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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ricardo Pereira de Freitas Guimarães A Possibilidade de Aplicação no Direito do Trabalho do Princípio Constitucional da Proporcionalidade para Efetivação dos Direitos Fundamentais DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ricardo Pereira de Freitas Guimarães

A Possibilidade de Aplicação no Direito do Trabalho do Princípio Constitucional da Proporcionalidade para Efetivação dos Direitos

Fundamentais

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2014

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ricardo Pereira de Freitas Guimarães

A Possibilidade de Aplicação no Direito do Trabalho do Princípio Constitucional da Proporcionalidade para Efetivação dos Direitos

Fundamentais

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito das relações sociais (subárea Direito do Trabalho), sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sergio João.

SÃO PAULO

2014

3

Banca Examinadora

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

4

Dedico esse Trabalho aos meus pais,

Marlene e Elizeu (in memoriam), que

sempre me ensinaram a nunca desistir.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço de forma primeira a Deus, que me concedeu à honra de

trilhar o caminho da vida.

Especialmente, agradeço ao querido Professor e Orientador Paulo

Sergio João pela profunda paciência em ouvir e respeitar meu ponto de vista

quanto a inúmeros temas e de forma pontual me reconduzir ao correto

entendimento de questões tão difíceis para um aluno.

Não poderia deixar de registrar, meu profundo agradecimento com

contornos reverenciais a todos os Professores do Curso de Pós- Graduação

(Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em especial

aos Professores Renato Rua de Almeida, Pedro Paulo Teixeira Manus, Willis

Santiago Guerra Filho e Nelson Nery Junior.

Agradeço aos colegas e amigos de escritório por muitas vezes terem

assumido meus afazeres durante meus períodos de estudos para a

conclusão da tese.

Agradeço aos valiosíssimos Amigos Henrique Garbellini Carnio,

Leonel Maschietto, Alvaro Alves Nôga, presenças constantes na minha vida e

que em todo e qualquer momento estiveram com suas mãos estendidas para

me auxiliar, e certamente, sem suas profícuas companhias, esse trabalho

não seria realizado.

Agradeço aos meus lindos e carinhosos filhos Julia e Felipe, que com

suas brincadeiras, tornaram o desenvolvimento da tese um processo mais

leve.

Obrigado minhas amadas irmãs Gê e Jaque.

Uma palavra sincera de amor para a minha querida Aristela, símbolo

de companheirismo e cumplicidade.

6

Por fim, pontuo meu agradecimento aos Professores e Doutrinadores

pesquisados, pois sem seus valorosos ensinamentos o trabalho ora

apresentado não seria concluído.

7

RESUMO

O Presente estudo tem como objetivo elucidar em certa medida a

aplicação do princípio da proporcionalidade inserido num processo

contributivo de solução de conflitos sociais no contexto processual.

Para tentar uma aproximação de sua utilização com segurança,

avançamos primeiramente buscando sua origem histórica, que se deu

principalmente na Alemanha, partindo posteriormente para os debates

ocorridos entre os principais estudiosos do tema, sobretudo filósofos e

estudiosos do direito, como Robert Alexy e Ronald Dworkin.

Avançamos no nosso propósito tentando demonstrar que o avanço

das relações sociais - tanto pela sua textura hoje globalizada como pelo

nascimento de novas relações sociais a cada dia especialmente no direito do

trabalho – não permite para toda e qualquer circunstância a aplicação do dito

positivismo simplesmente, ou seja, clama a sociedade por uma resposta

imediata, o que pode se dar em determinadas circunstâncias pela aplicação

do princípio da proporcionalidade, em especial, quando tratamos de direitos

fundamentais, já inserindo uma visão pós-positivista.

Tentamos exemplificar através de decisões nacionais e internacionais

de casos concretos a correta aplicação do princípio, não com tom de crítica, e

sim, no intuito de apresentar uma visão de sua aplicabilidade dentro dos

contornos desenvolvidos no Trabalho.

Pontuamos algumas situações que já se apresentam no dia a dia da

Justiça do Trabalho quanto às colisões de direitos fundamentais,

apresentando o posicionamento de doutrinadores nacionais e internacionais.

Apresentamos uma evolução histórica dos direitos constitucionais

vinculados à seara trabalhista, tentando demonstrar ainda, que em algumas

questões uma simples subsunção de fato à norma não se apresenta

suficiente para solucionar os atuais relacionamentos sociais no campo do

8

direito do trabalho, especialmente quando envolvidos direitos constitucionais

fundamentais.

Atrevemo-nos em certa medida, a questionar a aplicabilidade de

alguns princípios propalados no relacionamento empregado X empregador,

no sentido de sua atual incompletude para toda e qualquer situação.

Questionamos de forma pontual e exemplificativa alguns verbetes do

Tribunal Superior do Trabalho, que no nosso sentir, não atendem em tempo e

modo a aplicação do princípio da proporcionalidade em razão do movimento

dito constitucionalização dos direitos.

O resultado do trabalho nos leva ao raciocínio que há evidente

necessidade de um avanço, especialmente na forma de interpretar a colisão

dos direitos fundamentais para a correta entrega da tutela buscada pela

sociedade nas zonas de colisão desses direitos.

9

ABSTRACT

The present study aims to elucidate some extent about the principle of

proportionality inserted in a contributory process of solving social conflicts in

the procedural context.

To attempt an approximation of its use safely we move first seeking

their historical origin, which was mainly in Germany, starting with discussions

occurred between the leading scholars of the subject, especially

philosophers and students of law like Robert Alexy and Ronald Dworkin.

Advance our purpose in trying to demonstrate that the advancement of

social relations - both in its today's globalized texture as the birth of new

social relations every day, especially in labor law - does not allow more in aall

circumstances the application of the simply positivism, the society cries out for

an immediate response, which can occur in certain circumstances by applying

the principle of proportionality, in particular when dealing with fundamental

rights, now entering in a post-positivist view.

We try to exemplify through national and international decisions

with individual cases the correct application of the principle, not with a critical

tone, but in order to present an overview of its applicability within the contours

developed at the Work.

We point to situations that are already present on the day of the

Labour Court regarding collisions of fundamental rights, showing the position

of national and International scholars.

We present a historical development of constitutional rights related to

labor law, still trying to show that some questions on a simple subsumption of

the fact in the norm does not present enough to solve the current social

relationships in the field of labor law, especially when involved fundamental

constitutional rights.

10

We venture to some extent, to question the applicability of certain

principles relaciones between employee X employer relationship, to its current

incompleteness for any situation.

We also Question in a pontual and exemplary manner

some decisions of the Superior Labor Court, which in our experience, do not

reflects in a rigjt wau the principle of proportionality because the movement

said constitutionalization of rights.

The result of the work leads us to thinking that there is clearly a need

for a breakthrough, especially in how to interpret the collision of fundamental

rights for accurate delivery of relief sought by society in conflict zones of such

rights.

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................p.16

CAPÍTULO 1. METODOLOGIA JURÍDICA. SUPREMACIA

CONSTITUCIONAL E PROCESSO CONSTITUCIONAL

1.1 Dos Estados-Nação às Guerras Mundiais............................................p.19

1.2 O Pós-Guerra e a Nova Experiência Constitucional. Marco teórico-

filosófico do Constitucionalismo no Pós-Guerra..........................................p.24

1.3 Entre o jusnaturalismo e o positivismo: uma terceira via?....................p.27

1.3.1 O Pós- Positivismo como Terceira Via...............................................p.35

1.3.1.1 A necessária distinção entre texto e norma.....................................p.37

1.3.1.2 A interpretação e a superação de seu ato que revela a vontade da lei

ou do legislador............................................................................................p.39

1.3.1.3 A superação da sentença como ato silogístico................................p.41

1.4 A Jurisprudência dos valores e a Interpretação Constitucional.............p.43

1.4.1 Predecessores teóricos da jurisprudência dos valores.......................p.45

1.4.2 A Jurisprudência dos Valores e a Jurisprudência do Tribunal

Constitucional Federal Alemão....................................................................p.49

1.4.3 A Jurisprudência dos Valores e a Crítica Brasileira............................p.53

12

1.5 O Conceito de Direito entre Regras e Princípios. Entre Robert Alexy e

Ronald Dworkin............................................................................................p.56

1.6 O Caráter de Relevância dos Direitos Fundamentais no Movimento

Constitucionalista.........................................................................................p.68

1.6.1 Modelos de fundamentação dos direitos fundamentais......................p.72

1.6.1.1 O modelo historicista.......................................................................p.72

1.6.1.2 O modelo individualista....................................................................p.74

1.6.1.3 O modelo estatalista........................................................................p.76

1.6.2 Direitos fundamentais e a Constituição Federal de 1988...................p.77

1.7 A Constituição como centro gravitacional da interpretação da lei

infraconstitucional em termos de compatibilização e adequação................p.80

1.8 Princípios da Interpretação Constitucional............................................p.84

CAPÍTULO 2 - O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A

DIALÉTICA DOS PRINCÍPIOS

2.1 Princípio da Proporcionalidade e Interpretação Constitucional............p.88

2.2 O princípio da proporcionalidade e a distinção da teoria alemã do

princípio da proporcionalidade da previsão inglesa do princípio da

irrazoabilidade..............................................................................................p.91

2.2.1 O alcance do princípio da proporcionalidade: os princípios parciais ou

subprincípios................................................................................................p.94

2.2.2 A Irrazoabilidade.................................................................................p.97

13

3. Proporcionalidade como princípio de solução de colisões vinculadas a

direitos fundamentais e a proporcionalidade relacionada aos meios..........p.99

3.1 Eficácia Horizontal e vertical dos direitos fundamentais (mito ou

verdade?)...................................................................................................p.100

4. Necessidade de fundamentação plena................................................p. 102

4.1 Os Direitos Sociais e a Insuficiência de Regras Infraconstitucionais para

Solução de Conflitos (um mundo “novo”).................................................p. 105

4.2 O princípio da proporcionalidade e os princípios do direito do trabalho.

Choque ou complemento?........................................................................p.109

4.2.1. In dubio, pro operário.....................................................................p. 109

4.2.2. Norma mais favorável....................................................................p. 110

4.2.3. Verdade real...................................................................................p. 114

CAPÍTULO 3. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NAS

RELAÇÕES TRABALHISTAS

3.1 Constituição Federal e os Direitos Sociais do Trabalhador.................p.117

3.2 Escorço Histórico.................................................................................p.117

3.3 Apenas um Destaque do Avanço Do Estado de Direito Liberal ao Estado

Social dos Direitos Fundamentais.............................................................p.149

4. Hipóteses de Atratividade do Princípio da Proporcionalidade no Direito do

Trabalho.....................................................................................................p.150

4.1 A revista íntima....................................................................................p.151

14

4.2 Esfera legislativa..................................................................................p.158

4. 3 Esfera doutrinária................................................................................p.160

4. 4 Esfera jurisprudencial.........................................................................p.162

4.5. A fiscalização de e-mails...................................................................p.165

4.6 A Fiscalização do Empregador sobre as Mensagens de Correio-

Eletrônico do Empregado-Cidadão............................................................p.169

4.7 Regra constitucional da inviolabilidade da intimidade e vida privada

das pessoas...............................................................................................p.170

4.8 Regra constitucional da inviolabilidade da correspondência..........p.171

4.9 O direito ao descanso e a exigência de trabalho................................p.173

4.10 A proteção do mercado da mulher e a igualdade de tratamento.......p.175

4.11 Limites da negociação coletiva..........................................................p.179

5. Casos práticos internacionais...............................................................p. 190

5.1 Situação 1 – Caso Português dos Delegados de Propaganda

Médica......................................................................................................p. 191

5.2 Situação 2 – Caso Português de Sanção Abusiva e Danos

Morais.......................................................................................................p. 194

5.3 Situação 3 – Caso Português de Dispensa por Justa Causa e Boa-

Fé..............................................................................................................p. 198

5.4 Situação 4 – Casos de Inconstitucionalidade na Colômbia sobre

Subordinação no Contrato de Trabalho....................................................p. 202

15

5.5 Situação 5 – Casos da Inconstitucionalidade na Colômbia Contra os arts.

15 (parcial) e 156 (parcial) do Código Sustantivo del Trabajo..................p. 206

6. Casos Práticos da Justiça Trabalhista e a Utilização Equivocada dos

Princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade.....................................p.212

6.1 Situação 1 - Revista Íntima em Empregados.......................................p.212

6.2 Situação 2 – Entidades Sindicais e Multas Cominatórias....................p.220

6.3 Situação 3 – Danos Morais e Proporcionalidade.................................p.224

5.4 Situação 4 – Valor Indenizatório e Súmula 126 TST...........................p.227

6.5 Situação 5 – Formalidades Legais e Proporcionalidade......................p.229

6.6 Situação 6 – Norma Coletiva, Horas Extras e Proporcionalidade.......p.230

6.7 Situação 7 – Adicional de Periculosidade, Norma Coletiva e

Proporcionalidade......................................................................................p.232

6.8 Situação 8 – Limites de Jornada e Princípio da Proporcionalidade....p.235

6.9 Situação 9 – Condições Mínimas de Higiene e Danos Morais...........p.239

7. Súmulas do TST e a proporcionalidade................................................p.241

7.1 Súmula 369 do TST............................................................................p.241

7.2 Súmula 331 do TST...........................................................................p.245

7.3 Súmula 363 do TST...........................................................................p.248

CONCLUSÃO...........................................................................................p.249

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................p.251

16

INTRODUÇÃO

Durante os estudos realizados ao longo do curso de doutorado, e

na própria vida da advocacia, acabamos enfrentando duas questões de difícil

solução, a saber: Como solucionar uma questão social inserida num contexto

processual se tanto o direito buscado quanto o direito resistido possuem

vinculação com direitos fundamentais?

E por segundo: Como dar a sociedade essa resposta na medida em

que não há uma lei que nos revele qual direito deve preponderar em cada

situação posta?

Esse cenário da vida de hoje, se tornou tão apaixonante e ao

mesmo tempo desafiador, que o escolhemos para que fosse objeto do

estudo.

Mesmo com a existência de discussões junto aos nossos Tribunais

de temas extremamente conhecidos e de origem conceitual no próprio

contrato de trabalho, como horas extras, vínculo de emprego, alterações

lesivas do contrato ao trabalhador, não podemos deixar de observar, que a

cada dia crescem os dilemas sobre direitos ditos inespecíficos, ou seja, que

muitas vezes com origem na relação de trabalho, o direito buscado ou

resistido encontra uma amplitude maior, atingindo muitas vezes a

propriedade do empregador, sua imagem, ou o direito extrapatrimonial do

empregado.

Isso traz duas consequências de plano: 1) não se observar na lei

eventual solução para todo e qualquer conflito dessa natureza; 2) a busca de

um mecanismo que permita dar uma solução dentro de todos os aspectos e

contornos de respeito ao ordenamento jurídico.

Com esse objetivo desenvolvemos nosso trabalho em 3 (três)

capítulos, tentando por meio da pesquisa desvendar ao longo do raciocínio,

17

uma resposta para as questões postas e um mecanismo adequado que não

fosse violador de direitos postulados ou resistidos.

