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86 Da educaçªo do juízo de gosto * Matheus Gorovitz ESTUDOS Palavras-Chave: estØtica; belo; gosto; totalidade; autonomia; cidadania. Discorre sobre a necessidade do ensino das artes e da sua história na educaçªo. Visa educar o juízo de gosto para assim instrumentar o estudante a identificar a beleza como expressªo da totalidade humana. Corrobora a noçªo de que a formaçªo do cidadªo, do artista e do ser emancipado sªo interdependentes. Define os termos capazes de conferir disciplinaridade ao ensino das artes, ao reconhecer na estØtica o campo disciplinar que tem como objeto de estudo a prÆxis humana, quando esta visa objetivar, atravØs da obra de arte, a conjugaçªo das dimensıes subjetiva e objetiva, individuais e sociais, ou seja, o ser na totalidade. Situa as categorias citadas: julgamento de gosto, totalidade, belo, autonomia, estØtica. Sugere um roteiro de leitura da obra de arte inferido das premissas conceituais. * Este comunicado deriva de um texto anterior, de nossa autoria, sobre o ensino da história da arte na formaçªo profissional do arquiteto. A versªo atual traduz a convic- çªo de a educaçªo artística começar desde a mais tenra idade. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 79, n. 193, p. 86-94, set./dez. 1998

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Da educaçãodo juízo de gosto*

Matheus Gorovitz

ESTUDOS

Palavras-Chave: estética; belo;gosto; totalidade; autonomia;cidadania.

Discorre sobre anecessidade do ensino dasartes e da sua história naeducação. Visa educar o juízode gosto para assiminstrumentar o estudante aidentificar a beleza comoexpressão da totalidadehumana. Corrobora a noção deque a formação do cidadão, doartista e do ser emancipadosão interdependentes. Defineos termos capazes de conferirdisciplinaridade ao ensino dasartes, ao reconhecer na estéticao campo disciplinar que temcomo objeto de estudo a práxishumana, quando esta visaobjetivar, através da obra dearte, a conjugação dasdimensões subjetiva e objetiva,individuais e sociais, ou seja, oser na totalidade. Situa ascategorias citadas: julgamentode gosto, totalidade, belo,autonomia, estética. Sugere umroteiro de leitura da obra dearte inferido das premissasconceituais.

* Este comunicado deriva deum texto anterior, de nossaautoria, sobre o ensino dahistória da arte na formaçãoprofissional do arquiteto. Aversão atual traduz a convic-ção de a educação artísticacomeçar desde a mais tenraidade.

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Se se quiser gozar da arte, deve-se serum homem artisticamente educado.Karl Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos

Este trabalho discorre sobre a neces-sidade do ensino das artes e da sua histó-ria. Visa, ao instrumentar o estudante, aidentificar a beleza como expressão da au-tonomia humana, permitir que exerça, atra-vés do juízo de gosto, a condição de seremancipado. Admitindo, na senda do pen-samento iluminista de Kant, a volição e au-todeterminação como prerrogativas propri-amente humanas, infere, na atividade artís-tica, um modo de reafirmar esta essência.

A diferença, segundo Kant, entre o ho-mem e o resto da natureza animal, inani-mada ou vegetal é que esta pertence aoreino da causalidade, seguem rigorosa-mente algum esquema pré ordenado decausa e efeito, enquanto que o homem élivre para escolher o que ele quer. A von-tade é o que distingue seres humanosde outros objetos na natureza (Berlin,1999, p. 70).

Um ser só se considera autônomo quan-do é senhor de si mesmo, e só é senhorde si quando deve a si mesmo seu modode existência. Um homem que vive gra-ças ao outro, se considera a si mesmoum ser dependente (...) a vida tem ne-cessariamente o fundamento fora de simesma, quando não é minha própria cri-ação (Marx, 1978, p. 14).

