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BÍBLIA E HERMENÊUTICAS JUVENIS EVANGELHO DE MATEUS – CONFLITOS RACIAIS Evangelho de Mateus e Conflitos Raciais

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BÍBLIA E HERMENÊUTICAS JUVENIS

EVANGELHO DE MATEUS – CONFLITOS RACIAIS

Evangelho de Mateus e Conflitos Raciais

Bíblia e Hermenêuticas Juvenis – Módulo 4 – Etapa 3 1

Módulo 4 – Etapa 3

Contexto

O método Histórico-crítico1 base de toda exegese2 e hermenêutica3 progressista, que visa fazer Leitura Popular – propõe a contextualização histórica, social, religiosa, geográfica do texto bíblico.

Estamos falando de cristãos/as que viveram em torno do ano 80 d.C, ao norte da Galiléia e sul da Síria. Esta geração de cristãos/as vieram de Jerusalém, após a grande guerra travada entre os judeus e o império Romano, tendo este destruído o Templo, no ano 70 d.C. Essas pessoas tiveram de sair de Jerusalém e foram para a Galiléia, Síria e outros lugares. Clique aqui para ver o mapa da diáspora4. As pesquisas informam que o Evangelho de Mateus fora escrito no final dos anos 80 d.C.

Tanto a comunidade cristã, que chamaremos de comunidade de Mateus, como a comunidade judaica (formada por rabinos judeus de linha farisaica), nesta

1 O Método Histórico-crítico representa um instrumental indispensável de exegese e hermenêutica crítica.

Significou uma grande revolução para a pesquisa bíblica, com categorias modernas de análise literária,

linguística, novas categorias hermenêuticas e de interpretação histórica – uma alternativa às interpretações

alegóricas e fundamentalistas. O grande mérito do Método Histórico -crítico é que ele ajuda a evitar o

fundamentalismo bíblico.

2 Palavra que vem do grego (de ex + egese, ‘ex’ significa ‘fora’ e egere, de ago, é ‘tirar’), ou seja,

literalmente quer dizer ‘tirar fora’ (ex-ago). Na Bíblia aplicamos para interpretar o texto, extrair o

significado, ou sentido. Todo/a leitor/a da Bíblia precisa interpretar aquilo que lê e isso pede um

conhecimento profundo das ciências atuais dede a arqueologia até a linguística. A fé, de fato, não exclui a

ciência. Na prática, fazer exegese exige usar as ciências bíblicas (arqueologia, geografia, crítica textual,

crítica literária, etc.) para entender o texto lido.

3 Hermenêutica é a ciência que nos ensina os princípios, as leis e métodos de interpretação. Trata-se de

ultrapassar a distância entre o tempo dos /as autores/as e primeiros/as destinatários/as dos textos bíblicos e

nossa época contemporânea, de modo a atualizar corretamente a mensagem dos textos para alimentar a vida

de fé dos cristãos. Toda exegese dos textos é chamada a ser completada por uma necessária hermenêutica,

no sentido recente do termo.

4 Diáspora, dispersão dos judeus e judias, para terras fora de Israel.

Bíblia e Hermenêuticas Juvenis – Módulo 4 – Etapa 3 2

época, já estava se reorganizando depois da grande guerra em Jerusalém.

A comunidade de Mateus aproveitou grande parte do material de Marcos para escrever sobre a vida de Jesus, a partir de sua visão e contexto. Também aproveitou textos de outras fontes (Quelle ou também chamada fonte Q). Mas existem muitos textos que o Evangelho de Mateus elaborou. Veja os textos exclusivos de Mateus.

Veja também, de uma forma geral, a estrutura do que chamamos de sinóticos5 (Mc. Mt e Lc), e suas fontes de escritas. Clique aqui para verificar.

É bonito de se ver a riqueza popular de contos e poesias inspiradas pelos africanos/nas e seus/suas descendentes. Bem popular são histórias como também foi popular as histórias e ensinamentos passados por Jesus aos/as seguidores/as por meio de parábolas6, um gênero literário, que usam elementos da natureza ou da vida cotidiana para explicar um ensinamento. No Evangelho de Mateus temos diversas parábolas, conforme o quadro que apresentamos aqui.

