possibilidades fonéticas para o tratamento timbrístico da voz em aventures de györgy ligeti
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Artigo de Laiana de Oliveira sobre a obra Aventures de György Ligeti. Apresentado no congresso EIMAS em Juiz de Fora - MG.TRANSCRIPT
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Possibilidades fonticas para o tratamento timbrstico da voz em Aventures de Gyrgy Ligeti
Autor: Laiana de Oliveira1
Instituto de Artes - UNICAMP
Resumo: A obra Aventures (1960) para trs cantores e sete instrumentistas do compositor hngaro Gyrgy Ligeti
possui uma abordagem peculiar das concepes textual, vocal e instrumental, devido ao uso de agrupamentos
fonticos em lugar do texto linear. Pretende-se neste artigo, atravs de recortes da obra, apontar as implicaes
do uso de fonemas na escrita vocal, e apresentar procedimentos inerentes obra que possibilitam a conexo entre
voz e instrumentos atravs do texto como gerador de material composicional.
Palavras-chave: Ligeti, fontica, voz
Abstract: The work Aventures (1960) for three singers and seven instrumentalists of the Hungarian composer
Gyrgy Ligeti has a peculiar approach of the conceptions textual, vocal and instrumental, due to the use of
phonetic groupings instead of linear text. We intended to in this article, through cutouts of the work, pointing out
the implications of the use of phonemes in vocal writing, and present procedures inherent in the work, allowing
the connection between voice and instruments through the text as a generator of compositional material.
Key-words: Ligeti, phonetics, voice
Introduo
No sculo XX, possibilidades at ento no exploradas em msica so gradativamente
inseridas, sobretudo na msica vocal, que a partir do sprechgesang2 de Arnold Schoenberg, e
de experincias no domnio da poesia e da lingustica, identifica a voz humana como ampla
fonte de experimentao.
Consequentemente, a relao entre texto e msica foi revisitada: a voz, que
tradicionalmente era veculo do texto moldado em uma melodia, manipulada de modo
instrumental.
1 Bacharel em composio musical pela Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG, cursa o mestrado em msica
na UNICAMP sob orientao da Prof. Dra. Denise Hortncia Garcia. bolsista da Fundao de Amparo
Pesquisa do Estado de So Paulo - FAPESP.
2 Ou falado-cantado, indica que o texto deve ser falado de acordo com a trajetria meldica dada, mas com
alturas imprecisas que no se atenham ao sistema temperado.
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Os compositores do sculo XX comeavam a pensar em voz como "apenas mais um
instrumento" capaz de criar uma infinidade de extraordinrias cores, texturas, e
articulaes contrastantes, que eles reorganizaram no domnio das definies do
texto em novas configuraes.3 (MABRY, 2002: 105)
O texto, por sua vez, abordado de diferentes maneiras, seja por desconstruo textual
ou por criao de agrupamentos fonticos que apesar de no possurem significado lxico, so
manipulados por suas qualidades sonoras, tambm conhecidos como slabas nonsense.
A obra Aventures (1962) do compositor hngaro Gyrgy Ligeti (1923-2006) tem
formao para trs vozes (soprano, contralto e bartono) e sete instrumentistas - flauta,
trompa, percusso (faixa de elstico, um livro grande, mvel de madeira, sacola de papel,
mala, tambor, lixa, xilofone e glockenspiel), cravo, piano, violoncelo, contrabaixo e maestro;
sendo uma das principais obras vocais do compositor, que exercer influncia em diferentes
nveis de seus trabalhos futuros como Lux Aeterna (1966) e Le Grand Macabre (1977).
Atravs da descrio de recortes da obra, apontaremos o modo com que o compositor
relaciona os parmetros textual, vocal e instrumental a fim de obter a conexo e fuso entre a
combinao deles.
A abordagem textual
O texto em Aventures baseado em um inventrio fontico criado por Ligeti para a
obra, partindo da ideia de que toda comunicao som.
