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Textos Sobre Leitura

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Page 1: Textos Sobre Leitura

Ler devia ser proibido

Recebi este escrito por e-mail; por

achá-lo interessante, compartilho

com outros

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Page 2: Textos Sobre Leitura

A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.

Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

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Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

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Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

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Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E conhecesse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

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É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova... Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.

Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos... A leitura é . Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.

Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

(Guiomar de Grammon)

(http://segundavia.org/)

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Leio, logo existo

Revista Veja, páginas amarelas, entrevista com Harold Bloom

O mais polêmico dos críticos

literários diz por que ainda se deve ler num mundo dominado por imagens

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Flávio Moura

Não falta quem considere o americano Harold Bloom, de 70 anos, o mais importante crítico literário em atividade. Autor de mais de vinte livros sobre literatura e professor há mais de quarenta anos – leciona nas universidades Yale e de Nova York –, ele é, no mínimo, uma figura polêmica. Sem pruridos em atacar seus pares acadêmicos, ele não se cansa de chamá-los de ressentidos e os acusa de estarem matando a literatura com a mania do politicamente correto. Ferrenho defensor dos "valores estéticos", Bloom autoproclamou-se guardião solitário da cultura clássica e exalta os grandes nomes da literatura mundial com uma energia admirável. No ambicioso O Cânone Ocidental, livro lançado há sete anos, ele mapeia o que há de fundamental na história da literatura do Ocidente. Com o controverso Shakespeare – A Invenção do Humano, defende a tese de que seríamos criaturas diferentes se o famoso dramaturgo inglês não houvesse existido. Agora Bloom quer ensinar a ler. É isso que faz no livro Como e Por que Ler (Editora Objetiva), que chega às livrarias do país nesta semana. De sua casa em New Haven, nos Estados Unidos, ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA:

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Veja – Por que ler?

Bloom – A informação está cada vez mais ao nosso alcance. Mas a sabedoria, que é o tipo mais precioso de conhecimento, essa só pode ser encontrada nos grandes autores da literatura. Esse é o primeiro motivo por que devemos ler. O segundo motivo é que todo bom pensamento, como já diziam os filósofos e os psicólogos, depende da memória. Não é possível pensar sem lembrar – e são os livros que ainda preservam a maior parte de nossa herança cultural. Finalmente, e este motivo está relacionado ao anterior, eu diria que uma democracia depende de pessoas capazes de pensar por si próprias. E ninguém faz isso sem ler.

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Veja – Como ler?

Bloom – Tente ler sem considerações políticas, compromissos ideológicos ou preconceitos. Para o livro que estou escrevendo agora, por exemplo, estou relendo a Divina Comédia, de Dante Alighieri, em italiano. Há certos moralismos em Dante que me irritam. Além disso, há seu compromisso com a visão de mundo católica, e eu não confio em nenhum tipo de religião institucionalizada. Mas, ao lê-lo, procuro me manter aberto. O frescor da língua e a força das metáforas me obrigam a deixar todas as minhas opiniões de lado e me render à força daquele texto. É assim que se deve ler.

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Veja – O livro Como e Por que Ler foi muito criticado na época do lançamento. Houve quem dissesse que o senhor simplificou demais a questão, outros o acusaram de posar de guardião da "alta cultura". Como responderia a seus críticos?

Bloom – A maior parte das críticas negativas é proveniente de acadêmicos anglo-americanos. Somos inimigos mortais. Há 25 anos venho denunciando esse pessoal. O ensino de literatura no mundo de língua inglesa foi para o inferno. É dominado por ideólogos, por integrantes daquilo que eu chamo de "escola do ressentimento". É gente comprometida com assuntos extraliterários, com mania de desconstruir e relativizar tudo. Eles não se importam com o valor estético. É o politicamente correto que interessa a eles. Por isso, não estou nem aí, nem leio as críticas. Se você tenta ser independente, se não adere a nenhum tipo de moda, se fala honestamente e emite opiniões próprias, se recusa ideologias, inevitavelmente será atacado. É como diz o escritor americano Ralph Waldo Emerson, um dos meus heróis: "O mundo tenta castigar os que não se conformam". Minha maneira de responder aos críticos é escrevendo outros livros.

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Veja – Qual o papel da literatura num mundo dominado pelas mídias visuais?

