texto módulo 1 - a defensoria pública e o acesso à justiça (2015)

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Curso de mediação para membros da defensoria pública

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  • Mdulo I | A Defensoria Pblica e o Direito ao Acesso Justia

    Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

    SECRETARIA DE REFORMA DO JUDICIRIO - MINISTRIO DA JUSTIA

    Ministro de Estado da JustiaJos Eduardo Cardozo

    Secretrio de Reforma do Judicirio - InterinoMarcelo Veiga

    Diretor do Departamento de Poltica JudiciriaMarcelo Veiga

    Chefe de GabineteLeandro Augusto de Aguiar Barbosa

    Coordenador-Geral da ENAMIgor Lima Goettenauer de Oliveira

    ORGANIZAOCentro de Educao a Distncia da Universidade de Braslia CEAD/UnB

    REALIZAOEscola Nacional de Mediao e Conciliao ENAM

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    ReitorIvan Marques de Toledo Camargo

    Vice-ReitoraSnia Nair Bo

    FICHA DE PRODUOCENTRO DE EDUCAO A DISTNCIA-UNB

    DiretoraWilsa Maria Ramos

    Coordenao do CursoPaula Regina de Oliveira RibeiroCoordenadora da Unidade de PedagogiaSimone Bordallo de Oliveira EscalanteGestora Pedaggica do CursoJoeanne Neves Fraz

  • Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

    Mdulo I | A Defensoria Pblica e o Direito ao Acesso Justia

    Apoio ao Ncleo de PedagogiaKarla Cristina de AlmeidaKerley Gadelha Martins

    Secretaria do CursoJuclia Ancelma de Souza

    Gerente do Ncleo de Produo de Materiais Didticos e ComunicaoJitone Lenidas Soares

    Designer InstrucionalArthur Colao Pires de Andrade

    IlustraoDaniel Sihler

    Web DesignerGabriel Cavalcanti

    Designer grfico e animador 2DCristiano Alves de Oliveira

    Projeto Grfico e DiagramaoDaniel Tavares

    Gerentes do Ncleo de TecnologiaWesley Gongora

    Gesto Ambiente Virtual de AprendizagemWilson SantanaMrcia Veiga de Leite Ribeiro Melo

    Desenvolvimento WebJoo Paulo Andrade LimaJoo Vincius Fernandes Oliveira

    Revisora de textoConsuelo Martins Csar Corde

  • Sumrio

    Objetivos ................................................................................................................................7

    Introduo.............................................................................................................................7

    O Direito de Acesso Justia ......................................................................................... 11

    1. Introduo ........................................................................................................................ 11

    2. A Evoluo Histrica da Problemtica do Acesso Justia ............................. 12

    3. A Defensoria Pblica no Estado Democrtico de Direito ..................................17

    4. O Movimento de Acesso Justia: da Justia Gratuita ao Sistema da Assistncia Jurdica Integral.............................................20

    5. O Protagonismo da Defensoria Pblica no Estado Democrtico de Direito ...................................................................................................23

    6. A Ampliao da Legitimao Social da Defensoria Pblica uma Instituio do Povo e para o Povo ................................................25

    7. O Assistido da Defensoria Pblica: a (Re)Significao dos Conceitos de Hipossuficincia e Necessidade por Meio da Dimenso Existencial e Normativa dos Termos ...........................................................................28

    8. A Legitimao da Defensoria Pblica em sua Misso de Acesso Justia: a Eroso dos Filtros Subjetivos e a Legitimao pela Defesa de Valores ....................................................................................................34

    9. A Hora e a Vez dos Meios Alternativos de Soluo de Conflitos ................... 36

  • O Papel da Defensoria Pblica na Garantia de Acesso Justia .................... 39

    1. Da Crise do Poder Judicirio e a Defensoria Pblica ......................................... 39

    2. A Prioridade da Opo pela Extrajudicialidade ................................................ 41

    3. A Defensoria Pblica e os Meios Alternativos de Resoluo dos Conflitos ............................................................................................ 45

    4. Exemplos de Experincia da Defensoria Pblica na Resoluo Extrajudicial de Conflitos.....................................................................50

  • Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

    Mdulo I | A Defensoria Pblica e o Direito ao Acesso Justia 7

    Objetivos

    Ao fim deste mdulo esperamos que voc seja capaz de:

    Conhecer a evoluo histrica de acesso justia, centrada nas diferentes vises de Estado nascidas aps a Revoluo Francesa

    Conhecer o papel, a misso e o protagonismo; da Defensoria Pblica no Estado Democrtico de Direito e no acesso justia;

    Identificar o assistido da Defensoria Pblica; Identificar os meios alternativos de resoluo de conflitos e a relao

    estabelecida com a Defensoria Pblica.

    Introduo

    Desde o fim dos anos 90, o problema da demora na prestao judicial e do acesso justia vem ganhando destaque no Brasil. No fim daquela dcada, o Banco Mundial publicou um relatrio que listava algumas das maiores dificuldades do Judicirio em pases da Amrica Latina, entre os quais o Brasil: longa durao e excesso de processos judiciais, dificuldade de acesso ao Judicirio, desconfiana da populao na Justia e falta de previsibilidade e transparncia nos julgamentos1. Embora recebido com ressalvas quando de sua publicao, o diagnstico apresentado no Relatrio ainda hoje no est distante da realidade do Poder Judicirio. De acordo com o Relatrio Justia em Nmeros, de 2012, do Conselho Nacional de Justia, existem hoje, aproximadamente, 92 milhes de processos em trmite no Poder Judicirio, quase um processo para cada dupla de brasileiros. Destes, 64 milhes so casos antigos e 28 milhes casos novos. Os dados tambm revelam que, embora o Poder Judicirio esteja cada vez maior em nmero de juzes e servidores, a velocidade do ingresso de novos processos maior do que o sentenciamento e do que a baixa dos processos em tramitao, resultando em alta taxa de congestionamento na maioria dos tribunais.2

    1. M. Dakolias, The Judicial Sector in Latin America and the Caribbean: Elements for Reform. World Bank Technical Paper 319/96. In: .2. Justia em nmeros 2013: ano-base 2012. Conselho Nacional de Justia. Braslia: CNJ, 2013. Braslia, 2013. In: .

  • Mdulo I | A Defensoria Pblica e o Direito ao Acesso Justia

    Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

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    Em 2013, o ndice de Confiana na Justia Brasileira (ICJBrasil) confirmou que a situao, pelo menos na percepo do cidado, continua negativa: os dados do segundo semestre de 2013 revelaram que, para 90% dos entrevistados, o Judicirio moroso, e 82% consideram que os custos para acessar o Judicirio so altos ou muito altos.3

    Resta evidente, portanto, que o problema do Judicirio existe e exige polticas de garantia do acesso justia, entendido em sentido amplo, como garantia que vai alm do mero ingresso no Poder Judicirio. E, embora o cenrio atual possa ser consequncia de fatores positivos, j que o aumento na demanda correspondeu a uma ampliao dos direitos dos cidados, dentre eles, o direito de acesso justia no perodo ps-Constituio de 1988, ficou claro com o passar dos anos que uma soluo para o problema s ser encontrada com a criao de alternativas adjudicao, dentre outras medidas.

    Tal diagnstico consta do Relatrio do Banco Mundial, que sugeria o uso dos Meios Alternativos de Resoluo de Conflitos, j bem conhecidos na Europa e nos Estados Unidos, nos sistemas judiciais da Amrica Latina. Da o incentivo para a introduo da Arbitragem no Brasil, de incio recebida com crticas, especialmente de parcela do Judicirio que via com ressalvas uma suposta intromisso de investidores estrangeiros no pas, a quem interessaria a privatizao da Justia.4

    FIQUE DE OLHO

    Passados quase 20 anos, no s a Arbitragem se firmou no Brasil como um eficiente mecanismo de resoluo de conflitos, especialmente na rea comercial, mas outras iniciativas foram tomadas para incentivar o uso de mtodos autocompositivos para resoluo de disputas, tais como a mediao. Alm disso, h que se destacar, ainda, a promulgao da Emenda Constitucional n. 45, conhecida pela Reforma do Judicirio e a criao do Conselho Nacional de Justia. Na questo da ampliao ao acesso justia, nenhuma poltica teve mais importncia do que a criao da Defensoria Pblica, que possibilitou o acesso dos cidados ao Judicirio.

    No mbito do Executivo, foi criada, em 2003, a Secretaria da Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia (SRJ), com o objetivo de elaborar e executar polticas pblicas para a melhoria do acesso justia. No ano seguinte, os representantes dos trs Poderes

    3. ndice de Confiana na Justia Brasileira. Relatrio do 2 Semestre de 2013. FGV. p. 23. In: .4. A este respeito, ver E. Silva da Silva, Meios Alternativos de Acesso Justia: Fundamentos para uma Teoria Geral (2007) 10 mbito Jurdico 44 e H. Melo Filho, A Reforma do Poder Judicirio Brasileiro: Motivaes, Quadro Atual e Perspectivas (2003) 21 CEJ 79-86.

  • Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

    Mdulo I | A Defensoria Pblica e o Direito ao Acesso Justia 9

    assinaram o I Pacto Republicano por um Judicirio mais rpido e republicano e, em 2009, o II Pacto Republicano, por um sistema de justia mais acessvel, gil e efetivo.5 Em 2012, foi criada a Escola Nacional de Mediao e Conciliao (ENAM), resultado de uma parceria entre a SRJ e o Conselho Nacional de Justia (CNJ), cujo objetivo principal disseminar as tcnicas de resoluo extrajudicial de conflitos, capacitar e aperfeioar os operadores do direito, estudantes do direito e professores, agentes de mediao comunitria, servidores do Ministrio da Justia, bem como membros de outros rgos, entidades ou instituies em que as tcnicas de autocomposio sejam pertinentes para a sua atividade.6

    Em paralelo, so dignos de meno os esforos empreendidos pelo Legislativo para estimular o uso de meios alternativos de resoluo de litgios. Em 1998, a Deputada Zulai Cobra apresentou o primeiro Projeto de Lei para regulamentar o uso da mediao no Brasil, o PL 4.827/98 e, em 2002, o Senador Pedro Simon apresentou o PLS 94/02 como substitutivo quele projeto. Tendo em vista o tempo em que o projeto ficou sem tramitao no Congresso, o Senador Ricardo Ferrao apresentou um novo texto, em 2011, o PLS 517/11. Finalmente, em 2013, dois grupos de trabalho criados para discutir um marco legal atualizado para a Mediao entregaram ao Senado Federal os Projetos de Lei 405/13 e 434/13, que serviram como base para um substitutivo ao PL 517/11, aprovado no fim daquele ano e enviado para a Cmara dos Deputados sob o nmero 4.169/14, no incio de 2014.