No primeiro capítulo, desenvolvemos um estudo sobre a visão

constitucional e sua supremacia, aliada às questões históricas que

vincularam essa moderna forma de pensar com a superação do

jusnaturalismo e do positivismo como modelos de pensamento jurídico,

acenando para uma terceira via.

Indicamos a distinção entre texto e norma, interpretação conforme a

constituição, a quebra do paradigma da decisão como mero ato silogístico,

aliados aos estudos sobre correntes teóricas como a jurisprudência dos

valores, sem deixar de lado, a pontual diferença ou aproximação entre

princípios e regras.

Inserimos nesse capítulo o viés da interpretação constitucional

vinculado ao movimento constitucionalista.

No capítulo 2 (dois) apresentamos ao leitor o princípio da

proporcionalidade e sua dialética com outros princípios, inclusive aqueles

apresentados como vinculados especialmente ao direito do trabalho,

procurando não deixar escapar os subprincípios vinculados ao próprio

princípio da proporcionalidade, sua eficácia na apresentação de casos

difíceis.

No capítulo 3 (três) procuramos apresentar a evolução dos direitos

trabalhistas na linha do tempo, perpassando às Constituições promulgadas

no nosso País, dedicando em especial a aplicação do princípio da

proporcionalidade quanto aos casos reais oriundos de Acórdãos Nacionais e

internacionais, discussões doutrinárias específicas sobre o tema, como

revista íntima, fiscalização de e-mails, entre outros.

Discutimos ainda Súmulas do TST apresentando o avanço do Estado

Liberal para o Estado Social dos direitos fundamentais.

18

Temos absoluta consciência de que o tema não está nem perto de se

esgotar, mas procuramos dentro de nossas limitações, propagar no meio

jurídico elementos condutores de novos raciocínios e reflexões.

19

CAPÍTULO 1. METODOLOGIA JURÍDICA. SUPREMACIA

CONSTITUCIONAL E PROCESSO CONSTITUCIONAL

1.1 Dos Estados-Nação às Guerras Mundiais

No século XX, verifica-se a crise permanente daquilo que foi a

configuração do Estado-Nação. Nesse momento histórico a discussão sobre

os direitos dos homens causa o rompimento do vínculo entre homem e

cidadão. Ser cidadão, portanto, seria uma qualidade que nem todos os

homens possuíam. Tal situação cria um ambiente paradoxal, pois enquanto

as declarações de direitos dos homens (anunciadas com os textos da

Declaração Americana da Virgínia e da Declaração Francesa) apresentavam

um rol de direitos essenciais, fundamentais, ocorria ao mesmo tempo um

enfraquecimento da proteção de indivíduos que não eram considerados como

cidadãos.

Exemplo característico desta situação são os fenômenos de

multiplicação de minorias que, por meio de tratados de paz - em especial o

Tratado de Versalhes -, terminam com a primeira guerra mundial. A antiga

Iugoslávia, a Tchecoslováquia, os servos e croatas, acabaram assumindo

funções da soberania política. Ocorre que tais minorias acabaram tendo a

necessidade de uma autoridade externa para assegurar seus direitos, pois

passou a caber a outros segmentos étnicos dessas populações a

característica de serem minorias regidas por regramentos especiais,

tutelados, no caso pela Organização das Nações Unidas.1

Esse fenômeno que ocorreu de modo típico e originário nas

comunidades europeias2 configurou a existência jurídica de pessoas que não

1 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sobre direitos humanos na era da bio-política in Kriterion, Belo Horizonte, n. 118, Dez./2008, p. 278.

2 Cf. sobre o assunto, envolvendo análise de pesquisadores europeus de situações na Alemanha, Noruega, Irlanda do Norte, Grécia, Inglaterra e outros países, TURTON, David;

20

eram integradas nacionalmente numa comunidade política e, dessa forma,

encontravam-se em condição precária quanto à proteção legal e normativa.

Essa situação, em si, é paradoxal ao conceito buscado pelos

modernos Estado-Nação, pois ao invés de buscar a proteção entre o homem

e o cidadão, revelou nada menos do que a incapacidade de proteger

legalmente indivíduos de origem nacional diversa.

Atualmente, a essas minorias podem ser acrescentados

também os ciganos e até mesmo os apátridas, estes últimos apareceram

com muita força nos anos que precederam a segunda guerra mundial e se

intensificaram ainda mais quando de sua ocorrência e mesmo após seu

término. Daí a importância de entender o contexto da formação do Estado e

das guerras como forma de entender o modelo constitucionalista que irá

surgir, em especial, no pós- segunda guerra.

Este fenômeno foi estudado pontualmente por Hannah Arendt

ao se debruçar para avaliar a formação dos Estados totalitários e o declínio

do Estado-nação. Em sua investigação muito instrutiva e ampla ela escolhe

justamente a figura dos apátridas - segundo a autora eles seriam displaced

persons3 - como a imagem identificativa deste declínio.

GONZALES, Julia. Identidades culturales y minorías etnicas en Europa, Bilbao: Universidad de Deusto, 2001.

3 A definição da autora assim é desenvolvida: “até a terminologia aplicada ao apátrida deteriorou-se. A expressão "povos sem Estado" pelo menos reconhecia o fato de que essas pessoas haviam perdido a proteção do seu governo e tinham necessidade de acordos internacionais que salvaguardassem a sua condição legal. A expressão displaced persons [pessoas deslocadas] foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência. O não-reconhecimento de que uma pessoa pudesse ser "sem Estado" levava as autoridades, quaisquer que fossem, à tentativa de repatriá-la, isto é, de deportá-la para o seu país origem, mesmo que este se recusasse a reconhecer o repatriado em perspectiva como cidadão ou, pelo contrário, desejasse o seu retorno apenas para puni-lo. Como os países não-totalitários, a despeito do clima de guerra, geralmente têm evitado repatriações em massa, o número de pessoas sem Estado era substancialmente elevado — ainda doze anos após o fim da guerra. A decisão dos estadistas de resolver o problema do apátrida ignorando-o é revelada ainda pela falta de quaisquer estatísticas dignas de confiança sobre o

21

Ressalte-se que além de estudar o tema, Hannah Arendt - uma

das principais filósofas jurídicas da Alemanha - sentiu na pele a situação de

ser uma apátrida, pois o regime nazista lhe retirou a nacionalidade em 1937,

conseguindo a nacionalidade estaduniense apenas em 1951.

Estão em voga nessa discussão a liberdade, a emancipação e a

soberania popular. De modo verdadeiro, estas só poderiam ser alcançadas

por meio de uma completa emancipação nacional e os povos privados do seu

próprio governo nacional se encontrariam na paradoxal situação de ficarem

sem a possibilidade de usufruir de seus direitos.4

Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis” porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los.5

A violência, distintamente do poder, da força ou do vigor,

sempre necessita de implementos. Isto tudo se verifica na revolução da

tecnologia e da criação de instrumentos políticos, bélicos, de comunicação e

outros proporcionados pela guerra. Até a própria substância da ação violenta

é regida pela categoria meio-fim, cuja principal característica, quando

aplicada aos negócios humanos, foi sempre a de que o fim corre o perigo de

ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são necessários para

alcança-lo.6

assunto. Contudo, sabe-se pelo menos que, enquanto existia 1 milhão de apátridas.”. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo, trad.: Roberto Raposo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 313.

4 ARENDT, Hannah. O declínio do estado nação e o fim dos direitos do homem, In: Origens do Totalitarismo – Anti-Semitismo, Imperialismo e Totalitarismo, trad.: Roberto Raposo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 305.

5 ARENDT, Hannah. O declínio do estado nação e o fim dos direitos do homem, cit., p. 325

6 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 18.

22

O fim da ação humana, diferentemente dos produtos finais da

fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, pois os meios

utilizados para atingir objetivos políticos são desmesurados, de forma que, o

resultado das ações dos homens está além do controle dos atores sociais. A

violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade, de tal

maneira que a guerra e sua presença na exaltação do aperfeiçoamento dos

meios de destruição físico e material humano representam “um irônico

lembrete da imprevisibilidade onipotente que encontramos no momento em

que nos aproximamos do domínio da violência”7. Este irônico lembrete e a

devastação da dignidade humana no holocausto são, necessariamente, um

dos pontos chave de nossa investigação como origem de tudo que aqui se

expõe, pois a retomada do constitucionalismo leva certamente em conta

essas questões.

A reflexão que surge é que a principal razão da guerra ainda

estar entre os homens não seria um secreto desejo de morte da espécie

humana, nem um instinto irreprimível de agressão ou mesmo os perigos

econômicos e sociais inerentes ao desarmamento, mas o simples fato de que

nenhum substituto para essa solução inadequada nos negócios

internacionais apareceu na cena política.8

Nesse contexto, o direito, em especial na espécie normativa das

declarações de direito dos homens, a exemplo das anteriormente referidas,

por mais que pretendam uma função emancipatória na exposição dos direitos

fundamentais, acabam excluindo minorias e relegando seres humanos à

mercê dos mecanismos de poder. Exatamente esta é a configuração das

sociedades europeias modernas, consideradas como sociedades biopolíticas

ao longo do século XVIII. Com o biopoder9 o Estado moderno inclui a vida

7 ARENDT, Hannah. Sobre a violência, p. 19.

8 ARENDT, Hannah. Sobre a violência, p. 20.

9Biopoder não é o mesmo que biopolítica. Biopoder é uma extensão do termo biopolítica e foi criado também originalmente pelo filósofo francês Michel Foucault para referir-se à prática dos estados modernos e sua regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de "uma explosão

23

biológica, tanto ao nível individual dos corpos adestrados, amansados pelas

disciplinas, como no registro genérico das populações, cujus “ciclos vitais de

saúde e morbidez, natalidade e mortalidade, reprodução, produtividade e

improdutividade, devem ser calculados em termos de previdência e assistência

social”10.

A significação do termo biopolítica instaura um novo modelo –

de relacionamento humano – que ressalta a tomada do poder sobre o homem

enquanto ser vivo e que tem no Estado do século XIX sua força catalisadora.

Segundo Foucault:

[...] uma das mais maciças transformações do direito político

do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir,

mas em completar esse velho direito de soberania – fazer

morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai

apagar o primeiro, mas vai penetrá- lo, perpassá-lo, modificá-

lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente

inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer [...]11

A experiência da segunda guerra mundial e a devastação dos

seres humanos, relegados a uma condição de esvaziamento de sua

dignidade faz com que no pós-guerra a discussão sobre o direito e sua

regulação fosse retomada seriamente para novos rumos.

É exatamente no marco do segundo pós-guerra que emerge o

significado do conceito de princípio constitucional. Isso é bastante

significativo, porque, a partir de então, é possível notar uma retomada da

filosofia do direito num sentido diretivo, regulatório e normativo, por meio das

de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações”.

10 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sobre direitos humanos na era da bio-política in Kriterion, Belo Horizonte, n. 118, Dez./2008, p. 284-285.

11 FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976 in Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 287.

24

diversas tentativas que se instalaram de resgate da filosofia prática – como

as discussões encontradas nas críticas de Kant - ou da racionalidade prática

- que busca entender o mundo exatamente como ele é.

1.2 O Pós-Guerra e a Nova Experiência Constitucional. Marco teórico-

filosófico do Constitucionalismo no Pós-Guerra

De forma emblemática o rumo da reflexão jurídica passa a se

dar com a experiência judicial do Tribunal Constitucional Federal Alemão.

Segundo o teórico português Antonio Castanheira Neves, os princípios

constitucionais aparecem no interior de um acontecimento maior, a partir do

qual a tradicional interpretação jurídica muda de rumo e a própria teoria do

direito passa a ser problematizada de modo diferente.

O direito identificado com a lei passa a ser pensado como

direito enquanto direito. Em outras palavras, o que isto quer dizer é que o

pensar o direito ultrapassa a simples interpretação textual da lei em direção à

interpretação do direito em si.

Nessa dimensão, o problema interpretativo se torna mais

complexo do que anteriormente. Não está mais em jogo apenas o

entendimento daquilo que os textos legais comunicam, mas também, e

principalmente, o conhecimento, a compreensão do sentido do direito.

Nesse período surge uma escola de pensamento que se mostra

determinante para os novos contornos que irão se inaugurar, qual seja: a

escola da Jurisprudência dos Valores.

É importantíssimo ter em conta a experiência da jurisprudência

dos valores, pois as transformações pelas quais passaram a filosofia e a

teoria do direito no segundo pós-guerra não se deram a partir de uma pura

especulação lógico-formal, pelo contrário, os impulsos que elas recebem se

25

originam na experiência dos tribunais e da ascensão daquilo que se pode

chamar de judicialismo12, numa clara oposição ao legalismo anterior.

Como se nota, essas transformações representaram uma

radical mudança de postura daqueles que refletem sobre o direito na tradição

continental, a partir de uma maior atenção despendida à decisão judicial

propriamente dita.

O Tribunal Constitucional alemão enfrentava vários problemas

nos anos que se seguiram à promulgação da Lei Fundamental no que se

refere ao julgamento de casos que tinham como objeto relações jurídicas

constituídas ainda sob a égide das leis nazistas13. Na época, para solucionar

estes casos e outros similares, o Tribunal começou a lançar mão de uma

série de novos instrumentos conceituais que permitiam uma justificação da

decisão descolada da simples interpretação textual da lei e da própria

Constituição.

Desse modo, princípios, cláusulas gerais, e enunciados abertos

eram invocados pelo tribunal para que fosse possível legitimar suas decisões

ainda que, num sentido estrito, fossem contrárias à lei.

Quando o Tribunal começa a decidir assim, tem-se por aberto

um espaço positivo para a reflexão filosófica sobre o direito e, a partir de

então, se passa a explorar posições filosóficas que fundamentassem a

utilização de tais mecanismos.

12O judicialismo apresenta novas perspectivas na atuação do juiz constitucional. O termo concentra a ideia de novos paradigmas de atuação do juiz constitucional não adstrito à utilização firme e dura da lei, mas encampando novas formas interpretativas e práticas nas decisões. O avanço desses estudos, atualmente é observado na abordagem de temas recorrentes, a exemplo do chamado "ativismo" judicial, a judicialização da política, a responsabilidade social do juiz constitucional e seu método de trabalho, além de outros assuntos correlatos.

13 Neste sentido ver, por todos, LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.3 ed., Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2004, passim.

26

Um dos principais autores que surge nesta época é o professor

de direito e filósofo Gustav Radbruch (professor da universidade de

Heidelberg) com seu axiologismo jurídico-cultural, propondo que o direito

deva ser fundamentado no justo e não simplesmente no que a lei diz. Esse

autor se mostra relevante, pois foi um dos grandes influenciadores de Robert

Alexy, autor que nos servirá de base para a discussão do princípio da

proporcionalidade.