Bloom – Há grandes autores, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Jane Austen e Charles Dickens, que conseguem sobreviver nas adaptações para as mídias visuais. Mas há outros, como Dante Alighieri, John Milton, James Joyce, Marcel Proust ou Franz Kafka, cujo futuro é completamente incerto. O grande autor português José Saramago é outro por quem eu temo. Somos amigos, escrevi um ensaio sobre o magnífico O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Ele é dos melhores romancistas que conheço, não deixa nada a dever aos grandes nomes da literatura. Mas, sinceramente, acho que num mundo dominado pela imagem livros difíceis como os dele poderão deixar de ser lidos em vinte ou trinta anos. As crianças estão crescendo cercadas por telas. A longo prazo, não sei qual pode ser o efeito disso sobre a capacidade das pessoas de ler para buscar não apenas informação, mas sabedoria e autoconhecimento.

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Veja – Livros como os da série Harry Potter não são uma boa porta de entrada, um meio de despertar nas crianças o interesse pela literatura?

Bloom – Você realmente acha que as crianças vão ler coisas melhores depois de ler Harry Potter? Eu acho que não. E um dos piores escritores da América, Stephen King (ele é terrível, não consigo ler nem dois parágrafos do que escreve), confirmou minhas suspeitas numa resenha que escreveu para o jornal The New York Times. Segundo ele, as crianças que aos 12 anos estão lendo Potter aos 16 estarão prontas para ler os seus livros. Preciso dizer mais? Os Estados Unidos são um país em que a televisão, o cinema, os videogames, os computadores e Stephen King destruíram a leitura.

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Veja – Por que não ler os livros de J.K. Rowling, a autora de Harry Potter?

Bloom – Li apenas uma das obras dessa autora. A linguagem é um horror. Ninguém, por exemplo, "caminha" no livro. Os personagens "vão esticar as pernas", o que é obviamente um clichê. E o livro inteiro é assim, escrito com frases desgastadas, de segunda mão. Escrevi uma resenha para o Wall Street Journal falando mal de Harry Potter. A polêmica foi imediata. Foram enviadas mais de 400 cartas me xingando de todos os nomes. A defesa de livros ruins como esses, que vem de todos os lados – dos pais, das crianças, da mídia –, é muito inquietante e nem um pouco saudável.

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Veja – Em seu livro anterior, Shakespeare – A Invenção do Humano, o senhor afirma que o dramaturgo William Shakespeare "inventou o humano". Poderia explicar um pouco melhor essa idéia?

Bloom – Grande parte do que hoje consideramos uma personalidade humana foi invenção de Shakespeare. Há hábitos que desenvolvemos, como o de parar de repente e escutar a nós mesmos, que só passaram a existir depois dele. Preste atenção na literatura anterior, em forma de verso, prosa ou teatro. Você simplesmente não encontra monólogos interiores como os que vemos em Shakespeare. Aquilo que gostamos de chamar de nossas "emoções" surgiram pela primeira vez como pensamentos de Shakespeare. Nele, mais do que em qualquer outro escritor, parece que os personagens não foram inventados. É como se eles existissem desde sempre. Assistir a uma peça de Shakespeare na China, em termos de identificação do público com o que se passa no palco, não é muito diferente de assistir em Nova York ou Londres.

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Veja – No século XX, tornaram-se muito comuns as leituras psicanalíticas de Shakespeare. O próprio Freud escreveu a respeito da peça Hamlet. Mas o senhor costuma fazer pouco dessas interpretações. Por quê?

Bloom – O romântico Percy Shelley costumava dizer que o demônio deve muito ao poeta John Milton, já que este o retratou de maneira magnífica no livro Paraíso Perdido. Pensaríamos no demônio de maneira diferente se não fosse Milton. Acho que o mesmo ocorre com Freud: ele deve tudo a Shakespeare. Freud é essencialmente Shakespeare em forma de prosa. Se você ler atentamente o que ele fala sobre complexo de Édipo, verá que no fundo não está falando de Édipo, mas de Hamlet. Por isso defendo uma leitura shakespeariana de Freud, e não uma leitura freudiana de Shakespeare. Não podemos negar a Freud, contudo, um lugar entre as quatro ou cinco maiores figuras intelectuais do século XX. E também entre os maiores escritores. Ele era um ótimo ensaísta. Foi o Montaigne de nossa era.

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Veja – Num de seus livros mais famosos, A Angústia da Influência, de 1973, o senhor dizia que, para uma geração de autores se constituir, tinha de "matar" a anterior. Isso ainda vale para os autores contemporâneos?

Bloom – Sim. A menos, é claro, que a literatura passe por uma mudança radical, o que por enquanto acho muito difícil. Essa mania atual de cyberliteratura, cyberpoema, jogos verbais etc., tudo isso são erupções tardias do que os dadaístas e surrealistas fizeram, aliás muito melhor, 100 anos atrás. Saramago, por exemplo, parece estar sempre envolvido numa complexa competição com Eça de Queiroz e com Fernando Pessoa, os dois grandes autores portugueses que o precederam. Ainda acho que a literatura caminha por meio de um confronto direto com a produção da geração anterior. Isso não vai mudar. Arte é competição.