    O projeto de mediao ora em discusso, que tem como objeto a institucionalizao da mediao judicial, extrajudicial e nos casos em que figure como parte a Administrao Pblica, pretende estimular e ampliar a prtica da resoluo consensual de conflitos j existente no pas. Valorizaram-se, em contraste com o rigor do processo judicial, os princpios da oralidade, da informalidade, da autonomia da vontade das partes, do consensualismo, da igualdade das partes e de seu poder decisrio. O objetivo principal tornar a mediao acessvel a qualquer cidado, evitando-se a excessiva burocratizao de seus procedimentos. O projeto harmoniza-se com a proposta do Novo Cdigo de Processo Civil (Lei n. 13.105 de 16 de maro de 2015), que introduz a mediao judicial como alternativa para a resoluo de disputas no mbito do Judicirio.

    notvel, portanto, o movimento conjunto dos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio para atender os anseios da sociedade por mudanas no sistema judicial brasileiro e na cultura do litgio que ainda predomina no Brasil. Algumas frentes de ao merecem destaque:

    (a) a preveno do litgio por meio de polticas que garantam uma melhor prestao de servio populao, por parte das empresas que hoje representam um dos polos na maioria dos processos judiciais;

    5. Disponvel em: .6. Portaria do Ministrio da Justia 1.920/2012.

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    Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

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    (b) a promoo de alternativas ao Judicirio para resoluo de litgios, com nfase no uso de tcnicas autocompositivas como a mediao, a conciliao e a negociao entre a populao;

    (c) a capacitao de profissionais que possam atuar como mediadores extrajudiciais, judiciais e no mbito da Administrao Pblica.

    O Ministrio da Justia tem trabalhado na elaborao e execuo de polticas que contemplem essas reas. Em relao capacitao de mediadores, tal trabalho tem sido realizado pela ENAM, com a promoo de cursos presenciais e a distncia para prepostos de empresas; de mediao bsica para servidores do judicirio; para mediadores comunitrios; para servidores do Ministrio Pblico e, agora, para servidores e membros da Defensoria Pblica. Trata-se de uma iniciativa que pretende oferecer aos servidores da Defensoria Pblica e Defensores Pblicos ferramentas para estimular a autocomposio de litgios entre seus assistidos.

    A atuao da Defensoria Pblica considerada, neste sentido, fundamental para a promoo da cultura de paz e para a educao da populao que, de outras formas, no teria acesso aos servios de mediao. A produo deste curso, escrito por membros da Defensoria Pblica, com o apoio do Conselho Nacional de Defensores Pblicos CONDEGE, , portanto, parte integrante da poltica de promoo dos meios alternativos de resoluo de disputas que, quando utilizados de forma adequada, podem ajudar a acabar com o ciclo vicioso mais demandas, maior demora na prestao jurisdicional, maior taxa de congestionamento, mais insatisfao, e, o que mais importante, ensinar as pessoas a lidarem com o conflito e a construrem solues consensuadas. Trata-se, portanto, de muito mais do que uma iniciativa visando reduo de litgios: o que se deseja uma verdadeira mudana de mentalidade, que traga maior satisfao aos cidados, algo que as pesquisas reiteradamente associam ao processo de mediao.

    Assim, o curso Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica aborda o papel da Defensoria Pblica na mudana de cultura e ampliao do acesso justia, bem como apresenta, de forma sucinta, ferramentas e tcnicas de mediao e negociao. Espera-se, com este trabalho, contribuir para a capacitao dos diversos profissionais da Defensoria Pblica e, ainda, despertar o entusiasmo e o interesse em um tema atual e relevante para a sociedade como um todo.

  • Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

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    O Direito de Acesso Justia7

    1. Introduo

    Conflitos pessoais reverberam na sociedade e as Instituies de Estado captam isso em diversos momentos de sua evoluo. O contato pode se dar no incio ou quando a disputa j passou por diversas instncias da sociedade (pessoal e familiar) ou do prprio Estado (polcia, Defensoria, Judicirio etc.). Contudo, se a chegada da demanda ao sistema estatal pode ser uma demonstrao de incapacidade do cidado na soluo de seus prprios problemas, o Estado recorrer primariamente ao Poder Judicirio certamente tambm uma forma de incapacidade na gesto dos servios pblicos, os quais devem estar voltados, sempre que possvel, ao exame do conflito originrio e devoluo do poder de deciso s pessoas em conflito, como propem os processos de mediao.

    Analisar os meios extrajudiciais de resoluo de conflitos implica falar, necessariamente, da garantia fundamental do acesso justia, prevista no artigo 5, inciso LXXIV, da CRFB/88, o que torna necessria a contextualizao do papel da Defensoria Pblica no processo de estabelecimento dos meios alternativos soluo judicial dos conflitos sociais. Esta vinculao temtica decorre no apenas do fato de que a Instituio foi criada constitucionalmente para a concretizao da garantia do acesso justia, mas tambm porque nasceu vocacionada para este mister, como demonstra o imperativo legal de suas atribuies, previstas no artigo 4, inciso II, da Lei Complementar 80/94 (com a redao dada pela LC 132/09), in verbis:

    Art. 4 So funes institucionais da Defensoria Pblica, dentre outras:

    II promover, prioritariamente, a soluo extrajudicial dos litgios, visando composio entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediao, conciliao, arbitragem e demais tcnicas de composio e administrao de conflitos (...)

    Esta norma uma decorrncia lgica do sistema da assistncia integral previsto constitucionalmente, sendo natural a atuao do Defensor Pblico na condio de mediador. Contudo, a consecuo da tarefa aqui proposta, de alcanar um paradigma favorvel ao uso da mediao pelos Defensores Pblicos, importar na desconstruo de alguns dos preconceitos que permeiam o discurso jurdico, principalmente acerca das possibilidades e dos limites de atuao da Defensoria Pblica.

    Nesse vis, procurar-se- apresentar um curso cujas lies visam exatamente a discutir e readequar a viso do papel do Defensor Pblico e de suas incumbncias enquanto

    7. Captulo elaborado por Felipe Kirchner e Rafael Vinheiro Monteiro Barbosa.

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    Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

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    agente poltico inserto em uma Instituio autnoma de Estado, da forma de realizao da garantia do acesso justia e da cultura da litigncia que assola nosso pas, derivada da forma pela qual o direito apreendido e realizado, ainda matizado quase que exclusivamente pelo vis de soluo adversativa dos conflitos socioeconmicos que chegam ao sistema de justia.

    2. A Evoluo Histrica da Problemtica do Acesso Justia

    Adentrando a problemtica em exame, inicialmente cumpre tecer breves consideraes acerca do posicionamento histrico do problema do acesso justia, a fim de que se perceba a atualidade do tema e sua interseco com a busca pela facilitao do uso de meios extrajudiciais de resoluo de conflitos, como a mediao.

    Declarao de Direitos do Homem e do Cidado

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    Em um recorte histrico centrado nas diferentes vises de Estado nascidas aps a Revoluo Francesa j sob o signo do Direito Contemporneo, matizado pela influncia dos pensamentos liberal e cartesiano e pela evoluo da massificao e da despersonificao, traos marcantes das relaes socioeconmicas no sistema capitalista , pode-se analisar que, no Estado Liberal, o protagonismo das aes estava com o Poder Legislativo, na condio de responsvel pela concretizao dos atributos inerentes ao regime democrtico, por meio da previso de direitos ainda inexistentes.

    FIQUE DE OLHO

    Parte desta tarefa estava em incluir diversos sujeitos de direitos que no se encontravam reconhecidos no ordenamento, mas que passaram a titularizar direitos em razo da clusula da isonomia, que em sua dimenso formal apregoou a igualdade de todos perante a lei.

    Esta nova realidade normativa conduz a duas interessantes questes. Primeiro que a igualdade e a incluso no eram problemas a serem enfrentados juridicamente, pois nos perodos histricos anteriores de nossa famlia romano-germnica (direito romano, medieval e moderno) a desigualdade era pressuposto do sistema, e no algo a ser combatido. A segunda que a incluso normativa da igualdade formal (responsvel pela incluso de diversos sujeitos na esfera de proteo jurdica) trouxe consigo a desvantagem de abstrao do sujeito de direitos, categoria que passou a ser constituda silogstica e dedutivamente (a noo de pessoa e de sujeito de direitos atreladas, respectivamente, aos institutos da personalidade jurdica e da capacidade civil, previstas nos artigos 2 e 5 do Cdigo Civil), e no topicamente como at ento, em que as circunstancialidades da pessoa influenciavam na atribuio de capacidade (raciocnio fundado no princpio do particularismo, representativo do status do indivduo na sociedade).

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    FIQUE DE OLHO

    Contudo, hoje se observa um retorno anlise tpica, com a adoo do paradigma da igualdade material, do que so exemplos os diversos diplomas legais protetivos das vulnerabilidades sociais e organizacionais (v.g. Estatuto do Idoso, Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei Maria da Penha, Cdigo do Consumidor etc.). Assim, embora todos sejam iguais, alguns so tratados de forma diferenciada pelo sistema jurdico, tendo em vista as supramencionadas vicissitudes individuais.

    Sobre o processo narrativo que culminou na abstrao da noo jurdica de pessoa: MARTINS-COSTA, Capacidade para Consentir e Esterilizao de Mulheres Tornadas Incapazes pelo Uso de Drogas: notas para uma aproximao entre a tcnica jurdica e a reflexo biotica. In: MARTINS-COSTA, Judith; MLLER, Letcia Ludwig (Org.). Biotica e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, pp. 299-346, 2009.

    Como ao Estado cabia apenas garantir a titularidade formal dos direitos, o acesso justia no se apresentava como sendo uma problemtica significativa. J no perodo do Estado Social ganha prevalncia a atuao do Poder Executivo, uma vez que a sociedade passou a exigir medidas concretas do governo para a concretizao dos direitos sociais j positivados nas cartas constitucionais (ex. sade, educao, trabalho, lazer, moradia, segurana etc.). No entanto, no contexto de um Estado Democrtico de Direito, o protagonismo se volta ao Poder Judicirio e, consequentemente, s Instituies autnomas que compem o sistema de justia, como o caso da Defensoria Pblica.

