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    ContatosA fico cientfica no ensino de cincias

    em um contexto scio cultural

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    Universidade de So PauloUniversidade de So PauloUniversidade de So PauloUniversidade de So PauloFaculdade de EducaoFaculdade de EducaoFaculdade de EducaoFaculdade de Educao

    ContatosA fico cientfica no ensino de cinciasem um contexto scio culturalLus Paulo de Carvalho PiassiLus Paulo de Carvalho PiassiLus Paulo de Carvalho PiassiLus Paulo de Carvalho Piassi

    Tese apresentada Faculdade de Educao daUniversidade de So Paulo para obteno dottulo de Doutor em Educaorea de concentrao: Ensino de Cincias eMatemticaOrientador: Prof. Dr. Maurcio Pietrocola

    So Paulo

    2007

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    FOLHA DE APROVAFOLHA DE APROVAFOLHA DE APROVAFOLHA DE APROVAOOOO

    Lus Paulo de Carvalho PiassiContatos: a fico cientfica no ensinode cincias em um contexto scio cultural

    Tese apresentada Faculdade de Educaoda Universidade de So Paulo paraobteno do ttulo de Doutor em Educaorea de concentrao: Ensino de Cinciase Matemtica

    Aprovado em:

    Banca examinadora

    Prof. Dr. __________________________________________________________________

    Instituio: _____________________________ Assinatura:_________________________

    Prof. Dr. __________________________________________________________________

    Instituio: _____________________________ Assinatura:_________________________

    Prof. Dr. __________________________________________________________________Instituio: _____________________________ Assinatura:_________________________

    Prof. Dr. __________________________________________________________________

    Instituio: _____________________________ Assinatura:_________________________

    Prof. Dr. __________________________________________________________________

    Instituio: _____________________________ Assinatura:_________________________

    Prof. Dr. __________________________________________________________________

    Instituio: _____________________________ Assinatura:_________________________

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    DEDICADEDICADEDICADEDICATRIATRIATRIATRIA

    A fico cientfica a expresso da esperana de que, no futuro, tudo d

    certo e o medo de que tudo possa dar errado. Saber se vamos ou no

    conseguir talvez a maior inquietao humana. Tornar a desesperana

    em esperana e a esperana em realizao s possvel quando

    acreditamos que vale a pena. Dedico este trabalho Eliane, meu amor,

    por fazer valer a pena.

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    AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS

    Ao Maurcio Pietrocola, meu orientador, no apenas por orientar, mas pela amizade e por

    acreditar e incentivar um trabalho que fruto da paixo.

    Ao Wilton, primeiro por me abduzir para a fico cientfica e depois por ficar

    insistentemente me obrigando a escrever o trabalho.

    Ao Eugnio Ramos, ao Joo Zanetic e ao Jorge de Almeida, pelos grandes incentivos eidias luminosas na poca da qualificao.

    Um agradecimento especial ao Tex, no apenas por me acolher e apoiar em vrios

    momentos de minha trajetria na rea de ensino, mas por trazer indicaes que deram rumo

    ao trabalho logo em seu incio.

    Ao Emerson e ao Rui, pelas ardilosidades.

    Aos amigos do Lapef , que me aguentaram e deram muitas idias.

    Faculdade de Educao da USP, particularmente aos funcionrios e docentes que sempre

    prestativamente me auxiliaram quando foi necessrio.

    Finalmente, agradeo a todos os meus alunos que se submeteram alegremente a

    experincias estranhas com fico cientfica.

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    RESUMORESUMORESUMORESUMOPIASSI, L. P. C. Contatos: A fico cientfica no ensino de cincias em um contexto scioContatos: A fico cientfica no ensino de cincias em um contexto scioContatos: A fico cientfica no ensino de cincias em um contexto scioContatos: A fico cientfica no ensino de cincias em um contexto scioculturalculturalculturalcultural. 2007. 453p. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao, Universidade de SoPaulo, So Paulo, 2007.

    Este trabalho surgiu de minha experincia pessoal em sala de aula usando fico cientficapara lecionar fsica, astronomia e outros tpicos de cincia. Por aproximadamente quatroanos eu desenvolvi diversas atividades de sala de aula com filmes, romances e contos defico cientfica, empregando-os no apenas para discutir os produtos da cincia conceitos, leis e fenmenos mas tambm os mecanismos da produo do conhecimentocientfico e a relao entre o trabalho da cincia e o contexto social. A partir destasexperincias prticas, investiguei e estudei a respeito da prpria fico cientfica, como umgnero literrio e cinematogrfico e empreendi tambm uma pesquisa sobre as experinciasatuais envolvendo a fico cientfica em sala de aula. Estes estudos auxiliaram-me adesenvolver instrumentos tericos de anlise para lidar com a fico cientfica a partir doponto de vista do professor de cincia. Tais instrumentos so o contedo principal do

    presente trabalho. Eles foram desenvolvidos a partir da constatao de que as abordagensmais comuns para a fico cientfica em aulas de cincias eram baseadas em duasestratgias um tanto ingnuas: a identificao dos erros (ou acertos) conceituais de cincianas obras de fico cientfica ou a discusso dos diversos nveis de distoro em relao acincia e aos cientistas reais nelas apresentadas. Assumindo a fico cientfica como umaconstruo empreendida sobre um discurso social a respeito da cincia foi possvel tratartais erros e distores de um outro ponto de vista. Ao invs de distores, podemospensar em determinadas posies ideolgicas sobre a cincia que podemos identificar tantona esfera social como nas obras de fico cientfica. Na maioria das vezes, tais posiespodem ser descritas em termos de polaridades onde cada plo representa crenas oudescrenas em relao aos papis da cincia em nossas vidas. Eu nomeei tal anlise por

    plos temticos. Em substituio dicotomia erro/acerto, procurei um critrio de anliseque pudesse descrever os elementos de uma histria de fico cientfica (nomeados aquicomo elementos contrafactuais) no em termos de uma valorao estrita de sua precisocientfica, mas como construtos ficcionais projetados para produzir efeitos literriosespecficos no leitor. Em tal abordagem, a preciso cientfica vista como estando sujeita lgica do discurso literrio e intencionalidade do autor. Aps desenvolver estasferramentas de anlise, retomei minhas experincias anteriores de sala de aula tanto paracolocar a anlise terica em um contexto concreto sobre o qual eu poderia falar comsegurana quanto ao mesmo tempo para apresentar aspectos adicionais no dados douso da fico cientfica em sala de aula. Muitas das atividades de sala de aula descritas sederam antes de eu iniciar este trabalho, assim elas no foram nem uma validao emprica

    da teoria nem um processo sistemtico de coleta de dados. Seus papis neste trabalho foramos de ilustrar e desenvolver alguns detalhes da anlise terica e mostrar como esta anlisepode ser realizada para levar a atividades concretas de sala de aula. Adicionalmente,aspectos especficos dos trs gneros (filmes, romances e contos) de fico cientficausados forma discutidos em funo de sua adaptao ao contexto de sala de aula.

    Palavras-chave: ensino de cincias, fico cientfica, cinema, literatura, abordagemsociocultural

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    ABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACT

    PIASSI, L. P. C. Contacts: Science fiction in science teaching from a sociocultural coContacts: Science fiction in science teaching from a sociocultural coContacts: Science fiction in science teaching from a sociocultural coContacts: Science fiction in science teaching from a sociocultural contextntextntextntext.2007. 453p. Thesis (Doctoral) Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, SoPaulo, 2007.

    This work arose from my personal classroom experience in using science fiction toteaching Physics, Astronomy and other Science topics. For about four years I developedseveral classroom activities with science fiction films, novels and short stories and I usedthem to discuss not only the products of science concepts, laws and phenomena but alsothe mechanisms of scientific knowledge production and the relationship between sciencework and social context. From these practical experiences, I investigated and studied aboutscience fiction itself, as a literary and cinema genre and I undertook also a research aboutpresent days classroom experiences involving science fiction. These studies helped me todevelop theoretical analysis instruments to deal with science fiction from the Scienceteacher point of view. Such instruments are the present works main content. They were

    developed from the realization that most common approaches to science fiction in Scienceclasses were based in two somewhat naive strategies: identifying science conceptual errors(or hits) in science fiction works or discussing the several levels of distortions about realScience and scientists science fiction presented in its stories. Assuming science fiction as afictional construction built over a social discourse about science was possible to treat sucherrors and distortions for another point of view. Instead of distortions we can thinkabout certain ideological positions about Science we can identify both in social sphere andin science fiction works. Most of times, such positions can be described in terms ofpolarities where each one of poles represents beliefs or disbeliefs related to the roles ofScience in our lives. I named such analysis as thematic poles. In substitution to the hit/errordichotomy, I was looking for analysis criteria that could describe the elements of a science

    fiction story (named here as counterfactual elements)not in terms of a strict valuation oftheir scientific accuracy, but as fictional constructs intended for producing specific literaryeffects in the reader. In such approach, scientific accuracy is seen as being subjected to theliterary discourse logics and to authors intentionality. After developing these analysistools, I retrieved my previous classroom experiences both to turn theoretical analysis into aconcrete context I could surely speak about and at same time to present additionalaspects of classroom use of science fiction not given in the theoretical development. Mostof described classroom activities occurred before I start this work, so they were neither anempiric validation of the theory nor a systematic data collection process. Their roles in thiswork were illustrate and develop some details of theoretical analysis and show how thisanalysis could be performed to lead to concrete classroom activities. Additionally, specific

    aspects of the three used science fiction genres (movies, novels and short stories) werediscussed in view of their adaptation to the classroom context.

