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Tese sobre desenhos de crianças

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A FAMLIA TAL COMO ELA NOS DESENHOS DE CRIANASM A R I A A PA R E C I DA D E M O R A E S S I LVA B E AT R I Z M E D E I R O S D E M E LO ANDRIA PERES APPOLINRIO

R E S U M O A partir da dcada de 1960, assistiu-se vinda de milhares de trabalhadores, de vrias reas do pas, para as cidades da regio de Ribeiro Preto/SP, em busca de trabalho nas lavouras de caf, cana e laranja. Essa migrao foi responsvel pelo surgimento de bairros perifricos, habitados por trabalhadores rurais, que vivem nas cidades e trabalham no campo. Na dcada de 1990, em virtude do processo de reestruturao produtiva, da precarizao e do desemprego, a situao social dos trabalhadores se agravou muito. O objetivo deste artigo a anlise dos efeitos desse processo sobre as famlias, a partir das representaes das crianas, por meio dos seus desenhos. P A L A V R A S - C H A V E Desenhos de crianas; gnero; trabalho rural; explorao econmico-social.

A B S T R A C T Since the 1960s thousands of workers coming from different areas of Brazil have rushed into the cities of the Ribeiro Preto region, So Paulo, looking for employment in its coffee, sugar cane and orange farms. This migration resulted in the growth of periurban bairros inhabited by workers who live in town but work in the countryside. In the 1990s, the plight of these workers has worsened, due to changes in the productive structure, which resulted in short-term jobs and unemployment. This article has the goal of analyzing the effects of this process over families, based in childrens representations as contained in their drawings. K E Y W O R D S Childrens drawings; gender; rural work; socio-economical exploitation.

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1 O colonato reporta-se ao sistema de trabalho vigente sobretudo na economia cafeeira desde os fins do sculo XIX at meados do sculo XX. Consistia no trabalho familiar regido pelo chefe da famlia. As normas eram definidas segundo o contrato de trabalho que discriminava as tarefas no cafezal, o direito ao uso de pequena roa de subsistncia e a propriedade de alguns animais. Esse sistema priorizava as famlias numerosas capazes de fornecer o maior nmero de braos para as lavouras. 2 Em mdia, as mulheres da pesquisa tm quatro filhos, cifra muito superior mdia nacional. Dados recentes da PNAD apontam para o declnio das taxas de fecundidade no pas. O nmero mdio de filhos por famlia era 6,2 em 1940 e 1950; 6,3 em 1960; 5,8 em 1970; 4,4 em 1980; 2,9 em 1991; 2,4 em 2000; 2,1 em 2004 e 1,8 em 2050 (estimativa). Segundo a demgrafa Ana Amlia Camarano, a fecundidade caiu mais entre as mulheres mais pobres. Folha de S. Paulo, Caderno Dinheiro, B 5, 22 de janeiro de 2006. 3 Jos de Souza Martins foi um dos pioneiros a mostrar criticamente que a sociologia no estuda as crianas. Ver, a respeito, Martins (1991). A incluso da criana nos temas sociolgicos foi objeto de uma coletnea, publicada recentemente: Faria, Demartini, Prado (2002); na historiografia, destaca-se a obra de Del Priore (1991).

Assiste-se atualmente ao processo progressivo de precarizao do trabalho nas lavouras de cana-de-acar e laranja na regio de Ribeiro Preto/SP. O Estatuto do Trabalhador Rural (1963) operou a individualizao do trabalho no campo e a intensificao da explorao da mo-de-obra. A migrao para a cidade resultou na situao de incapacidade de reproduo econmica por parte desses trabalhadores, conforme j apontado em outros estudos (Stolcke, 1986, 1993; Silva, 1997, 1999). Paulatinamente, foi ocorrendo a crise do provedor na unidade domstica e a multiplicao das mulheres-chefes-de-famlia. O fim do colonato1 indicava a tendncia da reduo da taxa de natalidade entre as famlias dos doravante denominados biasfrias, mas a realidade emprica estudada revela ainda a presena de um nmero elevado de filhos, algo que contraria a tendncia do pas.2 Diante desse contexto histrico, o objetivo deste artigo a anlise dos efeitos do processo de excluso-incluso precria (Silva, 2004), resultantes da implantao da maneira de produzir do agribusiness, sobre a organizao social das famlias de trabalhadores rurais, residentes nas periferias urbanas sob a tica das crianas, sujeitos geralmente ausentes dos temas da sociologia, em razo do carter adultocntrico desse ramo do conhecimento cientfico.3 Por meio da combinao de vrias tcnicas de pesquisa, tornou-se possvel conhecer as diversas estratgias adotadas pelas famlias para a garantia da reproduo social e o olhar das crianas sobre suas prprias famlias. De antemo, ressaltamos que a escolha do universo infantil para a anlise sociolgica representou um enorme desafio no apenas em virtude de poucas pesquisas existentes como tambm dos limites tericometodolgicos enfrentados, j que essa problemtica no pode ser encerrada num nico campo do conhecimento. A fim de darmos conta dessa empreitada, foram feitos alguns recortes analticos que privilegiam a criana como sujeito, diferente do adulto, dotado de representaes especficas, segundo o universo social no qual est inserida, e o desenho enquanto representao106

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social. Portanto, as anlises da psicologia infantil e da psicanlise que enfocam os desenhos visando aos testes clnicos e nveis de inteligncia escapam aos nossos objetivos. O desenho, conjugado a sua leitura feita pela respectiva criana, constitui-se na expresso e tambm na percepo que ela tem da famlia e do mundo social que a cerca. A anlise dessa problemtica ser feita no contexto de algumas questes tericas que privilegiam as relaes entre estrutura e sujeito. Partimos do princpio de que as estruturas no so fatos objetivos, independentemente dos sujeitos que compem uma dada realidade social. Existe uma relao dialtica entre estrutura e sujeito, cujo resultado so as relaes processuais. Dessa sorte, as consideraes sobre os espaos sociais das famlias, necessrias ao entendimento das representaes infantis por meio dos desenhos, sero precedidas por aquelas acerca das relaes entre a sociognese e a psicognese. Tal procedimento terico possibilitar a compreenso da particularidade histrica dessa realidade social, levando-se em conta os aspectos universais que fazem parte dela. Os dados empricos esto ancorados na etnografia concentrada na cidade de Rinco, localizada no interior do estado de So Paulo (a 280 km da capital), com 10.329 habitantes, e 70% da populao economicamente ativa ocupa o setor primrio (Censo, 2000). Optou-se pela anlise etnogrfica a fim de observar em profundidade o comportamento de 15 famlias de um mesmo quarteiro, localizado num dos limites urbanos da cidade, no Bairro Jardim Bela Vista. Essa metodologia abarcou vrias tcnicas: desenhos de 40 crianas,4 coleta de depoimentos orais com jovens adolescentes grvidas, com mulheres casadas, com mulheres solteiras com filhos, com alguns homens, com representantes do Conselho Tutelar, da Creche Municipal, do Posto de Sade, alm da observao participante. O tema dos desenhos relacionado famlia tinha como pressuposto a anlise das vrias formas da estrutura familiar presentes entre eles. As entrevistas com as mulheres contaram com o apoio de107

4 Os desenhos foram coletados em duas etapas: num primeiro momento, foram reunidas 15 crianas na casa do pai de uma das pesquisadoras; num segundo momento, foram coletados 25 desenhos na creche municipal, ocasio em que se desenvolveu uma atividade teatral. Em ambos, no havia a presena dos membros das famlias das crianas. Outros detalhes sero explicitados adiante.

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5 O teatro infantil foi orientado pelas pesquisadoras Beatriz Medeiros de Melo e Andria Peres Appolinrio, cujos atores foram as prprias crianas. Foram fornecidos a elas bonecos de fantoche, aps ter-lhes sido solicitado que representassem pessoas de suas famlias e criassem uma histria, baseada em Rapunzel. A pea foi montada com oito participantes: o rei, a bruxa, dois personagens femininos, dois personagens masculinos e tambm um personagem de contos infantis, a Rapunzel. Com as crianas sentadas no cho, perguntamos-lhes quais personagens eles queriam representar. O elenco criado foi o seguinte: a bruxa se transformou na av paterna; o rei, no pai; uma personagem infantil de cabelos brancos, na av materna; Rapunzel, na filha; um boneco, no filho; uma personagem de cabelos pretos e amarrados, na me. O cotidiano da me de levar as crianas na creche, ir para o trabalho e busc-las no final da tarde aparece representado, bem como as ruindades da av paterna (bruxa) em relao a elas e s suas mes e as representaes acolhedoras da av materna. Os pais foram representados como bbados, a me que mandou o pai embora por causa da bebida, a me que resolveu ficar com a guarda dos filhos e a av que apanha as crianas na escola, em funo do trabalho da me.

uma cartilha sobre corpo e sade, distribuda pelo Conselho da Condio Feminina, cujos objetivos eram, por meio de uma relao dialgica, o conhecimento das prticas reprodutivas, da sexualidade e das relaes de gnero. Com o intento de conhecer as relaes de parentesco, vizinhana e compadrio, foram produzidas fichas de famlia, cuja leitura preliminar permitiu a caracterizao geral dessas famlias, tal como elas so e no a partir de modelos preexistentes. Alm da realizao das oficinas para a coleta dos desenhos, desenvolveram-se atividades recreativas com representaes de peas teatrais infantis pelas prprias crianas,5 distribuio do material, papel sulfite, lpis de cor, refrigerante, bolachas e brinquedos. Em seguida, foram feitas fichas contendo a leitura de cada desenho, feita pela respectiva criana. Nas fichas h as seguintes informaes: nome da criana, idade, etnia, nomes e papis das pessoas representadas nos desenhos, alm de informaes coligidas pelas entrevistas com os demais informantes e das observaes acerca do comportamento da criana durante a atividade. Os resultados auferidos a partir dessa tcnica de pesquisa foram extremamente ricos para a anlise das representaes infantis sobre a famlia e tambm para o entendimento de uma outra lgica familiar existente entre esses trabalhadores.

