textos sobre identidades como textos: um exercício a ... · isso seria prolongar indagações...

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Textos sobre identidades como textos: um exercício a partir das literaturas de língua portuguesa 1 Augusto Santos Silva 2 1. Sociologia cultural e literatura Podemos começar por recordar que já passaram trinta anos sobre o 25 de Abril de 1974. E que ele desencadeou uma experi- ência social intensa e arrebatadora: revolu- ção política, descolonização dos antigos territórios ultramarinos e regresso de Portu- gal ao seu território peninsular. E que foi ele que permitiu a institucionalização de um regime político democrático, a reorientação para a Europa e, depois, a integração na que agora se designa como União Europeia, tomando-a por referência fundamental de um desenvolvimento económico e social final- mente concebido em termos modernos. Pensando neste sobressalto como poucos teve a história portuguesa, percebe-se bem quão ilusório é enunciar a identidade ao modo antigo, como a essência psíquica ou moral que ontologicamente caracterizaria um ser ou personalidade colectiva, assim a distinguin- do e singularizando no concerto das demais: isso seria prolongar indagações próprias dos tempos anteriores ao 25 de Abril, que as houve várias, de diferentes proveniências cognitivas e ideológicas, procurando fixar uma identidade histórica nacional (cf. Leal, 2000: 63-82). Mas também se compreende quão errado se tornaria confundir a recusa da concepção essencialista e patrimonialista da identidade colectiva com o menosprezo por essa dimensão constitutiva das realida- des sociais que são as representações sim- bólicas que sobre si próprias vão construindo as comunidades e os agentes especializados dos seus campos culturais (Almeida, 2001). Uma coisa seria aceitar a enésima tentativa de definir e impor uma matriz nacional uniforme e permanente, um “ser colectivo nacional”, português ou de qualquer outro povo; coisa diversa é considerar e interpretar os múltiplos planos e formas através dos quais os grupos sociais e os círculos culturais vão elaborando e reelaborando, dinamicamente, sentimentos, ideias, imagens, eventos, edificações, a que atribuem valor simbólico, e com que procuram situar-se, agregar-se e distinguir-se, constituindo-se e pensando-se como colectivos, com os seus traços, ícones, emblemas, discursos próprios. O primeiro caminho, essencialista, leva-nos ao beco sem saída dos primordialismos. O segundo cami- nho reconduz-nos ao sentido, como condição sine qua non da acção humana. Só, todavia, o percorreremos se colocar- mos as identidades dentro, e não fora, das dinâmicas sociais, articulando-as com os contextos e agentes da sua produção e aquisição; se tomarmos as identidades como factores de dinâmica social, e não exclusiva ou predominantemente como resultados ou efeitos; se concebermos as identidades como “textos sociais”, matérias significantes, que enunciam visões e representações do mundo e são motivo de sucessivas e diferentes interpretações (Alexander & Smith, 1998; Costa, 1999: 61-115, 494-505; Silva, 1999: 117-122). Não basta, portanto, declinar as identidades no plural; é preciso situá-las socialmente, e também como produtoras de realidade social, integrando-as nos encade- amentos múltiplos (e tensos) de interpreta- ção que lhes vão conferindo sentido. A estes encadeamentos pertencem os discursos especializados que, em registo ficcional, analítico ou comunicacional – isto é, partindo do imaginário, dos saberes ou da interacção simbólica – elaboram, codificam, interpelam identidades. Fazendo-o, produzem conhecimento (o que as coisas são), inter- pretação (porque e como as coisas são o que são) e apreciação (o que as coisas valem) e na intersecção daqueles registos e destes planos é que o jogo das identidades adquire o seu mais amplo significado social e pode ser apreendido fora da vulgata essencialista. Se o que fica dito tiver pertinência, então tornar-se-ão claras as potencialidades de um exercício analítico em torno dos sobressaltos

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41ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS

Textos sobre identidades como textos:um exercício a partir das literaturas de língua portuguesa1

Augusto Santos Silva2

1. Sociologia cultural e literatura

Podemos começar por recordar que jápassaram trinta anos sobre o 25 de Abril de1974. E que ele desencadeou uma experi-ência social intensa e arrebatadora: revolu-ção política, descolonização dos antigosterritórios ultramarinos e regresso de Portu-gal ao seu território peninsular. E que foi eleque permitiu a institucionalização de umregime político democrático, a reorientaçãopara a Europa e, depois, a integração na queagora se designa como União Europeia,tomando-a por referência fundamental de umdesenvolvimento económico e social final-mente concebido em termos modernos.

Pensando neste sobressalto como poucosteve a história portuguesa, percebe-se bemquão ilusório é enunciar a identidade ao modoantigo, como a essência psíquica ou moralque ontologicamente caracterizaria um ser oupersonalidade colectiva, assim a distinguin-do e singularizando no concerto das demais:isso seria prolongar indagações próprias dostempos anteriores ao 25 de Abril, que ashouve várias, de diferentes proveniênciascognitivas e ideológicas, procurando fixaruma identidade histórica nacional (cf. Leal,2000: 63-82). Mas também se compreendequão errado se tornaria confundir a recusada concepção essencialista e patrimonialistada identidade colectiva com o menosprezopor essa dimensão constitutiva das realida-des sociais que são as representações sim-bólicas que sobre si próprias vão construindoas comunidades e os agentes especializadosdos seus campos culturais (Almeida, 2001).Uma coisa seria aceitar a enésima tentativade definir e impor uma matriz nacionaluniforme e permanente, um “ser colectivonacional”, português ou de qualquer outropovo; coisa diversa é considerar e interpretaros múltiplos planos e formas através dos quaisos grupos sociais e os círculos culturais vãoelaborando e reelaborando, dinamicamente,

sentimentos, ideias, imagens, eventos,edificações, a que atribuem valor simbólico,e com que procuram situar-se, agregar-se edistinguir-se, constituindo-se e pensando-secomo colectivos, com os seus traços, ícones,emblemas, discursos próprios. O primeirocaminho, essencialista, leva-nos ao beco semsaída dos primordialismos. O segundo cami-nho reconduz-nos ao sentido, como condiçãosine qua non da acção humana.

Só, todavia, o percorreremos se colocar-mos as identidades dentro, e não fora, dasdinâmicas sociais, articulando-as com oscontextos e agentes da sua produção eaquisição; se tomarmos as identidades comofactores de dinâmica social, e não exclusivaou predominantemente como resultados ouefeitos; se concebermos as identidades como“textos sociais”, matérias significantes, queenunciam visões e representações do mundoe são motivo de sucessivas e diferentesinterpretações (Alexander & Smith, 1998;Costa, 1999: 61-115, 494-505; Silva, 1999:117-122). Não basta, portanto, declinar asidentidades no plural; é preciso situá-lassocialmente, e também como produtoras derealidade social, integrando-as nos encade-amentos múltiplos (e tensos) de interpreta-ção que lhes vão conferindo sentido.

A estes encadeamentos pertencem osdiscursos especializados que, em registoficcional, analítico ou comunicacional – istoé, partindo do imaginário, dos saberes ou dainteracção simbólica – elaboram, codificam,interpelam identidades. Fazendo-o, produzemconhecimento (o que as coisas são), inter-pretação (porque e como as coisas são o quesão) e apreciação (o que as coisas valem)e na intersecção daqueles registos e destesplanos é que o jogo das identidades adquireo seu mais amplo significado social e podeser apreendido fora da vulgata essencialista.

Se o que fica dito tiver pertinência, entãotornar-se-ão claras as potencialidades de umexercício analítico em torno dos sobressaltos

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identitários associados à revolução democrá-tica portuguesa, ao processo dedescolonização e à formação dos novosEstados africanos de língua portuguesa. Epode-se procurar percebê-los recorrendo àmediação de textos literários que os tomampor temas ou pontos de partida.

Vou atrever-me a fazer o exercício, apenaspara tentar mostrar como ele seria interes-sante, se fosse conduzido de forma menoscanhestra do que aquela de que não vouseguramente sair. Não pretendo fazer análiseliterária; o que designei, à falta de melhorexpressão, como consideração analítica detextos literários refere-se ao trabalho própriode disciplinas do universo das ciênciassociais, tais como a sociologia, a história, aantropologia ou a semiologia. Mas, para umconvicto defensor da “análise cultural” emsociologia (Silva, 1994: 13-144) ou, o quevem a dar ao mesmo, da “sociologia cultu-ral” (Alexander & Smith, 1998), é sempremotivo de mágoa que os debates periódicossobre identidades no universo da lusofonianão aproveitem o riquíssimo material derepresentação e significação que as literatu-ras lusófonas vêm construindo sobre asencruzilhadas identitárias e as identidades deencruzilhada que as nossas nações vão cons-truindo.

2. Portugal diminuído no espelho cosmo-polita

Pedirei, então, licença ao escritor AlmeidaFaria, nascido em 1943 e revelado como umdos iniciadores da renovação literária portu-guesa dos anos 1960, com o romance RumorBranco, que publicou aos 19 anos, para meservir da tetralogia que dedicou ao que, porminha conta e risco, chamarei os dilemasidentitários da revolução portuguesa. Refiro-me aos livros A Paixão, cuja primeira ediçãodata de 1963 mas foi objecto de uma im-portante revisão em 1976, Cortes, saído em1978, Lusitânia, de 1980, e Cavaleiro An-dante, de 1983.