    FIQUE DE OLHO

    Importante mencionar que, juntamente com a Defensoria Pblica, ocupa a condio de essencialidade administrao da justia a atividade do Ministrio Pblico (artigo 127), da Advocacia Privada (artigo 133) e da Advocacia Pblica, ainda que sem a expressa referncia nos artigos 131 e 132 da Constituio Federal.

    A razo desta virada centra-se na insuficincia das polticas pblicas e na insero da realizao de uma justia substantiva no contedo normativo teleolgico dos textos constitucionais, do que um timo exemplo o vis programtico da Carta Magna de 1988 que, sem sombra de dvidas, agregou ao discurso poltico (e jurdico) um componente revolucionrio de transformao do status quo nacional (artigos 1 e 3 da CRFB/88), o que se coaduna com o carter naturalmente ideolgico da atuao da Defensoria Pblica.

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    Essas circunstncias levaram os Poderes e as Instituies ligadas administrao da justia a desempenharem um papel atuante na concretizao das polticas pblicas, o que encurtou severamente as fronteiras entre a Poltica e o Direito, redundando no que foi chamado de movimento de judicializao da poltica (deslocamento do centro de deciso dos Poderes Legislativo e Executivo para o plano da jurisdio constitucional). Como a jurisdio assume o papel de efetivadora do estado de bem-estar social (tem direitos efetivos apenas quem consegue acessar a justia), a questo do acesso realizao de direitos torna-se importante para a caracterizao de uma verdadeira democracia, ganhando enorme relevncia.

    Assim, a partir da segunda metade do sculo XX, a questo central do Direito se deslocou da preocupao com a efetivao de direitos para a efetividade da tutela prestada pelo Estado,8 a partir do que o Direito passou a ser visto no mais pela tica dos seus produtores, mas sim pela perspectiva dos consumidores dos servios jurisdicionais, principalmente dos necessitados, que necessitam da ordem constituda para alcanar um status de cidadania digno.

    FIQUE DE OLHO

    Uma atuao voltada a concretizar o acesso justia, a proteger os interesses individuais e coletivos e a buscar a efetividade da tutela jurisdicional tem pautado a atuao da Defensoria Pblica, em todo o Brasil, que trata desta temtica como sendo de fundamental importncia. Nesse contexto, a garantia fundamental do acesso justia ganha contornos mais abrangentes.

    8. BOBBIO, Norberto. In: A Era do Direito. Rio de Janeiro: Campos, 1992, pp. 24-25.

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    SAIBA MAIS

    No que concerne dificuldade dos necessitados em acessarem a jurisdio, Boaventura dos Santos Sousa refere que as populaes de baixa renda hesitam mais que as classes economicamente abastadas em recorrer aos tribunais.

    As razes apontadas pelo socilogo portugus so a desconfiana em relao aos servios advocatcios que eram prestados por profissionais com pouca experincia e mal remunerados (fator superado com o recente processo de estruturao das Defensorias Pblicas no Brasil), uma situao generalizada de dependncia e insegurana que produz o temor de represlias ao ato de recorrer-se aos tribunais (algo muito comum no Brasil, no que concerne Justia Trabalhista, em que os empregados possuem o temor de no mais conseguirem emprego aps processarem seus antigos empregadores) e o fato de que o reconhecimento do problema como jurdico e o desejo de recorrer aos tribunais para resolv-lo no seriam suficientes para que a iniciativa de fato seja tomada.

    Fonte: SOUSA, Boaventura dos Santos. In: Pela Mo de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade. Porto: Afrontamento, 1994.

    Como se sabe, esse valor constitucional possui dois significados:

    O primeiro, mais restrito, entende o acesso ao Poder Judicirio como sendo a garantia constitucional de que a lei no excluir da apreciao do judicirio leso ou ameaa de direito (artigo 5, XXXV).

    J o segundo, mais amplo e abrangente, entende o acesso justia como o alcance e concretizao de uma determinada ordem de valores constitucionais e fundamentais, paradigma adotado pelas Defensorias Pblicas.

    Nessa perspectiva, o acesso justia visa a incluir o cidado que est margem do sistema e, sob o prisma da autocomposio, estimular, difundir e educar o assistido a melhor resolver conflitos por meio de aes comunicativas, ciente de que a garantia constitucional abrange no apenas a preveno e reparao de direitos, mas a realizao de solues negociadas e o fomento da mobilizao da sociedade para que possa participar ativamente tanto dos procedimentos de resoluo de disputas como de seus resultados.

    Assim, a problemtica ora em exame no se restringe ao acesso, mas tambm efetividade da justia, abarcando no apenas o mencionado acesso do cidado ao sistema de justia, mas tambm (e, qui, principalmente) a qualidade material e temporal de sada deste sistema (o que engloba questes como a durao razovel dos procedimentos e processos, a efetividade das tutelas etc.). especialmente em razo deste entendimento que a Defensoria Pblica vem privilegiando a via da resoluo extrajudicial dos conflitos sociais que chegam s suas portas.

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    3. A Defensoria Pblica no Estado Democrtico de Direito

    A colocao do Estado Brasileiro como um Estado Democrtico de Direito h, necessariamente, de trazer consequncias. Uma delas e talvez a mais importante a de que o Estado, no seu agir interno e externo para com outros estados e, igualmente, diante dos seus cidados, no pode deixar de se conduzir democraticamente e com fundamento na lei.

    Todavia, parece impossvel se pensar em democracia e, como consequncia, em Estado de Direito, quando a maioria esmagadora da populao se encontra alijada dos mais elementares direitos.9 Foroso reconhecer que de nada adianta a Constituio proclamar, em seu art. 1, que a Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito, quando esse prprio Estado no permite parcela significativa da nao o acesso aos seus direitos, nem s tcnicas e aos mecanismos de proteo disponveis para a sua defesa.

    O enredo fica ainda mais comovente quando se constata que, no Brasil, ainda se convive com o problema da pobreza absoluta privao material absoluta, que impede o acesso das pessoas afetadas aos bens necessrios subsistncia e, em maior medida, com a pobreza relativa (ou iniquidade excessiva) diferenas socioeconmicas excessivas e reais entre as camadas sociais da nao. Como os demais pases latino-americanos, o Brasil no foge a esta regra. Convive-se numa sociedade de classes minuciosamente esquadrinhadas, cujo smbolo da pirmide reflete a desigual diviso das riquezas.

    Por tal motivo, diante do quadro de pobreza e excluso social vivenciados na atualidade, a afirmao genrica efetuada no mesmo dispositivo pelo constituinte, de que a Repblica Federativa do Brasil tem como fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, tambm no se apresenta como uma soluo eficaz para o problema da pobreza e da substancial privao de direitos.

    O Estado apenas se desincumbir de tais obrigaes quando o acesso aos direitos fundamentais e bsicos, como vida, liberdade, sade, educao, ao lazer e propriedade no ficarem restritos a um pequeno grupo de afortunados. Assim, enquanto os objetivos fundamentais do Estado, de erradicao da pobreza e da marginalizao, no forem plenamente alcanados, aniquilando-se de uma vez por todas a pobreza absoluta,

    9. Como sabemos, el mundo en que vivimos se caracteriza por marcadas desigualdades socioeconmicas al interior de los diferentes pases en que la poblacin mundial se encuentra distribuida, as como entre cada uno de ellos. De hecho, segn estudios recientes, desde el aceleramiento de la denominada globalizacin de la economa, las desigualdades socioeconmicas han aumentado en ambos casos. COUSO, Javier A. Indigencia, inequidad y democracia: las limitaciones del argumento libertario. In: Derecho y pobreza. SABA, Roberto (Org.). Ciudad Autnoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 31.

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    Fundamentos da Mediao para a Defensoria Pblica

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    cumpre aos poderes constitudos promover, a todo custo, a reduo das desigualdades sociais (pobreza relativa).

    Contudo, a prpria Constituio, quando diante do desrespeito a tais direitos, principalmente quando a agresso parte da camada opressora (mais abastada) ou do prprio Estado onipotente, remete aquele que foi ofendido s vias judiciais. A norma constitucional garante, j na seara judicial, o contraditrio, a ampla defesa, o juiz natural, o devido processo legal; porm, o cidado desprovido de recursos, por no contar com uma defesa tcnica de qualidade, j que advocacia privada implica custos elevados, no conseguir fazer valer tais garantias, o que significa, de certo modo, verdadeira dupla insuficincia de proteo.

    Para remediar essa realidade incontestvel, dispe a Constituio que o Estado prestar assistncia jurdica integral e gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos (art. 5, inciso LXXIV). O Estado prestacional, aqui, sobressai. No se limitando a garantir o devido processo legal, com os seus consectrios naturais (ampla defesa, contraditrio, proibio de prova ilcita, juiz natural etc.), o Estado tem igualmente o dever de prestar assistncia jurdica integral e gratuita,10 sendo esta, portanto, direito do cidado desprovido de recursos financeiros suficientes. Recai, quanto ao dever de prestar assistncia jurdica aos carentes, um correspondente dever de proteo estatal, que o Poder Judicirio e o Ministrio Pblico, sozinhos, no teriam condies nem poderiam realizar plenamente, muito menos de modo suficiente e eficaz, e o passado recente j demonstrou isso.

    FIQUE DE OLHO

    A assistncia jurdica integral e gratuita, que traz a reboque o fortalecimento e o respeito legalidade, democracia, dignidade da pessoa humana e aos demais direitos fundamentais e bsicos, demanda uma proteo positiva do Estado, que, sem o solipsismo, significa o direito a uma ao positiva do Estado. insuficiente, portanto, considerar o dever de assistncia jurdica um direito negativo, ou seja, cuja proteo se limita a expurgar as intervenes dos Poderes Pblicos, uma vez que no se trata de um direito de defesa do cidado contra o Estado, direitos a uma ao negativa (absteno).

    10. Sempre defendeu Pontes de Miranda que no h direito sem dever, nem dever sem direito (Tratado de direito privado Parte especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971. p. 18. Tomo XXII.). No mesmo sentido, porm visto pelo ngulo inverso: Se o titular do direito fundamental a tem um direito em face do Estado (s) a que o Estado realize a ao positiva h, ento, o Estado tem, em relao a a, o dever de realizar h. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2008. p. 445.