    Keywords: science teaching, science fiction, cinema, literature, sociocultural approach

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    SUMRIOSUMRIOSUMRIOSUMRIO

    Introduo.............................................................................................................................17

    I Ensino de Cincias: Alegrias e Paixes .......................................................................... 26

    1. Respostas? ........................................................................................................................................272. Paixo e cincia na sala de aula........................................................................................................313. O problema do sentido e o sentido dos problemas. ..........................................................................394. A cincia como cultura.....................................................................................................................485. Criatividade e imaginao ................................................................................................................536. Cultura primeira e elaborada ............................................................................................................617. As esferas do conhecimento sistematizado.......................................................................................738. Admirao, espanto, perplexidade....................................................................................................83

    II A Fico Cientfica ........................................................................................................ 89

    1. As origens.........................................................................................................................................892. O que a fico cientfica?...............................................................................................................933. Os subgneros.................................................................................................................................1054. Os tpicos .......................................................................................................................................1185. A construo do contrafactual na fico cientfica.........................................................................123

    III Fico Cientfica e Ensino de Cincias ......................................................................135

    1. A FC no ensino formal propostas e pesquisas ......... ........... .......... ........... ........... .......... ........... ....1362. O que a FC tem a oferecer de melhor.............................................................................................1413. Fico versus realidade...................................................................................................................1494. Olhando alm da superfcie ............................................................................................................1595. Fico cientfica e fico de divulgao cientfica ........... .......... ........... .......... ........... .......... ..........1716. Instrumentos para a elaborao de atividades.................................................................................176

    IV Os Elementos Contrafactuais ..................................................................................... 181

    1. As categorias de elementos contrafactuais .....................................................................................1862. Processos de construo contrafactual e suas possibilidades didticas ..........................................2023. Para alm dos elementos contrafactuais .........................................................................................247

    V - Os Plos Temticos......................................................................................................249

    1. Cincia: soluo dos problemas humanos? ....................................................................................2522. Cincia: resposta a perguntas humanas?.........................................................................................2583. Os plos temticos..........................................................................................................................2624. Sonhos e pesadelos na fico cientfica..........................................................................................2675. Na sala de aula................................................................................................................................2856. Analisando a dinmica da histria..................................................................................................294

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    Interldio metodolgico .....................................................................................................307

    VI O Filme na Sala de Aula.............................................................................................317

    1. 2001: Uma odissia no espao........................................................................................................3172. Contato ...........................................................................................................................................3323. Primeiro Contato ............................................................................................................................3444. O filme de FC como recurso didtico.............................................................................................359

    VII O Romance na Sala de Aula .....................................................................................365

    1. Os nufragos do Selene ..................................................................................................................3662. Romances escolhidos pelos alunos.................................................................................................3843. O romance de FC como recurso didtico........................................................................................398

    VIII O Conto na Sala de Aula .........................................................................................4071. O segredo........................................................................................................................................4072. Para os pssaros..............................................................................................................................4163. Impactos sociais da tecnologia em contos de FC............................................................................4224. O conto de FC como recurso didtico ............................................................................................436

    Consideraes finais...........................................................................................................443

    Obras citadas (corpus) ........................................................................................................ 447

    Referncias bibliogrficas .................................................................................................. 455

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    Introduo

    exceo de algum Jlio Verne lido na infncia, eu nunca tinha lido nenhum livro

    de fico cientfica at o ano de 2001. Eu gostava de filmes e seriados e, como professor, jhavia pensado em utiliz-los em sala de aula para discutir conceitos fsicos. O primeiro

    filme que passei em sala de aula foi Contato de Robert Zemeckis, em 2000, mas sem

    grande sistematizao. Leitura, porm, algo a que dedicamos maior esforo e nunca me

    passou pela cabea ler sobre monstros espaciais, heris com lasers, naves e tiros. Preferia

    me ocupar de uma literatura que tivesse, digamos, contedo. claro que, como professor,

    tambm j havia me ocorrido a idia de usar a literatura em sala de aula.

    Naquele ano de 2001, porm um amigo insistiu muito para que eu lesse um livrochamado Fundao, de Isaac Asimov. Na verdade, ele j havia insistido muito para eu ler

    vrias coisas como o livro Duna, de Frank Herbert, que acabei no lendo na ocasio.

    Quanto a Asimov, tive que vencer um certo preconceito, pois j havia visto muitas vezes as

    capas dos livros deste autor em livrarias: imensas letras vermelhas, monstros horrorosos,

    heris com raios lasers. o tipo de coisa que no me atraa. Dada a insistncia, porm,

    resolvi pegar o livro emprestado e comecei a l-lo. No incio no gostei da leitura, fiquei

    impressionado como o autor impregnava um futuro milhares de anos frente com os ideais

    e limitaes humanas e tcnicas da dcada de 50, poca em que a obra foi escrita. Mas, aos

    poucos, fui percebendo a engenhosidade da obra, a presena de elementos muito

    interessantes, como por exemplo a psico-histria, uma espcie de mecnica estatstica

    aplicada a seres humanos. Como a civilizao galctica descrita no livro tinha trilhes de

    habitantes, era possvel prever o comportamento futuro do sistema em termos globais e isso

    era o elemento central da histria. No final da leitura eu estava convencido de que se

    tratava de uma obra realmente muito interessante.

    Interessei-me em ler mais coisas de fico cientfica e ento decidi procurar 2001:

    Uma Odissia no Espao, de Arthur C. Clarke, que contava a mesma histria do filme que

    eu j conhecia, gostava e havia chegado a usar em minhas aulas. Gostei muito do livro, e

    acabei lendo suas continuaes, que formam uma tetralogia. Depois dessa etapa li muitos

    livros de Isaac Asimov e de Arthur C. Clarke. Vencendo meus preconceitos, pouco a

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    pouco, decidi comear a ler outros autores. Descobri que ao contrrio do que as capas dos

    livros davam a entender, raramente se tratava de monstros horrveis, raios lasers e heris

    salvando mocinhas indefesas.

    Ao final de 2002 eu j havia lido um nmero considervel de obras de fico

    cientfica. Minha percepo nesse momento era de que este tipo de obra no s constitua

    uma leitura agradvel e interessante, mas tambm trazia questes que eram muito parecidas

    com as que eu gostava de abordar em minhas aulas de fsica: o papel da cincia na

    sociedade, as possibilidades futuras, a realidade fsica, ou seja, estes temas mais gerais e

    filosficos para os quais encontramos pouca leitura adequada faixa etria dos

    adolescentes. Alm disso, muitas histrias incorporavam uma intensa discusso e anlise de

    fenmenos fsicos, realizada quase sempre de forma tecnicamente competente sem perder ofio de uma leitura agradvel. Diante disso, decidi tentar elaborar alguns projetos de uso da

    fico cientfica em sala de aula, empregando tanto a literatura como o cinema.

    Na ocasio, eu lecionava fsica no ensino fundamental e no ensino mdio em uma

    escola particular onde havia bastante liberdade de testar novas experincias e metodologias

    didticas. Preparei, ento para o ano letivo de 2003, um dos mdulos na 8 srie do ensino

    fundamental onde desenvolvi contedos de termologia, ondas, mecnica e astronomia em

    um nvel puramente fenomenolgico, atravs de experimentos e anlise de situaesdescritas no romance Os nufragos do Selene de Arthur C. Clarke. A cada dia os alunos

    liam em casa um trecho do livro que era discutido na aula seguinte. Os alunos gostaram

    muito da experincia, a maioria tendo lido avidamente a histria. As discusses de fsica

    surgidas foram muito mais profundas do que eu mesmo esperava.

    Entusiasmado com o desenrolar do curso eu decidi procurar uma forma de estender

    a experincia com fico cientfica para o mdulo seguinte, que ocorreria dois meses

    depois. Esperava aproveitar o interesse despertado pela leitura do primeiro livro para

    incentiv-los a ler mais coisas. A idia que eu tive foi bastante simples: verifiquei que

    dispunha de livros suficientes para emprestar a todos os alunos. Cada um escolheu um livro

    para a leitura, com um prazo de dois meses at o incio do mdulo.

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    Esse outro mdulo j estava comprometido em meu planejamento com o tema da

    conservao da energia, e assim no seria possvel reformular totalmente o planejamento.

    Eu no deveria ocupar muitas aulas com a questo dos livros. O que fiz ento foi pedir que

    cada aluno fizesse uma resenha de seu livro e levantasse questes que julgasse

    interessantes, do ponto de vista da cincia retratada nas histrias. Isso feito, no incio do

    mdulo, cada aluno relatou brevemente sua leitura e fizemos algumas discusses calcadas

    nas questes por eles elaboradas. Exibi tambm um filme de fico, Primeiro Contato, da

    srie Jornada nas Estrelas e levantei algumas questes para debate. Novamente, fiquei

    bastante impressionado com o rumo que as aulas tomaram, porque as discusses eram

    muito intensas e as questes levavam a outras questes e assim a coisa tomou uma

    proporo maior do que eu imaginava. Confesso que fiquei preocupado com a questo da

    formalizao, por que era realmente difcil realizar os fechamentos e as snteses naquele

    clima vido de discusses.

    O sucesso dessas iniciativas me levou a realizar diversas tentativas, com trechos de

    filmes, contos e at romances inteiros em outras sries do ensino fundamental e do ensino

    mdio, para abordar diversos temas.

    No final de 2003, me inscrevi no programa de ps-graduao da FEUSP com um

    projeto de pesquisa relacionado avaliao de programas de formao continuada deprofessores na rea de fsica. No primeiro semestre de 2004, apresentei ao grupo de

    pesquisa um seminrio sobre a experincia que eu havia realizado com fico cientfica,

    que eu iria levar ao SNEF no incio de 2005. Neste momento, eu no s j havia lido uma

    quantidade muito maior de livros de fico cientfica, como tambm havia lidos alguns

    sobrefico cientfica: crtica, histria, questes literrias e filosficas. Com o seminrio,

    pude sistematizar as leituras e as experincias e fundamentar um pouco melhor o trabalho

    que eu havia realizado em sala de aula. Ao final do seminrio, meu orientador me sugeriu

    que eu fizesse disso o projeto de pesquisa para o doutoramento. A idia me pareceu muito

    tentadora, sobretudo porque alm de ser uma experincia ligada minha prtica de sala de

    aula, era um tema no qual eu gostaria muito de me aprofundar, independentemente do meu

    projeto de pesquisa. Acabei ento acatando alegremente a sugesto de meu orientador.

