a realeza cristã na gália merovíngia e na espanha visigótica - um estudo comparativo

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  A Realeza Cristã na Gália mer ovíngia e na Espanha visigótica: um e studo comparativo (561-633) Thiago Juarez Ribeiro *  RESUMO Esta apresentação objetiva compreender de que modo se erigiu tanto na Gália merovíngia quanto na Espanha visigótica uma Realeza Cristã, isto é, pensar o advento, nestas localidades, de um governo que se apresentou como responsável pela salvação das almas em sua conexão com a reformulação das práticas e dos comportamentos sociais, percebendo o que era este “projeto” e o que ele implicava em termos da normatização das condutas. Assim, os textos conciliares e os editos reais fornecem bons exemplos de medidas normativas de impacto social. É aí que se insere também a análise das obras de Gregório de Tours e de Isidoro de Sevilha, explicitando como estes autores contribuíram no processo de normatização das condutas, considerando passagens de ambas narrativas que corroborem estas determinações. Palavras-Chave: Realeza, Episcopado, Poder Público. ABSTRACT This presentation intends to comprehend how the Christian Kingship, that is, a government that presented itself as responsible for the salvation of the souls, was erected in both Merovingian Gaul and Visigothic Spain in the sixth and seventh centuries. We intend to show how this kingship ideal was a “project” which intended to reformulate social practices and behaviors, what implied in a normatization of conducts. For this purpose, we have adopted the conciliar texts and the royal edicts of these kingdoms as good examples of normative acts with social impact. To aid our analysis of this documentation, we have also used the works of Gregory of Tours and Isidore of Seville, preeminent bishops in those kingdoms who effectively contributed to this “project” of Christian Kinship. We will consider passages of Gregory’s Decem Libri Historiarum and Isidore’s Historia Gothorum Wandalorum Sueborum which, in our opinion, corroborate our thesis. Keywords: Royalty, Episcopat e, Public Power . A realeza dos séculos VI, VII e VIII é tema cuja amplitude é testificada pela profusão de obras historiográficas produzidas sobre o assunto desde o século XIX, comportando * Mestrando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista F APESP .

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A Realeza Cristã Na Gália Merovíngia e Na Espanha Visigótica - Um Estudo Comparativo

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  • A Realeza Crist na Glia merovngia e na Espanha visigtica: um estudo comparativo (561-633)

    Thiago Juarez Ribeiro*

    RESUMO Esta apresentao objetiva compreender de que modo se erigiu tanto na Glia merovngia quanto na Espanha visigtica uma Realeza Crist, isto , pensar o advento, nestas localidades, de um governo que se apresentou como responsvel pela salvao das almas em sua conexo com a reformulao das prticas e dos comportamentos sociais, percebendo o que era este projeto e o que ele implicava em termos da normatizao das condutas. Assim, os textos conciliares e os editos reais fornecem bons exemplos de medidas normativas de impacto social. a que se insere tambm a anlise das obras de Gregrio de Tours e de Isidoro de Sevilha, explicitando como estes autores contriburam no processo de normatizao das condutas, considerando passagens de ambas narrativas que corroborem estas determinaes. Palavras-Chave: Realeza, Episcopado, Poder Pblico.

    ABSTRACT This presentation intends to comprehend how the Christian Kingship, that is, a government that presented itself as responsible for the salvation of the souls, was erected in both Merovingian Gaul and Visigothic Spain in the sixth and seventh centuries. We intend to show how this kingship ideal was a project which intended to reformulate social practices and behaviors, what implied in a normatization of conducts. For this purpose, we have adopted the conciliar texts and the royal edicts of these kingdoms as good examples of normative acts with social impact. To aid our analysis of this documentation, we have also used the works of Gregory of Tours and Isidore of Seville, preeminent bishops in those kingdoms who effectively contributed to this project of Christian Kinship. We will consider passages of Gregorys Decem Libri Historiarum and Isidores Historia Gothorum Wandalorum Sueborum which, in our opinion, corroborate our thesis. Keywords: Royalty, Episcopate, Public Power.

