para 8% con-tendo, ainda, minerais nobres como selnio, cromo e cobre (cf. FERNANDES, SelvagensBebedeiras, op. cit., pp. 53-54). Encontramos outras referncias relevantes sobre o significadonutritivo das bebidas fermentadas em contextos sul-amerndios. Goldman sublinha que para osTukano Cubeo da regio do Vaups na Colmbia a chicha tambm considerada uma comida(GOLDMAN, Cubeo Hehnewa Religious Thought, op.cit., p. 143) e que ingerir chicha visto pelos Cubeo como indispensvel para fortalecer o corao de uma pessoa e dar-lhe ener-gia e uma vida longa (p. 355). Num artigo recentemente publicado, Uzendoski diz que para osNapo Runa do Equador a mandioca, especialmente a cerveja de mandioca, uma fonte de ener-gia e fora (UZENDOSKI, Manioc Beer and Meat, cit., pp. 883, 887). No geral, a Chicha vista como um fortificante no Equador (GUZMN, Para que la yuca, op. cit.), sendo atribudaa ela a capacidade de dar fora aos homens que trabalham em sistema de entreajuda nas conhe-cidas festas das mingas onde reciprocidade alargada se junta a troca direta de trabalho porcervejas fermentadas (ver tambm BELANDE, Viviendo bin, p. 172.

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    A nutrio no aqui vista num sentido estrito de satisfao de necessidades,mas ao mesmo tempo que integra essa perspectiva insere-a num quadro mais amploda constituio de corpos saudveis. Muitas so as histrias autobiogrficas deadultos que recordam como na infncia recuperaram de fases de maior fragilidadefsica com a ingesto de giroba. Logo no primeiro perodo longo de trabalho decampo, em 1997-1998, ouvi repetidamente: a giroba faz caboclos fortes ou foiassim que se criaram os caboclos forte. Foi com essa bebida de giroba.

    A qualidade medicinal que hoje expressa de forma literal pelos Tupinambde Olivena quando dizem que a giroba um remdio, que d sade e quefortalece a pessoa expressa-se, entre outros, nas qualidades de resoluo oupreveno de doenas de fgado e de estmago. Uma mulher que em 1998tinha cerca de cinqenta anos de idade chegou a assegurar-me que em determi-nada altura at os mdicos de Ilhus receitariam giroba para doenas desta na-tureza. Na verdade, so conhecidos os efeitos medicinais de preparados fermen-tados,33 mas como veremos frente este efeito de remdio atingido apenasquando a giroba tomada em grandes quantidades at provocar o vmito econsequentemente esvaziar o estmago limpando o corpo.

    O contexto convivial em que se ingere giroba central para a compreensodos seus sentidos tanto para os Tupinamb de Olivena como para uma contex-tualizao histrica e comparativa. O grupo de pessoas que partilha a girobano o grupo comensal quotidiano de uma casa. A giroba tende a ser consumidano apenas entre aqueles que habitam diversas casas de uma unidade compsitade residncia ou lugar, mas ainda entre os parentes que habitam noutras unidadesde residncia, em ocasies de convvio alargado.

    Assim aconteceu, por exemplo, em 1998 quando uma ndia idosa que vi-sitava freqentemente a casa onde eu pernoitava (pertencente a um casal deuma ndia com um no-ndio), solicitou anfitri (sua parente) que fizessegiroba para o dia da chegada da bandeira do Esprito Santo. Fez o pedido deforma rogada e inesperada para quem, como ela, ficava horas a fio inerte, nobanco corrido dos fundos da casa, em silncio, a observar o movimento e aconversa dos habitantes e de outros visitantes (normalmente no-ndios) queanunciavam em voz alta mal se aproximavam da casa que vinham para prosar.Esta mulher fazia justia a uma das idias que circula na regio sobre o cartercismado dos caboclos, metidos consigo prprios, pouco faladores. Naquele

    33 Cf. FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 291.

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    dia, ao solicitar que preparassem giroba no obteve reao da anfitri, mas afilha habitante na outra casa do mesmo lugar ofereceu-se para a fazer, exigindoapenas que fosse ela (parente visitante) a trazer o aipim da sua prpria roa.

    No dia da chegada da bandeira a giroba bebeu-se logo pela manh, muitoantes do frenesim de preparao do almoo. Tanto esta ndia idosa como ascrianas residentes na unidade compsita de residncia beberam-na com gosto.A chegada da bandeira fez-se anunciar pelo som de um tambor. Os romeirosentraram na casa, tocaram e cantaram, seguindo uma postura ordenada, maisaproximada de uma parada do que de uma dana. Abriram um saco de tecidovermelho aveludado (o mesmo tecido da bandeira) e as pessoas presentes inter-vieram, enrolando-se e desenrolando-se no pano da bandeira em duas voltasrpidas. De seguida largaram uma ou duas moedas dentro do saco. Naquele dia,os romeiros almoavam ali mesmo em casa, mas at sua partida, e depoisdela, em momento algum houve ocasio para uma convivialidade mais expansivacomo vi tantas vezes acontecer em seres ou mesmo em reunies de outra naturezasocial e poltica, nas quais o convvio presume msica de rdio em som alto,algazarra, falar alto, dar abraos inesperados e tocarem-se os corpos34.

    Mais recentemente vi fazer-se giroba para as reunies realizadas no mbitode debates polticos sobre a reivindicao de direitos terra, algumas delasorganizadas pela equipe da FUNAI que eu coordenei e pelas lideranas, nombito do trabalho de campo para a identificao da terra indgena. As reuniesdo azo s mais diversas situaes que vo dos discursos proferidos de formasolene pelas lideranas, ao convvio informal que resulta das refeies, dosintervalos, dos banhos no rio, da pernoita quando se partilha o cho das casase se trocam palavras ensonadas sobre a vida, as crianas ou a terra. Para almdestas situaes, estas reunies abrem e encerram com um momento ritual,quando se dana e canta o Porancim35. O Porancim comea com uma dana

    34 Cf. VIEGAS, Socialidades Tupi, op.cit.

    35 O Porancim poder ser descrito como o Tor dos Tupinamb de Olivena. Nasceu de reu-

    nies com outros ndios da Bahia, Esprito Santo e Minas Gerais, nas quais foram instrudossobre esta forma de dana e cntico que articula todos os ndios do nordeste. Sobre o Torveja-se ARRUTI, Jos Maurcio Andion. 1999. A rvore Pankararu: fluxos e metforas daemergncia tnica no serto de So Francisco. In: OLIVEIRA, Joo Pacheco (org). A Via-gem da Volta: etnicidade, poltica e reelaborao cultural no Nordeste indgena. Rio deJaneiro: Contra Capa, 1999, p. 243 e GRUNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Os ndios doDescobrimento: tradio e turismo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.