Julgamento de gosto

Arbitrar sobre o belo identificando ascondições que o qualificam (seja propon-do ou reconhecendo o belo na obra de arte)requer, na prática didática, educar o juízo

de gosto. Tal modo de ajuizar implica assu-mir uma decisão na ausência de uma razãoprática ou ainda de uma razão lógica. O juízode gosto não tem como parâmetro de avali-ação nenhum valor preestabelecido, tem,isto sim, como referencial, o trabalho huma-no plasmado no acervo de obras de arte. Oobjeto não é aferido pelo valor prático-utili-tário � a capacidade de satisfazer uma ne-cessidade particular predeterminada � , nemse alicerça em valores estabelecidos a priori,conceituais, éticos, ou os que, sedi-mentados pela tradição, passam a serconsensuais. Diferencia-se, ainda, dodiscernimento fundamentado, cognitiva outeoricamente, quando são pré-conceitos,conhecimentos adquiridos ou a argumen-tação lógica, que asseguram a certeza dojulgamento justo. É a interação das capa-citações racionais, intelectivas, volitivas esensoriais que engendra o juízo de gosto econstitui por isto, como ação autônoma eautodeterminada, uma práxis, no sentidoque lhe atribui Marx:

Atividade livre, universal, criativa e autocria-tiva, por meio da qual o homem cria (faz,produz) e transforma (conforma) o seumundo humano e histórico e a si mesmo;atividade específica ao homem, que o tor-na basicamente diferente de todos os ou-tros seres (Bottomore,1988, p. 292).

A práxis é o ato que realiza a unidade en-tre o sujeito e o objeto (...) nela coinci-dem as determinações do pensamento eo desenvolver-se da história. Por isso apráxis é a consciência da totalidade e suarealização. A consciência não precede aação, pelo contrário, ela funda-se no ato(Bobbio, 1992, p. 989).

Ao promover a interação das dimen-sões subjetivas e objetivas e exercitar taisprerrogativas, a obra de arte faculta ao indi-víduo, seja no instante da concepção ou daapreciação, objetivar sua totalidade � a to-talidade das capacitações individuais. Ple-nitude efetivamente objetivada pela consci-ência da exterioridade da obra, pois �Só emobjetos reais, sensíveis, pode [o sujeito]exteriorizar sua vida� (Marx, 1978, p. 40).

Totalidade

A totalidade subentende o conjunto denecessidades e possibilidades humanasexercidas de modo integrado, quando o

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lado sensível e o racional da consciêncianão comparecem fragmentados � o sujei-to é autoconsciente, seja na plenitude ouna adversidade da condição existencial. Ocontrário desta condição é a alienação, nosentido atribuído por Marx:

Ação pela qual (ou estado no qual) umindivíduo, um grupo, uma instituição ouuma sociedade se tornam (ou permane-cem) alheios, estranhos, enfim, alienadosaos resultados ou produtos de sua pró-pria atividade (e à atividade ela mesma),e/ou à natureza na qual vivem, e/ou a ou-tros seres humanos, e � além de, e atra-vés de � também a si mesmos (às suaspossibilidades humanas constituídas his-toricamente) (Bottomore, 1988, p. 5).

O ser emancipado, cujo comporta-mento não é heteronomicamente deter-minado ou predeterminado, mas sim, quedetermina os parâmetros de sua ação enesta determinação se autodetermina, im-plica a articulação das esferas subjetivase objetivas � da sensibilidade e daracionalidade, da dupla condição de in-divíduo particular (motivado pela razãoprática e pela subjetividade), e de ser ge-nérico (motivado pela vocação social emediado pela universalidade do pensa-mento objetivo � lógico e cognitivo), pois,conforme postula Marx: �É somente naelaboração de um mundo objetivo que ohomem se afirma como ser social� (Marx,1978, p. 12).

Belo

A mediação entre o universo subjetivoe o objetivo se faz pelo conceito de belo;ao afirmar, mediante o juízo de gosto quealgo é belo, quero que meu sentimento(particular e subjetivo) possa ser comparti-lhado coletivamente; por isto, associo umconceito (objetivo e universal) à singulari-dade subjetiva. Atribuo um valor universala um sentimento afetivo particular.

O juízo estético envolve uma contradição,ou antinomia, pois embora exprima umaexperiência do sujeito, da sua sensibilida-de particular, pretende que a significaçãodessa experiência seja comunicável aosoutros e encontre ressonância universal.Eis porque Kant nos diz a propósito daquantidade do juízo, que �belo é o queagrada universalmente sem conceito� (...).

No juízo estético, portanto, verifica-se oacordo, a harmonia, ou a síntese, entrea sensibilidade e a inteligência, o parti-cular e o geral (Corbisier, 1987, p. 67-68).