O Professor Radbruch, com base na orientação dos

neokantianos da escola de Baden, entende que a transcendentalidade do

direito era encontrada nos valores que verdadeiramente regem a objetividade

do pensamento. Não é a toa que o filósofo Arthur Kaufmann diz encontrar em

Radbruch uma terceira via em relação à velha oposição entre jusnaturalismo

racionalista (com base em contratos) v.s. juspositivismo - objeto também de

nossa investigação -, ao dizer que este teria sido o primeiro autor a separar

as trincheiras entre o direito natural e o positivismo.14

Castanheira Neves estudando Radbruch afirma que a partir dele

começa a ter expressão algo nomeado como “neojusnaturalismo”, só que não

mais cosmológico (representação da observação da natureza e dos sentidos

na antiguidade clássica); teológico (a revelação das escrituras sagradas

como referência principal para a legislação) ou psicológico (referência a partir

do movimento racionalista e da revolução das ciências), mas, sim, axiológico,

fundado na leitura neokantiana da razão pura prática da escola de Baden.

Surge um direito fundado a priori não no cosmos, nem na

vontade de Deus, nem na universalidade da razão, mas, simplesmente, na

própria essência objetiva dos valores, o pensamento de uma jusnaturalista

afirmação de um superpositivo conteúdo axiológico ou ético-material (uma

14 KAUFMANN, Arthur. Introdução à Filosofia do Direito. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2003, p. 135

27

pré-dada ordem de valores), enquanto fundamento constitutivo do direito que

repercutia inclusive na jurisprudência jurisdicional alemã15.

Com fundamento neste direito axiológico e supra-legal,

Radbruch e seus seguidores consideravam a lei positiva como não-direito,

nos casos extremos de violação deste “direito natural dos valores” retirando-

lhe, por isso sua própria validade enquanto direito.

Essa tomada de posição significativa ficou famosa como

“fórmula Radbruch” e influenciou consideravelmente Robert Alexy e sua

defesa de uma moral corretiva para o direito.

Diante de tal posição e da inclinação dos Tribunais europeus

(principalmente o Alemão) para utilização de conceitos ditos “valorativos”

como é o caso do conceito de princípio, não tardaria a encontrar como

problema a acusação de um relativismo oriundo do axiologismo-valorativo, ou

seja, uma suposta retirada da segurança jurídica social.

1.3 Entre o jusnaturalismo e o positivismo: uma terceira via?

Problemas derivados da utilização de tais mecanismos

começam a aparecer. A perda da segurança jurídica em virtude do

exacerbado relativismo passou a ser criticada.

Novas posições filosóficas aparecem para criticar o relativismo,

como dos filósofos alemães Max Scheler16 e Nicolai Hartmann17, ambos com

propostas de realização de uma análise objetiva dos valores.

15CASTANHEIRA NEVES, António. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Filosofia (Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação). Coimbra: Almedina, 2003, p. 38.

16 Filósofo que procurou estudar principalmente a fenomenologia. (do grego phainesthai - aquilo que se apresenta ou que se mostra - e logos - explicação, estudo) afirma a importância dos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua "significação".

28

O que se postula como um “renascimento do direito natural” a

partir de uma axiologia jurídica pode ser encarado, em última instância, como

um positivismo axiológico que da mesma forma que o positivismo

normativista, encontra guarida em Kant.

O interessante aqui é que esses acontecimentos todos fizeram

com que os estudiosos do direito se voltassem para a prática interpretativa do

direito, para a questão da decisão judicial, se projetando além do movimento

lógico-matemático preocupando-se com a construção de um sistema jurídico

num nível meramente semântico (de significação – conteúdo - das coisas).

Tal discussão se aprofunda e se torna mais complexa no interior

do chamado pós-positivismo e das diversas posições que ali se manifestam

com o objetivo de criar mecanismos para a atividade do juiz.

A questão em tela era como lidar com esta nova forma de

direito que aparece nos pós-guerra. Segundo parece, a tônica dessa questão

está no conceito de princípio.

Segundo o professor Lenio Streck, o positivismo sempre se

caracterizou por apresentar três características específicas na análise que

realiza do fenômeno jurídico18:

Os objetos da Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noema).

17 Como afirma Adeodato, “A teoria dos valores de Hartmann segue as linhas básicas da ética de Max Scheler e teve grande repercussão, sendo até hoje um dos maiores exemplos da doutrina axiológica objetivista, segundo a qual os chamados valores não são criação humana mas existem no universo independentemente de serem ou não realizados, compreendidos ou sequer percebidos por quem quer que seja”. Cf. ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. 5 ed., São Paulo: Saraiva,2013, p. 153 e segs.

18 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2011, pósfácio, n. 4.2., p. 509.

29

Em primeiro lugar, seu objeto é determinado a partir das fontes

estatais-sociais do direito. Recusa-se, assim, que a abordagem do fenômeno

jurídico dê conta de fatores externos àquilo que foi produzido em termos de

regulação social pelo Estado. Essa característica aponta para outro fator

próprio das teorias positivistas: sendo ela a representação teórica de um tipo

específico de estatalismo, noutras palavras, o direito é entendido pura e

simplesmente com o que a norma estatal diz.

Em segundo lugar, temos que todo positivismo professa a tese

da separação entre o direito e a moral. Assim, as teorias positivistas

oferecem critérios para análise do direito que excluem o problema de sua

adequação ou não a um sistema moral mais abrangente que determine o

conteúdo das normas jurídicas.

Ao contrário, tais teorias restringem a determinação da validade

do direito a critérios previstos pelo próprio ordenamento jurídico ou sistema

jurídico (variando o conceito conforme o autor, por exemplo, Kelsen fala em

ordenamento jurídico; Herbert Hart prefere falar em sistema jurídico).

Em terceiro lugar, todo positivismo professa, em alguma

medida, um coeficiente de discricionariedade judicial, no momento de

aplicação do direito aos casos especiais que podem ser chamados de casos

difíceis (Hard Cases) e que deverão ser decididos pelo julgador independente

do ordenamento ou o sistema jurídico prever antecipadamente alguma

regulação para o caso.

Daí o célebre debate que se desenvolveu entre os professores

de Oxford Herbert Hart e Ronald Dworkin.

Em 1961 Hart publicou a primeira edição do seu livro O

Conceito de Direito e pretendia com sua obra apresentar uma reformulação

global do positivismo jurídico. Em seu livro, parte das críticas às teses do

filósofo Britânico J.L. Austin - seu principal contraponto no campo das ideias -

e indo além dos limites do common law, criticava também algumas das

30

principais teses do positivismo normativista de Hans Kelsen. Seu objetivo era

colocar e responder, de forma mais precisa, a pergunta: o que é direito?

Ele se pauta para responder tal questão na linguagem que os

advogados, juízes, legisladores e os cidadãos em geral utilizam ao referir-se

a assuntos jurídicos, tendo como pano de fundo os estudos desenvolvidos

pela filosofia analítica da linguagem19 do próprio Austin e do filósofo austríaco

naturalizado britânico Ludwig Wittgenstein.

Hart assume como pressuposto em seu livro o fato de que toda

expressão linguística – seja ela jurídica ou não – possui um núcleo duro de

significado e uma zona de penumbra. O núcleo duro de significado da

interpretação está conformado pelos casos de fácil interpretação (Easy

Cases), aqueles nos quais quase todos os intérpretes estariam de acordo

sobre a expressão que se aplica ao caso em questão, seja ele um objeto ou

um fato social. No âmbito da decisão judicial, isso significa que uma regra

sempre possuirá um núcleo duro e uma zona de penumbra, frente à qual o

juiz deverá escolher qual o sentido que deverá prevalecer.

O exemplo de Hart se dá nos seguintes termos: Se uma regra

diz “é proibida a circulação de veículos no parque”, diante das diversas

hipóteses de interpretação, todos estariam de acordo que não se permite a

circulação de automóveis ou caminhões. Apesar disso, haveria dúvida sobre

a proibição da circulação de bicicletas, por exemplo. Neste caso, estaríamos

19 Vertente de pensamento contemporâneo utilizada por filósofos com pensamentos diferentes, e que possui como ponto comum a ideia da filosofia como uma análise do significado dos enunciados, se apresentando exclusivamente como uma pesquisa sobre a linguagem. O pensamento analítico tem como grande precursor Gottlob Frege, Rudolf Carnap que influenciaram autores como Bertand Russell, que foi professor de Ludwig Wittgenstein. Há de se ressaltar que há várias correntes dentro da filosofia analítica, mas seu significativo aparecimento ocorreu na passagem do século XIX para o XX quando a filosofia passa por uma nova e profunda reviravolta, conhecida como “reviravolta linguística” influenciado por Frege, Russell e Wittgeinstein. Posteriormente autores ligados ao círculo de Viena também vão trabalhar com a proposta metodológica relativa à análise do significado das proposições da ciência do pensamento analítico.

31

diante de um caso difícil e a solução deveria ser dada a partir de um critério

aproximativo de analogia com os casos de fácil aplicação da regra.

Nesse enquadramento, os juízes possuem discricionariedade

para escolher a melhor interpretação.

A crítica de Dworkin acontece exatamente neste ponto.

Dworkin, ao contrário do que sugere Hart, postula que os juízes não possuem

discricionariedade alguma porque, mesmo nos “casos difíceis”, eles estão

vinculados a julgar conforme padrões prévios de conduta que seriam os

princípios jurídicos.

A discricionariedade, enquanto característica do juspositivismo

pode ser encontrada em Ronald Dworkin a partir de três sentidos, a saber:

um sentido fraco; um sentido forte; e um sentido limitado.

O sentido limitado oferece poucos problemas para sua

definição. Significa que o poder de escolha daquela autoridade à qual se

atribui poder discricionário se determina a partir da escolha “entre” duas ou

mais alternativas. A esse sentido, Dworkin agrega a distinção entre

discricionariedade em sentido fraco e discricionariedade em sentido forte,

cuja determinação é bem mais complexa do que a discricionariedade em

sentido limitado.

A principal diferença entre os sentidos forte e fraco da

discricionariedade reside, segundo Dworkin, no fato de que, em seu sentido

forte, a discricionariedade implica a incontrolabilidade da decisão segundo

um padrão antecipadamente estabelecido.

Desse modo, alguém que possua poder discricionário em seu

sentido forte pode ser criticado, mas não pode ser considerado desobediente.

Não se pode dizer que ele cometeu um erro em seu julgamento. É neste

sentido forte da discricionariedade que Dworkin assenta sua crítica ao

32

positivismo Hartiano quando este afirma ter o juiz poder discricionário, toda

vez que uma regra clara e pré-estabelecida não esteja disponível.

Em sua crítica ao poder discricionário, Dworkin afirma que

nestes casos, os padrões que os juízes tipicamente empregam são, na

verdade, princípios que os guiam em suas decisões e que os obrigam no

momento de determinar qual das partes possuem direitos.

Todavia, o problema interpretativo que se esconde por trás da

questão da discricionariedade judicial pode ser percebido também em

trabalhos de autores continentais, oriundos de sistemas romano-germânicos.

Claramente esse é o caso da Teoria Pura do Direito do austríaco Hans

Kelsen.

De todo modo, com estudo em Lenio Streck, podemos resumir o

conceito de juspositivismo como sendo o tipo de postura teórica que se

caracteriza por esses três elementos20:

1) pelas fontes sociais do direito;

2) pela separação entre direito e moral;

3) pela discricionariedade delegada ao juiz nos hard cases ou

nas incertezas da linguagem em geral.

Além disso é importante registrarmos a profunda diferença que

existe entre o positivismo jurídico praticado pela teoria jurídica predominante

no século XIX e o positivismo jurídico construído pelas teorias jurídicas do

século XX.

O positivismo legalista, evidente no século XIX, tem como

principal característica a equiparação do direito à lei. Tal equiparação pode

ser pensada a partir do direito produzido por um corpo legislativo soberano

20 Cf STRECK, Lenio Luiz.Verdade e Consenso, cit., pósfácio, n. 4.2., p. 509.

33

(no caso da França) ou na perspectiva da lei formada segundo os padrões

ditados pelos eruditos, professores de direito (no caso da Alemanha).

Ele se apresenta como uma teoria jurídica sintática, uma vez

que o direito é conhecido e analisado apenas a partir dos conceitos que

compõem a legislação. Não se problematiza, aqui, a relação deste conceito

com a concretude fática. O conceito pode ser conhecido em si mesmo

apenas a partir da utilização das fórmulas lógicas do entendimento.

Assim, o direito nunca poderia ser analisado numa perspectiva

quer semântica (conteúdo e significação), quer pragmática (de ação). Esse

fato acaba por produzir um reducionismo na análise do direito, na medida em

que os problemas interpretativos não são problematizados em análises

exclusivamente sintáticas (descritivas).

Esse ponto está na raiz das críticas que o movimento do direito

livre e a jurisprudência dos interesses21 farão às teorias positivistas.

21 A jurisprudência dos interesses tem como principal teórico Phillipp Heck, também conhecido como o líder da escola de Tübingen. Nesse movimento metodológico se encontram duas posturas teóricas que impulsionam Heck e seus seguidores. Essas duas posturas referem-se ao pensamento de Ihering em sua segunda fase de pensamento e pelos postulados do movimento do direito livre. A proposta de Heck parte do fato de que a jurisprudência dos interesses seria uma secessão com o movimento do direito livre, justamente em razão de uma discordância com relação ao problema das possibilidades de decisões contra a lei. Esta escola criticava a falácia conceitual da jurisprudência dos conceitos, fato que faz o autor apontar para a dimensão concreta dos interesses em conflito para resolver as demandas jurídicas, nesse sentido era preciso superar as insuficiências do pensamento lógico-dedutivo puro, com elementos intuitivos que o jurista perceberia na realidade social concreta, daí a influência sociológica desse pensamento. O método para compor os interesses em conflito era o da ponderação, que nesse caso deveria apontar para o interesse que deveria prevalecer, fato que certamente influenciou a nova perspectiva metodológica que aparece na jurisprudência dos valores: a ponderação. Heck defende que toda norma jurídica representa uma tentativa de conciliar (segundo o princípio de ponderação) os interesses opostos que sociologicamente aparecem na base dessa mesma norma. Confira em ABBOUD, Georges, CARNIO, Henrique Garbelllini e TOMAZ de OLIVEIRA, Rafael. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: RT, 2013.

34

Essa aproximação do direito aos fatos sociais – propiciando

uma análise cultural-valorativa do fenômeno jurídico – reivindicada por estes

movimentos deixou o direito exposto à ideologia e à política, tornando

prejudicada sua determinação científica.

Desse modo, o normativismo kelseniano terá como ponto de

partida a necessidade de se oferecer uma resposta a esse caos

epistemológico (como estudo científico do direito) deixado pelo movimento do

direito livre e pela Jurisprudência dos interesses.

O positivismo normativista do século XX, diferentemente do

legalista (escola da exegese), opera uma análise semântico-sintática22 do

direito. Desse modo, o normativismo reconhece o problema dos múltiplos

significados que emanam dos conceitos que compõem o direito e

problematiza a relação desses conceitos com os objetos que compõem o

“mundo jurídico”. Dessa forma, Kelsen, por exemplo, não excluí a

possibilidade de, no momento de aplicar a norma, dos juízes decidirem de

mais de uma maneira (desde que ajustados à “moldura da norma”). Todavia,

na determinação da validade das normas que compõem o ordenamento,

Kelsen opera segundo uma lógica sintática.