    A realeza dos sculos VI, VII e VIII tema cuja amplitude testificada pela profuso de obras historiogrficas produzidas sobre o assunto desde o sculo XIX, comportando

    * Mestrando em Histria pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP.

  • diversas teorias acerca de sua natureza e de sua autoridade. Subjacente ao embate entre aqueles que, de um lado, advogam a barbarizao do Ocidente, donde os reinos germnicos teriam sua legitimidade derivada de suas conquistas, e de outro, os que defendem a tese de uma romanizao aps as invases, donde o poder real originaria-se da delegao de Constantinopla; cristalizou-se a concepo de um poder real absoluto fundado sobre a fora (MENJOT, 1996: 24), no qual a converso ao cristianismo representaria mais uma crena supersticiosa do que uma conscincia religiosa crist (GANSHOF, 1962: 95). Imersos na barbrie, merovngios e visigodos, teriam sido incapazes de erigir uma autoridade pblica. Apenas com a reforma carolngia, o bem pblico teria sido incorporado aos atos de governo atravs da Igreja. revelia dessas teses, e desde o final da Segunda Grande Guerra, os historiadores comearam a reavaliar a realeza na Alta Idade Mdia, afirmando que as monarquias brbaras pretendiam-se continuadoras de uma ratio poltica. K. F. Werner assinalou a existncia de um Estado cristo no perodo merovngio, no qual o rei exerceria um ministerium (PARAVANCINI & WERNER, 1980). Entre os visigodos, por sua vez, a converso lhes teria legado a idia de imperializao, corolria da coroao de Recaredo Flavius, novo e autntico Constantino (ISLA FREZ, 1989: 113). Porm, a cristianizao da realeza ainda apreendida em termos restritos. Os estudos sobre a cristianizao da realeza na Alta Idade Mdia limitaram-se fundamentalmente aos paralelismos entre os reis brbaros e aqueles do Antigo Testamento, como no caso de Clotrio II e Davi (HEN, 1998: 284), sem atentar para as implicaes polticas e sociais desse fenmeno (CNDIDO DA SILVA, 2008: 39). Neste sentido, propomos nosso estudo comparativo. Tendo como ponto basilar sua documentao, levamos em conta sua circunscrio de produo (Glia e Espanha), com vistas compreenso do papel da realeza e do episcopado face aos desafios da pacificao e reorganizao do reino e a normatizao das condutas. Um contato com as fontes que ao elucidar as articulaes entre realeza e Igreja, permite-nos uma abordagem crtica da prpria historiografia. Assim, concentramo-nos na leitura os conclios de Mcon I (581-583), Mcon II (585), Paris V (614), Toledo III (589), Toledo IV (633); os editos reais de Gontro (585), Clotrio II (614), assim como as narrativas de Isidoro de Sevilha, Crnica dos Vndalos, Suevos e Visigodos, e Gregrio de Tours, Dez Livros de Histria. A assembleia de Mcon I (581-583) se d pela injuno do rei Gontro, e reune vinte e

