tese maurilio machado lima junior

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Maurilio Machado Lima Junior Ensaísmo e filosofia em Theodor W. Adorno Rio de Janeiro 2012

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Cincias Sociais

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Maurilio Machado Lima Junior

    Ensasmo e filosofia em Theodor W. Adorno

    Rio de Janeiro

    2012

  • Maurilio Machado Lima Junior

    Ensasmo e filosofia em Theodor W. Adorno Tese apresentada, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor, ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Filosofia Moderna e Contempornea.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo Jos Corra Barbosa

    Rio de Janeiro

    2012

  • CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta Tese. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data

    A241e Lima Junior, Maurilio Machado Ensasmo e filosofia em Theodor W. Adorno / Maurilio

    Machado Lima Junior 2012. 130 f. Orientador: Jos Correa Barbosa. Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Bibliografia. 1. Adorno, Theodor W, 1903-1969. 2. Filosofia alem -

    Teses. I. Barbosa, Jos Correa. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

    CDU 1(430)

  • Maurilio Machado Lima Junior

    Ensasmo e filosofia em Theodor W. Adorno

    Tese apresentada, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor, ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de Concentrao: Filosofia Moderna e Contempornea.

    Aprovada em 26 de maro de 2012.

    Banca Examinadora:

    __________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Jos Correa Barbosa (Orientador)

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - UERJ

    _________________________________________ Prof. Dra. Mrcia Cristina Ferreira Gonalves

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - UERJ

    __________________________________________ Prof. Dr. Pedro Rocha de Oliveira

    Instituto de Cincias Humanas - UFJF

    __________________________________________ Prof. Dr. Pedro Hussak van Velthen Ramos

    Instituto de Cincias Humanas e Sociais - UFRRJ

    __________________________________________ Prof. Dr. Douglas Garcia Alves Jnior

    Instituto de Filosofia, Artes e Cultura - UFOP

    Rio de Janeiro

    2012

  • AGRADECIMENTOS

    Paula, Maurilio, Vanise e Ricardo: extremamente agradecido.

  • Mas o que filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosfica - seno o trabalho crtico do pensamento sobre o prprio pensamento? Se no consistir em tentar saber de que maneira e at onde seria possvel pensar diferentemente em vez de legitimar o que j se sabe? Existe sempre algo de irrisrio no discurso filosfico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde est a sua verdade e de que maneira encontr-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingnua; mas seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu prprio pensamento, atravs do exerccio de um saber que lhe estranho. O "ensaio" - que necessrio entender como experincia modificadora de si no jogo da verdade, e no como apropriao simplificadora de outrem para fins de comunicao - o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerccio de si, no pensamento.

    Michel Foucault

  • RESUMO

    LIMA JUNIOR, Maurilio M.. Ensasmo e filosofia em Theodor W. Adorno. 2012. 130 f. Tese (Doutorado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

    O estudo aborda o problema da forma de exposio do pensamento filosfico a partir da defesa da forma do ensaio na obra de Theodor W. Adorno. O que se pe em questo o quanto a forma ensastica, em seu esforo de elaborar conceitualmente os dados da experincia particular, capaz de dar conta da atividade filosfica - uma atividade universalista e interessada na determinao dos fundamentos ltimos do real - em um momento histrico no qual no parece ser mais possvel a ela erguer pretenses de sistema. Em seu desenvolvimento este trabalho se volta para a prpria ensastica adorniana e procura mostrar se e em que medida ela escapa do esprito prprio dos sistemas fechados.

    Palavras-chave: Forma de exposio. Ensaio. Filosofia. Theodor W. Adorno.

  • ABSTRACT

    The work addresses the problem of exposition in the philosophical thought based on the defense of the essay form in the philosophy of Theodor W. Adorno. What is interrogated is how much the essay form, in its effort to develop conceptually the particular experience, is able to carry out the philosophical activity - a universalistic activity e interested in depict the ultimate foundations of the real - in a historical moment in which is it no more possible to raise any pretense of systematic philosophy. In its development this study turns to Adorno's own essays and attempts to show if the exposition form of his thought escapes from the especific spirit of closed systems.

    Keywords: Form of exposition. Essay. Philosophy. Theodor W. Adorno.

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................... 9 1 SOBRE O CONCEITO DE ENSAIO EM ADORNO ..................................... 19 1.1 A concepo adorniana de ensaio ...................................................................... 19 1.2 O ensaio e a crtica do conceito ........................................................................... 20 1.3 O ensaio e a expresso artstica .......................................................................... 22 1.4 O ensaio, o mtodo e o novo ................................................................................ 23 1.5 Lukcs e a essncia do ensaio ............................................................................. 26 1.6 Benjamin e a crtica do sistema ........................................................................... 29 2 A FILOSOFIA COMO PROBLEMA E O ENSAIO ....................................... 34 2.1 Ensaio, filosofia e materialismo .......................................................................... 34 2.2 A interrogao do esclarecimento sobre si mesmo ............................................ 39 2.3 Ensaio e princpio de troca .................................................................................. 40 2.4 Sobre a impotncia da filosofia ........................................................................... 43 2.5 O pensamento filosfico entre a resistncia e a coero ................................... 45 2.6 Experincia e ensaio ............................................................................................ 47 3 O ENSAIO E A LIBERDADE DO PENSAMENTO FILOSFICO ............. 49 3.1 Liberdade como no-servido ............................................................................ 49 3.2 Liberdade e autodeterminao do pensamento ................................................ 49 3.2.1 Unificao total entre pensamento e pensado ......................................................... 50 3.2.2 A primazia do objeto .............................................................................................. 53 3.2.3 Pensamento filosfico, identidade e mimesis ......................................................... 55 3.3 Pensamento e atividade consciente ..................................................................... 57 3.3.1 Concentrao .......................................................................................................... 59 3.3.2 Objeto posto e infinitamente exposto ..................................................................... 61 3.4 A filosofia como disciplina ................................................................................... 64 4 A ESPECIFICIDADE E O VALOR DA FILOSOFIA ..................................... 68 4.1 O positivismo lgico e a ontologia fundamental ................................................ 68 4.1.1 Teoria e praxis ....................................................................................................... 72 4.1.2 Dialtica como antdoto .......................................................................................... 73 4.1.3 Refuncionalizao da idia de infinito ................................................................... 77 4.1.4 Filosofia e arte; Filosofia e Cincia ........................................................................ 78 4.2 Os contedos prontos e a liberdade como errncia ........................................... 81 4.2.1 Pensamento filosfico e ascese ............................................................................... 83

  • 5 UMA ANLISE DE O ENSAIO COMO FORMA ..................................... 86 5.1 A forma do ensaio em questo ............................................................................ 86 5.1.1 O preconceito contra o ensaio e a filosofia acadmica .......................................... 87 5.1.1.1 Os pseudo-ensaios .................................................................................................. 90 5.1.2 O ensaio como forma de arte ................................................................................. 91 5.1.3 A defesa do ensaio e a crtica da busca da totalidade ............................................ 93 5.1.3.1 Verdade e Histria ................................................................................................. 95 5.1.3.2 Ensaio e dialtica .................................................................................................... 96 5.1.4. O ensaio e a crtica do sistema ................................................................................ 98 5.1.5 O ensaio e a crtica do mtodo ................................................................................ 101 5.1.6 Ensaio como forma crtica par excellence .............................................................. 105 5.2 Anlise do ensaio Arnold Schoenberg (1874-1951) ........................................ 107 6 REFLEXO CRTICA SOBRE A DEFESA ADORNIANA DO ENSAIO ... 110 6.1 A ensastica e felicidade no pensamento ............................................................. 110 6.2 A ensastica de Adorno em questo .................................................................... 114 6.3 Defesa e crtica da ensastica adorniana ............................................................. 119 7 CONCLUSO ....................................................................................................... 124

    REFERNCIAS.................................................................................................... 126

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    INTRODUO

    Embora o trabalho se centralize na forma de exposio em prosa do pensamento representada pela expresso ensaio, no se trata, contudo, de um estudo sobre a essncia desse gnero literrio. Pelo menos no tal como se desenvolveu em termos conceituais e histricos desde Montaigne e Bacon. No me aprofundo nesse sentido. O que desejo desenvolver um pouco distante das questes de gnero um exame sobre a forma de exposio e articulao do pensamento que foi defendida e adotada por Theodor W. Adorno sob o nome de ensaio. E mais especificamente sobre o seu valor e significncia para o pensamento filosfico. Com isso delimito o meu campo de estudo.

    O objetivo determinar as implicaes para a filosofia de uma forma de discurso que Adorno definiu como especulao sobre objetos especficos j pr-formados no domnio da cultura1. Forma que julgou ser a mais propcia articulao e exposio do pensamento filosfico em um momento histrico no qual j no seria mais possvel aos filsofos alimentarem a pretenso de oferecer uma visada unvoca sobre o todo. Isso quer dizer que o ensaio comportaria a exposio do pensamento filosfico atento s crticas impetradas contra a filosofia por parte de pensadores como Marx e Nietzsche, segundo os quais j no seria mais possvel filosofar acreditando na existncia ontolgica de sentidos definitivos para as coisas; para os quais o histrico e o contingente j no poderiam mais ser suprimidos radicalmente em nome da determinao metafsica pura de fundamentos ltimos. Adorno, portanto, admitia que no dava mais para seguir fazendo filosofia pretendendo a fixao de princpios ou conceitos invariveis, autodeterminados, sobre os quais o sujeito do conhecimento repousaria e que se deixariam representar de maneira absoluta, para alm de condies histricas determinadas. Nesse sentido, a sua concepo de filosofia se mostra controversa, ainda que afim prtica ensastica.

    Tal diagnstico sobre o conhecimento filosfico seria o ponto decisivo que determinaria a posio de Adorno em relao produo filosfica de sua poca. Em Atualidade da Filosofia, de 1931, palestra inaugural com a qual se apresenta como filsofo ao ambiente acadmico alemo, seu discurso no parte de uma mera diviso entre a filosofia tradicional e a atual, mas entre filosofias crentes na possibilidade de um olhar unvoco sobre o real e as filosofias crticas em relao a essa pretenso. Adorno engrossava o grupo dos crticos, alinhando-se aos herdeiros do materialismo histrico e aos entusiastas do pensamento

    1 ADORNO, Theodor W.. Der Essay als Form. In:______. Noten zur Literatur I. Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 9.

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    dialtico, movido pela crtica aos pressupostos idealistas do pensamento, que, segundo ele, ainda vigoravam em algumas posies filosficas muito influentes nas universidades alemes. Tal era o caso da fenomenologia e da ontologia fundamental, por exemplo.