3 "twenty-century composers began to think of the voice as "just another instrument", capable of creating a
multitude of extraordinary and contrasting colors, textures, and articulations, they reorganized the realm of text
settings into novel configurations".(MABRY, 2002: 105)
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Embora ainda no haja uma extensa literatura sobre a obra, Sabbe4 observa que
"[Ligeti] se permite remodelar o texto selecionado sua prpria maneira - quer se trate de um
texto consagrado como o da liturgia da missa dos mortos, ou de um grande poeta consagrado,
tal qual Hlderlin."5(SABBE, 2004). Assim, o texto consiste na formao de agrupamentos
fonticos, ou seja, na combinao de diversos signos consonantais e voclicos que,
combinados, formam slabas por sua sonoridade, e no por seu significado lxico.
A representao da pronncia desses signos estritamente especificada atravs do
IPA- Alfabeto Fontico Internacional6. Ligeti se utiliza deste meio de representao para
indicar as variadas formas de emisso dos signos consonantais e voclicos, diacrticos e
suprassegmentais7, produo de consoantes por mecanismos de corrente de ar no pulmonar,
glides, e outras particularidades descritas no IPA.
Figuras 1 - Representao de consoantes do Alfabeto fontico Internacional -IPA.
4 SABBE, 2001, pg 301.
5 [Ligeti] se permet d'ailleurs de remodeler les textes choisis, de les modeler sa faon - qu'il s'agisse d'un texte
rituellement consacr tel celui de la liturgie de la messe des morts, ou d'un grand pote consacr tel que
Hlderlin 6 Consiste num sistema de notao fontica baseada no alfabeto latino, capaz de representar caractersticas da
fala oral: fonemas, entonaes, separao de palavras e slabas. 7 signos diacrticos que definem a acentuao das letras (como os acentos grave e agudo) e os signos
suprasegmentais que definem entonao e tonicidade das palavras.
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A assimilao da comunicao sem o uso de texto pertencente a um idioma se d
devido a uma interseco entre agrupamentos fonticos e o plano no verbal - que engloba
interjeies, efeitos auditivos e sons corporais, juntados a estmulos cinticos (ofegncia, sons
gulturais, risadas): conferindo obra caractersticas que a torna "semelhante a peras
compactas em que os trs cantores e sete instrumentistas encenam confrontos dramticos que
no esto vinculados a um enredo ou texto (somente slabas abstratas so
utilizadas)."8(SMALLEY 1970).
Destacamos no nmero 20 de ensaio, uma textura integrada por consoantes
naturalmente vozeadas e desvozeadas e o desvozeamento
artificial de algumas consoantes indicadas atravs do simbolo formando uma camada que,
posteriormente, se interpe a uma melodia pontilhista expandindo-se entre o tutti at o
nmero 28.
Figuras 2 - Textura composta por sons consonantais em Aventures.
8 [aventures] are like compressed operas in which the three singers and seve instrumentalists together enact
dramatic confrontations which are no tied to a definable plot or text )only abstract syllables are used).
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No nmero 38 se inicia a seo denominada como Conversation. Aqui, trs elementos
fonticos se alternam como dilogos entre os cantores: a textura composta por sons
consonantais (discutida acima), morphing9 de vogais, e silabas formadas por signos inerentes
ao inventrio fontico de Ligeti acompanhadas pelo plano no verbal de afetos.
Nesta seo, so estabelecidos dilogos entre as vozes, que se alternam em curtos
perodos de tempo devido a indicaes na partitura que designam a quem ser dirigido o
dilogo, sendo: zum publikum (para o publico), vor sich hin, kontaktlos (para s mesmo, sem
contato), zum bariton, zun sopran, zun alt (para bartono, para soprano, para contralto), fr
sich (para s, quase sempre uma melodia), beiseite (virando-se para o lado).