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Page 18: Textos Sobre Leitura

Veja – Crítica também?

Bloom – Acho que toda crítica equilibrada, mais do que

competitiva, tem de ser pessoal e excêntrica. É o que Oscar Wilde,

outro de meus heróis, costumava dizer: a crítica é a única forma

civilizada de autobiografia. Não tenho pretensões de fazer crítica

científica. Gostaria muito que meus livros, lidos em conjunto,

fossem considerados minha autobiografia.

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Page 19: Textos Sobre Leitura

Veja – Em 1979, o senhor publicou The Flight to Lucifer – A Gnostic Fantasy (Vôo para Lucífer – Uma Fantasia Gnóstica), sua única tentativa de escrever ficção. Por que não voltou a ela?

Bloom – Foi um erro. Não devia ter publicado esse livro. Você o conhece? É uma ficção científica na qual o protagonista, uma espécie de Prometeu, vai em busca de seu destino num planeta chamado Lúcifer. Reli a obra numa noite dessas e vi que ela era realmente horrível, fria, sem vida. Os personagens eram todos sobrecarregados. Era pesado, não tinha nada da "vida local" que uma narrativa de verdade deve ter. E aí percebi que eu não era um contador de história, que não podia criar bons personagens. Gostaria que esse livro fosse esquecido de vez. Todo mundo tem a chance de errar uma vez. Essa foi a minha.

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Page 20: Textos Sobre Leitura

Veja – Temas religiosos, como a cabala e o gnosticismo, aparecem também em seus livros de ensaios. Onde termina o crítico e começa o místico?

Bloom – Cresci como judeu ortodoxo, mas continuo achando, e isso já irritou muita gente, que o judaísmo ortodoxo não é mais do que uma leitura equivocada da Bíblia hebraica, feita há 1.800 anos. Foi uma forma de adequar a religião à realidade dos judeus que viviam sob ocupação romana. Hoje não vejo por que agir da mesma forma que naquele tempo. Considero as tradições religiosas como produto de uma época – e a criação do universo como uma grande separação, o criador distanciando-se irremediavelmente de suas criaturas. Até imagino, para além do sistema solar, algo parecido com um deus de verdade. Mas ele, ou ela, certamente não pode nos ouvir. É como diz a máxima: se as preces do homem são uma doença da vontade, então seus credos são uma doença do intelecto.

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Page 21: Textos Sobre Leitura

Veja – O enfoque literário na leitura da Bíblia é mais interessante do que o religioso?

Bloom – Sem dúvida. O texto original do que hoje chamamos de Gênesis, Exodo e Números é trabalho de um narrador magnífico, certamente um dos maiores contadores de história do mundo ocidental. Aliás, em O Livro de J, observo que o autor desses textos foi uma mulher que viveu 3.000 anos atrás, na corte do rei Salomão, um lugar de alta cultura, ceticismo e muita sofisticação psicológica. Pense em figuras como José, Jacó e Jeová. São todos personagens maravilhosos. E os efeitos poéticos do texto são extraordinários, comparáveis a Píndaro. Os profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel também eram grandes escritores, assim como os autores do Evangelho de Marcos e do Livro de Jó. A Bíblia é uma vasta antologia da literatura de toda uma cultura.

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Page 22: Textos Sobre Leitura

Veja – E hoje, há algo que preste nesse filão crescente de

literatura religiosa e new age?

Bloom – Não. Não temos um grande místico. Haveria espaço para

um, sem dúvida, e até clamo por isso em meu livro Presságios do

Milênio, mas não há quem se salve. Só lixo, em qualquer língua que

conheço. É preciso deixar claro que nos últimos trinta ou quarenta

anos não surgiu nenhum autor religioso com alguma força ou

originalidade.

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Page 23: Textos Sobre Leitura

Veja – Como o senhor situaria a literatura brasileira em relação à literatura mundial? Que nomes destacaria?

Bloom – Comecei a estudar português não faz muito tempo, e ainda não consegui me familiarizar direito com a língua. Não posso dizer que conheço a produção literária contemporânea do Brasil. Quanto aos autores mais antigos, como Machado de Assis, só agora começaram a aparecer boas versões de suas obras para o inglês. Foi por isso, também, que não o incluí em O Cânone Ocidental.

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Page 24: Textos Sobre Leitura

Veja – No fim desse livro, o senhor faz uma longa enumeração daqueles que seriam os autores mais importantes do Ocidente, em todas as épocas. Qual o sentido desse tipo de lista?