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    A teoria da proibio de insuficincia (Unterma verbotstheorie), cunhada por Claus-Wilhelm Canaris e originria do direito alemo, estatui que a obrigao de proteo dos direitos fundamentais (gundrechtliche Schutzpflichte) impe ao Estado o dever de editar as regras e tcnicas aptas a garantir a sua eficcia mnima. Sendo assim, passou a ser nus do Estado viabilizar populao desprovida de recursos a garantia de acesso Justia, impedindo que a insuficincia financeira se transforme num bice intransponvel ao cidado carente.

    A escolha de uma instituio capaz de cumprir com tal mister levou o legislador constitucional a criar a Defensoria Pblica, dotando-a de autonomia funcional e administrativa e concedendo-lhe iniciativa da sua proposta oramentria (art. 134, 2, CF). Determinou, ainda, que o seu regime jurdico, no mbito federal e estadual, ficasse a cargo de lei complementar, assegurando aos seus membros, aprovados em concurso de provas e ttulos, a garantia da inamovibilidade e vedando o exerccio da advocacia fora das atribuies institucionais (art. 134, 1, CF).

    Alocou, o legislador maior, a Defensoria Pblica no grupo das instituies permanentes e essenciais funo jurisdicional do Estado, de modo a vaticinar a sua imprescindibilidade e o relevante papel que deve desempenhar no Estado Democrtico de Direito. No sem razo que o Supremo Tribunal Federal considera o Defensor Pblico um agente de concretizao do acesso dos necessitados ordem jurdica.

    Pode-se extrair da ementa do julgado mencionado (ADI n 2.903/PB) que a

    Defensoria Pblica, como instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretizao dos direitos e das liberdades de que so titulares as pessoas carentes e necessitadas. por essa razo que a Defensoria Pblica no pode (e no deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Pblico, pois a proteo jurisdicional de milhes de pessoas carentes e desassistidas , que sofrem inaceitvel processo de excluso jurdica e social, depende da adequada organizao e da efetiva institucionalizao desse rgo do Estado.

    Continua o Min. Celso de Mello afirmando que:

    [d]e nada valero os direitos e de nenhum significado revestir-se-o as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam alm de desrespeitados pelo Poder Pblico ou transgredidos por particulares tambm deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pblica, cuja funo precpua, por efeito de sua prpria vocao constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expresso concreta, inclusive mediante acesso do lesado jurisdio do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que so as reais

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    destinatrias tanto da norma inscrita no art. 5, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituio da Repblica (...).

    FIQUE DE OLHO

    O entendimento de que o art. 5 da Constituio Federal, ao tratar da prestao, pelo Estado, de assistncia jurdica integral e gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos, apresenta-se como uma verdadeira garantia fundamental impe, para refutar a teoria que veda a insuficincia de proteo, edificar uma instituio forte, independente e aparelhada, a dar vazo a esta importante garantia. S assim atribuir-se- a necessria densidade normativa a tal previso. Perceptvel, portanto, que a Defensoria Pblica apresenta-se como um ator de fundamental relevncia quando se almeja cumprir a promessa constitucional de fazer do Brasil um Estado Democrtico de Direito.

    4. O Movimento de Acesso Justia: da Justia Gratuita ao Sistema da Assistncia Jurdica Integral

    Devido a sua importncia, hoje se verifica, em escala global, um irrefrevel movimento de busca pela concretizao do acesso justia, de cujas experincias se extrai o sucesso da experincia latino-americana de Defensorias Pblicas e o modelo constitucional adotado no Brasil de constituio de uma Instituio de Estado autnoma e vocacionada ao acesso justia. O direito assistncia jurdica, na condio de corolrio da garantia do acesso justia, decorre tanto de uma gama de direitos constitucionais (v.g. dignidade da pessoa humana e isonomia) quanto dos prprios fundamentos e objetivos fundamentais da Repblica (artigos 1 e 3).

    Sobre o tema, imperioso mencionar o paradigma terico desenvolvido por Mauro Capelletti e Bryant Garth, no clssico Acesso Justia,11 no qual foram apresentadas as trs ondas renovatrias da sistemtica processual civil. Esse paradigma terico identifica um primeiro movimento relacionado estruturao institucional de meios para o aces so, um segundo relativo proteo aos interesses difusos da nova sociedade

    11. Cappelletti; Garth, 1988.

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    de massas,12 e um terceiro vinculado busca pela efetividade da tutela jurisdicional,13 etapas verificadas de maneira bastante marcante no cenrio nacional.

    Aqui interessa verificar a consolidao da primeira onda renovatria, que vai da criao do instituto da justia gratuita pela Lei 1.060/50 (mero direito gratuidade das custas e despesas processuais) at a consolidao dos sistemas de assistncia. O primeiro destes a assistncia judiciria, que compreende as diversas organizaes estatais e paraestatais que garantem a indicao de advogados aos pobres (ex. servios de assistncia universitrios e convnios com a Ordem dos Advogados do Brasil), sistema que foi sucedido pela assistncia jurdica, que abarca a atividade anterior, mas agrega servios jurdicos no relacionados ao processo (ex. orientao e composio extrajudicial de conflitos). Porm, este primeiro movimento somente se conclui com a consolidao do sistema da assistncia jurdica integral, havida com a criao da Defensoria Pblica, carreira de Estado compromissada institucionalmente com a questo do acesso justia, e no apenas com o acesso formal ao Poder Judicirio. Assim, restam postos os sistemas mencionados:

    Sistema Base Legal Vis Proteo Garantia

    Justia Gratuita Lei 1.060/50 Econmica Custas Processuais

    Assistncia Judiciria Leis Esparsas Econmica Acesso Judicirio

    Assistncia Jurdica Leis Esparsas Econmica Acesso Judicirio e Extrajudicial

    Assistncia Jurdica Integral

    CF (5, LXXIV e LC 80/94)

    Vulnerabilidade Organizacional

    Acesso Justia

    12. A segunda onda renovatria diz com a proteo aos interesses difusos da nova sociedade de massas, derivados de uma realidade socioeconmica que demonstrou que at mesmo os institutos relativos assistncia jurdica (provenientes da primeira onda) eram insuficientes. Ocorre que a fragmentao dos conflitos desencoraja a busca individual da reparao, havendo uma inequvoca necessidade de criao de instrumentos de proteo coletiva. Esta vertente est bem representada no Brasil na edio das Leis ns. 7.347/85 e 8.078/90 e da Lei Complementar n. 80/94, as quais inserem a proteo dos interesses difusos no processo civil, em uma tentativa (ainda incipiente) de superao das suas bases individualistas.13. A terceira onda renovatria alcana a busca pela efetividade da tutela jurisdicional. No mbito do processo civil brasileiro, este movimento verificado nas diversas reformas internas que promoveram a consolidao da instrumentalidade das formas, a reaproximao entre direito material e processual e a criao dos institutos das tutelas de urgncia e inibitrias. J no plano constitucional, cabe mencionar a existncia do princpio constitucional da eficincia (artigo 37) e a previso da garantia fundamental da celeridade processual (artigo 5, inciso LXXVIII).

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    FIQUE DE OLHO

    Importante mencionar que aqui se est enfocando um pequeno vis dos servios da advocacia privada, que a atuao pro bono ou a institucionalizao acadmica destes servios, sendo de todo evidente que a representao por meio de advogado particular consubstancia integralmente a clusula geral do acesso justia.

    Assim, os sistemas de assistncia se sobrepem, no sentido de que o florescimento de uma forma mais nova e eficiente tal como a assistncia jurdica integral prestada pela Defensoria Pblica no acaba com os sistemas anteriores (assistncia judiciria e jurdica), que continuam existindo dentro de uma perspectiva limitada. Nesse sentido, a existncia da figura do advogado dativo, hoje admissvel apenas nas situaes em que a Defensoria Pblica no se encontra estruturada, por fora da regra do artigo 4, pargrafo 5, da LC 80/94, e do princpio do defensor pblico natural, previsto no art. 4-A, inciso IV, da mesma legislao.

    SAIBA MAIS

    O Defensor Dativo garante apenas o acesso ao Poder Judicirio, enquanto o Defensor Pblico garante ao seu assistido, e sociedade representada coletivamente, o mais amplo acesso justia. Vislumbrando o processo criminal, Luigi Ferrajoli refere que a defesa dativa e o gratuito patrocnio no passam de simulacros de defesa, visto que inidnea a garantir efetividade ao direito de defesa, razo pela qual se deve reconhecer o carter de direito fundamental e, assim, universal do direito de defesa: cuja atuao, justamente porque se trata de um direito fundamental, no pode ser confiada lgica de mercado como se fosse um direito patrimonial.14

    14

    A sobreposio dos sistemas, que natural e desejvel, provoca uma srie de leituras equivocadas da garantia constitucional do acesso justia,15 o que ocorre com a concretizao do sistema da assistncia jurdica integral centrada nos paradigmas do instituto da justia gratuita da Lei 1.060/50. Esta impreciso traz consequncias

    14. FERRAJOLI, Luigi. In: Os Fundamentos Tericos da Defesa Pblica. No Prelo, 2009. Texto utilizado na palestra proferida no Estado do Rio Grande do Sul, em novembro de 2009, promovida pela Fundao Escola Superior da Defensoria Pblica [FESDEP] e Escola Superior da Advocacia [ESA].15. Nesse vis, a garantia constitucional do acesso justia depende da anlise sistemtica dos incisos XXXV e LXXIV do artigo 5, com a disposio do artigo 134, todos da CRFB/88, pois apenas esta apreenso abarca o projeto constitucional programtico de 1988.

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    indesejveis na prxis jurdica, como ocorre com entendimentos de que a Defensoria Pblica s atua quando o assistido beneficirio da gratuidade da justia, alcanando ainda a prpria configurao do cidado assistido pela Defensoria Pblica, problemtica que ser enfrentada em oportunidade prpria e que redundar na definio de quem poder passar pela mediao proposta pela Instituio.

    5. O Protagonismo da Defensoria Pblica no Estado Democrtico de Direito

    O artigo 1 da LC 80/94 determina que

    a Defensoria Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico, fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5 da Constituio Federal.