Acompanhamos uma família alentejana,de proprietários latifundiários. Acompa-nhamo-la, desde A Paixão, em ciclo descen-dente. Já desapareceu a personagem forte, ofundador da herdade dos Cantares. Nós segui-

mos a família do seu filho, lavrador acontragosto, instalado na rotina de agrário,preso a um tempo que ele próprio pressenteque vai passar. A sequência dos romancesressituará a acção de A Paixão (na sua ediçãorevista de 1976) no dia 12 de Abril de 1974,sexta-feira santa. A sucessão de textos curtosque organiza o romance, segundo a cadênciaManhã, Tarde, Noite, inicia-se com a ante-cipação do dia de trabalho duro por parteda cozinheira e faz depois ver o impassesocial e cultural da família pelas perspecti-vas, geralmente dadas pela descrição desonhos, dos pais, dos cinco filhos e doscriados de casa e lavoura. Ao longo destedia de Paixão, o leitor apercebe-se dos sinaisde transformação iminente: a posturadesistente dos pais, amarrados ao passado semfuturo e ao código da sua classe latifundi-ária; o distanciamento dos filhos mais ve-lhos; a revolta surda dos trabalhadores ru-rais. Os acontecimentos-chave do romancesão o incêndio da herdade (porventura fogoposto) e a saída de casa de um dos filhos,João Carlos, estudante universitário emLisboa e aí participante das lutas contra aditadura, que rompe pessoal e politicamentecom os pais e o seu meio social.

Que estamos em vésperas do 25 de Abril,eis o que explicita o romance de 1978, Cortes.Cortes, rupturas: é de novo a acção de umdia, o sábado santo, a partir das vozes esentimentos do pai, da mãe, dos filhos enamoradas, do criado de lavoura e das cria-das. A vila tem nome: Montemínimo. Osfilhos têm idades: João Carlos, doravante JC(como Cristo), 18 anos, André, 24, Arminda,21; Jó, 12, e Tiago, 11, ainda crianças,defrontam-se com a primeira adolescência.Com diferentes níveis de intensidade, aruptura envolve os três jovens: André é contraa guerra, Arminda anda com um militantecomunista, JC, já sabíamos, na luta estudan-til. Corte com os pais, a educação familiar,as normas do meio social (da classe, dolatifúndio alentejano), o regime, o país, numagradação que, como se vê sobretudo no casode JC, não pára – e esse é o ponto capital– na situação política, porque abarca asociedade portuguesa, o padrão de compor-tamentos, a moral pública, o lastro da his-tória. Ou seja, e por assim dizer, a identida-

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de colectivamente constituída. Ajuste decontas de uma juventude culta com o seupaís encalhado, parado, bloqueado. André há-de pensar que “fugir ao intragável tornou-se obsessiva ambição deste país caído emcaliginoso bréu” (Faria, 1978: 112). Marta,namorada de JC, há-de deduzir, passandoocasionalmente por uma rua lisboeta chama-da Travessa da Espera, que esta é o

“retrato duma espécie de pátria àespera que o tiraninho fuja e aditamole engula ou que a ditaputaestique caindo do pedestal do Cristo-Rei-saca-rolhas sempre presente dian-te da miséria de abrir de espanto osbraços à mais incrédula estátua”(Faria, 1978: 172-173). E o romanceacaba dando-nos a ver JC e Martajuntos, a congeminarem o exílio parasair desta “merda de pátria” (Faria,1978: 185).

Entretanto, que sucedera nesse sábadosanto, em Montemínino? O assassinato dopai por trabalhadores rurais na herdade dosCantares, talvez como vingança da antece-dente morte do militante comunista suspeitode ter ateado o fogo do dia anterior. Olatifúndio morreu, os jovens que com elecortaram verão a história cortar-lhes, por suavez, a amarra do modo que nunca imagina-ram. A morte real redobra a morte simbólica,confere-lhe a crueza e a irrevocabilidade queela sozinha não teria.

Dois anos depois da edição de Cortes,em 1980, Almeida Faria publica o romanceLusitânia. Dedica-o a Eduardo Lourenço ecoloca-lhe como pórtico a última frase de OCrime do Padre Amaro: “pátria para semprepassada, memória quase perdida”. Agora, aforma é epistolar: as personagens adultastrocam correspondência, e o narrador assu-me a perspectiva dos dois irmãos mais novos,ainda meninos, relatando os seus sonhos,pesadelos e desventuras. A primeira cartapertence a JC e é datada de 14 de Abril de1974: domingo de Páscoa, pois. Escrita emVeneza, aonde JC e Marta acabaram poraportar, salvos por um filho-família italianode um rapto rocambolesco de que haviamsido vítimas, orquestrado por árabes misteri-

osos, mais interessados na rapariga do queno rapaz. Na trama narrativa, o que o epi-sódio faz é colocar JC fora de Portugal, paradaí assistir à revolução, operando uma se-gunda descolagem do seu protagonista prin-cipal, primeiro fugido da sua família e meiosocial, agora deslocado do país.

Como a revolução democrática, o roman-ce encadeia-se em três partes.

“Águas mil”, a euforia da libertação elogo algumas perplexidades. No dia 24, JCainda escreve à mãe sobre “esse universofechado, essa asfixia” (Faria, 1980: 50), queenvolve a mãe, a casa e a nação, com querompeu e que não quer. Depois, sabedor darevolução”– e também de que o irmão maisvelho fora obrigado a assumir as responsa-bilidades de primogénito, porque o pai estámorto e a mãe e os benjamins desamparados,o dinheiro e o património escasseiam, e anamorada dele, Sónia, nascida em Angola,a Angola volta – JC verifica que não desejaregressar a Portugal, descobre-se desalinha-do, ambíguo, não enquadrável. Identidadeincerta, ou melhor, identificações perdidas –a herdada, que filho de terratenente não quisser, a nova, que não o empolga nem adisciplina partidária, nem o “individualismorevolucionário”. “Falta-me fé para defenderqualquer seita, por anárquica que seja”, “souapenas o desdichado, o tenebroso, ausentenos momentos-chave, o que esqueceu achave” (Faria, 1980: 64). Entretanto, osirmãos que estão em Portugal e vivem pordentro a comoção do primeiro Primeiro deMaio, André e Arminda, assistem à mortegratuita de uns marinheiros perdidos e àprogressiva frieza do namorado comunistadela, embaraçado com o possível significadode uma relação com a que, para todos osefeitos, continuava a ser filha, embora órfã,de um latifundiário.

O segundo tempo do romance – e darevolução – é Setembro de 1974. “Setembronegro”, é o título: a contragosto, sucumbindoà pressão da família, JC regressa, mas semMarta, que se recusa a abandonar Veneza eos seus canais, a sua arquitectura, a sua arte.As palavras do retornado são violentíssimas,numa torrente de revoltas contra o rumo quevai levando a revolução. Que se reúne aodesespero do irmão André, impedido pelas

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circunstâncias familiares de ir ter com Sóniaa Angola, e que também não compreende o“folclore revolucionário” (Faria, 1980: 141).

Terceiro tempo, “idos de Março”, deMarço de 1975. Na perspectiva de JC, arevolução virou opereta. “Agora – escreve–– volta a vir ao de cima o nosso secularcepticismo, indiferença, fatalismo, transfor-mando em gesto nacional o encolher-de-ombros de outrora conhecido” (Faria, 1980:158). Marta em Veneza, não apenas Marta,Veneza como lugar-outro e contraponto ao“carnaval na quaresma” (Faria, 1980: 169)em que virou o processo revolucionário. Eo romance conclui-se nesta amargura: aruptura querida tornou-se numa rupturavencida, a amada diz que não volta, JC quevá ter com ela se quiser.

A publicação, em 1983, de CavaleiroAndante fechará o círculo ficcional sobre essepaís-Portugal perdido na história secular deinjustiças, atavismos e bloqueios, mas tam-bém perdido numa revolução que lhe terámudado apenas a epiderme. As cartas sãotrocadas entre Junho e Novembro de 1975,e entre Lisboa, onde está JC, ou os sítiospor onde transita no seu novo emprego decomissário de bordo, Veneza, onde continuaMarta, o Brasil onde André, o mais velho,vai tentar encontrar trabalho, para logodesistir, e Luanda, onde está Sónia, a namo-rada de André, e aonde este acabará por sedirigir, aí morrendo, junto a ela, de doençafulminante.

Assim se combinam duas escalas, porémo elemento de articulação é o mesmo: paraos jovens filhos de lavradores alentejanos,apanhados na voragem revolucionária aomesmo tempo que inquietos dos seus vín-culos de família, clã ou meio e imersos natensão dos relacionamentos afectivos eamorosos, a ressaca do Portugal-império, tãomal descolonizado quanto havia sido maladministrado, é homóloga da ressaca doPortugal-paróquia, provinciano e pacóvio, quevive uma revolução sem grandeza e pathos,“à maneira — nas cáusticas palavras de Marta— dos festivais da canção Eurovisão” (Faria,1983: 233).