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    em alinhamento circular. Parte substancial da dana consiste em bater os psno cho com fora e de forma ritmada, curvando ligeiramente o corpo para afrente, volvendo o brao com maracs e cantando msicas e letras repetitivas,que os Tupinamb de Olivena tm vindo a criar com enorme sucesso desde oano 2000. Das diversas vezes em que participei destas reunies e assisti aoPorancim aconteceu haver num caso uma e noutro outra mulher (entre os vintea trinta danantes) que entraram em transe. Quando a reunio se d em locaiscom menor vigilncia pblica, um dos ndios mais idosos, fuma o seu cachimbo.Como ele prprio confirmou quando falamos sobre o ltimo transe a queassistira, o Porancim um dos contextos atravs dos quais os Tupinamb deOlivena esperam encontrar o seu paj. Em vrias destas reunies vi usar-segiroba, mas em nenhuma delas se associou a ingesto de giroba ao Porancim. antes nos momentos de decises e consensos, em intervalos nos debates ediscursos, que aparece o recipiente com giroba. Desde que o processo dereivindicao da terra indgena Tupinamb de Olivena comeou em 2003 temvindo a aumentar o consumo de giroba nas reunies e a expandir-se paraconsumidores mais jovens que no a bebiam ou preparavam usualmente.

    O efeito de exo-bebida desta cerveja de mandioca fica aqui, portanto,explicitada, assim como a identificao do consumo de giroba com ocasiesde convvio de sociabilidade alargada, mas de natureza no-festiva e no-ritual.Na verdade, como mostrei noutro lugar, nestas ocasies festivas que envolvemdana, msica e grande agitao emotiva o que se bebe cachaa ou licoresfeitos com cachaa, no sendo estas ocasies para se beber giroba36.

    Cabe-nos ento fazer algumas consideraes sobre a relao entre as prticasde consumo da giroba pelos Tupinamb de Olivena, as conhecidas festas exu-berantes das cauinagens e o carter inebriante das bebidas fermentadas. Pormais que tenha insistido com os Tupinamb de Olivena, em muitas e variadassituaes, sobre a possibilidade da giroba provocar embriaguez ela foi-me siste-maticamente negada. Cheguei a sugerir se ao beber-se giroba no se ficavatonto como quando se consome cachaa, mas a relao entre uma e outra coisafoi vista pelos diversos ndios a quem coloquei a questo como absolutamenteaberrante. A associao da giroba a estados inebriantes constituiria um definitivoerro etnogrfico no caso dos Tupinamb de Olivena para quem a cachaa a

    36 Cf. VIEGAS, Eating with your favourite mother, op.cit, e Socialidades Tupi, op.cit.

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    bebida inebriante por excelncia. Em 1997 e 1998 ouvi diversas vezes afinsno-ndios dizer em relao aos ndios que, quando constava que havia girobae cachaa seria garantido aparecerem logo caboclos. Para alguns ndios estadiretiva uma ofensiva, j que o hbito de beber cachaa est por demais conso-lidado entre todos os habitantes ndios e no-ndios da regio. De fato, desde1998 que vi acirrarem-se debates entre os Tupinamb de Olivena sobre a possi-bilidade de se aceitar que a bebida de cachaa fizesse parte da cultura indgena.Havia quem contra-argumentasse exatamente com o princpio de que as bebi-das tradicionais que tinham so a giroba.

    Do ponto de vista comparativo, a questo que nos colocada pelos sentidosatribudos pelos Tupinamb de Olivena giroba que se trata de uma bebidafermentada ou, mais ainda, definicionalmente fermentada, inscrita como umabebida-comida que ingerida em contextos no rituais nem festivos, quando asetnografias americanistas normalmente associam as bebidas-comidas a preparadosde baixa ou nula fermentao, de consumo domstico37. O uso no-festivo deuma bebida considerada partida como fermentada o que parece destoar aqui.Mas ao mesmo tempo se tem cada vez mais sublinhado que o teor alcolico demuitos dos cauins usados em convivialidades rituais e festivas muito baixo.Numa das mais sofisticadas e espantosas descries de cauinagens onde o estadode embriaguez se atinge de forma absoluta, Tnia Stolze Lima adverte que obaixo teor alcolico da dubia [cerveja fermentada dos Yudj usada para a cauina-gem] requer que se bebam quantidades impressionantes e que esta abundnciae exuberncia so definicionais do que a cauinagem para os Yudj:

    os homens se orgulham de beber demais, entusiasmam-se quando seuestmago se torna sensivelmente protuberante. Ultrapassar limites umdesejo notvel em muitos planos da cauinagem, de forma que tudo serelevado potncia.38

    J por relao ao uso do cauim pelos Tupinamb do sculo XVI, JooAzevedo Fernandes defendeu recentemente que se trata de um caso flagrante

    37 Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Apresentao, op.cit., p. XXIV; UZENDOSKI, Manioc

    Beer and Meat, op.cit., p. 888.38

    LIMA, Um Peixo Olhou para Mim, op.cit., p. 219.

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    do uso de uma substncia de fraca capacidade de alterao da conscincia,sendo os fatores culturais que conferem sentidos mais fortes para as sensaese comportamentos verificados nas cauinagens39.