    O recorte de anlise deste curso se d na insero da Instituio no Estado Democrtico de Direito sob o vis da garantia do acesso justia, mais especificamente em suas funes atinentes mediao. Contudo, vale ressaltar que a Lei Complementar n. 132/09 promoveu uma verdadeira reestruturao no apenas na organizao interna das Defensorias Pblicas, mas tambm da estrutura do Estado Brasileiro.

    Em termos de sua constituio, sinala-se que a Defensoria Pblica possui como caracterstica se constituir em:

    (i) expresso e instrumento do regime democrtico; (ii) instituio permanente e essencial funo jurisdicional do Estado; (iii) instituio autnoma (sem vinculao e dependncia hierrquica, com

    oramento prprio e com iniciativa de lei em alguns Estados).

    A partir desta conformao, surgem trs grandes misses e atribuies:

    (i) promoo dos direitos humanos; (ii) assistncia jurdica individual (nos mbitos judicial e extrajudicial); (iii) representao coletiva da sociedade (nos mbitos judicial e

    extrajudicial).

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    Dessa insero (at mesmo simblica) surge um novo ideal utpico para o nosso Estado Democrtico de Direito: o Estado que historicamente foi um Estado Inquisidor, agora deve se transformar, tambm, em um Estado Defensor, que sirva como freio e contrapeso (checks and balances) s situaes de violao e de violncia estatal e de promoo dos Direitos Humanos.16 O projeto normativo de construo de um Estado que no se limite a acusar os seus cidados, mas que efetivamente os enxergue, acolha, entenda, proteja e defenda.

    Se a Defensoria Pblica no poderia existir em um Estado totalitrio e violador de Direitos Humanos (e nisso percebe-se que a Instituio fruto e se encontra em estado de dependncia da consolidao dos ideais democrticos), deve ser reconhecido que no existe democracia legtima sem uma Defensoria Pblica consolidada, forte e atuante.

    SAIBA MAIS

    No II Diagnstico da Defensoria Pblica no Brasil17, promovido em 2006 pelo Ministrio da Justia e pelo Programa das Naes Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), o ento Ministro Marcio Thomaz Bastos refere que

    (...) as instituies slidas so os instrumentos que as democracias tm para se realizar enquanto tais. E as democracias, para abandonarem o rtulo de democracias formais, se tornando verdadeiras democracias de massas, devem construir instituies que consigam garantir a todos, sem discriminaes, os direitos previstos nas constituies democraticamente escritas. (...) No mais podemos nos preocupar s com o Estado Julgador e com o Estado Acusador, em detrimento do Estado Defensor.

    17

    No por outra razo que o artigo 3-A da LC 80/94 (com a redao dada pela LC 132/09) traz os seguintes objetivos da Defensoria Pblica:

    (i) primazia da dignidade da pessoa humana; (ii) afirmao do Estado Democrtico de Direito; (iii) prevalncia e efetividade dos Direitos Humanos; (iv) garantia dos princpios constitucionais da ampla defesa e do

    contraditrio.

    16. Esta afirmao no quer obscurecer o fato de que a Defensoria Pblica, enquanto Instituio de Estado que presta servio pblico fundamental, pode se constituir tambm em violadora dos Direitos Humanos de seus assistidos, principalmente quando apresenta deficincia na prestao de seus servios.17. BRASIL. In: II Diagnstico da Defensoria Pblica no Brasil. Disponvel em: http://www.anadep.org.br/wtksite/downloads/Diag_defensoria_II.pdf. Acesso em: 18 maio 2010.

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    Se a concretizao do acesso justia e da realizao dos Direitos Humanos deva ser tarefa de todas as estruturas de Estado, o legislador no se imiscuiu em definir tal responsabilidade de forma difusa, mas antes atribuiu esta gigantesca e nobre misso Defensoria Pblica. E o fez bem. No apenas porque sua tarefa no acusatria (e, portanto, no chancela, sequer teoricamente, a violncia estatal), mas porque concretiza as mais basilares aes afirmativas (discriminao positiva) a serem promovidas no mbito de um Estado Democrtico de Direito. E isso feito atendimento a atendimento, ao a ao, transformando-se a sociedade de forma pacfica.

    FIQUE DE OLHO

    Todas as atividades que visam a alcanar materialmente um padro mnimo aceitvel de isonomia dependem da incluso jurdica dos hipossuficientes organizacionais (econmicos, sociais e/ou culturais), em observncia ao disposto no artigo 5, inciso LXXIV, e 134 da CRFB/88. Conforme o modelo constitucional vigente, a passagem do Estado Brasileiro de um modelo de excluso social para um momento que ampare a construo de uma sociedade solidria passa, necessariamente, pela atuao da Defensoria Pblica.

    6. A Ampliao da Legitimao Social da Defensoria Pblica uma Instituio do Povo e para o Povo

    O reconhecimento da importncia do papel da Defensoria Pblica, no s na engrenagem da Justia, mas, principalmente, no fortalecimento da democracia, da cidadania, do respeito aos direitos dos grupos marginalizados e na preservao da dignidade da pessoa humana esto conduzindo a instituio a um patamar jamais ocupado. O advento da Emenda Constitucional n 45, de 8 de dezembro de 2004, concedeu uma nova roupagem Defensoria Pblica, uma vez que possibilitou o seu desligamento da estrutura do Estado, dando um primeiro passo na construo de uma instituio forte, autnoma e independente, jungida to somente ao cumprimento de sua misso constitucional: a orientao jurdica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5, LXXIV.

    Consciente de que uma Defensoria Pblica atrelada aos desejos e propsitos do Poder Executivo lhe afastaria sobremaneira dos seus objetivos, prejudicando principalmente aqueles que efetivamente necessitam dos seus servios, os carentes de recursos suficientes sua orientao jurdica e defesa em juzo, foi promulgada a Lei Complementar n 132, de 7 de outubro de 2009, com a incumbncia de fortalecer ainda mais a Defensoria Pblica e possibilitar a sua completa estruturao. Mencionado diploma normativo alterou, consideravelmente, a Lei Complementar n 80/1994, plasmando a Defensoria Pblica dos poderes e garantias necessrias ao desempenho dos seus objetivos. Tal elevao da instituio tem tambm o condo de aproximar a Defensoria daquele que dela depende e necessita, de forma a criar um vnculo de cumplicidade

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    e representatividade no observada em nenhuma outra instituio pblica, mormente naquelas que compem o Sistema de Justia.

    SAIBA MAIS

    Esse o entendimento vitorioso no Supremo Tribunal Federal: Constitucional. Arts. 7, VII, 16, Caput e Pargrafo nico da lei 8.559/2006 do Estado do Maranho, que inserem a Defensoria Pblica daquela unidade da Federao na estrutura do Poder Executivo local. Ofensa ao art. 134, 2 da Constituio Federal. ADI procedente.

    I. A EC 45/04 reforou a autonomia funcional e administrativa s defensorias pblicas estaduais, ao assegurar-lhes a iniciativa para a propositura de seus oramentos (art. 134, 2).II. Qualquer medida normativa que suprima essa autonomia da Defensoria Pblica, vinculando-a a outros Poderes, em especial ao Executivo, implicar violao Constituio Federal. Precedentes.III. ADI julgada procedente (STF, ADI n 4056/MA, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 1/8/12). [grifo nosso].

    Ora, o desligamento da Defensoria do aparato estatal indica, propositalmente, que o seu compromisso o de dar concretude garantia prevista no art. 5, inciso LXXIV, da Constituio Federal. Apesar de mantida por meio do repasse do Estado, a Defensoria, por ter sua autonomia reconhecida, tem liberdade para projetar suas metas e conduzir a sua atuao, voltada, primordialmente, orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, como j lembrado. Inegvel, desta feita, que se trata de uma instituio criada para o Povo e que somente a ele deve prestar contas.

    FIQUE DE OLHO

    Nessa esteira, j foi afirmado que a Defensoria Pblica, ontologicamente, deve estar mais prxima da sociedade que do prprio Estado, considerado na sua totalidade, do Poder Judicirio, inclusive18, sendo a Defensoria Pblica a voz e a guardi dos direitos do povo.

    18

    18. R, Alusio Iunes Monti Ruggieri. Manual do Defensor Pblico Teoria e prtica. Salvador: Jus Podivm, 2013. p. 100.

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    Uma leitura atenta dos atuais arts. 3-A e 4 da LC 80/94, acrescentado e substancialmente alterado pela LC 132/09, respectivamente, demonstra que ocorreu uma inegvel ampliao da legitimao social da Defensoria Pblica. O seu papel foi deveras alargado, de modo que so hoje considerados objetivos institucionais:

    (i) a primazia da dignidade da pessoa humana e a reduo das desigualdades sociais;

    (ii) a afirmao do Estado Democrtico de Direito; (iii) a prevalncia e efetividade dos direitos humanos; e (iv) a garantia dos princpios constitucionais da ampla defesa e do

    contraditrio.

    No obstante todos esses serem compromissos do prprio Estado, Defensoria Pblica incumbe atuar positivamente e efetivamente nessas frentes, o que a torna uma instituio encarecida com a proteo e o incremento do Estado Democrtico de Direito e, principalmente, representativa, em todos os patamares e circunstncias, da populao desprovida de recursos.

    FIQUE DE OLHO

    J se disse em sede de doutrina que os objetivos elencados no art. 3-A da LC 80/1994 designam os propsitos a serem satisfeitos pela atuao funcional da Defensoria Pblica.19 Sendo assim, o dever de prestar assistncia jurdica gratuita h de ser interpretado de maneira bastante abrangente, significando um compromisso inarredvel da instituio no sentido de possibilitar populao carente o acesso efetivo no ao Poder Judicirio simplesmente, mas Justia Social e aos direitos sufragados na Carta Constitucional.20 por essa razo que a Defensoria Pblica est situada na macroestrutura do sistema de direitos e garantias fundamentais, atuando fidedignamente para incluir os excludos, defender os indefesos, possibilitar o acesso aos direitos projetados na lei constitucional aos dela alijados.

    19 20

    19. ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princpios institucionais da Defensoria Pblica: De acordo com a EC 74/2013 (Defensoria Pblica da Unio). Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 315.20. Por possuir o objetivo de viabilizar aos necessitados o amplo acesso ordem jurdica justa, o dispositivo deve ser interpretado de forma ampla, abrangendo toda e qualquer atividade de orientao jurdica e de defesa dos interesses dos necessitados, tanto na esfera judicial quanto na esfera administrativa. (ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princpios institucionais da Defensoria Pblica: De acordo com a EC 74/2013 (Defensoria Pblica da Unio). Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 333).