No conceito de belo, é sublinhada aconsciência do ser como ser social, poisao valer-se de um conceito (universal) quese manifesta como fenômeno, pode, en-tão, se comunicar. Comunicabilidadeigualmente possível no plano do cotidia-no, na linguagem prosaica quando preva-lecem valores individuais e subjetivos(�Maria é bela�), ou ainda no discurso ló-gico ou ético que almeja, ao contrário, auniversalidade, expressão não-tributáriade aspectos subjetivos e particulares (�Ébelo morrer pela pátria�). No primeirocaso, o sujeito objetiva a consciência dasua individualidade (particular e subjetiva),no segundo, a consciência de sociabili-dade (universal e objetiva).

Autonomia

A idéia de �ser autônomo� é homólogaà de �belo� como expressão autônoma:�Proporção que uma parte mantém comoutras partes e com o todo� (Tatarkiewicz,1995, p. 122).

A síntese entre o conteúdo (sujeitoautônomo) e a forma (objeto autônomo)adjetivada como beleza e objetivada pelaobra de arte é uma práxis e, enquanto tal,tem um sentido volitivo e libertário: promo-ver a consciência da autonomia e da liber-dade, esta entendida como consciência denecessidades e possibilidades objetivashistoricamente constituídas, e comocorolário, o sentido de responsabilidade �móvel da cidadania.

A liberdade é a consciência simultâneadas circunstâncias existentes e das açõesque, suscitadas por tais circunstâncias,nos permitem ultrapassá-las (Chauí,1994, p. 362).

Ao contrário dos processos naturais ounecessários, e das ações que resultamda coação e da violência, as ações hu-manas consideradas livres são intencio-nais, visam determinado fim, têm motivoque as explica e incluem um projeto, bemcomo a decisão de um agente respon-sável. A intencionalidade é a característi-ca fundamental do comportamento cons-ciente e livre. A circunstância de ter feito, R

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estar fazendo ou pretender fazer algumacoisa intencionalmente define a liberda-de e a responsabilidade da conduta hu-mana (...) Ao reconhecer-se responsávelpelo que pratica, o sujeito se reconhece,também, como agente livre ou causa detais atos, excluindo-os conseqüentemen-te, do domínio da natureza ou da neces-sidade (...) A liberdade, como observaHegel, deixa de ser arbitrária e adquiresentido, ou se torna racional, quandoduas vontades, defrontando-se a respei-to de um litígio sobre propriedade, porexemplo, reconhecem-se mutuamente,dando origem a uma vontade comumque se traduz no acordo ou contrato, queprefigura o Estado, forma suprema doespírito objetivo (Corbisier, 1987, p. 160).

O caráter libertário, subjacente àconjugação entre a esfera do objetivo edo subjetivo, contido no juízo de gostoe manifestado graças à existência obje-tiva da obra de arte, é apontado porRousseau: �Liberdade é obedecer a umalei por nós mesmos imposta� (apudBobbio, 1992, p.712).

Compete ao artista, valendo-se daobra de arte como fator promotor daautoconsciência e autodeterminação(consciência de si), da consciência dacidadania (consciência dos outros),contribuir para a construção da cidadedemocrática:

Somente no estado social, subjetivismoe objetivismo, espiritualismo e materia-lismo, atividade e passividade deixam deser contrários e perdem com isso seumodo de existência como tais contrários(...) sua própria sensibilidade só atravésdo outro existe para ele como sensibili-dade humana (Marx, 1978, p. 13-14).

Ser senhor de si � isto é � autônomo � éser capaz de philia � isto é, reciprocida-de, de relação intersubjetiva como coe-xistência e não-violência � é o núcleo davida ética. Como disse Epicuro, �a justi-ça não existe por si própria, mas encon-tra-se sempre nas relações recíprocas,em qualquer tempo e lugar em que exis-ta entre os humanos o pacto de não cau-sar nem sofrer danos (Chauí, 1994, p.367).