    Entre as fontes histricas que tive oportunidade de consultar ou conhecerimporta realar tanto a referncia a uma bebida fermentada domstica usadapelos ndios de Olivena no sculo XVIII, quanto efetiva importncia da aguar-dente e cachaa entre os Tupinamb de Olivena, de forma muito continuadadesde pelo menos o sculo XVIII. Enquanto Ouvidor da Comarca de Ilhus,Baltasar da Silva Lisboa escreveu vrios comentrios vida dos ndios que habi-tavam em Olivena. Num desses trechos, datado de 1799, faz aluso ao fato deno passado um viajante annimo ter justificado o carter pacifico dos ndios deOlivena contrastando-o com o de outros ndios da regio, quando relata terentrado na casa de um ndio, num passeio que fez pela regio do rio Acupe, elhe ter bebido o cauym sem que o ndio, dormitando, tivesse sequer reagido:

    Com os vrios assaltos do gentio, atemorizados os moradores se puse-ram em fugida, de sorte que hoje ali habitam alguns ndios de Olivenae tendo sado alguns gentios, a ningum tem causado dano, em formatal que entrando em casa de um ndio domstico que encontraram dor-mindo, lhe beberam o Cau-ym, que uma espcie de vinho feito demandioca e aipim.40

    Quanto aguardente e/ou cachaa, as referncias encontradas para Olivenacorroboram o que se sabe sobre a introduo e sucesso da aguardente nos aldea-mentos indgenas. Os jesutas repudiaram inmeras vezes estas prticas, mas averdade que os ndios dos aldeamentos jesutas muito cedo comearam a con-sumir aguardente, e o caso dos Tupinamb de Olivena permite-nos dizer queeste ter sido, por ventura, o primeiro e mais persistente bem de consumo quequiseram adquirir. De fato, em 1692 um jesuta interfere junto da Coroa con-

    39 FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 327.

    40 LISBOA, Balthasar da Silva. Officio do Ouvidor da comarca dos Ilheos Balthasar da Silva

    Lisboa para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, no qual lhe communica uma interessante informa-o sobre a comarca de Ilhos, a sua origem, a sua agricultura, commercio, populao e preci-osas matas, Cair, 20 de maro de 1799 (Documento:Caixa 98, n 19209, do Arquivo Hist-rico Ultramarino, Lisboa, Documento n 19209). In ALMEIDA, Inventrio, op.cit., p. 108.

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    seguindo que se emita uma ordem para os Juzes dos Ilhos no consentiremque se venda aguardente aos ndios da aldeia dos Padres da Companhia41. Numdocumento do sculo XVIII um funcionrio administrativo do aparelho colonialportugus assinala o fato de muitos ndios da vila de Olivena consumiremaguardente em excesso, enquanto que o Ouvidor da comarca dos Ilheos,Balthasar da Silva Lisboa, refere que os ndios de Olivena convertiam osprodutos de seu trabalho e indstria (...) em aguardente, ficando suas mulherese filhos em total desamparo e misria42.

    Nos finais do sculo XIX num registo de bito do cartrio de Olivena des-creve-se minuciosamente como um ndio morreu na seqncia de fazer o trajetoentre a cidade de Ilhus e a vila parando em todos os bodegos onde bebia aguar-dente, acabando por sucumbir no ltimo, onde foi encontrado morto. Por fim,nas descries que os ndios atualmente fazem dos processos de expropriaodas terras nas dcadas de 1930 a 1960 compreendemos que um produto por elesvalorizado e adquirido a troco da entrega das suas roas era a cachaa43.

    Este historial poderia levar-nos a concluir que o processo colonial produziuum desvio na sociabilidade autntica de consumo da giroba ou cauim, agorasubstitudo pela cachaa. Mas nada seno um pressuposto nos levaria a concluirisso. As curtas aluses ao caium nas fontes do sculo XVIII e as descriesdos Tupinamb levam-nos a crer que a giroba tem sido produzida e ingeridaao longo de todo este perodo, no se podendo, portanto, falar em substituiodesta pela cachaa, mas pelo contrrio na persistncia de sentidos no-festivose altamente valorizados de consumo da giroba como fortificante corporal. Do

    41 Antnio L. G. Coutinho, Ordens para os Juizes dos Ilhos no consentirem que se venda

    aguardente aos ndios da aldeia dos Padres da Companhia. 20/08/1692: Documentos hist-ricos. Vol. 32, 1934, p. 299, citado em MARCIS, Teresinha. A hecatombe de Olivena:Construo e reconstruo da identidade tnica. Dissertao de Mestrado, Universidade deSanta Cruz, Ilhus, 2004, p. 44. Como nos lembra Fernandes, esta proibio ou luta contraa aguardente da parte dos padres no se restringia a uma missionao dos ndios, mas alas-trava-se aos colonos (FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 312). Marta Amoro-so, por seu lado, mostra-nos a relao especfica entre a indstria da cana de acar e osprocessos de missionao, especificamente no caso dos Capuchinhos. AMOROSO, Marta.Conquista do Paladar. Os ndios, o Imprio e as Promessas de Vida Eterna In: FREIRE,Jos Ribamar Bessa (org.). Seminrios FUNARTE Brasil 500 Anos. Nao/Regio. Rio deJaneiro: FUNARTE. 2001.42

    Officio do Ouvidor da comarca dos Ilheos Balthasar da Silva Lisboa , op.cit, p. 110.43

    VIEGAS, Compatibilidades Equvocas, op.cit.

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    ponto de vista histrico, num singular e recente argumento, Joo AzevedoFernandes chama a ateno para o fato da importncia ritual, simblica e txicadas bebidas fermentadas ter ofuscado de tal forma a literatura sobre o uso doscauins pelos Tupinamb dos sculos XVI e XVII que se tende a considerarsecundrio ou complementar o seu relevo medicinal e nutritivo. Fernandes lem-bra, por exemplo, que num clssico estudo sobre tcnicas indgenas AndrLeroi-Gourhan sublinhara que a maioria das bebidas fermentadas eram muitofracas em lcool desempenhando na maior parte dos casos um papel mais ali-mentar do que txico44. Sustentando-se numa sofisticada abordagem compa-rativa, Fernandes acaba por defender peremptoriamente que as cervejas detipo cauim consumidas difusamente pelos Tupinamb constituam um dostraos marcantes da sua cultura sendo bebidas de reduzido teor alcolico,em que a embriaguez se origina muito mais de fatores culturais do que propria-mente da potncia etlica. Curiosamente, Jos de Anchieta atribui ao fato dosTupinamb do sculo XVI beberem a bebida quente o seu menor teor ine-briante: e depois de ferver dois dias o bebem quente, porque assim no lhesfaz tanto mal nem os embebeda tanto45.