    Seguidor da crtica filosofia alem formulada por Marx e Engels, Adorno entendia que um pensamento filosfico conseqente e atual deveria necessariamente comear a ser posto em marcha inicialmente pela recusa especulao que parte da primazia do sujeito no conhecimento. Em lugar da especulao que pe o sujeito como fundamento do conhecimento, em lugar de uma teoria pura, Marx e Engels apostavam suas fichas em um pensamento capaz de permitir um encontro possvel entre teoria e prxis. Ou, em outros termos, um pensamento que no descartasse a prxis histrica em nome da determinao ideal da verdade. Assim, postulavam um pensamento terico que recusasse a autonomia da teoria em relao prxis, ou a teoria que supe a verdade sob a noo do intencional subjacente histria. Em Atualidade da Filosofia, Adorno pouco hesitou em estabelecer uma relao entre a filosofia interpretativa que ali buscava defender e o programa do materialismo histrico. As duas posies postulavam uma crtica da intencionalidade, da noo de sentido implcito histria, da pergunta pelo sentido em termos metafsicos. Recusavam, antes de qualquer coisa, a idia de que todo particular se torna inteiramente identificvel na sua representao universal; algo sempre sugerido em todo ato de conceituao. Ao mesmo tempo, o procedimento dialtico, prprio do materialismo histrico, aparecia a Adorno como bastante conveniente ao pensamento terico que queria lidar de outra maneira com a elaborao conceitual identificante. Pois Adorno era ciente que no seria possvel fazer filosofia sem o ato de conceituar, sem subsumir um particular em um universal, mas era possvel conceituar filosoficamente ciente da no-identidade, o que a dialtica permitia, j que, segundo ele, ela posta em jogo justamente a partir dessa conscincia. Assim, para ele, a dialtica no seria meramente uma opo metodolgica para a interpretao filosfica do real, mas a sada possvel para a filosofia seguir sendo feita em observao sua autocrtica.

    Como no materialismo histrico, a filosofia interpretativa do Adorno de A Atualidade da Filosofia renuncia a um pensamento meramente investigador da conscincia pura, que seria capaz de existir de maneira autnoma, independente das condies materiais dadas. E, nessa renncia, Adorno entende que o pensamento terico comearia a encontrar o seu lugar prprio de realizao: a ao humana movida por interesses prticos, no as idias puras separadas da histria. Nesse sentido, a filosofia interpretativa admite outra perspectiva sobre a relao teoria e prxis; uma perspectiva em que o conhecimento filosfico do real no est separado da transformao do real. Ou seja, conhecer filosoficamente no meramente se

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    apropriar conceitualmente das coisas dadas na experincia, mas consiste tambm em transformar esta experincia, uma vez que todo conhecimento s significativo na medida em que faz com que as coisas apaream de outra forma. O objeto do conhecimento no , portanto, meramente um utenslio do sujeito do conhecimento, mas aquilo que proposto pelo sujeito sempre de maneira nova, que se transforma a cada nova proposio. Sob esta perspectiva, a filosofia pode ser entendida como uma forma de trabalho, de transformao do dado, e no meramente como contemplao da verdadeira natureza das coisas em seu sentido eterno e imutvel.

    No entanto, enquanto Marx viveu em um momento histrico em que era ainda possvel acreditar na transcendncia da filosofia atravs de sua realizao na prxis, Adorno ingressou nos debates filosficos em um perodo em que essa crena havia se dissolvido. Quanto a isso, disse Martin Jay, em seu livro sobre Adorno:

    Enquanto Marx havia escrito numa poca em que a filosofia estava descendo, de forma enrgica e agressiva, at o mundo material, confiante na iminente unidade entre a teoria e a prtica, Adorno filosofava em meio s runas daquilo que se afigurava uma queda bastante infeliz.2

    E pode-se dizer que foi da conscincia desse desenrolar histrico que Adorno extraiu a sua radicalidade crtica frente cultura humana em geral e em relao a muitos de seus produtos. Radicalidade crtica que permitiu a ele no abandonar a filosofia como uma atividade obsoleta, j que tal crtica exige elaboraes conceituais possveis apenas com os meios do pensamento filosfico.

    Por conta da conscincia dessa queda infeliz, Adorno foi obrigado a adotar uma posio mais rigorosa que Marx e Engels em relao filosofia como atividade de fundamentao do conhecimento. Adorno temia que, no mundo contemporneo, a crtica da filosofia como teoria do conhecimento, desencadeada por Hegel e desenvolvida por Marx e Engels, legitimasse a converso integral da filosofia em teoria das cincias, configurando o fenmeno da liquidao da filosofia. Pois a filosofia como inquirio metodolgica acerca das regras e controles orientadores das cincias disponveis, a filosofia como teoria das cincias, se justifica exatamente pela crtica da filosofia enquanto descrio das condies do conhecimento possvel e explicao do sentido inerente ao conhecimento a filosofia enquanto teoria do conhecimento.

    Em Conhecimento e Interesse, Habermas toma esse aspecto como um dos mais decisivos da histria recente da filosofia. Assim, a crtica dialtica de Hegel, Marx e Engels

    2 JAY, Martin. As ideias de Adorno. So Paulo: Cultrix, 1988, p. 53-54.

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    filosofia enquanto teoria do conhecimento poderia conceder aval para a subsuno total da filosofia ao esprito do positivismo; esprito que aboliu o problema das condies do conhecimento possvel e do sentido inerente ao conhecimento3. De certa forma, isso leva Adorno a no abandonar completamente a filosofia do sujeito. Ele admitia que ainda era necessria uma reflexo sobre o conhecimento, bem como a colocao da questo sobre o sentido do saber. E isso que o embalou na direo de uma defesa do momento especulativo do pensamento, algo estranho ao materialismo histrico. Pois especulativamente que seria

    possvel ainda uma reflexo nos termos de uma teoria do conhecimento. Porm, ao mesmo tempo, Adorno no tinha a pretenso de entronizar o sujeito cognoscente como sistema de referncia ao conhecimento, como no idealismo. Por isso, a atividade especulativa tem em sua obra uma acepo distinta da que foi dada pela filosofia clssica alem. Adorno entendia tanto que o conhecimento no deveria ser equiparado s realizaes da cincia tal como era tambm para Benjamin quanto a filosofia no consistia no mero autoconhecimento do sujeito em termos fundamentais. Essa seria a arma de Adorno contra a ascenso do positivismo no mbito do conhecimento e da tarefa da filosofia de elaborar uma metodologia das cincias. E como disse Habermas: tarefa essa que a crtica do conhecimento abandonara e da qual Hegel e Marx se acreditavam dispensados4.

    A via aberta superao da filosofia pura, propalada por Marx e Engels, estaria dada ainda para Adorno no expediente crtico da filosofia. Expediente que, no entanto, no podia dispensar a especulao. Pois, Adorno entendia a especulao ainda como momento em que o pensamento capaz de transcender os fatos dados, historicamente determinados.

    Contudo, essa especulao s seria proveitosa como expediente crtico na medida em que rejeita uma transcendncia sacrossanta5, recusando a hipostasiao dos conceitos em instncias primeiras. Nessas condies que a especulao apareceria como ndice de resistncia do pensamento contra a compactuao com os fatos dados resistncia a uma atitude positivista; isto , somente na medida em que ela no descamba para um comportamento metafsico.

    Desde o incio da atividade filosfica de Adorno, percebe-se que o escrpulo por um pensamento consequente o leva a mover-se em um terreno paradoxal. Ele advoga que o pensamento filosfico deve abandonar a pretenso de ser, de modo puro, uma estrutura lgica,

    3 HABERMAS, Jrgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 89.

    4 Ibid. p.78.

    5 ADORNO, Theodor W. Negative dialektik. Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 29.

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    ou um mtodo, de viver autonomamente em relao prxis, em relao histria. Ao mesmo tempo defende que o pensamento terico sirva ao interesse humano pela emancipao, pela autonomia, pela ao no coagida por condies histricas determinadas, e nesse sentido defende que ele se mantenha ntegro diante do ativismo prtico.

    ento como atividade do pensamento que se realiza em meio a foras de coero e de emancipao que Adorno enxerga a atividade terica. O pensamento filosfico tem ento que lidar, ao mesmo tempo, com a necessidade de se estabelecer emancipadamente contra o estado de coisas existente (as condies materiais dadas e o pensamento dominante) e, simultaneamente, no se esquivar do concreto, refugiando-se em um plano meramente conceitual e abstrato. Esse dever posto ao pensamento mobiliza a sua fora crtica, em detrimento de sua fora ordenadora, simplificadora, homogenizadora. E, por conta disso, a lgica do sistema e do pensamento da totalidade, caractersticos da filosofia tradicional, perdem evidncia como vias do pensamento necessrias exposio racional da verdade.

    Para Adorno, com a perda de evidncia do que tradicionalmente foi considerado como fundamental, deve se deflagrar simultaneamente no filsofo consciente disso o interesse por aquilo que foi historicamente relegado condio de inessencial. E o atendimento desse interesse requer tanto releituras do passado da filosofia, que no remontem s leituras j consagradas, quanto uma nova maneira de situar criticamente a atividade filosfica em relao sua tradio e ao estado de coisas existente. E justamente tal exigncia que demanda uma forma de prosa capaz de expressar o heterogneo, o dissonante, o fragmentrio, o descontnuo; uma forma de exposio do pensamento apta a viabilizar uma real indagao acerca dos fenmenos do presente, que so nivelados por conta da obstinao do idntico.

    O exerccio ensastico do pensamento se apresenta adequado a essa funo e no foi por acaso que se tornou o meio por excelncia da Teoria Crtica da Escola de Frankfurt, j poca de seu desenvolvimento nos anos 1930. Nesse perodo, momento em que Max Horkheimer assume a direo do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, os membros associados da Escola passaram a compor um ncleo de pesquisa interdisciplinar sobre os fenmenos das sociedades industriais avanadas. As pesquisas eram publicadas no rgo do Instituto, a Revista de Pesquisa Social. A forma de comunicao dessas pesquisas, como de se esperar, deveria corresponder ao programa da Teoria Crtica, que grosso modo baseava-se numa desconfiana histrico-materialista em relao verdade unvoca na cincia e na histria, ao pensamento da totalidade e convico no absoluto (no que em si e por si). O ensaio ento se mostra uma forma natural para os tericos crticos que compartilhavam em

    princpio somente a renncia a todo e qualquer dogma posto de antemo ao pensamento sobre

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    o presente. Era isso que os unia, juntamente com o apreo pela forma ensastica, j cultivada na Alemanha por intelectuais como Simmel e Lukcs, grandes inspiradores dos frankfurtianos. O ensaio servia bem Revista na medida em que o que ela queria ser em ltima instncia era uma compilao de leituras descontnuas acerca do presente. A revista, com o seu perfil interdisciplinar e sua posio contra o pensamento identitrio, demandava uma forma de expresso que no impusesse cerceamentos metodolgicos aos autores e que, ao mesmo tempo, permitisse que os fenmenos historicamente novos ganhassem voz no

    mbito dos conceitos. O ensaio era perfeito para isso. Portanto, possvel dizer que o ensaio foi a forma da teoria crtica na sua poca urea, em que seu modelo fundamental era ainda a crtica da economia poltica, a teoria crtica de Marx.