Bloom – Nenhum. Fiquei muito arrependido de incluir essa lista no livro. Ele ficaria melhor sem ela. Fiz sob protesto, por insistência do meu editor e da agente literária, que achavam que assim o livro venderia mais. Acho perniciosas todas as listas de "melhores livros". São baseadas em leituras apressadas, em premissas equivocadas e sempre acabam deixando de lado algo importante. Portanto, sou completamente contra listas. Inclusive a minha.

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Page 25: Textos Sobre Leitura

Ler é Poder

Tania Menai

O ensaísta canadense, autor de

Uma História da Leitura, explica por

que a palavra escrita é a grande

ferramenta para entender o mundo

Revista Veja, páginas amarelas

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Page 26: Textos Sobre Leitura

Quando tinha 16 anos, o jovem argentino Alberto Manguel trabalhava numa livraria em Buenos Aires. Certo dia, viu entrar pela porta, acompanhado de sua mãe, um homem cego, já de meia-idade, que havia encomendado uma obra esquisita – um dicionário de anglo-saxão. Todo mundo conhecia o homem: era Jorge Luis Borges, um dos mais importantes escritores do continente latino-americano e, para muitos, um dos mais importantes do século. Manguel atendeu o escritor. E este, quando já estava para ir embora, resolveu fazer-lhe uma proposta: que tal se nas horas livres o rapaz fosse até sua casa, para ajudá-lo com os textos que ele não podia mais enxergar? Nos dois anos seguintes, foi exatamente o que aconteceu. Ele leu em voz alta para Borges. Para si mesmo, enquanto isso, confirmou sua paixão pela leitura. Hoje, aos 55 anos, ele é um especialista de renome internacional nesse tema. Sua obra mais conhecida é Uma História da Leitura, que, lançada pela editora Companhia das Letras, chegou a freqüentar as listas de mais vendidos no Brasil. Com justiça. Escrito em linguagem clara e atraente, repleto de histórias e curiosidades, o ensaio aborda o assunto das mais diversas perspectivas – da iniciação à literatura à relação do texto escrito com as imagens e as novas tecnologias.

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Page 27: Textos Sobre Leitura

Filho de diplomata, Manguel – que se lembra de ter decifrado o significado das letras de um cartaz pela primeira vez aos 4 anos – já viveu em diversos países, da Itália ao Taiti, e é fluente em cinco línguas. Atualmente, é cidadão do Canadá, "um país onde sua voz é escutada sem que você precise ser um político". Vivendo em Calgary, participa neste ano de um programa para escritores na universidade local e escreve Uma História do Amor e do Ódio, a ser lançado até dezembro. Foi lá que Manguel deu a VEJA a seguinte entrevista:

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Page 28: Textos Sobre Leitura

Veja – Numa época em que predominam as imagens, por que a leitura ainda é importante?

Manguel – A atual cultura de imagens é superficialíssima, ao contrário do que acontecia na Idade Média e na Renascença, épocas também marcadas por uma forte imagética. Pense, por exemplo, nas imagens veiculadas pela publicidade. Elas captam a nossa atenção por apenas poucos segundos, sem nos dar chance para pensar. Essa é a tendência geral em todos os meios visivos. Assim, a palavra escrita é, mais do que nunca, a nossa principal ferramenta para compreender o mundo. A grandeza do texto consiste em nos dar a possibilidade de refletir e interpretar. Prova disso é que as pessoas estão lendo cada vez mais, assim como mais livros estão sendo publicados a cada ano. Bill Gates, presidente da Microsoft, propõe uma sociedade sem papel. Mas, para desenvolver essa idéia, ele publicou um livro. Isso diz alguma coisa.

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Page 29: Textos Sobre Leitura

Veja – Que diferenças existem entre ler um livro e ler a mesma obra numa tela de computador?

Manguel – Os livros de hoje derivam dos pergaminhos e estes, das tábuas. Ou seja, são resultado de um processo que visou facilitar a vida do leitor. O formato atual do livro permite carregá-lo para qualquer lugar, folheá-lo sem esforço e anotar em suas margens. Também possibilita que saibamos exatamente seu tamanho, o que era difícil no caso do pergaminho. As palavras impressas no papel são tangíveis, você quase pode tocar a tinta, e têm uma durabilidade incrível. No museu de arqueologia de Nápoles, vi papiros queimados na erupção do Vesúvio que destruiu Pompéia. Ainda é possível ler o que está escrito nesses fragmentos. Já se um disquete cair na água o texto nele contido desaparecerá para sempre. No computador, o texto não tem uma realidade sólida, além de ser extremamente frágil – se você apertar um comando errado, adeus texto. Quando falamos em ler um livro, nosso vocabulário é gastronômico: "Devoramos um livro" ou "Saboreamos um texto". Já em relação ao computador usamos palavras que têm a ver com superfície, como "surfar na internet" ou "escanear um texto". É impossível interiorizar o texto que aparece na tela luminosa. Isso me faz pensar que não lidamos com a informática de maneira correta. Veja o caso do CD-ROM. Insistimos em utilizá-lo como artifício para enriquecer a edição de uma obra, quando o melhor recipiente para um texto é o livro convencional. A história mostra que esse tipo de problema ocorre sempre que adotamos uma nova tecnologia. No final do século passado, dizia-se que, com o nascimento da fotografia, a pintura morreria. Da mesma forma, acredita-se hoje que a mídia eletrônica substituirá a imprensa. Bobagem. Assim como a fotografia encontrou uma linguagem própria, a informática também achará a sua.