    Fernandes mostra, ainda, que a tcnica de salivao produz bebidas de baixoteor alcolico, ao mesmo tempo que chama a ateno para a sua qualidadenutritiva. A clebre afirmao sobre o fato dos nativos no comerem quandobebem, ganha assim um duplo sentido: o da separao entre o momento de secomer e o de se beber, mas tambm o fato de no se comer depois de beberfermentado, porque o fermentado uma comida que alimenta: este vinho co-mumente o fazem grosso e basto, porque juntamente lhes serve de mantimentoe quando bebem nenhuma outra cousa comem46.

    Para os Tupinamb de Olivena este significado nutritivo muito impor-tante. Como comentou certa vez comigo um homem idoso, numa conversa daqual participava tambm uma ndia que era sua comadre:

    [A giroba serve] Para alimentar a gente. Beber. Toma aquilo e no sentefome nenhuma. Eu tomei dois copos de manh comadre, e vim comer agora.

    44 Citado em FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 54.

    45 FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., pp. 77-78.

    46 FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., pp. 77-78, inclusive citaes de Anchieta.

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    bom, giroba. Eu ia at esquentar um bocado, mas no tem acar ainda.Estou esperando minha mulher trazer o acar e at agora no chegou.

    Mas como j vimos a propsito da giroba fazer caboclos fortes, este mesmosignificado nutritivo conduz-nos a dimenses simblicas e ontognicas centrais compreenso das socialidades dos Tupinamb de Olivena, no podendo servisto, em suma, como uma dimenso secundria do significado da bebida47.

    Os sentidos nutricionais e medicinais esto intrinsecamente ligados, nocaso da giroba. Como ouvi dizer aos Tupinamb de Olivena a giroba limpaa pessoa toda, ficando a pessoa sadia apenas se for ingerida em grandes quanti-dades, at lotar o organismo, sendo referidos os efeitos do suor abundante,diurticos e finalmente a expulso de tudo o que h no estmago, vomitando.O efeito diurtico equiparado por alguns homens, com maior experincia devida em meios urbanos, aos efeitos da cerveja industrial. Mas o efeito de lim-peza provocado pela giroba atua diferentemente: por isso beber giroba acon-selhado para aclarar a urina de quem esteja com ela anormalmente escura. J osuor no apenas provocado por se ingerir grandes quantidades de bebida, mastambm por ela ser ingerida quente num clima tropical com temperaturas altase muita umidade. O vmito o sinal final da limpeza corporal provocada pelagiroba. Numa das afirmaes mais expressivas que ouvi a este propsito, atpela forma como relaciona a linguagem da abundncia com a do cristianismo,faz-se uma associao entre essa forma de beber muito e a gula: s vezes osgulosos demais dizem: me d mais, me d mais. E da a pouco est vomitando.

    A relao entre a ingesto excessiva de bebida e o vmito tem sido apontadapara vrios contextos sul-amerndios. Os Tupi Cinta-Larga associam estes exces-sos ao vmito reconhecendo, ao mesmo tempo, o valor nutricional da sua cervejade mandioca dizendo que ela torna a pessoa mais gorda e forte, ao mesmo tempoque descrevem a chicha como uma bebida que em situaes rituais os leva a

    47 Um dos elementos que torna a nutrio num elemento cultural o fato de ser preparada por

    um triplo cozimento, fato igualmente observado por diversas fontes para os Tupinamb dosculo XVI (STADEN, Duas Viagens, op.cit., p. 165; SOARES DE SOUSA, TratadoDescritivo, op.cit., p. 311; LRY, Viagem Terra do Brasil, op.cit., p. 90), tornando-se mesmonum cdigo alimentar que produz identidade, como explorei noutro texto (VIEGAS, Long-term perspective, op.cit.).

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    vomitar48. Entre os Tupi Parakan o vmito produz a expulso do que nos tornapesados, e por isso era tambm estimulado mecanicamente, cutucando-se agarganta com uma espcie de capim (marpeawa). O efeito do cauim no identificado com a embriaguez, mas com a leveza: Ele faz pular-voar (-mo-wew), principalmente por ser um emtico49. Joo Azevedo Fernandesargumenta ainda que a descrio mais aproximada do efeito do cauim nascauinagens dos Tupinamb do sculo XVI seria o entusiasmo e leveza:

    O que faziam os participantes das cauinagens, tal como faziam os das orgiashelnicas, ou das bacchanalia romanas, era atingir o enthusiasms (...). Noenthusiasms Tupinamb buscava-se o aligeiramento, a leveza do corpo(atravs, por exemplo, dos vmitos, to mal vistos pelos observadores, ouda extenuao provocada pelas danas interminveis) e, mais do que tudo,escapar ao menos por algumas horas de uma humanidade que era umacondio temporal, e no uma essncia, ou uma natureza.50

    Mais ainda, mesmo nos casos em que os efeitos do cauim em cauinagens seexpressam pela embriaguez, como entre os Yudj, a expresso pode ser usadapara significar estados de esprito que se podem atingir igualmente de outrosmodos no etlicos, como por exemplo no ato de matar um inimigo: conta-seque em uma guerra a hora exata de matar embriaga instantaneamente51. Na

    48 Cf. JUNQUEIRA, Carmen. Cinta-Larga. Enciclopdia dos Povos Indgenas. Instituto

    Socio-Ambiental. http://www.socioambiental.org/pib/epi/cintalarga/cintalarga.shtm. A refe-rncia tanto ao consumo excessivo de cerveja de mandioca como forma de o preparar reno-vadamente para beber muito recorrente nas descries das cauinagens. Jean de Lry tam-bm o refere por relao aos Tupinamb do sculo XVI: Com efeito, eu os vi no s beberemtrs dias e trs noites consecutivas, mas ainda, depois de saciados e bbados a mais no poder,vomitarem quando tinham bebido e recomearem mais bem dispostos do que antes (Lry1972 [1578]: 91). Deste ponto de vista da provocao do vmito de notar a excepo docaso dos Yudj: Diferentemente de outros grupos indgenas que fabricam cauim, os Yudjno costumam vomitar para beber mais. O vmito no valorizado; surge como um transtor-no, geralmente atribudo ao fato de se ter comido antes de beber. Afirma-se que estmago decurimat um timo remdio contra essa nusea (Lima 1995, Captulo 6, nota 25).49

    FAUSTO, Carlos. Inimigos Fiis: histria, guerra e xamanismo na Amaznia. So Pau-lo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001, p. 423.50

    FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 327. Para alm dos cronistas portugue-ses e franceses, tambm os holandeses sublinharam o fato dos Tupinamb provocarem ovmito para voltar a beber (cf. FERNANDES, op.cit., p. 354).51

    LIMA, Um Peixe Olhou para Mim, op.cit., p. 253.

