theml, neyde. mito e rito de fundação da realeza dos macedônios

Upload: anderson-silverio

Post on 06-Jan-2016

236 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

historia antiga

TRANSCRIPT

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    1/10

    HVMANITAS

    Vol.XLVII (1995)

    N E Y D E T H E M L

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    TEMENIDAS H E R O D O T I A N O :

    M ITO E RITO

    DE FUNDAO DA REALEZA DOS M AC ED NIOS:

    O

    PASSADO PRESENTE

    Nas His t r i as , l i v ro VI I I , 137-138 , Herdo to

    1

    relata a fundao da

    r e a l e z a d o s M a c e d n i o s . E l e a p r e s e n t a t r s i r m o s d a l i n h a g e m d e

    Hracls , que fugindo de Argos para o ter r i tr io dos I l r ios , chegaram a

    Lba ia , na

    Macednia

    Super ior (Argos Orest ikon) e a servi ram, ao re i

    (|3a

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    2/10

    72 NEYDE THEML

    refletia no cho:

    O

    misths merecido por vs este que vos dou

    (Herdoto.VIII. 137. 20-21).

    Os dois irmos mais velhos permaneceram imveis mas Prdicas,

    que por acaso (zv ti) trazia sua faca (u m.p), aceitou a pro pos ta ecom

    a ponta da faca traou um crculo em volta da mancha do sol no cho e

    fez por trs vezes um gesto como se estivesse recolhendo os raios do sol

    e os levasse para seu bolso, formado por sua tnica e a seguir se retirou

    comseus irmos.

    Aps a partida dos trs pastores, uma das pessoas presentes e prxi

    mo do reichamou-lhe a ateno da gravidade do fato de o pastor ter rece

    bido o presente.

    O

    rei transtornado mandou alguns cavaleiros perseguirem

    e matarem os irmos pastores.

    Existe, porm, naquele territrio um rio, o qual os descendentes

    destes pastores, vindos de Argos e de Hracls, oferecem sacrifcios

    como salvador (cxffrrrjpi). Este rio, logo que os Temnidas passaram, se

    enchera de tal forma que impossibilitou os cavaleiros (innac,), de

    Lbaia, passarem.

    Os fugitivos chegaram a outra regio daMacednia e l se instala

    ram perto dos jardins conhecidos por Jardms de Midas, onde crescem

    rosas com sessenta ptalas cada uma mais perfumadas que as outras.

    Nesses jardms, segundo contaram os macedonios para Herdoto, a fora

    capturado Sileno. Acima dos jardms existe uma montanha chamada de

    Bermion, onde um inverno perene a cobre de gelo e a torna inacessvel.

    Os Temnidas conquistaram esta regio e subjugaram o resto da

    Macednia.

    Procuramos analisar este relato estabelecendo toda uma rede de

    representaes culturais possveis que o texto pudesse remeter, a fim de

    entendermos porque Herdoto escreve sobre a fundao da realeza dos

    Macedonios.

    Herdoto nos relata uma tradio mtica de fundao da realeza dos

    Macedonios da casa dos Argeadae/Temenidae.

    No texto esto presentes as foras da natureza, os gestos rituais, e os

    valores culturais correspondentes a formao da realeza.

    Tentaremos uma explicao do sistema cultural que este mito evoca,

    pois consideramos que o aspecto religioso foi fundamental para garantir a

    autoridade dos reis dos

    Macedonios

    e ao mesmo tempo possibilitava

    Herdoto a operar com os elementos de identidade

    helnica.

    O

    primeiro elemento do mito o Sol. A abboda celeste e a Terra

    foram objeto de ateno dos Helenos e delas partiram as especulaes e

    representaes simblicas.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    3/10

    TEMENIDAS

    HERODOTIANO:

    MITO E RITO 73

    Osigno solar

    3

    estabelece naturalmente uma rede simblica no imagi

    nrio helnico.

    O

    Sol remete a

    ideia

    de crculo e de universalidade.