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    7. O Assistido da Defensoria Pblica: a (Re)Significao dos Conceitos de Hipossuficincia e Necessidade por Meio da Dimenso Existencial e Normativa dos Termos

    Da simples anlise do desenvolvimento histrico da estruturao institucional de meios para o acesso justia, facilmente perceptvel que o instituto da justia gratuita no sinnimo do instituto da assistncia jurdica integral. Enquanto aquele est focado em questes econmicas e pecunirias, este no est exclusivamente matizado por estes vetores, fazendo com que a Defensoria Pblica preste seus servios no apenas aos necessitados de recursos financeiros, mas aos necessitados organizacionais.

    Cumpre salientar, inicialmente, que o atendimento de indivduos em situao de vulnerabilidade, independentemente da sua situao econmica, no novidade para a Defensoria Pblica. J est mais do que sedimentada na prxis forense a atuao da Instituio na defesa do ru sem advogado na rea criminal e na seara da curadoria especial no juzo cvel. Dito de outra forma, a atuao da Instituio j consolidou a diferenciao existente entre necessidade econmica e necessidade jurdica. Assim, aqui se est a falar, apenas, na ampliao deste foco de atendimento, o qual se centra na nova conformao da Instituio e no seu posicionamento em nosso Estado Democrtico de Direito.

    Os conceitos constitucionais de necessidade e insuficincia de recursos (artigos 5, LXXIV e 134, da CRFB/88), bem como a designao legal de hipossuficincia (artigo 4, VII, da LC 80/94), no promovem uma restrio conceitual dimenso econmica do indivduo, o que ocorre devido a uma leitura incorretamente centrada no paradigma da Lei n. 1.060/50, a qual adota o paradigma econmico por estar historicamente condicionada ao sistema da justia gratuita, garantidora apenas do direito gratuidade das custas e despesas processuais. Contudo, como visto, a atuao da Defensoria Pblica contempla e concretiza a assistncia jurdica integral, a qual no se encontra restrita apenas proteo dos desvalidos econmicos, ainda mais quando hoje a Instituio est legal e institucionalmente compromissada com a proteo dos Direitos Humanos. Deve-se alcanar o correto significado hermenutico das expresses por intermdio de uma anlise existencial (ftica, concreta e situada) da pessoa humana e de sua existncia sociocultural.

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    ATENO

    Cabe repisar, por absolutamente relevante, que a Constituio Federal, em nenhum momento, quando disciplina os termos necessidade e insuficincia de recursos, os restringe ao vis econmico. Assim, a Carta Magna jamais refere que a atuao da Defensoria Pblica est condicionada orientao dos necessitados econmicos ou daqueles que apresentarem insuficincia de recursos econmicos, sendo a inexistncia de limitao expressa ao vis econmico aparentemente inequvoca do ponto de vista hermenutico. O mutismo da Constituio21 acerca da vinculao econmica dos conceitos de necessidade e insuficincia de recursos hermeneuticamente significante, e no pode ser desprezado. Se a Constituio Federal no restringiu expressamente, descabe ao intrprete faz-lo.

    21

    Ainda que no se admita ter sido essa a inteno (deliberada ou mediata) do legislador constituinte, no se pode pretender colocar na Constituio palavras e proposies que esta no possui.22 No campo da atividade hermenutica, subsiste o que se chama de fora vinculante do objeto interpretado, o qual diz diretamente com o primado do texto normativo.

    FIQUE DE OLHO

    Mesmo em um paradigma hermenutico abrangente, pode-se defender a existncia de uma base semntica possvel de significao e de um limite semntico intransponvel. As expresses e vocbulos formadores da norma jurdica possuem certa expectativa de sentido relacionada com os usos da linguagem e com as definies de direito constitucional, o que se apresenta como limite atividade interpretativa.23

    23

    21. Expresso cunhada pelo Ministro Ayres Britto no voto lanado na ADIN 3.510.22. A perspectiva do pertencimento do intrprete ao objeto ou norma interpretada ponto relativamente pacfico na seara hermenutica, tanto para a corrente metodolgica (BETTI, 2007, p. XLIV; BETTI, Emilio. In: Teoria Generale della Interpretazione. 2. ed. Milano: Giufrr, 1990. p. 305. v. 1) quanto para a teoria filosfica (GADAMER, 2005, pp. 355-358, 385-386 e 472; GADAMER, 2004, p. 331).23. LARENZ, 1989, p. 168; VILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 108.

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    Em face disso, o intrprete deve exercitar um prudente positivismo24, pois a declarao legal surge como limite mutao normativa que deriva da alterao das relaes fticas e axiolgicas. O sentido literal possvel da norma jurdica (aqui constitucional) surge como limite interpretao (base semntica possvel de significao), detendo uma dupla misso: ponto de partida para a indagao do sentido e traa, ao mesmo tempo, os limites da atividade interpretativa. O primado do texto indica que uma exegese que no se situe no mbito do sentido literal possvel da norma25 j no propriamente interpretao, mas, sim, modificao de sentido, o que foge competncia do operador jurdico.26

    Contudo, o fato de a Constituio Federal no restringir expressamente os conceitos de necessidade e insuficincia de recursos ao plano econmico no deriva de um esquecimento ou omisso do legislador constituinte. Em verdade, trata-se de uma deliberada demonstrao de que tais conceitos alcanaram a necessidade derivada da insuficincia de recursos materiais, culturais, sociais, tcnicos, tnicos etc. Ou seja, a Constituio inequivocamente determina a aplicao da noo de hipossuficincia organizacional. Nesse sentido, o entendimento da Ilustre Professora Ada Pellegrini Grinover: a exegese do texto constitucional, que adota um conceito jurdico indeterminado, autoriza o entendimento de que o termo necessitados abrange no apenas os economicamente necessitados, mas tambm os necessitados do ponto de vista organizacional, ou seja, os socialmente vulnerveis.27

    Ainda que se entenda que a constituio apenas permita a adoo do conceito de hipossuficincia organizacional (sendo inequvoco que o texto constitucional no veda esta leitura), a interpretao ampliativa e extensiva deve ser utilizada em razo da aplicao do princpio da mxima efetividade e eficcia dos direitos fundamentais da Assistncia Jurdica Integral (artigo 5, LXXIV, da CRFB/88) e do acesso justia (artigo 5, XXXV, da CRFB/88).28 consenso, na doutrina constitucional, que a Constituio de 1988 prdiga no plano axiolgico, especialmente ao instituir como fundamento da Repblica a dignidade da pessoa humana (artigo 1, inciso III) jamais restringiu a proteo do ser humano dimenso econmica de sua existncia. O olhar do constituinte no estava voltado ao homo oeconomicus, mas sim pessoa no esplendor das vicissitudes sociais, econmicas, tnicas e/ou culturais de sua existncia no contexto individual, familiar e

    24. GRAU, 2003, pp. 52 e 119; HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1998, pp. 51 e 69-70; HESSE, Konrad. In: A Fora Normativa da Constituio. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1991, p. 23. Cabe referir que a expresso foi cunhada por Canotilho.25. O sentido literal possvel deve ser entendido como sendo tudo aquilo que nos termos do uso lingustico que seja de considerar como determinante em concreto (...) pode ainda ser entendido com o que este termo se quer dizer (LARENZ, 1989, pp. 387-388).26. LARENZ, 1989, pp. 387-388, 444, 517-518.27. GRINOVER, Ada Pellegrini. Parecer juntado ADin 3.943.28. Ainda caberia invocar os princpios da maior proteo possvel aos interesses lesados e do no retrocesso social.

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    social. Restringir o que no foi restringido pelo constituinte diminuir a fora normativa do texto constitucional.

    Dito isso, fica a questo: onde achar elementos para a consubstanciao do contedo dos conceitos abertos de necessidade, insuficincia de recursos e hipossuficincia? Certamente se tem fundamento slido ao se recorrer s normativas internacionais29 e ao novo sistema de proteo institudo pela Lei Complementar n. 132/09, paradigmas que esto sendo utilizados pelos Tribunais Superiores brasileiros.30

    FIQUE DE OLHO

    Quanto ao sistema internacional, no se teria melhor parmetro do que as chamadas 100 Regras de Braslia sobre Acesso Justia das Pessoas em condio de Vulnerabilidade, pois, alm de se constituir em normativa especfica sobre o tema, foi formulada pelo Poder Judicirio durante a XIV edio da Conferncia Judicial Ibero-Americana, o que denota o seu carter de iseno com relao fala situada deste escrito. Nos itens 3 e 4, encontra-se o conceito das pessoas em situao de vulnerabilidade, in verbis:

    1 Concepto de las personas en situacin de vulnerabilidad:

    3. Se consideran en condicin de vulnerabilidad aquellas personas que, por razn de su edad, gnero, estado fsico o mental, o por circunstancias sociales, econmicas, tnicas y/o culturales, encuentran especiales dificultades para ejercitar con plenitud ante el sistema de justicia los derechos reconocidos por el ordenamiento jurdico.4. Podrn constituir causas de vulnerabilidad, entre otras, las siguientes: la edad, la discapacidad, la pertenencia a comunidades indgenas o a minoras, la victimizacin, la migracin y el desplazamiento interno, la pobreza, el gnero y la privacin de libertad. La concreta determinacin de las personas en condicin de vulnerabilidad en cada pas depender de sus caractersticas especficas, o incluso de su nivel de desarrollo social y econmico.

    29. A busca pelos ensinamentos das diretrizes internacionais visa alcanar um paradigma consensual em termos mundiais, bem com um vis externo viso da Defensoria Pblica e de seu sistema normativo.30. O conceito de hipossuficincia organizacional e de hipervulnerabilidade adotado nos seguintes julgados: REsp 931.513 (Relator para Acrdo Ministro Herman Benjamin, 1 Seo, STJ, j. em 25/11/2009, DJe 27/09/2010) e AI 70034602201 (Relator Desembargador Carlos Roberto Lofego Canibal, 1 Cmara Cvel. TJRS, j. em 19.05.2010.