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    Ficava ento a responsabilidade de procurar fundamentaes e tambm de se voltar

    prtica do trabalho e verificar de que forma eu poderia obter dados que me permitissem

    realizar um trabalho de pesquisa. No final do primeiro semestre de 2004 eu repeti a

    experincia de Os Nufragos do Selenecom a nova turma de 8 srie, tendo basicamente o

    mesmo resultado do ano anterior. Novamente emprestei livros para os alunos. Desta vez,

    porm teria mais tempo para elaborar o planejamento do outro mdulo, uma vez que ele s

    ocorreria em novembro. Eu tinha a inteno de aproveitar melhor as questes que os livros

    suscitavam, do que no ano anterior.

    Faltava, porm, uma questo central. Qual deveria ser o objeto de pesquisa? Minha

    reflexo era que, a despeito da influncia do conhecimento cientfico na vida cotidiana de

    todos ns, o que se verifica nas aulas de cincia no ensino bsico um contnuo

    desinteresse dos estudantes por essa disciplina escolar e pelas questes tradicionalmente

    por ela colocadas. Esse fato contrasta com a divulgao cada vez mais acentuada na mdia

    de descobertas da fsica e conquistas da tecnologia ligada a ela, como ptica,

    microeletrnica e assim por diante. Por que os alunos demonstram vivo interesse pelas

    questes apresentadas na mdia e no pelas colocadas em sala de aula?

    A influncia da cincia em diversos mbitos da cultura inegvel, mas parece que aescola se vale muito pouco dessa influncia para proporcionar aos alunos o interesse pelas

    questes cientficas, a apreenso do conhecimento cientfico e suas repercusses sobre as

    preocupaes humanas.

    A fico cientfica, por outro lado, parece seguir justamente o caminho do interesse.

    Quem assiste ou l fico cientfica, parece ser movido e motivado por questes cientficas

    fundamentais que dizem respeito nossa vida e que parecem ficar sempre de fora das aulas

    de cincia na escola. Minhas leituras mostravam que a fico cientfica e mesmo outrasmanifestaes artsticas que traziam contedos cientficos surgiam que como resultado do

    papel que a cincia e a tecnologia assumiu em nossa sociedade, sobretudo a partir de finais

    do sculo XIX. As manifestaes artsticas passarem a incorporar preocupaes ligadas a

    temas cientficos, seja a partir de um ponto de vista crtico do progresso cientfico e

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    tecnolgico seja a partir de uma admirao pelas conquistas por ele trazidas, mas em ambos

    os casos expressando as preocupaes presentes em relao a esses progressos.

    A implicao disso que, mais do que mera possibilidade de um recurso didtico

    inovador para a sala de aula, a fico cientfica parece trazer consigo a expresso de

    concepes em relao a conceitos e leis cientficas, atividade cientfica, natureza da

    cincia e sua relao com a sociedade. Como veculo social dessas concepes, a fico

    cientfica, em todos os seus desdobramentos, constitui-se uma forma de divulgao de

    idias ligadas cincia. No importando se tais idias so precisas ou representam

    distores ou simplificaes, o fato que hoje elas constituem um dos principais

    mecanismos que ajudam a construir um imaginrio social sobre a cincia.

    Nesse sentido percebi que a fico cientfica pode se constituir num elemento

    articulador a partir de onde podemos estabelecer vnculos entre os interesses e motivaes

    do estudantes em relao a temas cientficos e os contedos programticos de ensino.

    Encontrei diversos trabalhos apontando nessa direo, mostrando que a fico

    cientfica pode ser empregada em sala de aula como elemento motivador para a discusso

    de conceitos e leis cientficas dentro de um contexto que envolve uma reflexo mais ampla

    dos processos do fazer cientfico, tanto do ponto de vista das questes internas da cincia

    (mtodos, instrumentos, carreira profissional) como das ligaes da cincia com o todo

    social (influncias culturais, financiamento, repercusses de descobertas cientficas).

    O que parecia faltar, porm, uma anlise terica mais sistemtica da obra de fico

    cientfica sob o ponto de vista dos pressupostos da educao cientfica. Em primeiro lugar,

    a mim parecia fundamental estabelecer critrios de anlise das obras que permitissem situ-

    las no contexto da sala de aula em relao aos diversos objetivos que poderamos ter em

    mente ao trabalhar com o contedo. Fundamental seria conseguir vislumbrar caminhossistemticos para a articulao, por um lado dos aspectos conceituais da cincia com o

    mbito da compreenso do processo de produo do conhecimento a das relaes scio-

    culturais da cincia. Por outro lado, tais discusses nunca poderiam fugir do mbito do

    interesse dos alunos deveriam aparece para eles como temas no apenas dignos de

    discusso, mas como assuntos interessantes e quem sabe at apaixonantes.

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    Uma tal articulao deveria passar portanto, por fundamentos pedaggicos na rea

    de educao que nos permitissem entender o contedo escolar de cincia em seu aspecto

    scio-cultural e tambm que colocasse o interesse e as preocupaes cultuais dos alunos no

    foco da ateno. Foi assim, que parte desta formulao terica foi a partir da perspectiva

    pedaggica de Georges Snyders, que como terico da pedagogia prope que a escola deve

    ser um espao da passagem da cultura primeira para a cultura elaborada e que a satisfao

    cultural seja o centro das preocupaes pedaggicas. Alm disso, Paulo Freire tambm

    compareceu, sobretudo por sua articulao mais sistemtica entre o papel do estudante no

    processo e a questo de tratar de temas que faam sentido do ponto de vista scio-cultural.

    Bronowski foi outro autor a quem recorri, principalmente porque, ao mesmo tempo

    em que salienta a cincia como uma manifestao cultural, dedica especial ateno por umlado questo do prazer e do interesse em cincia e por outro da relao da cincia com a

    arte, particularmente com a literatura. Do ponto de vista da didtica especfica das cincias,

    a principal referncia na rea que parecia articular tais temas era o trabalho de Joo Zanetic,

    que desde seu trabalho de doutoramento Fsica tambm cultura (ZANETIC, 1990) vem

    defendendo a interconexo inevitvel entre cincia e cultura no mbito escolar.

    Com esses fundamentos em mente, o prximo passo seria examinar especificamente

    a fico cientfica como expresso literria e cinematogrfica e procurar explorar aspossveis relaes com a cincia e com o ensino e estabelecer as possibilidades de uso em

    sala de aula. Com isso procurei concretizar a meta de construir vnculos tericos que

    sustentassem a formulao de propostas didticas para a sala de aula, propostas essas que

    explorassem os diversos mbitos e possibilidades proporcionados pela fico. Essa anlise

    permitiria a adequada seleo de obras a serem utilizadas e a concepo e elaborao de

    atividades para a sala de aula a partir de fundamentos mais sistemticos do que a simples

    intuio.

    O ponto central do trabalho foi, portanto, a construo de tais instrumentos tericos

    de anlise, que deveriam abarcar a possibilidade de elaborar atividades que pudessem

    estimular o interesse dos alunos a respeito de temas cientficos em trs mbitos:

    a)Conceitos, fenmenos e leis cientficas.

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    b)Fazer cientfico: mtodos, formas de organizao, lgica cientfica, questes

    filosficas, entre outros.

    c)Relao entre cincia e sociedade: conseqncias sociais do conhecimento

    cientfico, influncias culturais, econmicas e polticas, poltica cientfica, entreoutros.

    Para sistematizar estes trs mbitos de preocupao, seria necessrio um exame da

    obra de fico mais rigoroso e sistemtico do que uma simples percepo superficial dos

    temas que apareciam. Minha experincia de sala de aula havia mostrado que as questes

    emergem das obras a partir de diversos caminhos, no entanto eu no dispunha de nenhum

    instrumento terico de anlise que me permitisse sistematizar e compreender os fenmenos

    que aconteciam ali. Faltava algum instrumento para me dizer algo sobre o contedoe sobreas possveis interpretaesde uma obra, e de como seria possvel situ-la no mbito maior

    da relao entre cultura e sociedade entender a obra como um produtocultural que tem

    origem na influncia da cincia no mbito da sociedade.

    Parece inegvel que a fico cientfica um dos grandes meios da veiculao de

    idias a respeito da cincia, seja em filmes, livros, desenhos animados, quadrinhos ou

    outras mdias. Hoje em dia expresses como fora gravitacional, campos de fora,

    neutrinos, feixes de partculas no so restritas a um pblico com formao cientfica. Ao

    contrrio, dado o carter popular dessas manifestaes culturais, tais expresses e idias a

    elas ligadas passam a ser incorporadas ao que Snyders (1988) denomina de cultura

    primeira.

    De que forma poderamos examinar uma obra e verificar de que forma podemos

    interpretar os elementos que ela traz luz dos objetivos de ensino. Sabemos que muitas

    obras contm erros cientficos barulhos no vcuo do espao, clonagem de seres

    humanos que copiam tambm as lembranas, substncias capazes de deixar uma pessoa

    invisvel. Seriam mesmo erros? O que eles significam? Ns na sala de aula, com nossos

    acertos parecemos menos interessantes do que os erros dos filmes. Como lidar com

    isso e evitar abordagens simplistas e superficiais da fico cientfica?

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    As questes, porm, no ficam apenas no mbito conceitual. Como encontrar nas

    obras as questes relevantes que do origem a posies polticas em relao cincia?

    Obras como o famoso Frankensteinde Mary Shelley e todas as suas derivaes parecem

    mostrar o cientista como um maluco e manaco? Muitssimas obras parecem dar uma viso

    distorcida do que a atividade cientfica e do que a cincia. Sero mesmo distores?