    Entretanto, nos anos de exlio nos Estados Unidos, a crtica da civilizao, da razo, da cincia e da filosofia, ganha no pensamento de Adorno importncia maior do que a crtica da economia poltica. Adorno testemunhava a formao de um mundo totalitrio, no qual o sujeito individual parecia estar em processo de extino, uma vez que o princpio de troca havia condenado toda caracterstica individual a ser comparada e nivelada e, por isso, passvel de ser negociada. O que no indivduo poderia servir como ponto de resistncia contra a totalizao dissolvia-se, facilitando a formao de um mundo sem contradio, unidimensional, administrado. Isso exigia do pensamento filosfico uma postura menos compactuante com o dado, uma postura mais negativa, resistente crena no progresso da civilizao, progresso que se realizaria atravs da dominao tcnica sobre uma natureza cada vez mais desencantada. Um pensamento mais negativo poderia ainda fornecer um lugar de resistncia separao radical entre o sujeito do conhecimento e o mundo; resistncia transformao da natureza em algo abstrato, formal, e que em ltima instncia estabelece as condies para a regresso, para o irracional. A negatividade do pensamento resistiria reduo do conhecimento s realizaes das cincias positivas, prioritariamente calcadas no princpio de identidade. O ensaio assim seria mais do que a via para a teoria crtica. Seria antes o expediente prprio de um pensamento negativo radical, que desconfia das oposies entre mito e esclarecimento, sujeito e objeto, essencial e aparente, verdade e histria, progresso e regresso, teoria e prxis. Desse modo, o ensaio viabiliza a crtica do conhecimento filosfico, torna possvel ao pensamento confrontar a filosofia enquanto

    racionalidade formalizadora, que desencanta o mundo, criando para ele uma imagem montona e repetitiva. A filosofia que legitima o mundo dado e, ao fazer isso, legitima tambm o desaparecimento da noo de sujeito individual.

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    Quando Adorno voltou a Alemanha, nos anos 1950, reassumindo o papel de professor na Universidade de Frankfurt, j no mais demonstrava menor interesse pela constituio da Teoria Crtica segundo um programa nico. A crtica da razo instrumental a qual havia se dedicado junto com Horkheimer nos EUA havia despregado em Adorno um profundo pessimismo em relao realizao de uma teoria, seja l qual fosse ela, segundo fundamentos normativos. Ele se mostrava altamente receoso quanto regulao total de toda e qualquer atividade humana (o que se revela em seu horror diante da imagem de um mundo totalmente administrado). O valor do pensamento terico resistia e residia seriamente apenas nos esforos de indivduos isolados, ativos de modo autnomo. Nesse sentido que ele valorizava, aps o regresso a Alemanha, a prtica ensastica. O ensaio, que tornou possvel a

    realizao da Teoria Crtica, no era mais apenas um instrumento de realizao prtica de um programa terico, mas um modo de exerccio do pensamento que exime o pensador de se vincular a todo e qualquer programa pr-definido. O ensaio se mostra a Adorno como uma forma livre de expor o pensamento.

    Esta sua perspectiva quando redige O Ensaio como Forma nos anos 1950. E nessa perspectiva sobre o ensaio que o estudo aqui desenvolvido procurou se aprofundar.

    Em resumo o que consegui auferir do exame do entendimento de Adorno sobre o ensaio de sua prtica ensastica que o ensaio representa o pensamento livre sob dois aspectos. 1) O pensamento livre em relao ao estado de coisas existente; ele se subtrai ao j dado, ao que j . No endossa o status quo 2) O pensamento livre em relao s disciplinas da filosofia; ensaisticamente exposto o pensamento no fenomenolgico, ontolgico, lgico-positivista; ou seja, no se integra a nenhum sistema de pensamento dado. O filsofo ensasta no comprometido com nenhuma escola.

    Essa duas formas de liberdade geram possibilitam uma terceira forma de liberdade: a liberdade do objeto sobre o qual o filsofo pensa. No comprometido com a racionalidade dominante ou com a racionalidade de um sistema de pensamento, os objetos do pensamento podem ento aparecer sem coeres, sem sucumbirem enquadrados nos limites de um sistema fechado.

    Assim, sendo pensamento livre, o pensamento filosfico formulado atravs de ensaios, se torna capaz de expor aquilo que escapa ao pensamento quando este sistematizado, quando este j tem um lugar pr-definido para os objetos. Assim, para Adorno, no ensaio no se trata de encaixar o que posto ao pensamento, como objeto de pensamento, em um lugar j pronto para ele, mas permitir que o inusitado se mostre, que o novo seja pronunciado. Trata-se de criar chances para o no-idntico. No entanto, isso deve ocorrer segundo os meios do prprio

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    ato de conceituar, e nesse caso atravs do pensamento identificante. Por isso, o esforo recai sobre a forma de exposio, que deve se valer do ato de conceituar, ato identificante, para mostrar o que no se identifica. Essa seria uma ao de conhecer que faz justia ao objeto, o que significa que no o subsume a um corpo teortico j definido, que estabelece uma maneira pronta de olhar para o objetos. O ensaio proporcionaria olhares novos para os objetos e com isso objetos propostos sempre de novas maneiras. Pois no ensaio a forma do texto acompanha o contedo. Ou seja, o contedo tal como experimentado pelo ensasta que diz como ele ser expresso.

    Tudo indica ento que Adorno preconiza um pensamento dinmico, livre da reificao da conscincia e da fixao absoluta dos conceitos. Entretanto, quando se l diferentes textos do Adorno possvel perceber uma certa repetio formal. No importa qual objeto seja, o desenrolar prprio de uma dialtica negativa sempre se sobressai. Isso traz suspeitas sobre se de fato o seu ensasmo favorece uma manifestao livre do objetos do pensamento. O que parece que todos eles caem num sempre igual jogo dialtico, que os condiciona a aparecerem sempre de um mesmo modo peculiar. No parecem ento apresentar o novo. E diante dessa impresso possvel perguntar: o ensaios de Adorno seriam a realizao concreto de um pensamento livre?

    Martin Jay tentou salvar Adorno ao final de seu livro sobre ele mostrando que embora Adorno tenha sempre preconizado um pensamento livre, a exposio de seu pensamento no poderia se colocar fora de um mundo que ele diagnosticou como repetitivo e sempre igual. Como Adorno no se coloca fora do estado de coisas existente para pensar, no seria surpreendente que seu prprio pensamento revelasse traos desse existente. Os seus ensaios seriam ento sintomas que comprovam o diagnstico. Por outro lado, a contradio entre a preconizao de liberdade no pensamento e a realizao no livre do pensamento poderia no ser tomada como uma falha na filosofia adorniana. Pois se consideramos a afeio que Adorno tinha para as antinomias, ou a desafeio que ele nutria em relao unificao harmnica de momentos cindidos, a identificao total, ento a contradio no pode ser tomada como algo estranho em sua obra. Pois uma acusao de contradio interna s pode advir

    De todo modo, o seu radicalismo contra o positivismo, contra a indstria cultural, contra a filosofia acadmica, contra o status quo, acabou por tornar a viso de Adorno fechada para o que a lgica positiva poderia lhe oferecer em termos de crtica do conhecimento e da linguagem, para certas produes artsticas que embora fizessem parte de um circuito cultural industrial ainda manifestariam elementos que ele prezava como esteticamente relevantes;

  • 17

    tambm, acabou ofuscando o seu olhar para produes cientficas que talvez no se enquadrassem em sua concepo pejorativa de positivismo.

    A crtica do embotamento da conscincia pode tambm ento gerar um conscincia embotada. No caso de Adorno, a liberdade do pensamento no resulta na felicidade no pensamento, auferida atravs da manifestao livre do objeto. O que h em lugar disso um lamento por no ser a felicidade possvel para ns. Resta a negao, que Adorno concebia como prazer. O que Adorno faz o oposto de uma gaia cincia, que extrai a felicidade de um dizer sim. Ele parece incentivar com o seu elogio ao ensaio uma filosofia menos solene, mais descontrada, mas o que faz uma filosofia que s capaz de ser feliz na negao, no lamento.

    *

    O que quero ento desenvolver uma reflexo sobre a forma ensaio no interior mesmo da perspectiva adorniana sobre o ensaio. Por isso, levo em considerao inclusive os seus feitos ensasticos, j que neles transparece o que ele entendia por ensaio. E, desde j, devo advertir o leitor de que se trata de um exame crtico do pensamento de Adorno e no uma apologia de sua filosofia. O estudo pretende desdobrar desde o interior da prpria filosofia adorniana um olhar que traga tona o que est nela em jogo. De todo modo, tento no somente responder pergunta sobre a significao da defesa do ensaio para a filosofia adorniana, mas, mais do que isso, explicitar quanto a forma de exposio possui valor para o pensamento filosfico no atual estgio histrico em que se encontra.

    Observo que o trabalho possui basicamente dois movimentos: o de imergir nas reflexes de Adorno sobre a filosofia, bem como sobre a forma do ensaio, e o de emergir em uma apreciao de seu pensamento e de sua ensastica. Trata-se de movimentos complementares, atravs dos quais julgo ter encontrado uma maneira de pervadir um assunto que muito dificilmente se deixa dominar por uma abordagem mais sistemtica.