Neste tempo, a comunidade de Mateus, que era formada em sua grande maioria por judeus convertidos ao cristianismo, enfrentava muitas críticas e perseguições por parte das autoridades judaicas. Por aceitar a Boa Nova de Jesus, foram discriminados pelos 5 O fato sinótico. Comecemos por apresentar alguns termos técnicos e usuais na exegese evangélica.

Chama-se trechos da tríplice tradição aos que são comuns a Mc, Mt e Lc. Dupla tradição são os comuns a

Mt e Lc (tecnicamente não se usa esta expressão para os comuns a Mc e Mt ou a Mc e Lc). Tradições

simples são as representadas por um único evangelho. Duplicado são as tradições que aparecem duas vezes

em um mesmo evangelho.

6 Parábola é um gênero literário dentro do material discursivo muito usado no Novo Testamento. É uma

comparação desenvolvida em forma de história que quer persuadir. Seu sentido está no todo, não em cada

elemento.

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fariseus que não aderiram a esta mensagem. Estes não aceitavam os judeus-cristãos em suas sinagogas7 e os expulsaram de lá. As perseguições por parte dos judeus também foi o mote norteador de emigração dos judeus-cristãos para a Galiléia e Síria.

Vamos perceber daí o motivo porque o Evangelho de Mateus ter tantos conflitos com os fariseus e fazer questão de provar a linhagem sanguínea de Jesus com Abraão, Moisés e Davi, citando tantas vezes o Antigo Testamento.

Exercício 1: Qual a origem de Jesus?

O objetivo aqui é fazer um movimento na direção de resgatar a autoestima do povo negro.

CONSTATAÇÃO:

Fonte: Jesus Mafa (França)

7 Sinagogas eram centros culturais e de estudos judaicos, nas quais se reuniam os judeus exilados. Na

diáspora era o centro de estudo da Lei, e depois da destruição do templo, em 70 d.C, foi muito útil para

reuniões de cultos e da leitura e exposição da Lei de Moisés.

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Convido você a descobrir a presença negra nos textos e lugares descritos no Evangelho de Mateus, nos capítulos 1 e 2, que é a porta de entrada do livro.

Verifique:

- De Abraão até Jesus quem são as outras etnias que fizeram parte da formação do povo de Israel?

- De onde os magos surgiram? Quem eles eram?

- Para onde José, Maria e Jesus fugiram? E quanto tempo permaneceram neste lugar?

Você vai perceber que logo de início, a Boa Notícia é de que Jesus faz parte de uma linhagem genealógica bem variada. Isto já nos fornece uma chave de leitura: não há raça pura! Somos todos/as filhos de Deus!

No capítulo 2,1-12, vamos ler o relato da visita dos magos ao recém-nascido, que certamente inspirou a criação do presépio. Poucos detalhes são dados, a não ser que eles vinham do Oriente e que, pelos sonhos que tiveram, puderam preservar a vida de Jesus contra as ameaças do assassino Herodes.

A leitura oficial não nos proporcionou saber a origem étnica dos magos, mas, a literatura popular, contada desde nossos ancestrais e nas festas de Folias de Reis, possibilitou-nos descobrir o nome de um dos magos, e que ele é negro. Ele se chama Belchior. (Isto só foi possível, porque temos também acesso aos Evangelhos Apócrifos que são tão antigos como os evangelhos canônicos e são fontes tão sábias e

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verdadeiras quanto à primeira – a Bíblia. Para saber mais sobre os evangelhos apócrifos, clique aqui.

Nos dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus temos a Boa Notícia de que os povos negros fizeram parte da história de Jesus e participaram de seu nascimento e de sua infância.

Mas, além da tarefa de pinçar personagens negras nos textos bíblicos, a proposta da Leitura bíblica na perspectiva da negritude é de buscar a Boa Nova para todos/as os negros e negras que sentem na pele a INJUSTIÇA.

A palavra JUSTIÇA é a principal chave de leitura fornecida pelo Evangelho. Mateus fala sobre justiça várias vezes. Você verá que é o Evangelho que mais insiste no cumprimento da justiça.