PRIMEIRAS IMPRESSES O cenrio analisado um quarteiro que faz limite com os canaviais de uma usina situada na regio. A cerca entremeada de rvores, sob as quais foram colocados bancos de madeira, que servem como pontos de encontro dos moradores e so, na verdade, espaos de sociabilidade e extenses das prprias casas. H um elevado nmero de crianas em cada unidade domstica e a presena de diversas pessoas cuidadoras. As mulheres trabalham na colheita da laranja, nos empregos domsticos, no corte da cana e em casa para o sustento dos fi108

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lhos. Algumas delas so acompanhadas no trabalho agrcola pelos filhos maiores de idade ou at mesmo pelos filhos menores. Dentre as 12 crianas que moram somente com sua me, apenas 2 recebem penso alimentcia do pai. Em apenas quatro das dez famlias nucleares, a renda do homem indispensvel para a reproduo material, em duas daquelas as mulheres tambm trabalham e, em uma outra, a renda do filho mais velho pesa mais que a do pai. Foi verificada a prtica de tomar por padrinho dos filhos os prprios vizinhos, pessoas prximas que podem dividir a responsabilidade pela criao; h uma relao de troca: os filhos so a ddiva, e o fato de oferec-los como afilhados redunda em retribuio material ou em forma de favores. A prtica da circulao de crianas, 6 com a qual cinco dessas famlias j se envolveram, baseia-se na mesma lgica. Toda a vizinhana se agrupa num crculo de ajuda mtua sustentado pelas mulheres e crianas. Outro ponto importante se reporta aos homens. A paternagem no assumida como valor, como dever ou compromisso. Ao lado da circulao de crianas, h a circulao de homens, de uma unidade domstica a outra. Quanto s mulheres sem os companheiros, elas se fixam nas casas de seus genitores ou nos fundos de seus quintais e contam com a ajuda de parentes e vizinhos. Esses aspectos so como molduras dos quadros familiares, cujos contedos refletem o estilo de vida, a sociabilidade entre vizinhos e parentes muitas vezes, permeada por conflitos , as relaes entre pais e filhos, homens e mulheres, enfim a vida tal como ela . A metfora do quadro emoldurado nos sugere a presena de personagens, cenas, paisagens. Por conseguinte, h a necessidade de um olhar acurado, capaz de perceber os grandes traos e tambm os pequenos detalhes. E mais ainda. Enxergar, por detrs dos cenrios, as ausncias e os silncios, enfim, os que no esto no quadro e cujas revelaes se constituem no intento deste texto. Nos desenhos das crianas raramente aparecem as casas. Essa ausncia sugere algumas reflexes sobre o espao geogrfico e109

6 Circulao de crianas, expresso utilizada por Fonseca (1995), ocorre quando a criana destinada a um lar substituto segundo as necessidades de reproduo da famlia.

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social onde elas vivem. As cidades-dormitrios dessa regio so cercadas pelos canaviais. Os limites do urbano coincidem com as plantaes de cana. As imagens captadas pela pesquisa retratam os dois mundos rural e urbano como espaos contguos e no separados. Os bairros habitados por trabalhadores rurais podem ser considerados como verdadeiras colnias das usinas na cidade. Esses espaos so entendidos enquanto espaos de sociabilidade, onde se acham presentes traos do mundo rural de antes e do mundo urbano, considerado moderno. O tradicional e o moderno se cruzam formando uma verdadeira simbiose. As imagens dos foges a lenha, das hortas, das ervas plantadas em vasos e reas bem-restritas existem lado a lado com os foges a gs, a televiso, a geladeira, os aparelhos de som, os celulares, enfim as mercadorias de consumo do mundo urbano. O espao da rua no se acha separado do espao da casa, tal como foi mostrado por Da Matta (1987). Andando pelas ruas, vem-se crianas brincando de casinha frente da casa, na calada. Sobretudo, nos finais de tarde de sbados e domingos, muito comum as mulheres se sentarem frente da casa para conversar. Alis, comum a construo de bancos de cimento ou madeira junto aos muros, o que demonstra que a rua um espao que pode ser considerado uma extenso da casa, portanto no se acha em oposio a ela. A pesar dos muros, os vizinhos tm livre acesso s casas. Essa realidade constatada com muita freqncia por ocasio das entrevistas. Dificilmente, uma entrevista realizada sem a presena de outras pessoas, quer sejam da famlia ou da vizinhana. Esse dado importante para a anlise das relaes entre pblico e privado. Na verdade, entre esses trabalhadores, essa separao no a mesma encontrada em outros universos sociais. As dificuldades financeiras conduzem reproduo das estratgias de sobrevivncia existentes no mundo rural de antes, assentadas nos valores e cdigos costumeiros. Faz parte do costume pedir emprestado no somente alimentos como tambm outras mercadorias que, porventura, estejam faltando na casa. Outro dado110

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constatado pela pesquisa a livre circulao de pessoas da vizinhana pela casa e o conhecimento que elas possuem de todo o espao. Assim, elas tm conhecimento onde esto guardados documentos, remdios, objetos que fazem parte da privacidade das pessoas da famlia. No obstante, as relaes entre vizinhos no se verificam de forma totalmente harmnica. Numa das casas vive uma famlia cujo contato com as demais pessoas do quarteiro bastante raro. Aqui se observa situao encontrada por Schuwartz (1990, p. 161), cuja pesquisa entre operrios no norte da Frana constatou o confinamento familiar e uma sociabilidade que limita os contatos com vizinhos, considerados indesejveis.7Acredita-se que esses achados forneam pistas importantes anlise de temas como privacidade, intimidade, relativos s classes mdias e altas e, freqentemente, estendidos a todas as camadas sociais. Esses dados fornecem a dimenso da complexidade da realidade social e exigem do pesquisador muitos cuidados no momento da anlise e interpretao das informaes coletadas. Os salrios baixos, o desemprego e a excluso social contribuem para o agravamento das condies de reproduo social dessas famlias. Esse fato gera a necessidade de encontrar estratgias de moradia. O aproveitamento do mesmo lote e a construo de vrias casas por parentes e consangneos os puxadinhos , alm da vinda de mulheres ou homens com seus respectivos cnjuges (ou no) e seus filhos para a casa dos pais, j idosos. Em regra, no so os idosos que vo morar com os filhos ou netos, porm o contrrio. Os avs conseguiram aps a Constituinte, que regularizou o direito aposentadoria dos trabalhadores rurais, construir suas casas, geralmente pequenas, sob o sistema da autoconstruo. Assim sendo, o nmero de pessoas de distintas geraes nas unidades domsticas bastante elevado. Essa situao, muitas vezes, contribui para o agravamento dos conflitos intrafamiliares, alm dos rearranjos do espao da casa, por meio da supresso de cmodos destinados sala, por exemplo, pois bastante comum a sala virar quarto e tambm a cozinha virar sala111

7 Em muitos momentos, as pessoas mantiveram silncio sobre essa espcie de cordo sanitrio entre si e esses vizinhos, cuja casa sempre estava com janelas e portas cerradas e os filhos jovens no eram vistos circulando pela rua. Ver, a respeito dessas consideraes, Romanelli (2003, p. 260-1).

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8 A assistncia previdenciria aos trabalhadores rurais s se implantou de fato a partir de 1992, com o regime de universalizao do atendimento e a redistribuio de um salrio mnimo para ambos os sexos, sob idade mnima de 55 anos para as mulheres e 60 anos para os homens.

e quarto ou ainda o sof se transformar na divisria entre sala e quarto. Acrescente-se a esse quadro a presena de netos, filhos de mes adolescentes, que passam a morar com os avs. Embora a aposentadoria seja um benefcio justo aos idosos rurais, a realidade encontrada reflete o processo de empobrecimento das distintas geraes dessas famlias, cujos proventos dos avs tm papel relevante na sua reproduo social.8 No tocante aos estudos de memria, a presena desse grande nmero de pessoas na casa, alm das crianas, impe, muitas vezes, dificuldades pesquisa, pois o velho nesse ambiente no possui o necessrio tempo de contemplao para o trabalho da reconstruo das lembranas. Em geral, o tempo presente, caracterizado pelas inmeras dificuldades dos membros adultos e jovens, acaba por influir negativamente na sade fsica, mental e psquica dos velhos. Para esses velhos, a matria-prima das lembranas, suas prprias experincias, espoliada. O que o pesquisador consegue registrar so meros fragmentos do passado atormentado pelo presente de seus descendentes e deles prprios.

A FAMLIA TAL COMO ELA De antemo, nosso objetivo no adentrar o debate sobre os conceitos de famlia, a partir dos distintos ramos do conhecimento, como a sociologia, antropologia, psicologia, histria social e demografia,9 nem tampouco analisar os desenhos sob a tica da psicanlise, como j foi dito acima. necessrio estabelecer a distino entre as noes de famlia e unidades domsticas. Famlia diz respeito ao parentesco, ideologia e coabitao; unidade domstica diz respeito coabitao e cooperao econmica imediata para esse grupo (Scott, 1990, p. 41). Para fins desta anlise, tanto uma noo quanto outra cabem dentro dos propsitos analticos. Partimos do princpio que as crianas tm muito a dizer e, por isso, no podem ser descartadas do processo do conhecimento; por outro lado, no as consideramos como sujeitos abstratos, porm112

9 Existe uma vasta produo crtica sobre esse tema. Ver, dentre outros, Arantes et al. (1993), Kaloustian (2002), Revista Brasileira de Histria, n. 17.