A polis grega, fundamentada na no-ção de isonomia � �participação igual detodos os cidadãos no exercício do poder�(Vernant, 1981, p. 56) � ilustra a noçãode autonomia auferida pela relação das

partes entre si (na obra: dos componen-tes formais, e no ser: das dimensões hu-manas). A proporção � relação entre aspartes � pressupõe o reconhecimento darelevância de cada parte na formação dotodo, da autonomia de cada unidade dosistema formal e de cada indivíduo nasociedade.

A noção essencial é, de fato, a de propor-ção; a cidade forma um conjunto organi-zado, um cosmos harmoniosamenteconstituído se cada um de seus compo-nentes situa-se em seu local e possui aporção de poder que lhe é conferida emfunção de suas virtudes próprias (Vernant,1981, p. 90).

A autonomia inerente ao julgamentode gosto, com o qual nos apropriamos daobra-de-arte, tem um corolário: exclui todaforma de autoritarismo: �Nenhum privilégio,nenhuma autocracia de qualquer espéciepode ser tolerada onde impera o gosto�(Schiller, 1982, p. 217).

Estética

As premissas acima suscitam a seguin-te questão: podemos qualificar disciplinar-mente o ensino da arte? Tal questão se de-para com um paradoxo: o conhecimentodisciplinar visa ao universal e ao necessá-rio, não ao particular e ao contingente; é,portanto, estruturado pelo raciocínio lógi-co traduzido em conceitos universais e ob-jetivos, que não podem se alterar em pre-sença de juízos subjetivos. Como, então,qualificar disciplinarmente um objeto deestudo (a obra-de-arte) tributário de ummodo de interação particular, sensível esubjetivo, com prerrogativas fundamental-mente individuais?

Admitir a obra de arte como objeto deconhecimento disciplinar pressupõe, comocondição preliminar e necessária, sua exis-tência objetiva, ou seja, algo passível deser definido, algo sobre o qual posso for-mular conceitos mediante os quais reco-nheço, em artefatos particulares, a condi-ção geral de ser obra de arte, permitindo,assim, como corolário, ajuizar sobre o beloenquanto categoria passível de definiçãoconceitual:

Inclusão de um objeto (símbolo ou função)em uma classe, pela determinação das con-dições sob as quais o objeto por definir seR

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iguala a qualquer elemento da referida clas-se (Dicionário Eletrônico Aurélio).

O conhecimento só é científico na me-dida em que constitui um sistema, umaunidade ou um todo lógico, no qual osjuízos (qualquer enunciado científico éum juízo) se acham vinculados uns aosoutros pela coerência ou pela racio-nalidade do método. Verifica-se, assim,que a �cientificidade� da ciência consis-te não só na estrutura de seus conheci-mentos, que devem ser universais e ne-cessários, mas também na unificaçãometódica desses conhecimentos emuma totalidade coerente (Corbisier,1987, p. 208).

A questão pode ser equacionada aose considerar as duas principais vertentesque se confrontam em busca de uma defi-nição de obra de arte: a que se distinguepor considerar os fatores que qualificam obelo como intrínsecos, inerentes ao objeto(à obra de arte), ou extrínsecos, inerentesàs condições de percepção do sujeito.

Na primeira vertente, os atributos dobelo serão identificados nas peculiaridadesinternas à obra; na segunda, o belo é tribu-tário de fatores extra-artísticos, de doismodos:

� na esteira da tradição platônica,como essência ideal: um belo-em-si, inde-pendente das obras individuais, compare-cendo como termo de referência e padrãouniversal, noção assim ilustrada no diálo-go de Hípias Maior:

Sócrates: � Então, o que é a beleza?Hípias: � Ou seja, você está me pergun-tando que coisa é bela?Sócrates: � Não exatamente, Hípias. Per-gunto o que é o Belo.

� na tradição empirista, como tribu-tário da experiência e da subjetividade.A expressão �gosto não se discute� de-nuncia um relativismo assim fundamen-tado por Hume: �A beleza não é uma qua-lidade em si, existe meramente na mentede quem contempla e cada mente per-cebe uma beleza diferente� (Hume, 1984,p. 318).

A possibilidade de conciliação dessasabordagens norteou as premissas deestruturação didática: admitir a Estéticacomo campo disciplinar que tem como ob-jeto de estudo a práxis humana, quando estavisa objetivar, através da obra de arte, a con-jugação das dimensões subjetiva e objeti-

va, intelectuais e sensíveis, individuais e so-ciais, ou seja, o ser na totalidade.