    Levando em conta os problemas a serem debatidos, resolvi dividir o estudo em seis captulos. No primeiro, depois da apresentao preliminar de noes fundamentais ao exame, exploro de modo geral a concepo adorniana de ensaio. Procuro mostrar a sua relao com a sua crtica do conceito, a forma elementar de sua crtica da filosofia, assim como as fontes primrias do desenvolvimento de sua noo de ensaio: o Lukcs de A Alma e as Formas e o Benjamin de Origem do Drama Barroco Alemo. No segundo captulo, reflito sobre a relao

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    entre o ensaio e uma determinada concepo de filosofia na qual se exige uma tomada de posio diante do estado de coisas existente. Alm disso, discuto alguns problemas relacionados ao estudo do ensaio no pensamento de Adorno e ao modo pelo qual a filosofia em sua obra problematizada Alm disso, apresento tambm alguns detalhes sobre a questo do empobrecimento da experincia nas sociedades industriais avanadas. No terceiro captulo, procuro esmiuar, a partir das reflexes de Adorno, o problema da liberdade do pensamento. Tento mostrar a maneira especfica pela qual a liberdade de pensar deve ser entendida no universo da filosofia adorniana. No quarto captulo, situo-me no interior das reflexes de Adorno sobre a filosofia, destacando desta vez suas consideraes sobre a crtica e a especulao como recursos reafirmadores da especificidade e da significncia da atividade filosfica. Procuro posicionar a filosofia adorniana em relao s correntes crticas de pensamento contra s quais seu trabalho se ergue explicitamente: o positivismo lgico e a ontologia fundamental. No quinto captulo, articulo uma anlise de O ensaio como forma. Algumas declaraes feitas em outras partes do estudo so agora retomadas e situadas mais precisamente com base no texto que condensa toda a posio de Adorno com relao ao ensaio. No sexto captulo, proponho uma avaliao crtica da ensastica defendida e praticada por Adorno. Busco nesta ltima parte do trabalho encaminhar uma anlise mais profunda sobre a preconizao de Adorno do ensaio como forma de exposio livre do pensamento filosfico, considerando criticamente tanto os fundamentos dessa preconizao quanto a sua prpria ensastica.

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    1 SOBRE O CONCEITO DE ENSAIO EM ADORNO 1.1 A concepo adorniana de ensaio

    possvel sintetizar de antemo, e provisoriamente, para efeito de orientao na leitura, o que Adorno entende por ensaio do seguinte modo: a) o ensaio uma forma de elaborao conceitual despojada da pretenso de se atingir o universal, o permanente ou o originrio; ou seja, uma forma de expor o pensamento cujo mpeto crtico e no terico-contemplativo da verdade; b) o ensaio uma forma de elaborao conceitual argumentativa na qual a preocupao com a exposio do objeto na linguagem se sobrepe ao problema da demonstrao emprica dos enunciados; c) ensaio uma forma de elaborao conceitual que se estrutura dialeticamente e que parte da experincia particular do sujeito que pensa, de modo que sua estruturao no se d por meio de elementos externos experincia do objeto, por meio de regras metdicas; nem toma, como meta do pensamento, a subsuno do particular em um esquema sistemtico fechado. O ensaio se arquiteta no esforo de autonomia do sujeito em relao s determinaes heternomas que pesam sobre ele.

    Em suma: o ensaio uma forma de elaborao conceitual que no prescinde do rigor, embora se subtraia exigncia de fundamentao ltima e de regras mtodicas pr-estabelecidas para sustentar suas declaraes.

    Esta sntese do conceito adorniano de ensaio se baseia no texto que pode ser considerado a maior referncia em relao ao assunto: O ensaio como forma, de 1958. Esse ensaio ser analisado com detalhes no captulo 5. Por ora, gostaria de refletir sobre a concepo adorniana de ensaio de modo mais livre, com o intuito de tornar visvel inicialmente a sua relao com o que Adorno entendia por filosofia primeira, por cincia e por arte. Isto porque o ensaio se situa no ponto intermedirio entre essas trs esferas, no sendo, no entanto, contribuinte de nenhuma delas. Ele seria, mais precisamente, o lugar prprio de realizao da filosofia enquanto crtica da filosofia primeira, que exige do ensasta servir-se dos resultados das cincias, interpretando-os, e exprimir o novo, valendo-se dos meios da arte. Com isso, pode-se dizer que no ensaio encontram-se qualidades que poderiam ser entendidas como qualidades de textos filosficos, porm somente na medida em que a filosofia concebida de uma maneira especfica, tal qual Adorno a concebeu: como atividade cujo interesse determinante a emancipao do pensamento.

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    1.2 O ensaio e a crtica do conceito

    O ensaio foi praticado e concebido por Adorno como elaborao conceitual que leva a srio a forma de exposio do pensamento. Ainda que no ensaio a forma de exposio seja tratada de maneira rigorosa, e por isso seja ele normalmente enquadrado como um gnero literrio, preciso, no entanto, que se considere sua forma como autnoma em relao sua descendncia da poesia. Pois o ensaio, de acordo com o ponto de vista de Adorno, apesar de possuir o aspecto de uma criao artstica por no desvalorizar o momento expressivo da elaborao conceitual e no supervalorizar a argumentao e a articulao lgica das proposies no se deixa restringir ao mbito das produes artsticas. Ele se subtrai classificao de forma artstica justamente por seu medium, os conceitos, e por sua pretenso verdade destituda de aparncia esttica6.

    No ensaio ainda est em jogo o esforo em conceituar, em ir alm da aparncia sensvel. H em seu exerccio a pretenso de conhecer atravs do conceito, o organon que para a filosofia insubstituvel. Assim, no ensaio o intento do pensamento terico no abandonado, embora ele se encontre intrinsecamente ligado crtica do conceito, a forma elementar atravs da qual, para Adorno, a crtica do conhecimento filosfico pode e deve se realizar.

    O pensamento ensaisticamente formulado ainda pretende apreender uma ordem na diversidade qualitativa do existente. S que essa ordem no pode se expor sob a forma de sistema fechado, como uma imagem total. Isso porque essa imagem no faria justia ao particular, quilo que escapa ao impulso identificante do conceito. O ensaio teria assim um compromisso de fazer justia ao particular. Por sua natureza, o conceito s fala do particular identificando-no numa dimenso universal. Por esse motivo, para Adorno, em funo de uma espcie de tica do conhecimento, ao ato de conceituar restaria permanentemente a tarefa de trazer tona aquilo que ele omite ao se realizar, o no-idntico. A residiria sua idoneidade, sua seriedade. Assim, um conhecimento filosfico srio tem a obrigao de refletir sobre seu procedimento conceitual, de realizar a crtica do conceito, e ao fazer isso ir necessariamente reconhecer o paradoxo em que se instala. Reconhecendo este paradoxo, ele no deve escamote-lo, de modo a se fazer valer, mas lidar com ele de alguma forma. A soluo oferecida por Adorno filosofia, diante da crtica do conceito, a forma do ensaio.

    6 ADORNO, op. cit., nota 1, p. 11.

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    Considerando essa crtica do conceito, sem a qual, segundo Adorno, o conhecimento filosfico no poderia pretender nada seriamente, a elaborao conceitual no pode se realizar pretendendo se apresentar como um ordenamento sem lacunas, como sistema fechado. Pois o sistema fechado, ou total, representaria o extremo da realizao do impulso identificante do conceito. Em contrapartida, o ensaio uma sada justamente porque sua ordenao proposicional refreia esse impulso, embora no o elimine, j que sem a identidade o conceito no nada. Por isso, a figura que representa bem o ensaio a da constelao, oposta figura do sistema fechado.

    No sistema fechado, o encadeamento das proposies feito por hipotaxe, por subordinao. As proposies recebem sua validade a partir de uma relao de dependncia hierrquica com as proposies precedentes, pelas modalidades lgicas da deduo e da induo. Ao mesmo tempo, nessa relao de subordinao se conectam a uma proposio fundamental, na qual se articulam como um todo. Quanto mais coeso o todo mais eficiente ter sido o sistema. Esse o seu critrio de sucesso. Nos ensaios, e sua lgica constelacional, ao contrrio, as proposies se associam por parataxe, por coordenao. Eles buscam uma organizao que crie uma imagem na qual o objeto possa aparecer sem ser sacrificado por regras de ordenao conceitual impostas pelo sujeito. O arranjo permite a configurao de uma imagem. As partes se sustentam umas nas outras sem que se recorra a um fundo abstrato. Trata-se da tessitura do pensamento em sua forma elementar, de sua elaborao no sentido mais espontneo possvel. O que, para Adorno, significava mais afastado de arbitrariedades.

    Com esse processo, para usar o vocabulrio adorniano inspirado muitas vezes no vocabulrio musical o que se tem como resultado so modelos, configuraes com alto grau de liberdade, a partir das quais os objetos do pensamento so tratados sob certos aspectos. Essas configuraes podem ser descritas como produtos de aes mimticas. Seria mais ou menos como um desenhista que cria um modelo a partir de um olhar sobre determinado objeto. O modelo no se identifica com o objeto, mas o mostra sob um aspecto, tornando-o visvel de um modo s possvel pelo modelo. Os modelos so ento como que interpretaes livres por seu comportamento mimtico. Opem-se ao comportamento diegtico, pautado por regras prprias parte das regras do objeto que se quer explicar. Na digese, o sujeito se coloca de maneira onipresente e representa o objeto identificando-o no quadro de um discurso cujas regras de eficincia so estabelecidas independentemente dos prprios objetos. As regras do bom discurso so dadas nesse caso seja o que for aquilo sobre o que se discursa. Segundo Adorno, essa auto-suficincia discursiva, essa primazia da coerncia interna, estranha ao ensaio. Por isso tambm ele seria desafeito ao mtodo em sua formulao

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    cartesiana, uma vez que este caminho seguro, pronto a ser aplicado a todos os casos, no importando o que lhe oferecido como objeto.

    E justamente essa desafeio ao mtodo o obriga a adotar ateno especial em relao forma. Pois a cada novo objeto, ou mesmo a cada nova abordagem de um objeto, uma nova forma deve ser esperada. E quem determina isso a prpria experincia particular do objeto. Por isso, tambm estranho aos ensaios o mpeto fundacionista ltimo, tpico da filosofia moderna: a busca por um primeiro, pela determinao do locus originrio do real. Ou seja, aquilo que unifica o real como um todo, que lhe d uma identidade total.

    A forma ensaio, portanto, determina a atitude do pensamento de querer sempre ir alm do conceito em direo ao conceituado. Ela quer expor no medium do ato de conceituar aspectos do particular excludos pela fora de generalizao que atrai naturalmente o pensamento. a exposio do pensamento que rejeita o impulso ao transcendental; rejeio que o torna eminentemente crtico em relao ideia de prima philosophia.

    Posicionando-se criticamente em relao filosofia como filosofia primeira o ensaio abre campo para a efetivao do pensamento filosfico sem a obstinao pelo fundamento ltimo. Assim, na defesa do ensaio no h o abandono do conceito de teoria, nem de discurso argumentativo, mas apenas da necessidade de se recorrer a uma fundamentao ltima.