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inseridos em grupos sociais especficos e pertencentes s famlias de trabalhadores rurais que vivem nas cidades dessa regio num momento de excluso, desemprego e precarizao do trabalho. A questo norteadora deste artigo a seguinte: Como esse processo social experienciado pelas crianas no interior do grupo primrio a famlia ao qual pertencem? A memria e a histria desses trabalhadores so fundamentais compreenso deles enquanto adultos e tambm de suas crianas enquanto projees de suas vidas. Esse fato importante para no considerar essas crianas to-somente como pertencentes s camadas populares ou de baixa renda ou ainda classe dos trabalhadores. Dessa sorte, as famlias so vistas enquanto produtoras e reprodutoras da vida biolgica e social, em que valores, smbolos e representaes sociais constituem o elo entre os membros que as compem. No corroboramos com as denominaes de famlias quebradas, desestruturadas, incompletas, adjetivos que pressupem a existncia de um modelo comparativo. Portanto, afastamos da anlise essas idias preconcebidas a partir de tipologias, cujos vieses ideolgicos constituem o partis pris de modelos existentes na sociedade como um todo (Romanelli, 2003; Sarti, 1996). As famlias pesquisadas apresentam os seguintes perfis: 1) famlias relativamente estveis com a presena do pai, da me e dos filhos; 2) famlias com a presena da me e dos filhos advindos de relaes sucessivas com vrios companheiros; famlias com a presena de parentes consangneos ou no. O modelo de famlia nuclear, caracterstico das classes mdias e altas, no existe, portanto, na totalidade dessa realidade social. O modelo de famlia extensa tambm no mais amplamente praticado desde o fim do colonato, mas ainda deixa vestgios da prtica e da moral que valorizam o grande nmero de filhos e a co-residncia do casal junto a eles. Mas o fato que progressivamente cresce entre as novas geraes o da famlia no-nuclear com destaque para o vnculo mesfilhos. Elas ficam com a tutela dos filhos, porm seus proventos so insuficientes para a garantia da sobrevivncia deles. O modelo do patriarcado10 vigente 113

10 Segundo Saffioti, as razes do emprego do nome patriarcado so: 1) no se trata de uma relao privada, mas civil; 2) d direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrio; 3) configura um tipo hierrquico de relao, que invade todos os espaos da sociedade; 4) tem uma base material; 5) corporifica-se; 6) representa uma estrutura de poder baseada na ideologia e na violncia (2004, p. 57-8).

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articulado ao de provedor defeituoso, criado pelas atuais condies econmicas produz a figura do pai que foi embora. A famlia produz um conjunto de prticas culturais (re)significadas por meio da criao de laos de reciprocidade, como o caso do apadrinhamento e da circulao de crianas. A base dessas prticas o estabelecimento de um crculo de ajuda mtua que envolve, principalmente, mulheres e crianas da vizinhana. Assim sendo, os arranjos matrifocais dominam a organizao dessas famlias. Quanto matrifocalidade, adotamos a definio dada por Smith (1973) e utilizada por Scott (1990), cujas pesquisas foram realizadas com famlias de mulheres pobres da Guiana Inglesa e da periferia de Recife, respectivamente.O termo matrifocalidade identifica uma complexa teia de relaes montadas a partir do grupo domstico onde, mesmo na presena do homem na casa, favorecido o lado feminino do grupo. Isso se traduz em: relaes me-filho mais solidrias que relaes pai-filho, escolha de residncia, identificao de parentes conhecidos, trocas de favores e bens, visitas etc., todos mais fortes pelo lado feminino; e tambm na provvel existncia de manifestaes culturais e religiosas que destacam o papel feminino (p. 38).

No que tange chefia feminina, vrios autores ressaltam que chefia no se confunde com focalidade. preciso levar em conta que h a coexistncia de normas patriarcais e prticas matrifocais. No caso das trabalhadoras rurais, essa situao muito presente. As mulheres assumem a maternagem, enquanto os homens no assumem a paternagem. A constatao desse fato pode ser vista na circulao dos homens, j que, quando abandonam ou quando so expulsos da casa pelas mulheres, eles contraem novas unies e passam a viver com outras mulheres. A dominao masculina se faz presente nesse momento por meio da gerao de novos filhos, pois o poder do homem se realiza por meio da procriao. Vrios depoimentos de mulheres revelam que a convivncia114

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com os parceiros passa pela aceitao de ficarem grvidas. Assim sendo, a pesquisa constatou a presena de muitos filhos da mesma mulher, porm de distintos pais. O caso de uma trabalhadora rural de Rinco paradigmtico: com quatro filhos de pais diferentes, ela sustentava todos sem o auxlio destes, justificando a no-exigncia do pagamento de penso como uma forma de evitar a presena dos homens em sua casa e tambm do controle exercido por eles sobre sua vida. Seu salrio insuficiente para a sobrevivncia de todas as crianas, por isso recebe o auxlio de parentes e vizinhos, alm de deixar as crianas na creche municipal durante todo o dia. Vale a pena ainda destacar que a solidariedade, na maioria das vezes, advm de outras mulheres. Quanto figura do homem, nos desenhos das crianas, ora ela aparece como o pai que foi embora, ora diminuda ou do mesmo tamanho que a dos demais membros. Esses dois ltimos aspectos tambm ocorrem em relao s mes. Levando-se em conta uma anlise que se ope s dicotomias, evita-se o apego vitimizao das mulheres e discriminao dos homens. Objetiva-se compreenso do gnero enquanto categoria de anlise e categoria histrica, portanto, anlise das relaes de gnero entre homens e mulheres pobres, na sua grande maioria nobranca e constituda de trabalhadores rurais, provenientes de outras regies do pas. Nesse sentido, esses homens e essas mulheres so portadores de valores e ideologia de gnero, ancorados nas relaes patriarcais. Duas questes podem ser levantadas: a figura masculina do provedor. Em virtude das dificuldades econmicas, do desemprego, dos salrios baixos, os homens no conseguem prover suas famlias. A participao no oramento familiar de proventos advindos da mulher ou at mesmo dos filhos retira-lhes parcela de poder que, em outra condio social, pelo menos teoricamente, eles possuam (Stolcke, 1986, 1993; Silva, 1997, 1999). Esse fato conduz a um conjunto de conflitos nas relaes intrafamiliares, quase sempre permeados pela violncia domstica (de gnero e tambm geracional). Estas so as condies para a criao da figura do pai que foi embora.115

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Essa mesma situao foi tambm constatada por Neves em sua pesquisa com famlias no Morro do Cavalo em Niteri/RJ, ao revelar que a unidade matrifocal se apresenta como um reordenamento de papis do casal em virtude da impossibilidade de o marido conseguir reproduzir a famlia nos nveis culturais definidos pelo grupo (1985, p. 200 e segs.). A figura do pai que foi embora se situa no contexto do rearranjo das relaes de gnero dessas famlias. O homem chefe de famlia, o provedor da poca do colono j no mais existe. Por conseguinte, os padres de masculinidade e virilidade foram profundamente afetados, de tal forma que a identidade masculina sofreu profundas fraturas. A virilidade um atributo sexual, construda socialmente.A virilidade o atributo que confere identidade sexual masculina a capacidade de expresso do poder (associada ao exerccio da fora, da agressividade, da violncia e da dominao sobre outrem), seja contra os rivais sexuais, seja contra as pessoas hostis ao sujeito ou aos que lhe esto chegados e a quem, por sua virilidade, ele deve garantir proteo e segurana. O parceiro amoroso de um sujeito viril deve-lhe reconhecimento, gratido, submisso e respeito, em troca de servios (Dejours, 1999, p. 84, grifos nossos).

No entanto, a virilidade possui uma outra face, na medida em que se transforma num verdadeiro fardo.O privilgio masculino tambm uma cilada e encontra sua contrapartida na tenso e contenso permanentes [...]. A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas tambm como aptido ao combate e ao exerccio da violncia (sobretudo em caso de vingana), , acima de tudo, uma carga (Bourdieu, 1999, p. 64).

A nica alternativa para a incapacidade de prover a famlia e manter os padres de virilidade, assentados na submisso e res116

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peito, a sada da casa. Essa partida d incio a um verdadeiro processo de circulao de homens, pois as relaes so, na sua maioria, muito efmeras. Para no assumirem publicamente seu fracasso, eles passam a circular entre outros lares. Repete-se aqui a mesma situao encontrada por Scott (1990) as unies visitantes e tambm por Fonseca (2000) e Neves (1985). A circulao de crianas outra manifestao desse quadro social, que est ligado prevalncia do sistema de apadrinhamento, caracterstico da rea rural. Os padrinhos so responsveis pela educao e socializao dos afilhados. O compadrio pautado por relaes de solidariedade e coeso dos grupos sociais de vizinhana e parentesco. As crianas circulam quando as condies de sobrevivncia pem em risco a vida delas. As relaes de poder so porosas. Dessa sorte a dominao masculina, ainda que fragmentada, no desapareceu. A matrifocalidade no representa a dominao feminina em relao aos homens. No houve o processo de inverso de relaes de dominao e sim o processo de empoderamento das mulheres, presente nas relaes afetivas com os filhos e tambm nas decises econmicas e financeiras no interior das unidades domsticas. As relaes patriarcais no devem ser explicadas to-somente a partir dos nveis particulares e de parentesco. A frase, ruim com ele, pior sem ele, pronunciada por muitas mulheres que suportam os maus-tratos e a violncia dos maridos, revela a existncia dos padres convencionais e universais que estruturam a sociedade. Esse fato pode explicar as unies efmeras e a busca constante de novos companheiros por muitas mulheres, aps o trmino de uma relao conjugal. Essas reflexes nos levam a acreditar que as noes de matrifocalidade, chefias femininas, virilidade, precisam ser entendidas vis--vis as relaes patriarcais existentes no conjunto da sociedade e nas suas manifestaes particulares. No caso estudado, mesmo que as mulheres no arquem sozinhas com a reproduo social dos filhos, em torno delas, enquanto mes, avs, tias, madrinhas, que os novos arranjos so tecidos, na grande maioria dos casos. Quanto ao lugar das crianas117

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nesse contexto, h muitos desenhos que retratam suas ausncias ou at a (des)identificao. Numa realidade em que a reproduo social enquanto reproduo biolgica, material e social marcada pela complexidade, a criana torna-se a materializao do paradoxo, ou, sob outro aspecto, a materializao da vontade divina, que se faz alheia a uma vontade deliberada. De todo modo ela fruto e responsabilidade, em ltima instncia, daquela que a gerou: a me. Fonseca (2000) nos sugere de que forma algumas mulheres percebem essa responsabilidade:[...] nos grupos populares atuais, certas mes concordam em ter seus filhos criados por outros porque, para elas, no esta a questo mais importante [...]. Sua responsabilidade garantir bons cuidados criana, mas outros podem propiciar tais cuidados to bem quanto ela (p. 40).