Claro que – aí estão as identidades si-tuadas de que começámos por falar,construídas ou desestruturadas de dentro de

contextos e lugares sociais – estas são asperspectivas de protagonistas eles própriospessoal e grupalmente perturbados, desloca-dos, desvinculados, dilacerados. Mas dessaopção básica do ciclo romanesco o que resultaé uma representação do país e do seu pre-sente, da oportunidade perdida do seu pre-sente, perdida por causa da repetição dapequenez, da tacanhez ancestral. André, oirmão mais velho, o que vai morrer, escrevenuma das suas cartas de São Paulo, Brasil:

“Durante as minhas insóniascrepitantes, penso que não me perten-ço, sou não eu mas um povo inteiroperdido de si, confusamente à procu-ra de não sabe que saída. Já em Lisboapensava isto ao olhar as ruas degra-dadas a que os murais revolucioná-rios ainda davam tons de revolta oude ironia contra a história que nos temandado a enganar. Ou fomos nós quenos enganámos preferindo culpar osoutros, por ser mais fácil?” (Faria,1983: 131).

Assim se opera uma espécie dedesocultação, através dos sonhos, dos pen-samentos, das cartas dos personagens –primeiro, nos dois romances iniciais, alargadaa perspectiva ao olhar dos subalternos, ascriadas de casa, o velho empregado, ostrabalhadores rurais, depois, nos dois últimos,circunscrita aos diálogos de jovens separa-dos entre si e de si mesmos (e à sua relaçãocom a mãe que não compreende o que sepassa e com as crianças que experimentama adolescência). Essa desocultação mostra umpaís pequenino, onde terratenentes e revo-lucionários, onde colonos e descolonizadores,onde conservadores e progressistas estãopresos de análogas incapacidades, encontram-se nos mesmos impasses, que são os impassesda história e das elites sociais nacionais.

Como explicará JC a Marta, à Marta queprefere Veneza a Lisboa porque prefere a arteao provincianismo e prefere o prazer aoengajamento e prefere-se a si própria aqualquer ente gregário transcendente, a raizdo impasse está na aversão aocosmopolitismo:

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“Que pode a ideologia mudar nisto?Pouco, ao menos neste pequeno paísque certas direitas e curtas esquerdastornam mais mínimo ainda, ambas deacordo num ponto, no exacerbadonacionalismo, no ataque aocosmopolitismo considerado crimepolítico, no destemperado elogio do‘povo’ e das delícias da ‘pátria’umbigo do mundo, o qual pode aca-bar à vontade desde que sobrem estesduzentos quilómetros de largura queDeus teve o bom-senso de criar entrea Espanha já perigosamente Europae o mar onde está a nossa ‘alma’ aque as direitas chamam vocação atlân-tica e as curtas esquerdas vocaçãoterceiro-mundista por nos aproximardo sul que ‘descobrimos’. Não meentendo com tal gente, nem me con-venço, depois de ver Veneza, que anossa capital, degradada mistura deBelgrado e Istambul, seja a jóia queesta crassa cambada de ignorantes ouparvos pretende impor-me. Gosto demuitas ruas de Lisboa descendo parao rio, gosto da luz feroz em certosdias, do azul sem uma nuvem sema-nas seguidas, gosto do verão aqui, masnão me obriguem a transformar com-plexos de inferioridade em superio-ridades ridículas” (Faria, 1983: 153).

3. Moçambique redimível pela força dasraízes

Talvez não seja exagerado escrever queos romances de Almeida Faria organizamcomo que um processo, ora sarcástico, oramelancólico (Lourenço, 1999: 115) ao Por-tugal-país-e-império que passou ao lado deuma transformação de mentalidades e com-portamentos, porque o ancestral défice decosmopolitismo levou avante sobre o impul-so voluntarista, afinal superficial. Vista dolugar de observação destes romances, aquestão portuguesa é mais cultural do queideológica: o fechamento na escala “mínima”,o temor à abertura e à confrontação, o pesodos emblemas passadistas, mesmo se dou-trinária e politicamente reciclados. Lisboaperdida na incapacidade de saber fechar um

ciclo ilusoriamente imperial, em que a simesma se ludibriou, incapaz de imaginaroutras formas de relação, pós-colonial, noespaço triangular que ela própria historica-mente criou, ressituando-se positivamenteentre o Rio de Janeiro ou São Paulo e Luanda(ou Maputo). Lisboa diminuída na todaviainevitável e inadiável comparação com aEuropa da modernidade de criação e gosto.Rupturas por fazer, vínculos desaparecidossem equivalentes nem alternativas, desencan-tamento e dilaceração.

Apetecia convocar outros universosficcionais: por exemplo o de António LoboAntunes. Mas, para sugerir o filão analíticocontido na elaboração literária sobre a tensãoentre identidades e mudanças, há-de bastara singularidade de Almeida Faria. Eledesconstrói por assim dizer de dentro, inter-pelando a experiência revolucionária a partirda perspectiva de personagens jovens queapostaram no corte com valores e hábitoslongamente estabelecidos e se viram por elesmesmos tolhidos, prematuramente vencidos.Ora, André, o mais velho deles, o que vaimorrer, doente da alma e do corpo, depoisde falhar Portugal e de falhar o Brasil,morrerá em Luanda, isto é, na África nossodescobrimento e culpa, assim se fechandoficcionalmente, como escreveu EduardoLourenço (1999: 119), “o ciclo do nossoimaginário lusófono enquanto imperial”. Ainterpretação da obra de Almeida Faria comouma interpelação do Portugal conformista emaparente revolução (uma das múltiplas hipó-teses de leitura e, sem dúvida, a menosliterária) é indissociável, pois, da suaprefiguração do tempo pós-colonial comoimpossibilidade. O que talvez justifiqueconfrontar-se esta portuguesa perspectiva, emconflito consigo própria porque se sente não-europeia, não-moderna, anticosmopolita, comoutras elaborações literárias sobre a encru-zilhada pós-ditadura e pós-colonialismo,elaborações de outros escritores noutroslugares de escrita – designadamente, osescritores que usando a mesma língua por-tuguesa e editando em Portugal, falam de ea partir de África. Será que, se mudarmosassim o posto e os instrumentos de obser-vação, mudam as paisagens observadas?

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Almeida Faria coloca a sua pátria,Montemínimo/país-mínimo, num divã deesteta; e sacode-lhe o arcaico provincianismocom os ventos fortes e instantes da culturamoderna e cosmopolita. Se fosse, porém, aocontrário? Se a raiz que prende a identidadecolectiva à terra e ao passado constituísseo que resta de melhor, para enfrentar adesventura e manter um grão de esperançamesmo quando parece que tudo se desmo-rona? Se o moderno estivesse longe de sero horizonte exaltante face ao qual haveriade lamentar-se a âncora que nos prende aochão das tradições, e fosse ao invés nestechão que residissem as forças de resistênciae de futuro?

Poderíamos talvez reler, desse ângulo, aobra até agora publicada pelo romancista econtista moçambicano Mia Couto, nascido em1955. O que é a África? Quando o autor,ele próprio branco, alude ao Moçambiquecolonial, logo sobressai a incapacidade docolono para entender África. Em Vinte eZinco, novela publicada em 1999 comoevocação do 25.º aniversário do 25 de Abril,o ódio dos colonos pelos negros vem carre-gado, ao mesmo tempo, de medo e fascíniopela Mãe África, a sua exuberância naturale cultural, os poderes “ilógicos” e “ocultos”,a ancestralidade. O pide Lourenço de Castro,abusador e torcionário, não deixa de ser ummenino da mamã, que dorme com um panode fralda por travesseiro e o cavalinho depau ao lado da cama, e arde de desejo pelasua tia “traidora”, mulher brancafrequentadora de negras e negros, amante deÁfrica e comprometida com a Frelimo. Apersonagem cega, cega e negra, comenta:

“os brancos falam da ideia comocoisa solar que ilumina as mentes.Mas a ideia, todos sabemos, pertenceao mundo do escuro, dessasprofundezas de onde nossas víscerasnos conduzem” (Couto, 1999: 84)

– e esta diferença condensa a contradição dasmaneiras de ver e avaliar a relação entremente e corpo, seres e coisas. Quando, noconto “O novo padre” de O Fio dasMissangas, o colono se apercebe de que onovo padre é negro e não consegue reagir

de imediato, é por causa da incrível forçaque emana da complexidade de África. “Esseera o suspiro do colono. Em África, tudo éoutra coisa” (Couto, 2004: 92). Como agarrá--la, pois, como dominá-la, como prendê-la?

O foco principal da obra ficcional de MiaCouto não é, porém, o tempo colonial, massim a alvorada do novo Estado, a quaseimediata convulsão da guerra civil e a cus-tosa e incerta saída dela para a possibilidadeda paz e do desenvolvimento.