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    verdade, seguindo o argumento de Fernandes podemos quase reverter os termosde uma teoria da aculturao. O fato dos Tupinamb de Olivena no conside-rarem a cerveja de mandioca como uma bebida inebriante poderia ser maisreportado para o passado do que para uma interpretao recente, j que nosmostra que o teor alcolico de muitas das cervejas usadas atualmente naAmaznia resultado de modificaes mais recentes: naquela regio encon-traremos mtodos que aprofundam a manipulao humana dos microorganismosresponsveis pela fermentao52.

    Sem nostalgia

    Antigamente tinha os catutos, os cabaos assim oh [estica os braos]de vinte litros, trinta litros... Uns diziam que chegavam os parentes, n?E minha me enchia um caldeiro assim de giroba, botava para esquentarl no fogo e quando estava morninho dava para todo o mundo beber(homem Tupinamb de Olivena, com cerca de 45 anos de idade,residente no Curupitanga/Olivena)

    Como referi acima, a distino que ouvi ser feita pelos Tupinamb deOlivena entre giroba de trs dias e giroba de um dia refere-se a uma corres-pondncia entre o tempo de descanso da bebida e o nvel de fermentao. Maspara alm desta correlao, os adultos com mais de trinta anos de idade referemcom insistncia que a celeridade com que a bebida fermenta tambm dependedo recipiente onde deixada fermentar, j que no passado usavam certas cabaaspara guardar a bebida que aceleravam o processo, de tal forma que se conseguiaobter apenas num dia o mesmo nvel de espuma/fermentao do que em trsdias guardada num recipiente de alumnio. Os Tupinamb de Olivena conhe-cem esta cabaa (Cucurbitaceae, Lagenaria siceraria (Molina) Stand, n.c.)pelo nome de catuto.

    O catuto foi-me descrito como uma cabaa grande e redonda, mais estreitano alto que no bojo, podendo corresponder jamaru-cabaa53. Para aferir o

    52 FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 82.

    53 CUNHA, Manuela Carneiro da e ALMEIDA, Mauro (orgs.). Enciclopdia da Floresta. O Alto

    Juru: Prticas e Conhecimentos das Populaes. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 639.

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    exato tamanho desta cabaa temos apenas a referncia de nela caberem cercade 20 litros de giroba e tambm a descrio gestual da abertura e arqueamentodos braos que nos leva a imaginar um receptculo com cerca de um metro decomprimento54. As descries feitas pelos Tupinamb sobre o uso do catutodeixam claro que para servir de recipiente para a giroba o catuto tem que serpreparado: primeiro serra-se no cimo a boca e depois limpa-se por dentro,deixando secar sem que apanhe sol, pois pode rachar-se. espantosa asemelhana de termos e significados usados pelos Tupinamb, independente-mente da rea territorial por eles habitada, para falarem do catuto e o relacio-narem com a fermentao. Uma das melhores snteses desta relao foi-meexpressa por um ndio morador na Serra das Trempes o catuto, aquelas caba-onas, ali j era praticamente a giroba. Ser a giroba quer aqui dizer que jera bebida fermentada. De fato, voltando a prestar ateno ao processo de pre-parao desta bebida, verificamos que o tempo de fermentao estimado pelosndios bem mais reduzido se for usado o catuto e que este processo de fer-mentao induzido a partir da produo de espuma.

    - Qual era o sabor que dava o catuto?- Ah, porque avinha, fica avinhada, a mandioca. Machuca ela, abafana peneira e bota dentro do catuto e ele vai fervendo, ele prprio d ..uma panela mesmo, fica azedo, aquela espuma em cima. (mulher comcerca de 70 anos de idade, residente no Cururutinga)

    Para alm do catuto e das panelas de alumnio os Tupinamb tambm referema utilizao de panelas de barro ou potes de barro para fermentar a giroba,mas para diferentes mulheres e homens com quem falei sobre o assunto certoque no catuto o processo de fermentao era ainda mais clere do que no barro.

    Segundo acabei por concluir ao fim de vrias inquiries, o catuto no utilizado pelos Tupinamb de Olivena h cerca de vinte a trinta anos. Algunsatribuem este desaparecimento ao fato de no se ter mais visto a semente, en-quanto outros simplesmente no o encontram no mato, porque nem todos os

    54 O wikdicionrio remete o termo catuto para um brasileirismo usado em Santa Catarina

    para uma cabaa Fruto grande em forma de pra usado como bia em pescaria. Quandocortado ao meio usado como utenslio domstico ou para tirar gua nos pequenos barcos.(http://pt.wiktionary.org/wiki/catuto).

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    Tupinamb pensam no catuto como uma cabaa de cultivo. No h dvida quantoao entusiasmo dos Tupinamb ao falarem do catuto, desses grandes catutos,mas no h qualquer sentido de nostalgia que provoque vontade de recuperar assementes ou cultivar os catutos. Atualmente nem mesmo os potes de barro socomuns. A inacessibilidade a reas de rio com lama suficientemente boa parafazer barro em muitos casos a justificao para o uso mais comum de panelasde alumnio. Mas a referncia aos catutos descomprometida, no explora senti-mentos de perda que suscitem recuperao. Se podamos ver aqui um potencialpara a re-tradicionalizao no entanto sem nostalgia que os Tupinamb deOlivena se referem aos catutos, ainda que seja fcil de imaginar, no entanto,que se eles voltassem a aparecer seriam reintegrados com imediato pragmatismo.

    Prazer

    - Como que fazia?- Fazendo. A gente gostava.- Seus pais faziam tambm..

    - Fazia.- E voc bebia quando era pequeno?

    - Bebia. ..(h. h.)- Dava para os meninos porqu?