Isso quer dizer que a validade da norma inferior pode ser

aferida a partir de uma norma superior, sem que sejam problematizadas

questões de conteúdo social, político ou ideológico. A questão se apresenta

simplesmente na perspectiva da forma lógico-formal.

No normativismo, o direito não é reduzido à lei – como no

positivismo legalista. No interior desse tipo de teoria positivista, o direito é

apresentado como um conjunto de normas válidas.

22 Essa metodologia avalia tanto a descrição dos enunciados quanto sua significação. A proposta do positivismo normativista é de levar em conta a expressão da norma, determinada pelo Estado, na quadratura do escalonamento ordenado do direito e na interpretação normativa.

35

A superação desse modelo só surge com o chamado paradigma

pós-positivista, que necessita para ser compreendido da superação de uma

gama de conceitos elementares do positivismo jurídico.

1.3.1 O Pós- Positivismo como Terceira Via

Para se pensar e estruturar uma teoria pós-positivista é

fundamental um novo conceito de norma. A norma não possuirá mais

existência semântica e abstrata, a norma passa a ser concreta e produto da

própria linguagem.

Desse modo, para uma teoria jurídica desenvolver-se sob as

bases de um paradigma pós-positivista, 23 faz-se necessário elaborar-se

23 Segundo Streck: “Quando falamos em positivismo e pós-positivismo, torna-se necessário, já de início, deixar claro o “lugar da fala”, isto é, sobre “o quê” estamos falando. Com efeito, de há muito minhas críticas são dirigidas primordialmente ao positivismo normativista pós-kelseniano, isto é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou decisionismos e protagonismos judiciais). Isto porque considero, no âmbito destas reflexões, superado o velho positivismo exegético. Ou seja, não é (mais) necessário dizer que o “juiz não é a boca da lei”, etc.; enfim, podemos ser poupados, nesta quadra da história, dessas “descobertas polvolares”. Essa “descoberta” não pode implicar um império de decisões solipsistas, das quais são exemplos às posturas caudatárias da jurisprudência dos valores (que foi “importada” de forma equivocada da Alemanha), os diversos axiologismos, o realismo jurídico (que não passa de um “positivismo fático”), a ponderação de valores (pela qual o juiz literalmente escolhe um dos princípios que ele mesmo elege prima facie), etc. Explicando melhor: o positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que o neopositivismo lógico também teve a denominação de “empirismo lógico”). Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, num determinado tipo de lei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresenta notas distintas, na medida em que se olha esse fenômeno numa determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos referir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, onde predomina um exegetismo da legislação; e ao alemão, no interior do qual é possível perceber o florescimento do chamado formalismo conceitual que se encontra na raiz da chamada jurisprudência dos conceitos). No que tange às experiências francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influência que o direito romano exerceu na formação de seus respectivos direito privado. Não em virtude do que comumente se pensa – de que os romanos “criaram as leis escritas” –, mas, sim, em virtude do modo como o direito romano era estudado e ensinado. Isso que se chama de exegetismo e

36

tem sua origem aí: havia um texto específico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito. Este texto era – no período pré-codificação – o Corpus Juris Civilis. A codificação efetua a seguinte “marcha”: antes dos códigos, havia uma espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. A ideia era simples: aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano – dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba “criando” um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804 e Alemanha, 1900). A partir de então, a função de complementaridade do direito romano desaparece completamente. Toda argumentação jurídica deve tributar seus méritos aos códigos, que passam a possuir, deste momento em diante, a estatura de verdadeiros “textos sagrados”. Isso porque eles são o dado positivo com o qual deverá lidar a Ciência do Direito. É claro que, já nesse período, apareceram problemas relativos à interpretação desse “texto sagrado”. De algum modo se perceberá que aquilo que está escrito nos Códigos não cobre a realidade. Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do direito para que essa obra não seja “destruída”? E, ao mesmo tempo, como excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos que não eram bem quistos pelo modo positivista de interpretar a realidade? Num primeiro momento, a resposta será dada a partir de uma análise da própria codificação: a Escola da Exegese, na França, e A Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha. Esse primeiro quadro eu menciono, no contexto de minhas pesquisas – e aqui talvez resida parte do “criptograma do positivismo” –, como positivismo primevo ou positivismo exegético. Poderia ainda, junto com Castanheira Neves, nomeá-lo como positivismo legalista. A principal característica desse “primeiro momento” do positivismo jurídico, no que tange ao problema da interpretação do direito, será a realização de uma análise que, nos termos propostos por Rudolf Carnap, poderíamos chamar de sintático. Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a “obra sagrada” (Código) seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito. Assim, conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito devem ser encarados também nessa perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso, que representaria as hipóteses – extremamente excepcionais – de inadequação dos casos às hipóteses legislativas.Num segundo momento, aparecem propostas de aperfeiçoamento desse “rigor” lógico do trabalho científico proposto pelo positivismo. É esse segundo momento que podemos chamar de positivismo normativista. Aqui, há uma modificação significativa com relação ao modo de trabalhar e aos pontos de partida do “positivo”, do “fato”. Primeiramente, as primeiras décadas do século XX viram crescer, de um modo avassalador, o poder regulatório do Estado – que se intensificará nas décadas de 30 e 40 – e, também, a falência dos modelos sintático-semânticos de interpretação da codificação, que se apresentaram completamente frouxos e desgastados. O problema da indeterminação do sentido do Direito aparece, então, em primeiro plano. É nesse ambiente que aparece Hans Kelsen. Por certo, Kelsen não quer destruir a tradição positivista que foi construída pela jurisprudência dos conceitos. Pelo contrário, é possível afirmar que seu principal objetivo era reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas de modo a responder ao crescente desfalecimento do rigor jurídico que estava sendo propagado pelo crescimento da Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre – que favoreciam, sobremedida, o aparecimento de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpretação do direito. Isso é feito por Kelsen a partir de uma radical constatação: o problema da interpretação do direito é muito mais semântico do que sintático.

37

juntamente uma concepção pós-positivista de norma que a distinga do texto

normativo, o que, por sua vez, implica a necessidade de uma estruturação

pós-positivista de sentença não mais vista como um processo de

subsunção.24

Importante relembrar a visão do pós-positivismo vinculada

muitas vezes à expressão pós-modernidade destacada pelo polonês

Zygmunt Bauman 25 que está a revelar não uma oposição, mas a

continuidade de um estudo, de um raciocínio, vinculado à intelecção,

vejamos:

A oposição entre modernidade e pós-modernidade foi empregada aqui a serviço da teorização dos três últimos séculos da história européia ocidental (ou da história denominada pela Europa Ocidental) vistos da perspectiva da práxis intelectual. Essa prática é que pode ser moderna ou pós-moderna; a dominância de um ou outro dos dois modos (sem exclusividade) distingue modernidade de pós-modernidade como períodos da história intelectual.

O conceito de norma no paradigma pós-positivista não pode ser

o mesmo do positivismo. Nessa perspectiva, os fundamentos do paradigma

pós-positivista passam por três pontos fundamentais: (a) a diferença entre

texto e norma; (b) a interpretação do direito deixa de ser ato revelador da

vontade da lei ou do legislador; (c) a sentença deixa de ser processo

silogístico, ou seja, as questões jurídicas não podem mais ser aplicadas por

subsunção.

1.3.1.1 A necessária distinção entre texto e norma

Desse modo, temos aqui uma ênfase na semântica”.STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, cit., p. 31/33.

24 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, n. 1.1.1, p. 49.

25 BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes. tradução Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Zahar, 2010, p.18.

38

Segundo Lenio Streck, para se falar em norma, primeiro é

preciso compreendê-la em sua diferença com relação ao texto. Para Streck,

há uma diferença ontológica26 (no sentido heideggeriano) entre texto e norma

e que, neste sentido, quando falamos de norma, falamos necessariamente

em interpretação, fruto de um processo compreensivo que não se reduz à

compreensão sintático-semântica do texto, mas envolve um contexto

pragmático que é muito mais amplo. Desse modo, Lenio assevera: “Quando

quero dizer que a norma é sempre o resultado da interpretação de um texto,

quero dizer que estou falando do sentido que este texto vem a assumir no

processo compreensivo. A norma de que falo é o sentido do ser do ente

(texto). O texto só ex-surge na sua “normação”27.

Como é de conhecimento, a distinção entre texto e norma foi

empreendida com sucesso por Friedrich Müller. Sem embargo, cabe

mencionar que a chamada teoria estruturante, construída por Müller, pode

ser elencada como uma perspectiva teórica que pretende problematizar o

conceito tradicional de norma e a subjetividade que se apresenta por trás

dela. Para Müller, normatividade significa a propriedade dinâmica da ordem

jurídica de influenciar a realidade e de ser, ao mesmo tempo, influenciada e

estruturada por este aspecto da realidade.

Assim, o autor descreve pelo menos duas dimensões que a

estruturam: o programa da norma, que é constituído do ponto de vista

interpretativo mediante a assimilação de dados primariamente linguísticos, e

do âmbito normativo, que é construído pela intermediação linguístico-jurídica

de dados primariamente não-linguísticos.28

26 Ontologia é o estudo voltado para o ser, no sentido colocado no texto referida diferença se sedimenta como cada ser do ente se apresenta na presença da questão posta.

27 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 5 ed, Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004, p. 224-226.

28 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, n. 4.3, p. 119; n. 7, p. 148. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, I, p. 80.

39

O programa normativo e o âmbito normativo são entidades

jurídicas. O primeiro constitui os elementos linguísticos do processo

concretizador (teor literal), já o âmbito normativo, caracteriza os elementos

não linguísticos, ou seja, a realidade social a ser regulamentada pelo

programa normativo.29

É nessa perspectiva que o conceito pós-positivista de norma

jurídica não pode mais possuir acepção semântica, porque norma não pode

ser confundida com o texto normativo. A norma somente surge na solução de

caso jurídico, seja ele real ou fictício.

Portanto, perante o paradigma pós-positivista do direito, não se

pode mais confundir texto normativo com norma. Assim, “o texto normativo é

o programa da norma, representa o enunciado legal (lei, súmula vinculante,

portaria, decreto), sua constituição é ante casum e sua existência é abstrata.

A norma, por sua vez, é produto de um complexo processo concretizador em

que são envolvidos o programa normativo e o âmbito normativo”.

A norma não é nem está contida na lei (apesar de ela ser

elemento importante para a própria formação da norma). Somente após a

interpretação jurídica, destinada a solucionar caso concreto (real ou fictício),

é que surge a norma jurídica.

1.3.1.2 A interpretação e a superação de seu ato que revela a vontade da

lei ou do legislador

A questão central aqui é destacar que a partir do paradigma

pós-positivista, a atividade interpretativa do jurista não pode mais ser

concebida como ato para se descobrir a vontade da lei (voluntas legis) ou do

legislador (voluntas legislatoris).

29 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional, 3.a ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2005, n. III.1, p. 42.

40

A interpretação jurídica é diretamente influenciada pela

historicidade, ou seja, a interpretação de todo texto legal altera-se

frequentemente em virtude do momento histórico em que é realizada.

A atividade interpretativa é sempre histórica, porque o texto

somente é abordável a partir da historicidade do intérprete.

Portanto, o jurista não se torna um ser histórico apenas quando

se desdobra sobre o produto da cultura no estudo da disciplina

‘história’, mas, mesmo quando efetua uma interpretação no

nível de um campo, como é o do direito, ali também operam

com ele os efeitos da história.30

A interpretação do direito está diretamente condicionada pelo

momento histórico. Ilustrativo nesse sentido é a jurisprudência da Suprema

Corte Norte Americana que alterou profundamente seu entendimento sobre o

princípio da igualdade sem que tenha havido nenhuma modificação no texto

constitucional.

Veja por exemplo no caso Plessy vs. Ferguson, momento em

que a Suprema Corte havia admitido a raça como fator de discrímen em

benefícios dos brancos durante o transporte ferroviário, tal voto consolidou a

equivocada premissa (separados, mas iguais). Ou seja, a Suprema Corte

admitiu como razoável a segregação racial em locais públicos. O

entendimento da Suprema Corte Norte Americana modificou-se totalmente,

posteriormente, no julgamento do caso Brown vs. Board of Education, que

revogou a possibilidade de discrímen racial, declarando inconstitucional o

“regime Jim Crow” que eram leis estaduais e locais decretadas nos estados

sulistas e limítrofes nos Estados Unidos, em vigor entre 1876 e 1965 que

discriminavam afro-americanos, asiáticos e outros grupos minoritários.

30 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 1.5.2, p. 66.

41

Com isso não se pode mais falar em interpretação jurídica

destinada a revelar suposta vontade da lei ou do legislador. A interpretação

consiste em atividade “concretizadora” que se influencia, diretamente, pela

realidade e pelos momentos históricos.

1.3.1.3 A superação da sentença como ato silogístico

Com um novo conceito de norma, já não mais se confundindo

com seu texto, da mesma forma, somente será possível instrumentalizá-lo a

partir de um conceito pós-positivista de sentença (decisão judicial). Perante o

paradigma pós-positivista, a sentença deixa de ser ato silogístico em que se

aplica mecanicamente uma premissa maior (lei) para a solução do caso

(premissa menor).31

Segundo Georges Abboud, um dos principais equívocos que o

conceito de sentença como silogismo proporciona é a confusão entre texto

normativo e norma, porque ao se considerar a sentença como silogismo, o

enunciado legislativo e a norma se confundem, uma vez que a sentença

passa a ser ato meramente declarativo, e não criador do direito.

Nesse novo modelo, a sentença não pode mais ser concedida

como silogismo em que se formula a norma por meio de um método lógico-

formal. A sentença na qual é produzida a norma para solucionar o caso

concreto (real ou fictício) ocorre de maneira estruturante, afinal, não existe

um descobrir a norma (como se ela correspondesse à vontade da lei ou do

intérprete) o que de fato existe é um produzir/atribuir sentido à norma diante

da problematização de um caso concreto.

31 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 1.5.2, p. 66. O conceito de silogismo pode ser assim resumido: “Um silogismo (ou melhor, um silogismo categórico) é a inferência de uma proposição a partir de duas premissas. Por exemplo: todo os cavalos têm cauda; todas as coisas que têm cauda são quadrupedes; logo, todos os cavalos são quadrúpedes. Cada premissa tem um termo em comum com a conclusão e um termo em comum com a outra premissa”. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, verbete silogismo, p.360.

42

O silogismo é na realidade uma ingenuidade do intérprete na

presente quadra. Isso porque, o silogismo judicial cria uma atitude

reconfortante para o intérprete, que passa a se iludir ao crer que a lei, ou a

súmula vinculante, traz consigo a norma já pronta para a solução dos casos

futuros, restando ao juiz a simples tarefa de acoplar o fato ao texto

normativo.32 A concepção subsuntiva é produto da concepção do positivismo

mecanicista no qual o juiz é mero autômato na aplicação do direito, algo irreal

e inconcebível diante do paradigma pós-positivista.