No primeiro romance, Terra Sonâmbula,de 1992, é a desolação que impera. Um velhoe um moço, deslocados e sozinhos, tomampor provisório abrigo um autocarro incendi-ado em estrada intransitável; e nele desco-brem os cadernos manuscritos de outro jovem,Kindzu, que o moço lerá em voz alta parao velho e para si próprio. Kindzu, que partirada aldeia em busca dos míticos naparamas,guerreiros da justiça, encontra uma mulhere, a pedido desta, tenta recuperar-lhe o filho.No sonho com que acaba o romance, Kindzuacaba por chegar ao autocarro, o moço seriaafinal o filho da mulher, lendo os cadernosescritos por quem o procura. A guerra matouo país (“agora, já não há país”, Couto, 1992:165), as aldeias, as estradas, as bases daexistência e da comunicação. As gentes estãoà mercê dos “bandidos armados”, da nomen-clatura dirigente, da raiva e do ódio quedestroem; as gentes foram arrancadas às suascomunidades, deslocadas para campos derefugiados, estão famintas, desesperadas. Oque é, então, a esperança? É esta “terrasonâmbula”, a sua história e imaginário, asua capacidade de sonhar, o amor entre osvelhos e os jovens e das mães aos filhos,é que uns se atrevam a figurar possibilidadesque vão além do preconceito, do tribalismo,do racismo, da corrupção e do rancor. Comoaquele comerciante indiano, Surendra, “maissua nação sonhada: o oceano sem nenhumfim” (Couto, 1992: 214): os continentesseparam e o mar une e seria, portanto,preferível conceber moçambicanos, de um doslados do Índico, e indianos, do outro, comonacionais de uma mesma nação. Ou, então,como os homens de que Surendra gosta, os“homens que não têm raça” (Couto, 1992:29). Ou como aquele velho, Nhamataca, que

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quer cavar um rio, para reparar a ofensa feitaà terra e repor a paz, porque o rio “costuraos destinos dos viventes” (Couto, 1992: 96).

Não é muito diferente o tom do volumede contos publicado em 1994, EstóriasAbensonhadas. Moçambique na incerta pazque sucede ao fim da guerra civil. O conflitoentre Renamo e Frelimo não é poupado, porexemplo no conto-parábola significativamenteintitulado “A guerra dos palhaços”, assimcomo não deixa de ser castigado o sem-sentido de vários rituais e decisões do Estado-Frelimo (“Jorojão vai embalando lembran-ças”). Mas, entre a amargura, sinais deesperança, “estórias abensonhadas” de gentecomum, capaz de inventar, no labirinto dasdesgraças, pequenos caminhos de felicidade.Dessa gente se poderia dizer o que intui onarrador de certa moça: “desenvenenava otempo, sempre ávido de desgraça?” (Couto,1994: 24).

Alguém pergunta a um “descamponês” –que as terras lhe haviam sido retiradas, sólhe sobrando o descampado – “Como vossobreviveu a esperança?”. E ele responde:“Mastigámo-la. Foi da fome” (Couto, 1997:115). Cito os Contos do Nascer da Terra,contos que falam sobre os sonhos das pes-soas, rurais ou suburbanas, as suas relaçõescom a terra e os bichos, com as tradições,com os mortos e os velhos a que se deveobediência, com o misterioso, o insólito, oinesperado, que são todos outros modos dever e imaginar as coisas. (Des)encontros entrea vida e a morte, o homem e a mulher, omenino e o adulto, o normal e o insólito,a tradição e o que a transgride, o saber comume o saber técnico ou burocrático, a vizinhan-ça e o Estado, a natureza e o homem pre-dador…

Ora, é a pujança ancestral, física e sim-bólica, da terra moçambicana que os discur-sos e os actos de dominação não entendeme, por não entenderem, violentam — e afinalse perdem, tolhidos na sua própriaincompreensão. N’A Varanda do Frangipani,a enfermeira Marta usa termos muito durospara a denúncia da morte dos “velhos” (osintérpretes das raízes de uma nação devas-tada pela guerra, a corrupção e a indiferen-ça). Eles são “guardiães de um mundo”, dizMarta. “É todo esse mundo que está sendo

morto”. “O verdadeiro crime que está a sercometido aqui é que estão matando o anti-gamente”, “as últimas raízes”. “Estes velhosestão morrendo dentro de nós”, isto é, nanossa indiferença, na nossa incapacidade dearticular o presente à terra, à história, à suaherança. Marta previne:”“Há que guardar estepassado. Senão o país fica sem chão” (Couto,1996: 59, 60, 103).

Um país a que roubam o chão, eis a naçãomoçambicana engolida pelo abismo, à esperada possibilidade de uma redenção – que écomo a ficciona o fim do romance de 2000,O Último Voo do Flamingo. Quem lho roubanão é só a guerra civil, os “bandidos” deum e outro campo; não é só a nomenclaturadirigente do Estado, merecido alvo deimpiedosos sarcasmos; é também o olhar“ocidental” e “moderno”, o novo discurso daordem democrática tutelada pelos organismosinternacionais, em que se recicla a nomen-clatura, e os peritos dessa ordem que teimamem não entender a cultura oral, popular etradicional, protagonizada sobretudo porvelhos e mulheres, e a ela pretendem qui-mericamente contrapor a sua lógica político-administrativa “exterior”, urbana etransnacional. E, como a cultura ancestral éindomável, e tem do seu lado o mistério —quer dizer, o que o racionalismo plano dodiscurso moderno não consegue apreender nasua complexidade multifacetada, porque oolha de um só ângulo — é que se dão essesestranhos e não deslindados casos, como certaexplosão de capacetes azuis da ONU nosconfins do território moçambicano (Couto,2000).

E, como a terra é indomável, é ela a últimabarreira aos ventos de corrupção que casti-gam o país devastado: querem enterrar umAvô, que ninguém sabe se morreu se con-tinua vivo, ou seja, que está, à semelhançado país, como que em suspenso entre direc-ções contrárias; e a terra fecha-se, impedindoque se cave a sepultura. Fecha-se porquehavia sido conspurcada com o pó branco dasdrogas que os traficantes tentavam introduzirna ilha, a terra fecha-se porque o desenlaceda relação dos homens com o “rio chamadotempo” e a “casa chamada terra” está pordecidir.

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Refiro-me agora, bem entendido, aoromance de 2002, com esse título. Marianoé um jovem universitário, estudante na ci-dade, que se desloca à ilha natal e à casafamiliar para participar no funeral de seusuposto avô, também chamado Mariano, otal que nem vive (ainda) nem (já) morreu.O pai de Mariano, Fulano Malta, é um ex-guerrilheiro da Frelimo, amargurado com orumo da sua causa, o tio mais velho,Abstinêncio, é um humilde e fugidio funci-onário, o tio mais novo, Ultímio, é membroarrogante e corrupto da elite dirigente. Ojovem penetra na casa-mundo, que envolveno seu interior os homens, as coisas e asmemórias; e a casa-mundo vai iniciando-ona rede de mistérios, tendo por fio os su-cessivos bilhetes com que o Avô lhe falaatravés da própria caligrafia dele, o netoMariano, até que ele aceda à descoberta daverdadeira identidade do Avô, afinal seu paibiológico, filho que foi de um amor proibidodele com a cunhada Admirança. Mariano,universitário, jovem e urbano, está afinalligado mais vigorosamente do que alguémpensara a essa fonte de saber local, a essamisteriosa raiz (física e cultural) de identi-dade e resistência que o suposto avô, afinalpai, poderia personificar.

4. O cosmopolitismo reconfigurado comotravessia

A obra de Mia Couto é “comparável” coma de Almeida Faria? Não me parece que façasentido dizê-lo. Ou, pelo menos, não é issoque pretendo discutir. Cuido é de identidadesproblemáticas em tempos de mudança eencruzilhada, tendo a ver com a maneiracomo um velho país e novas nações ligadospela história colonial podem viver a aurorade liberdade; e sirvo-me, desrespeitoso, deelaborações literárias. Mas não para provo-car uma cansativa reiteração de abordagensafins, ao contrário, para acentuar contrastes.A revolução aparentemente perdida, ao olharesteticizante de Almeida Faria, do Portugalpós-ditadura e pós-colonialismo, configura-ria certamente uma dessas situações dedesenlace incerto, também no que toca aosmodos colectivos de se definir, qualificar eposicionar face a outrem – isto é, no que

toca às identidades. Porém, o Portugal queregressa do seu império de pacotilha falhao encontro com a Europa, porque afinal,liberto da ditadura, continua preso ao mesmodéfice de modernidade, continua preso àmesma pequenez. Isto o sentem e dizemjovens que quereriam romper com o seu meioe cultura e se acham tolhidos e amarrados,falhando sucessivamente saídas positivas paraa triangulação entre o seu país, o Brasil ea África que o seu país conheceu e confor-mou. O saldo desta relação no presenteanuncia-se tão negativo quanto historicamenteo fora. E quando se busca a razão, vai-seter à multissecular aversão à abertura, àinovação, ao cosmopolitismo. Para a juven-tude desalentada e dilacerada posta em li-teratura por Almeida Faria, o problema daidentidade portuguesa está na sua raiz, quea prende bem fundo a esse solo histórico queimpede o corte, a ruptura em direcção aofuturo.