    Atravs da presena do Sol, um grande crculo, se dava o dia e a luz, a

    sua ausncia correspondia a noite e o escuro. Pela posio do Sol no cu

    e seu caminho imortal do leste para o oeste o homem determinava a sua

    prpria posio na Terra, estabelecendo a espacialidade e temporalidade

    humana (alto/baixo - mortal/ imortal).

    O Sol como um grande olho que tudo v e porque tudo v justi

    ceiro, sbio e soberano. Os raios solares so resplandecentes, brilhantes,

    preciosos como o ouro. Assim, o crculo solar remete a ideia de coroa e

    diadema real. A cor prpura da aurora e do poente majestosa, soberana,

    imortal, pois controla o despertar e o descanso dos homens, dos animais e

    do ciclo das plantas.

    O Sol soberano, a direita, o masculino, o pai e celestial.

    Sendo assim a representao do crculo e da cruz gamada para direita, que

    aparece na cermica dos stios de Vergina, solar, soberana, real e conota

    movimento.

    O crculo associado ao Sol representa: medida, ordem, harmonia,

    vigilncia, justia, soberania, fertilidade e fecundidade.

    O sol que entrava pela chamin por onde saa a fumaa da casa nos

    indica a presena do fogo da casa (Htia domstica), lugar central, lugar

    de unio dos membros da famlia, lugar sagrado (dentro - fora).

    O rio est ligado, ao mesmo tempo, as representaes da terra

    (baixo) e as guas (movimento, purificao)

    4

    . Os dois elementos unidos

    reforam a ideia de fertilidade, fecundidade, purificao, comunicao e

    limite. Devemos nos lembrar que os ritos de purificao eram realizados

    com gua pura ou fogo puro.

    Os jardins remetem imediatamente aos perfumes. O perfume repre

    senta a sublimao da matria, a presena concreta do invisvel, do ina

    cessvel e a expanso das coisas infinitas

    5

    .

    Os odores suaves permitem pressentir uma terra bem-aventurada, de

    eterna primavera e ao mesmo tempo se relacionam com os deuses e seus

    alimentos divinos, o nctar e aambrosia perfumadas.

    3

    Hesodo. T.D. v.383,395,575,585; Heraclito. Frag. 67,94,100,101,103,120;

    Parmnides. Frag. l.IX-X;Homero.Iliade.X XI.80-81.

    4

    Hesodo.T.D.v. 755-760.

    5

    Anacreonte. IX, XX XIX ; Plato.Fedro230b.; Plato.

    Timeu

    66-67; Heraclito.

    Frag. 98;

    Xenfanes

    de

    Colofon.

    1 D; Aristfanes.As Aves. (d. Garnier. p. 311-312).

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    4/10

    74 NEYDE THEML

    O perfume das rosas, associado a Sileno, companheiro de Dionisos,

    evoca o vinho e os odores embriagantes. Entendia-se que os odores das

    flores, dos frutos e do vinho penetravam nos sentidos, incitavam a imagi

    nao, liberavam a alma e a tornavam leve como os pssaros

    6

    . Herdoto

    faz uma associao entre os nomes dos pastores

    com

    duplo de aves:

    mocho, abelheiro e perdiz.

    Os perfumes ainda propiciam por sua seduo a embriaguez, a distin

    o e o reconhecimento do eu e do outro.

    Os perfumes purificam, embelezam, despertam os sentidos e sedu

    zem. Os jardins com rosas reafirmam e ratificam a mensagem dos odores

    e, ao mesmo tempo, as rosas remetem a

    ideia

    de crculo, e as ptalas a de

    raios solares.

    O

    sol e as rosas associados tornam os perfumes mais fortes

    e reforam o carter solar da soberania real de um reino forte, frtil sobre

    a orientao de Apolo e Dionisos.

    Herdoto poderia somente relacionar os Jardins de Midas com o rapto

    de Sileno que j nos induziria as relaes de perfume, alteridade e presen

    a do invisvel. Mas o historiador reforou a imagem dos odores atravs

    das rosas extraordinariamente grandes e as mais perfumadas. Com isso ele

    entrelaa os elementos do mito: Sol, crculo, perfume e anuncia o invis

    vel,

    o outro, o que est por se criar: o reino e a realeza dos Macednios.