    Justamente por isso no possvel circunscrever o ensaio meramente ao campo da produo artstica apenas porque se preocupa seriamente com a forma de apresentao do pensamento. A preocupao com a forma se deve a uma preocupao com o contedo no interior da teoria. Preocupao que se torna sria ao se estabelecer uma crtica do conceito.

    1.3 O ensaio e a expresso artstica

    O pensamento ento, ao se articular como ensaio, parece sempre reconhecer que a

    forma de exposio, como nas produes artsticas, no constitui uma dimenso secundria. Os ensastas sempre admitem de antemo que somente exposto adequadamente na linguagem um pensamento pode se consumar. No h pensamento conceitual sem que este esteja expresso, de alguma forma, no medium da linguagem. O momento expressivo do pensamento, o como, no tomado como mero acessrio ao contedo, que existiria dele separado, mas um momento decisivo de sua constituio. A forma de exposio vivifica o contedo de um pensamento, uma vez que s de uma determinada maneira na linguagem. Isso explica porque uma alterao na forma de expresso altera o contedo e porque em sua problematizao, ao lado de uma questo epistemolgica, h tambm uma questo esttica. O

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    ensaio, at certo ponto, revela problemas comuns com a produo potica. Pois em um poema, por exemplo, a mera substituio de uma palavra, mesmo por um sinnimo, capaz de alterar seu contedo significativo. Na poesia em geral, a parte determina o todo, uma vez que forma e contedo so nele indissociveis. Embora, claro, tenha existido na histria das formas de expresso artstica sempre a tendncia histrica de fixao e purificao de formas de configurao, que transcendem os contedos. Tal seria o caso do soneto na poesia, que no sculo XIII acabou se consagrando como uma forma superior de expresso potica. Mas mesmo no caso do soneto, apesar das regras preestabelecidas, o valor semntico do todo ainda determinado pela composio sinttica dos versos e pelas palavras que neles aparecem. A imagem produzida pelo poema depende decisivamente das cores utilizadas, atreladas s palavras, que ainda esto isentas das regras estabelecidas para a mtrica. A arquitetnica mtrica no afeta a expresso e o que determina a expresso ainda a escolha de palavras e sua ordenao sinttica.

    Isso, no entanto, no equivale ao mtodo puro na filosofia. Pois na filosofia a supervalorizao da arquitetnica conceitual em termos puros, o que se deu com a preocupao com o mtodo e a obteno da certeza, parece afetar diretamente a expresso. Pois quanto mais macia a arquitetnica a garantia da certeza quanto mais rgida a elaborao conceitual, menos a expresso do particular tem vez. O que a arquitetnica rgida viabiliza antes a primazia da forma do sujeito que conceitua, negligenciando, por sua vez, aquilo que no conceituado escapa ao conceito. Adorno no via no procedimento metodicamente regulado propriamente um ganho de conscincia sobre as coisas, mas apenas uma conscincia acalantada pela sensao de ter posto as coisas sob certo controle. Por isso o ensaio pode ser denominado anti-metdo. Ele recusa a segurana porque recusa ter controle sobre o que expressa.

    1.4 O ensaio, o mtodo e o novo

    Assim, mesmo que lhe seja inerente a exigncia de conceituar, identificar e fundamentar, o ensaio no se enquadra comodamente no mbito dos discursos cientficos. Ele no se alinha aos discursos das cincias particulares, no-especulativas, cujas proposies necessitam de demonstrao emprica (o que requer sempre algum mtodo de fundamentao, um encaminhamento de proposies de tipo probatrio). O ensaio no impelido pela necessidade de demonstrar, mas antes de expor; de fazer ver alguma coisa sob uma

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    perspectiva nova. Nisso Adorno concordava plenamente com Max Bense7, que via na imaginao, mais especificamente na capacidade de criar novas configuraes para os objetos do pensamento, e com isso novos objetos, a maior qualidade dos ensastas.

    Como se origina de uma perspectiva j dada, de criaes do esprito, e no do que mais primordial, no sentido de originrio, o ensaio no precisa, em princpio, refletir previamente sobre a conduta do pensamento nele expresso de modo a certificar-se de seus passos em direo verdade. H autorreflexo, mas esta se encontra determinada a corrigir o mpeto do pensamento transcendncia, que exigiria como expediente a orientao regulatria no encaminhamento das proposies. Como procede do j formado, no sentido de reelabor-lo, como impelido por obras do esprito, ele no precisa de um caminho artificialmente planejado, mas deve seguir o curso estipulado por seus objetos, tal como lhe so dados segundo o prprio tratamento que lhes dispensam. Sobre os objetos, no considerados mais como meros exemplos de categorias universais, o pensamento, ensaisticamente articulado e exposto, se v obrigado a dizer aquilo que no se deixar dizer por conceitos j definidos abstratamente; isto , aquilo que determina o ser de um dado particular, mas que no encontra expresso nas estruturas conceituais dadas.

    Seguindo essa convico, possvel a Adorno afirmar que os ensastas, pelo menos os prezados por ele, sempre se orientam pelos objetos do pensamento. Eles no buscam a descoberta de sentidos preexistentes ao estado de coisas existente, mas, partindo do existente, provocam a produo de novos sentidos, que se chocam com os j existentes. E fazem isso atravs da elaborao de novos contedos, que florescem mediante suas sempre novas configuraes. O ensaio assim, tal como concebido por Adorno, uma maneira de dar vida a novos contedos, para alm daqueles j formados objetivamente na linguagem. E tal como Adorno declara em O ensaio como forma: o objeto do ensaio (...) o novo como novo, no aquilo que pode ser traduzido ao antigo das formas estabelecidas8. O novo ento se ope para ele, ao originrio, ao primeiro. O decisivo nos ensaios no , portanto, o objeto de que parte e sobre o qual se pronuncia, mas o objeto que ele pronuncia, que verbaliza, ao qual d vida atravs da forma de exposio.

    preciso dizer tambm que mesmo que no sejam os ensaios prescritos por normas metodolgicas rgidas, eles no prescindem do rigor metdico. Este se volta para a escolha de

    7 BENSE, Max. ber den Essay und seine Prosa (1952). In: ROHNER, L. (Org.). Deutsche Essays. Mnchen: Deutscher

    Taschenbuch Verlag, 1972.

    8 ADORNO, op. cit., nota 6, p. 31.

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    palavras, no melhor arranjo lingustico, na busca pela melhor forma, na criao da melhor imagem capaz de sensibilizar o sujeito para aquilo que as composies j existentes do pensamento ainda no conseguiram. Christian Schrf diz o seguinte sobre o ensaio adorniano: poderamos chamar ele de modo de escritura do no-idntico, expresso que, ao mesmo tempo, explica porque no ensaio a maneira e o arranjo da exposio mais importante do que a coisa da qual ele trata9. nesse sentido que Adorno afirma que o ensaio procede sempre metodicamente sem mtodo [methodisch unmethodisch]10. No ensasmo, h antes uma preocupao com o momento expressivo da linguagem, a maneira de dar vida ao discurso, do que com a demonstrao emprica do que dito. Como se viu, a conduta metdica nele sempre empreendida com vistas expresso, com a exposio do no-idntico e no com a asseverao de certeza ao que dito.

    Neste ponto, creio que devo explicitar de maneira mais detida as fontes que permitiram a Adorno estabelecer sua crtica do pensamento sistematizador e metdico, instigaram-no a se preocupar com a forma de exposio e interessar-se pelo ensaio como forma. Assim sendo, terei de falar da influncia de duas figuras decisivas para Adorno: o jovem Lukcs e seu amigo Walter Benjamin.

    Do jovem Lukcs, autor de Sobre a essncia e a forma do ensaio. Uma carta a Leo Popper, de 1911, Adorno herdou diretamente a problematizao do ensaio como forma. Lukcs escreveu este ensaio epistolar como uma reflexo sobre a forma de seus textos sobre literatura compilados em A Alma e as Formas. Ele de fato valorizava o ensaio como forma de expresso, embora no soubesse exatamente como situ-lo frente filosofia, s cincias e s artes. E isso o levou a postular o ensaio, precipitadamente segundo Adorno, como uma forma de arte. Mais de 40 anos depois, o esforo de Adorno ao refletir sobre o ensaio foi o de estabelecer mais claramente essa situao. E o que queria era livrar o ensaio de estigmas que carregava entre os intelectuais de lngua alem, atravs de uma nova apreenso das prprias reflexes de Lukcs. De Benjamin, Adorno herdou a crtica da totalidade, do sistema, juntamente com a valorizao da figura do mosaico, descontnua e fragmentria, como modelar para a elaborao conceitual da filosofia. Os primeiros escritos benjaminianos legaram a Adorno a ideia de filosofia como criao a partir do objeto, como imerso no particular, e no como estabelecimento de identidade pelo sujeito. Com isso, assimilou tambm a noo de que os resultados do pensamento filosfico so sempre abertos.

    9 SCHRF, Christian. Geschichte des Essays: von Montaigne bis Adorno. Gttingen: Vandenhoeck und

    Ruprecht, 1999, p. 274.

    10 ADORNO, op. cit., nota 8, p. 21.

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    1.5 Lukcs e a essncia do ensaio

    Quando Lukcs compreendeu o ensaio como uma forma de arte em seu Sobre a essncia e a forma do ensaio, ele estava convencido de que a fora expressiva dos ensaios, da crtica, privilegiaria a experincia verdadeira em relao revelao da verdade.

    Se eu aqui, porm, falo do ensaio como uma forma de arte, assim o fao em nome da ordem (embora quase que de modo puramente simblico e no especfico); somente a partir do sentimento de que ele tem uma forma que o separa com leis severas e definitivas de todas as outras formas de arte.11

    Como Lukcs, Adorno quis tambm chamar a ateno para o que est em jogo na opo pela exposio ensastica e como ela no seria um mero exerccio sem razo. Porm,

    enquanto Lukcs tenta determinar a essncia do ensaio atravs de uma autorreflexo sobre sua crtica esttica, Adorno tenta determinar o ensaio como forma possvel de realizao da filosofia, ou do que ele acreditava dever ser a filosofia.

