gradação nas obras de györgy ligeti dos anos sessenta

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1 Gradação nas obras de György Ligeti dos anos sessenta. Claudio Vitale ECA-USP. [email protected] Resumo: Neste artigo comentam-se aspectos relacionados com o trabalho de doutorado do autor. Observa-se a importância da gradação na construção das obras compostas por Ligeti, principalmente, nos anos 60. Estudam-se, também, alguns problemas rítmicos e sua relação com interesses do próprio compositor no campo das artes visuais e da ciência. Finalmente, nota-se que a música de Ligeti dessa época se estrutura fortemente em torno da díade continuidade- descontinuidade e a decorrente idéia de ilusão; questões essas ligadas aos limiares da percepção. Palavras-chave: György Ligeti, gradação, ilusão. Gradation in György Ligeti's works of the 60's. Abstract: In this article they are presented some results of the author's doctorate project. It is observed the importance of gradation in the construction of the works composed by Ligeti principally in the 60s. They are also studied some rhythmic problems, making a connection with the own interest of Ligeti in the fields of visual arts and science. Finally, it is noted that Ligeti's music of this period is strongly structured around the dyad continuity-discontinuity and the corresponding idea of illusion; aspects that are related to the limits of perception. Keywords: György Ligeti, gradation, illusion. 1. Introdução O objetivo desta comunicação é comentar alguns aspectos trabalhados no Doutorado (em andamento desde 2009) e que serão parte do texto da tese. Esses assuntos começaram a ser desenvolvidos na dissertação de Mestrado (VITALE, 2008), com a análise de Dez peças para quinteto de sopros (1968), do compositor húngaro György Ligeti. No Doutorado, a pesquisa foi estendida para o conjunto de obras compostas por Ligeti, principalmente, na década de sessenta. Em termos gerais, nesse período, a linguagem do compositor é caracterizada pelo uso sistemático do cluster, no campo da harmonia, e pela superposição de diferentes divisões do tempo, no campo do ritmo. O estudo das obras é realizado a partir da idéia de gradação. Esse conceito leva a entender o processo musical em relação com conceitos tais como a continuidade, a ilusão, e os ínfimos desvios, entre outros. O estudo dos processos graduais constitui uma das possíveis e importantes entradas para o conhecimento das obras de Ligeti, sobretudo, no que diz respeito à música construída em torno da harmonia do cluster. A construção gradual, no entanto, não é apenas observável no âmbito das alturas, mas também no campo do ritmo, das durações, do timbre, da textura e da densidade. Freqüentemente, a gradação é utilizada por Ligeti para produzir ilusões acústicas em obras com textura muito diferentes. Considerando apenas alguns casos, podemos pôr como exemplo dois tipos de obras: 1) aquelas com textura estática, compostas

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Page 1: Gradação nas obras de György Ligeti dos anos sessenta

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Gradação nas obras de György Ligeti dos anos sessenta.

Claudio Vitale ECA-USP. [email protected]

Resumo: Neste artigo comentam-se aspectos relacionados com o trabalho de doutorado do autor. Observa-se a importância da gradação na construção das obras compostas por Ligeti, principalmente, nos anos 60. Estudam-se, também, alguns problemas rítmicos e sua relação com interesses do próprio compositor no campo das artes visuais e da ciência. Finalmente, nota-se que a música de Ligeti dessa época se estrutura fortemente em torno da díade continuidade-descontinuidade e a decorrente idéia de ilusão; questões essas ligadas aos limiares da percepção. Palavras-chave: György Ligeti, gradação, ilusão.

Gradation in György Ligeti's works of the 60's.

Abstract: In this article they are presented some results of the author's doctorate project. It is observed the importance of gradation in the construction of the works composed by Ligeti principally in the 60s. They are also studied some rhythmic problems, making a connection with the own interest of Ligeti in the fields of visual arts and science. Finally, it is noted that Ligeti's music of this period is strongly structured around the dyad continuity-discontinuity and the corresponding idea of illusion; aspects that are related to the limits of perception. Keywords: György Ligeti, gradation, illusion.