Figuras 3 - Alternncia em indicaes de dilogo - em verde zum bariton, zun sopran, zun alt, em vermelho zum
publikum, em roxo fr sich
9 mutao gradual de um som para outro.
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Nestes dilogos h as alternncias inerentes ao plano no verbal - representao de
afetos e caractersticas emocionais relacionadas a determinados agrupamentos fonticos, e at
mesmo, indicaes a respeito da emisso vocal para determinados trecho como: mudar a
expresso dos personagens subitamente, voz clara e exagerada ao articular, espantado, como
um sopro, arrogante, elegante, soluando, etc.
Na figura 4 apresentaremos novamente o nmero 41, (analisado na figura 3 no ponto
de vista da direcionalidade dos dilogos), apontando as alternncias de indicaes do plano
no verbal.
Figuras 4 - Alternncia em indicaes do plano no verbal - em laranja arrogante, em verde soluando, em
vermelho muito arrogante, dersdm, em azul claro emisso nasal,em azul escuro com nojo, em cinza soluando
furiosamente, em roxo muito depreciativo, repreender.
Embora no faa uso de um texto pertencente a um idioma determinado, o compositor
questiona em Aventures os limites da comunicao, fazendo uso de agrupamentos fonticos, a
que so conferidos mltiplos significados conectando-os ao plano no verbal.
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Alm disso, os fonemas so utilizados tambm de modo timbrstico, devido
associao de categorias de fonemas aos elementos musicais que os caracterizam. Assim,
consoantes oclusivas como /p,b,t,d/ entre outras, so encadeadas como elementos percussivos;
consoantes fricativas glotais /h, / formam camadas de ofegncias; consoantes nasais /m,n/ e
laterais so utilizadas para sustentao de alturas de longa durao; e as vogais so utilizadas
como agrupamentos fonticos combinadas consoantes, sobretudo, a partir da seo
Conversation.
Abordagem vocal e textual
A voz nesta obra dialoga com as escolhas textuais do compositor. Assim, podemos
identificar elementos compostos pela associao de comportamentos vocais, agrupamentos
fonticos, e parmetros musicais como tessitura e intensidade. importante ressaltar que
quando os elementos so reiterados apresentam os mesmos parmetros.
Figura 5 -Elemento ofegncia. Aventures.
O primeiro elemento vocal apresentado na obra (fig.5) consiste em consoantes
fricativas glotais emitidas pelas vozes por sussurro, interrompidos por respirao ofegante.
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O segundo elemento o cluster formado por vozes na regio grave para soprano,
mdia para contralto e agudo para o bartono. As vozes emitem consoantes nasais garantindo
a sustentao das notas de longa durao. Podemos identificar na figura 6 a combinao entre
o cluster vocal e o elemento de respirao ofegante.
Figura 6 -Combinao entre elementos ofegncia e cluster
Como recurso cnico inerente ao plano no verbal e ao mesmo tempo timbrstico, a
indicao mit mundstellung u produz alternncias da posio da boca enquanto se emite a
vogal requerida, no caso [u] atravs dos seguintes afetos: tosse, risada, choro, ranger, gemido,
tremulo, e respirao ofegante intensa. Os afetos so indicados pelos algarismos 1,2,3,4,5,6,7,
e reorganizados em ordem diferente pelos algarismos I, II, III, IV, V, VI, VII10
.
10
choro, tremulo, tosse, ranger, risada, gemido e respirao ofegante intensa.
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Figura 7 - Caractersticas do plano no verbal indicados por algarismos.
Na figura 8 podemos identificar trs elementos recorrentes na obra: o elemento
identificado pela cor roxa composto por consoantes oclusivas sussurradas pelos cantores;
em azul h uma nota de longa durao na regio grave, que foneticamente alterna vogais por
morphing, so ordenadas de orais para nasais; e em verde, consoantes plosivas e vogais orais
associam-se melodia composta por saltos explorando as extremidades das vozes.