    Continuando a anlise relacional do mito dos Temnidas herodotiano,

    que pretende mostrar que cada elemento evoca o outro, formando um rela

    to cuja mensagem era imediatamente compreendida, por seus contempor

    neos. Vimos que Prdicas por acaso trazia a sua faca e com ela fez um cr

    culo no cho e por trs vezes levou os raios solares para seu bolso. Com

    este gesto ele subtraa a soberania do rei de Lbaia. Um companheiro do

    rei compreendeu a linguagem gestual e advertiu ao rei. Prdicas, o irmo

    mais moo, se apossava dos atributos solares ritualmente e se investia reli

    giosamente de autoridade e soberania. Para garantir estes poderes ao irmo

    mais moo, o rio o protegeu enchendo-se e impedindo a passagem dos

    companheiros do rei de Lbaia, marcando para o Temnida a primeira

    fronteira do novo reino que fora anteriormente anunciado.

    Os nomes dos trs pastores significavam aves e unidos aos animais

    domsticos, responsveis pela riqueza, poder e nutrio qualificavam a

    atividade pastoril: mocho/cavalo; abelheiro/boi e perdiz/ovelha-cabra. Este

    conjunto nos remete ao cu e a terra, a cultura e a natureza, o domstico e

    o selvagem.

    6

    Alcman Frag. 6 (92 d); Apolodoro. Biblioteca I. 9.11, Hesodo. TD . v.

    564/575;

    675/680; 800/805.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    5/10

    TEMENIDASHERODOTIANO: MITO E RITO 75

    As aves, na cul tura

    helnica ,

    eram associadas ao cu. As asas eram

    s m b o l o s d e p u r e z a , v e r t i c a l i z a o , c o m u n i c a o ( s a g r a d a e p r o f a n a ) ,

    t ranscendncia e de conhecimento de acontecimentos distantes.

    O voo dos pssaros era um indicat ivo das estaes do ano, constan

    t es , simtr icas, reversveis e c i rculares. As asas e a ver t ical izao refor

    am as imagens do cu, do Sol , do fa lo e do pr incpio mascul ino.

    A montanha pe renemente ge l ada marcava o segundo l imi t e na tu r a l

    do reino: um obstculo , uma f rontei ra in t ransponvel

    7

    . A montanha a inda

    conota dois t ipos de

    ideias,

    de um lado: abrigo e refgio, e de outro: sel

    vagem, est rangeiro e fora da ordem cul tural . Como o re la to t ra ta de t rs

    pas to r es , a montanha passa t ambm a se r en tend ida como lugar de encon

    t ro .

    Devemos lembrar que as t r ibos de pastores macednicos eram t ransu-

    man tes , v ivendo duran te o ve ro nas montanhas e no inverno d i sper sos

    nas plancies

    (X-VIII sc .

    a.C) . A t r ansumnc ia pas to r i l l evava os pas to

    res a protegerem seu gado durante o vero nas montanhas propiciando o

    encontro e a reunio dos diversos grupos. Neste aspecto a cabra foi o ani

    mal de escolha sacr i f ic ia l na medida que une a montanha e a p lancie .

    A cabra o nico animal que vive tanto nas a l tas col inas quanto na plan

    cie . A cabra no rela to est l igada a Prdicas, por tanto o pastor que faz a

    un io . Mas aque la montanha pe renemente ge l ada e r a uma f ron te i r a .

    At ento o re la to jogou com as re laes ent re o homem e a natureza:

    cu, Sol (alto) , r io, terra (baixo), na mesma diviso espacial: aves e gado.

    Herdoto, porm, incluiu e lementos cul turais ta is como : os nmeros,

    a faca e o po.

    As rosas possuam sessenta ptalas , v imos acima as l igaes das f lo

    res com os per fumes, as rosas e as ptalas com o c rculo , com o Sol e com

    o diadema real . Todos estes s mbolos l igam a soberania do rei soberania

    celeste , mascul ina, capaz de promover a fer t i l idade e fecundidade eterna.