Infelizmente, o Judiciário caminha no sentido contrário aos mais

avançados estudos do pós-positivismo, atuando muitas vezes, data venia,

como um balcão de contabilidade na solução dos conflitos, dando pouca ou

nenhuma importância ao caso em si, mas sim por meio de uma simples

pseudo solução matemática (no sentido de produtividade da atividade

jurisdicional) aplica o texto friamente ao caso concreto, o que muitas vezes

faz com que não se atinja a real ideia de justiça.

Assim, a sentença judicial perante o paradigma pós-positivista

não pode mais ser vislumbrada como ato meramente silogístico, pelo

contrário, ela é o modelo fundamental na qual se fundem a compreensão da

norma e sua relevância aplicativa. Assim, a norma é fruto do conhecimento

vivo proveniente da atividade interpretativa criadora do jurista. Diante da

hermenêutica filosófica, a interpretação e a ciência jurídica são algo mais que

a utilização de um método seguro e pré-definido, do mesmo modo que a

aplicação do direito é sempre algo mais que a simples subsunção de um

enunciado legislativo ao caso concreto.

Não é demais destacar, que a segurança jurídica não comporta

nos dias atuais a simples ideia de que o que está no texto frio da lei é capaz

de orientar a sociedade, pois a sociedade avança a passos largos em relação

à própria lei, o que torna de extrema necessidade a avaliação da questão

posta inserida no campo dos fatos historicamente avaliados.

32 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 1.6, p. 71.

43

1.4 A Jurisprudência dos valores e a Interpretação Constitucional

A experiência reflexiva apresentada traz o norte de nossa

investigação. Cabe, então, uma exposição mais detalhada da conhecida

Jurisprudência dos valores (Wertungsjurisprudenz) e o compromisso com a

compreensão adequada de como no pós-guerra uma nova forma de se

pensar o direito surge.

A jurisprudência dos valores representa mais uma continuidade

do que uma verdadeira ruptura com o método da Jurisprudência dos

interesses. Enquanto a Jurisprudência dos interesses possui um acentuado

corte sociológico (da identificação dos interesses em conflito que levaram o

legislador a editar a norma), a Jurisprudência dos valores é revestida de uma

temática filosófica que tem como intenção o auxílio do julgador a identificar os

valores que subjazem ao direito naquele dado conflito levado à sua

apreciação.

Se a Jurisprudência dos interesses tinha empreendido a crítica aos procedimentos abstrato-classificatórios e lógico-subsuntivos da Jurisprudência dos conceitos mediante o recurso a modos de pensamento ‘teleológicos’ a Jurisprudência da valoração, em vez de pensamento ‘teleológico’, prefere falar de pensamento ‘orientado a valores.33

A segunda diferença está no lugar privilegiado para o ponto

chave da discussão. Na Jurisprudência dos interesses – nos termos

propostos por Philipp Heck – as atenções estão voltadas para a atividade do

legislador. A tarefa do intérprete, aqui, é reconstruir os argumentos e

ponderar os interesses que levaram à edição do diploma legislativo. Já no

caso da Jurisprudência dos valores, o pólo da discussão é deslocado para a

atividade jurisdicional e o principal problema a ser enfrentado é a

fundamentação da decisão final. Aqui a preocupação é orientar a decisão dos

juízes segundo os valores que constituem os fundamentos do convívio social.

33 LAMEGO, José. Hermenêutica e Jurisprudência. Lisboa: Fragmentos, 1990., cit., p. 87.

44

Trata-se de uma época retratada por autores como Larenz

denominado como da “perda das certezas jurídicas”34.

Isso tudo em razão de uma questão histórica. O final da

Segunda Guerra Mundial representa um marco para composição de uma

nova ordem social, política e jurídica. Em termos sociais, os anos que se

seguiram a 1945 vivenciaram as agruras do período da reconstrução da

Europa e, a partir da década de 1950, desenvolveram condições de vida e

igualdade sem paralelo na história, a chamada “era de ouro do capitalismo”.

Em termos políticos, a queda do nazismo e do facismo –

enquanto inimigos comuns – abriu espaço para a polarização do mundo entre

as duas grandes ideologias: o capitalismo e o socialismo. É o tempo da

chamada “guerra fria”. Juridicamente, a principal mudança operada pelo fim

do período bélico é, certamente, o novo papel desempenhado pelas

Constituições e um remapeamento global do direito público em face da força

normativa dos direitos fundamentais. Todavia, um elemento que permanece

pouco explorado diz respeito ao papel que a “redescoberta cultural dos

Estados Unidos”35 desempenhou nessa reconfiguração do jurídico.

Na última década, começaram a surgir estudos – muitos deles

oriundos da ciência política – que dão conta da expansão do judge made law

no continente Europeu e, mais recentemente, pelos países periféricos.

As transformações operadas pelo constitucionalismo do

segundo pós-guerra e o papel efetivo desempenhado pelo Tribunal

Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht) para efetividade

da Lei Fundamental de Bonn datada de 23 de maio de 1949 passam por essa

tendência, hoje global, de “expansão do poder judicial”.

34 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 1; José LAMEGO. Hermenêutica e Jurisprudência. cit., passim.

35 Cf. LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. Martins Fontes: São Paulo, 2007, p. 245.

45

Essa é outra diferença decisiva que a Jurisprudência dos

valores guarda com relação à Jurisprudência dos interesses. No caso da

primeira, seus postulados metodológicos não se restringem ao âmbito

acadêmico, mas tem como grande experiência a atividade do Tribunal

Constitucional Federal Alemão nas primeiras décadas da segunda metade do

século XX que recepcionou muitas de suas teses.

1.4.1 Predecessores teóricos da jurisprudência dos valores

No âmbito acadêmico, autores importantes como Karl Larenz,

Josef Esser, Claus-Wilhelm Canaris, defenderam – cada um ao seu modo –

os postulados da Jurisprudência dos valores.

Karl Larenz possui em seu pensamento dois pontos bastante

identificativos.

Seu trabalho se alinha ao neohegelianismo, de onde decorrem

suas noções de estado e sistema; politicamente, é preciso observar que, em

um primeiro momento, sua obra apresenta traços marcadamente nacionais-

socialistas, tanto é que o referido autor chegou a ser um dos principais

teóricos do regime.

No pós-guerra, entretanto, sua obra se concentrou em

elementos metodológicos do direito. Sua obra influenciou diretamente os

sistemas de Walter Wilburg e Canaris.

Do ponto de vista da sua teoria produzida no segundo pós-

guerra, é ponto fundamental mencionar sua proposta de distinção entre jus e

Lex (direito e lei). Essa é uma operação tradicional entre os teóricos do direito

na Alemanha do pós-guerra.

Como bem aponta Lenio Streck:

A invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da

46

estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de abertura de uma legalidade extremamente fechada.36

Para Larenz, a decisão de uma questão judicial exige um juízo

de valoração, e ao final, todas elas exigem, porque o direito é concebido aqui

como uma ordem positiva de valores. Em outras palavras, na decisão

orientada por valores, o juiz pode ir para além daquilo enunciado pelo texto

da lei, mas sua decisão, que positivava valores, será de acordo com o

direito.37

Daí a decorrência clara do neohegelianismo. A distinção entre

jus e Lex não coloca Larenz nos trilhos de um jusnaturalismo, na verdade,

Larenz aposta em um sentido de justiça existente em cada indivíduo, a partir

de algo que ele nomeia “consciência jurídica”.

A justiça não é nem a norma fundamental do ordenamento, nem o axioma do qual deduzir outras normas, mas um ideal que o direito positivo tenta realizar, conseguindo-o apenas em parte.38

Larenz propõe um método para resolver o problema das

lacunas, apresentando três casos com instrumentos para preenchê-las. No

primeiro, a lacuna é “patente” e pode ser colmatada por analogia; no

segundo, a lacuna é “oculta” e deve ser integrada por meio de uma redução

teleológica; no terceiro, que é uma extensão do segundo, a lacuna pode ser

coberta por meio de uma extensão teleológica.

Nos dois últimos casos, o intérprete não deve ficar restrito ao

texto da lei, mas, sem desconsiderá-lo, ele deve aperfeiçoá-lo de modo que

atinja a finalidade nele contida e amparada pelo direito. Se esse

36 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. cit., p. 48.

37 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. cit., n. 2, p. 172 e segs.

38 LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. n. 4, p., 255.

47

aperfeiçoamento implica restrição do conteúdo, têm-se uma redução

teleológica; se implica extensão de conteúdos, têm-se uma extensão

teleológica.39

Todavia, Larenz cerca essa atividade de cautelas colocando-a

na esteira de uma Rechtsfortbildung (que pode ser traduzida,

imperfeitamente, como “formação do Direito”), entendida como uma atividade

extra legem intra jus.

Outro ponto importante da proposta teórica de Larenz é a

aposta na chamada “ponderação de bens” como forma de solução de

lacunas do direito em virtude da “colisão de normas”. Ponderação de bens,

interesses, valores ou, como se passou a falar a partir de Robert Alexy,

fórmula da ponderação, são expressões que se constituem e se consolidam a

partir da Jurisprudência dos Interesses e da Abwägung (ponderação) de que

falava Philipp Heck. Em Larenz, e nos demais partidários da Jurisprudência

dos valores que tratam do problema da ponderação, essa questão diz

respeito a uma ponderação da colisão normativa no caso orientada por uma

pauta valorativa.40

Outro autor importante desta escola foi Josef Esser, com

certeza, um dos juristas mais importantes da teoria do direito alemão do

segundo pós-guerra.

Embora vinculado à Jurisprudência dos valores, sua obra é bem

diferente de outros autores da escola como Larenz e Canaris.

O ponto em comum com esses autores aparece na

preocupação com a questão das lacunas – ou da indeterminação do direito –

e o problema da chamada criação judicial do direito.

39 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, letra “c”, pp. 555 e segs.

40 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, n3, pp. 574 e segs.

48

Ressaltamos que o problema da criação judicial do direito se

apresenta como objeto de análise dos juristas desde o movimento do direito

livre e de sua vertente “moderada” que é a Jurisprudência dos interesses. A

diferença é que, no caso da Jurisprudência dos valores, esse momento da

“criação judicial do direito” deve ser guiado por determinados requisitos

objetivos que são os valores culturais de uma sociedade. O modo de tornar

“objetivo” o conhecimento desses valores é que varia de autor para autor. Em

Larenz, como vimos, há uma ênfase na “consciência jurídica” dos indivíduos;

Esser, por sua vez, procura estabelecer esses valores a partir da própria

sociedade e de seu contexto de vivências.

Em seus trabalhos, Esser procura desenvolver uma espécie de

“Jurisprudência comparativa”, colocando lado a lado as experiências

interpretativas que se manifestam em países do common law e aqueles que

se operam em países de civil law.

No livro Princípio e norma na elaboração judicial do direito

privado, Esser pratica esse tipo de metodologia procurando desenvolver – a

partir da distinção anglo-saxã entre principle e rule – uma distinção entre

princípio e norma.

Assim, o autor se aproxima de uma abordagem que confere

ênfase à figura do juiz procurando, todavia, explorar meios de contenção

dessa mesma atividade. Numa passagem extremamente percuciente, Mario

Losano afirma o seguinte sobre a obra de Esser:

Visto que Esser se move num ambiente de direito continental,

a ligação entre o mundo dos princípios e as normas do

ordenamento jurídico deve, de qualquer maneira, passar

através de um elemento legislativo, que para Esser é

constituído pelas cláusulas gerais.41

41 Mario LOSANO. Sistema e estrutura no Direito. cit., n. VI.5., p. 260.

49

Sua importância também ganha destaque na preocupação em

apontar para a insuficiência de um pensamento jurídico autossuficiente, para

a necessidade de se constituir um saber jurídico a partir de um diálogo com a

filosofia, a sociologia e demais ciências sociais. Além disso, seu inegável tino

comparativista abrira o estudo do direito para um diálogo produtivo entre as

tradições que compõem o direito ocidental.

1.4.2 A Jurisprudência dos Valores e a Jurisprudência do Tribunal

Constitucional Federal Alemão

No Pós-guerra produziu-se uma série de debates reconduzindo

a Constituição e o Direito Constitucional a um lugar realmente novo no âmbito

da experiência jurídica vivenciada pela Europa continental.

Dentre as mais variadas concepções, nunca é demais lembrar

as ideias de força normativa da constituição42 e de aplicabilidade imediata

dos direitos fundamentais que, nesta quadra da história, condicionam

efetivamente o legislador infraconstitucional.

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em diversas

oportunidades43 firmou a concepção de que a Lei Fundamental se assenta

em uma ordem plural de valores guarnecidos pelos princípios constitucionais.

Tais valores, por serem plurais, no mais das vezes, encontram-se em rota de

colisão. Isto é, as circunstâncias concretas sob as quais se assenta o caso a

ser decidido podem fazer com que dois valores, igualmente amparados por

42 Cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Safe, 1991, passim.

43 Como referência, podemos citar: BverfGE 7, 198; BverfGE 7, 377; BverfGE 35, 202; BverfGE 41, 251. Importante referir que todos os casos aqui citados são amplamente discutidos em livros já traduzidos para o português. Eles podem ser facilmente encontrados em LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, n. 3, p. 576-579; ou em ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, passim.

50

princípios constitucionais, estejam agindo como forças opostas para solução

do caso. Assim, é necessário que haja um procedimento para apurar qual

deles possui mais força para reger a relação estabelecida naquele dado

caso. Esse procedimento é a chamada ponderação que o tribunal afere

segundo critérios de proporcionalidade.

Esse tipo de solução acabou se espalhando por todos os ramos

do direito na medida em que, esse novo fenômeno constitucional provocou

algo que é chamado por diversos autores de constitucionalização do direito.44

O fenômeno nada mais quer significar do que a invasão das

disposições constitucionais – mormente aquelas guarnecedoras de direitos

fundamentais – em todos os ramos do direito, inclusive no âmbito do direito

privado (do trabalho) que, classicamente, se colocava como um “feudo”

inviolável. Assim, é interessante citar o caso que constitui o motivo de ligação

ou condutor (Leitmotiv) do julgamento BfverGE 7 377.

Nesse caso, o tribunal teve de decidir se um determinado

dispositivo de uma lei de um Estado que limitava a abertura de farmácias a

partir da instituição de certos requisitos estava de acordo com o princípio da

liberdade profissional guarnecido pela Lei Fundamental. Nesse caso, o

tribunal ponderou sobre a importância do direito fundamental à liberdade de

profissão e o bem comunitário do direito à saúde pública. No caso em

específico, o tribunal entendeu inconstitucional a lei do Estado por ferir “em

grau muito elevado” a liberdade profissional estatuída (como valor) pela Lei

Fundamental.

Essa atividade de constante intervenção do tribunal, nas mais

variadas questões apresentadas pela sociedade, provocou grande reação por

parte da comunidade intelectual alemã. Autores da estatura de um Jürgen

44 Nesse sentido, JESTAEDT, Mathias. El positivismo jurídico aplicado al Tribunal Constitucional Alemán. El poder del guardián y la impotencia del señor de la Constitución. In La ponderación en el Derecho. Eduardo MONTEALEGRE (org.). Bogotá: Universidade Externado, 2008, pp. 255 e segs..