Definitivamente essa afirmao no apareceu no depoimento de nenhuma das mulheres entre as quais questionamos a possibilidade de darem seus filhos a outros em funo de impossibilidades materiais de cuidarem elas prprias de seus filhos. A maternidade enquanto pilar da construo da identidade da mulher faz com que recaia sobre ela o peso de uma responsabilidade que assume um sentido moral. E nem sempre a transferncia dessa responsabilidade aceita pela comunidade moral. Entretanto, se o fato sugerido por essa autora no assumido na linguagem ou, quando , no o para toda a comunidade , a observao etnogrfica e os dilogos com os vizinhos revelam-nos casos recorrentes em que a mulher pensou, durante toda a gravidez, em dar seu filho para outra famlia e no o fez em funo do peso da moral que envolve a maternidade ou mesmo da incorporao da moral da maternidade, em outros casos em que ela realmente o fez. Consolidada ou no a circulao de crianas, o que se ressalta a presena do sentimento de recusa que o nascimento de uma118

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criana ou de mais uma criana faz surgir. Se isso pde ser percebido atravs do trabalho etnogrfico, foi, sobremaneira, no desenho das crianas e na reao de algumas delas ao perceber nosso interesse sobre aquilo que elas podem representar que esse fato se tornou inegvel. Em seus desenhos vimos auto-representaes diminutas, desconexas, fragmentadas, algumas sem boca, enquanto outros desenhos simplesmente no continham a representao de seu criador. Em suas reaes durante a atividade, percebemos perplexidade ao redor da causa de nosso interesse sobre elas e uma subseqente dificuldade em deixar que fossemos embora, como se houvessem descoberto uma capacidade intrnseca, prazerosa e antes oculta: a capacidade de atribuir significado. A maioria das crianas tem pouco tempo de contato com as mes ou pais. Muitas delas ficam o dia todo nas creches ou escolas, de onde so retiradas pelas mes ou avs no final da tarde. Por outro lado, as mes, aps o trabalho fora de casa, acumulam a dupla jornada de trabalho, pois, ao chegarem em casa, necessitam desempenhar as tarefas domsticas lavar roupa, cozinhar e limpar , no dispondo de tempo para as relaes afetivas com as crianas. Essas mulheres trabalham em geral durante seis dias por semana, dispondo de apenas um dia de folga, utilizado para a limpeza da casa e outros afazeres que ficaram pendentes durante a semana. Tal situao se agrava se elas no obtiverem o apoio de outras mulheres filhas, mes, irms etc. para o desempenho de todas essas atividades. Portanto, o ato de cuidar da criana pouco praticado pelas mes em virtude da imposio das relaes de trabalho pautadas por salrios baixos, superexplorao e grande oferta de trabalhadores que acaba contribuindo para as ameaas de demisso em caso de faltas, cujas conseqncias agravariam a situao de penria da famlia como um todo. Por conseguinte, o afeto, implcito no ato de cuidar, relegado, nesses casos, a outras mulheres, parentes ou professoras das creches e escolas, as quais nem sempre desempenham esse papel. A carncia afetiva presente em algumas crianas11 foi uma das observaes captada durante a realizao das oficinas para a119

11 Esse dado no se constitui em apangio dessas crianas, pois algo constatado em outras famlias de outras classes sociais. Ademais, o ato de cuidar, segundo os atributos sociais engendrados (de gnero), cabe, em geral, s mulheres, e do qual os homens se declinam. A paternagem, segundo se observou, no ocorre nessas famlias. Outrossim, a me uma figura que aparece na totalidade dos desenhos, algo que no ocorre com todos os pais.

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obteno dos desenhos, algo que tambm est registrado nas leituras destes pelas crianas.

DESENHANDO A FAMLIA TAL COMO ELA A anlise dos desenhos infantis exigiu a incorporao de outras reflexes, a fim de se compreender a ontologia dos socci, entendidos enquanto classe, gnero, raa/etnia e gerao. Dessa sorte, a teoria da alienao de Marx (1978) e as reflexes de Elias (1990), acrescidas quelas de Silveira (1989), fornecero os elementos necessrios compreenso da realidade estudada vis--vis o ser social. Segundo Marx, a sociedade no uma abstrao diante do indivduo. O indivduo o ser social.A exteriorizao da sua vida [...] pois uma exteriorizao e confirmao da vida social. A vida individual e a vida genrica do homem no so distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existncia da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genrica [...]. Como conscincia genrica o homem confirma sua vida social real e no faz mais que repetir no pensar seu modo de existncia efetivo, assim como, inversamente, o ser genrico se confirma na conscincia genrica e para si, na sua generalidade, enquanto ser pensante (Marx, 1978, p. 10).

Os sentidos audio, tato, olfato, viso, gosto , assim como a subjetividade, no so postos naturalmente para o homem. Por outro lado, a natureza o corpo inorgnico do homem, segundo Marx. Ao retomar as reflexes marxianas sobre a alienao e fetichismo, Silveira (1989) mostra que o processo de constituio da individualidade um processo histrico que tem incio com a cumulao originria, quando se observa a separao entre o homem e a natureza. Portanto h uma relao entre o desenvolvimento da histria e o desenvolvimento da individualidade.120

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De um modo geral, a acumulao originria implica na separao do homem (do trabalhador) de seu corpo inorgnico a natureza; as perdas do objeto, a alienao, a desobjetivao: a capacidade de trabalho como pura subjetivao sem objeto (p. 58-9).

Essa separao corresponde ao surgimento do processo de isolamento social do indivduo, na medida em que os vnculos sociais prvios se rompem, tanto os vnculos com a natureza como os de dependncia social caractersticos das formas de produo que precederam constituio do capitalismo. nesse sentido que o indivduo surge enquanto fora de trabalho, dimenso fundamental de sua individualidade. No que tange s reflexes sobre o fetichismo, esse autor revela que, para Marx, a submisso ao domnio da mercadoria no apenas externamente, mas atinge as prticas dos indivduos e tambm sua estruturao psquica. Para ele, os efeitos desse moldamento, das determinaes da forma mercadoria, na carne e na psique dos indivduos resultam numa dialtica conflitiva entre uma dimenso internalizada do sujeitamento e outra advinda da subverso desse assujeitamento. Assujeitamento e amoldamento no so vistos linearmente, porm enquanto processos conflitivos entre a dominao das relaes capitalistas e as determinaes, advindas dos prprios sujeitos em subverter tais determinaes que foram recalcadas, reprimidas (p. 75). As mudanas das relaes entre as estruturas das relaes humanas e a correspondente mudana na estrutura do psiquismo, a partir de um outro ponto de observao, que no a dialtica marxiana, foram tambm objeto da anlise de Elias (1990), no volume 2 de O processo civilizatrio. Para esse autor, h um constante aprofundamento da imposio social das autocoaes, responsveis pelo chamado processo civilizatrio. Para ele, cada vez maior o nmero de pessoas que tm de sintonizar o comportamento pelo das outras. Esse ajustamento consciente e, ao mes121

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12 Para Marx, a violncia faz parte do processo de acumulao originria, ou seja, no momento do nascimento do capitalismo. Ver, a respeito, o captulo sobre a Acumulao primitiva, no livro I de O capital.

mo tempo, se consolida no indivduo um sistema de autocontrole automtico e cego, ou seja, inconsciente (p. 189-90). Esses dois paradigmas oferecem elementos importantes anlise da formao da psicognese e sua relao com a sociognese. Elias tambm associa a violncia ao surgimento desse processo de moldamento, que, no decorrer do tempo, se transforma em hbito.12Da violncia armazenada nos bastidores do quotidiano provm uma presso constante e regular que se exerce sobre a vida do indivduo, o qual mal a sente, porque j se habituou a ela, porque o comportamento e a plasmao das pulses foram, desde a infncia, ajustados a essa organizao da sociedade [...]. A verdadeira coao aquela que o indivduo exerce sobre si prprio, com base no conhecimento que tem das conseqncias das suas aes sobre toda uma srie de redes de aes, ou com base em atitudes anlogas que observou nos adultos que modelaram seu aparelhamento psquico, quando criana (p. 194).