Ora, é bem outra a perspectiva de MiaCouto, lidando com o parto doloroso da novanação moçambicana e a convulsão queimediatamente se lhe seguiu e de que ela sevai libertando, se é que se liberta,custosamente. Toda a força criativa da obraficcional de Mia Couto, a espantosa recri-ação da língua portuguesa como a não menosespantosa respiração poética das narrativas,é nas raízes que se alimenta: no mundo daoralidade, das falas, das estórias, das visões,das memórias, dos sonhos, das maneiras deser, pensar, sentir e agir longamenteamadurecidas pelo viver comunitário esedimentadas nos sentimentos, nas crençase nas palavras dos velhos, dos aldeões, doshomens e mulheres a seu modo sábios,lógicos, mestres do segredo da polivalênciados símbolos e das oscilações do sentido, eque estão ligados, indissoluvelmente ligados,à terra africana. Cortar os laços, desenraizaras gentes, fazendo “parar a vida e anoiteceras vozes” (Couto, 1987: 19), é esse o maiorcrime das múltiplas violências que sobre elasse foram abatendo – a dominação colonial,a guerra civil, o abuso do Estado e da cliquedirigente, a desumanidade das cidades, aescassez e a fome, até a linguagem e a atitudedas organizações portadoras da racionalidadee do progresso ocidental, caixeiros viajantes

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da paz e da democracia feitas mercadoriasde exportação. Mas é também enorme o vigordos laços e raízes, e da duração que osprotege, a força que permite sobreviver, aresistência, a capacidade de enfraquecer edesnortear o dominador, a esperança. Aqui,no Moçambique de Mia Couto, quem estádo lado sombrio e no pólo negativo é amodernidade unidimensional, inábil na co-municação com o que lhe escapa, incapazde acolher o que é da ordem do onírico, domisterioso, do sagrado, a modernidade daracionalidade fria e instrumental e da domi-nação tecnocrática. Positiva e prometedoraé a cultura, em toda a sua latitude antropo-lógica, a cultura material e simbólica tãopróxima da terra, tão alicerçada na espessurageo-histórica, luminosas são as tradições, aslinguagens, usos, gestos, o fio das geraçõese dos territórios. Não haverá futuro, pelomenos humano, pacífico e são, para uma mo-dernidade sem raiz, para um país feito defora, em combate com o seu próprio povo,a sua própria paisagem e o seu própriopassado. “O sagrado tem seus métodos, aslendas se sabem defender” (Couto, 1994: 91)– e nós só conseguiremos resolver positiva-mente a questão da identidade se soubermosrespeitar o muito que é complexo e escapaa uma apreensão chã, que por ser complexosó se nos oferece se soubermos estimá-lo,honrá-lo, preservá-lo, usando de todos osrecursos da razão e do sonho paracompreendê-lo plenamente.

Num dos mais belos contos “do nascerda terra”, um velho português, agora asilado,faz a pergunta:

“Foi então que eu vi as árvores,enormes sentinelas da terra. Nesse mo-mento aprendi a espreitar as árvores.São os únicos monumentos em Áfri-ca, os testemunhos da antiguidade. Mediga uma coisa: lá fora ainda exis-tem? Pergunto sobre as árvores”(Couto, 1997: 111).

Perguntar pelas árvores: perguntar pelasraízes, pelo que liga ar e chão, identidadee memória.

O olhar de Mia Couto não é o olharcosmopolita do João Carlos e da Marta dos

romances de Almeida Faria. Para estes, pornão prezar o que vem de fora e é modernoé que Portugal se perdeu e perdido continua,mesmo quando se sobressalta: falhaincontornável da ausência de cosmopolitismo.Para os protagonistas da ficção de Mia Couto,por não ser prezado o longo e pacientetrabalho das gerações é que tantas ameaçaspairam, colocando em perigo a identidademoçambicana e o seu devir: erro fatal damodernidade sem chão. É, pois, a dialécticaentre estes dois pólos que define, do pontode vista criativo, a dinâmica das identidades?

O muito que gosto em Agualusa e o poucoque posso dizer acerca da sua obra levam-me a sugerir que não. Que a relação se podeainda adensar um pouco mais.

José Eduardo Agualusa nasceu em 1960no Huambo, em Angola. Estudou agronomiaem Portugal e aí se fez jornalista. Com oromance A Conjura, ganhou o Prémio Re-velação Sonangol de 1989. A partir daíescreveu, até ao ano de 2004, cinco roman-ces, além de contos, novelas, crónicas eliteratura para crianças. Viveu também noBrasil e na Alemanha. Neste aspecto, é dosescritores de origem africana e língua por-tuguesa mais cosmopolitas. A sua ficção fala-nos sobretudo de Angola, da Angola de doismomentos históricos fundamentais: de umlado, a segunda metade do século XIX e oinício do século XX – a sociedade “ango-lense” dos tempos coloniais e a sua relaçãocom as questões da autonomia, da indepen-dência, da escravatura – e, do outro lado,a actualidade, a luta pela independência e asua consagração em 1975, a interminávelguerra civil que se lhe seguiu e os equívocosda – “normalização” operada depois da li-quidação de Jonas Savimbi. Mas não fala sóde Angola, fala de Angola-em-relação: Angolaface a Portugal, Angola face ao Brasil; e,mais recentemente, também de Portugal faceao Brasil e reciprocamente (além de Goa).Neste plano, Agualusa é um dos escritoresde língua portuguesa que melhor se movi-menta em todo o espaço geográfico, histó-rico e cultural da lusofonia.

Creio que posso exprimir a interpretaçãocultural que proponho se sugerir que estãopresentes, na ficção de Agualusa, duas linhasde aproximação à identidade angolana.

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A primeira desenvolve-se segundo o fiodo processo de independência nacional. AConjura, romance de estreia, escrito emLisboa, em 1987-88, fala-nos sobre um golpepreparado por meios luandenses – um golpeabortado, a 16 de Junho de 1911, pela traiçãode um dos implicados, que o denunciou àsautoridades coloniais portuguesas. Essesmeios provinham do que Agualusa designacomo “angolenses”, naturais de Angola, nasua maioria mulatos, pouco menos que to-lerados e muitas vezes hostilizados pelosproprietários e funcionários coloniais prove-nientes da “metrópole”. Os angolenses queorganizam a “Sociedade” conspiradora, e cujavida o romance acompanha entre 1880 e 1911,sonham com a independência do país e o seudesenvolvimento próprio, querem que Ango-la deixe de ser apenas um lugar de degredopara os criminosos ou perseguidos políticose um território rico para exploração infrenee enriquecimento fácil. Parte deles sonhatambém com um tratamento mais humanopara os escravos negros e revolta-se contrao racismo cru dos escravocratas. Parte de-positou esperanças no movimento republica-no português; e a conspiração é precipitada,em Junho de 1911, precisamente pela desi-lusão com o facto de, a seus olhos, a im-plantação da República não ter trazido ne-nhuma mudança de vulto. A revolta é vencida,mas não a esperança. O romance acaba comuma nota optimista. O inspirador-mor daconjura, o barbeiro Caninguili,

“naquela semana havia envelhecidoanos. E só então Adolfo [um dos con-jurados, que o visita] reparou que tinhaos cabelos todos brancos e lhe tre-miam as mãos e que a sua voz erainsegura e quebradiça. Alice, por seulado, parecia cada vez mais alheadadas coisas deste mundo. Mas quandoambos [o barbeiro e a mulher] selevantaram para os acompanharem[aos visitantes] à porta, a frágil se-nhora passou o braço pela cintura domarido e havia nesse gesto tantaternura e tanta autoridade que Adolfocompreendeu que tudo podia ainda serrecomeçado. Porque o barbeiro tinhaa sustentá-lo a maior força do mun-do” (Agualusa, 1998: 203).

Os conspiradores são gente de vida cheiae aventurosa, e o romance evoca poderosa-mente essa capital colonial dos fins do séculoXIX, o ambiente de paixões, amizades,polémicas, loucuras, que faz o quotidiano detoda uma geração. Um ambiente que a novelaA Feira dos Assombrados, claramente deve-dora do modelo literário do realismo fantás-tico, evoca também, agora tendo como ce-nário um posto avançado de povoamento ecomércio, o Dondo, na margem do rioQuanza. O narrador do estranho e nãodeslindado caso da chegada à vila, flutuandopelo rio, de sucessivos cadáveres, é umcomerciante nela estabelecido: e é pelo seuolhar que acompanhamos as personagens dahistória, o major do exército que administrao concelho, o padre, o professor, o capitãoque veio degredado de Portugal por haverparticipado na revolta do 31 de Janeiro de1891, os comerciantes. E é também ele quenos relata certa vinda de seu primo Severinode Sousa, um dos principais conspiradoresde A Conjura, para tentar recrutar (em vão),no Dondo, companheiros de revolta(Agualusa, 1992).

Ora, esta Angola inquieta, esta Angola quese não quer deixar amordaçar pelo modelode colonização portuguesa (implacavelmentedescrito na carta de Fradique Mendes a Eçade Queirós, imaginada em Nação Crioula:colonização sem fomento, nenhum carinhopelas elites locais, ânsia do lucro fácil,nenhum sentido de planeamento, mero es-coadouro de degredados, cf. Agualusa, 2003b:125-128), esta Angola exuberante, resistentee esperançosa, esta Angola carnal, acabarápor matar-se a si mesma. Assim conclui onotável romance de 1996, Estação dasChuvas, cuja última frase pertence ao relo-joeiro Joãoquinzinho. “E agora?”, pergunta-lhe o narrador — agora depois dos massa-cres de 1992 e do reinício, ainda mais brutal,da guerra civil.