51

Habermas passaram a criticar duramente a jurisprudência do tribunal

classificando-a como ativista, nos termos das discussões que têm lugar nos

Estados Unidos.

Já no caso de autores como Robert Alexy, a postura que se

apresenta é mais de legitimação teórica da atividade do tribunal, do que

propriamente de crítica. Alexy aprova, em alguma medida, a Jurisprudência

da valoração praticada pelo tribunal. Todavia, reconhece que, em alguns

momentos, o apelo a valores pode levar a certo irracionalismo decisório, na

medida em que não existem critérios objetivos para determinar qual dos

valores em conflito deve prevalecer. Assim, em sua obra, Alexy opõe um

modelo decisionista 45 a um modelo fundamentado de sopesamento. O

modelo decisionista representa as decisões “irracionais”. O fundamentado,

por sua vez, tem lugar no momento em que a lei da ponderação é aplicada às

decisões do tribunal.46

De modo mais recente, Mathias Jastaedt afirma que a

jurisprudência do Tribunal Constitucional, na perspectiva de concretizar a

constituição, acabou criando um aglomerado de decisões que são

constantemente referidas para oferecer soluções para os novos casos

apresentados ao tribunal.

Ao invés de se remeter ao texto da Constituição, o tribunal

fundamenta suas decisões na própria jurisprudência. Em determinados casos

limítrofes, que têm lugar no âmbito da chamada “mutação constitucional”, o

tribunal acaba por realizar uma alteração no texto da Constituição de modo a,

na interpretação oferecida pelo citado autor, tomar o papel do legislador

constitucional. Assim, o autor fala de um poder cada vez maior do “guardião

45 O modelo decisionista é usualmente conhecido por ter sido apresentado pelo teórico alemão Carl Schmitt que, dentre outras propostas, defende que quem decide no estado de exceção é o soberano.

46 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, n. 2.2.2.1., pp. 164 e segs.

52

da Constituição” em detrimento do poder de revisão da Constituição, que é

do legislador constitucional.47

Aqui, em certa medida, convém destacar que não temos no

nosso País uma Corte Constitucional nos moldes apropriados para os quais

foi concebida, como observamos em outros países, visto que no Brasil, nosso

Supremo Tribunal Federal é parte da estrutura do Poder Judiciário, enquanto

deveria estar em patamar supra, exatamente para resguardar e velar pelos

valores da Constituição.

Daí e talvez por essa razão, de se observar a constante

confusão entre a função de guardião dos valores constitucionais com a

suposta invasão do Poder Legislativo, como ofensa à soberania e ao

equilíbrio entre os Poderes do Estado.

Por certo que decisões “ativistas” ou que ultrapassem os limites

estabelecidos juridicamente na Constituição devem ser sempre objeto de

críticas e proibidas.

Uma teoria da decisão, como será apresentada nos itens

seguintes, tem como missão criar as condições para o controle jurídico das

decisões judiciais, condenando qualquer tipo de decisionismo político por

parte dos tribunais. Todavia, não se deve confundir esse tipo de postura –

que defende uma autonomia para o jurídico no momento da construção das

soluções apresentadas aos casos concretos – com uma vetusta proibição de

interpretar. A tarefa de concretização exige, sim, um exercício interpretativo.

Mas essa interpretação sofre limites e essa é a grande questão a ser

abordada. Definitivamente, o fato de ser inexorável interpretar para se fazer

direito não pode autorizar decisões arbitrárias por parte do intérprete. Toda

essa problemática reivindica uma revisão e uma nova postura com relação ao

47 Cf. JESTAEDT, Mathias. El positivismo jurídico aplicado al Tribunal Constitucional Alemán. El poder del guardián y la impotencia del señor de la Constitución. In La ponderación en el Derecho. Eduardo MONTEALEGRE (org.). Bogotá: Universidade Externado, 2008, pp. 255 e segs..

53

dever constitucional de fundamentação das decisões proferidas pelo

judiciário (art. 93, IX da CF/1988).

1.4.3 A Jurisprudência dos Valores e a Crítica Brasileira

É muito interessante notar como no Brasil, o final do regime

militar e o processo de redemocratização que culminou com a promulgação

da Constituição de 1988 trouxe à tona todo o debate sobre Direito

Constitucional que esteve presente no campo jurídico europeu na segunda

metade do século XX.

Como assevera Gomes Canotilho, no interior da doutrina

brasileira, o Direito Constitucional, realmente, passou de disciplina acessória

para disciplina estruturante.

O problema é que em muitos casos, com toda essa nova onda

vinda da Europa, muitas vezes se trata o estudo de forma equivocada e com

sincretismos e arranjos que contribuem para prejudicar um estudo sério sobre

o tema.

Esse problema vem sendo fortemente denunciado por Lenio

Streck 48 . Segundo o estudioso autor, a doutrina brasileira operou três

recepções equivocadas: a) dos postulados da Jurisprudência dos Valores; b)

da Ponderação Alexyana; c) do ativismo judicial norte-americano.

O ponto fulcral que interessa a esta tese é a questão que diz

respeito aos equívocos presentes na recepção dos postulados da

Jurisprudência dos Valores.

48 Cf. a 4ª Edição de STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. cit., Introdução, n. 4, pp. 47 e segs.

54

No Brasil tem sido comum o discurso sobre a chamada

constitucionalização do direito em referência ao espalhamento das

disposições constitucionais para todos os demais ramos do direito. É comum

a referência ao fato de que o direito (infraconstitucional) não pode ficar imune

aos “valores” introduzidos pela nova ordem constitucional.49 Valores esses

que são conduzidos para dentro do sistema jurídico pela via dos princípios

constitucionais que devem ser aplicados segundo as regras da ponderação.

Ainda nos valendo dos ensinamentos de Streck, as teses da

Jurisprudência dos valores serviram, na realidade alemã, para oferecer um

método que possibilitasse a abertura de uma estrutura de legalidade

extremamente fechada e rígida. As concepções de sistema predominante,

inclusive, também apontavam para um fechamento rigoroso do direito e para

uma restrição forte da criação da atividade judicial. Isso começou a se alterar

a partir das denúncias do movimento do direito livre e das criticas a “falácia

conceitual”, efetuada pela jurisprudência dos interesses.

Ocorre que, os fatores históricos levaram a uma dificuldade de

implementação dessas teses que só chegaram a ser efetivamente ventiladas

no âmbito judicial com o final da Segunda Guerra Mundial.

A jurisprudência dos valores, nesse sentido, pode ser vista

como um aperfeiçoamento das teses da jurisprudência dos interesses. Sua

contribuição é conduzir a solução da “criação judicial do direito” nos casos de

lacunas pelos valores que sustentam todo o discurso sobre o direito.

Esse ponto é que parece não ter sido bem compreendido por

parte da doutrina brasileira. Como afirma Streck:

49 Por todos, Cf. BARROSO, Luis Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da História: a Nova Interpretação Constitucional e o papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In Virgílio Afonso da SILVA (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.

55

Os juristas brasileiros não atentaram para as distintas realidades (Brasil e Alemanha). No caso específico do Brasil, onde, historicamente, até mesmo a legalidade burguesa tem sido difícil de ‘emplacar’, a grande luta tem sido estabelecer um espaço democrático de edificação da legalidade, plasmado no texto constitucional.50

Do mesmo modo, no direito privado há uma acentuada

incidência das teses presentes na jurisprudência dos valores. Isso acontece,

no mais das vezes, na senda aberta pelas chamadas “cláusulas gerais” que,

nem sempre são articuladas de forma adequada pela doutrina brasileira,

deixando excessiva margem de discricionariedade para o julgador no

momento da decisão de um caso que esteja coberto por uma dessas

regras.51

Em suma, há que se ter presente que a Jurisprudência dos

valores produziu um tipo de discurso metodológico que, ainda hoje, faz parte

de nossa doutrina e jurisprudência. As críticas que são feitas aos partidários

da valoração passam pelo excesso de subjetivismo que existe na ideia de

valores (que estão a depender do sujeito que os conhece e os articula)

chegando às acusações de irracionalidade a que o procedimento da

ponderação submete o direito.52

50 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. cit., Introdução, n. 4, pp. 48 e segs.

51 Por todos, Cf. COSTA, Judith Martins. As Cláusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurídico. In Revista dos Tribunais, vol. 680, p. 47, Jun/1992; COSTA, Judith Martins. O Direito privado como um “sistema em construção” – As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. in Revista dos Tribunais, vol. 753, p. 24, Jul/1998

52 Nesse sentido são as críticas de Friedrich Müller: “Tal procedimento (a ponderação) não satisfaz as exigências, imperativas no Estado de Direito e nele efetivamente satisfatíveis, a uma formação da decisão e representação da fundamentação, controlável em termos de objetividade da ciência jurídica no quadro da concretização da constituição e do ordenamento jurídico infraconstitucional. O teor material normativo de prescrições de direitos fundamentais e de outras prescrições constitucionais é cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito com ajuda dos pontos de vista hermenêutica e metodicamente diferenciadores e estruturante da análise do âmbito da norma e com uma formulação substancialmente mais precisa dos elementos de concretização do processo prático de geração do direito, a ser efetuada, do que com representações necessariamente

56

Com essas críticas todas, o caminho que devemos seguir agora

é o da definição do conceito de direito atual e sua realidade enquanto regras

e princípios.

1.5 O Conceito de Direito entre Regras e Princípios. Entre Robert Alexy

e Ronald Dworkin

Distinguir estruturalmente53 regras de princípios representa uma

operação de classificação normativa que se movimenta num nível puramente

semântico (em abstrato), que não problematiza, radicalmente, a questão da

interpretação num nível pragmático-existencial (interpretativa). Isso

certamente é o que se espera tenha sido absorvido pela análise empreendida

até aqui.

Tal situação, nos leva a necessidade de avaliar algumas

posturas, como a de Robert Alexy, uma vez que esse continua preso a um

normativismo idealista ao afirmar o conceito de norma como o principal

conceito da ciência do direito e fazer derivar dele o caráter deôntico dos

princípios.

formais de ponderação, que conseqüentemente insinuam no fundo uma reserva de juízo (Urteilsvirbehalt) em todas as normas constitucionais, do que com categorias de valores, sistema de valores e valoração, necessariamente vagas e conducentes a insinuações ideológicas”. MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. cit., p. 36.

53 Ao estabelecer uma distinção estrutural entre regra e princípio, Alexy permanece na superficialidade ôntica e acaba caindo em uma certa ingenuidade ontológica. Podemos falar, mais especificamente, em uma inadequação ontológica da teoria alexyana, que leva ao equívoco de se introduzir essa distinção estrutural entre regras e princípios. Como bem assevera Streck, Alexy ignora a dupla estrutura da linguagem, e com isso permanece numa dimensão de suficiências ônticas. Por isso, em sua distinção entre regras e princípios, os princípios são apresentados como “reservas” argumentativas no caso da falência do sistema de regras. Em outras palavras, com sua teoria da argumentação, “Alexy substitui o standard I (compreensão) pela racionalidade procedimental-argumentativa, de índole axiomático-dedutiva”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. cit., p. 139.

57

Não é exagero afirmar que o conceito semântico de norma com

o qual Alexy opera torna o princípio uma derivação artificial e, ao mesmo

tempo, confere-lhe uma força talvez maior do que eles mesmos podem

suportar ao afirmá-los como mandados de otimização, o que estabelece um

poder (ou competência no seu sentido kelseniano) demasiadamente

exagerado à figura do juiz.

Neste ponto é que o elemento discricional se afigura mais

evidente no conceito de princípio de Alexy.

O ponto decisivo para a sua distinção entre regras e princípios

reside no fato de que os princípios são, como já vimos, mandados de

otimização, enquanto que as regras têm caráter de mandados de definição54.

Como mandados de otimização, os princípios ordenam que algo

seja realizado na maior medida possível, desde que respeitadas às

possibilidades e os limites fáticos e jurídicos. Nessa medida, a ordenação

principiológica pode ser satisfeita em diferentes graus, o que depende não só

de suas possibilidades fáticas, mas também jurídicas.

As limitações jurídicas são derivadas do fato de existirem não

apenas regras, mas também princípios opostos que estão em constante

pressão uns contra os outros. Esse caráter oposicional dos princípios implica

na suscetibilidade (e até mesmo na necessidade, segundo Alexy) da

ponderação.

A ponderação, portanto, é a forma de aplicação dos princípios55.

Por outro lado, as regras são normas que sempre são

satisfeitas ou não são. Não há possibilidade de satisfazer a ordem emanada

das regras em diferentes graus, como acontece com os princípios, mas sua

54 Cf. ALEXY, Robert. El concepto y la validad del derecho. op., cit., p. 162.

55 Cf. ALEXY, Robert. El concepto y la validad del derecho. op., cit., p. 162.

58

aplicação é uma questão de tudo-ou-nada. Assim, Alexy determina a

subsunção como a forma característica de aplicação do direito que as regras

realizam.

É perceptível que a teoria da norma de Alexy sustenta-se

precipuamente na distinção entre regra e princípio. Por sua vez, somente é

possível distinguir regra de princípio, porque este deve ser aplicado pela

ponderação, algo que não é possível para as regras. Outrossim, a exclusão

de uma regra na aplicação de um caso acarreta sua não aplicação para todos

os futuros casos. Já a não aplicação de um princípio, não implica seu

afastamento em um caso futuro cujas circunstâncias fáticas sejam diferentes

daquele caso que ensejaram sua não aplicação.

A diferenciação estrutural entre regra e princípio é fundamental

para a coerência e a compreensão da obra de Alexy, desse modo, nos

parecem incompreensíveis às teorizações de natureza alexyana que almejam

a ponderação das próprias regras.56

A primeira vista, é similar a distinção oferecida por Alexy,

daquela apresentada por Dworkin, entretanto olhadas de modo mais acurado

as posições parecem assumir significados muito distantes entre si57:

a) tanto Dworkin quanto Alexy pretendem apresentar uma

diferença qualitativa (e não simplesmente quantitativa – de grau ou

generalidade) entre regras e princípios;

b) O tudo-ou-nada que Dworkin apresenta como característica

para as regras é expressamente assumido por Alexy e se aproxima, em

grande medida, daquilo que este autor denomina “mandado de definição”;

56 No sentido que discordamos ver: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdictional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

57 Cf. ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Introdução à teoria e filosofia do direito. São Paulo: RT, 2013, cap. X.

59

c) Dworkin se refere a uma dimensão de peso e de importância

presente em seu conceito de princípio e que impediria, ao contrário das

regras, a exclusão de um em favor da aplicação de outro, como fatalmente

acontece com as regras. Essa dimensão de peso – também expressamente

referenciada por Alexy – seria o ponto por onde o argumento da ponderação

seria introduzido no conceito de princípio de Dworkin.

Tais considerações, todavia, não parecem estar corretas.