    (Na verdade as regies entre os r ios

    Axios

    e Hal icmon so r icas. )

    A espec i f i cao das sessen ta p t a l as co inc ide com o conhec imen to

    que se tem hoje , de que na

    Macednia

    as rosas so grandes e que pos

    suem t r in t a p t a l as

    8

    . S e n d o a s s i m , H e r d o t o u s o u o n m e r o com u m

    valor qual i ta t ivo. Conhecendo a matemt ica e a geometr ia p i tagr ica , quis

    passa r a mensagem de va lo r e no de quan t idade . Pa ra os p i t agr i cos

    9

    o

    7

    Plato.Timeu 59 d; Aristfanes.Acarnianos (Gamier p. 11).

    8

    N.G.L. Hammond. The Macedonian State: The origins, Institutions and

    History. Oxford: Clarendon Press Oxford. 1989. pp. 4-8.

    9

    Antoine Fabre-D Olivet. Les Vers dors de Pythagore. Paris: Henri Veyrier,

    1991, pp. 24-29; Plato. Timeu. 57 d/58, 62d/63d; Aristteles. Sur la Nature. 3.

    194b.16; 9. 199b. 34.20.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    6/10

    7 6 N E Y D E T H E M L

    nmero estabelece a percepo das relaes entre as coisas e as

    ideias.

    Atravs dos nmeros o homem obtm a noo de relao, proporo, har

    monia, ritmo e forma. Os nmeros eram princpios eternos, agentes de

    liberao, iniciao, beleza e justia.

    Atravs dos nmeros se constri formas tais como: o crculo, o trin

    gulo,

    o quadrado e se produz sons e ritmos. A msica como os perfumes

    seduz, embriaga, libera o homem das sanes e interditos.

    Dos quatro raios do crculo se obtm a cruz gamada para direita, sm

    bolo da realeza dos Macednios. Este smbolo era um referencial espacial-

    temporal solar, indicando as quatro direes e as quatro estaes do ano

    10

    .

    Os pastores transumantesmacednicos possuam um calendrio bem

    marcado, na lua nova em outubro, no outono os pastores migravam para

    as plancies, na primavera eles saam dispersos na plancie e retomavam o

    caminho das montanhas e a passavam o vero.

    Os nmeros que encontramos nos relatos nos levaram a outras rela

    es de equivalncia. Com a triangulao do crculo se obtm os polgo

    nos e o hexgono a forma dos cristais , da neve na montanha perene

    mente gelada.Com os nmeros se obtm os ritmos e os acordes musicais

    que encantam e elevam o homem. A msica e a sonoridade esto ligadas

    a palavra, a fala, a cultura e a comunicao. Apolo o deus da msica, da

    palavra harmnica, da palavra oracular e deus

    solar

    lz

    .

    Apolo e Dionisos

    se completam na mentalidade helnica e fazem parte da cultura dos

    Macednios

    13

    .

    Pelos atributos dos nmeros e sua vertente solar apolnea poderemos

    entender as variantes do mito de fundao da realeza dos Macednios,

    atravs dos relatos de Higino, Diodoro da Siclia e Justino, onde Apolo

    oracular e o animal guia, a cabra, esto explcitos nestes textos.

    O

    outro elemento do mito ligado ao espao da cultura a faca.

    A faca uma criao cultural, faz parte da esfera social. Ela a arma de

    defesa do jovem que se prepara para o rito de passagem da juventude,

    livre das regras e dos interditos para idade adulta, da obedincia e das

    obrigaes. A faca por sua vez um instrumento de sacrifcios, que per-

    10

    Manol is Andro nicos.

    Vergina. The royal tombs.

    Athens: Ekdot ike Athenon

    S.A. 1984. pp. 195/195.

    11

    Mati la C. Ghyka.

    Le nombre

    d or.

    Paris: Gallimard, 1959, pp. 34/ 37.

    12

    Georges Dum zi l .

    Apollon Sonore et autres essais:

    Esquisses de Mythologie .

    Paris:

    Gallimard, 1982. pp. 23-41.

    13

    N.G.L . Hamm ond.

    The miracle that was Macedonia.