  • um bispos, representanto o conjunto de seu reino. Nota-se a presena dos metropolitanos de Lyon (que preside o conclio), Sens, Bourges e Besanon. Os cnones evocam numerosas disposies anteriores, mas um assunto em particular chamam a ateno dos bispos: a questo de organizao jurisdicional e de procedimento (c. 7, 8, 13, 18). notvel que a justificativa utilizada pelos bispos para suas deliberaes seja o interesse pblico e a necessidade dos pobres (pro causis publicam quam pro necessitatibus pauperum). Evidencia-se, portanto, uma articulao entre a realeza e o episcopado no governo do reino: o rei convoca os bispos numa assembleia, que por sua vez delibera a favor de assuntos pblicos. Porm, os cnones 7 e 8 so significativos: ambos preconizam uma autonomia clerical quanto a jurisprudncia secular, o caso da impossibilidade de se julgar ou prender um clrigo sem a presena de seu superior, ou da criao de uma competncia jurdica prpria onde os julgamentos de delitos se do no interior da Igreja. O conclio de Mcon II (585) compreende vinte cnones que, grosso modo, abordam assuntos variados da disciplina eclesistica: o respeito ao repouso dominical (c. 1 e 4), do dzimo (c. 5), sobre sepulturas (c. 17), disposies acerca de clrigos e laicos (c. 15), da hospitalidade (c. 11 e 13). Acerca de uma justia eclesistica, isto , aquela em que o episcopado toma frente na resoluo de conflitos, por meio de uma jurisprudncia prpria, temos as disposies de proteo de vivas e rfos (c. 12), do direito de asilo (c. 8), reprimindo a espoliao dos pobres pelos poderosos (c. 14) e das competncias das jurisdies eclesisticas (c. 7, 9, 10 e 12). Assinam as atas conciliares 7 bispos metropolitanos, 42 bispos e 12 representantes, configurando o mais importante conclio da segunda metade do sculo VI. De fato, Mcon II tido pela historiografia como o esboo fundamental da realeza crist, e seus preceitos influem diretamente na conduta do reino. Percebe-se o esforo do episcopado, com o apoio real, em normatizar a sociedade merovngia por meio de dispositivos intimamente ligados moral crist. Esta articulao entre Igreja e realeza evidente no prembulo do conclio, quando o bispos declaram a natureza da assembleia: membros de um s corpo, estamos reunidos sob nosso chefe (membra sumus unius sub nostro capite), indicando assim Gontro, rei de Orlans. Essa incluso do rei Gontro no corpo eclesistico seria utilizada tambm por Gregrio de Tours. Ao assinalar o modelo ideal de rei durante o relato do milagre de Gontro por ocasio da peste que assolava Marselha, o bispo narra: Ora, o rei, que como teria feito um bom bispo, encontrou os remdios prprios a curar as feridas da multido pecadora, e ordenou a toda a populao

  • que se reunisse na igreja e celebresse as cerimnias de splica com uma devoo particular (Histrias, IX, 21). Porm, ainda que Gregrio associasse Gontro figura do rex-sacerdos, o bispo de Tours promove, em realidade, um projeto moralizante junto realeza, na medida em que liga o milagre do rei a seu comportamento cristo. Mais, por ter agido como um bom bispo, Gregrio assinala a paridade entre episcopado e realeza no governo dos homens.

    Estas relaes institucionais e seu projeto de reformulao das condutas ainda mais explicito no Edito de Gontro de 585. Expedido pouco tempo aps a assembleia de Mcon II, Gontro conclamou bispos, juzes e padres a observarem o cumprimento da justia no reino. Suas medidas, em grande parte confirmando os cnones de Mcon II, so tomadas segundo o prprio rei tendo em vista a salvao do povo. O rei demarca tambm as esferas de atuao da Igreja e da realeza: aos bispos, cabe a correo dos homens pelas oraes, ao rei a correo punitiva, sinalizando uma autoridade pblica crist (Ns tambm, os reis, a quem a autoridade do supremo rei confiou a capacidade de reinar, e ns no escaparemos de sua ira se ns no cuidarmos propriamente de nosso povo, Edito de Gontro). Vemos que se o poder secular ainda se exprime como condutor do povo rumo salvao, tal qual os imperadores romanos cristos, uma mundana radical se d na maneira como a esta seria alcanada e, principalmente, na transformao do rgo responsvel por ela: se no baixo Imprio cristo a salvao era responsabilidade do imperador, no reinado de Gontro ela dividida entre o rei e a Igreja, fazendo com que esta assumisse um papel significativo nas diretivas de governo. Embora a ratio poltica deste novo tipo de autoridade pblica esteja presente nos documentos analisados, difcil perceber em que medida elas afetaram a sociedade merovngia. O cnone 8 do conclio de Mcon II e Gregrio de Tours permitem-nos atentar a uma possibilidade de ocorrncia deste processo. Reagindo violncia contra os cativos, a Igreja estabelece um dispositivo que prev o abrigo aos que fogem do tormento dos poderosos e os deixa sob a guarda do bispo: [...] e ns no permitimos a qualquer um, qual seja o nvel e a dignidade que ocupa [dignitatis gradus], de exercer alguma violncia contra um fugitivo que se encontre em local santo (Mcon II, c. 8). Neste caso, caberia ao bispo julgar as acusaes feitas ao refugiado. Em sua obra (Histrias V, 4), Gregrio relata a truculncia e soberba com a qual Raccolenus, enviado do rei Chilperico, ordenou ao bispo que entregasse um refugiado da baslica de Tours. Demanda que no fora aceita pelo bispo sob alegao da santidade do local. Ameaando incendiar a cidade, Raccolenus teria sido, primeiramente, castigado por Deus com ictercia, a doena real, e tendo deixado o local, sem conseguir se