1. Introdução

O objetivo desta comunicação é comentar alguns aspectos trabalhados no

Doutorado (em andamento desde 2009) e que serão parte do texto da tese. Esses assuntos

começaram a ser desenvolvidos na dissertação de Mestrado (VITALE, 2008), com a análise

de Dez peças para quinteto de sopros (1968), do compositor húngaro György Ligeti. No

Doutorado, a pesquisa foi estendida para o conjunto de obras compostas por Ligeti,

principalmente, na década de sessenta. Em termos gerais, nesse período, a linguagem do

compositor é caracterizada pelo uso sistemático do cluster, no campo da harmonia, e pela

superposição de diferentes divisões do tempo, no campo do ritmo. O estudo das obras é

realizado a partir da idéia de gradação. Esse conceito leva a entender o processo musical em

relação com conceitos tais como a continuidade, a ilusão, e os ínfimos desvios, entre outros.

O estudo dos processos graduais constitui uma das possíveis e importantes

entradas para o conhecimento das obras de Ligeti, sobretudo, no que diz respeito à música

construída em torno da harmonia do cluster. A construção gradual, no entanto, não é apenas

observável no âmbito das alturas, mas também no campo do ritmo, das durações, do timbre,

da textura e da densidade. Freqüentemente, a gradação é utilizada por Ligeti para produzir

ilusões acústicas em obras com textura muito diferentes. Considerando apenas alguns casos,

podemos pôr como exemplo dois tipos de obras: 1) aquelas com textura estática, compostas

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por notas longas, como Atmosphères (1961), Lux aeterna (1966) e Lontano (1967); e 2)

aquelas estruturadas a partir de padrões repetitivos, como Continuum (1968) e Monument

(1976) - primeira peça da obra para dois pianos Monument, Selbstportrait, Bewegung.

Em Atmosphères, as transformações da cor sonora acontecem a partir do jogo

entre as inúmeras micro descontinuidades e o grande número de vozes que formam a massa

sonora continua. Em Lux aeterna, as modificações constantes dos intervalos geram campos

harmônicos com diferente grau de consonância. Em Lontano, as transformações harmônicas e

o uso do crescendo e do diminuendo em diferentes camadas dão a impressão de distância ou

proximidade. Em Continuum existe um único procedimento de transformação gradual do

motivo do início que gera a sensação de uma variação contínua da densidade. Em Monument,

a criação de vários planos sonoros a partir de diferentes dinâmicas gera a ilusão de um

conjunto de evoluções musicais simultâneas e de uma música estática.

Todas essas obras, como outras não mencionadas, revelam um intenso uso da

técnica das modificações mínimas. Em termos gerais, cada uma delas desenvolve a idéia de

uma metamorfose lenta e contínua onde a ilusão está sempre presente. A sensação de

continuidade causada pelo fluir constante faz com que quase não percebamos as

transformações mínimas que acontecem, de forma progressiva, no interior desse processo.

Quanto mais lentas as mudanças e mais passos intermediários entre um estado e outro, mais

efetivo o resultado da gradação. A repetição e a demora na introdução da novidade mascaram

os limites entre os eventos. Nesses casos, é possível perceber que já não há transição entre

objetos, pois há apenas transição, uma transição permanente.

A seguir, analisamos alguns aspectos concernentes ao ritmo das obras de Ligeti

dos anos sessenta.

2. Transformações rítmicas mínimas.

O material rítmico utilizado por Ligeti durante a década de sessenta é obtido a

partir da divisão de uma unidade máxima em unidades menores. Isto é, tendo, por exemplo,

uma figura de mínima como unidade maior, podemos dividi-la em 2, 3, 4, 5, 6,..., n partes.

Dessa maneira, teremos 2 semínimas, 3 semínimas em lugar de 2, 4 colcheias, 5 colcheias em

lugar de 4 (quintinas), 6 colcheias em lugar de 4 (sextinas), etc. Trata-se, então, de uma série

de ritmos, todos equivalentes em sua duração total, ordenados de forma crescente e

comparáveis com uma escala ou uma gradação. A cada passo, à medida que nos distanciamos

da unidade maior, acrescenta-se um ataque e diminui-se, conseqüentemente, sua duração.

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Perceptivamente, quanto maior o número de camadas ou maior a quantidade de

ataques das estruturas rítmicas, maior a similaridade entre elas. De fato, ao observarmos a

evolução gradual de uma superposição de estruturas contíguas, onde a transformação é guiada

exclusivamente pela passagem progressiva de uma pulsação para outra, notamos que o grau

de modificação do padrão rítmico resultante é também sempre mínimo. Existe uma notável

semelhança entre cada uma dessas superposições que pode ser comprovada ao observarmos

uma representação visual do processo. Vejamos dois exemplos.