A categoria da totalidade, desenvol-vida pela filosofia clássica alemã (Kant,Hegel, Marx) marca a evolução, na histó-ria do pensamento filosófico, da metafísicapara a concepção dialética. Representa asuperação da dicotomia sujeito/objeto naqual se alicerça todo o pensamentometafísico.

Totalidade subentende a indissocia-bilidade das esferas do subjetivo e do objeti-vo. Sujeito e objeto são, na concepçãodialética, antitéticos e complementares,interagindo num processo do qual a obra dearte emerge como uma das sínteses possí-veis. Síntese ao privilegiar seja o universo sen-sorial, o racional, o volitivo e o cognitivo de-nuncia o equilíbrio, tensão ou conflito destascapacitações do ser.

Lúcio Costa e Artigas traduzem as-sim, cada um a seu modo, o conceito detotalidade:

O que caracteriza a obra de arte é preci-samente esta eterna presença, na coisa,daquela carga de amor e de saber que,um dia, a configurou (Costa, 1980, p. 5).

A consciência humana, com seu ladosensível e com seu lado racional, não temsido convenientemente interpretadacomo um inteiro, mas como a soma deduas metades. Aos artistas, principal-mente, compete conhecer esta dicotomiapara ultrapassá-la (Artigas, 1981, p. 49).

Ao se apropriar do objeto de ummodo estético, o ser humano se liberta deser heteronomicamente determinado.Quando o ser imprime a universalidade desua essência (sua práxis) em um objeto etorna este objeto �objetivo�, o objeto nãopode determinar heteronomicamente seuser, torna-se, isto sim, uma expressão daforça do ser humano. Objetividade e liber-dade são termos correlativos. De fato, ohomem só se relaciona consigo no objetoestético, isto é, sua liberdade, sua auto-identidade.

Considerando-se que só em objetosreais e concretos pode o ser manifestarsua vida (Marx), a estética fundamenta-se na homologia entre a autonomia daobra de arte e a autonomia do ser (a co-erência interna da forma e a concordân-cia entre esta forma e o conteúdo a serexpresso). R

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Roteiro de leitura analíticada obra de arte

A premissa de que a obra de arte for-nece (por constituir-se uma entidade auto-suficiente � uma totalidade em si) a umobservador atento, lógico, racional e sen-sível os elementos necessários e suficien-tes para sua decodificação, e o objetivo dedesenvolver o juízo de gosto com vistas àformação do artista nortearam o parâmetropedagógico adotado: o estudo da arte ede sua história não precedido de esquemaconceitual fundamentado de antemão, massim construído no confronto entre ascapacitações sensíveis e intelectivas dosestudantes com as obras de arte. Tal con-fronto, monitorado por um roteiro de apre-ciação e descrição de obras de arte, visaengendrar uma consciência ampliada:

1º) enquanto obra em si: consciênciada existência física da obra (passível deser mensurada com precisão objetiva);

2º) enquanto imagem criada pelo su-jeito: consciência de si, das faculdades eprerrogativas racionais, sensíveis, volitivase intelectivas, despertadas pela obra nosujeito (incomensuráveis);

3º) enquanto modalidade de lingua-gem: consciência de si como ser social,consciência engendrada pela existênciade um meio de comunicar-se.

Esse roteiro pode assim ser percorrido:

Objeto-em-si

Descrever os componentes plásticos(físico-espaciais), visualizáveis e tangíveis(graças à sua exterioridade objetiva), cadaum deles separadamente e integradosnum sistema.

Objeto-para-si

Descrever a imagem produzida pelaobra no sujeito, considerando o fato de queos elementos identificados e descritos na suaexterioridade objetiva motivam capacitaçõesindividuais do sujeito � a sensibilidade, aracionalidade e a inteligibilidade (seja emigual medida, ou priorizando uma ou outradessas prerrogativas).