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Page 30: Textos Sobre Leitura

Veja – O senhor usa a internet?

Manguel – Não muito. O processo de pesquisa na internet não me

leva rapidamente ao tipo de informação que busco. Estou bem mais

acostumado a pesquisar em bibliotecas.

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Page 31: Textos Sobre Leitura

Veja – O filme Mensagem para Você mostra que as megalivrarias americanas, como a Barnes & Noble, estão abocanhando as pequenas. O que o senhor acha dessa tendência?

Manguel – Odeio a Barnes & Noble, mas não há muito o que fazer a respeito. A noção de livraria como um supermercado onde os vendedores não sabem o que estão vendendo é uma idéia infeliz, movida por razões econômicas. Para o leitor, a única vantagem é o grande número de títulos disponíveis. Houve uma perda qualitativa com o advento das megalojas, porque um freqüentador de livraria não ia a um estabelecimento apenas para comprar um livro. Ia também para conversar sobre literatura, receber recomendações de obras, ter uma seleção mais pessoal. As livrarias tinham uma identidade, ao contrário da Barnes & Noble. O mesmo raciocínio vale para uma livraria virtual, como a Amazon.

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Page 32: Textos Sobre Leitura

Veja – É melhor ler publicações sem qualidade do que não ler nada?

Manguel – Essa pergunta pressupõe que certos livros são necessariamente melhores do que outros. Não acredito em hierarquias absolutas no campo da leitura. Nos países árabes, que valorizavam a filosofia e a poesia em detrimento da ficção, As Mil e Uma Noites eram vistas como literatura barata. No Ocidente, porém, o livro tornou-se um clássico. A dimensão de uma obra depende também da experiência pessoal de cada um, de quanto sua vida foi transformada por ela. É um tanto arrogante dizer "esse é o livro que você deve ler e esse é o que você não deve". Há obras certas para diferentes momentos de sua existência.

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Page 33: Textos Sobre Leitura

Veja – Que autores tiveram grande influência sobre o senhor?

Manguel – Um nome que me ocorre é o do brasileiro Monteiro Lobato, autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ter lido Monteiro Lobato numa certa fase de minha vida foi mais enriquecedor do que ter lido Camões, há cinco anos. Camões é interessante, levou-me a pensar em questões profundas, mas não mudou minha vida. Tive contato com as obras de Lobato aos 8 anos, logo depois de mudar para a Argentina. Eu relacionava alguns episódios protagonizados pela boneca Emília com certas dificuldades que tive na escola nova, por causa do idioma que eu não falava.

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Page 34: Textos Sobre Leitura

Veja – O senhor conhece Machado de Assis?

Manguel – Gosto muito do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis é um dos escritores fundamentais de nosso tempo. O fato de ele não ter exercido uma influência internacional deve-se exclusivamente a circunstâncias culturais e econômicas. Ele viveu no Brasil, um país remoto no século passado, apesar de seu tamanho. Se Machado de Assis tivesse escrito em inglês, ele teria sido um precursor, e não um herdeiro de determinadas concepções literárias.

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Page 35: Textos Sobre Leitura

Veja – O que se perde ao ler um livro traduzido?

Manguel – Tudo. Um livro é a língua na qual ele foi escrito. Sua tradução é outra obra – que às vezes pode até ser melhor do que a original. Quem sabe alemão, francês, italiano, espanhol e sueco tem a literatura do mundo inteiro a sua disposição. Se você fala apenas inglês, não. Os países de língua inglesa não traduzem muito. Têm uma cultura profundamente arrogante, que acredita que a civilização termina nos limites de seu próprio idioma.

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Page 36: Textos Sobre Leitura

Veja – Uma criança é capaz de entender obras clássicas, como as

do inglês William Shakespeare?

Manguel – Não, Shakespeare escreve numa linguagem antiga.