Na Figura 1 colocamos a evolução gradual de duas estruturas superpostas,

começando com a superposição 2-3 e indo até 15-16. Na Figura 2 mostramos um processo

similar ao anterior realizando, primeiro, uma entrada progressiva até atingir a superposição de

quatro estruturas (2, 2-3, 2-3-4, 2-3-4-5) e, depois, crescendo até 13-14-15-16. Unimos os

ataques sucessivos com o intuito de ressaltar as mínimas transformações ocorridas a partir do

crescimento gradativo das estruturas rítmicas. O primeiro ataque, representado pela barra à

esquerda, não aparece ligado ao segundo por questões de clareza do gráfico. Se estivesse

unido, também o último ataque deveria ficar ligado ao começo do outro ciclo para que o

desenho conserve a simetria que as próprias estruturas rítmicas têm. Lembremos que ao

dividirmos uma unidade qualquer em n partes iguais obtemos sempre um ritmo que está

estruturado em torno de um eixo de simetria. Por exemplo, no caso de quatro colcheias

(estrutura com número de ataques par), podemos pensar em dois colcheias a cada lado de um

eixo de simetria. No caso de três colcheias (estrutura com número de ataques ímpar), a

segunda colcheia funciona como eixo de simetria que tem uma colcheia de cada lado.

Através das representações notamos que se trata de um desenho básico, elementar,

que sofre uma transformação contínua. A cada passo, o esquema é diferente do anterior,

porém, conserva uma grande semelhança.

Ante esses gráficos parece difícil não lembrar dos interesses que o próprio Ligeti

manifestava ter tanto em outras áreas da arte como na ciência. O trabalho de artistas como

Maurits Cornelis Escher (1898-1972) ou Paul Klee (1879-1940) remete, imediatamente, às

mesmas características observadas nas figuras. A ilusão, por exemplo, gerada a partir da

transformação gradual de uma imagem em outra constitui uma forte marca da arte de Escher.

Ligeti, em depoimento a Michel (1995), comenta sua afinidade com as idéias do artista

holandês e observa as semelhanças com sua obra para cravo Continuum. Ele diz: Em 1972, pude ver seus desenhos, os quais tiveram uma grande influência sobre mim. Eu encontrei [em Escher] idéias próximas às de Continuum. [...] Um dos seus desenhos mais típicos chama-se Métamorphoses. Escher transforma progressivamente um quadrado em animais (lagartos), depois isso se torna

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geométrico; os hexágonos evocam a associação com uma colméia de abelhas, depois as abelhas saem voando e se transformam em borboletas ou em peixes. A idéia é genial. Quando vi isso, me senti muito comovido pois, em Continuum, trata-se exatamente da mesma coisa (p. 192-193).

Figura 1: modificação gradual da estrutura de um accelerando (2-3,...,15-16).

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Figura 2: modificação gradual da estrutura de um accelerando (2, 2-3, 2-3-4, 2-3-4-5,..., 13-14-15-16).

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As texturas micropolifônicas de Ligeti estão baseadas na relação dialética

estabelecida pela díade continuidade-descontinuidade. Trata-se de uma música caracterizada

por uma continuidade estática, formada por inúmeros cortes ou descontinuidades que, pela

brevidade e número, formam um continuum sonoro em constante e gradual transformação. O

próprio compositor percebe essas mesmas características em Klee e reconhece as influências

sobre sua música. Trata-se de imagens contínuas formadas por pequenos movimentos que

produzem, além do número elevado de elementos, a sensação de algo estático. Diz o

compositor:

em 1954, estava inspirado por numerosos quadros de Klee. Nele, há uma obra, Lugar de culto, de 1934, da qual pode-se dizer que é uma imagem contínua, porque todo está cheio de pequenos movimentos, mas a totalidade é estática. Esta gravura deu-me a chave para realizar uma música contínua, mas polifônica ao mesmo tempo (apud BOSSEUR, 2006: p. 180).

Da mesma forma, o comportamento dos fractais, estudado pela geometria fractal,

traz a importância da repetição de um mesmo padrão em diferente número e escala. Em outras

palavras, a idéia de auto-similaridade (não necessariamente exata mas estatística, aproximada)

pode ser associada tanto aos fractais quanto às evoluções rítmicas de estruturas contíguas

presentes na música de Ligeti.