  • alimentar, enfraqueceu e morreu pouco tempo depois. A comparao entre estes dois trechos demonstra, relevados os acontecimentos taumatrgicos, como as medidas tomadas pelos bispos e referendadas pela realeza provinham de uma necessidade do reino (no caso, conter a violncia), ressaltando ainda mais o carter pblico e cristo da nova autoridade e sua prtica de governo, na medida em que se trata de uma deliberao comum realeza e ao episcopado, demonstrando a articulao entra as duas esferas no governo da sociedade merovngia e ao mesmo tempo a preocupao de ambos poderes com aspectos do reino que vo alm dos interesses particulares. A Burgndia vista como local de esboo da realeza crist pelo prtica governante contrastante com os demais regna da Glia. De fato, durante o perodo das bella civilia, que perdurou da metade do sculo VI ao incio do sculo VII, a Glia merovingia era subdivida em trs regna: Austrsia, Burgndia e Nustria, cada qual governada por um neto de Clvis. Reunificada em 613 por Clotrio II, a Glia assistiu a continuidade deste novo modelo de autoridade pblica, que de esboo passaria realizao concreta em todo reino merovingio. Veculos desse fenmeno so o Conclio de Paris V e o Edito de Clotrio II, ambos de 614. O prembulo do conclio de Paris V oferece as motivaes da assembleia: ante as circunstncias presentes os bispos so convocados pelo rei Clotrio II. Tais circunstncias, observadas atravs do corpo cannico, explicitam o estado da Igreja no incio do sculo VII: simonia e interveno dos poder secular nas nomeaes dos bispos, abuso de autoridade do episcopado, revolta dos clrigos contra a hierarquia, apelo ao poder secular nos conflitos eclesisticos, espoliao das igrejas e monastrios, transgresses do engajamento religioso, unies incestuosas e a proibio de judeus ocuparem cargos pblicos. Assim, os bispos ofereceram o conclio vantagem do prncipe, sade do povo e a boa ordem da Igreja. Testemunham a amplitude deste conclio seu grande nmero de participantes: 12 metropolitanos, 63 bispos provincianos e ainda um abade, Pedro de Cantorbry. Clotrio II, por sua vez, apresentou como motivo de seu pronunciamento a correo do que atentava contra a ordem e a razo dentro de seu reino, a fim de que no se causasse o afastamento de Deus. Assim, com a graa de Deus, o decreto visava a felicidade do reino e a permanncia do favor divino. Como em Mcon II, a autoridade eclesistica de 614 pretendeu demarcar posies soberanas de atuao no reino merovngio, isto , posies que se situavam fora do raio de interveno da realeza. Tomava forma, ento, o c. 2 de Paris V, que delimitava estritamente a