“Joãoquinzinho fez um gesto largo,mostrando a casa, com as paredes co-midas pelas balas. A cidade apodre-cendo sem remédio. Os prédios comas entranhas devastadas. Os cães acomer os mortos. Os homens a comeros cães e os excrementos dos cães. Os

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loucos com o corpo coberto de alca-trão. Os mutilados de olhar perdido.Os soldados em pânico no meio dosescombros. E mais além as aldeiasdesertas, as lavras calcinadas, as tur-vas multidões de foragidos. E aindamais além a natureza transtornada, ofogo devorando os horizontes.Disse:- Este país morreu!” (Agualusa,2003a: 279).

Morreu depois de ter lutado contra ocolonialismo português e de o ter vencido,morreu depois de ganhar a sua própria in-dependência, morreu por causa da guerra civile dos ódios cruzados contra a paz e a li-berdade. O narrador é um jovem jornalista,que, por ter como contexto de formação epertença política um pequeno grupo esquer-dista, a Organização Comunista de Angola,assume um radical distanciamento face aqualquer um dos principais contendores, oMPLA, a FNLA e a UNITA, e vive aexperiência da prisão arbitrária às ordens dopoder de Agostinho Neto. Ele interessa-sepela vida de uma mulher, Lídia do CarmoFerreira, poetisa e professora, fundadora doMPLA e depois ligada à Revolução Activade Mário Pinto de Andrade, que desaparece(perdida, morta?) nos sangrentos confrontosde 1992. E são os seus dois pontos de vistaque nos descrevem a tragédia angolana, nointervalo temporal que vai da resistênciaanticolonial, ao longo da segunda metade doséculo XX, até aos massacres de Luanda, ostais que liquidam a ilusão de que as eleiçõesde Setembro de 1992 poderiam ter contri-buído para a resolução pacífica da luta pelopoder. Avaliada do seu lugar de observação,Angola morre às mãos do tribalismo, dasvárias formas de racismo, do mercenarismoe da corrupção, do exercício brutal do podere da força, e também morre às mãos dademissão, da indiferença, do refúgio nummodo de sobrevivência feito do desenrascançoe dos pequenos prazeres. A guerra existe edestrói porque os beligerantes, tão contráriosna retórica ideológica, reclamando-se uns daÁfrica profunda e tribal, outro do ambienteurbano, estão afinal irmanados na mesmasanha sanguinária e no mesmo ódio às pessoase à sua liberdade.

O que restaria, neste curso das coisas,seriam a desilusão, a amargura e o sarcasmo.Na incursão por Goa, no quadro de uma bolsade criação literária oferecida pela FundaçãoOriente, Agualusa exila na antiga Índiaportuguesa um velho combatente da guerri-lha do MPLA, Plácido Domingo, depois daindependência acusado de traição e persegui-do, como suposto agente da PIDE infiltradono movimento: com esta experiência, ondefica o mal, senão sempre connosco, irreme-diavelmente perto de nós, inseparável com-panheiro do que julgamos ser o bem, e oque é doravante Angola se não umainexistência, uma não-origem, um nada – que,contudo, cada um procura recriar noutraspaisagens, noutros lugares, os lugares deexílio, procurando os rios que pareçam oQuanza ou os cheiros que lembrem a floresta(Agualusa, 2000: 26, 50)?

Depois, no romance O Ano em que ZumbiTomou o Rio, que ficciona uma guerra civilurbana desencadeada pela revolta dosfavelados do Rio de Janeiro, comandados porum estranho traficante de droga animado deconsciência política, participa FranciscoPalmares, negro, ex-coronel do exército deAngola, herói desiludido com a revolução eo regime do seu país. Palmares coloca-se dolado dos revoltosos, acabando assim porabraçar uma nova causa, dada à partida comoperdida, por isso talvez ganhadora, abrindocaminho para uma morte, “bela aventura” queconfira ao menos um derradeiro sentido aoque se foi (Agualusa, 2002: 248, 282); e éoutro angolano, Euclides Matoso da Câmara,negro e anão, jornalista, que acompanha eobserva mais de perto este percurso terminal.

No romance mais recente, saído em 2004,O Vendedor de Passados, a acção regressaa Luanda. Remexendo em feridas por sarar,designadamente as lutas entre facções doMPLA, o esmagamento do golpe de NitoAlves em 1997 e a perseguição implacávelda direcção do partido aos nitistas. O pro-tagonista Félix Ventura vive de inventarpassados e os seus clientes são habitualmen-te figuras da nomenclatura do regime, quequerem retocar as genealogias pessoais efamiliares, para rasurar pontos negativos oucompor ilustrações nobilitantes. Vale portodas a figura do Ministro, assim chamado,cuja origem Ventura fará ficticiamente remon-

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tar até ao próprio Salvador Correia de Sá,herói da reconquista de Luanda aos holan-deses, no já longínquo século XVII. Mascomo, perturba-se o Ministro, esse não é umcolonialista, por isso mesmo apeado dopatronato do liceu da capital? Que não,sossega-o o inventor, Correia de Sá vinha doBrasil, não de Portugal, e até se ligou, é certoque por via de adultério e concubinato, àsnegras de Angola. Qual quê, brada então oMinistro, é preciso repor a honra perdida deCorreia de Sá, afinal combatenteinternacionalista (por ser brasileiro) eanticolonialista (por ter expulsado os holan-deses), além de, doravante, “afro-ascenden-te”, visto que ficará sendo a origem da ilustreárvore cujo actual fruto é ele próprio, oMinistro (Agualusa, 2004: 143). Neste sar-casmo está condensada a denúncia da cliquea que desgraçadamente Angola se encontrasujeita. Não chegam, porém, ao Ministro, unstais louros do passado: quer publicar aautobiografia, Memórias de um Combatente,e dela se encarrega Ventura, que é precisotransformar a ínvia ascensão de uma perso-nagem obscura, cobarde, oportunista e ligadaa negócios mal-afamados, na gloriosa “vidade um combatente” (Agualusa, 2004: 163-167).

É este o ofício de Ventura; mas por causado ofício será demandado por um “estran-geiro”, nascido em Portugal, que tambémquer um passado: um passado novo, queVentura lhe procura e tece, e que ele in-corpora com tal força que o inventor aca-bará confrontado com a “realidade” da suainvenção. Ora, quem assim tão desespe-radamente procura reescrever a sua raiz éna verdade um tal Pedro Gouveia, envol-vido no golpe de 1977, preso às ordens dafacção de Agostinho Neto e sujeito a cas-tigos tão bárbaros quanto a tortura da filharecém-nascida e o assassinato da mulher. Otorcionário é um chamado Reis, então agenteda segurança do Estado e, agora, com asuposta normalização democrática do regi-me, deitado fora, tornado de agente em “ex-gente”, mendigo e sem abrigo refugiadonuma sarjeta (Agualusa, 2004: 183-190).

Onde está, portanto, o país sonhado pelosconspiradores angolenses do fim do séculoXIX, pelos resistentes da guerra contra ocolonialismo, pelos poetas e artistas que

imaginaram a nova nação? Parece destruídoinapelavelmente pela guerra, o ódio, a opres-são, o desvario, a crueldade feita poder.Parece desapossado de futuro ou sequeresperança, seja na demência da guerra civil,seja no inferno totalitário, seja na hipócritapacificação de agora. As identidades pare-cem, pois, ou perdidas, vergadas ao peso dafalsidade e do simulacro, ou fechadas nocírculo dos tribalismos mutuamente exclusi-vos que as torna, como diz Maalouf (1999),“assassinas”.

Esta não é, todavia, a única linha deaproximação à questão das identidades queentrevejo na ficção de Agualusa. Há umasegunda linha: a que parte da inquietação quenão se conforma com destinos de injustiçae imagina outras possibilidades. A que pensa“Angola, nossa mãe dolorosa e ofendida”(Agualusa, 1992: 42), marcada secularmen-te, desde os fins de Quatrocentos, pelacondição da escravatura, a pensa tambémcomo matriz, também como fundura, comoforça subterrânea, como amplidão de terri-tórios, paisagens, imaginários. À intrusãocolonial, à enorme ferida que os europeusabrem e rasgam no espaço e na históriaafricana, os angolenses de A Conjura con-trapõem a força ancestral do seu continente,o que há nele de fecundo, pletórico,perturbador e indomável. É dessa força que,mulatos que são, feitos de cruzamento, novosprotagonistas nem inteiramente negros nembrancos, é dessa força que querem ser, porassim dizer, representantes, intermediando oincontornável relacionamento dela com acivilização económica e técnica da moder-nidade europeia.

“Eu penso [diz Severino, um dosheróis da conspiração] que a força ea originalidade de um genuíno roman-ce angolense só se poderá conseguiratravés da sábia mistura entre oimaginário e a realidade. Porque éassim que nós somos” (Agualusa,1998: 128-129).