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    Assim, facilmente perceptvel que, no entendimento consensual das Cortes Ibero-Americanas, o conceito de hipossuficincia no se restringe ao vis econmico, alcanando as condies sociais, tnicas e culturais dos indivduos, e abarcando peculiaridades como idade, incapacidade, pertencimento a minorias, gnero, privao de liberdade etc. Assim, a situao de pobreza do indivduo ou da coletividade apenas uma das causas de vulnerabilidade. E qui hoje, em uma sociedade de riscos massificados, sequer seja a mais importante. Sem um vis exaustivo, poder-se-ia apresentar um quadro dos grupos vulnerveis reconhecidos pelo sistema jurdico nacional:

    Beneficirios de Grupos Sociais Vulnerveis

    Idosos, assim consideradas as pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, nos termos do artigo 1 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03).

    Consumidores, assim consideradas todas as pessoas fsicas ou jurdicas que adquirem ou utilizam produto ou servio como destinatrio final, equiparando-se a elas a coletividade de pessoas, ainda que indeterminveis, que haja intervindo nas relaes de consumo, conforme artigo 2 do Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90).

    Crianas e Adolescentes, assim consideradas as pessoas com at doze anos de idade incompletos, e adolescentes aquelas com idade entre doze e dezoito anos, conforme artigo 2 do Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n. 8.069/90).

    Pessoas com Deficincia, assim consideradas todas que apresentam deficincia fsica, auditiva, visual, mental ou mltipla, conforme artigo 4 do Decreto n. 3.298/99.

    Mulheres Vtimas de Violncia Domstica e Familiar, assim consideradas as mulheres vtimas de qualquer ao ou omisso baseada no gnero que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano moral ou patrimonial, no mbito da unidade domstica, compreendida como o espao de convvio permanente de pessoas, com ou sem vnculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, no mbito da famlia, compreendida como a comunidade formada por indivduos que so ou se consideram aparentados, unidos por laos naturais, por afinidade ou por vontade expressa, ou em qualquer relao ntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitao, independentemente de orientao sexual, conforme artigo 5 da Lei n. 11.340/2006.

    Trabalhadores, assim consideradas todas as pessoas fsicas que prestarem servios de natureza no eventual a empregador, sob a dependncia deste e mediante salrio, conforme artigo 3 da Consolidao das Leis do Trabalho (Decreto-lei n. 5.452/1943).

    Populao Negra, assim considerado o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raa usado pela Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), ou que adotam autodefinio anloga, nos termos do artigo 1, pargrafo nico, inciso IV, do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010).

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    Beneficirios de Grupos Sociais Vulnerveis

    Populao Indgena, assim considerado o conjunto de famlias ou comunidades ndias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relao aos outros setores da comunho nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem, contudo, estarem neles integrados, conforme artigo 3, inciso II, do Estatuto do ndio (Lei n. 6.001/1973).

    Pequenos Agricultores Familiares, assim consideradas as pessoas residindo na zona rural, a pessoa que detenha a posse de gleba rural no superior a 50 (cinquenta) hectares, explorando-a mediante o trabalho pessoal e de sua famlia, admitida a ajuda eventual de terceiros, bem como as posses coletivas de terra considerando-se a frao individual no superior a 50 (cinquenta) hectares, cuja renda bruta seja proveniente de atividades ou usos agrcolas, pecurios ou silviculturais ou do extrativismo rural em 80% (oitenta por cento) no mnimo, nos termos do artigo 3, inciso I, da Lei 11.428/06.

    Vtimas de Violaes aos Direitos Humanos, nos termos da Declarao Universal dos Direitos do Homem (DUDH-ONU) e do artigo 4, inciso XVIII, da Lei Complementar n. 80/1994.

    Vtimas de Tortura, Abusos Sexuais, Discriminao ou Qualquer Outra Forma de Opresso ou Violncia, conforme artigo 4, inciso XVIII, da Lei Complementar n. 80/1994.

    Indivduos Privados da Liberdade em Razo de Priso ou Internao, assim considerados os que se encontram na situao de que trata o artigo 7 da Conveno Americana de Direitos Humanos Pacto de San Jose da Costa Rica.

    Indivduos Acusados em Processo Criminal, Processo de Improbidade Administrativa, Apurao de Ato Infracional ou de Execuo Penal ou de Medida Socioeducativa, assim considerados os que se encontram na situao de que trata o artigo 8 da Conveno Americana de Direitos Humanos Pacto de San Jos da Costa Rica.

    Turista Estrangeiro, assim considerados os visitantes temporrios, provenientes de um pas estrangeiro, que permanecem no pas mais de vinte e quatro horas e menos de trs meses, por qualquer razo, exceo feita de trabalho, conforme definio adotada pela Organizao Mundial do Turismo OMT.

    Indivduos Acometidos de Molstia ou Afetao em seu Estado de Sade Fsico ou Mental, assim consideradas as pessoas que apresentam falta ou perturbao da sade, conforme a Carta de Princpios de 1948, da Organizao Mundial de Sade OMS.

    Defensores de Direitos Humanos, assim considerados todos os indivduos, grupos e rgos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos, em funo de sua atuao e atividade nessas circunstncias, encontrase em situao de risco ou vulnerabilidade ou sofre violao de seus direitos, conforme artigo 2 do Decreto n. 6.044/2007.

    Passando-se a verificar o cenrio legislativo interno, percebe-se que, em consonncia com o paradigma acima delineado, o artigo 4, inciso XI, da Lei Complementar 80/94 (com a redao dada pela Lei Complementar n. 132/09), estabelece como funo institucional da Defensoria Pblica o exerccio da defesa dos interesses individuais e coletivos da criana e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades

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    especiais, da mulher vtima de violncia domstica e familiar e de outros grupos sociais vulnerveis que meream proteo especial do Estado.

    Assim, de todo evidente que a atuao da Instituio, no atendimento individual ou coletivo de grupos sociais vulnerveis e tambm no plano da resoluo extrajudicial de conflitos , no se encontra atrelada ao parmetro econmico, mas sim ao paradigma tpico, situado e concreto da hipossuficincia organizacional. A insero deste paradigma na lei orgnica de regncia da Defensoria Pblica atende a sua misso de promoo dos Direitos Humanos e a dimenso existencial e normativa dos termos constitucionais aqui examinados.

    FIQUE DE OLHO

    de todo evidente a necessidade de regulamentao deste novo paradigma de atuao, o que deve certamente ser feito por cada Defensoria Pblica, quantificando-se as peculiaridades do atendimento em sua localidade e regio, bem como o estgio de estruturao material e pessoal da prpria Instituio.

    8. A Legitimao da Defensoria Pblica em sua Misso de Acesso Justia: a Eroso dos Filtros Subjetivos e a Legitimao pela Defesa de Valores

    Como refere o Defensor Pblico Jos Augusto Garcia, mais do que simplesmente alterar disposies especficas, a Lei Complementar 132/09 significou a superao definitiva da idade individualista da Defensoria.31 A viso individualista que impera no cenrio jurdico nacional impede a atuao da Defensoria Pblica no vis solidarista. Contudo, a socialidade32 e o solidarismo jurdico que tiveram como resultado a chamada socializao dos modelos jurdicos33 contriburam fortemente para a objetivao do

    31. SOUSA, Jos Augusto Garcia de. O destino de Gaia e as funes constitucionais da Defensoria Pblica: Ainda faz sentido (sobretudo aps a edio da Lei Complementar 132/09) a viso individualista a respeito da Instituio? In: Revista de Direito da Defensoria Pblica do Estado do Rio de Janeiro. N 25. Rio de Janeiro: DPGE, 2012.32. BETTI, 2007, p. 355; REALE, Miguel. O projeto do novo Cdigo Civil. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1999; MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-F no Direito Privado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 247.33. A socialidade indica a prevalncia dos interesses coletivos sobre individuais, sem que sejam desconsiderados os valores inerentes pessoa. J a socializao dos modelos jurdicos diz com o novo contedo dos institutos jurdicos (ex. instituio do abuso de direito do artigo 187 do CC) e com a reviso das figuras e dos papis desempenhados pelo cidado em seu cotidiano (v.g. proprietrio, contratante, empresrio, pai e testador).

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    ordenamento, com a consequente eroso da subjetivao da tutela processual, sendo que os novos matizes do acesso justia impuseram compreenso muito mais generosa do fenmeno da necessidade.34

    Isso quer dizer que, na atuao da Defensoria Pblica, a identificao subjetiva do assistido perde a antiga transcendncia. Primeiro, porque o fenmeno da necessidade resta desconectado da absolutizao do parmetro econmico; segundo, porque a Instituio, na sua nova conformao legal, passa a defender, para alm de pessoas, valores constitucionalmente assegurados.

    FIQUE DE OLHO

    No por outra razo que a LC 132 instituiu no artigo 3-A da LC 80/94, como objetivos da Defensoria Pblica, a primazia da dignidade da pessoa humana e a garantia dos princpios constitucionais da ampla defesa e do contraditrio, como antes frisado. Vale dizer: pelo mais absoluto imperativo legal, a Instituio passa a atuar no intuito da concretizao da dignidade da pessoa humana e na preservao da garantia dos princpios constitucionais da ampla defesa e do contraditrio, no estando apenas vinculada s condies da pessoa (vis subjetivo) atendida pela Instituio.

    Esta nova conformao torna irrelevante, no que tange assistncia jurdica em muitas situaes, o questionamento acerca da situao econmica individual da parte, o que no desvirtua em nada a misso da Defensoria, muito pelo contrrio.35 Em face deste paradigma, Jos Augusto Garcia identifica cinco tipos distintos de atuao da Defensoria Pblica:

    (i) proteo de necessitados econmicos; (ii) proteo de necessitados organizacionais; (iii) proteo concomitante de necessitados econmicos e necessitados

    no econmicos (ex. ao civil pblica que tenha como objeto direitos difusos);

    (iv) proteo de valores relevantes do ordenamento (ex. defesa do ru sem advogado na rea criminal e curadoria especial na rea cvel);

    (v) proteo nominal de pessoa no necessitada, mas que repercute em favor de necessitado econmico ou organizacional (ex. representao judicial de casal abastado que visa adoo de uma criana internada).

    As duas ltimas situaes denotam hipteses de atuao em que se verifica a eroso do filtro subjetivo de legitimao, com a adoo de defesa de valores. Diversas so as

    34. SOUSA, Jos Augusto Garcia de. Op. Cit.35. Ibid.

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    hipteses concretas subsumidas a esta hiptese, mas aqui compete destacar que, na seara da mediao, a Defensoria Pblica se encontra possibilitada de atuar em todas as situaes apontadas, independentemente da carncia econmica das partes envolvidas no conflito, quando verificada a hipossuficincia organizacional. Assim, embora a questo esteja adstrita disciplina legal de cada Defensoria Pblica, no existe bice legal para a extenso da mediao a todas as formas de atendimento oferecido pela Instituio.