    - Porque eles gostavam tambm, n?- E fazia como?

    - Botava no pilo e no ralo e bebia. Negcio de ndio.(Homem de setenta anos, habitante no Cururutinga)

    O alto rendimento social das prticas alimentares tem sido largamenteobservado pelos antroplogos que trabalham com os amerndios contempo-rneos. Uma das dimenses mais relevantes nestas prticas a expresso deuma preferncia gustativa que associa a constituio da pessoa ao gosto porcerto tipo de comidas. Se Viveiros de Castro sublinha o teor filosfico que asprticas alimentares podem ganhar na vida amerndia, ao refletir sobre o cani-balismo Wari, Peter Gow e Joanna Overing tm mesmo discutido a importnciado prazer como dimenso tica, isto , constitutiva da moralidade, de disposiesde ao social e de constituio da identidade e diferena55. No caso da giroba,

    55 VIVEIROS DE CASTRO, Apresentao, op. cit.; GOW, The Perverse Childe, op. cit.;

    OVERING, Joanna e PASSES, Alan. Introduction. In The Anthropology of Love and Anger:the esthetics of conviaviality in Native Amazonia. Londres: Routledge, 2000, pp. 1-30.

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    aquilo que comea por se destacar a preferncia por uma bebida por definioazeda num contexto regional como a Bahia contempornea, onde as prticasgustativas so comandadas por um intenso adocicado.

    Nem todos os Tupinamb de Olivena gostam de beber giroba e claro queh muitas variaes gustativas que correspondero mesma variabilidade pessoalque atribumos s personalidades individuais. Mas num contexto como a Bahiaem que toda a comida altamente aucarada torna-se mais evidente e fcil dereconhecer a necessidade de uma explicao social, cultural e histrica para ofato de encontramos tantos homens, mulheres e crianas Tupinamb de Olivenacom desejo e manifestao de prazer na ingesto de uma bebida azeda e morna56.

    Ainda que se comente que as crianas Tupinamb de Olivena no gostamde beber giroba, explicando-se assim a razo pela qual se chega a administrar abebida quando elas esto a dormir, tambm pude verificar que em muitos casosacontecia o reverso. Algumas crianas, nascidas e criadas em reas residenciaisindgenas onde os alimentos processados de mandioca so abundantes e ingeridosquotidianamente, manifestam claro prazer por beber giroba, ficando felizesquando sabem que vai ser preparada e implorando que lhes seja dado a beber,como pude observar ser o caso durante o primeiro perodo de trabalho de campo.

    Certa manh, em 1998, em Sapucaeira, uma senhora idosa que residia namesma unidade compsita de residncia trouxe um recipiente com giroba. Vinhaoferec-la mulher principal da casa, ela mesma idosa. Ao formular a sua inten-o, um menino de quatro anos, neto desta senhora e seu filho de criao implo-rou por um copo de giroba. Como se no lho dessem com a rapidez esperada(para uma criana desta idade exigir comida atendido com prontido), come-ou a chorar, insistindo na sua vontade pela giroba. Acabaram por lha dar maisrapidamente do que sua av, evitando continuar a ouvir a splica. Mal o tevena mo, correu para um canto (como se faz com um alimento que se quer tantoque se teme perd-lo s com o olhar dos outros), e bebeu-a tranqilamente. Essa a forma de beber giroba: bebe-se sempre devagar, o que ajuda a que no hajaatrapalhao com os grumos e a espessura do lquido quando ela no coada.

    Os Tupinamb adultos que lembram normalmente com desagrado o saborda giroba que bebiam quando eram crianas so aqueles que h mais tempo

    56 Vi diversas vezes os Tupinamb residentes na vila refrigerarem a giroba nas suas geladei-

    ras para darem a beber a convidados menos acostumados com este tipo de paladares.

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    abandonaram a vida em reas onde a mandioca cresce: aqueles que vivem umavida urbana de forma mais identificadora, na qual os hbitos alimentares deixamde se relacionar com este tipo de derivados da mandioca ou terra da mandioca.Fui conhecendo vrios casos. Por exemplo, jovens adultos que saram de Olivenadesde a adolescncia, indo viver uma vida urbana em Ilhus ou Salvador.

    Mas num sentido quase inverso verificamos a enorme importncia da girobapara a identificao de homens e mulheres como Tupinamb, bem como parao relacionamento entre casais, mesmo aqueles que vivem nos extremos do terri-trio de Olivena, afastados das localidades onde existe maior concentraodemogrfica de ndios. normalmente um pai ou esposo a solicitar a umafilha ou esposa que lhe prepare giroba. Reparei que o termo usado chega a sero de mandar fazer giroba: Era ela que fazia, n? Ele mandava. Ela fazia etudo bebia. No caso do casal de um marido ndio e esposa no-ndia esta en-volve-se no processo tendo que aprender como preparar cerveja com um qual-quer elemento da famlia do marido.

    A vida de um dos casais que conheci e morava na rea de montanhas queencerram o horizonte territorial habitado pelos Tupinamb de Olivena exem-plar a este respeito. Quando conheci este casal estavam ambos em casa, juntocom um filho adolescente que mais tarde compreendi ser um filho de criao. Ohomem (pai deste adolescente) tem por volta de sessenta anos de idade e elacinqenta. Ele j filho de um no-ndio com uma ndia que o pai trouxeraconsigo para a rea das serras quando se casaram. Nasceu ali e acabou tambmpor casar com uma mulher que no ndia. Na nossa conversa explicou-me quequando era pequeno a me fazia-lhe giroba e cresceu a gostar tanto que de temposa tempos pede esposa para lha preparar. A esposa aprendeu com a sogra (a mendia do marido) por ter vontade de responder solicitao do marido.

    A descrio do dia em que ela aprendeu com a sogra significativa a di-versos nveis. Primeiro, viu a sogra fazer explicou e ouviu as suas recomen-daes. Disse-lhe, por exemplo, que com trs dias (a azedar) estava boa parabeber. Mas da primeira vez que ela mesma experimentou fazer para o maridoachou que fermentando um s dia j estaria pronta, sendo exagero da sogradeix-la trs dias espera. A partir dessa altura, sempre que prepara girobafaz num dia e d a beber ao marido no dia seguinte. Na altura em que aprendeucom a sogra, esta deu-lhe um pouco de giroba a provar. Ela bebeu (confessaagora) apenas porque no fazia idia do sabor que tinha. Achou de imediatoruim e rejeitou-a instintivamente, como explicou: eu botava na boca e

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    deitava fora. Ao longo dos anos de casada foi-se acostumando, mas mesmoassim, diz: no sou bem chegada, no.