Isto porque:

a) Alexy e Dworkin operam com diferentes conceitos de norma

e o caráter deôntico dos princípios é dado de maneira distinta em cada um

deles. Para Alexy, o princípio tem caráter deôntico porque, como mandado,

participa, ao lado das regras, do gênero norma. Para Dworkin, a

normatividade do direito se manifesta concretamente na própria prática

interpretativa e não em um sistema lógico previamente delimitado, sendo,

portanto, o conceito de norma remetido a um nível pragmático – e não

meramente semântico como quer Alexy. Desse modo, não há na obra de

Dworkin conceito prévio e abstrato de norma jurídica. Os princípios são

normativos em Dworkin porque acontecem, interpretativamente, no interior

desta atividade interpretativa que é o direito;

b) É, no mínimo, apressada a aproximação que se faz entre o

tudo-ou-nada de Dworkin, e a subsunção como forma de aplicação do direito

preservada por Alexy. Subsunção pressupõe silogismo que, por sua vez,

repristina a velha cisão entre questão de fato e questão de direito que

definitivamente não está em jogo quando se fala de tudo-ou-nada. Ademais,

a referência Dworkiana a essa característica da regra refere-se muito mais ao

modo como se dá a justificação argumentativa de uma regra, do que

propriamente ao seu modelo de aplicação. Ou seja, quando se argumenta

com uma regra ela é ou não é, logo, sua “aplicação” não depende de um

esforço argumentativo que vá além dela própria. Já num argumento de

princípio, é necessário que se mostre como sua “aplicação” mantém uma

60

coerência com o contexto global dos princípios que constituem uma

comunidade política;

c) isso implica, diretamente, a dimensão de peso ou importância

à que Dworkin faz referência no seu conceito de princípio. É possível dizer

que Dworkin combina peso e importância porque, ao contrário das regras,

nenhum princípio deixa de ter importância e pode ser excluído da

fundamentação de uma decisão. Assim, a dimensão de peso determina que

um argumento de princípio sempre se movimente de forma coerente em

relação ao contexto de todos os princípios da comunidade política. Desse

modo, a justificação do fundamento da decisão só estará correta, na medida

em que respeite a um todo coerente de princípios num contexto de

integridade. Isso implica: os princípios têm, desde sempre, um caráter

transcendental, porque, diferentemente das regras, nos remetem para uma

totalidade na qual, desde sempre, já estamos inseridos: nosso contexto de

mundo, de vivências primárias que constituem a significação do mundo. Por

isso, ponderação e dimensão de peso não são equivalentes.

Para Dworkin, não há uma cisão radical entre regras e

princípios que estão, de modo permanente, implicados na prática

interpretativa que é o direito. Há uma diferença entre regra e princípio porque,

quando nos ocupamos das controvérsias jurídicas e procuramos argumentar

para resolvê-las, somos levados a nos comportar de modo distinto quando

argumentamos com regras e quando argumentamos com princípios. Há um

elemento transcendente nos princípios, porque, quando argumentamos com

eles, sempre ultrapassamos a pura objetividade em direção a um todo

contextual coerentemente (re) construído, que, todavia, sempre se dá como

pressuposto em todo processo interpretativo. Algo que permanece oculto

pela objetividade aparente das regras. Tanto é assim que o próprio

positivismo de Hart, levado por essa objetividade das regras, construiu uma

imagem do direito não conseguindo descrevê-lo colado na própria faticidade.

Isso, de certa maneira, permance na classificação (semântica) proposta por

Alexy em seu conceito de norma. A partir dele somos surpreendidos por uma

artificialidade que efetua uma cisão radical entre regras e princípios

61

oferecendo, inclusive, diferentes procedimentos para a “aplicação” de cada

uma destas espécies normativas.

d) O equívoco em se equiparar Alexy com Dworkin repercute na

própria relação entre princípio jurídico e sistema. Isso porque esses dois

pensadores ao apresentarem diferentes conceitos para princípios,

consequentemente, conferem-lhes distintas funções. Para Alexy, os

princípios jurídicos possibilitam abertura no sistema jurídico, admitindo para

os casos difíceis, certa margem de discricionariedade, ou seja, por via da

ponderação duas ou mais soluções jurídicas devem ser consideradas

legitimamente válidas perante o sistema. Em contrapartida, Dworkin elabora

a questão dos princípios sempre tendo em vista a integridade do

ordenamento, sua utilização não é conflitiva (daí a impossibilidade de se

utilizar a ponderação), os princípios conferem coerência e integridade ao

sistema jurídico, conduzindo a interpretação para aquilo que o jusfilósofo

nomeia de única resposta correta. Assim, em Dworkin, mesmo perante casos

difíceis, não se pode admitir como válidas mais de uma única decisão para o

caso judicial.

A questão central do problema envolvendo a distinção entre

regras e princípios passa necessariamente, pela problematização e

determinação do conceito de princípio, e não simplesmente por uma

discussão estrutural de como deve se dar esta classificação que se ocupa em

distinguir duas espécies normativas.

Entre nós, na dogmática brasileira, o debate parece se

encaminhar na direção oposta, dando-se ênfase ao problema de distinção

classificatória-estrutural entre regras e princípios e deixando sem uma

problematização adequada o próprio conceito de princípio e suas relações

com o conceito de norma jurídica. Autores como Virgílio Afonso da Silva e

Humberto Ávila, com relevante contribuição, são importantes para se

62

entender os mitos e os equívocos acerca da distinção entre princípios e

regras tendo como marco a teoria de Alexy58.

Virgílio Afonso da Silva denuncia os diversos “sincretismos

metodológicos” que se escondem por trás das classificações que vários

autores brasileiros realizam entre regras e princípios. O ponto principal

apontado por Virgílio, e que caracterizaria esse sincretismo, é a utilização

indiscriminada da teoria estruturante de Friedrich Müller e a teoria dos

princípios de Robert Alexy. Muitos autores, inclusive Humberto Ávila,

justapõem as teses destes dois teóricos que, definitivamente, são exclusivas

e não inclusivas.

Certamente, pelo que observamos, é muito difícil tentar

compatibilizar as teorias de Alexy e Müller uma vez que este último é um

ferrenho crítico da ponderação, instrumento metodológico utilizado por Alexy

para solucionar os problemas que em sua teoria derivam da colisão de

princípios. Müller também crítica o conceito semântico de norma proposto por

Alexy. Quanto a isso, estamos de acordo com o Ilustre jurista Virgílio Afonso

da Silva.

Todavia, a crítica ao “sincretismo” desenvolvido por Virgílio, com

o devido respeito, volta-se contra ele mesmo. Com efeito, o autor – como boa

parte da doutrina brasileira – aceita uma espécie de “compatibilização” entre

as posições de Alexy e Dworkin no que atina ao conceito de princípio destes

dois autores. Em nenhum momento, contudo, chegam a ser esclarecidas as

diferenças paradigmáticas que marcam as teorias de Alexy e Dworkin e a

própria distinção entre regras e princípios efetuada por cada um deles, tal

como expusemos acima.

Desse modo, o próprio Virgílio recai em uma espécie de

sincretismo, pois não coloca como problema aquilo que, em cada um dos

58 Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: Mitos e Equívocos acerca de uma distinção. In: Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del rey, N. I jan./jun. 2003, pp. 607-630.

63

autores, determina a formação do conceito, mas somente a

distinção/classificação dos princípios em relação às regras. Sendo assim,

todo processo de formação do conceito de princípio permanece escondido

nas entrelinhas da argumentação, terminando por velar a radical diferença

que existe entre Alexy e Dworkin.

Mister ressaltar que esta não é uma peculiaridade da avaliação

realizada no trabalho do Ilustre professor Virgílio. Também Humberto Ávila59,

com sua crítica à distinção alexyana e a (re) formulação que propõe a esta

classificação, de onde vem a ideia de princípios como postulados normativos

que comportam uma dimensão finalística a ser executada que não está

presente nas regras – não reconhece como verdadeira a questão envolvendo

aquilo que possibilita o conceito de princípio de cada um destes autores

(Alexy e Dworkin).

De todo modo, é preciso ter claro que esse problema está

intimamente ligado à relação entre prática e teoria.

Dessa noção ferramental de teoria, nasce a ideia precária,

enganosa e equivocada de que primeiro aprendemos as coisas na teoria e

depois “aplicamos” o conhecimento adquirido teoricamente na prática. Isso

representa não só uma representação abstrata da relação entre teoria e

prática, como articula uma simplificação ingênua do saber e do problema do

conhecimento: como a teoria se limita a formular os resultados dos

experimentos descobertos pela investigação da ciência, a diferença entre

teoria e prática se torna turva e estas acabam por se tornar a mesma coisa60.

59 Cf. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre regras e princípios e a redefinição do dever de proprocionalidade. In: Revista de Direito Administrativo n. 215, jan.-mar. 1999.

60 Cf. GADAMER, Hans-George. Acotaciones Hermenéuticas. Tradução de Ana Agud e Rafael de Agapito. Madrid: Trotta, 2002, p. 19.

64

Quando nos ocupamos em tentar determinar qual a

classificação que se mostra “metodologicamente mais coerente e sólida”61,

não estamos a questionar qual formulação representa melhor os resultados

que os experimentos jurídicos em torno da normatividade e do caráter

deôntico dos princípios nos coloca à disposição? Parece-nos difícil aduzir

pela negativa destas questões. A primazia teórica das posições de Alexy e o

elemento semântico presente em sua teoria parece contaminar seus

seguidores e críticos brasileiros. É difícil responder como escapar da cilada

que o conceito semântico de norma impinge a Alexy. Afinal, os princípios

podem ter um conteúdo pré-determinado? Calcado em Alexy, Virgílio

reivindica para os princípios uma dimensão de deveres que eles carregariam

prima facie62.

Em seu texto, Virgílio chega a reconhecer o problema que os

princípios representam dentro de uma “filosofia moral”. Porém não chega a

tocar no papel que a racionalidade e o saber podem desempenhar diante

desta problemática. Nessa investigação afirmamos que os princípios são

problemas do saber ou da racionalidade prática que Aristóteles chamava de

phrónesis.

Com efeito, o tipo de saber ou racionalidade que empregamos

quando temos que julgar uma atividade humana (ação, conduta,

pensamentos, opiniões etc.) é um saber prático que precisa se decidir sobre

uma situação determinada. É também desse tipo de saber que falamos

quando problematizamos questões relativas à compreensão e à

hermenêutica.

Os princípios, portanto, situam-se em um âmbito compartilhado

de crenças e decisões que são tomadas no passado e que possibilitam a

abertura de um projeto decisional futuro, constituindo-se como fundamento

normativo das principais questões jurídicas. Isso não representa nenhum

61 Cf. SILVA, Virgílio Afonso. op., cit., p. 614.

62 Cf. SILVA, Virgílio Afonso. op., cit., p. 619.

65

conformismo ou conservadorismo. A pessoa que não é associal acolhe

sempre o outro e aceita o intercâmbio com ele e a construção de um mundo

comum de convenções63.

Esse possibilitar aberto pela dimensão prática que um princípio

comporta não autoriza discricionariedades por parte daquele que decide.

Desse modo, toda reflexão sobre o conceito de princípio e as

possibilidades de sua determinação precisam atentar para o fato de que eles

são construídos no interior de uma comunidade histórica que desde sempre é

compreendida antecipadamente na historicidade. Todo princípio possibilita

uma decisão – no sentido de abrir um espaço para que o juiz decida, de

forma correta, a demanda que lhe é apresentada – mas, ao mesmo tempo, a

comum-unidade dos princípios limita esta mesma decisão uma vez que

impõe que ela seja tomada ao modo de padrões já estabelecidos e

compreendidos historicamente.

Assim, a própria ideia de história institucional que aparece

constantemente em Dworkin e na sua teoria dos precedentes – que reverbera

de modo determinante em seu conceito de princípios, fica muito melhor

compreendida.

Nestes termos, aparece com clareza o sentido da afirmação de

Lenio Streck de que os princípios efetuam um “fechamento hermenêutico”64

no momento da decisão.

A dimensão prática e o caráter de transcendentalidade histórica

dos princípios não os fazem aparecer como cláusulas permissivas de um

projeto livre no momento da decisão judicial. Mas esse projeto – enquanto

projeto jogado – opera como uma limitação da decisão a ser tomada, visto

que, em sua fundamentação, esta deverá prestar contas ao sentido histórico-

63 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II.3 ed., São Paulo: Vozes, 2003, p. 377.

64 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. cit., n. 8.1, p. 213 et seq.

66

temporal que a comum-unidade de princípios projeta naquele caso, naquele

problema que se deve decidir.

Portanto, se não há problematicidade, se não há caso concreto

não se pode falar em princípios. No nível da práxis, não há uma distância tão

grande entre regras e princípios, como quer Alexy e seus seguidores. Os

princípios só não aparecem com a clareza objetiva das regras porque se

revestem de uma dimensão histórico-transcendental: sua “aplicação”

depende de uma justificação que vai além da mera objetividade das regras,

num plano que não é meramente empírico e textual, mas que traz consigo a

dimensão de vivências práticas e compartilhadas pela comunidade histórica.

A primazia da teoria, presente nas classificações discutidas

acima cede lugar à dimensão prática que atravessa o direito e sua inexorável

dimensão hermenêutica. Num exemplo que nos remete ao aprendizado de

uma língua estrangeira: não aprendemos primeiro a gramática – forma

teórica de manifestação da língua – para depois apreender seus usos e

aplicações concretas.

Pelo contrário, muitas vezes “aplicamos” regras gramaticais

sem saber, conscientemente, que o estamos fazendo. Elas operam conosco

de um modo subterrâneo porque nos movemos numa dimensão

compartilhada que compreendemos no modo de uma racionalidade prática,

que dispensa os procedimentos metodológicos próprios da apreensão

teórica.

Do mesmo modo, o direito não pode ser visto como uma

“gramática da convivência”.65 Desde sempre executamos regras de convívio

porque desde sempre vivemos em uma sociedade que compartilha tradições,

cultos, rituais, regras de convívio, formas de expressão etc.

65 Nesse sentido, não concordamos com Otfried Höffe que cunhou o termo gramática da convivência para se referir ao direito. HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 60.

67

Desde cedo, somos educados e partilhamos a educação com

outras pessoas de modo que, já aí, temos como pressupostos uma série de

padrões sociais que nos possibilitam dizer o que se tolera ou não; ou o que é

permitido ou não. Quando nos colocamos em posição em que pretendemos

discutir teoricamente as questões jurídicas não podemos perder de vista esta

dimensão prática na qual já estamos – existencialmente – inseridos.

Assim, quando falamos de princípios isso se torna ainda mais

evidente porque é nesta dimensão prática que eles aparecem e são

cultivados. Ninguém estuda o devido processo legal se não compreende a

dimensão histórica e as questões cotidianas na qual ele está envolvido. Sua

rigidez no âmbito do common law e o rigor na sua aplicação decorrem

certamente do contexto histórico que o cunhou e da tradição que se

sedimentou em torno de sua consagração.66

Destarte, aquilo que Alexy, Virgílio e Avila operam é uma

classificação de normas – num sentido próximo daquilo que no Brasil ficou

famoso no formato da classificação das normas constitucionais – mas não

chegam a tocar no âmbito do problema que envolve a determinação do

conceito de princípio.