Objeto-em-si-e-para-si

Considerada como forma significa-tiva � como suporte material de signifi-

cados, a obra de arte constitui uma mo-dal idade de l inguagem. Categoriaindissociável da consciência � uma dasformas de objetivação da consciência �a linguagem artística objetiva a condiçãosocial sem desconsiderar a individuali-dade � é instrumento pelo qual satisfazsua necessidade de intercâmbio com osoutros homens e, assim, reconhece-secomo ser social; é o que entendemosda afirmação de Marx (1977, p. 43-44):

A linguagem é tão antiga como a consci-ência � a linguagem é a consciência real,prática, que existe para os outros homense, portanto, também para mim mesmo, ea linguagem nasce, como a consciência,da carência, da necessidade de intercâm-bio entre os homens.

Enquanto objeto inteligível, a obra dearte confere ao sujeito consciência de si(enquanto indivíduo) como ser social por-que tem no fazer artístico um recurso �um significante � para comunicar seussignificados e, portanto, se comunicar.Como decorrência da consciência daexterioridade do objeto (obra), apreendeque o mundo real e a consciência nãoestão divorciados.

Um ser que não tenha sua natureza forade si não é um ser natural, não faz parteda essência da natureza. Um ser que nãoé, por sua vez, objeto para um terceiroser não tem nenhum ser como objeto seu,isto é, não se comporta objetivamente,seu ser não é objetivo (Marx, 1977, p. 41).

A comunicação pode ainda ser atra-vés da linguagem coloquial ou prosaicaquando pessoal e subjetiva; através dodiscurso lógico quando a descrição, ob-jetiva e universal visa à transmissão deconhecimento decodificado em noçõese conceitos. Referimo-nos acima à lin-guagem artística ou poética quando anecessidade é a de expressar o ser nasua totalidade.

O roteiro sugerido descreve as obrascomo expressão da totalidade e correspon-de à estrutura do real entendida como pro-cesso dialético. Cartesianamente divididoem partes, os três momentos são, em ver-dade, um só, sintetizados pela obra; tal ca-ráter analítico não deve, sobretudo, motivarum procedimento mecânico, inibindo, assim,o intercâmbio espontâneo com a obra.

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Critérios e procedimentosdidáticos

l Pressuposta a obra como totalida-de (estrutura significativa), visamos estimu-lar a leitura das obras sem nenhuma formade mediação e, assim, ampliar a consciên-cia das prerrogativas da sensibilidade, dainteligibilidade e da racionalidade. Para isto,a leitura não deve ser precedida de infor-mação teórica preliminar; tal interferênciairia de encontro ao objetivo de fomentar aconfiança do estudante no seu julgamentode gosto � a faculdade de julgar o belo.Descartamos, como decorrência, a hipóte-se de o aprendizado das artes ser tributá-rio de conhecimento teórico preliminarcomo instrumentação considerada neces-sária na leitura da obra de arte, venha elesob a forma de conceitos, informações cul-turais, históricas, ou ainda metodológicas,adquiridas seja por leitura, seja pelo ma-gistério de aulas expositivas. A con-ceituação deve comparecer no instante emque ela for necessária, como resultado dasinquietações dos estudantes, em funçãodas questões por eles suscitadas, ou paraaferir hipóteses de interpretação aventadas.Por falta de confiança na sua faculdade dejulgar, no seu julgamento de gosto, o estu-dante apela espontaneamente para as re-ferências bibliográficas. Essas informa-ções devem vir a posteriori, como formade verificação; cabe, então, investigar avida dos artistas, as relações sociais, ascondições materiais da época e as idéi-as dominantes.

l A leitura comparativa de obras (ouprojetos) evidencia os propósitos plásticosadotados. Tal leitura deverá sempre con-frontar obras, não apenas de um mesmoperíodo diferindo nas intenções, mas igual-mente as que antecedem ou precedem operíodo estudado. A comparação de pro-jetos de arquitetura com outras modalida-des de manifestação artística é não ape-nas estimulante, como serve para reiteraro entendimento das obras. Igualmente fru-tífero é situar a linguagem poética, distin-guindo-a da prosaica e da científica, aoassinalar a tendência da obra de arte emse aproximar ora de uma, ora de outramodalidade de linguagem.

l A experiência mostrou que, em faceda insegurança em avaliar e julgar os as-pectos formais, o estudante tende a comen-tar os aspectos episódicos e anedóticos (em

se tratando de arquitetura, os técnicos efuncionais). Sem reprimir esta postura, de-vemos mostrar que ela sempre espelhavalores pré-conceituados (identificação deelementos de um universo de vivênciasacumuladas e sedimentadas pela tradição);é conveniente insistir, isto sim, em identifi-car a coerência, promovida pela obra, en-tre os elementos plásticos e os narrativos �entre forma e conteúdo.