    Os erros conceituais e as distores na viso do que a cincia parecem criar

    um fosso entre a fico e a cincia verdadeira. Porm, esse ponto de vista totalmente

    simplista e ingnuo. Em primeiro lugar porque a noo de erro conceitual em cincia e

    sobretudo no mbito do ensino passou a ser examinada com critrios muito diferentes e

    menos valorativos, seja pelas pesquisas baseadas no desenvolvimento cognitivo, seja pelas

    pesquisas que se preocupam com a histria e o desenvolvimento da cincia e como ele pode(e deve) ser trazido para a sala de aula. Essas ltimas tambm nos mostram como a questo

    da viso distorcida tambm deve ser relativizada, na medida das dificuldades em se

    estabelecer o que uma viso no distorcida do processo de produo do conhecimento.

    Em ambos os casos, a cincia que retratada nas obras de fico deveria ser vista

    como um produto cultural que reflete determinadas vises e preocupaes em relao

    cincia e que, ao mesmo tempo, obedece a motivaes e leis prprias da manifestao

    artstica, da literatura e do cinema, que devem ser minimamente compreendidas para que sepossa aproveitar aquilo que elas podem nos oferecer do ponto de vista didtico.

    A formulao terica atacou fundamentalmente estes dois pontos: os erros e as

    distores. A identificao de erros substituda por uma anlise estrutural dos

    elementos presentes em uma obra de fico cientfica, de suas relaes com o

    conhecimento cientfico e, principalmente, das razes de ser que esto por trs de cada tipo

    de construo. A partir disso, verificamos suas possibilidades didticas a partir do prprio

    processo de construo literria destes elementos. Denominamos esta anlise de

    caracterizao dos elementos contrafactuais.

    A questo das distores, por outro lado, foi substituda por uma anlise das

    posies implicitamente assumidas em uma obra de fico, que na verdade refletem

    posies existentes no mbito social e que so manifestadas atravs da literatura e do

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    cinema, sempre obedecendo, claro, a convenes e lgicas prprias internas ao gnero. Este

    instrumento de anlise foi denominado identificao dos plos temticos.

    A partir disso, procurei apontar em direo sala de aula. Em primeiro lugar

    procurei articular estes dois instrumentos com a produo das atividades didticas, baseado

    em grande medida, no conhecimento emprico que adquiri nas minhas aulas, que desde

    ento continuam contando sempre usando aqui e ali, com recursos da fico cientfica.

    Finalmente, procurei, a partir de algumas atividades que desenvolvi em sala de aula

    nestes anos, aplicar estes instrumentos na anlise das obras que foram empregadas nestas

    atividades. Esse processo teve como objetivo, alm de elucidar melhor diversos aspectos da

    anlise, apresentar outros aspectos importantes mais ligados sala de aula, mostrar de que

    forma eles podem ser articulados ao mbito da sala de aula e, finalmente, mostrar como os

    fundamentos levantados na primeira parte do trabalho se fazem presentes no contexto das

    atividades.

    Alm disso, procurei mostrar as especificidades das trs manifestaes clssicas

    da fico cientfica que usei em sala de aula: romances, contos e filmes longas metragem.

    Tais diferenas, que podiam (e at deviam) ser ignoradas na construo instrumentos de

    anlise, deveriam agora ser salientadas a partir deles, uma vez que o impacto na situao de

    aula de cada uma delas completamente diferente, Tanto no que se refere forma, quanto

    tambm ao contedo.

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    I Ensino de Cincias: Alegrias e Paixes

    London, London

    Caetano Veloso

    I'm wandering round and round, nowhere to go

    I'm lonely in London, London is lovely soI cross the streets without fear

    Everybody keeps the way clear

    I know I know no one here to say helloI know they keep the way clear

    I am lonely in London without fearI'm wandering round and round, nowhere to go

    While my eyes go looking for flying saucers in the skyWhile my eyes go looking for flying saucers in the sky

    Oh Sunday, Monday, Autumn pass by meAnd people hurry on so peacefully

    A group approaches a policeman

    He seems so pleased to please themIt's good to live, at least, and I agree

    He seems so pleased, at least

    And it's so good to live in peaceAnd Sunday, Monday, years, and I agree

    While my eyes go looking for flying saucers in the sky

    While my eyes go looking for flying saucers in the sky

    I choose no face to look at, choose no way

    I just happen to be here, and it's okGreen grass, blue eyes, grey sky

    God bless silent pain and happiness

    I came around to say yes, and I say

    While my eyes go looking for flying saucers in the sky

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    1. Respostas?

    Um dia eu estava ouvindo a cano London, London 1 , que Caetano Veloso

    comps no exlio, e me chamou a ateno a referncia aos discos voadores presente no

    refro. O eu-lrico da msica passeia por Londres, observando o transcorrer dos pequenos

    acontecimentos, mas seus olhos se voltam ao cu em busca de discos voadores. Ao mesmo

    tempo, tinha diante de mim a foto da minha filha fantasiada de Violet, do filme OsOsOsOs

    IncrveisIncrveisIncrveisIncrveis2.... Pensei nessa personagem que produz em torno de si um campo de foras e

    consegue ficar invisvel, poderes provavelmente cobiados por muitas e muitas pr-

    adolescentes. O que essas produes to dspares tm em comum? De um lado, uma cano

    de MPB composta nos anos 70 por um cantor perseguido pela ditadura militar. Do outro

    um blockbuster recente da gigante multinacional do cinema de animao, que com suasestratgias de marketing me levou a comprar aquela fantasia. Mas eu vi ali um fio comum,

    que talvez um dos pontos-chave desse trabalho: desejos humanos, anseios associados a

    uma presena cultural latente da cincia e da tecnologia

    Expressando a melancolia e solido nas ruas de Londres, no contexto cotidiano e

    corriqueiro da vida, Caetano traz no refro da msica o contraponto do disco-voador que ir

    lev-lo no se sabe onde, mas certamente ao desconhecido, ao inusitado, ao novo, para

    longe das pequenas coisas do dia a dia. Na imagem do disco voador est estampada no

    apenas a solido de uma pessoa, mas a prpria solido da humanidade como gnero e o

    desejo de que no estejamos ss no universo. Um anseio que, na potica de uma sociedade

    1 Essa cano de Caetano Veloso encontra-se no lbum Caetano Veloso (1971).Compact Disc. Faixa2. Polygram, 1971.

    2 Em virtude de as normas tcnicas atualmente em vigor no distinguirem precisamente entrereferncias usadas como base ou fonte para o trabalho e as que so objeto de investigao, muito numerosas

    no presente trabalho, decidimos elaborar um ndice parte para estas (seo corpus), em separado daquelas,empregando um formato de referncia que as distingue claramente. Para facilitar leitura do texto, elaboramosum sistema de referncia indexado para as obras, baseado em seu ttulo em portugus grafado em negritonegritonegritonegrito. Nocaso de obras escritas (romances e contos) a referncia pgina, quando necessria, dada entre parntesis ese refere edio aqui listada, como no exemplo: Nufragos do SeleneNufragos do SeleneNufragos do SeleneNufragos do Selene (p. 128). No caso de filmes, areferncia dada em minutos, indicado a partir do incio do filme de acordo com a edio indicada, em DVDou VHS. Por exemplo, a referncia 2001200120012001: Uma Odissia no Espao: Uma Odissia no Espao: Uma Odissia no Espao: Uma Odissia no Espao (min. 23) indica a obra 2001: umaodissia no espao de Stanley Kubrick e se refere ao trecho que se inicia em 23:00 minutos do filme e seencerra a 23:59, na edio de DVD ou VHS indicada no presente ndice.

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    tecnolgica como a nossa, representado por um artefato tcnico imaginrio elaborado por

    civilizaes culturalmente superiores.

    O filme de animao, provavelmente a partir de uma cuidadosa pesquisa de

    mercado, expressa em forma de superpoderes desejos perfeitamente cabveis s

    personagens associadas a cada pblico: o homem de meia-idade com sua fora e virilidade,

    a me moderna com seus poderes elsticos, e a pr-adolescente que quer poder estar

    invisvel, longe dos olhares incmodos dos homens maus, dos adultos e tambm criar um

    campo de fora que repila essas ameaas. Assim como no disco voador, temos aqui desejos

    humanos que encontram em artefatos tcnicos imaginrios a sua satisfao.

    Tanto em um caso como em outro temos a presena do inusitado, do maravilhoso ou

    do fantstico, de elementos que no constituem o dia-a-dia e nem sequer o real. Ao

    contrrio disso, discos voadores e superpoderes so elementos de um mundo puramente

    imaginrio. Entretanto, esse imaginrio implcito na idia de sonho realizvel, ainda que

    apenas em tese. No se trata assim de um imaginrio puro e simples, mas de algo que

    encontra na cultura cientfica seno um respaldo conceitual slido, pelo menos uma

    possibilidade terica.

    Os conhecimentos cientficos de que dispomos no nos permitem afirmar, por

    exemplo, a existncia de seres inteligentes que visitariam a Terra em veculos espaciais,

    como os discos-voadores. Porm, a extrapolao de todo o conhecimento cientfico

    disponvel no descarta essa possibilidade, ainda que a avaliao da comunidade cientfica

    a respeito da probabilidade de um evento como esse ocorrer seja desanimadora para quem

    espera encontrar discos voadores no cu. O fato que a cincia de nosso tempo nos induz a

    conceber essa possibilidade e, mais do que isso, faz com que a existncia de discos

    voadores no seja fruto de pura especulao mgica como a existncia de gnomos ou

    vampiros, mas algo racionalmente concebvel e explicvel dentro da estrutura conceitual

    lgico-causal da cincia. Um raciocnio similar pode se aplicar perfeitamente a poderes de

    invisibilidade e de campos de fora da Violeta Incrvel, por mais que a cincia e a tcnica

    atuais nos faam crer que se tratem de possibilidades remotas, ou at mesmo de

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    impossibilidades tericas. O fato que a concepo de tais artefatos tem uma clara

    influncia da cultura cientfica.