    New York: St . Mart in ' s

    Press, 1991, p. 95.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    7/10

    TEMENIDAS

    HERODOTIANO:

    MITO E RITO 77

    mite criar um espao sagrado que possibilita o homem comunicar-se

    com

    o divino. A faca um utenslio de cozinha (cru e cozido) e propicia as

    refeies comuns que por sua vez indica solidariedade, hospitalidade, inte-

    rao e comunicao.

    O ato ritual de Prdicas, o irmo mais novo, considerado pela his

    toriografia como sendo aquele que possui funes religiosas enquanto que

    o irmo mais velho teria funes guerreiras

    14

    . Pois bem, Herdoto descre

    ve o rito de Prdicas que anunciava a fundao de Aigai. Ao recortar com

    a faca trs vezes em crculos, os raios de sol e deles se apossar, Prdicas

    realizava gestos, comunicando por mmica, que estava praticando um ato

    religioso inaugural e transmitia que havia uma ideia anterior, a saber, a

    manifestao e nomeao do reino que iria fundar. Isto significa que antes

    de criar e nomear o reino, Prdicas o concebeu com o favor dos deuses, o

    mostrou simbolicamente atravs de gestos reconhecveis por seus contem

    porneos e concedeu aos seus gestos a autoridade necessria a fundao

    do reino e ao exerccio do poder real. Em outros documentos textuais

    observamos que mais tarde o protocolo ritual dos reis dos Macednios era

    fundamental para manuteno da autoridade do rei e da casa real dos

    Argeadae/Temenidae

    l3

    .

    Finalmente o po que se duplica nas mos de Prdicas. O po nutre

    o homem, graas a abundncia de Demter. O po estabelece e mantm

    os laos de solidariedade social atravs das refeies que se fazem em

    comum na famlia ou entre amigos e hspedes nos simpsios.O po est

    na ordem da cultura, ele foi criado pelo homem, com a ajuda dos deuses,

    assim como a domesticao das plantas, dos animais, da tecelagem, do

    fogo,

    da cermica e da fabricao dos metais. A dieta do po, do vinho,

    do azeite e do cozimento dos alimentos indicava a identidade cultural com

    os Helenos. Por esta razo Herdoto em outra passagem categrico em

    afirmar que Alexandre I heleno assim como os Macednios.

    A duplicao do po nas mos de Prdicas nos induz que o rei da

    Macednia

    unia suas atribuies

    jurdicas-religiosas

    s atribuies polti

    cas. Ele alm de pr tudo em ordem, por tudo ver, propicia a unio e a

    solidariedade social, a fertilidade e a fecundidade do reino.

    O relato de Herdoto concedia ao rei dos Macednios poder e autori

    dade para gerenciar os conflitos que advm da passagem de uma socieda-

    14

    V.V. Ivanov. L'asym trie des oppositions smiotiques universelles. In:

    Travaux sur lessystmes de signes.

    Bruxelles:

    Editions

    Complexes. 1976, pp.

    52-53.

    13

    Carlo Ginzburg. Apontar e Citar: A verdade da Histria.

    Revista

    de

    Histria.

    Campinas, IFCH,n.2/3, 1991,pp. 91-106.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    8/10

    78 NEYDE THEML

    de de chef ias para uma sociedade onde se processa a emergncia de uma

    el i te ar is tocrt ica guer rei ra t radicional que se organiza pol i t icamente em

    forma de realeza

    1 6

    . Estes conf l i tos aparecem pelas oposies: marginal iza-

    o- in t eg rao , au tonomia-un i f i cao , pa r en tesco-comunidade , i gua ldade-

    desigualdade e autor idade-subordinao, sagrado-profano

    .

    O

    mito foi nar rado a Herdoto, na

    M a c e d n i a ,

    durante o re inado de

    Prdicas I I , f i lho mais velho de Alexandre I . Nesta ocasio Prdicas I I

    precisava reforar os laos de sol idar iedade social e manter unidos a casa

    real dos Argeadae-Temenidae e o prpr io re ino.

    Herdo to r esga ta a t r ad io macedn ica do mi to dos t r s i rmos pas

    tores

    18

    , reforando a au to r idade dos r e is dos Maced n ios em to rno de

    uma casa real , de descendncia herica-guerrei ra e c ivi l izadora.