As evoluções rítmicas mostradas nas Figuras 1 e 2, por estarem formadas por um

crescimento progressivo, também podem ser comparadas com a tradicional técnica do

accelerando. Examinemos este aspecto com mais detalhe. Como é sabido, accelerando e

ritardando são termos italianos com sentidos opostos utilizados em música para designar

mudanças progressivas do tempo. Enquanto o primeiro indica a passagem de um andamento

mais lento para outro mais rápido, o segundo determina o percurso contrário, do mais rápido

para o mais lento. Na música de Ligeti, a evolução das próprias estruturas rítmicas constitui o

reflexo das ações de accelerare e de ritardare o tempo. Esse fato denota a procura por uma

escrita muito precisa que se aproxima consideravelmente de uma variação literalmente

contínua do tempo.

A rigor, devemos considerar que, na música de Ligeti, os accellerandi ou

ritardandi são produto da superposição complexa de acelerações ou desacelerações do pulso e

não da variação temporal de um elemento só. Na Figura 2, por exemplo, se pensarmos na

evolução de quatro vozes, podemos concluir que se trata de uma imitação, ou mais

especificamente falando, de um cânone de tempi. Podemos interpretar esse processo como

imitação de tempi pois, na verdade, o que se imita é uma pulsação, isto é, uma certa

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quantidade de ataques com idêntica duração. Trata-se de fenômenos periódicos onde a idéia

de ritmo se funde com a de pulso, de tempo.Todas as vozes fazem o mesmo percurso partindo

da divisão em 2 e chegando, gradualmente, à divisão em 16, porém, todas estão defasadas.

Enquanto uma voz faz a divisão em 2, a outra faz a divisão em 3, a outra em 4 e a outra em 5.

Logo depois, a seqüência avança um passo até 3-4-5-6, e assim por diante. Todas as vozes

realizam a mesma escala de tempi. No entanto, por causa da defasagem, o tempo resultante é

produto da superposição de tempi que estiver operando a cada momento. Este fato, constitui

uma diferença radical com o uso do accelerando na música tonal do século XIX, por

exemplo, onde não existe a intenção de superpor diversos tempi e, em conseqüência, não há

evoluções do tempo paralelas e diferentes. As explorações sobre o tempo não possuem, ainda,

o grau de contundência que encontramos, posteriormente, nas pesquisas levadas adiante por

compositores como Charles Ives, Conlon Nancarrow, Karlheinz Stockhausen, ou o próprio

Ligeti.

Finalmente vale lembrar que, na performance, todas essas micro-variações sofrem

leves alterações segundo o tipo de instrumentação, o número de intérpretes ou se o tempo de

referência for mais lento ou mais rápido, pois não só a possibilidade de "erro" é variável, mas

também a densidade, o timbre e o número de ataques por unidade de tempo modificam a

percepção do ritmo.

Considerações gerais.  

Os fenômenos rítmicos analisados anteriormente constituem a prova da

diversidade de variações minúsculas que existem na música de Ligeti, onde o diferente se

confunde freqüentemente com o mesmo. Por causa do grande número e brevidade dos eventos

somos levados a perceber objetos diferentes como se fossem iguais. Esse trabalho com os

extremos, nos limiares da percepção, faz com que a percepção das estruturas rítmicas seja

ambígua. Essa característica, no entanto, é de fundamental importância numa música que

procura mascarar os limites entre estados contíguos e fazer com que percebamos apenas um

processo, uma continuidade sem cesuras evidentes. Como na arte de Escher ou de Klee, a

transformação extremamente gradual do material em jogo e os processos de repetição

obstinada de micro elementos geram a ilusão de um continuum, onde o fim pode ser um novo

começo.

   

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Agradecimentos.

O autor agradece o apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado

de São Paulo) para o desenvolvimento do projeto de pesquisa do qual faz parte este artigo.

 Referências Bibliográficas.

BOSSEUR, Jean-Yves. Musique et arts plastiques: Interactions au XXe siècle. Paris: Minerve, 2006. MICHEL, Pierre. György Ligeti. Paris: Minerve, 1995. VITALE, Claudio. "Dez peças para quinteto de sopros" de György Ligeti: a gradação como uma ferramenta para a construção do discurso musical. São Paulo, 2008. 94f. Dissertação (Mestrado em Música). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.