    A partir disso, podemos nos perguntar que motivaes tais elementos tecno-

    cientficos evocam na msica de Caetano e no desenho da Pixar, e que consideraes de

    ordem geral essa anlise pode nos fornecer.

    A meno aos discos voadores em London, London remete, como dissemos, a um

    contraste entre o cotidiano e o fantstico. A letra da msica nos fala da solido de quem

    est na multido. H pessoas por todos os lados e ningum com quem falar, h tantos

    lugares e lugar algum para ir. Os eventos cotidianos transcorrem, as pessoas apressadas, o

    policial solcito, todas as coisas muito boas, como devem ser, a grama verde, o cu

    cinzento, os olhos azuis. Mas o olhar volta-se para o cu em busca de discos voadores. Por

    qu? A busca de um novo mundo? Uma fuga do cotidiano? London, London representa,

    a nosso ver, uma temtica fundamental da solido no apenas do indivduo humano que

    aparece como eu-lrico na cano, mas de todo o gnero humano. E essa inquietude o

    motor de uma busca, a busca do outro, da outra humanidade, do outro mundo. O tema

    do ubi sunt, ou seja onde esto os outros?, conforme aponta o critico literrio Davi

    Arrigucci Jr, recorrente na literatura e representa um tpico que retomado e reinventado

    ao longo da histria da produo literria, pergunta que ficou ecoando atravs do tempo(...) para ilustrar-lhe exatamente o papel devastador, a fugacidade do homem e das coisas e

    a fragilidade de toda a glria terrena. (ARRIGUCCI JR, 2003, p.217). Aqui, com os discos

    voadores e com a cincia contando para ns a respeito da imensido do universo, a

    pergunta estamos ss? ganha uma dimenso para alm do indivduo e para alm de um

    povo e ou de uma nao, para estender-se para a humanidade como uma entidade em si.

    Os discos voadores so assim a representao de um anseio, que a busca do outro,

    mas um outro no-humano que ao mesmo tempo humano porque racional e inteligente,

    um outro que est fora do nosso gnero, mas que por isso mesmo nos apresenta muitssimas

    possibilidades excitantes e assustadoras. Algo que, com propores e caractersticas

    distintas, j se deu em outros momentos da histria humana, como na poca das grandes

    navegaes, mas que se reveste, em nossa sociedade de base cientfico-tecnolgica, de

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    possibilidade imaginvel como real, como um possvel no apenas na imaginao, mas nos

    fatos, a ponto de uma sociedade capitalista pragmtica investir em um projeto para a

    pesquisa de vida inteligente fora da Terra, como o caso do o SETI3.

    A questo que da Senhorita Incrvel algo distinta da que inquieta o transeunte de

    Londres. Este est interessado no mais, no alm, satisfeito demais e entediado demais

    com o que est dado, com a vida cotidiana que tudo fornece. Quer algo maior, anseia ir

    mais longe. A pr-adolescente, por outro lado, dotada de instrumentos que lhe permitem

    lidar com a hostilidade do mundo e, de certa forma, suprimir ou atenuar essas ameaas. Os

    poderes no s dessa personagem, mas de todos os super-heris dos quadrinhos e do

    cinema tm como finalidade vencer o mal, representado pelos viles. A concepo de que

    seria possvel se tornar invisvel ou ento criar uma barreira intransponvel a seu redor ,antes de tudo, a idia de que podemos construir instrumentos que nos ajudam a enfrentar as

    agruras do mundo.

    Claro que a idia de se tornar invisvel mais antiga do que a prpria cincia. Ela

    est presente, por exemplo, na mitologia grega, com o capacete do deus Hades que deixa

    Perseu invisvel, ajudando-o a matar a Medusa . Ou ento o anel encontrado pelo campons

    Giges, na histria contada na Repblica de Plato, que lhe dava a faculdade de ficar

    invisvel de acordo com a posio com que era ajustado, (MAGALHES JR. 1973, p. 75).O que estamos falando aqui, no entanto, refere-se a algo diferente. Ao sobrenatural, o

    mgico e o mstico sempre foram atribudas possibilidades alm de nossos limites

    mundanos, tornar-se imortal, viajar longas distncias instantaneamente, adquirir uma fora

    sobre-humana, esses e muitos outros poderes. A novidade aqui ver na cincia uma

    possibilidade ao menos terica de tornar realidade todas essas fantasias.

    Com o desenvolvimento cientfico e com a influncia que ele adquiriu em nossas

    vidas, a fico cientfica passou a ser um dos principais meios de expressar estes desejos de

    3Search for Extraterrestrial Intelligence, ou Busca por Inteligncia Extraterrestres. Projeto que utilizainstrumentos e tcnicas radioastronmicas para a deteco de vida inteligente fora da Terra. Para maioresdetalhes, consultar HEIDMANN (1995) ou o websitedo projeto: http://www.seti.org.

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    transcendncia humana atravs das possibilidades trazidas pela cincia. A fico cientfica

    expressa, atravs de suas pginas escritas e de suas imagens nas telas do cinema e da TV,

    muito mais que aventuras espaciais, combates com espadas lasers e monstros feiosos e

    bizarros: expressa as preocupaes, medos, desejos e questionamentos humanos frente ao

    universo de possibilidades que a cultura tcnico-cientfica de nossos tempos colocou diante

    de cada um de ns. Em outras palavras, questes humanas, que as nossas salas de aula

    ainda insistem em desvincular do ensino das cincias.

    Como professor, a pergunta que eu faria : por que toda essa intensidade de

    questionamentos no aparecem na sala de aula? Porque no fazem parte do cotidiano do

    ensino de cincias, se so questes to fundamentais, questes humanas que todo mundo se

    coloca e todo mundo gostaria de ter a oportunidade de debater? Acreditamos que trazer esseuniverso cultural para a sala de aula um trabalho fundamental. Cabe, portanto, investigar

    um pouco melhor esse mbito to pouco abordado nas pesquisas sobre ensino de cincias: a

    relao afetivaentre o aluno e a cincia, que o elemento fundamental que perpassa todo

    esse trabalho.

    2. Paixo e cincia na sala de aula

    Richard Feynman, em uma famosa palestra proferida no Brasil afirmou que no se

    ensina cincia em nosso pas (FEYNMAN, 2000, p. 243). Desde a dcada de 1950, quando

    o criador da eletrodinmica quntica aqui esteve, as discusses sobre o sentido do ensino de

    cincias tomaram muitos rumos. Houve projetos de ensino nos anos 60, inicialmente

    importados, traduzidos e adaptados. Depois, na dcada de 70, verificou-se a criao de

    projetos de ensino brasileiros, a partir da universidade, cujas repercusses foram variadas e,

    se no vingaram como programa de ensino de cincias nas salas de aula do pas, deixaram

    uma semente, que foram os diversos grupos de pesquisa em educao cientfica que hoje

    esto espalhados pelo pas e que permitem que trabalhos como esta tese sejam escritos.

    As pesquisas que surgiram da apresentam pelo menos duas vertentes razoavelmente

    definidas: os estudos sobre aprendizagem e os estudos sobre os contedos. Claro que

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    muitas vezes essas vertentes se confundem e se misturam e assim deve ser. A despeito da

    falta de estudos especficos a respeito, parece claro que apesar de todo o esforo de

    pesquisa, as poucas propostas renovadoras concretas no Brasil como o projeto de fsica

    GREF (1990, 1991, 1993), tiveram um impacto restrito em sala de aula, e embora alguns

    de seus possam ser observados em alguns livros didticos (GONALVES E TOSCANO,

    2000; SILVA, 2000), no houve influncia efetiva na estrutura curricular desta disciplina.

    Em relao a outras disciplinas cientficas no ensino mdio e fundamental, a situao das

    proposta renovadoras na sala de aula semelhante ou ainda mais precria. Nem mesmo

    diretrizes mais gerais, como os Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2004), que

    incorporam algumas das idias surgidas no meio acadmico de pesquisa em ensino,

    lograram trazer alteraes significativas para a forma e contedo do que realizado nas

    aulas das disciplinas cientficas em todo o pas. A questo de Feynman, portanto, ainda

    muito atual.

    O que, no entanto, nos chama a ateno no discurso de Feynman a forma como ele

    encarava a cincia. H um ponto central a, que a nosso ver tem escapado sistematicamente

    tanto s pesquisas voltadas para a aprendizagem como quelas preocupadas com o

    contedo e que, no entanto, talvez seja a coisa que mais deveria unir as duas vertentes.

    Estamos nos referindo a um ponto fundamental: a paixopaixopaixopaixo. Ou, se preferirem, ao interesse,

    ao prazer, vontade espontnea de conhecer, ao entusiasmo com a cincia. Feynman era,

    antes de tudo, um apaixonado e qualquer um que tenha lido alguma de suas famosas

    lecturesou conhecido algo de sua biografia poder constatar isso de imediato.

    Mas onde a paixo aparece na sala de aula? Lecionando fsica durante 15 anos no

    ensino mdio, tive algumas boas oportunidades de ver olhos brilharem e de perceber

    manifestaes explcitas do mais puro entusiasmo. Mas muitas vezes tambm pude

    observar olhares de tdio, sono e indiferena. E no poucas tambm de ouvir adolescentes

    dizendo que a fsica uma matria chata.