O Evangelho é organizado e escrito para a comunidade cristã que na época já se entendia como uma ekklesia (igreja). Por isto, o Evangelho ser diferenciado dos demais, ser mais elaborado, com divisões em cinco livros e cada qual conter uma parte narrativa (sobre as práticas de Jesus) e uma parte de discursos (seus ensinamentos). Veja a estrutura do Evangelho de Mateus clicando aqui.

O Evangelho insiste na questão da JUSTIÇA porque encontra várias categorias de pessoas que sofre a injustiça, e são marginalizadas, como os/as sem-terra (5,1-5), desempregados/as (20,1-16), migrantes (2,13-23;4,13-16.24-25), perseguidos/as (5,10-12; 23, 13-32) e pobres (11,25-26; 6,25-34; 15,32; 25,31-46).

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Exercício 2: Quem são os/as empobrecidos/as?

Nesse momento a proposta é de resgatar a autoestima do povo negro, proporcionar seu empoderamento na sociedade.

Comecemos, assistindo um vídeo bem curtinho!

No método hermenêutico, o primeiro passo é partirmos da vida, das experiências vividas, sentidas, sofridas. Façamos então um exercício hermenêutico em nossas vidas, seja você de pele branca ou de pele negra. Converse consigo mesma/o e com mais alguém sobre isto:

- Eu já fui vítima de racismo? Já sofri algum tipo de violência? Já fui discriminado/a, oprimido/a? Como? O que senti? Onde, em meu corpo, senti a violência?

- Eu já fui violento/a com alguma pessoa? Já fui racista? Já discriminei ou oprimi alguém? O que esta pessoa sentiu, será que fui capaz de perceber seu sofrimento/sentimento?

A partir de nossos corpos, de nossas vidas, podemos e devemos fazer a hermenêutica bíblica na ótica da negritude. E para isso, uma sugestão é fazermos perguntas pelos/as mais empobrecidos/as. Entende-se empobrecidos/as, todas as categorias de pessoas marginalizadas e excluídas da sociedade como um todo.

E ainda sobre esse assunto, Leonardo Boff diz que: Por lugar do pobre entendemos a causa dos pobres, sua existência sacrificada, sua luta, seus interesses por vida,

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trabalho, dignidade e prazer. Assumir o lugar do pobre representa o primeiro gesto de solidariedade. Assumir o lugar de sua ótica.

Então como fazer?

Vamos ler o Evangelho e identificar a categoria de pessoa que também sofreu INJUSTIÇA na comunidade de Mateus, foi marginalizada.

Proponho lermos e refletirmos a partir do texto de Mateus 9,18-26 (mulher hemorroíssa). Para esclarecer melhor, proponho que também leia o texto original: Marcos 5,25-34.

O que mais chamou a atenção no texto?

1) Qual é a situação da mulher?

2) Quais as possíveis dificuldades enfrentadas pela mulher no texto, na vida cotidiana perante a sociedade e a religião?

3) Quais as possíveis causas de sua hemorragia?

4) Quais as esperanças da mulher em relação ao seu estado?

5) Quem promoveu a cura? Por quê?

VIDA E BÍBLIA

Proponho agora lermos uma notícia sobre a realidade da mulher negra em nosso país, para

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sentirmos em nossos corpos, os corpos de quem já sofreu violência.

As mulheres negras de hoje

Estudos recentes, elaborados pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, mostram que todos os indicadores sociais relativos à saúde, educação, moradia, mortalidade, expectativa de vida e ao saneamento básico indicam que afro-brasileiros/as, em geral, e mulheres e crianças afrodescendentes, em particular estão na base da pirâmide social.

Nas emergências dos hospitais ou nos postos de saúde da rede pública vimos um quadro de horror: filas de pessoas à espera por horas à fio a um atendimento médico. Se prestarmos atenção veremos que a maioria destas pessoas são homens negros e mulheres negras.

Uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da Saúde revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o critério raça/cor. Analisando seus resultados, percebemos que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna, tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras do que entre as brancas.

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Os dados do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009-2010 apontou que entre 2009-2010 os negros representavam cerca de 60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a universalidade do direito à saúde no país.

O racismo institucional se revela assim como um dos grandes fatores de violência contra as mulheres negras em nosso país. Em 2015, a cantora Elza Soares lançou o álbum “A Mulher do Fim do Mundo” que aborda o tema da violência contra a mulher negra.