  • nomeao dos bispos: quando da morte do titular, o novo bispo indicado somente pelo metropolitano, junto de seus provincianos, sem que intervenha nenhum interesse, com o reconhecimento do ordenado pelo clero (clerus) e pelo povo (populus). E que se a ordenao se resolvesse por emprego de poder (potestatis) ou de outra forma, como pela compra, ela seria anulada. Embora observasse a manuteno dos estatutos cannicos pela eternidade, Clotrio II, por meio do captulo 1 de seu edito mudou substancialmente o contedo deste cnone, adicionando como requisito de eleio do novo bispo a ordenao do rei (ordinatio princeps). O rei, ento, configurou a ingerncia da autoridade secular no mbito eclesistico, e que em certa medida, estendia-se para seus subordinados, como os juzes do reino. Vejamos: o c. 6 do conclio estabelecia que nenhum juiz punisse, ou condenasse, qualquer clrigo sem o conhecimento de seu bispo. O c. 4 do edito de Clotrio infere que embora nenhum juiz pudesse julgar ou condenar, por sua prpria iniciativa, o clero em processos temporais (civiles causae), esta prerrogativa no teria valor em questes criminais onde eclesistico fosse manifestamente culpado. Evidenciava-se assim a judiciaria dignitas, que reconhecia ao rei a matria da justia e sua soberania em sancionar a lei dentro do Regnum Francorum. Ainda sim, a coexistncia das obras da autoridade secular e da autoridade eclesistica uma preocupao constante por todo o texto do edito. O c. 14, por exemplo, estabelece que os juzes pblicos deveriam defender, atravs de meios legais, as propriedades das igrejas e daqueles que no podiam se defender, respeitando as imunidades conferidas pelos reis anteriores Igreja a fim de preservar a paz e da ordem pblica A atitude de Clotrio II teria, ento, valor poltico de reciprocidade: enquanto a Igreja e os grandes do reino agiam para a manuteno da paz em seus domnios e cooperaram com as foras pblicas locais, receberiam em retorno isenes que conferiam benefcios financeiros, tais como a imunidade. Em outro sentido, c. 5 estabelece a dualidade da justia num processo entre uma pessoa secular e uma pessoa eclesistica em corte pblica (persona publica). O julgamento do processo neste caso, decorreria numa audincia pblica presidida tanto por um juiz secular e quanto por um bispo. Esta parece ser uma extenso do c. 12 do conclio de Mcon II, que estabeleceu que perante a convocao de vivas e rfos pela justia secular em algum processo, o bispo, enquanto tutor daqueles, deveria ser avisado para em deciso conjunta com o juiz secular resolver o processo. Mundanas significativas no quadro das relaes entre realeza e episcopado se operaram no perodo entre 585-614 na Glia merovngia. Se no final do sculo V, Clvis se

  • convertera ao cristianismo, aps o processo do Teilreich de 561 que a realeza se tornou propriamente crist. A bella civilia estruturou na Glia franca uma original autoridade real. Mais do que uma mescla de valores brbaros e romanos, a instituio real franca concebeu, subjacente integrao ao episcopado, uma nova legitimao da autoridade. O cristianismo no passou a ser somente vis da proposta de governo, mas sim sua prpria finalidade: a funo real estava ligada salvao dos homens. Porm, a escatologia crist presumia requisitos, dos quais o fundamental era a plenitude da justia. Cabia, ento, realeza e ao episcopado corrigir e direcionar a sociedade em torno do bem comum atravs da paz e da justia, cujo melhor exemplo a normatizao das condutas de acordo com a moral crist exposta nos cnones conciliares e editos reais. Neste contexto, a preocupao no com a existncia ou no de categorias como Estado ou Nao. A atividade governamental poca merovngia no pressups a existncia de uma estrutura estatal, como concebida em seu sentido moderno. Este fato essencial para a compreenso dos papis de cada instituio. A autoridade da realeza e episcopado, no mbito cristo, derivaram juntas da divindade e sua plenitude de aes se deu na medida em que a utilitas publica incorporou o preceito moral cristo de salvao do reino dos francos.

    O rei visigodo converteu-se ao cristianismo quando da ascenso de Recaredo ao trono em 587. Consolidando uma poltica pastoral, o rei convocou o Conclio de Toledo III (589) ao contrrio da tese de que esse evento, por parte de Recaredo, representaria apenas a concrdia e a aceitao da hierarquia eclesistica, originria da nobreza, que descontente opusera-se a seu pai. Em Toledo III, os bispos designaram o rei para a misso espiritual de conquista dos arianos. Em contrapartida, o rei estabelece o doutrinamento do povo como funo episcopal, deflagrando assim a converso do reino. Tal qual Gontro em seu edito de 585, Recaredo anunciou em Toledo III que funo da realeza cuidar das coisas que pertencem ao Senhor e observar pelo povo a quem foi confiado por Ele. Nesse sentido, tanto o episcopado quanto a realeza devem unir foras para a realizao deste projeto: os cnones 16 e 17 so sintomticos: ambos preconizam que juzes e bispos intervenham diretamente na sociedade em favor da proibio da idolatria (c. 16), e no castigo daqueles que matam seus filhos (17). Tambm guardando semelhana com as deliberaes de Paris V (c. 4), o cnone 14 proibe a nomeao de judeus para cargos pblicos. Mas, de fato, a grande preocupao dos bispos e do rei em Toledo III o arianismo: dos 18