    Apesar desta rejeio corporal que sentiu giroba, foi dando aos filhosquando eram crianas, por ouvir dizer ser boa para a sade. Garantiu aindaque eles a tomavam com alguma facilidade. Ao dizer isto, porm, o filhopresente no se conteve, acrescentando que tomava e tomo, mas no sou che-gado no. Antigamente eu tomava... E tomo, mas no sou chegado. Se forbem coado melhor. No sou chegado no. Quem gosta mesmo pai. O rapazh vrios anos que estuda em Buerarema uma cidade prxima desta rea - emais tarde confessou-nos que no gosta mesmo de beber giroba. De fato, bebergiroba na infncia no significa necessariamente que se fique a gostar ou a terprazer em beb-la pela vida fora. Tudo com acar bom argumentavaainda este jovem rapaz para explicar porque que mesmo assim acabava semprepor beber um copo para acompanhar o pai.

    O consumo da giroba implica o prazer de a beber, de pedir a uma esposaque aprenda a fazer ou a uma filha para a preparar57. O riso e boa disposioque as conversas sobre a giroba suscitam nos meus interlocutores, quer vivamna zona da costa quer na das montanhas so indicativos dos sentidos afetivose emotivos que a bebida lhes suscita. Se verdade que a cachaa tambm

    57 A preparao e consumo de bebidas fermentadas e at de muitos outros derivados culinrios

    da mandioca entre os povos sul-amerndios tem sido sistematicamente relacionada com ques-tes de gnero, salientando-se, principalmente, as formas de reciprocidade entre marido e espo-sa. Cf. GOW, The Perverse Child, p. 570; GUZMN, Para que la yuca beba nuestra san-gre, op.cit.; (cf. Gow 1989: 570, 1991, Guzman 1997, UZENDOSKI, Manioc Beer and Meat,op.cit., p. 888; LIMA, Um Peixe Olhou para Mim, op.cit., pp. 288-289). Um outro debateparalelo tem vindo a relacionar esta questo com o poder de gnero, encetado pela controversatese de Peter Rivire de que a sofisticao e complexidade na preparao de derivados da man-dioca seria tanto maior entre povos sul-amerndios quanto fosse preciso ao homem controlar asua esposa - como aconteceria exemplarmente em situaes de virilocalidade. RIVIRE, Peter.Peter. Individual and Society in Guiana: a comparative study of Amerindian social organization.Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 92. Para o debate e refutao desta tese veja-se McCALLUM, Cecilia. Gender and Sociality in Amazonia. How Real People are Made.Oxford: Berg, 2001; GUZMN, Para que la yuca, op.cit.; BELANDE, Viviendo bin, op.cit.,pp. 179-180); e BELANDE, Luisa Elvira. El recuerdo de Luna: gnero, sangre y memoriaentre los pueblos amaznicos. Lima: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales, 2005,pp. 92-94. Entre os Tupi Yudj, por exemplo, a questo do poder coloca-se de forma bem maiscomplexa, j que os maridos pedem esposa que faa cauim com o qual iro simbolicamentemat-los (cf. LIMA, Um Peixe Olhou para Mim, op.cit.).

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    desejada, a giroba convoca um tipo de desejo envolvente de pessoas e memriasafetivas. Bebe-se tranqilamente no apenas pelos grumos e espessura grossa,mas tambm porque o ato de beber constitui em si um momento de prazer. Aconvivialidade suscitada pela giroba vai a par dos sabores que ela pode invocar.Como vimos ao longo das referncias aqui feitas, a rememorao dos momentosem que se faz giroba vm sempre acompanhados da memria de uma convivia-lidade onde os excessos limpam o corpo ao invs de o impelir a comportamentosambivalentes, como acontece nos seres ou festas acompanhados de cachaa. ento esse prazer pela bebida que argumento ser central na persistncia dagiroba como identificao dos Tupinamb de Olivena.

    De fato, para os Tupinamb de Olivena a mediao da alimentao podemesmo ancorar um sentimento de atrao romntica. Uma mulher com os seuscinqenta anos, no-ndia, expressou-me certa vez os sentimentos de atraodo seu marido Tupinamb de Olivena dessa forma. O namoro aconteceu noperodo em que ela vivia numa cidade a cerca de 50 km de Sapucaeira e svoltava a casa dos pais uma vez por ms. O seu atual marido comeou a repararnela sem que fosse capaz, contudo, de expressar esse sentimento. Na perspectivadela esse pessoal [ndio] todo acanhado. Para conversar alguma coisa....Ela sabe que na poca enchia os olhos dos rapazes, toda bonitona, e ele ficavadoido, querendo falar com ela. Certo dia recebeu um bilhete dele. Soube queele o tinha ditado irm expressando os seus sentimentos nesta curta frase:voc quer vir queimar o meu feijo?.

    A intermediao do alimento na relao entre marido e esposa passa lar-gamente, portanto, pelo afeto envolvido na solicitao para se preparar umalimento. Como nos alerta Peter Gow, no caso sul-amerndio h que ser maisgeneroso com as possveis implicaes de relaes intermediadas por certosalimentos: Nas culturas nativas da Amaznia o corpo e os seus desejos so deenorme significado social e a satisfao do desejo corporal simultneo cria-o de relaes sociais58.

    No caso da ingesto de giroba pelos Tupinamb de Olivena fundamentalque tenhamos em conta a relao entre essa dimenso sensvel e gustativa, asua inscrio ontognica na formao de caboclos fortes e o fato de se tratarde uma bebida preparada com mandioca. Aqueles que por muito tempo abando-

    58 GOW, The Perverse Child, p. 581.

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    nam esta terra da mandioca tm maior dificuldade em voltar a beber umabebida que os hbitos alimentares adocicados da Bahia tornaro excessivamenteextica. Entre casais mistos que habitam em localidades com poucos ndiose portanto mais afastados, a diversos nveis, do convvio e modo de vida dosTupinamb de Olivena, como o caso das regies da serra que confinam oterritrio, a ligao giroba tende a ser um elo na memria afetiva de identi-ficao como Tupinamb.