l Enquanto objeto-em-si, a descriçãodeve considerar a obra como um conjun-to de sinais plásticos estruturados comosistema, o reconhecimento da família des-ses sinais, e a homologia estabelecidaentre eles permite agrupá-los em catego-rias (Wolfflin sugere uma taxonomia emsua obra Princípios Fundamentais da His-tória da Arte).

l Na descrição da obra como obje-to-para-si, em função das dificuldades doestudante, podemos organizar metodo-logicamente a vivência subjetiva introdu-zindo progressivamente termos com osquais ele possa expressar seus sentimen-tos e pensamentos, parâmetros taiscomo: intelectual/sensorial/racional; pito-resco/sublime; simbólico/alegórico; ide-al/contextual; intenção/tradição ou cate-gorias como clássico/romântico.

l A descrição da obra como objeto-em-si-e-para-si é o momento de reconhe-cer os significados gerais � culturais, his-tóricos e coletivos � que a obra expressae com os quais está comprometida. O es-tudante será estimulado a reconhecer apostura do artista em relação aos valoresvigentes, reiterando-os ou contestando-os,podendo, então, identificar as dimensõesvalorizadas nesse contexto: afetivas eintelectivas, sensíveis e racionais, indivi-duais e coletivas, bem como a predomi-nância ou o equilíbrio delas (é nesta eta-pa, e a posteriori, que a consulta biblio-gráfica se faz mais significativa). Vale agoraintroduzir termos como liberdade/necessi-dade; individualidade/coletividade; inten-ção/tradição; cultura/natureza; fenomênico/numênico; autônomo/heterônomo; direitoadquirido/direito de constituir; ideal/conjuntural. Os termos mencionados, em-bora dicotômicos, não são excludentes, poisna relação de totalidade nenhuma dimen-são é hegemônica; ocorrerá, isto sim, a va-lorização de uma delas, que a obra de arteirá privilegiar.

l Da noção da totalidade, enquantosíntese entre forma e conteúdo, decorre R

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um corolário: categorias estéticas não-normativas que não privilegiam deter-minadas manifestações artísticas emdetrimento de outras. No confronto deobras e projetos, a apreciação deveráser isenta de qualquer forma de julga-mento maniqueísta; a análise será sem-pre mais rica se restringir-se a identifi-car disposições plásticas diferenciadase a coerência desses elementos formaisentre si e com os conteúdos expressos.Admitir de antemão a multiplicidade deexpressões artísticas para traduzir osanseios e as visões de mundo de cada

um dos artistas não impede que o estu-dante se identifique mais intimamentecom um deles.

Por último, e não menos importante,ao afirmar que a obra de arte admite leitu-ras renovadas, cabe ao professor redobrarsua atenção, renunciar à omnisciência evirar aprendiz, posto que �toda relaçãoafetiva afeta os dois termos da relação�(Katinsky, 1995), e ganha na troca, comoantecipa o poeta (Camões, 1966, p. 34):�Transforma-se o amador na cousa ama-da/ Por virtude de muito imaginar�.

Referências bibliográficas

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Recebido em 29 de março de 1999.

Matheus Gorovitz, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universi-dade de São Paulo (USP), é professor de História da Arte e Estética do Departamentode Teoria e História da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB).

ABSTRACT

It discourses on the need to teach art and its history on education. It aims to educatethe judgement of taste so that it enables students to identify beauty as an expression oftotality. It confirms the idea that the development of citzenship, artists and emancipatedhuman beings are interrelated. It defines the terms that enables to check disciplinarity tothe teaching of art in such a way that it recognizes on aesthetics the discipline that has asa subject of study the human praxis when that aims to show, through a work of art, theconjugation of subjective and objective, individual and social dimensions, in short, thehuman being as a whole. It places the categories already mentioned � judgement oftaste, wholeness, beauty, autonomy and aesthetics. It suggests a methodology to read awork of art deduced from the concept premises.

Key-Words: aesthetics; beauty; taste; totality; autonomy; citzenship.

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