  • cnones que compem o conclio, 14 (c. 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 15) tem como resoluo final a condenao, pelo antema, dos dogmas e prticas arianas. Junto s atas da assembleia, que pede-se serem divulgadas por todo reino, esto tambm profisses de f contra o arianismo, resgatando textos do conclio de Niceia I (325), do conclio de Constantinopla I (381) e do conclio de Calcednia (451). H subscries dos bispos convertidos (9 no total), assim como dos presbteros e diconos, e tambm de vrios vares ilustres (uir inluster) e toda nobreza visigoda. O esforo de uma unio de f que tem sentido na plenitude da paz, veculo do crescimento da Igreja. Por fim, junto s atas das assembleia, Recaredo expede um edito de confirmao do conclio e o cumprimento de suas determinaes por todo reino, tanto por parte dos clrigos quanto dos laicos. A punio para os desobedientes, segundo o rei, para os membros da hierarquia eclesistica era a excomunho, para um secular de posio elevada, a metade de sua fortuna seria doada ao fisco, sendo o desobediente um homem do povo, este perderia seus bens e seria exilado.

    Em 633, Sisenando, procurando legitimar sua autoridade real em contraste com o rei deposto Suintila, convoca o conclio de Toledo IV at relatado no prambulo do conclio que o rei prostrou-se em terra diante dos bispos, e com lgrimas e gemidos pediu que intercedessem por ele diante de Deus. Talvez seja tomando este fato que se d a existncia do cnone 47, no qual, por ordem do rei, foi estabelecido que todo clrigo fosse imune s convocatrias de trabalho pblico [ab omni publica indictione atque labore habeantur inmunes] visto que seu servio prestado religio e a Deus. Porm, mais do que confirmar os desgnios de Sisenando, os bispos estabeleceram preceitos normativos para a sucesso real, no intuito de afianar a segurana, a paz e a concrdia do reino: no cnone 75, ltimo do conclio e intitulado admoestao ao povo para que no peque contra os reis, conclamada a fidelidade ao juramento feito ao rei, para que no se atente contra o trono a fim de no incitar as discrdias civis. E tendo o rei morrido pacficamente, a nobreza de todo o povo, em unio com os bispos, designaro de comum acordo o sucessor do trono, para que se conserve a entre ns a concrdia e a unidade, e no origine, por motivo de violncia e de ambio, nenhuma diviso da ptria e do povo. E a seguir desta disposio, os bispos declaram a pena aos transgressores da medida: a antema pelo perjrio profano. Os bispos tambm fazem um pedido tanto ao presente rei quanto aos futuros reis para que sendo moderados e pacficos para com seus sditos, governem [regere] os povos que lhes foram confiados por Deus com justia e piedade, correspondendo s benfeitorias do Cristo

  • que os elegeu. Esta medida tinha em vista evitar as autoridades despticas, cuja soberba levaria o reino ruina. No sem razo a condenao de Suintila como tirano pelos bispos de Toledo IV, presido por Isidoro de Sevilha, finaliza as atas do conclio. A articulao entre realeza e episcopado no conclio de Toledo IV peculiar. Diferente do exposto em Toledo III, a maioria dos 75 cnones referem-se quase exclusivamente ordem eclesistica. Assim o cnone 75 sintomtico, pois engendra uma permuta de favores mtua entre episcopado e realeza, de um lado o primeiro garante a proteo e legitimao do segundo por meio da moral cristo, por outro o segundo inclui o episcopado no colegiado de eleitores do rei, algo indito at ento. Aqui, a realeza crist no tem o fim escatolgico da salvao, e sim, na plenitude e garantia da paz no plano terreno.

    BIBLIOGRAFIA

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