    Estando na docncia no ensino mdio e constantemente em contato com a rea de

    pesquisa de ensino de fsica, tive a oportunidade de acompanhar muitas e muitas idias e,

    dentro de meus limites e interpretaes, lev-las para a sala de aula, desde os antigos

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    projetos, passando por propostas de seqncias construtivistas, de trabalhos que levassem

    cuidadosamente em conta as concepes espontneas, da aplicao sistemtica de um

    projeto como o GREF (1990, 1991, 1993), e de adaptaes inspiradas na idia central deste

    projeto. Tambm lidei com a histria da cincia, tanto com textos originais, como os

    dilogos galileanos, com projetos como o Harvard (1978a, 1978b, 1980, 1985) e com livros

    de divulgao cientfica. Tambm trabalhei com experimentos os mais variados, dos mais

    simples aos mais elaborados, fazendo brinquedos, desmontando aparelhos, realizando

    medidas, observaes qualitativas e discusses. Usei o computador, com simulaes, jogos,

    pesquisas na internet e grficos em planilhas. Exibi vdeos e filmes, indiquei a leitura de

    livros e textos diversos. Em relao ao contedo, abordei tambm fsica moderna,

    relatividade, fsica quntica, fsica de partculas elementares, astronomia e cosmologia e

    tambm a teoria do caos. No faltaram inclusive muitas aulas sobre questes da cincia em

    geral, do fazer cientfico bomba atmica, passando por questes ambientais e vrias

    outras coisas que se pode encontrar nos textos das diretrizes curriculares nacionais. E, claro,

    fiz tambm muitas coisas tradicionais, tais como exerccios de vestibular.

    O que pude constatar que, qualquer que seja a coisa que faamos como

    professor, possvel torn-la chata ou legal. Pensemos, ainda como mero exemplo, na

    possibilidade de uso de fico cientfica em sala de aula, que o tema deste trabalho. Por

    mais que a idia a princpio possa ser interessante, preciso dizer que tambm pode ser

    muito chata e que no difcil fazer com que os alunos odeiem no apenas a fsica, mas

    tambm a fico cientfica ou qualquer outra coisa que tenha a palavra cientfica no

    nome. Isso vale para o uso da fico cientfica assim como para qualquer recurso inovador

    que se possa imaginar, entre tantos que aparecem aqui e ali, a fsica no parque de

    diverses, a fsica na capoeira, a fsica no vdeo-game, entre tantas outras. Todas elas

    podem ser to enfadonhas, to incuas e to vazias quanto passar dezenas de exerccios

    com a tradicional formulinha da transformao de graus Celsius para Fahrenheit. Iria atmais longe: alguns alunos podem achar muito mais interessante essa ltima opo,

    dependendo do contexto.

    A pergunta que deve ficar como uma mesma coisa pode ser interessante ou

    detestvel. E acreditamos que parte da resposta est no que Feynman descreve em sua

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    experincia educacional. Diz o cientista que perguntou a um estudante: Quando a luz

    chega a um ngulo atravs de uma lmina de material com uma determinada espessura, e

    um certo ndice N, o que acontece com a luz? (op. cit. p.238). O estudante sabia responder

    perfeitamente e at calcular perfeitamente o deslocamento da luz. Porm ignorava como

    responder a uma questo prtica ligada a uma aplicao imediata desse mesmo

    conhecimento: Se esse livro fosse feito de vidro e eu estivesse olhando atravs dele

    alguma coisa, o que aconteceria como a imagem se eu inclinasse o [vidro] 4? (op. cit.

    p.239).

    A questo que o que parece ser a mesma coisa no realmente a mesma coisa.

    Feynman, que no um terico da educao, mas que como professor intui que o maior

    problema est na prtica de incentivar a simples memorizao de conceitos. Isso remetetalvez a um ponto chave: o significado dos conceitos, a busca do real entendimento das

    coisas. nesse ponto precisaramos ir alm da intuio de professor do mestre Feynman e

    recorrer s pesquisas sobre aprendizagem: como realmente ensinar conceitos e no fazer

    com que os alunos simplesmente os memorizem. Nosso caminho porm, ser um tanto

    distinto, porque no estamos simplesmente preocupados com o aprender bem o conceito.

    Em relao satisfao com o conhecimento e com o aprendizado, implcita nas

    idias de Feynman, Georges Snyders segue um outro caminho, voltando sua ateno aosignificado de satisfao que o acesso cultura pode proporcionar e ao papel da escola no

    acesso dos estudantes a essa satisfao. O pedagogo francs coloca no centro das

    preocupaes a questo dos contedos escolares e vincula-os questo da cultura e a seu

    papel na satisfao, da alegria e do prazer:

    4Aqui houve um lapso de traduo na edio brasileira. Na traduo,glasshavia sido traduzido paracopo, mas o contexto s faz sentido se a traduo for substituda por vidro.

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    (...) para dar alegria aos alunos, coloco minha esperana narenovao dos contedos culturais. A fonte de alegria dos alunos, no aprocuro inicialmente do lado dos jogos, nem dos mtodos agradveis, nem dolado das relaes simpticas entre professores e alunos, nem mesmo na regioda autonomia e da escolha: no renuncio a nenhum destes valores, mas contoreencontr-los como conseqncia e no como causas primeiras (SNYDERS,

    1988, p.13).

    Tais caminhos porm no so de forma alguma incompatveis. A busca do

    significado, da compreenso mais profunda do objeto de estudo, no apenas se

    compatibiliza com o interesse e a satisfao, mas de certa forma o combustvel um do

    outro. Isso coloca no centro da pauta a questo do contedo do ensino de uma forma

    indissocivel da forma como esse contedo transmitido. O contedo, de certa forma,

    determina o mtodo de ensino e vice-versa: no so elementos estanques que possam ser

    justapostos.

    Tomemos um exemplo concreto, digamos, o ensino de lentes esfricas, que um

    tpico comum no ensino mdio. O professor pode abordar o assunto sem jamais mostrar

    uma lente sequer para os alunos. Isso , alis, o mais comum. Ele mostra no quadro negro a

    representao esquemtica das lentes e ensina os alunos a fazerem os diagramas que

    permitem determinar como ser a imagem, em funo da posio do objeto relativamente

    lente e ao seu ponto focal. Tambm pode ensinar o clculo que permite fazer isso e

    inclusive discutir sobre instrumentos pticos como microscpios e telescpios. Por outro

    lado, ele pode tambm trabalhar o assunto mostrando lentes esfricas didticas para os

    alunos. Pode inclusive usar um banco ptico, um kit de estudo de ptica muito comum, ou

    ento utilizar lentes de culos usadas, ao invs de um material produzido especialmente

    com finalidades didticas. Outros possveis recursos seriam uma simulao de computador,

    textos por exemplo sobre a histria da inveno das lentes, material videogrfico e assim

    por diante. Enfim, os recursos so inmeros e a cada recurso que se emprega h algo de

    diferente no contedo que se veicula, e uma srie de consideraes pode ser feita emrelao aos conhecimentos, habilidades, atitudes e tudo o mais que est sendo desenvolvido

    ali, em relao quele tpico especfico.

    Assim, cada uma dessas mltiplas possibilidades, mais do que representarem apenas

    mtodos distintos para ensinar conceitos, constituem tambm contedos diferentes.

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    Trabalhar com um kit diferente de trabalhar com lentes de culos, trabalhar com um texto

    histrico diferente de fazer um experimento. E essa diferena no est apenas no mtodo,

    mas tambm no contedo, ou seja, naquilo que o aluno est de fato aprendendo. E mesmo

    dentro de cada abordagem, h muitas variaes possveis, nfases, formas de expor a

    matria, a relao que se estabelece entre o aluno e o material. Cada uma delas traz no s

    uma relao distinta com o conhecimento, mas tambm conhecimentos diferentes. No

    entanto, normalmente refere-se ao contedo apenas como os conceitos e as relaes a serem

    trabalhadas: distncia focal, imagem real e virtual, a identificao e nomenclatura dos tipos

    de lentes, a equao de Gauss e assim por diante. Assim, como comentamos, o que parece

    ser mesma coisa, ou seja, ensinar lentes esfricas , na verdade, um rtulo para uma

    variedade imensa de contedos efetivamente abordados, dependendo do caminho que se

    escolha.

    O que observamos que muitas vezes se encara o ensino de fsica como a tarefa de

    fazer com que o aluno aprenda conceitos e relaes da forma mais completa possvel e que

    todas as outras coisas so consideradas apenas como mtodos para facilitar esse

    aprendizado.

    Se examinarmos os exemplos dados por Feynman veremos que exatamente nas

    mltiplas inter-relaes com o contexto que os conceitos podem fazer sentido, dizeremrespeito realidade e mais do que isso, serem interessantes e motivarem a ao do sujeito.

    Mas podemos ir alm da relaes conceituais internas da fsica, que onde Feynman

    permanece. A lente esfrica no apenas um tpico prosaico da fsica, um instrumento para

    o qual se deve conhecer as frmulas, os esquemas e os conceitos relacionados. Ela repleta

    de significados, sociais, culturais, tcnicos e cientficos. E tambm de significados prticos,

    da vida cotidiana, da prtica social do dia a dia, de conhecer na prtica as propriedades e as

    funes das lentes. Elas podem representar grandes anseios humanos, a vontade de ver

    mais, melhor e mais longe, de conhecer melhor o mundo, tambm de conquista tcnica e

    histrica. O grande passo de Galileu com a luneta no foi sua inveno que afinal no foi

    dele e sim a idia de us-la para olhar o cu, que o levou a concluses que transformariam

    radicalmente a nossa viso do universo. Mais ainda: ao mesmo tempo, de imaginar

    utilidades militares. E a lente est presente na natureza, na crnea e no cristalino dos olhos

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    dos animais. Por trs da lente esto conceitos sutis, a formao de imagens, o princpio da

    superposio. Est a idia de que grande parte do que sabemos em cincia dependeu um dia

    de passar pela tecnologia da lente esfrica. E o domnio do que lente no se d apenas no

    mbito das formalizaes abstratas, mas do de perceber a lente como um elemento de um

    todo maior.