    Compreendemos o r e l a to de Herdo to como uma exp l i cao m t i ca

    do

    fenmeno

    de passagem de uma soc iedade s imples o rgan izada em che

    f ia para a emergncia de uma sociedade complexa em forma de realeza.

    Na sociedade do t ipo t radicional s imples, as re laes sociais se pro

    cessam por nveis de associaes no in ter ior da sociedade global com cen

    t r o s p o l t i c o s m v e i s . S e n d o a s s i m , p o d e m o s i n t e r p r e t a r q u e o s t r s

    i rmos pastores estar iam se re lacionando at ravs de a l ianas que se efetu-

    aram

    por ter os t rs i rmos conhecimento das tcnicas pastor is .

    O

    rei de

    Lbaia ent regava a sua r iqueza (gado) e da comunidade homens reco

    nhecidos como capazes de preserv- la e ampl i- la .

    Os t rs Temnidas possuam uma si tuao de est rangeiros /a l iados/ ser

    vidores/ pastores do rei at que o rei no cumpre sua obrigao pagando os

    mistho, com isso, leva Prdicas a subtrair os raios de sol atingindo a sobe

    rania real e t ransformando os t rs pastores em est rangeiros / in imigos

    19

    .

    Devemos nos lembrar que a economia agro-pastor i l , nas sociedades

    t radicionais s imples ou complexas, se desenvolve paralelamente a t iv idades

    tcnicas re lacionadas a produo e a defesa. Ao lado da cr iao se estabe

    lece tcnicas l igadas a reproduo dos animais , de tosquiamento, de cru

    zamento, de cast rao, de tecelagem, de const ruo de cur rais , de estbu-

    16

    C. Renfrew.

    L'nigm e indo-europenne : Archologie et langage.

    Paris:

    Flammarion, 1990,passim.

    17

    Barbara Cassin et

    al.,

    Gregos, Brbaros, Estrangeiros: A cidade e seus

    outros.Rio de Janeiro: Editora 34,

    1993.

    passim.

    18

    Franoise Bad er. De la prhistoire l 'idolo gie tripartie: les travaux

    d'Herakls. In: D'Herakls Posidon Mythologie et Protohistoire. Paris: Librairie

    Champion, 1985, pp. 9-124.

    19

    Ibidem.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    9/10

    TEMENIDAS HERO DOTIAN O: MITO E RITO 79

    los, de atrelagem, de drenagem de pntanos, de irrigao, de fabricao de

    queijos e iogurtes.

    Paralelamente ao crescimento dos meios de produo, cresce a ativi-

    dade guerreira, preparando a sociedade para defesa do animal nutridor,

    contra roubo, contra animais ferozes, contra ocupao dos pastos. Logo,

    os pastores guerreiros, armados, chefes de grupos ou tribos pastoreiam seu

    gado e protegem as comunidades agrrias das plancies.

    A atividade guerreira passa a servir e proteger a atividade produtora.

    Sendo assim, os trs irmos pastores no seriam trs pessoas, mas trs

    chefes de tribos que se deslocavam com seu rebanho e o aumentavam

    atravs de prestao de servios criadores/agricultores.

    A hiptese de trs tribos para os trs pastores tem como argumento a

    indicao de Herdoto da organizao dos Drios (trs rArx) e no texto

    que analisamos fica implcito o rito da criptia. A mesma concluso

    encontramos nos historiadores Sergent e

    Borza

    20

    .

    A afirmao de que o relato trata da emergncia de uma elite herica

    guerreira que promove a formao da realeza dos Macednios advm da

    descendncia dos Temnidas.Hracls evoca a poca em que a criao de

    gado passava da transumncia a sedentarizao.

    O

    processo de sedentariza-

    o pressupe o conhecimento das tcnicas que citamos acima aliadas as de

    adubar, irrigar, emprego de animal de tiro, preparao de farinhas, constru

    o de casas ou seja im plica na especializao e diversificao social do tra

    balho. A complexidade social por seu lado gera a necessidade da escolha de

    um centro poltico e de uma nova forma de organizao do poder poltico.