Entretanto, o amoldamento do comportamento no resulta apenas em equilbrio funcional, podendo gerar tenses, desequilbrios constantes. Tais perturbaes podem transformar-se, por sua vez, em fantasias, devaneios e sonhos. Para Elias, parte das tenses e paixes que outrora eram diretamente resolvidas na luta corpo a corpo agora dominada dentro de si prprio. Essas reflexes no coincidem com a viso psicanaltica, a qual tende, muitas vezes, a extrair da totalidade da estrutura psquica um inconsciente, um id concebido como a-histrico, abstrado das condies reais de existncia (p. 229).O que determinante numa pessoa [...] no s um id nem s um ego ou um superego, mas sempre e fundamentalmente a relao entre esses estratos funcionais de autocomando psquico, os quais em parte se degladiam e em parte coo122

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peram uns com os outros. Mas essas relaes dentro de cada pessoa [...] transformam-se, no decurso do processo civilizacional, de acordo com a especfica transformao das relaes entres as pessoas, isto , das relaes sociais. Poderamos dizer que, no decurso deste processo, a conscincia se torna menos permevel s pulses e as pulses menos permeveis conscincia (p. 230).

A ideologia, ou a superestrutura, no capaz de explicar todas as mudanas. Parafraseando Elias, toda investigao que s toma em considerao a conscincia dos homens, a sua razo ou as suas idias, e no leva em conta a estrutura das pulses, as paixes humanas, limitada, pois muitos aspectos compreenso dos homens no sero vistos (p. 229). Portanto, as relaes entre a infra-estrutura e a superestrutura no so lineares. As mudanas que ocorrem nesta ltima no so meros reflexos da primeira. A ao dos sujeitos historicamente determinados define a complexidade dessas relaes e, pour cause, as mudanas operadas caracterizam as inmeras mediaes existentes e a produo da histria enquanto processo. Acreditamos que, nos limites deste texto, essas idias forneam os subsdios necessrios anlise das representaes das crianas, por meio de desenhos, sobre as respectivas famlias de trabalhadores rurais, sob a tica do ser social. As transformaes econmicas e a vinda para as cidades foram responsveis por grandes mudanas na organizao familiar, cujos reflexos se estenderam ao moldamento dos comportamentos e tambm estruturao psquica de seus membros. Esse processo, caracterizado por aceitaorecusa manifesto no alcoolismo dos homens, na no-acepo da paternagem, na circulao masculina entre os diferentes lares, na matrifocalidade , atinge tambm as pulses psquicas de adultos e crianas. Por conseguinte, a abordagem psquico-pedaggica que visa to-somente aos aspectos do desenvolvimento cognitivo da criana, descontextualizado de seu ambiente social, no faz parte de123

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nosso escopo terico, assim como a abordagem universalizante da teoria piagetiana. Essa teoria, segundo alguns crticos, teria transformado o processo de construo das estruturas cognitivas, como ele ocorre no Ocidente, num paradigma para o desenvolvimento psquico de todas as crianas (Freitag, 1984, p. 75). Privilegiamos as diferenas e no a comparao a partir da idade. Contudo, tomamos cuidado para no cair nas armadilhas do relativismo cultural, segundo o qual cada cultura possui seus esquemas cognitivos especficos, posio esta que pode conduzir ao etnocentrismo. As diferenas culturais e socioeconmicas so as que exercem maior importncia no processo cognitivo da criana. Segundo Freitag (1984, p. 77), na pesquisa intercultural no h meno produo material de bens, estrutura de poder, diviso do trabalho, estrutura social de classes, estrutura familiar, seus diferentes tipos e diferentes processos de socializao. Vale a pena ainda lembrar que h inmeras diferenas culturais em uma mesma sociedade. So essas diferenas de classe social, de gnero e raa/etnia que explicam os processos da psicognese e no somente as manifestaes culturais. A combinao das diversas tcnicas de pesquisa descritas acima foi um instrumento importante anlise dos desenhos no contexto da realidade social das crianas vis--vis a leitura dos contedos manifesto e latente (Leite, 1993). O contedo manifesto ou expresso se baseia na leitura do desenho feito pela criana. O contedo latente exige o conhecimento do contexto social no qual a criana se acha inserida. A realidade social possui muitas facetas. Algumas so visveis, outras so invisveis, inaudveis, fragmentadas, silenciadas. No conjunto, os desenhos apontam para a produo de um processo de conservaodissoluo, em que alguns traos dos modelos anteriores permaneceram, enquanto outros desapareceram. A realidade estudada reveladora da presena do patriarcado, como organizao social predominante, muito embora o homem no seja, na maioria dos casos, o chefe da famlia, como j foi revelado acima. As relaes124

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patriarcais se manifestam por meio das figuras do pai que foi embora e do provedor defeituoso e no mais da figura do pai patro , as quais, last but not least, definem as relaes patriarcais como padro existente. Nosso esforo doravante ser o de interpretar as representaes das famlias que aparecem nos desenhos e no procedermos anlise clnica por meio de testes dos desenhos (Cox, 2000). Para o desempenho dessa tarefa, optamos pela incluso de apenas duas referncias especficas sobre desenhos infantis.13 A relao entre sociognese e psicognese ser aprofundada por meio da incorporao das reflexes de Di Leo (1991) e Derdyk (1989), profissionais das reas das disciplinas comportamentais, que se debruaram sobre a interpretao dos desenhos das crianas, privilegiando seu universo social. Alm dessas referncias, sero acrescentadas aquelas cuja preocupao sociolgica se voltou para a anlise dos relatos das crianas, levando-se em conta a importncia do universo infantil para a compreenso da realidade social, a partir das inmeras mediaes e significados existentes entre a realidade e a imagem que se tem dela. Di Leo (1991) realizou uma anlise clnica de 91 desenhos de crianas, muitas das quais com problemas psquicos. Suas contribuies so importantes na medida em que, alm do desenho, so incorporados os depoimentos das crianas. Assim, sua interpretao leva em conta a insero da criana em seu universo social e familiar. No captulo referente aos desenhos da famlia, o autor chama a ateno para os seguintes itens, os quais fornecero pistas mais seguras para o caso analisado na presente pesquisa: A figura do pai ausente, agressivo, presente no desenho, mas ausente nas relaes familiares. Muitos desenhos de crianas de trabalhadores rurais refletem a ausncia do pai o pai que foi embora , ou, ainda, este desenhado do mesmo tamanho dos demais membros da famlia. Os botes na roupa refletem o poder e a rigidez masculinos. necessrio lembrar que os desenhos coligidos abarcam crianas de 3125

13 Segundo os propsitos deste artigo, a bibliografia utilizada para a interpretao dos desenhos, aludida mais adiante, no contempla a anlise da psicologia do desenvolvimento infantil, sobretudo aquelas voltadas para os testes clnicos que avaliam a inteligncia e sim aquelas que privilegiam o desenho como representao social, como manifestao do universo material e simblico das crianas.

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a 12 anos. Acima de 11 anos, a criana entra na fase da adolescncia, portanto, necessrio levar esse aspecto em considerao. A figura desenhada geometricamente, segundo esse autor, revela a ausncia de emoo. Trata-se de uma atitude que racionalmente controlada, sem emoo. A ausncia de braos revela a incapacidade de ao; as mos atrs do corpo sugerem falta de confiana. Os tamanhos pequenos sugerem auto-estima baixa; pessoas desenhadas em espaos cercados, como se fossem caixotes, revelam ausncia de comunicao entre os membros da famlia. A presena de rvores as trs principais partes da rvore, supostamente, se referem aos trs maiores campos da personalidade: o tronco a vida emocional; as razes a vida instintiva; a copa a vida intelectual e social e representa o futuro. Tronco com buracos sugere a presena de traumas. O tronco amplo pode sugerir reao emocional m condio existente. Desenhos de dentes podem sugerir agresso. No entanto, o autor adverte para as armadilhas na interpretao dos desenhos infantis. necessrio sempre verificar os elementos universais de interpretao e tambm a particularidade de cada criana. Outra armadilha mencionada se reporta ao desmembramento dos corpos. primeira vista sugere desagregao, porm necessrio conhecer a realidade social da criana para chegar a essa afirmao. Em geral, essa separao dos membros ocorre nas crianas pequenas. Num dos desenhos coligidos pela nossa pesquisa, h o caso de um menino (J), em que se v o desmembramento. Ele prprio aparece sem boca, ouvidos, nariz e olhos. Trata-se de uma criana que estava vivendo com seus padrinhos, em razo de problemas com seus pais. Nesse caso, o desmembramento fiel realidade vigente. O autor adverte tambm para os cuidados em relao interpretao dos smbolos:Um smbolo pode ser universal, mas o seu significado individual. Os desenhos devem trazer novos insights; devem con-

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firmar o que sabido. Tomados fora do contexto, eles podem enganar (p. 195).

A casa representa aconchego, afeto, segurana. Os desenhos so representaes e no reprodues. A casa simboliza o lugar onde so buscados afeto e segurana, necessidades bsicas que encontram prenchimento na vida familiar. Animais so seguidamente adicionados como parte da famlia. rvores, flores e o sol aparecem como expresso da crescente necessidade por luz, natureza e um mundo alm dos confins do lar (p. 52). Ausncia da casa muito recorrente nos desenhos coligidos. Derdyk (1989) traz importantes contribuies sobre o desenho enquanto representao social, das quais foram selecionados os seguintes pontos: A criana enquanto desenha, canta, conta histria, teatraliza, imagina ou at silencia. O ato de desenhar impulsiona outras manifestaes, que acontecem juntas, numa unidade indissolvel, possibilitando uma grande caminhada pelo quintal do imaginrio (p. 19). O desenho manifesta o desejo da representao, mas tambm o desenho, antes de mais nada, medo, opresso, alegria, curiosidade, afirmao, negao. Ao desenhar, a criana passa por um intenso processo vivencial e existencial (p. 51). O desenho uma atividade do imaginrio. A criana vive inserida na paisagem cultural do adulto. Seria necessria uma reflexo profunda sobre como essa paisagem interage e se relaciona com o mundo da criana, eternamente em transio. (p. 53). O contedo manifesto so as imagens presentes no papel e o latente trata das mensagens subliminares, escondidas ali no papel (p. 54). O mundo para as crianas est em todos os lugares simultaneamente.