    Evidentemente no estamos com isso advogando aqui um curso de ps-graduao

    sobre lentes esfricas que tomasse talvez um ano inteiro, com aspectos histricos, sociais,

    tcnicos e tudo o mais, esgotando o assunto lentes em si, at suas ltimas conseqncias.

    Estamos falando de significado, no sentido amplo do termo, de perceber cada elemento do

    contedo inserido numa rede maior que remete a uma estrutura conceitual mais profunda

    no conhecimento, quanto a questes que relacionam a cincia com suas repercusseshumanas.

    Talvez a um grande cientista como Feynman importe muito mais a primeira parte,

    ou seja, inserir conceitualmente cada elemento numa malha densa de significados internos

    estrutura conceitual da cincia e relacionar essa estrutura com os elementos naturais a que

    se referem, com seu uso cotidiano e com os fenmenos que ela suscita. E talvez os que

    defendem um ensino de cincias mais engajado, voltado para a formao no do cientista

    especificamente, mas do cidado em geral, vejam mais interesse nas inter-relaes que sepossa estabelecer no mbito das questes sociais, polticas, econmicas e tcnicas.

    De uma forma ou de outra, cabe uma idia mais ampla do que vem a ser contedo e

    de como ele se relaciona com aquilo que se deseja atingir, ou seja, os objetivose de como

    concretamente esse contedo apresentado em sala de aula, ou seja, os mtodos. Mas ainda

    h a questo central a ser desenvolvida: a paixo. Onde ela entra em toda essa discusso de

    significado dos contedos? Podemos construir um curso que procure estimular a

    curiosidade cientfica e tambm podemos criar um que incorpore a idia da cincia como

    construo social e como instrumento para insero na prtica social. E mesmo assim, os

    alunos podem no se interessar em nenhum dos casos. Eles podem dizer: l vem de novo

    aquele professor falando de bomba atmica, l vem ele falando do Galileu, no agento

    mais Galileu. No agento mais olhar para dentro do chuveiro eltrico ou discutir essa

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    coisa de relatividade. E podem lanar a pergunta fatal, que amedronta tanto os professores:

    para que eu quero saber isso?

    O fato que quando h interesse e prazer envolvido ningum se lembra de

    perguntar para que serve essa matria. Deveramos esperar isso, claro, em qualquer

    disciplina escolar, no apenas nas cincias. Afinal, enquanto um leitor experimentado sabe

    que Machado de Assis muito bom, interessante e prazeroso, ouvimos muitos estudantes

    dizerem que seus livros so chatos. Como sabemos que tambm so muito interessantes

    os estudos da ptica e da Acstica. Mas como chegamos a verificar isso, ns que estamos

    do lado de c, que j passamos pelas etapas que nos permite fruir a beleza e a satisfao

    trazida por tais conhecimentos? Ou seja, ser que essas coisas so legais por si mesmas

    ou tambm pelo processo que nos levou a apreend-las como muito mais do que umamatria escolar a ser decorada e devolvida na prova? Em algum momento, essas coisas

    fizeram sentido, adquiriram um significado prprio para ns, nos trouxeram sentimentos de

    admirao, de interesse e de vontade de aprender, para que pudssemos voltar nossos

    esforos que certamente no foram pequenos para nos apropriar delas. Um adolescente

    perfeitamente capaz de ficar horas repetindo atividades complexas para atingir um grau

    de perfeio absoluto em alguma atividade, seja ela tocar guitarra, passar uma fase no

    vdeo-game ou decorar a letra de uma msica de amor. Seus professores talvez achassem

    muito chato e complicado fazer qualquer uma dessas coisas sem sentido, que no

    servem para nada.

    No entanto, a nosso ver, justamente a que se encontra a chave das questes que

    estamos colocando. Como tornar as coisas sem sentido em coisas com sentido. Ou

    melhor: como mostrar o sentido que as coisas em si s j carregam consigo e que fizeram

    com que pessoas se debruassem muito tempo sobre elas e estabelecessem que so

    importantes e dignas de serem conhecidas por todos, a ponto de estarem no programa de

    ensino das escolas. Se que isso verdade. E no caso das lentes esfricas e de Machado de

    Assis, no temos dvidas de que verdade.

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    3. O problema do sentido e o sentido dos problemas.

    O trabalho de Snyders lanou bases para uma investigao dos contedos comocultura e da cultura como forma de prazer, como busca de uma realizao por parte do

    estudante. Mais do que apenas trazer uma viso crtica, uma instrumentalizao ou

    conscientizao os contedos culturais em Snyders so vistos como uma fonte de

    satisfao. A motivao da busca do estudante pela compreenso vem dessa satisfao que

    a cultura elaborada pode lhe proporcionar. O autor inicia sua exposio descrevendo o que

    ele chama de cultura primeira:

    H formas de cultura que so adquiridas fora da escola, fora de todaautoformao metdica e teorizada, que no so o fruto do trabalho, doesforo, nem de nenhum plano: nascem da experincia direta da vida, ns aabsorvemos sem perceber; vamos em direo a elas seguindo a inclinao dacuriosidade e dos desejos; eis o que chamarei de cultura primeira(SNYDERS, 1988, p.23).

    A noo de cultura primeira fundamental na compreenso da idia de satisfao

    cultural que ser desenvolvida. Os elementos culturais que esto presentes

    espontaneamente no ambiente dos estudantes ir formar um sistema cultural complexo,

    repleto de nuances e de fragmentos provenientes de diversas fontes e extremamente

    variveis de acordo com o contexto social. A televiso, o trabalho, os meios de

    comunicao, os ambientes que os jovens freqentam, as relaes familiares tudo isso ir

    contribuir na formao dessa matriz.

    So elementos dessa cultura primeira que fornecem o que Snyders chama de

    alegrias simples (op. cit., p. 24). Como exemplo, o autor fornece uma pessoa se

    divertindo na gua de uma praia ou piscina, desfrutando um momento de lazer que to

    apreciado. Ou ainda o interesse dos jovens em motocicletas, que representam valores como

    a liberdade, a vida ao ar livre, a sensualidade e o mundo tcnico, as provas e os desafios.

    Essas alegrias simples so, de acordo com Snyders, fontes inegveis de satisfaes

    legtimas, e justamente no reconhecimento da importncia dos valores que elas

    representam que o autor buscar um caminho de elaborao, em um processo dialtico de

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    continuidade e ruptura, partindo dessa cultura primeira, identificando seus valores, mas

    tambm seus limites, dados pelo ponto em que ela, por sua prpria natureza, no pode

    satisfazer.

    Comea ento falando desses limites: a pessoa que se diverte na gua possivelmenteir querer aprender a nadar, a adquirir com a gua uma relao mais hbil, mais sutil e

    profunda. Da mesma forma, o motoqueiro pode querer se aprofundar no mbito tcnico da

    mecnica e do funcionamento da moto e no mbito social das relaes humanas, dos

    cdigos de tica de grupo envolvido em seu uso. Quando isso acontece, as pessoas passam

    a procurar a orientao daqueles que so mais experientes, que podem trazer um nvel de

    conhecimento a um novo patamar que permita desfrutar satisfaes mais elaboradas. Essas

    so, de acordo com Snyders, as alegrias ambiciosas.

    As alegrias simples desempenham o papel de trguas, representando um momento

    em que se esquece dos problemas do dia-a-dia. Elas esto no lazer, na diverso, nos

    prazeres descompromissados. Mas a palavra trgua j embute uma idia de provisrio,

    efmero, que por isso mesmo tem um limite, no consegue alcanar nem a profundidade

    nem a perenidade das formas mais elaboradas, as alegrias ambiciosas, que esto ligadas

    cultura que o autor denomina cultura elaborada, cujas alegrias esto ligadas possibilidade

    de guiar a prpria histria, individual e coletiva:

    Passado, presente e inovao A cultura para criar o novo, novosmodelos, novas relaes sociais, forma-se tomando o destino nas mos, emuma sociedade onde haja a possibilidade de tomar o destino nas mos, ondevalha a pena compreender o que se passa (SNYDERS, 1988, p. 50).

    interessante notar aqui a conexo da cultura elaborada com o novo, com o futuro,

    com as possibilidades de transformao dadas pelo contexto presente. Em que medida o

    ambiente escolar favorece a reflexo sobre as possibilidades de mudana? E mais: at que

    ponto ele ajuda na crena de que a transformao possvel, de que esse um papel a ser

    assumido por cada um, ainda que encarado coletivamente? Para Snyders, o papel da escola

    proporcionar o acesso cultura elaborada, porque essa cultura que habilita o indivduo

    na tarefa transformadora:

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    A cultura no uma soma de conhecimentos, um conjunto de obras aadmirar, amar, degustar, mas simultaneamente obras e um modo de vida e aprocura de novos modos de vida; so os modos de vida inovadores quepermitem tirar das obras toda a fora de inovao que elas contm,reciprocamente; apoiando-se nas obras inovadoras que se vai fortificar osnovos modos de vida.

    Sem passar pela cultura elaborada, pode-se ser amvel com aquelesque se encontra, esforar-se para aplainar as dificuldades quotidianas. Mastrata-se aqui de outra coisa; a possibilidade de apreender as causasfundamentais da incompreenso, da hostilidade entre os homens e de atac-las (SNYDERS, 1988, p.68).

    atravs da cultura elaborada , portanto, que verificamos que os sonhos individuais

    so, na verdade, uma expresso individual de sonhos coletivos, compartilhados no s

    pelos meus contemporneos, mas pelo gnero humano. No se trata um culto irrealidade,

    ao impossvel, mas a uma irrealidade que ganha existncia em si nos anseios coletivos da

    humanidade. A partir do contato com a cultura elaborada, o sonho individual adquire uma

    dimenso nova, de uma potencialidade latente: quanto mais freqento os sonhos

    culturalmente encarnados, menos tenho a temer que meus sonhos venham a confundir

    minha realidade (op cit. p. 82).