    Lukcs declara, prximo ao que Adorno ir afirmar posteriormente, que o ensaio debate as questes ltimas da vida, mas sempre partindo de imagens e textos especficos, se inserindo nas pequenas realidades. No visa atingir a verdade preexistente, como algo puro, mas aspira uma configurao verdadeira do novo. Para Lukcs, como as partes dos ensaios teriam valor para sua totalidade, e no poderiam ser meramente extirpadas e valorizadas fora do contexto em que foram geradas, tudo no ensaio tende a uma unidade esttica inusitada, original, embora no originria. Essa unidade quer oferecer uma viso de mundo capaz de dar coerncia a uma cultura. No se trata assim de persuadir o leitor de um ponto de vista contra outro ponto de vista. O ensasta j considera todos persuadidos da narrativa na qual sua existncia contada. O ensasta atualiza aquilo de que todos j esto persuadidos. Os ensaios expressam assim necessariamente

    uma tomada de posio originria e profunda em relao totalidade da vida, uma categoria ltima, no mais supervel, acerca das possibilidades dos acontecimentos. Eles no carecem, portanto, de uma mera satisfao, que seriam capazes de cumprir, mas tambm de uma configurao, que eles libertam e salvam aos valores eternos sua mais caracterstica e daqui em diante indivisvel essencialidade. Essa configurao o ensaio traz consigo.12

    Adorno tambm toma emprestada de Lukcs a ideia de que o ensaio nunca comea do zero e assim evita o acordo com o todo dado. Segundo Lukcs:

    11 LUKCS, Georg. ber Wesen und Form des Essays: Ein Brief an Leo Popper. In: ______. Die Seele und die Formen.

    Berlin: Luchterland, 1971, p. 28.

    12 Ibid. p. 46-47.

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    O ensaio fala sempre de algo j preformado, ou, no melhor dos casos, de algo j alguma vez dado; pertence sua essncia, portanto, que ele no extraia coisas novas de um nada vazio, mas simplesmente das coisas que j em algum lugar foram vivas, ordenando-as como algo novo. E porque ele as ordena somente como algo novo, no formando o novo do sem-forma, permanece ele tambm a elas submetido, precisa sempre se pronunciar acerca da verdade sobre elas, encontrar expresso para a sua essncia. Talvez a diferena possa ser formulada de maneira sucinta do seguinte modo: a poesia toma da vida (e da arte) os seus motivos; o ensaio serve arte (e vida) como modelo.13

    A distino que Lukcs faz do ensaio em relao produo potica acaba colocando o ensaio de maneira mais bem assentada no campo da arte. Isso se ratifica quando ele compara o ensaio pintura de retratos. A postura que se deve ter em relao ao ensaio a mesma que devemos ter em relao a um retrato, o que tambm poderia ser entendido como modelo. No ensaio no possvel colocar o problema da semelhana, da conformidade do dizer com o dito, da adequao, como no caso do retratado e do retrato. O valor de um retrato no est na semelhana. O retrato no aspira verdade, no sentido de exata correspondncia, ele configura uma imagem unitria de um objeto. Sob esta perspectiva que o ensaio sugere ser uma forma de arte.

    preciso dizer tambm que Lukcs no trata do ensaio apenas como o escrito sobre arte. Ensaio seria, para ele, todo escrito que exterioriza as condies particulares da vida humana. O ensaio sobre arte seria um meio de expresso tpico para isso, mas, de todo modo, haveria aqueles escritos que desempenham essa funo, ainda que no entrem em contato com a literatura e a arte. E, de acordo com ele, esses ensaios seriam inclusive superiores aos ensaios sobre arte, na medida em que transcendem deliberadamente uma mera anlise particular. Assim ele se refere aos ensaios filosficos, onde as questes da vida so levantadas sem que se parta necessariamente de um comentrio sobre arte.

    Como naqueles textos que se autodenominam crticos, somente se autoajustaram s questes imediatas da vida; eles no precisam de nenhuma mediao da literatura ou da arte. E justamente os textos dos maiores ensastas correspondem a esse tal modo: os Dilogos de Plato e os textos dos msticos, os Ensaios de Montaigne e as pginas imaginrias dos dirios e novelas de Kierkegaard14.

    O ensasmo filosfico se refere ento vida sem necessariamente ser um escrito sobre arte. Para dizer isto Lukcs parte evidentemente de uma determinada concepo corrente de ensaio, segundo a qual ele se confunde com a crtica de arte. Mas nessa concepo de ensasmo filosfico ele abre no mbito da lngua alem a possibilidade de o ensaio ser visto como mais do que uma forma da crtica de arte, forma a qual ele foi relegado, e no adotado,

    13 Ibid. p. 48.

    14 Ibid. p. 30.

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    pela predominncia do esprito de sistema. Lukcs o v como a forma em geral da crtica. No entanto, preocupado com a unidade das ideias dispostas em ensaios, bem como com a sua credibilidade e com a seriedade, ele insiste em tratar a crtica realizada nos ensaios como uma forma de arte. O ensaio uma forma de arte, uma configurao prpria sem resduos de algo especfico: a vida em sua totalidade15. E mais:

    s agora no soou contraditrio, ambguo e aportico nome-lo como obra de arte; e assim continuo a salient-lo como um produto distinto da arte: ele se situa na vida com os mesmos gestos das obras de arte, porm somente os gestos que so equivalentes ao que pode a soberania dessa tomada de posio, seno no h entre eles qualquer contato.16

    A estaria o ponto de discrdia de Adorno em relao posio de Lukcs. Embora Adorno considerasse as obras de arte autnticas como capazes de abrir espao para a crtica do existente, ele no considerava os ensaios como formas de arte. Os ensaios teriam compromisso com os conceitos, o seu meio especfico, e com a pretenso de verdade desvencilhada de aparncia esttica. No poderiam assim ficar assentados adequadamente no campo da produo artstica. Ocupariam um lugar autnomo e exatamente nesse sentido seriam afeioados com o pensamento filosfico; especialmente com os feitos crticos da filosofia.

    Adorno evita classificar o ensaio como forma de arte porque a sua configurao ensastica ainda visa o desmonte de uma determinada imagem mtica do mundo. O ensaio negativo. Nele ainda deve haver uma tenso entre forma e contedo, entre pensamento e pensado, entre ordem conceitual e ordem das coisas. Nesse sentido, a despeito de Lukcs, o pensamento filosfico sob a forma de ensaios no se coloca fora do mbito terico, conseguindo promover uma unio plena entre forma e contedo, prescindindo assim da especulao (da no-adeso aos fatos). Pois isto significaria o fim da tenso entre sujeito e objeto, e assim embotamento da capacidade crtica. Lukcs considerava o ensaio como a forma prpria da crtica, e assim da reflexo sobre as produes do esprito: obras de arte, textos literrios ou filosficos, composies musicais. O problema para Adorno que o fato de o escrito sobre arte repousar sobre leis muito particulares, as leis particulares de seus objetos, no autoriza a afirmarmos que eles prprios, por se assentarem em leis estritas, demandando uma leitura especfica, sejam obras de arte. O pensamento conceitual tem a obrigao de representar a causa da mimese que ele mesmo suplanta, apropriando-se de algo

    15 Ibid. p. 47.

    16 Ibid. p. 47.

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    desta em seu prprio comportamento, sem deixar corromper-se por ela17. Mas no deve imaginar-se capaz de mediante emprstimos da poesia, poder abolir o pensamento objetivante e sua histria, expressar na terminologia habitual como anttese entre sujeito e objeto18.

    Por isso Adorno entende que o elemento esttico crucial para a filosofia, embora ela no deva recair em um esteticismo; por exemplo, na noo neo-ontolgica de uma fala ancestral19, potica, capaz de transcender a linguagem para alm das obrigaes do pensamento conceitual. O poder de expresso pela linguagem que a filosofia detm se avizinha ao poder que a expresso artstica tem em relao s suas solues de linguagem (cromtica, sonora etc.).

    O que Adorno quer dizer, em ltima instncia, que a filosofia no pode aspirar ser bem-realizada por sua mera forma, uma vez que o discurso filosfico, por ser crtico em sua essncia, deve, por meio de conceitos, ir alm da aparncia imediata. O que a filosofia deve reconhecer na arte sua capacidade de se apropriar da tcnica e da cincia, sem deixar que estas se tornem nela totais. S assim ela ganha fora expressiva, contra o emudecimento e a reificao da teoria, enquanto refm da cincia e da tcnica.

    Tornando-se a tcnica um absoluto na obra de arte; tornando-se a construo nela total, suprimindo a expresso, que seu motivo e seu oposto; pretendendo a arte se tornar imediatamente cincia, adequando-se aos seus parmetros, ento ela sanciona a manipulao pr-artstica da matria, carente de sentido tanto quanto o Ser dos seminrios filosficos, irmanando-se com a reificao, cujo protesto em contrrio, ainda que mudo e coisificado, foi, e ainda continua a ser hoje, a funo do que no tem funo, a funo da arte20.

    1.6 Benjamin e a crtica do sistema

    Em suas Questes introdutrias de crtica do conhecimento21, Benjamin chama a ateno para um desafio que se pe a todo texto filosfico: a questo da forma de exposio. O simples pensamento de um sujeito no possui o poder de doutrina, de conferir a si mesmo autoridade. Ele no se apresenta como lei a ser admitida obrigatoriamente a no ser que seja estipulado sob a forma de doutrina; ou seja, a no ser que seja estruturado de maneira que se autoconferir autoridade. E o que pode dar a ele o poder de autoridade a sua forma acabada, o

    17 Ibid. p. 13.

    18 Ibid. p. 13.

    19 Ibid. p. 14.

    20 Ibid. p. 14.

    21 Introduo de Origem do drama barroco alemo.

  • 30

    seu aspecto de lei inevitvel. Por sua vez, segundo Benjamin, esse aspecto advm predominantemente de um tipo de recurso: da demonstrao matemtica, bem como de seus instrumentos coercitivos.

    A ordenao matemtica dos pensamentos, o pensar conforme um mtodo autrquico capaz de conferir autoridade s proposies, se tornou importante para o pensamento filosfico na medida que prometeu isentar o pensamento do problema da exposio. Mediante o mtodo autrquico, o pensamento no precisa, a cada vez que se defronta com o tratamento de um objeto, se ocupar com o como da exposio. O modo matemtico prometeria como telos uma forma eficaz de conferir autoridade ao sujeito que pensa. Porm, no exatamente viabilizaria a exposio da verdade. Com isso a noo de mtodo como caminho seguro a uma posio acerca do objetivo se sobrepe noo de mtodo como maneira de expor algo sob uma forma nova. Para Benjamin, a aceitao moderna da promessa gerada pela ideia de mtodo autrquico e de sistema implicou a renncia quela esfera da verdade visada pela linguagem22. Ele supe que por trs do conceito de sistema esteja a vontade de ter uma palavra final autorizada sobre o que deve ser tomado como verdadeiro. O sistema franquearia ao sujeito um caminho direto verdade, sem desvios e incertezas, mas apenas disponibilizando os objetos conforme o seu prprio arbtrio. A tarefa da filosofia seria, no entanto, mais do que pr os objetos dados em uma determinada ordem sistemtica; o que seria possvel para a filosofia na medida em que ela seja capaz de determinar as condies de possibilidade do conhecimento humano. O que ela deve fazer criar as condies para a exposio da verdade: o que seria viabilizado pela suspenso da vontade do sujeito do conhecimento em liquidar a questo oferecendo uma demonstrao infalvel de posse da coisa.