    Prdicas, sendo descendente de Hracls, heri civilizador, reativa o

    mito dos estbulos de Augias, mas dando um novo significado ao exerc

    cio do poder. No mito

    Hracls

    pastoreia o rebanho do rei em troca de

    uma recompensa, segundo Apolodoro

    21

    este misths se traduzia no dzi

    mo do rebanho ou numa parte do territrio. Hracls recebe do rei a re

    cusa do pagamento e responde com o recurso da guerra. Prdicas diferen

    temente de seu ancestral e por conhecer a tradio submete a atividade

    guerreira ao poder simblico/religioso. Quando Prdicas aceita recolher os

    raios de sol do rei de Lbaia, ele optou fazer a sntese dos poderes mili

    tar/poltico/religioso.

    20

    B. Sergent . As primeiras civilizaes. Os

    Indo-Europeus

    e os Semitas.

    Lisboa: Edies 70, 1990; E.N. Borza.

    In

    the shadow of Olympus. The emergence of

    Macedon. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 84.

    21

    Apolodoro.Biblioteca. Livro II. 5.5.

  • 7/17/2019 THEML, Neyde. Mito e Rito de Fundao Da Realeza Dos Macednios

    10/10

    80 NEYDE THEM L

    Sendo os Temnidas descendentes de Hracls, podemos ainda

    encontrar aspectos interessantes de representao cultural.

    Hracls

    um

    heri solitrio, caador, guerreiro, vencedor de monstros, vencedor de ani

    mais selvagens, civilizador que combate com a fora de seus msculos, na

    maioria de seus trabalhos. Sua panplia denota uma cultura anterior a da

    utilizao dos metais. Hracls tem como virtudes a coragem, a fora e

    seus trabalhos, em sua maioria estavam vinculados a implementao do

    pastoreio e da agricultura. Numa de suas viagens a Rodes,Hracls desta

    ca as relaes de equivalncia entre - Homem/ cultura/ sacrifcio/

    22

    .

    Graas aHracls os homens reconhecem, pelos ritos de sacrifcio do

    boi,

    que so produtores de alimentos: cereais e carne de animal domsti

    co.

    Ao aprender a sacrificar os animais aos deuses, o homem se destaca

    da vida selvagem e do nomadismo. Os ritos de sacrifcio dos animais

    transformam a carne em alimento.O homem diante da fome produz e no

    pilha. Para se alimentar cozinha e no devora.

    Hracls, ao submeter a morte do animal domstico que trabalha no

    campo ao lado do homem, s regras rituais, fez com que o homem reco

    nhecesse ser um produtor de alimentos, um ser cultural e comunitrio.

    Os Temnidas herodotianos, descendentes de Hracls, conotam uma

    ao civilizadora entre populaes que habitavam as regies entre os rio

    xios e Halicmon, isto , os Macednios pastores iniciaram um processo

    de dominao/subordinao entre pastores e agricultores, centralizando a

    autoridade de chefes locais em torno da Casa real dos Argeadae

    /Temenidae , de descendncia ancest ra l , herica e c iv i l izadora .

    Transformaram Aigai num centro poltico fixo e a cabra no animal de

    sacrifcio comum.

    Observamos atravs da anlise do relato de Herdoto relativo a fun

    dao da realeza dos Macednios, que os elementos remetem a uma rede

    interligada de conexes culturais helnicas que eram capazes de serem

    compreendidas por aqueles que tiveram acesso ao relato por terem ouvido

    ou lido. Por estas razes ficou claro para ns que a histria da fundao

    da realeza dos Macednios foi compreendida pelos Helenos como sendo a

    sua histria passada. A realeza do tempo dos ancestrais, herica, guerreira

    e sagrada nada mais era que o passado presente, na

    Macednia ,

    dos

    Helenos

    23

    .

    22

    J e a n - L o u i s D u r a n d . Sacrifice et Labour en Grce ancienne: essai

    d Anthropologie

    religieuse. Paris: La dcouverte, 1986, pp. 156-159.

    23

    Neyde Theml . A realeza dos macednios (VIII. -VIL sc.a.C):

    Uma

    Histria

    do outro. Niteri: U F F , 1993.