BÍBLIA E VIDA

Veja nas imagens, do Jesus Mafa, a seguir todas as mulheres do tempo de Jesus e da comunidade cristã de Mateus:

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É conhecido pela pesquisa histórica da Bíblia que a sociedade judaica era essencialmente patriarcal. Isto significa dizer que o homem detinha o poder de autoridade e dominação sobre os bens, a mulher, os filhos e criados. A mulher não tinha dignidade humana, não era considerada cidadã, não tinha direitos, não podia dirigir a palavra a nenhum homem, que não fosse da família, não podia sair na rua sozinha, não podia frequentar os cultos no templo e na sinagoga, se estava doente ou no período menstrual ou pós-parto era considerada impura, não podia aproximar e muito menos ser tocada por uma pessoa do sexo masculino que não fosse da família.

A pesquisa bíblica informa que é próprio da literatura judaica usar a numerologia como recurso simbólico. O número doze significa totalidade para os judeus. Neste sentido, quando se diz que a mulher hemorroíssa sofreu durante doze anos de sangramento(v.20), quer dizer que foi excluída do sistema religioso durante toda sua vida, desde a menarca, devido sua condição de “impureza”.

E o texto faz interconexão com a situação da filha de um chefe da sinagoga (que se chamava Jairo, segundo Mc e Lc). Em Mateus, o texto está muito resumido, mas no seu original (Evangelho de Marcos), vai explicar que a filha de Jairo já estava com 12 anos de idade (Mc 5,42). Esta enfermidade da menina tem relação com a enfermidade da mulher porque quer dizer que aos doze anos de idade inicia a puberdade e suas consequências (menarca, matrimônios, gestações), isto lhe trará também uma vida de exclusões do sistema social e religioso, pois a menina também passará a ser

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considerada impura e dominada por outro senhor (o marido). Para a filha de Jairo, sua relação com a sociedade dali em diante será de violência e exclusão. Para as mulheres daquele tempo, é sofrimento para a vida toda.

O sofrimento por que passa a mulher hemorroíssa é originário das injustiças da Lei judaica que a excluía da economia da salvação e a excluía da sociedade. Este contexto de exclusão gerava nas pessoas um profundo mal psíquico (depressão) que pode desencadear mal para o corpo.

Por ouvir falar em Jesus e de sua Boa Notícia sobre a salvação, a mulher se fez curada, por isso, o texto mostra que a ação para a cura partiu da mulher que tomou coragem, saiu para as ruas, se expôs para conhecer os ensinamentos de Jesus, o projeto de Deus, que é de inclusão e não de exclusão.

CONSTATAÇÃO:

Assim como esta mulher, que sofrera de saúde há 12 anos por descaso e preconceito religioso, muitas mulheres, sobretudo negras, em nosso país, também sofrem nas filas do sistema de saúde pública, morrem de hemorragias por descasos e por preconceitos dos próprios serviços de atendimento médico emergencial em seus duros e ásperos tratamentos nas recepções das emergências hospitalares. Vimos esta cena com frequência e não sabemos dimensionar as dores físicas e da alma que assolam negros e negras, que são as maiores vítimas deste sistema falido em nosso país.

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POSTURA:

E qual será nossa postura diante de tantas injustiças?

Ser negro/a é mais que ter a cor de pele negra, é ter postura diante das situações de injustiças. E nossa postura é mais do que se indignar, é também levar a Boa Notícia para essas pessoas, por meio da educação popular, veículo em que possibilita à tomada de consciência de cidadãs/ãos, ao empoderamento, à desconstrução de uma cultura embranquecida e exclusiva, à transformação social por um mundo melhor!

Jesus demonstra com seus gestos o importante papel das igrejas: ir até as pessoas, tocá-las ou se deixar tocar por elas, estar próximo, estar presente, saber ouvi-las, ter compaixão. Estes gestos transformam a vida das pessoas, dos excluídos/as, dos/as discriminados/as, dos/das empobrecidos/as pelo sistema. Estes gestos simples e verdadeiramente cristãos é a chave para conversão e mudança de vida pela fé.

E com essas provocações encerramos a terceira etapa, com o convite para a continuidade das reflexões na próxima etapa.