Figura 8 - Trs elementos vocais e fonmicos
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Relaes entre texto, vozes e instrumentos
O compositor prope correspondncias entre instrumentos e vozes atravs da
combinao e resignificao de elementos caractersticos dos domnios textual, vocal e
instrumental do seguinte modo:
O texto desprovido de sua funo tradicional, e em lugar de poesia ou
narrao linear, composto por agrupamentos fonticos de grande valor
timbrstico, mas sem significado lxico.
A voz, desprovida de uma linha meldica para a conduo do texto,
explorada em toda sua tessitura e registros (voz de cabea, voz falada,
sussurros) sendo-lhe requerida diversificadas formas de emisso e o domnio
do IPA. Alm disso, o plano no verbal est presente na obra por finalidades
timbrsticas e cnicas.
Os instrumentos no acompanham, mas, complementam as texturas
sustentadas pelas vozes estabelecendo relaes de conexo e fuso de timbres e
tornam-se personagens do discurso.
Com isso podemos observar que o timbre o principal parmetro de variao,
conexo e fuso entre os domnios textual, vocal e instrumental. Para tanto, o compositor
expe elementos (comuns s vozes e instrumentos) organizando-os por camadas que se
sobrepem ao longo da obra.
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Figura 9 - Camadas sobrepostas
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O trabalho por camadas se d desde o incio da obra, predominantemente pela
sobreposio de duas camadas, que se distribuem entre vozes e instrumentos sem relao de
oposio. Deste modo, podemos identificar no nmero 108 quatro camadas sobrepostas que
se diluem entre vozes e instrumentos: em azul escuro h uma escala cromtica entre as vozes
sustentadas por ataques curtos em sforzando nos instrumentos; em verde, vermelho e roxo h
uma recapitulao dos dilogos apresentados na seo Conversation (fig.4), e em azul claro
uma nova camada composta por notas de longa durao apresentada pelos instrumentos de
percusso.
Consideraes Finais
Devido a nosso interesse estrito pelas tcnicas composicionais inerentes a voz e a
fontica, no foram discutidos: a abordagem instrumental, bem como, o uso da extensa gama
de afetos e das vrias indicaes de palco descritas na obra, que caracterizam a anti-pera -
proposta pelo compositor.
No entanto, atravs desta breve descrio foi possvel apresentar o uso de
agrupamentos fonticos como alternativa o texto em obras vocais, e alm disso, as
implicaes do texto por fonemas para a obteno de recursos timbrsticos para conexo de
timbres vocais e instrumentais, tornando-os por vezes indivisveis na escuta.
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Referncias Bibliogrficas
CRISTFARO. T. Fontica e Fonologia do Portugus. 10a Edio. So Paulo: Contexto,
2012.
LIGETI, G. Aventures. Para trs cantores e sete instrumentistas. Editora C.F. Peters,
Frankfurt, 1962.
MABRY, S. Exploring Twentieth - Century vocal music. A practical Guide to innovations in
performance and repertoire. New York: Oxford University Press, 2002.
MITCHELL, D. An Analysis of Gyorg Ligeti's Aventures and Nouvelles Aventures.
Disponvel em http://www.mitchellmusicguitar.com/Articles/An%20Analysis%20of%20
Aventures%20and%20Nouvelles%20Aventures.pdf. Acessado em 31/05/2013.
ROIG-FRANCOL, M. Harmonic and Formal Process in Ligeti's Net-Structure Compositions.
Music Theory Spectrum, vol 17, n 2. 1995, pg 242-267.
SABBE, H. Musique de la voix chez Ligeti: sens et signifiance. Revue belge de Musicologie,
vol. 58, Belgica, 2004. pg 301-305.
SMALLEY, R. Aventures, Nouvelles Aventures;Atmosphres; Volumia by Gyrgy Ligeti.
The musical times, vol. 11, n 1524, 1970.