    Nojo

    No que nos diz respeito, ao chegarmos a sse pas procuramos evitara mastigao no preparo do cauim e faz-lo de modo mais limpo(Lry 1972 [1578], p. 93).

    Segundo nos possvel determinar, a partir da idade e memria dosTupinamb adultos, no final do sculo XIX os Tupinamb de Olivena acres-centavam ao processo de preparao da giroba a mastigao ou salivao,associada fermentao59. No conheci ningum que tivesse vivido no perodoem que esse procedimento era comum, mas na medida em que ele reportadocomo uma prtica que os pais dos mais idosos ainda presenciaram podemosmesmo supor que no incio do sculo XX os Tupinamb de Olivena salivassema giroba. Conheci mulheres e homens entre os cinqenta e os setenta anos deidade que me asseguraram que a prtica era ainda comum entre os avs e queos pais ainda teriam presenciado esse procedimento quando eram crianas. Estaproximidade histrica no deixa de ser notvel, j que desde Jean de Lry quese ouvem diretivas coloniais no sentido de acabar com o mau-costume, comona citao em epgrafe desta seo.

    Importa principalmente entender os sentimentos dos Tupinamb deOlivena em relao a essa prtica do seu passado e tambm o sentido que lheconferem. Ao mesmo tempo que tantas vezes me deparei com as gargalhadas

    59 De fato, como explica sucintamente Fernandes: Ao mascar amilceos como a mandioca

    ou o milho, as ndias no Brasil nada mais faziam, ou fazem, do que atrair as leveduras teise coloc-las a seu servio (FERNANDES, Selvagens Bebedeiras, op.cit., p. 53). a enzimaexistente na saliva que permite converter uma parte do amido nos acares de que se alimen-tam os fermentos (ERIKSON, Lart de couler, op.cit., p. 249).

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    instantneas mal mencionava o assunto da giroba, no deixei de notar a mu-dana de humor provocada pela referncia mastigao. A seriedade normal-mente um preldio afirmativa de que essa prtica s era possvel quando osndios tinham os dentes sos. S mastigava quem tinha os dentes perfeitose essas mulheres do passado eram ndias de dentes muito sos diferentes desi-prprias que ns tnhamos o dente estragado.

    Diversas mulheres e homens de meia-idade souberam descrever como as mu-lheres se juntavam para mastigar a mandioca, sendo as moas (ou seja as mu-lheres solteiras) quem mais comumente o fazia, preparando-se num resguardo.Mas tanto a seriedade com que se refere o fato como a constante meno aosdentes sos das moas no so indicativas de nostalgia pelo passado. Muitopelo contrrio, neste caso trata-se exatamente do oposto. Para os Tupinamb deOlivena uma das formas de se explicar o que de positivo existe em no seremndios selvagens das aldeias muitas vezes remetido para um maior enten-dimento do mundo dos brancos que lhes favorvel: hoje so mais sabidos.Assim por exemplo se repete que se eles perderam as suas terras porqueantigamente eram tolos, no sabiam de nada. Em alguns casos os prpriosTupinamb de Olivena referem esta diferena entre o que so hoje e o que eramno passado, identificando-se agora como ndios civilizados. Para muitos a razopela qual no se mastiga a mandioca no processamento atual da giroba porquehoje o pessoal est muito civilizado. Mais do que naquele tempo. No mastigara mandioca visto como uma ruptura positiva com o passado, que no se querreverter. Parte do que tambm positivo nesta situao de ndios civilizados o relacionamento com os brancos e a relao entre um assunto e o outro aparececom alguma freqncia60:

    60 Vale a pena referir que os cronistas dos Tupinamb do sculo XVI e XVII tanto mencio-

    navam ter experimentado a bebida e ela ser agradvel, associando mais a sua repulsa ao fatode saberem que na sua preparao se juntava saliva das ndias do que ao seu sabor. No entan-to, Montaigne diz que cida e Jean de Lry refere que tem como que o gosto de leiteazdo (LRY, Viagem Terra do Brasil, op.cit., p. 90). Tanto o valor medicinal para o es-tmago como o exotismo do sabor da giroba esto curiosamente presentes na seguinte pas-sagem de Montaigne: Essa beberagem s se conserva por dois ou trs dias; tem o gosto umpouco picante, no exala vapores, salutar para o estmago e laxativa para os que no estoacostumados; uma bebida muito agradvel para quem est habituado a ela (MONTAIGNE,Dos Canibais, op.cit., p. 310). Numa nota de Srgio Milliet edio aqui consultada dolivro de Jean de Lry o tradutor cita o mesmo texto de Montaigne com algumas pequenasdiferenas que vale a pena mencionar. Assim, em vez de um pouco picante traduz umpouco cida e em vez de exala vapores traduz no embriaga (citado in LRY, Viagem Terra do Brasil, op.cit., p. 90).

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    O povo antigamente que criou essas divises. Que havia madeirapara fazer machucador e a giroba era amachucada no pilo. Mas o povocriticava... os no-ndios principalmente, que o ndio mastigava no dentee jogava novamente; criaram um meio de menosprezar o ndio. O povodizia que o ndios mastigava e depois colocava na mesma vasilha(Mulher com 74 anos, Campo de So Pedro).

    Uma outra mulher da regio do Acupe com cerca de sessenta anos de idadeencerrou de forma veemente a conversa que estvamos a ter sobre o assuntolembrando-me que uma das razes pelas quais se salivava a giroba no passadoera tambm por no se partilhar a bebida com gente de fora, ao que acrescenta:como voc. H assim a idia de que o fim da prtica de salivao correspondea um processo de maior alargamento da convivialidade para a relao comoutros, cuja relao no pode integrar a comensalidade, a mesma substncia,o mesmo corpo. No se pode partilhar comida, em suma, com um outro,potencial inimigo, pois desse se deve esperar mais desconfiana do que partilha.

    A significao desta estranheza e desconfiana foi-me sugerida atravs deuma conversa com uma mulher de Sapucaeira, com filhos e netos, que meconh