    Ao ser desmascarada a pretenso de sistema como arbitrariedade, se faz necessrio automaticamente retomar seriamente o problema da forma de exposio. O conceito de sistema, como forma acabada a ser buscada por um pensamento metodologicamente encaminhado, obscureceu a ideia de que a forma de exposio decisiva ao pensamento filosfico em seu esforo de mostrar as prprias coisas de maneira no-arbitrria. Na medida em que a filosofia determinada por esse conceito de sistema, ela corre o perigo de acomodar-se num sincretismo que tenta capturar a verdade numa rede estendida entre vrios tipos de conhecimento, como se a verdade voasse de fora para dentro23. A filosofia deve

    22 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemo. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 49.

    23 Ibid. p. 50.

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    ensinar os sujeitos a verem por si aquilo que no se mostra espontaneamente; no estabelecer as condies definitivas a partir das quais as coisas devem ser vistas. Por isso, o pensamento filosfico deve sempre atentar para a sua forma de exposio, no deve estipul-la antes de agir.

    Benjamin constata em suas Questes introdutrias que na histria da filosofia toda vez que algum percebeu o ser da verdade como indefinvel eternamente, houve uma retomada da preocupao com o exerccio da forma de exposio. Nesses momentos, a filosofia tendeu sempre a assumir o aspecto de uma propedutica, de um conhecimento que tateia, que agua a percepo. Os tratados escolsticos seriam exemplares em relao a isso. Eles sempre aludem aos objetos concretos, sem os quais o conceito de verdade seria impensvel.

    Os tratados podem ser didticos no tom, mas em sua estrutura interna no tem validade obrigatria de um ensino, capaz de ser obedecido, como a doutrina, por sua prpria autoridade. Os tratados no recorrem, tampouco, aos instrumentos coercitivos da demonstrao matemtica. Em sua forma cannica, s contem um nico elemento de inteno didtica, mais voltada para a educao que para o ensinamento: a citao autorizada.24

    A atitude do tratadista para Benjamin equivale atitude do ensasta em Adorno, embora Benjamin no reconhea o parentesco entre o tratado e o ensaio. Para Benjamin, a quintessncia do discurso do tratado escolstico o acompanhamento da verdade em sua autoexposio. Mais ou menos como ocorre nos dilogos platnicos25, aos quais Benjamin presta certa reverncia, embora claramente rejeite a concepo da verdade como ideia supra-sensvel. Como observou Jeanne-Marie Gagnebin em seu artigo sobre o conceito de Darstellung em Walter Benjamin, em Origem do Drama Barroco alemo h um esforo de se desligar da hierarquia ontolgica tradicional que estabelece a subsuno do sensvel ao inteligvel, ou do aparecer ao ser. Em Benjamin, a verdade no pode realmente existir sem se apresentar, se mostrar e, portanto, aparecer na histria e na linguagem26. Segundo ela, como em Plato, Benjamin toma conscincia das deficincias da linguagem filosfica e busca descobrir, a partir disso, sua possvel fora: ao rastrear incansavelmente os diversos caminhos e descaminhos da exposio da verdade, a filosofia desenha as figuras conceituais possveis nas quais a verdade se d a ver e a entender como a arte o faz na figurao

    24 Ibid. p. 50.

    25 Quanto a Plato, vale dizer que Lukcs o considerava o mais antigo ancestral dos ensastas.

    26 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza. Belo Horizonte:

    UFMG, 2005, p. 190.

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    sensvel27. Como uma arte, a filosofia se v sempre diante da necessidade de elaborar formas lingusticas capazes de fazer aparecer, mesmo que de maneira fugaz, a verdade imanente ao sensvel e ao tempo.

    O que seria ento a natureza bsica de composio do tratado vista como a forma mais autntica de realizao do pensamento filosfico. Pois, nesse caso, seu movimento no fica dirigido intencionalmente a algo onde pode repousar. Pelo contrrio:

    incansvel, o pensamento comea sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, s prprias coisas. Esse flego infatigvel a mais autntica forma de ser da contemplao. Pois ao considerar um mesmo objeto nos vrios estratos de sua significao, ela recebe ao mesmo tempo um estmulo para o recomeo perptuo e uma justificao para a intermitncia do seu ritmo.28

    Benjamin defende assim uma maneira de expor o pensamento que no teme ser fragmentria. Tal maneira no se importa com as exigncias e pretenses do pensamento moderno, sobretudo com a preocupao em relao a unidade sem lacunas, a unidade sistemtica. Benjamin se sente vontade com o comportamento do pensamento medieval e defende isso. O seu trabalho sobre o drama barroco, amparado por sua reflexo sobre o conhecimento, se justifica perante qualquer crtica sobre sua descontinuidade e seu jogo de justaposio de elementos isolados, de pensamentos parciais e heterogneos. Para Benjamin, seu estudo deve ser visto como um mosaico medieval, que na fragmentao caprichosa de suas partculas, no perde sua majestade29. O valor de cada fragmento de pensamento no est na sua relao com alguma concepo primeira, mas no quanto eles revelam algum

    contedo de verdade, sendo resultados de aprofundamentos nos elementos singulares do contedo. A relao entre o trabalho microscpico e a grandeza do todo plstico e intelectual demonstra que o contedo de verdade s pode ser captado pela mais exata das imerses nos pormenores do contedo material30.

    A figura do mosaico exaltada por Benjamin, assim como a sua crtica unidade sistemtica pretendida pelo pensamento moderno, so retomadas por Adorno em sua defesa do ensaio. O ensaio visto por Adorno tambm como configurao a partir de elementos descontnuos e que se ope pretenso de unidade a partir da identidade instituda pelo sujeito. No entanto, sua reflexo sobre a forma de exposio do pensamento no possui o

    27 Ibid. p. 190.

    28 BENJAMIN, op. cit., nota 22, p. 50.

    29 Ibid. p. 50/51.

    30 Ibid. p. 51.

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    alcance que ter em Adorno. Benjamin observa a incompatibilidade da pretenso de sistema com as suas intenes de compreender formas particulares de manifestao do esprito, tal como era o caso do drama barroco. Para Adorno, a reflexo sobre a forma de exposio seria um momento crucial para a existncia da filosofia, sobretudo porque a crtica do conceito da qual a filosofia no poderia se esquivar possuiria implicaes diretas ao problema da forma. E a forma se torna crucial para a filosofia com relao ao problema de sua existncia livre de coaes. Isso marca a diferena em relao a Benjamin no modo pelo qual Adorno problematiza a forma de exposio do pensamento. Benjamin foi impelido pelo problema da exposio da verdade, ao passo que Adorno esteve sempre motivado pelo problema do pensar sem coaes, o pensar livre.

    No captulo 3 examinarei a conexo entre ensaio e liberdade de pensamento filosfico. Antes, porm, no captulo 2, gostaria de discorrer sobre o olhar de Adorno em relao situao histrica problemtica da filosofia e de que maneira a questo do ensaio pode ser da deduzida.

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    2 A FILOSOFIA COMO PROBLEMA E O ENSAIO 2.1 Ensaio, filosofia e materialismo

    Como vimos, a posio refratria em relao pretenso de sistema herdada de Benjamin se aliou em Adorno ao elogio e defesa do ensaio, herdadas de Lukcs. O ensaio acaba se apresentando assim como a atitude emblemtica contra a pretenso de sistema na filosofia.

    Essa oposio entre ensaio e sistema, no entanto, no se deu em Adorno em um plano abstrato. O embate era para ele claro, mas somente ao ser visto em contraposio a um pano de fundo cultural determinado. E a justificativa para uma defesa do ensaio e um ataque pretenso de sistema no deve levar em considerao apenas dilemas epistemolgicos e estticos, mas tambm histricos. Se Adorno no apostou em uma forma de exposio pr-moderna contra o sistema tal como o tratado escolstico porque, para ele, a articulao adequada ao pensamento filosfico deveria emergir de dentro de sua prpria poca histrica. A articulao do pensamento deveria ser impulsionada pela experincia do presente. Caso contrrio, o pensamento filosfico se configuraria como mera contemplao abstrata, como discurso vazio, o que seria contraditrio com a sua prpria histria e seu prprio conceito.

    Curiosamente o tratado escolstico fez sentido em uma poca histrica fechada e dogmtica como o final da Idade Mdia, ao passo que os ensaios de Montaigne pareciam se justificar em uma poca de abertura, de experimentao, de conscincia histrica nova, de produo de uma nova imagem para a natureza; tal era o caso do perodo final do Renascimento. Os ensaios montaignianos surgem do impulso em pesar e avaliar livremente os costumes, crenas, instituies; de ensaiar o seu valor. Alis, a palavra ensaio vem de exagium (avaliar o valor das moedas), a prtica de descobrir o que tem valor nos objetos. No caso dos ensaios de Montaigne, a anlise do valor das idias e dos juzos. As condies histricas novas tornaram possvel o surgimento do ensasmo como exerccio legtimo. E os Ensaios espelham uma atitude subjacente ao Renascimento: o antidogmatismo, o criticismo, a ousadia, o naturalismo, o individualismo, o universalismo e o otimismo da modernidade nascente31.

    Porm, o mundo no qual Adorno defende o ensaio como forma adequada ao pensamento filosfico visto por ele de modo completamente diferente do modo como

    31 LIMA, Slvio. Ensaio sobre a essncia do ensaio. Coimbra: Armnio Amado Ed., 1964, p. 32.

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    Montaigne via o seu mundo. A realidade social que enxerga se formando no sculo XX aparece mais ou menos como uma nova Idade Mdia para os indivduos.