    Se tentarmos situar a cincia dentro dessa lgica, imediatamente sobrevm uma

    justaposio entre as mudanas sociais, polticas, culturais e econmicas, imaginadas ou

    sonhadas e as possibilidades do conhecimento cientfico ser um fator chave dessasmudanas. Ao mesmo tempo, estamos frente a uma relao dialtica estabelecida pela

    dicotomia presente-futuro. O presente, representado pela situao dada, pelas vivncias

    imediatas, pelos resultados percebidos de um processo social que se estende at o hoje. O

    futuro, imaginado como repleto ao mesmo tempo de possibilidades alvissareiras e

    ameaadoras, em tenso com o presente, opondo-se a ele e ao mesmo tempo derivado das

    condies que ele coloca. O conhecimento cientfico, que pode ser visto tanto como uma

    resposta quanto como uma ameaa aos anseios humanos, vem de encontro ao sentido de

    futuro e de transformao do presente.

    As possibilidades futuras, implcitas no conhecimento cientfico, portanto, podem

    ser encaradas a partir de uma perspectiva pessimista ou de uma viso otimista. Snyders

    analisa essas duas vises no contexto da educao escolar. O otimismo , para ele, uma

    arma revolucionria:

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    A satisfao cultural e por conseguinte a alegria na escola s podemexistir se houver uma outra cultura diferente daquela que se dedica s vidasperdidas, ao culto do insucesso que vai entravar as esperanas e aspossibilidades. O destino da escola age sobre a manifestao de uma culturacapaz de responder expectativa sria de felicidade nos jovens essaexpectativa que eles exploram atravs das formas mltiplas, matizadas de sua

    cultura e da nossa: dar um sentido sua vida, encontrar razes para viver(SNYDERS, 1988, p.77).

    Aqui Snyders coloca explicitamente a questo das expectativas em relao cultura

    e ao seu papel-chave na busca de um sentido, que se s se configura como sentido

    justamente porque est vinculado a um sentido de vida. Nesse ponto, Snyders est

    apontando para essa questo fundamental, onde ao nosso ver h uma convergncia com as

    idias de Paulo Freire. Em um livro dialogado com o filsofo chileno Antonio Faundez,

    Freire fala que o sonho sonho porque, realisticamente ancorado no presente concreto,

    aponta o futuro, que s se constitui na e pela transformao do presente. (FREIRE e

    FAUNDEZ, 1985, p. 71). Para esses autores, o sonho, como constituio de possibilidades

    imaginadas, dadas pelo presente, parte fundamental da existncia humana.

    A vida humana , entre outras coisas, a criao de sonhos possveis, aluta por realizar, cristalizar esses sonhos possveis, recriar novos sonhospossveis medida que esse sonho possvel de alguma forma escape a suarealizao absoluta (FREIRE e FAUNDEZ, 1985, p. 71).

    Essa convergncia que caracteriza duas vises progressistas de pedagogia no ,

    evidentemente, obra do acaso, uma vez que aqui a transformao social o foco das

    atenes e a escola tem que ter um papel fundamental nesse processo. Portanto, ao falar de

    dar sentido aos contedos, no estamos falando apenas de uma motivao, ou de uma

    compreenso conceitualno sentido estrito, mas de uma interligao mais profunda com as

    expectativas do sujeito em relao vida, ao mundo que o cerca. Os mecanismos atravs

    dos quais tais ligaes so construdas que so a chave de uma abordagem da educao

    cientfica de um ponto de vista que fuja da burocracia da matria dada e aponte para umaapropriao efetiva do conhecimento como valor cultural que adquire o carter

    revolucionrio que tanto Snyders quanto Freire propugnam.

    O pensador francs, porm, no descarta o pessimismo, no o coloca como um valor

    a ser simplesmente negado. Ao contrrio, ele fala do uso necessrio do pessimismo (op.

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    cit. p.75), do bom uso do pessimismo ao mesmo tempo em que alerta sobre o uso

    catastrfico do pessimismo (p . 76). Otimismo e pessimismo no se excluem logicamente.

    O pessimismo necessrio para se encarar a realidade:

    Inicialmente necessrio que devemos atravessar e reatravessar asaflies, as atrocidades do mundo; a satisfao da cultura elaborada s podeprevalecer sobre os prazeres da cultura primeira se ela se pronuncia comconhecimento de causa e desde ento com uma firmeza mais convincente,melhor estabelecida que as pretenses de primeiro lance (SNYDERS, 1988,p.75).

    Snyders fala do pessimismo como grito (p. 77), como forma de protesto, como

    instrumento para reconhecer e compreender as mazelas, os problemas, as situaes crticas

    colocadas pela realidade social, no quer ser acusado de acreditar em Papai Noel (p. 78),

    propondo um otimismo ingnuo. O que ele faz contrapor-se associao automtica que

    se costuma fazer entre a viso pessimista e perspectiva crtica, sendo assim considerado o

    pessimismo como instrumento revolucionrio. Essa contraposio, alis, se inicia desde o

    momento em que o autor se prope a escrever uma obra que no apenas valoriza a escola e

    a cultura escolar como possibilidade revolucionria, mas que a coloca como resposta aos

    anseios humanos mais legtimos, associando-os alegria e satisfao, na medida em que

    a via de acesso por excelncia cultura elaborada. Ele mostra como o pessimismo, ao

    contrrio, pode servir aos interesses conservadores, na medida em que pode levar a umaviso de beco sem sada, de impossibilidade de mudana.

    A questo de dar sentido ao contedo escolar, portanto, est ligada a

    posicionamentos assumidos perante o mundo e no a estmulos e motivaes, a associaes

    desconexas ou justapostas realidade. Nem sempre o alcance dessa perspectiva levado

    em conta, mesmo por autores que propem uma renovao do ensino de cincias atravs da

    crtica ao ensino operacionalizado. Carvalho e Gil-Prez (1993), por exemplo, propem o

    ensino por resoluo de problemas, criticando a prtica tradicional da resoluo deproblemas no ensino de fsica do nvel mdio, onde na verdade os problemas no so

    realmente problemas na medida em que so descontextualizados e, portanto, desprovidos

    de sentido para o aluno. Assim, propem a resoluo de problemas como uma tarefa de

    pesquisa, definindo etapas, que resumimos aqui:

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    a) Considerar o interesse da situao problemtica abordada. (op. cit, p. 98)

    b) Estudo qualitativo da situao para limitar e definir de maneira precisa o

    problema (p. 99)

    c) Emitir hipteses sobre do que pode depender a magnitude buscada e sobre a

    forma desta dependncia. (p. 99)

    d) Elaborar e explicitar possveis estratgias de resoluo. (p. 101)

    e) Elaborar a resoluo verbalizando ao mximo, evitando operativismos carentes

    de significao fsica. (p. 102)

    f) Analisar os resultados luz das hipteses elaboradas e, em especial, dos casoslimites considerados. (p. 103)

    g) Considerar as perspectivas abertas pela pesquisa realizada e conceber novas

    situaes a serem pesquisadas. (p. 104)

    Essas etapas que, segundo os autores, no constituem um algoritmo que pretenda

    guiar passo a passo a atividade dos alunos (op. cit., p. 105), no entanto possuem em si

    alguns aspectos implcitos que devem ser destacados nessa busca do sentido do contedo.Em primeiro lugar, pela prpria complexidade e elaborao dos momentos propostos, a

    valorizao da resoluo de problemas fsicos como cerne do ensino, voltado para a

    compreenso conceitual detalhada e segura dos conceitos cientficos envolvidos em cada

    etapa, seu escopo de aplicao, suas limitaes. No nego a fundamental importncia da

    compreenso conceitual, entretanto, como discutiremos adiante, preciso tomar um

    cuidado especial para no se inverter a ordem das coisas, sujeitando os contedos aos

    mtodos de ensino, que o resultado prtico da costumeira identificao que se faz entre

    contedo escolar e contedo conceitual. Mas mais importante do que isso, perceber que a

    contextualizao em si, que a primeira etapa descrita, est incorporada aqui,

    aparentemente, apenas como um elemento de motivao:

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    Se se deseja romper com exposies demasiadamente escolares,distanciadas da orientao investigativa que aqui se prope, absolutamentenecessrio evitar que os alunos se vejam submersos no tratamento de umasituao sem ter podido sequer formar uma primeira idia motivadora(CARVALHO E GIL-PREZ, 1993, p. 98).

    Para sustentar essa afirmao, podemos em primeiro lugar verificar que na

    descrio das demais etapas ou momentos do processo, essa ligao com o que

    denominado pelos autores de relaes Cincia/Tecnologia/Sociedade (p. 99) no aparece

    como elemento fundamental nem retomado ou referido como integrante do processo.

    Alm disso, na prpria descrio dessa etapa motivadora, atribui-se a esses elementos os

    papis de proporcionar uma concepo preliminar e favorecer uma atitude mais positiva

    para a tarefa. Em outras palavras, o papel da contextualizao subordina-se ao

    desenvolvimento de um processo de ensino conceitual, considerado pouco mais que umfornecedor de concepes provisrias, preliminares, que deixa suposto que sero refinadas

    e pressupe tambm que o processo em si depende de uma certa quebra de resistncia da

    parte do estudante, para a qual a situao motivadora seria empregada como instrumento.

    O papel aqui atribudo para as relaes cincia-sociedade parece ser apenas o de

    um ponto de partida, um disparador de um processo que passa por uma modalidade de

    operacionalizao diferente daquela tradicional, mas ainda assim correndo o risco de ser

    desprovida do que estamos chamando de sentido. Isso ocorre na medida em que asmotivaes iniciais forem apresentadas apenas como uma justificativa para um processo

    potencialmente longo e complexo que no se reporte e no sujeite sua consecuo a

    situaes vividas ou percebidas como culturalmente relevantesem cada etapa, mesmo que

    esse processo tenha um carter ldico. As etapas assim propostas ser