Uma criança pode entender algo desde que seus textos sejam

vertidos para uma linguagem mais simples. Ainda assim, as

crianças só compreenderão Shakespeare até certo ponto, dada sua

parca experiência de vida e limitada formação intelectual.

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Page 37: Textos Sobre Leitura

Veja – As adaptações de clássicos para crianças são uma boa idéia?

Manguel – Não as acho necessárias. Por que uma criança deve ser obrigada a ler obras clássicas? Ela pode começar lendo livros próprios para sua idade e, depois de crescida, chegar a Shakespeare. Mais do que uma simplificação, a adaptação de uma obra implica uma intervenção inadmissível em seu conteúdo. No limite, ela pode tirar da pessoa o desejo de ler um clássico na versão integral. Não há por que tratar a leitura de grandes livros como obrigação. Não há prazer na obrigação e devemos ler apenas por prazer.

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Page 38: Textos Sobre Leitura

Veja – É correto forçar uma criança a ler?

Manguel – Da mesma maneira que não podemos fazer com que uma criança goste de alguém, não temos a capacidade de transformá-la num leitor. O que devemos fazer, como adultos responsáveis, é colocar a literatura à disposição da garotada. Uma das razões pelas quais às vezes não apreciamos um determinado livro é por termos sido forçados a lê-lo na escola ou por nossos pais terem lido e nos obrigado a fazer o mesmo. Parte da maravilha e da riqueza da leitura vem da liberdade que ela sugere e da possibilidade de vagar por florestas de prateleiras, escolhendo o livro certo para aquele momento, como se nós fôssemos seu primeiro leitor ou estivéssemos chegando a um país desconhecido. Essa é uma experiência que não devemos tirar de nossas crianças. Devemos deixá-las escolher, dizendo: "Você será uma pessoa melhor, mais feliz e mais sábia quando encontrar seu livro".

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Page 39: Textos Sobre Leitura

Veja – Quem lê muito necessariamente escreve bem?

Manguel – Muitos escritores preferem não ler enquanto estão escrevendo, para não influenciar seu trabalho. Mas só há uma forma de aprender a escrever bem: lendo. Lendo você pode descobrir como os escritores fizeram suas obras e ter noção do processo da escrita. Mas não há regras. O escritor inglês Somerset Maugham dizia que "existem três regras para escrever bem. Infelizmente ninguém sabe quais são elas".

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Page 40: Textos Sobre Leitura

Veja – A censura a livros é um instrumento válido para impedir que certas idéias perniciosas se disseminem?

Manguel – A história do livro sempre caminhou lado a lado com a censura, mas não canso de repetir: censurar é uma idiotice. Os livros banidos voltam de uma forma ou de outra, independentemente de seu conteúdo. Conheço um professor de filosofia que foi prisioneiro de um campo de concentração na Alemanha nazista. Por ter na mente muitos dos clássicos, ele servia de biblioteca viva para os outros prisioneiros. Sempre se procura desculpa para a censura. Hoje ela é a pornografia infantil. Mas a única maneira de evitar as eventuais influências negativas de um texto é por meio da educação, ensinando às pessoas como ler. Livros, por si sós, não incitam à violência ou propiciam o nascimento do anti-semitismo. O homem que matou John Lennon estava lendo O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, uma das obras mais singelas e idealistas da literatura americana.

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Page 41: Textos Sobre Leitura

Veja – Qual é o país que detém o maior índice de leitura?

Manguel – Estatísticas mostram que é a Islândia. O curioso é que esse dado não vem de agora. No século passado, o francês Júlio Verne criou uma interessante passagem a respeito no romance Viagem ao Centro da Terra. Ao chegar à biblioteca de Reykjavik, capital daquele país, seus heróis encontraram as prateleiras quase vazias. Os livros estavam emprestados a ávidos leitores.

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Page 42: Textos Sobre Leitura

Veja – Por que o analfabetismo é crônico em tantas nações, apesar de ser um problema fácil e barato de ser resolvido?

Manguel – Porque ter acesso à palavra escrita significa a possibilidade de dominar um instrumento de poder chamado linguagem formal. É na linguagem formal que estão escritos os códigos, as leis de um país. Manter grande parte da população no analfabetismo é uma das maneiras utilizadas por governantes que querem perpetuar-se no poder, sem sofrer ameaças. Mas existe outro tipo de analfabetismo – aquele definido por São Jerônimo como a "ignorância desejada", que ele considerava um pecado.

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Page 43: Textos Sobre Leitura

Veja – O que é a "ignorância desejada"?

Manguel – É a atitude de quem, deliberadamente, não dá importância à cultura, mesmo tendo um grau satisfatório de escolaridade. Há um grande número de analfabetos desse tipo nos países desenvolvidos.

Veja – O senhor tem um lugar preferido para ler?