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O espao emocional traz para bem perto ou leva para bem longe os objetos dotados de afeto, independente de sua real posio fsica. O espao emocional dita as hierarquias afetivas atravs da dimenso das formas. Por exemplo, o clssico desenho de famlia, em que um dos membros muito maior ou muito menor quando comparado aos demais. a expresso do contedo simblico da criana manifestado pela maneira de representar, figurar e nos apresentar os membros de sua famlia (p. 78-9, grifos nossos).

O desenho uma verdadeira fbrica de imagens.(O desenho), fbrica de imagens, conjuga elementos oriundos do domnio da observao sensvel do real e da capacidade de imaginar e projetar, vontade de significar. O desenho configura um campo minado de possibilidades, confrontando o real, o percebido e o imaginrio. A observao, a memria e a imaginao so personagens que flagram esta zona de incerteza: o territrio entre o visvel e o invisvel (Francastell, 1975, p. 25, apud Derdyk, p. 115).

importante salientar, segundo a viso dessa autora, que o desenho lida com os elementos do espao e tambm dos tempos passado, presente e futuro. H uma simbiose entre os tempos, entre a observao (presente), a memria (passado) e a imaginao (futuro). No ato de desenhar, esto vrias manifestaes mentais, como imaginar, lembrar, sonhar, observar, associar, relacionar, simbolizar, reapresentar (p. 121). Na coletnea recentemente publicada, Faria, Demartini, Prado (2002), os autores chamam a ateno para a ausncia das crianas nas investigaes dos cientistas sociais, talvez com exceo da antropologia, e se propem ao enfrentamento dos inmeros desafios que essa tarefa apresenta, em virtude de que as vozes das crianas no podem ser interpretadas da mesma maneira que a128

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dos adultos, dificuldades estas acrescidas ao fato de que o material coletado feito pelos adultos e interpretado por eles. A fim de facilitar a leitura dos desenhos, que se encontram no final deste artigo, optamos por analis-los em conjuntos, por meio de uma amostra, seguindo a sugesto de Gusmo (1996, p. 181 e segs.), ressaltando que os desenhos so verdadeiras fbricas de imagens, nas quais se misturam as representaes do momento presente, passado e das expectativas futuras. Os desenhos revelam e escondem. Assim sendo, o conhecimento da realidade concreta de seus produtores fundamental para a interpretao analtica. As leituras dos desenhos feitas pelas crianas, as anlises do contedo manifesto sero os pilares sobre os quais se assentar a anlise do contedo latente, cujos contornos tericos foram definidos acima. Conjunto 1 N de desenhos: 6 Caractersticas: famlias com a presena do pai e da me. Em alguns desenhos aparece a casa, em outros, no. Em geral, o pai no possui um destaque nos desenhos, ao contrrio da me. Os membros da famlia no necessariamente vivem na mesma casa. Esse fato demonstra que a percepo de famlia no se restringe casa. A leitura do Desenho 1 feita pela criana (menina de 9 anos) revela que a me colhedora de laranja tem um lugar destacado, ao contrrio do pai cortador de cana , que representado do mesmo tamanho dos demais membros. H tambm a presena de um irmo que mora na casa da vizinha, outra que vive na Cutrale (fazenda), um irmo que mora num quartinho dos fundos e um irmo j falecido, aos 21 anos de idade. Nesse desenho, no h a casa, embora a unio das nuvens pelo sol represente a unio dos pais. As pessoas aparecem prximas e sorridentes. O pai trabalha na usina e a me colhedora de laranja. Segundo depoimentos de vizinhos, a autora do desenho ficou129

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escondida at a idade de 4 anos, cujos motivos no ficaram esclarecidos, havendo muito silncio a respeito. Durante a oficina, a criana se mostrou muito tmida. A presena de duas irms que circulam, portanto, que se acham ausentes, e do irmo morto aos 21 anos, desenhado no final aps o que vive no quartinho, so traos reveladores das ausncias, do contedo latente, dos aspectos subliminares. Segundo as reflexes anteriores, pode-se afirmar que, na realidade, se trata de uma famlia cujos membros esto divididos, separados, porm unidos na representao, no desejo da criana. No Desenho 2 feita por uma menina de 8 anos de idade, as pessoas aparecem no interior da casa. O tamanho da autora do desenho maior do que os dos demais, inclusive dos pais. As figuras so retilneas e aparecem desnudas, embora de mos dadas. O pai trabalha no corte da cana e a me na colheita da laranja. As presenas da chuva, das nuvens e do sol, cujos olhos esto apertados entre as nuvens, parecem sugerir a necessidade de luz sobre a casa. As hierarquias afetivas, traduzidas nas figuras pequenas dos pais, so indicativas de outros valores, que no aqueles nos quais o pai representado de tamanho maior, seguido do da me. Nesse caso, a me desenhada em primeiro lugar, e o tamanho da figura do pai ligeiramente menor do que a dela. O Desenho 3 de um menino de 10 anos de idade. O pai motorista de caminho e transporta suco de laranja; a me trabalha na usina. Moram na casa seis pessoas. As figuras so quase do mesmo tamanho. A do pai aparece em primeiro lugar. Os botes da roupa revelam o poder masculino e a rigidez, segundo as reflexes acima. Alguns membros da famlia esto ausentes. Somente o pai tem as mos. A figura da me singela. A ausncia de braos e mos pode revelar falta de autonomia e dificuldades de ao e falta de apoio familiar. O nome do av, morto h trs meses, mencionado. Por outro lado, foi acrescentada a figura do amigo acima na folha. A casa parece ser grande, mas as pessoas no esto no seu interior. O Desenho 4 de uma menina de 7 anos de idade, cujos pais trabalham na colheita da laranja. Aqui tambm a ausncia de bra130

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os evidenciada. O que chama a ateno a figura da me rabiscada, alm de botes nas roupas da autora do desenho e de uma irm que fica na creche. A leitura feita pela criana revela tambm que a reproduo familiar em parte assumida pelos organismos municipais, por meio de creches e projetos para as crianas maiores. Em se tratando de uma atividade temporria, a colheita da laranja emprega as pessoas durante apenas seis meses ao ano. Assim sendo, a reproduo fsica e social dessas famlias marcada pela instabilidade financeira e fica na dependncia das creches municipais. A ausncia da casa na maioria dos desenhos sugere que esse espao no possui para essas crianas o mesmo valor simblico de crianas de outras classes sociais. A presena da casa vazia com as pessoas do lado de fora um dado que pode ser assim interpretado: em geral, as casas so pequenas tendo em vista o grande nmero de pessoas que nelas vivem. Da decorrem as consideraes acima sobre o espao da rua ser tomado como uma espcie de extenso da casa. Ademais, o grande nmero de pessoas impede a individualizao dos espaos da casa, tal como foi mostrado. Desse modo, os quadros sociais representados pela casa possuem outros significados no imaginrio dessas crianas, no necessariamente relacionados famlia, sem contar que elas passam a metade do tempo da vida delas nas creches. Para fins de comparao, optamos por agregar a esse conjunto o Desenho 5 de uma menina de 6 anos do Assentamento Horto Guarani, no municpio de Pradpolis, prximo cidade de Rinco. Todas as pessoas esto no interior da casa, que apresenta uma diviso sexual do espao em feminino e masculino. A rvore aparece ao lado da casa, alm das flores. Sobre a casa, o vo de uma borboleta em direo s nuvens, onde est gravado seu nome, separadas pelo sol sugere a percepo da natureza que caracteriza o espao rural. As figuras so quase do mesmo tamanho, desnudas e retilneas. Essa mesma menina produziu o Desenho 6, que se reporta oca do av, ndio, que vive no mesmo lote da famlia. As presen131

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as de rpteis lagarto, cobra , do gato (Romo), se misturam quela do av dormindo no cho, alm das rvores e da presena da lmpada colocada pelo pai. Esse desenho bastante fiel realidade vivenciada pela criana. As reflexes da pedagoga, Mrcia Gobbi (2002), ao conjugarem desenho e oralidade como forma privilegiada de expresso da criana, fornecem subsdios importantes para essas distintas interpretaes. Considerando o mesmo universo social, foram verificadas vrias formas de percepo e representao das famlias pelas crianas que vivem com os pais. As distintas temporalidades presente, passado, futuro se mesclam aos espaos sociais, valores, smbolos, e cultura. Para essa autora, os desenhos no so reprodues fiis da realidade vivida, como se estivessem congeladas no tempo e no espao. Os desenhos contm imaginao e sonhos. So frgeis as anlises da psicologia do desenvolvimento infantil que conquistaram amplo espao entre as prticas dos educadores e educadoras, sendo responsveis pela construo de olhares voltados para um trabalho que procura estabelecer as etapas e fases do psiquismo infantil. Estas se tornam prisioneiras de um olhar j formatado, enquadrado em modelos em que as produes devam ser encaixadas (p. 74-5). A incorporao dos desenhos da menina assentada um indicativo das diferenas espaciais, do mundo vivido, alm da diversidade cultural por meio da convivncia com o av que preferiu viver na oca, separada da casa da filha. Ao ser solicitada que fizesse o desenho de sua famlia, a criana foi fiel a sua realidade vivida. Portanto, a cultura uma representao dos diferentes espaos e tempos e diz de si, mas diz de seu grupo e da sociedade em que est e vive (Gusmo, 2003, p. 24). Conjunto 2 N de desenhos: 5 Caractersticas: famlias com a presena de membros consangneos de distintas geraes. A casa ora aparece, ora no.132