Protagonistas do que está no meio,irredutível a oposições polares, e pode mediar,articulando os contrários e fazendo comuni-car os diferentes, hão-de ser também, emNação Crioula: a Correspondência Secreta

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de Fradique Mendes, o Fradique queirosiano,moderno e dandy, curioso insaciável e vi-ajante incansável, cidadão que se quer domundo, que Agualusa brilhantemente imagi-na descobridor e amante de Angola, e a negraAna Olímpia, filha de uma escrava e de umpríncipe congolês, de quem ele se enamora.“Os negros carregam o Brasil” (Agualusa,2003b: 86), o suor e o sangue da Áfricaescravizada fazem o Brasil – é com estaquestão que o cosmopolita Fradique se verá,afinal, confrontado. Começa por aportar aLuanda, em 1868, aventureiro em busca deuma daquelas combinações de ordem e sin-gularidade de que Eça o havia feito paladino.África, atracção irresistível para tantos,prendê-lo-á. Porém, o tráfico de escravosrumo ao Brasil, já clandestino por causa daproibição imposta pelos ingleses, massacrae, ao mesmo tempo, embaraça os africanos,alguns dos quais desse tráfico vivem. Aprópria Ana Olímpia casará com um negrei-ro angolense. Mas, quando enviúva, aperce-be-se de que este se havia esquecido dealforriá-la e cai outra vez na condição deescrava. Fradique participará na aventura dasua libertação, fugindo com ela para o Brasil,onde contactará com os círculos abolicionistase da sua causa se tornará combatente. É estasua condição cosmopolita, de quem semprese encontra disponível para articular as coisas,para percorrer as distâncias, físicas, históri-cas e culturais, quem viaja, encontra, des-cobre, que lhe permite ligar vários mundose dessa ligação construir uma identidadepessoal múltipla. E é esta identidade que lhepermite sopesar, a partir de pontos de vistamais amplos, o valor e a desvalia recíprocosda civilização ocidental moderna que é a sua,do Portugal-país e nação que é o seu (comas virtudes e os defeitos que discute aoalmoço com Eça, certa tarde de Lisboa, cf.Agualusa, 2003b: 107-108), da África e doBrasil aparentemente tão distantes da suaformação e interesses, e afinal, sugereAgualusa, tão pertinentemente motivos efacilitadores de uma compreensão fazedorade futuros.

Outros personagens das narrativas deAgualusa compartilharão esta condição demediadores, de produtos e agentes de encon-tro e mistura, e portanto de resistência aoencerramento em pertenças únicas e fecha-

das. Portadores, assim, da possibilidade derecriação de pertenças múltiplas e abertas (usoadequadamente os termos de Maalouf, 1999).Lídia do Carmo Ferreira, de quem o jovemnarrador de Estação das Chuvas se quer fazerbiógrafo, é uma delas, não encerrável noscírculos fechados que odeiam a alteridade,defensora, mesmo no mais aceso dos com-bates intelectuais de Senghor ou Pinto deAndrade pela “negritude”, da abertura àdiversidade do mundo e à fecundidade dacomunicação (Agualusa, 2003a: 81-86). N’OVendedor de Passados, Ventura é um negroalbino, outro inclassificável, pois, outroexcêntrico ao jogo de mesmidades mutuamen-te exclusivas. E, se Pedro Gouveia, o per-seguido do regime, se fez fotógrafo de corrermundo, de guerra em guerra, já Angélica, asua filha torturada em bebé, fotógrafa tam-bém, prefere olhar o céu e fixar-se empaisagens, em nuvens – em esperança. Várioscontos de Catálogo das Sombras (Agualusa,2003c) falam igualmente desta gente queescapa à reprodução das ideias e linhagensfeitas e desse escape faz sementeira de novasideias e linhagens: o projeccionista de cine-ma, de ascendência russa, que continua adeambular pela Angola mergulhada em guerracivil; o pescador brasileiro, amante de lite-ratura; o pernambucano preguiçoso que àguerra contrapõe o ócio, “não sei de cóleraque resista ao balanço de uma cadeira”(Agualusa, 2003c: 131), etc. E é da mesmaincapacidade de fixar rigidamente, numestereótipo, a complexidade dinâmica da vidaque nos fala o escritor, “estranho em Goa”,em busca de traços da presença portuguesae da ausência-presente desse lugar que talveznão exista, chamado Angola, mas que, por-que, o acompanha a todo o lado (Agualusa,2000).

Recorro novamente ao texto de AminMaalouf: às “identidades assassinas” não seopõe a vã pretensão de não haver identidadescolectivas, consolidadas e influentes; opõe-se sim a valorização dessas”“identidadescompósitas”, feitas de “múltiplas pertenças”,que são afinal o que melhor nos caracterizacomo humanos, frutos de múltiplos encon-tros de cultura mais do que afiliados à formamonista do discurso da identidade “autênti-ca” (Maalouf, 1999: 41-47). Ao fim e ao cabo,construindo uma ficção que gira em torno

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da exploração das travessias”– sendo comoé radicalmente intertextual, literatura sobrea literatura e literatura sobre a história, aviagem, a deslocação, as deambulações pordiferentes territórios e culturas e os textosque delas resultam – Agualusa, escritormulticultural, como alguns diriam com ên-fase, propõe-nos também uma via de apro-ximação à identidade e ao futuro de Áfricae dos mundos que com África dialogam.Aproximação feita da valorização dapluralidade, da alteridade e, a bem dizer, docarácter inclassificável, não-enclausurável, decada um de nós, sempre–“misturas”, espe-remos que “sábias”, como queriam o con-jurado Severino de Sousa e a poeta Lídia doCarmo Ferreira. Ou, como certo amigo doescritor, oficialmente perguntado sobre a suaraça:

“A minha raça? Ponha raça melho-rada, por favor” (Agualusa, 2003d:71).

Esta via não faz sentido sem a outra, adenúncia e o pronunciamento crítico, a re-volta perante a África ou o Brasil “dolorosose ofendidos” pela exploração colonial, osracismos, as desigualdades, a violência ur-bana ou tribal. Mas, críticos e às vezes mesmoprofetas, os escritores não são ainda cons-trutores de possibilidades, proponentes decaminhos-outros? E não é essa uma suafunção essencial, enquanto intelectuais?

5. Lusofonia como espaço de pertençasmúltiplas

Não é possível falar sobre a acção socialsem falar sobre as identidades sociais: comocompreenderíamos a relação entre estruturase práticas se não a focássemos também dolado dos sentidos que, sobre si próprios eos outros, as pessoas e os grupos que elasformam estão constantemente a construir ereconstruir? Não é possível falar sobre iden-tidades sem considerá-las também como“textos sociais” (Alexander & Smith, 1998:108-109, 113-115): se incorrêssemos no errode atribuir-lhes significados genuínos, rígi-dos e estáticos, como evitaríamos as derivasessencialistas, como daríamos conta da com-plexidade e pluralidade das interpretações que

estão sempre a reinvestir de sentido asidentidades e que se confrontam umas comas outras na variável determinação das suassignificações?

Se isto aceitarmos, então teremos deaceitar que as identidades estão envoltas numaespiral discursiva: as identidades como tex-tos só são apercebidas a partir de sucessivostextos sobre identidades. O que é o discursoidentitário, seja de que sujeito colectivo for— um grupo, uma classe, uma instituição,uma sociedade, uma religião, uma civiliza-ção — é indissociável do que são os dis-cursos sobre esse discurso identitário, asinterpelações, recriações, re-presentaçõesconstantemente operadas a partir dele, sobreele.

Na espiral discursiva, no encadeamentode textos sobre textos – a que tambémpertencem, ao contrário do que julgamaqueles que reivindicam uma exterioridadeobjectivista, as interpretações históricas,antropológicas e sociológicas acerca dasdinâmicas sociais da identidade – os discur-sos literários ocupam um lugar de relevo. Porvárias razões, interessando-nos aqui, pelomenos, quatro. Por uma questão de densi-dade textual: valem por si próprios, sãorepresentações simbólicas que detêm a suaespessura própria, não se podendo reduzir àlógica testemunhal, porque são uma ordemsignificante em si própria. Por uma questãode riqueza significativa: a polivalência e aabertura interpretativa características daspráticas e das obras simbólicas redobram-seno e pelo trabalho literário sobre linguagens,ideias e emoções, assim gerando umapluralidade de aproximações de segundo grau.Por uma questão de capacidade interpelativa:o poder de problematização da literatura éenorme, na medida em que a sua aproxima-ção ao real mobiliza o trabalho específicode criação da língua literária e a relaçãooriginal com o conjunto dos textosconstitutivos da(s) história(s) e património(s)literários. Por uma questão de configuraçãode possibilidades: quem senão o escritor podeexplorar sem limites as possibilidades ins-critas ou imagináveis nas coisas e nos serese nas respectivas ligações? Porque não há-de o médico Ricardo Reis, emigrado no Riode Janeiro, voltar a Lisboa quando sabe damorte do seu amigo Fernando Pessoa e aí

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ver-se envolvido no ambiente já sufocanteda ditadura salazarista, desmentindo afinal asua própria máxima de “sábio é o que secontenta com o espectáculo do mundo”(Saramago, 1984)? E porque é que essecompulsivo indagador dos terrenos em quea razão se faz mistério e o mistério, razão,chamado Fernando Pessoa, não haveria deinteressar-se pelo candomblé brasileiro(Agualusa, 2003c: 11-27)?