Manguel – Adoro ler nos trens, meu transporte predileto. Gosto também de ler na cama e leio no banheiro, claro. O lugar mais desconfortável é a mesa de trabalho.

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Page 44: Textos Sobre Leitura

ANALFABETOS VOLUNTÁRIOS

Quem não lê nem escreve nunca, embora saiba como fazer as duas

coisas, não tem realmente nenhuma vantagem prática em relação a quem

não sabe ler nem escrever – como ensina Mark Twain, não vale mais do

que um analfabeto puro, simples e legítimo.

J. R. Guzzo - Jornalista

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Page 45: Textos Sobre Leitura

É um sujeito que conhecemos muito bem no Brasil: aquele infeliz que

tem de decorar a cor do seu ônibus, porque não é capaz de ler os

números e letras que aparecem no letreiro, ou assina o seu nome com

um X, porque não aprendeu a escrever. Caso você esteja entre a

multidão que nunca lê um livro, ou uma frase com mais de 140 toques,

e nunca escreve nada mais longo do que isso, aqui vai uma notícia

interessante: você é um analfabeto.

Eu? Sim, você mesmo. É uma pena; infelizmente, também é a

verdade. Tanto faz que tenha se formado na universidade, seja um alto

executivo multinacional ou nacional, disponha de um certificado de

“celebridade”, por ser top model ou alguma coisa “famosa”, possa

utilizar 150 “apps” no seu celular, conte com 1000 amigos no Facebook

e, em casos extremos, tenha até sido presidente da República. O

indivíduo que nunca lê nada é uma vítima do analfabetismo – vítima

voluntária, certo, mas analfabeto do mesmo jeito.

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Page 46: Textos Sobre Leitura

Exagero? Se você se recusa a ler ou escrever porque acha chato,

inútil, obsoleto ou por qualquer outro motivo, faça o seguinte teste:

tente explicar, no duro, qual é realmente a diferença entre você e um

analfabeto – além, naturalmente, da capacidade de ler letreiros,

assinar seu nome num pedaço de papel e outras miudezas. Vamos ver

quem consegue.

A maré está na vazante. A substituição do alfabeto por sinais como

“rsrsrs”, “kkkkk” ou “:)”, por exemplo: adiantou alguma coisa para

melhorar os índices atuais de inteligência ou de cultura? Não parece.

O tempo ganho com essa economia ortográfica não resultou no

aumento da produtividade mental de ninguém – não levou à produção

de mais ideias, digamos, ou de ideias melhores do que as que vemos

por aí. Esse tipo de conquista, que aumenta o volume do som, mas

não melhora a voz do cantor, só confunde ainda mais a linha divisória

entre alfabetizados e analfabetos. Eis aí mais um fenômeno da vida

moderna: a universalização da ignorância.

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Page 47: Textos Sobre Leitura

Não deveria ser assim. Como todos sabem, a “mobilidade”, a “nuvem”,

a comunhão entre 1 bilhão de pessoas numa rede social e outras

conquistas extremas da “conectividade” provocaram uma “revolução

dentro da revolução” e outros prodígios. Não se consegue traduzir

direito essa linguagem para o português comum; só nos garantem que

a internet vem fazendo cair cada vez mais as barreiras entre quem tem

e quem não tem “conhecimento”. Mas a impressão é que tais barreiras

podem estar caindo do lado errado – ou seja, os que têm

conhecimento vão ficando cada vez mais parecidos com os que

não têm.

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Page 48: Textos Sobre Leitura

A tecnologia não pode ser culpada pelo avanço da ignorância entre os

que deveriam ser os mais instruídos; é neutra e imparcial. A verdade é

que não lê e não escreve quem tomou, livremente, a decisão de não

ler nem escrever. Ninguém, graças a Deus e à Constituição, é obrigado

a ler nada; na verdade, um dos direitos fundamentais do homem, e

alicerce indispensável da liberdade de expressão e de imprensa, é,

justamente, o direito de não ler coisa nenhuma. Mas o fato de algo ser

lícito não quer dizer, automaticamente, que seja bom – assim como ter

um direito não significa que você seja obrigado a usá-lo. Não há, aqui,

uma questão de direitos. O que há é uma questão de escolhas.

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Page 49: Textos Sobre Leitura

A opção por fechar a cabeça a trinta séculos de sabedoria, de

inteligência e de verdades acumulados por tudo o que o homem

escreveu até hoje é lícita, mas é ruim. Qual o bem que poderia vir de

uma escolha dessas? É como no comentário do jogador de baralho

que desiste de disputar uma mão, diante das cartas miseráveis que

acaba de receber: “O meu jogo não está nada bom. Em compensação,

está muito ruim”. Esse entusiasmo em adotar a opção “perde-perde”

em relação à leitura e à escrita vem se tornando um elemento cada

vez mais comum no comportamento cultural dos jovens –

considerando-se como jovem, aqui, quem tem entre 18 e 50 anos, ou

seja, é gente que não acaba mais.