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H tambm a ausncia de algumas pessoas nos desenhos. No Desenho 7 de uma menina de 8 anos, cujo pai varredor de rua e a me colhedora de laranja, aparecem 11 figuras, todas do mesmo tamanho, sem roupas, com os mesmos traos retilneos, pintadas da mesma cor, indistintas. A casa extremamente pequena para abrigar o nmero de pessoas. A presena da rvore com frutos sugere que a famlia tambm possa dar muitos frutos. No h hierarquias. A me aparece antes do pai. H primos, primas, tios e av. O cotidiano, o momento presente domina toda a cena. No h projees. O passado, traduzido na presena da av, parece indicar que ele igual ao presente do adulto e tambm ao futuro das crianas no contexto de um vivido sem mudanas. O pequeno espao na parte inferior da folha utilizado para o desenho sugere o espao simblico das relaes de dominao dessa famlia no universo social ao qual pertencem. O espao emocional indiferenciado, todos se situam no mesmo plano da folha de papel, que coincide com o espao social. O Desenho 8 de uma menina de 8 anos. O pai trabalha no corte de cana e a me empregada domstica. filha nica. H um primo de 12 anos que mora com a famlia, portanto, tratase de uma criana que circula. A figura do pai menor do que a da me. O primo no desenhado. H a figura de uma boneca e um carrinho de beb. Ao lado da casa, h uma flor e uma rvore com grande copa e frutos. No alto da folha, muitos coraes coloridos e o sol, fonte de luz e calor. Ao contrrio do desenho anterior, a casa grande, tendo em vista o nmero e o tamanho das pessoas. Os coraes coloridos no alto podem ser interpretados como sinais de amor, afeto, embora na esfera do desejo, dos sonhos. No Desenho 9 de um menino de 8 anos, cujo pai cortador de cana e a me empregada domstica, tanto a rvore como a famlia esto sobre a terra, o que pode revelar o equilbrio familiar. A av materna e o tio no residem na casa, embora sejam desenhados como membros da famlia. Todas as pessoas so apre133

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sentadas do mesmo tamanho, algo recorrente em vrios casos, o que indica a ausncia de hierarquias e tambm o lugar pequeno (e em baixo) que o grupo familiar ocupa no universo social. O sol entre as nuvens sugere que a percepo vai alm da situao vivida. Moram, na casa, quatro pessoas. O Desenho 10 de uma menina de 8 anos de idade retrata a ausncia de muitos membros. A me empregada domstica. So registrados apenas o pai (que no reside na casa), a me e ela prpria. As demais pessoas nove residentes na casa esto ausentes. A av materna, o tio, o meio-irmo filho do pai com outra mulher que reside com ele no so pintados. No desenho, o pai, que pega lavagem para os porcos na fazenda, pintado por ltimo, antes dela e da me. Alm dos traos retilneos, h indicativos dos rgos genitais masculinos e femininos nos desenhos. Alm dessas ausncias, a casa no aparece, assim como outros elementos da natureza. As trs figuras esto separadas entre si. A experincia vivida do mundo real permite associar significados que poderiam realizar-se. A ausncia desses traos sugere a ausncia de projetos, de expectativas, de transformaes. Valeria a pergunta: Onde esto os sonhos dessa criana? No Desenho 11 da menina de 8 anos, cujo pai trabalha no corte de cana e a me empregada domstica, embora as figuras sejam muito pequenas e tambm situadas na parte inferior da folha de papel, elas so pintadas com detalhes: os avs com bengalas e culos, o irmo com a bola. Os primos, tios e avs no residem na casa, porm so percebidos como de sua famlia. A casa est ausente. O sol, sem detalhes, surge entre nuvens. Conjunto 3 N de desenhos: 5 Caractersticas: famlias com o pai ausente. Em alguns desenhos, ora a casa aparece, ora no. O Desenho 12 de uma menina de 11 anos de idade, em cuja casa vivem seis pessoas. No sabe dizer a profisso do pai e a134

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me trabalhadora rural. Segundo o dirio de campo, a me alcolatra e, atualmente, todos esto morando com a tia, em virtude de terem sido despejados, por falta de pagamento do aluguel. A figura da me a maior e aparece entre a dos filhos. Embora o pai viva com sua irm, ela o desenhou por ltimo. Um sol triste est entre as nuvens. A casa e a rvore no aparecem. As figuras esto separadas umas das outras. Essa famlia traduz a miserabilidade que caracteriza boa parte desses trabalhadores. Salrios baixos, trabalho sazonal, ausncia do pai, so fatores que contribuem para aumentar o sofrimento e as tenses vivenciadas. O alcoolismo da me o resultado dessa situao social. No Desenho 13 de uma menina de 9 anos de idade, cuja irm autora do Desenho 12, o pai est ausente. A figura da me aparece em primeiro lugar e a maior. A copa da rvore grande, com muitos frutos, o que pressupe o desejo de um futuro promissor. O tronco pequeno e as razes no aparecem. Segundo as consideraes acima, o tronco representa a vida emocional; as razes, a vida instintiva e a copa, a vida intelectual, social e o futuro. No Desenho 14 de uma menina de 10 anos de idade, cuja me est desempregada e o pai colhedor de laranja, as figuras esto desmembradas. A figura da me aparece em primeiro lugar, porm foi pintada com lpis preto. No momento da leitura do desenho, a criana disse sobre a me: Ela no mais porque o padrasto bateu em ns. A figura do pai, que no vive na casa, est desmembrada, assim como as dos demais, exceto a dela prpria. A figura do padrasto agressor tambm no foi pintada. A folha de papel, dividida ao meio, sugere que a topografia da famlia pequena, no havendo a necessidade da folha inteira. Por outro lado, o espao emocional das figuras no obedece s hierarquias dos modelos, baseadas nos papis desempenhados pelos membros da famlia. A figura de um dos irmos maior do que a do pai. interessante notar que a me, embora morando na casa, no mais considerada me, ao contrrio do pai que est ausente da casa,135

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mas presente nas relaes familiares, segundo a representao. Portanto, no nvel do imaginrio, h a inverso dos lugares e dos papis sociais. No Desenho 15 de um menino de 13 anos de idade, a me a figura mais representativa. Ela pintada com as roupas da roa, pois uma colhedora de laranja. Trata-se de uma famlia sob a chefia da mulher. O autor do desenho no aparece. O menino responsvel pelos cuidados da casa, realiza todas as tarefas domsticas, enquanto a me trabalha na roa. As quatro crianas so de pais diferentes. Nenhum vive na casa, todos foram embora. A me auxiliada pela famlia da irm que mora ao lado de sua casa. A menina vive boa parte do tempo na casa da tia. A casa muito precria e no aparece no desenho. Embora sejam bem-feitas as figuras, no h qualquer trao que se refira ao imaginrio, vida futura. As dificuldades do cotidiano so muitas. A sazonalidade do trabalho, os salrios baixos, inferiores ao mnimo, impem a essa famlia as necessidades de assistncia, advinda da prefeitura local e dos parentes. Inquirida sobre as razes de no solicitar judicialmente as penses dos pais de seus filhos, a me respondeu que sua atitude era para evitar a interferncia deles em sua vida. Esse fato bastante revelador dos conflitos das relaes de gnero, bem como do empoderamento da mulher que, embora no limite da sobrevivncia, prefere resguardar sua autonomia, algo que, segundo ela, poderia ser posta em risco, na medida em que eles poderiam fazer-lhe exigncias em troca do pagamento das penses aos respectivos filhos. Os demais irmos tambm desenharam a famlia. Do mesmo modo, os respectivos pais no aparecem, ao passo que a figura da me a maior. O Desenho 16 de uma menina de 5 anos de idade, cujo pai foi embora e trabalhador rural e a me empregada domstica, apresenta a leitura feita pela menina, no somente relatando os nomes das pessoas. Toda folha de papel ocupada e as posies topolgicas so distintas. Sem contar que h vrias divises. No canto superior esquerdo, foram pintados o tio, que sustenta a casa, a me, a tia. No canto superior direito, a av. No canto in136

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ferior direito, num quartinho separado da casa, mora o av, alcolatra, que briga com a av. Sobre o pai, a autora do desenho no fez nenhum comentrio. Essa menina fez outro desenho sobre a famlia e, nele, ela ressaltou o papel do tio, como provedor da famlia, cuja figura est de braos bem abertos. Relatou tambm que logo o tio iria casarse e no mais sustentaria a casa, pois iria embora. A diviso espacial reflete tambm o espao emocional, no qual o av excludo do contato familiar, j que mora num quartinho separado, e as demais pessoas esto no alto, fora da casa, longe do cho, apresentando corpos disformes, cabelos desalinhados, assemelhandose a caricaturas. As condies sociais dessa famlia so refletidas nas imagens desenhadas pela criana. Conjunto 4 N de desenhos: 5 Caractersticas: ausncia de muitos membros da famlia. A casa ora aparece, ora no. O Desenho 17 de um menino de 8 anos de idade, que est vivendo com a madrinha, portanto, trata-se de um criana que circula. O pai trabalha no corte de cana e a madrinha colhe laranja. No momento da pesquisa, uma vizinha afirmou (pois no foi possvel o contato com a famlia) que ele seria devolvido aos pais, pois se tratava de uma criana muito difcil. O contedo latente revela que a figura de seu rosto no tem olhos, boca, nariz, ouvidos, ou seja, um crculo sem traos, indefinido. O corpo disforme. O corao vermelho pintado no alto da folha, com traos fortes, sugere relaes emotivas que esto ausentes nas pessoas, talvez existindo como forma de projeo, algo abstrato. Durante a realizao da oficina, essa criana revelou ser inquieta, com atos que sempre procurava chamar a ateno sobre si mesmo. No Desenho 18 de um menino de 8 anos de idade, cujos pais trabalham na colheita da laranja, todos os cinco membros da fa137