    FIQUE DE OLHO

    Na mediao pode haver a proteo concomitante de necessitados econmicos e necessitados no econmicos. Vale dizer: a presena de um indivduo economicamente hipersuficiente no se constitui em fato impeditivo para que a Defensoria Pblica promova o processo de mediao, seja pelo imperativo legal da resoluo extrajudicial dos litgios, seja porque no processo a Instituio estaria beneficiando indivduos necessitados e resguardando valores protegidos pelo ordenamento.

    9. A Hora e a Vez dos Meios Alternativos de Soluo de Conflitos

    A democracia, como pressuposto e objetivo, carece de instituies sedimentadas e plenamente atuantes, capazes de garantir e preservar os direitos fundamentais de carter civil, poltico e social.36 Disso pode-se concluir que a idealizao e a posterior estruturao da Defensoria Pblica teve e tem como mote criar uma instituio dotada deste perfil, isto , apta a dar concretude aos direitos fundamentais, polticos, civis e, de igual maneira, sociais.

    Muito embora a Revoluo Francesa tenha se incumbido de expurgar do ocidente as bases que sustentaram o Antigo Regime, poca em que a prpria lei tratava de forma distinta as pessoas segundo seu status social e que as atividades, ofcios e profisses mais lucrativas se encontravam reservadas a um pequeno grupo de privilegiados, os problemas da atualidade no permitem asseverar que se vive uma completa e perfeita democracia participativa, mais ainda quando restringimos a anlise ao plano judicial.

    36. ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonalves. Acesso justia em preto e branco: Retratos institucionais da Defensoria Pblica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 27.

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    SAIBA MAIS

    H uma intrigante passagem no romance Os Miserveis, de Victor Hugo, em que esse momento de ruptura entre o antigo e o novo transparece latente. A histria comea apresentando Carlos Francisco Bemvindo Myriel, um filho de juiz da Relao de Aix (aristocracia de toga), que apenas no seguiu a carreira do pai porque a Revoluo no permitiu. Expulso para a Itlia, apenas retornou Frana na condio de padre.

    porque no plano judicial, ou mais amplamente do acesso Justia, a democracia, como participao de todos ou disponvel participao de todos, no pode ser verdadeiramente atingida enquanto inexistentes condies institucionais e fticas especficas. A ideia de igualdade perante a lei e perante o juiz, para efeito de atuao processual, continua sendo mais uma iluso, dificilmente efetivada no plano prtico. Com inteira razo, Cndido Rangel Dinamarco afirma que [a]cesso justia no equivale a mero ingresso em juzo. A prpria garantia constitucional da ao seria algo inoperante e muito pobre caso se resumisse a assegurar que as pretenses das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhes tambm um tratamento adequado.37 Ocorre que, sem a Defensoria Pblica, aqueles desprovidos de recursos financeiros e os vulnerveis organizacionais no s no tero assegurados, no processo, seus direitos e garantias como, igualmente, no tero sequer acesso a esse instrumento de proteo jurisdicional.

    Conforme atesta Javier A. Couso, estudos empricos recentes confirmam que na Amrica Latina a iniquidade se explica fundamentalmente por questes de status ( maneira da era pr-moderna), e no pela maior produtividade que distintas doses de talento ou esforo individual geram. O autor mencionado pontua que a forma com que opera a discriminao social na regio no explcita j que formalmente o sistema legal considera as pessoas como merecedoras de igual considerao e respeito , seno velada, mediante mecanismos de estratificao social muito sofisticados e profundamente arraigados na populao.

    37. DINAMARCO, Cndido Rangel. Instituies de direito processual civil. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 115. v. I.

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    SAIBA MAIS

    O autor ainda menciona que o fato de tais mecanismos serem informais no os torna menos efetivos, porquanto tm maior fora que as garantias formais de igualdade consagradas profusamente nos textos constitucionais e legais.38

    38

    de se lastimar que essa mesma discriminao encontrada na vida poltica dos pases latino-americanos seja completamente transplantada para o plano processual.39 Com a [e pela] Defensoria Pblica, a populao alijada do acesso formal ao processo ter seu ingresso assegurado; alm disso, com a existncia de uma instituio forte, autnoma e estruturada, composta de profissionais capazes e competentes para desempenharem to importante encargo, a esperana de democratizao do processo deixa de ser um objetivo inalcanvel, aproximando-se da realidade.

    Universalizar a jurisdio, no sentido de endere-la maior abrangncia factvel, reduzindo racionalmente os resduos no jurisdicionalizveis,40 outra misso que em determinados setores s poder ser efetivamente cumprida pelo Estado com a participao da Defensoria Pblica. O papel do qual a Defensoria Pblica no pode se furtar, nesse contexto, o de democratizar o processo e universalizar o acesso Justia.

    Contudo, hoje est cada vez mais evidente que o processo, como mtodo estatal ortodoxo de soluo de conflitos, no se apresenta mais como um instrumento eficaz para pacificar os interesses em disputa, outorgando justia e cumprindo a promessa constitucional. O antigo e formal processo judicial, oneroso, lento e ineficaz, permite que as solues dele advindas ainda conservem os resqucios discriminatrios to enraizados no ambiente social.

    Comprovado que o Estado no consegue monopolizar satisfatoriamente a soluo dos conflitos atravs do processo, emergem, para suprir essa ineficincia, procedimentos alternativos. Pode-se acompanhar, nos ltimos anos, uma fuga do processo, conduzida

    38. COUSO, Javier A. Indigencia, inequidade y democracia: las limitaciones del argumento libertrio. In: SABA, Roberto (Org.). Derecho y pobreza. Ciudad Autnoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 39.39. Tais direitos para alcanarem efetividade no caso das populaes mais pobres dependem de que sejam assegurados pelo Estado os mecanismos apropriados que viabilizem o acesso justia quando houver leso ou ameaa de leso a tais direitos, constitucionalmente assegurados. ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonalves. Acesso justia em preto e branco: Retratos institucionais da Defensoria Pblica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 27.40. DINAMARCO, Cndido Rangel. Instituies de direito processual civil. ed. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 113. v. I.

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    prioritariamente por multinacionais e pela populao mais abastada. Arbitragem, conciliao, negociao e mediao, hoje, so tcnicas empregadas em quase todas as partes do mundo, com satisfatrio grau de aprovao. Assim, cabe Defensoria Pblica, no desempenho da sua funo constitucional, possibilitar queles que provarem insuficincia de recursos o acesso Justia, o que a mesma coisa que afirmar o acesso tambm aos meios alternativos de soluo de conflitos.

    O Papel da Defensoria Pblica na Garantia de Acesso Justia41

    1. Da Crise do Poder Judicirio e a Defensoria Pblica

    O processo brasileiro est vivendo a chamada Crise do Poder Judicirio. Esta decorre de uma srie de fatores, dentre os quais a morosidade sofrida pelo referido poder. O Conselho Nacional de Justia CNJ vem tomando diversas medidas para acabar com essa situao ou, ao menos, atenu-la. Recentemente, o Poder Judicirio viveu a chamada Meta 2 (dois), projeto que visou a julgar vrios processos em um tempo mximo, ou seja, que determinou o julgamento at 2009 de todos processos distribudos at 2005.

    A medida tomada pelo CNJ foi digna de elogios e lanou resultados surpreendentes. Entretanto, no acabou com o problema, uma vez que este existe, ao que parece, em virtude de uma infinidade de fatores, inclusive da grande quantidade de aes propostas todos os dias, consequncia, por sua vez, conforme ser visto mais adiante, da cultura popular de preferir resolver os litgios procurando o Poder Judicirio e do pouco uso dos meios alternativos de resoluo de conflitos.

    Assim, a crise do Judicirio, em todas as suas esferas (estadual, federal, trabalhista, militar e nas demais), se d em face de uma diversidade de problemas, entre os quais se destacam: a previso de uma gama enorme de recursos, a interposio principalmente por parte do poder pblico de um nmero infindvel de recursos, a quantidade de aes repetitivas e a existncia da chamada indstria do dano moral.

    O professor e magistrado trabalhista Srgio Torres Teixeira afirma ser difcil, em face da possibilidade de se cometer uma omisso, enumerar as falhas do processo jurisdicional brasileiro; mas, mesmo assim, o referido autor enumera diversos problemas de cunho social, como a cobrana de despesas processuais; tcnicos, como o excesso de formalismo; estruturais, como o nmero reduzido de rgos jurisdicionais; institucionais, como o corporativismo e, at mesmo, ticos e de ndole moral, como a procrastinao

    41. Captulo elaborado por Ricardo Russell Brando Cavalcanti.

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    dos feitos pelos profissionais de direito.42 Vrias medidas vm sendo tomadas para melhorar/mudar esta situao. Como exemplos: a possibilidade do magistrado de julgar de plano as aes repetitivas, o instituto da smula vinculante, a smula impeditiva de recursos e a criao de rgos julgadores mais cleres, como o caso dos Juizados Especiais Federais e Estaduais.

    No se pretende aqui realizar quaisquer crticas s medidas supramencionadas, mas essas no servem para resolver o conflito sem o Judicirio, pois todas dependem deste poder. Em verdade, muitos indivduos sequer procuram resolver os seus litgios ou, ainda, tentam resolv-los por meio da fora e/ou de forma ilcita. muito comum se deparar, por exemplo, com a chamada separao de fato, consequncia clara da evidente dificuldade das pessoas em legalizar sua situao por meio do divrcio. Entretanto, a partir do momento em que se resolve procurar uma soluo, a alternativa acaba sendo sempre o Poder Judicirio.

    No h o costume, por parte dos membros da sociedade, de procurar outros meios de resoluo das lides. No h um estmulo, inclusive por parte da mdia, para a busca por outras instituies ou outras formas de resoluo de conflitos. At mesmo quando uma grande emissora de televiso procura em seu programa dominical noturno estimular a conciliao, o faz com a presena do Poder Judicirio.

    Diante dessa situao, urge a necessidade de se buscar meios de evitar a propositura de aes judiciais, mas sem prejuzo garantia de acesso justia, sob pena, inclusive, da populao, desacreditada com a situao atual, volta