    Enquanto em Montaigne o ensaio nasce da disputa espontnea e concentrada do sujeito consigo no plano do mundo da vida, para Adorno ele se converte em um monumento da abstrao. Ou seja, se converte em uma forma ideal, que nunca alcanada, tambm em um descuido da histria, que no mais pode ser recuperada. O ensaio representa a esperana de atravs da faculdade de juzo subjetiva, apoiada na auto-emancipao do pensamento em relao violncia dos sistemas das religies e da ideologia, e finalmente da violncia de uma modernidade que submete o homem a uma gama de coaes, que j se sabe mais denominar.32

    No mundo administrado, em que a vida passa a ser inteiramente regulada pela cincia e pela tcnica, em que as condies vitais passam a ser racionalizadas de maneira total e sistemtica, o indivduo tende a perder a sua autonomia, o seu significado como indivduo. O que posto de lado junto com isso a liberdade de crtica, de experimentao, de criao de novas imagens para o real. Ou seja, a possibilidade de transformao do real pelos meios do prprio indivduo.

    Contudo, esse mundo administrado, um mundo tendente ao fechamento e a sistematizao, no qual o ensaio seria anacrnico como forma de articulao do pensamento, , para Adorno, justamente um mundo que carece de uma forma de exposio e articulao livre do pensamento. Pois ela seria capaz de criar um refgio de autonomia e de capacidade crtica em uma condio histrica que suprime a autonomia. No seu anacronismo que o ensaio parece ser mais adequado exposio e articulao do pensamento, j que no viabiliza meramente uma teoria bem-sucedida, mas um pensamento consequente tambm em relao ao estado de coisas existente. O ensaio permite com que o pensamento tome como referncia o mundo que lhe serve de base, ainda que se posicione nele de um modo negativo. Sua postura em relao ao mundo parece considerar o mundo como se ele oferecesse liberdade de esprito. Por isso Adorno associa o comportamento do ensasta ao comportamento de uma criana. Ele atua como se no entendesse o mundo tal como ele existe e justamente assim o ensaio se contrape ao estado de coisas existente. Ele concebe anacronicamente o existente de uma maneira negativa. E s assim se credencia a realizar uma crtica do existente, uma vez que apresenta atravs de seu comportamento a uma imagem transfigurada do existente, a partir da qual o existente pode ser criticado. Assim, como observou Schrf, Adorno enxerga no ensaio um potencial utpico, ainda que ele o explicite de uma maneira muito cautelosa.

    32 SCHRF, op. cit., nota 9, p. 276.

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    Tambm Adorno chama a ateno para o potencial utpico do ensaio, embora somente de maneira muito cautelosa, no sentido do prprio processo do pensamento e no de sua instrumentalizao em prol da utopia. Assim resplandece, tal como proporciona O ensaio como forma, a ltima perspectiva pensvel sobre a utopia. Isso notvel. Particularmente porque o ensaio e o ensasmo, desde o Romantismo, tm sido confrontado continuamente com o conceito de utopia.33

    Com essa perspectiva sobre o ensaio, Adorno se mostra ento desligado de uma tradio ensastica romntica, qual Benjamin estaria mais prximo. Ao mesmo tempo, parece ratificar a precedncia da crtica do conhecimento formulada pelo materialismo histrico em seu pensamento. De fato, ele leva adiante o gesto de Marx e Engels na formulao de uma filosofia historico-materialista, s que mais concentrado na questo de sua realizao formal. Assim, ele vislumbra no ensaio uma forma adequada a essa filosofia. Na forma do ensaio, tanto quanto no contedo da crtica materialista, subjaz implcito o interesse pela transformao do real. A prtica ensastica, tal como materialismo de Marx e Engels, supe a prtica como fonte da teoria, assim como a teoria como guia da prtica. Por conta disso, no ensaio a elaborao conceitual no tomada como mera contemplao da realidade, mas como possvel fora motora da histria. Pois, como j se viu, o ensaio no serve a nenhuma teoria meramente contemplativa. Por outro lado, parece inteiramente favorvel ao pensamento crtico e desmistificador. Nesse sentido, se mostra como modo conveniente de pensar o real, j que adequado, negativamente, s condies reais dadas, exigentes de uma atitude crtica. Ele opera em favor de um potencial utpico, ainda que no estabelea um topos definido.

    Na formulao do materialismo histrico, particularmente em A Ideologia Alem, Marx e Engels assumem uma posio contra o mundo burgus alemo e suas representaes. Eles querem criar uma perspectiva sobre o pensamento terico que comeou a se desenhar perante a decomposio do sistema hegeliano, o que eles entendiam por ideologia alem, de modo o torn-lo desacreditado como revolucionrio. O que Marx e Engels esperavam era mostrar como o pensamento supostamente crtico e eles tinham em mente os irmos Bauer,

    Strauss, Stirner, etc. no teria sido crtico o suficiente, de modo que, em lugar de superar, acabou mistificando elementos do sistema hegeliano. Ao invs de revolucionrio, o pensamento dos jovens hegelianos, seria altamente conservador. Segundo Marx e Engels, eles haviam apenas substitudo uma fraseologia por outra. Combatia-se fraseologia terica dominante de uma poca, mas esse combate no se estendia ao mundo que existe

    33 Ibid. p. 275.

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    realmente34. No se colocava a pergunta sobre a ligao entre a filosofia alem e a realidade alem. Assim, Marx e Engels queriam chamar a ateno para o que eles entendiam como as reais bases das ideias, das representaes e da conscincia humana: a atividade material e o comrcio material dos homens. Seria ilusria a autonomia dos produtos do pensamento e isso precisava ser denunciado pelo pensamento. Segundo eles, so os homens que, desenvolvendo a sua produo material e suas relaes materiais, transformam, com a realidade que lhes prpria, seu pensamento e tambm os produtos de seu pensamento. No a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a conscincia35.

    Marx e Engels, contudo, apostavam em uma superao da filosofia, atravs de sua realizao. O materialismo histrico representava essa realizao ao criar para o pensamento

    uma nova perspectiva de ao, em que o mundo sensvel tomado como resultado da atividade humana concreta, da prtica.

    a que termina a especulao, na vida real que comea a cincia real, positiva, a anlise da atividade prtica, do processo, do desenvolvimento prtico dos homens. Cessam as frases ocas sobre a conscincia. Com o conhecimento da realidade, a filosofia no tem mais um meio para existir de maneira autnoma.36

    Essa cincia deveria operar segundo fatos empricos existentes e no segundo a definio prvia de conceitos. claro que Marx e Engels j nutriam certa desconfiana com relao a um estudo classificatrio da matria emprica, ou qualquer atividade capaz de oferecer uma receita meramente formal para ordenar a prxis. E a para eles comeava a dificuldade concreta da esperada cincia real. Pois, segundo eles, todo problema filosfico oculto poderia ser lido como fato emprico e nesse sentido haveria sempre o perigo de os fatos dados delimitarem o campo do pensamento.

    Porm, o que importava era estabelecer as condies para um pensamento capaz de romper com um modo de pensar tpico na Alemanha, que, segundo Marx e Engels, caracterizava-se pela vontade de hegemonia intelectual na Europa. Por isso mesmo os alemes buscavam se mover de modo resguardado no domnio do esprito puro. Essa vontade de hegemonia do pensamento alemo deveria ser estancada e as ideias puras explicadas a partir das relaes sociais existentes. A fraseologia deveria ser desmascarada pela teoria, bem como as representaes falsas na conscincia dos homens deveriam ser eliminadas pela crtica. Um pensamento realmente revolucionrio no deve meramente operar por dedues

    34 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alem. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 19.

    35 Ibid. p. 19-20.

    36 Ibid. p. 20.

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    tericas, mas transformar as circunstncias existentes37. Esse seria o mpeto fundamental do materialismo histrico, o motor de sua atividade crtica.

    Adorno assimilou de Marx e Engels a postura desconfiada em relao filosofia em lngua alem e sua recorrente vontade de hegemonia. Adorno enxergava essa vontade tendo sobrevivido na filosofia de seu tempo; e dessa tica resultam suas constantes anlises do neokantismo, da fenomenologia, da ontologia, etc. De fato, ele levou a srio os diagnsticos do materialismo histrico em relao prtica filosfica na Alemanha e, com o materialismo, insistiu na ruptura com o esprito alemo e sua forte aspirao fundamentalista. Essa ruptura, no entanto, no podia corresponder a uma liquidao dos problemas filosficos mais cruciais em fatos empricos. Para Adorno, na filosofia o pensamento no deve se entregar simplesmente aos fatos e refletir sobre eles, mas antes resistir ao modo pelo qual eles so a impingidos ao pensamento.

    Por esse motivo Adorno advogou a manuteno do momento especulativo no pensamento filosfico, do elemento que foi fundamental para a teoria do conhecimento. Porm, o especular deveria ser entendido em uma acepo negativa. Especular em Adorno deve ser entendido como o ato pelo qual se resiste ao que dado, o modo pelo qual os fatos dados so negados. E isso no representava meramente um ponto de vista. Tratava-se de uma posio insupervel na filosofia. Pois, segundo Adorno, no se poderia pensar filosoficamente sem transcender os fatos dados, j que no pode haver filosofia sem transcendncia, sem especulao. No entanto, ela deve recusar toda e qualquer transcendncia sacrossanta, pois esta denotaria que a conscincia, o sujeito em sua autonomia, precede a realidade. Nesse caso, se recairia novamente no idealismo.

    Na resistncia ao dado, e na recusa a uma transcendncia idealista residiria ento a resistncia do pensamento, a sua no sujeio, aquilo que poderia ainda manter o valor e a especificidade do pensamento filosfico. O materialismo histrico era assim o modelo de uma filosofia que toma conscincia de si mesma e se supera, que reprope uma perspectiva sobre a tradio e situa os compromissos do pensamento em bases no mais abstratas. O materialismo seria o modelo de um filosofar concreto, comprometido com a transformao do real.

    37 Ibid. p. 49.

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    O que pode ser depreendido em princpio da reflexo anterior que o ensaio parece ser conveniente ao pensamento filosfico, mas somente na medida em que o filsofo est consciente de que a essncia da teoria a prtica, a histria, e que no pode haver filosofia sria sem que esta seja consequente em relao ao estado de coisas existente. O que move o esforo filosfico sempre um impulso de transformao do real. Ele quer sempre ser decisivo atividade prtica. Sem essa vontade o pensar filosfico parece perder sentido, se torna incuo, vazio.

    2.2 A interrogao do esclarecimento sobre si mesmo

    Essa autorreflexo do conhecimento filosfico promovida no campo do materialismo essencial para a filosofia de Adorno. Ela se sustenta ao lado de uma reflexo mais elementar sobre o pensamento terico, a crtica do conceito. Ambas, no entanto, esto ass