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Page 50: Textos Sobre Leitura

Há, felizmente, um bom número de exceções, mas são só isso, exceções.

A regra, para os demais, é clara: ler é chato, escrever é inútil e ambas as

coisas são típicas de um passado que está tão morto quanto a civilização

asteca. Na verdade, vigora hoje em dia um desprezo ativo pela leitura –

um “porre”, tanto maior quanto menos recentes são os autores. Se você já

leu um livro de Eça de Queiroz, por exemplo, é melhor não ficar contando

isso por aí – corre o risco de ser considerado um mala, e ainda por cima

metido a besta. Escrever, então, pode ser até pior. A carta, em que as

pessoas aprendiam a se expressar, transmitir emoções e juntar uma ideia

com outra, é hoje um objeto extinto. Foi substituída por e-mails cada vez

mais subnutridos, áridos e sem alma; um operador de código Morse

escreveria com estilo melhor.

Há rapazes e moças que já estão com 25 anos de idade, às vezes mais, e

nunca escreveram nada na vida. Redigir mais de 100 palavras em

seguida, por exemplo, deixa um executivo de primeira linha exausto, como

se tivesse acabado de escrever Os Lusíadas [uma das mais famosas

obras de Luís Vaz de Camões]. Jornalistas que trabalham em rádio e

televisão passam anos sem escrever uma palavra; precisam ler o papel

que lhes foi entregue. 50

Page 51: Textos Sobre Leitura

A grande maioria dos brasileiros

que completam o curso superior

sai da universidade com

dificuldades extremas para

conectar entre si os diversos

mecanismos cerebrais que

permitem ao ser humano

comunicar-se por escrito;

contentam-se em ser “o animal que

fala”, como Aristóteles descrevia o

homem primitivo. O mundo onde

há animais que, além de falar,

também são capazes de ler

continua vivo, mas

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Page 52: Textos Sobre Leitura

A maneira realmente moderna de encarar a leitura é medir a sua

utilidade com uma pergunta-chave:“Ler para quê?”. Hoje em dia é

possível ficar sabendo qualquer coisa, em qualquer lugar e a qualquer

hora – da data da Batalha de Tuiuti ao dia do aniversário de Cate

Blanchett. Qual a necessidade de saber as respostas antes de serem

feitas as perguntas? É um modo de encarar a vida – não é preciso

mais aprender, basta chamar o Google. É errado pensar assim? Com

certeza é melancólico.

Privar-se, por livre e espontânea vontade, do que

escreveram Machado de Assis, Charles Dickens ou Victor Hugo –

ou Nelson Rodrigues, Balzac e Fitzgerald, numa sucessão de gênios

que passa de 100, talvez 200 nomes – é um desperdício que mete

medo. Perde-se, sem ganhar nada em troca, o que nos deixaram as

melhores mentes que a civilização humana já produziu – algo provado

com fatos objetivos, e não com teses universitárias.

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Page 53: Textos Sobre Leitura

Shakespeare, que escreveu há 500 anos, continua sendo o autor mais

representado, até hoje, em teatros de todo o mundo; não passa um

único dia sem que alguma peça sua esteja em cartaz, em algum lugar.

Vendeu tantos livros que não cabe nas listas de best-sellers de “todos

os tempos” – calcula-se que tenha vendido entre 2 e 4 bilhões de

exemplares, seguido de perto pela rainha das histórias de

mistério, Agatha Christie. Dickens, que também faz parte desse

grupo, pode ter vendido 1 bilhão de exemplares ao todo. É certo que o

seu livro de maior sucesso e de circulação mais bem contabilizada, Um

Conto de Duas Cidades, vendeu sozinho 200 milhões de cópias. Será

que toda essa gente estava errada, e que só agora, depois da vinda ao

mundo do iPhone, a humanidade começou, enfim, a entrar no

caminho correto, dispensando-se da ultrapassada tarefa de ler?Será

que abolir da vida a imaginação e a curiosidade, como tanta gente

está fazendo, torna as pessoas mais inteligentes, produtivas ou

eficazes?

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Page 54: Textos Sobre Leitura

Todas as vezes em que você perceber que está ao lado da

maioria, é hora de fazer uma pausa e pensar um pouco.

Fonte: Revista VEJA – Edição 2377 – Ano 47 – nº 24 – 11 de junho de 2014.

Pgs. 100-101 – Edição impressa.

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