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mlia esto ausentes. Segundo as reflexes acima, a existncia dos compartimentos revela ausncia de comunicao entre os membros. A nica figura que aparece a sua, isolada, com a referncia da creche. No canto inferior direito, uma figura invertida aparece rabiscada, sem identificao. Os caixotes vazios podem sugerir, alm da ausncia de comunicao entre os membros da famlia, o isolamento sentido pela criana, no seu prprio caixote, cuja imagem indefinida e incompleta. O Desenho 19 de um menino de 8 anos de idade, cujo pai trabalha no corte da cana e a me colhe laranja. No primeiro desenho, ele representou o av na parte inferior da folha. Os traos pontiagudos e os botes na roupa indicam agressividade. Na outra folha, aparecem a casa e a rvore; sua figura do mesmo tamanho da casa; seus membros parecem estar atrofiados. A rvore no possui razes; o tronco grande e ela pintada de preto. Moram na casa seis pessoas, quatro delas ausentes nos desenhos, inclusive os pais. Contudo, h o sol, nuvens, pssaros, indicativos da natureza, alm da casa. O Desenho 20 de um menino de 11 anos, cujos pais trabalham na colheita de laranja e em cuja casa moram 17 pessoas. A figura desenhada, de um diabo com chifres, atravessada por um podo de cortar cana, reporta-se ao pai; em sua leitura, ele disse que a figura no o pai, porm ele quis colocar pai. Aparece tambm o nome de uma mulher, me do colega, seu nome e a palavra paz em grandes letras. A ausncia de quase todos os membros da famlia, aliada a essa representao do pai e a palavra paz, indicativo de ausncia afetiva e violncia praticada pelo pai. As imagens revelam e escondem uma realidade marcada por muitos conflitos. A figura da me, alm de ausente, substituda pelo nome da do colega, que possivelmente possa significar-lhe algum sentimento positivo. A autoria do Desenho 21 de uma menina de 12 anos, cujo irmo o menino do Desenho 19. As crianas so negras. Durante a atividade de teatro, essa criana representou o papel da av materna como aquela que oferecia apoio me, quando esta bri138

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gava com o marido. As figuras esto em compartimentos, o pai est ausente. As figuras esto desnudas e so retilneas. A falta de roupa, trao que surge em outros desenhos, sugere a ausncia de cuidados, de carinho. Se compararmos as interpretaes dos contedos latentes dos desenhos 19 e 21, veremos que a violncia e a ausncia de proteo lhe so comuns. Essa mesma situao foi encontrada por Riva (2006, p. 113), que utilizou a tcnica do desenho para constatar as formas de negligncia por parte dos pais em relao aos filhos. Num dos desenhos, todas as figuras foram pintadas desnudas. As pessoas esto no interior da casa e esta cercada por grandes muros, num dos quais aparece a copa de uma rvore com frutos. A bicicleta da irm desenhada, o que sugere a raridade dessa mercadoria entre essas crianas, tendo em vista o baixo poder aquisitivo da famlia. O ato de desenhar um ato em que a criana escreve seus pensamentos sobre a realidade vivida ou imaginria. A famlia transfere criana toda herana cultural; muitos elementos culturais so transmitidos s crianas por meio de relaes afetivas. No Desenho 21, os muros altos da casa podem representar as barreiras enfrentadas pelos negros na sociedade em que vivem. O espao da casa parece configurar o isolamento, o cerceamento das pessoas que vivem nela em relao ao mundo exterior.

CONSIDERAES FINAIS Parafraseando a professora Miriam Moreira Leite (1993), que analisou fotografias de famlias, poderamos levantar a questo: Existiria uma leitura desses desenhos capaz de substituir ou equivaler de documentos escritos ou depoimentos verbais? Diante das alternativas, ainda nos baseando nessa autora, o documento escrito e as imagens iconogrficas ou fotogrficas so representaes que aguardam um leitor que as decifre (p. 23). A imagem no fala por si mesma. Dessa sorte, tecemos o conjunto de reflexes139

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acerca do ser social no intuito de compreender a criana-sujeito, inserida numa famlia, cujos padres de organizao passaram por vrias mudanas em funo das relaes socioeconmicas existentes na produo do denominado agribusiness sucroalcooleiro e citrcola da regio analisada. Tais mudanas, como vimos, acarretaram a precarizao das relaes de trabalho, o desemprego, sem contar as incertezas do mercado laboral sazonal, cada vez mais restrito e exigindo mo-de-obra, dotada de fora para o dispndio de enormes energias para o trabalho excessivamente pesado do corte da cana, fato que alija as mulheres e as pessoas acima de 40 anos de idade da atividade do corte da cana. Restam s mulheres a colheita da laranja, cujos salrios so inferiores aos do corte da cana, ou o emprego domstico. Portanto, os genitores dessas crianas esto nas ocupaes mais desvalorizadas financeira e socialmente. A vida deles oscila entre as incertezas do mercado laboral e a excluso social, recaindo sobre as mulheres, ainda, o peso da dominao patriarcal e, sobre os negros, as discriminaes tnicas/raciais. Na expresso de Bourdieu, so vidas suspensas por um fio. O conjunto dos desenhos analisados revela, portanto, outra maneira de dizer, baseada na descrio da realidade circundante e tambm nas representaes sociais dessas crianas. O lugar emocional das pessoas da famlia aparece ora disforme, ora indistinto, retilneo, sem cores, sem marcas, na parte inferior da folha sulfite, lugar este que coincide com a escala social na qual se inserem todos os membros da famlia. Considerando o ideal como parte do real, em alguns desenhos a idealizao est ausente. Se retomarmos as reflexes sobre o ser social, podemos afirmar que o processo dominador imposto aos trabalhadores rurais nestas ltimas dcadas culminou no somente na introjeo da autocoao, caracterizado pelos salrios baixos, pela misria material e incapacidade de reproduo social, pelo alcoolismo dos adultos, mormente dos homens, como tambm pela espoliao das lembranas, responsveis pela negao da memria herdada pelas crianas. Partindo do pressuposto de que as distintas140

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temporalidades no so lineares, porm se misturam, imprimindo umas s outras novos matizes, cujos significados se transformam no decorrer do tempo e dos espaos vividos, podemos afirmar que esse processo, ao atingir a prpria essncia humana, ao ser internalizado, pode gerar tanto o amoldamento como a resistncia, por meio da dialtica conflitiva, segundo as consideraes acima. Assujeitamento e amoldamento no so vistos linearmente, porm enquanto processos conflitivos entre a dominao das relaes capitalistas e as determinaes, advindas dos prprios sujeitos em subverter tais determinaes que foram recalcadas, reprimidas. Ethel Kosminsky (1998) mostra a importncia do desenho conjugado oralidade em um estudo de caso de crianas internadas em instituies assistenciais. Segundo ela, a coleta dos desenhos exige do pesquisador uma postura que se afaste do paternalismo, dos preconceitos de classe e etnia e tambm das ideologias dominadoras. Por outro lado, o fato de o pesquisador no ser criana um fato que exige outros cuidados. Nos quadros de uma sociologia da infncia, poder-se-ia perguntar se as crianas das camadas subalternas apresentam grafismos mais elementares do que as crianas das camadas dominantes. Essa autora adverte para os perigos do reducionismo, aliado construo de cnones, ou seja, de critrios classificatrios, de modelos que valorizam as caractersticas tnicas e culturais de uma camada da populao, ou da populao de um pas, em detrimento de outros, capazes de conduzir ao etnocentrismo e aos preconceitos classistas (p. 85). O trabalho etnogrfico no quarteiro escolhido pela pesquisa, que durou duas semanas inteiras, alm das atividades recreativas desenvolvidas com as crianas em vrios momentos, permitiu no somente aproximao das crianas, como tambm as relaes de confiana entre pesquisador e pesquisado. Algumas delas chegaram a desenhar as pesquisadoras em folhas de papel separado, com trancinhas nos cabelos, como se elas fossem crianas, o que denota a relao afetiva produzida.141

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Dessa sorte, ainda que reconheamos as possveis limitaes das interpretaes dos desenhos, as reflexes acima representam um duplo desafio. Primeiramente, por adentrar um terreno novo, cujo caminhar exigiu muita cautela. Em segundo lugar, por tomar conscincia de que a explorao e a dominao de classe, gnero e etnia atingem a vida dos dominados no somente no que tange a sua materialidade, como tambm prpria subjetividade. Desse modo, qualquer prxis que vise acabar com a situao de heteronomia dever levar em conta o processo de alienao, objetivao e assujeitamento de corpos e almas. Portanto, uma larga tarefa, que no pode ser circunscrita aos movimentos sindicais. Uma pedagogia, que fosse capaz de inserir em seus contedos a realidade social e cultural da criana, poderia ser o caminho para a autonomia e a abolio das injustias sociais existentes. A concretizao dessa utopia necessariamente dever incluir o sujeito-criana, alm de mulheres e homens adultos.

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MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA professora livre-docente, colaboradora do PPG/Geografia/Unesp/Presidente Prudente, pesquisadora visitante do PPG/Geografia/USP e pesquisadora do CNPq. BEATRIZ MEDEIROS DE MELO bolsista da Fapesp/Mestrado/Unesp/Presidente Prudente. ANDRIA PERES APPOLINRIO bolsista de AT do CNPq.

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