Não se peça à literatura o que ela nãopode nem deve dar; ela não é uma expli-cação “total” do mundo. Nem se aprisioneo texto literário numa espécie de reveladorsociológico, um “reflexo” mais ou menoselaborado e oblíquo do real. Mas perceba-se melhor, com a ajuda da literatura, e emparticular das indagações literárias sobrequestões de identidade, como as identidadessão processos: realidades dinâmicas, comple-xas, abertas, múltiplas, plurais, regularmenteconstruídas e desconstruídas e reconstruídas,incorporadas e transformadas por diversossujeitos em diversos contextos e de muitodiversas formas. É quando o que está afinalem jogo é o jogo das identidades – o quese é e como se é, onde e com quem se está,o que se quer e projecta ser – que o discursoliterário pode sobremaneira iluminar, desa-fiando-o, o labor interpretativo da sociologiacultural.

Ora, consideremos situações de crise,ruptura e passagem, de que pode vir a surgiralgo de novo, a democracia num paíslongamente estabelecido, como o Portugal dosmeados da década de 1970, a própria in-dependência e constituição de novos Esta-dos, como nas principais possessões coloni-ais portuguesas de então, Angola eMoçambique, e novos quadros e modos derelacionamento entre um e outros. Sondemoso que se passa com a ajuda dos olhos e dasexpressões de escritores, não como se elesfossem repórteres ou informantes, mas simcomo o que são: criadores que, a esse materialeventualmente literário que são as encruzi-lhadas da história, do presente e do futurode tais nações, aplicam as suasmundividências, os seus imaginários, as artespróprias. Retenhamos que discorrer literari-amente sobre cada um desses “casos”, doponto de vista das identidades (o que vaisucedendo a essas comunidades e como é que

elas o vivem), é necessariamente discorrersobre a sua interrelação: uma, Portugal, deixade ser a potência colonial das outras,Moçambique e Angola, todas se articulam,embora de diferentes maneiras, com naçõeshistórico-culturalmente próximas, como Por-tugal e Angola com o Brasil e Moçambiquecom parte da Índia, e com outros países epovos estão envolvidas num espaço de lín-gua comum e numa história de(des)encontros, que, um pouco mais tarde,alguns anos passados sobre o trauma dadescolonização, tenderão a imaginar e ante-cipar como uma espécie de pertença parti-lhada, penhor dado por todos, a “lusofonia”.Peçamos, por fim, a três escritores, singu-lares em cada um dos três países, Portugal,Moçambique e Angola, a permissão de usarcomo pretexto e texto de exercício as res-pectivas obras. Poderiam ser outros, maschegarão estes, o português Almeida Faria,o moçambicano Mia Couto e o angolano-cidadão do mundo José Eduardo Agualusa— que se trata apenas de defender, junto dequem saiba fazê-lo, a enorme vantagem deincorporar a análise literária das suas obrasnuma análise cultural mais geral.

São suficientemente contrastantes entre sipara que a deambulação entre eles sejaprodutiva. Mas também são suficientementecentrados sobre a temática que nos ocupa,a interpelação sobre histórias e identidadescolectivas, sobre os recursos e os projectosculturais das gentes. Intersectam-se, desafi-am-se várias vezes as suas elaborações. Nãoé sociologia”da literatura que sobre eles, apropósito deles quereremos fazer: mesmoquando consegue sair da arcaica imagem daliteratura como reflexo, representação, cons-ciência de uma realidade histórico-socialsempre outra e sempre precedente sobre ocorpo literário propriamente dito, mesmoquando consegue ao menos compreender osescritores e as obras por relação com o seupróprio campo intelectual e por aí mediar eafinar a sua articulação ao campo social maisgeral, mesmo quando consegue superar obiografismo e tratar os textos, mais do queos autores, e as redes, mais do que osindivíduos, como objecto de análise, a “ex-plicação” sociológica da literatura sabe sem-pre a pouco, fica sempre presa, de formamanifesta ou larvar, do reducionismo. Aqui,

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não se trata de ir por tal caminho: não setrata de fazer sociologia sobre a literatura,mas de fazer sociologia com a literatura. Istoé, usar esta obra ou este conjunto de obrascomo uma interpretação com que se pode edeve confrontar – e alimentar, e enriquecer— a interpretação sociológica. Não é, pois,um objecto, é um texto que podemos con-siderar na tessitura do nosso próprio textosociológico, um e outro texto construídossobre esses textos que são, por serem vívidosde sentido, e pelo menos nas suas dimensõessimbólicas, os processos sociais.

Mas se é assim, se pode ser assim, entãonão se evitará outra consequência: é que ostextos produzem realidade, não exprimem só,produzem realidade, criam factos, determi-nam ideias e emoções, orientam a acção.Neste sentido, o diálogo entre os textossociológicos ou antropológicos e os textosliterários também produz realidade: e, no casovertente, produz realidade acerca e a propó-sito das identidades culturais.

Sumariando temerariamente o que ficouvisto ser complexo, dir-se-á que o olhar queAlmeida Faria projecta sobre a revoluçãoportuguesa sobre-evidencia a desvalia estru-tural do país e da sua gente, que continuam“mínimos”, porque avessos à modernidadee ao cosmopolitismo, encerrados na tristehistória da pequenez mal disfarçada. Overdadeiro “Cavaleiro Andante” não será,contudo, o JC distanciado e crítico, mas oseu irmão mais velho, o tal que tentou refazer,agora em sentido positivo, o trajecto histó-rico de Portugal para o Brasil e África, noreverso do que fazia a grande torrente dosex-colonos “retornados”, e em África aca-baria por encontrar, apenas, a morte. Se oolhar for o de Mia Couto e projectar-se sobreo tumultuoso parto da nação moçambicana,então o que fica em destaque é o valor doque a história chã das pessoas comuns, dosseus lugares, territórios, paisagens, costumes,tradições, numa palavra, a sua cultura, foiconsolidando e é o principal meio de resis-tência contra os vários males que afligemMoçambique (miopia ocidental incluída), bemcomo quase único factor de esperança. Aí,é a raiz que segura e acalenta, de cada umfazendo um ser de parte inteira (“cada homemé uma raça”, Couto, 1990) e de cada povouma comunidade de percurso e imaginação.

E, se acompanharmos José Eduardo Agualusano seu próprio percurso cultural através doespaço lusófono, por terras e tempos deAngola, de Portugal e do Brasil (ou do queresta em Goa), cosmopolitismo quer dizeruma coisa radicalmente diferente, quer dizerabertura, travessia transfronteiriça,deambulação, comunicação recíproca,interculturalidade, e as identidades portado-ras de futuro são as que se compõem demúltiplas origens, pertenças e projectos, e porisso não são enclausuráveis em círculosfechados ou descrições monocromáticas, são,a bem dizer, inclassificáveis, são identidadesdo meio, da mistura, e por aí, ao menospotencialmente, da mediação.

E, contudo, todas três são obras deamargura e desencanto, e também de denún-cia e violento sarcasmo contra a injustiça,o horror ou a estupidez. O que é típico dolabor literário, quer dizer, criativo, é aomesmo tempo imaginar possibilidades, cami-nhos-outros. Ora, não é isto, propor possi-bilidades, que define a criação cultural? Nãoé isto também o que define a relação entrea criação cultural e a intervenção pública,de que quer dar conta, desde o fim do séculoXIX, a ideia do intelectual? Não será istoque poderá ser, apesar ou para além dasolenidade ritual ou do interesse táctico, alusofonia – como espaço multicultural decomunicação intercultural, estruturado poraquilo que, como escreveu Eduardo Louren-ço (1999: 164), os portugueses “que perde-ram tudo (perdendo-se no tudo com que seencontraram)” não perderam, a língua? E, sefor isso, não será enfim baseada numa formamais densa, mais abrangente decosmopolitismo, como abertura, como traves-sia, como comunicação além-fronteiras eligação entre territórios? E, se for isso, nãose encontrará assim um novo sentido paraa história comum e tomada, criticamente, porinteiro – um sentido que nos projecte paralá das imagens simétricas e simetricamentedistorcidas da culpa irredimível da predaçãocolonial e da variante doce de umcolonialismo rasurado em encontro e singu-laridade “luso-tropical” (cf. Almeida, 2000:161-184)? E não se resgatará enfim o sonhodo indiano Surendra, de Terra Sonâmbula,pertencer não aos continentes separados masao oceano que os une (Couto, 1992: 26)?

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Já ouço os analistas da literatura a fus-tigar o primarismo da abordagem queesquematizei. Se o problema é a incompe-tência própria, não ficarei preocupado, quemsabe suprirá a falta. Ouvirei com maiorinquietação as críticas dos sociólogos queachem inútil, supérfluo ou até impertinenteo diálogo com a literatura. Perante esses,posso apenas fazer minha a recomendação

do pescador de um belo conto de Agualusa(2003c: 97-101): “se nada mais der certo, leiaClarice”. Lispector, obviamente. Mas gene-ralizarei por minha conta: se, na compreen-são das identidades e na projecção dalusofonia, nada mais der certo, leiam a li-teratura dos autores que se exprimem emportuguês.

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_______________________________1 O texto desenvolve a Conferência proferida

na Sessão Plenária inaugural do VI Lusocom, em21 de Abril de 2004, subordinada ao tema “Co-municação e Identidades”.

2 Faculdade de Economia da Universidade do Porto.