O modelo abstrato/semântico do a priori de Alexy e, em última

análise, de todo positivismo jurídico de inspiração kantiana, faz com que a

segurança e certeza da argumentação jurídica se dê, pretensamente, no

âmbito de uma estrutura formal a priori que é a ponderação.

E esse processo só pode ser realizado porque se guia,

antecipadamente, por critérios de rigor e exatidão próprios das matemáticas a

partir dos quais o resultado nem é tão importante, desde que a estrutura

66 Em estudo com abundante pesquisa, Nelson Nery Junior apresenta a dimensão histórica presente na formação do princípio do devido processo legal (due process of law) e sua sedimentação no devido processo em sentido material (Substantive due process) e em sentido processual (Procesural due process). Estes contornos são decisivos para a formação do princípio e sua gradual afirmação. Cf. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, cit., cap. 1 e 2.

68

metodológica seja firme e coerente. Tudo isso no interior de um âmbito

estritamente teórico que não alcança as dimensões práticas presentes na

atitude interpretativa do direito. A diferença entre regra e princípio deve ser

pensada, portanto, na estrutura prática da interpretação do direito.

Sendo assim, não basta trabalhar com a dicotomia princípios X

regras para caracterizar como pós-positivista determinada teoria do direito.

1.6 O Caráter de Relevância dos Direitos Fundamentais no Movimento

Constitucionalista

Os denominados direitos fundamentais (Grundrechte)

constituem na atualidade o conceito que engloba os direitos humanos

universais e os direitos nacionais dos cidadãos. As duas classes de direitos

são, ainda que com intensidades diferentes, partes integrantes necessárias

da cultura jurídica de todo o Estado constitucional.67

Em nosso ordenamento, os direitos e as garantias fundamentais

estão contidas no art. 5.º da Constituição Federal, contudo, o § 2.º do artigo

quinto determina que direitos e garantias expressos na Constituição não

excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou

dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja

parte.

Importante destacar, que o título II da Carta de 1988 que trata

especificamente dos direitos e garantias fundamentais é composto de 4

(quatro) capítulos, que tratam especificamente a) de direitos e deveres

individuais e coletivos (capítulo I); direitos sociais (capítulo II); direitos

vinculados a nacionalidade (capítulo III); e direitos políticos (capítulo IV).

A aplicação imediata configura característica inerente aos

direitos fundamentais, conforme se observa no art. 5.º § 1.º que determina:

67 HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional, Buenos Aires, Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2007, § 65 p. 304.

69

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Nessa perspectiva, o constitucionalismo consagrou formulação

amplamente difundida de que, atualmente, não são mais os direitos

fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei que deve mover-se

no âmbito dos direitos fundamentais. Desse modo, os direitos e garantias

fundamentais asseguram ao cidadão uma posição jurídica subjetiva, de fazer

valer seu direito perante o poder público, independentemente de lei ordinária

regulamentadora do direito fundamental, ou ainda se a lei for deficiente e

inadequada.68

Acerca da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, nosso

texto constitucional é ainda mais enfático, uma vez que assegura a utilização

do mandado de injunção como ação constitucional (art. 5.º, LXXI, da CF) a

ser utilizada pelo cidadão para a concretização de seu direito fundamental

quando não existir lei infraconstitucional que regulamente esse direito.

De forma geral, podemos afirmar que os direitos fundamentais

possuem duas funções principais: limitação do Poder Público e proteção

contra formação de eventuais maiorias. Daí falar-se na doutrina em eficácia

vertical dos direitos fundamentais (respeito e garantia de tais direitos em face

do Estado), bem como eficácia horizontal que visa o respeito e a garantia de

tais direitos entre os particulares.

No que diz respeito a sua primeira função, importante ressaltar

que no Estado de Direito, existe forte sentido substancial exercido pelos

direitos fundamentais em relação à atuação do poder público. Assim, os

Poderes estão limitados e vinculados à Constituição, não apenas quanto à

forma e procedimentos, mas também quanto aos conteúdos.

68 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada, t. I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, Const. Port. 18, p. 319.

70

Por outros termos, no Estado Constitucional de Direito, a

Constituição não apenas disciplina as formas de produção legislativa, mas

também impõe a esta proibições e obrigações de conteúdo correspondentes

aos direitos de liberdade e aos direitos sociais, cuja violação ocasiona

antinomias e lacunas que a ciência jurídica precisa identificar para que sejam

eliminadas e corrigidas.69

Desse modo, cabe especificar, como bem ensina GARCIA

HERRERA, que o Estado Democrático de Direito, em uma perspectiva

garantista, está caracterizado não apenas pelo princípio da legalidade formal

que subordina os poderes públicos às leis gerais e abstratas, mas também

pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos três poderes à

garantia dos direitos fundamentais.70

Sendo assim, é facilmente perceptível que os direitos

fundamentais constituem primordialmente uma reserva de direitos que não

pode ser atingida pelo Estado [Poder Público] ou pelos próprios particulares.

Na realidade, os direitos fundamentais asseguram ao cidadão

um feixe de direitos e garantias que não poderão ser violados por nenhuma

das esferas do Poder Público. Os referidos direitos apresentam dupla função:

constituem prerrogativas que asseguram diversas posições jurídicas ao

cidadão, ao mesmo tempo em que constituem limites/restrições à atuação do

Estado.

Hodiernamente, a existência e a preservação dos direitos

fundamentais são requisitos fundamentais para se estruturar o Estado

Constitucional, tanto no âmbito formal quanto material.

69 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y Futuro del Estado de Derecho in Miguel CARBONELL (org.). Neoconstitucionalismo(s) 2.ª ed., Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 13 e 18.

70 GARCIA HERREA, Miguel Angel. Poder judicial y Estado social: legalidad y resistencia constitucional in Perfecto Andrés IBÁÑEZ (org.). Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdición, Madrid: Editorial Trotta, 1996, p. 71.

71

Além de sua importância como instrumentos de limitação do

Poder Público, os direitos fundamentais exercem forte função

contramajoritária, assim, ter direito fundamental assegura a existência de

posição juridicamente garantida contra as decisões políticas de eventuais

maiorias políticas.71

Exemplo interessante, nesse sentido, é a questão da pena de

morte. Nossa Constituição Federal, em seu art. 5 XLVII “a”, assegura a

inexistência de pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Desse

modo, é possível afirmar que em nosso sistema jurídico a vida é direito

fundamental, sendo vedada em todas as hipóteses a instituição da pena de

morte, salvo nos caso de guerra declarada.

Assim, mesmo que grande parte da sociedade e a maioria

parlamentar entendam que a pena de morte consiste em alternativa viável

para diminuição da criminalidade, essa vontade, apesar de ser da maioria

política, não poderá prevalecer, porque os direitos fundamentais (no caso a

vida) a impedem de se concretizar. Qualquer lei que pretenda instituir a pena

de morte diante de nosso sistema constitucional será considerada

inconstitucional e não poderá gerar efeitos. Esse exemplo ilustra

adequadamente a função contramajoritária dos direitos fundamentais.

A função contramajoritária do direito fundamental assegura em

última instância a força normativa da Constituição e a preservação do

princípio da dignidade da pessoa humana. Do contrário, as posições

minoritárias seriam perseguidas e, ao final, suprimidas. Assim, a “ideia dos

direitos fundamentais como trunfos contra a maioria não é mera exigência

política ou moral ou uma construção teórica artificial. Ela é também uma

exigência do reconhecimento da força normativa da Constituição da

necessidade de levar a Constituição a sério: por majoritários que sejam, os

71 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos como trunfos contra a maioria – sentido e alcance da vocação contramajoritária dos direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático. In: Clèmerson Mèrlin Clève, Ingo W. Sarlet e Alexande C. Pagliarini (orgs.). Direitos humanos e democracia, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 90.

72

poderes constituídos não podem pôr em causa aquilo que a Constituição

reconhece como direito fundamental”.72

1.6.1 Modelos de fundamentação dos direitos fundamentais

Em estudo dedicado ao desenvolvimento dos direitos

fundamentais MAURIZIO FIORAVANTI,73 propõe um esquema em três modelos

de fundamentação teórica das liberdades (direitos fundamentais de primeira

dimensão).

1.6.1.1 O modelo historicista

O modelo Historicista, desenvolvido pela tradição anglo-

saxônica das liberdades, tem como principal característica a constatação de

que o reconhecimento dos direitos se dá mediante processo histórico que se

confunde com o próprio common law. O modelo inglês/historicista é

essencialmente distinto dos demais por conter elemento genuíno e dinâmico:

a jurisprudência, daí ele corresponder ao common law inglês.

Desse modo, formou-se no modelo inglês a convicção de que o

tema das liberdades, enquanto expressão da jurisprudência e manifestação

das regras da common law, é substancialmente indisponível por parte do

poder Público, seja ele Executivo ou Legislativo. Vale dizer que a Inglaterra,

ao contrário da França, não admitiu a figura do Legislador Absoluto, mesmo a

partir da Glorious Revolution, a soberania parlamentarista que surgiu para

limitar o Poder Real, nunca se desvirtuou em poder soberano e ilimitado.74

72 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos como trunfos contra a maioria, cit., p. 91.

73 FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, 5.ª ed., Madrid: Editorial Trotta, 2007.

74 FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales. Apuntes de historia de lãs Constituciones, 5.ª ed., Madrid: Trotta, 2007, Cap. 1, n. 1, pp. 32/33. ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 5.3.1.1, p. 330 et seq.

73

O constitucionalismo inglês desconfia de uma concepção radical

do Poder Constituinte. Nesse sistema, o citado Poder, ainda que originário,

não possui legitimidade para iniciar a partir do zero sua ação. A sua atuação,

em última instância, está limitada pelo catálogo de direitos fundamentais que

foram historicamente garantidos pela própria Jurisprudência. Com efeito, a

doutrina de JOHN LOCKE assegura ao povo o direito de resistência, em caso

de tirania e de dissolução do governo. Trata-se de direito concebido como

instrumento de restauração da legalidade violada e não como instrumento de

projeção de uma nova e melhor ordem política.

Assim, pode-se concluir que no modelo historicista, as

liberdades civis (negativas, patrimoniais e civis propriamente) ocupam

posição extremamente privilegiada, inclusive em relação às liberdades

políticas. Nesse sistema, as liberdades políticas são acessórias em relação

às civis. É dizer, a possibilidade de participar da formação da lei está em

função de se poder controlar e equilibrar as forças, para manter-se incólume

à proteção dos direitos já conquistados.

Dessa maneira, no constitucionalismo inglês, não se consegue

precisar o momento constituinte puramente originário, entendido como poder

absoluto do povo ou da nação para projetar uma nova ordem constitucional

dependente da vontade dos cidadãos. A esta premissa opõe-se a dimensão

irrenunciável do governo moderado e equilibrado como forma que a história

tem o apresentado: que o indivíduo não pode perturbar sem que

concomitantemente seja perturbada toda a ordem política e social.75

Desse modo, “em síntese, pode-se afirmar que o modelo

historicista [inglês] confere especial importância às liberdades civis (direitos

fundamentais), tendo sido seu principal elemento diferenciador – a

jurisprudência – a responsável pela construção e proteção desses direitos”.76

75 FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales, cit., Cap. 1, n. 2, p. 35.

76 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 5.3.1.2, p. 334.

74

Dessa forma, “historicamente, a atuação do Poder Executivo e a

atividade do Legislativo foram limitadas pela manutenção e garantia dessas

liberdades conquistadas/asseguradas pela jurisprudência, de modo que o

constitucionalismo inglês não admite a figura do Poder Constituinte ilimitado,

porquanto mesmo esse Poder somente pode atuar para resgatar o governo

limitado e moderado respeitador dos direitos fundamentais”.77

1.6.1.2 O modelo individualista

O modelo individualista, que está presente, de alguma forma,

tanto na tradição continental como na tradição anglo-saxônica, como produto

próprio dos processos de transformações sociais, culturais e do saber que se

operara na modernidade e foi, de alguma forma, o que possibilitou o

rompimento com o modelo político-jurídico-social predominante no Medievo.

O modelo individualista, a seu modo, também se orienta para

tutelar o binômio liberdade e propriedade.

O modelo individualista tem como premissa fundamental a

primazia do indivíduo exclusivamente perante o poder estatal. Ponto

marcante que o distingue do modelo historicista diz respeito ao lugar ocupado

em cada um deles pela revolução. Em resumo, o modelo historicista

preconiza primordialmente a ideia do governo limitado. O individualista, por

sua vez, sustenta em primeiro lugar, uma revolução social que elimine os

privilégios e a ordem estamental que os fundamenta.

No paradigma individualista, a Constituição não é apenas um

pacto entre o príncipe e o povo ou qualquer outra organização estamental.

Nesse modelo, a Constituição consiste na decisão política adotada pela

nação, que é uma instituição una, indivisível e capaz de fixar seu próprio

destino. Para o modelo individualista, toda a Constituição pressupõe essa

unidade.

77 ABBOUD, Georges Abboud. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 5.3.1.2, p. 334.

75

Na realidade, modelo individualista é fundamentado no

contratualismo e reivindica como premissa a presunção de liberdade,

portanto, defende que o exercício das liberdades não pode ser guiado ou

dirigido pela autoridade pública, mas tão somente delimitado pelo

legislador.78

O modelo individualista sustenta a total primazia e anterioridade

dos direitos fundamentais em relação à Figura do Estado que surge como

instrumento para garantir e aperfeiçoar a tutela dos referidos direitos.

No modelo individualista, o Poder Constituinte também é

elemento diferenciador. Nesse paradigma, o Poder Constituinte é tratado

como o fundamental e originário poder dos indivíduos de decidir sobre a

forma e o rumo da estrutura política, ou seja, o Estado. Este poder

Constituinte será o pai de todas as liberdades políticas.

Nesse ponto, o modelo individualista também se diferencia do

estatalista. O Poder Constituinte é incompatível com o paradigma estatalista.

Isso ocorre porque nesse modelo, a sociedade de indivíduos

politicamente ativos nasce somente com o Estado e por meio do Estado,

antes desse momento não existe nenhum sujeito politicamente significativo.

O estatalista não reconhece a qualidade de sujeito político ao povo ou à

nação antes da existência do próprio Estado.

Historicamente, os modelos, individualista e historicista,

disputam qual a melhor forma de se tutelar os direitos individuais. A visão

individualista, ainda que em menor escala, também possui diferenças em

relação à historicista. Em conformidade com o exposto, os individualistas

postulam que o melhor modo de garantir as liberdades é confiá-las à

autoridade da lei do Estado, dentro dos limites rigidamente fixados pela

78 FIORAVANTI, Maurizio FIORAVANTI. Los Derechos Fundamentales, cit., Cap. 1, n. 2, p. 41. ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 5.3.2.2, p. 336.

76

presunção de liberdade e a condição sine qua non de que o Estado seja

posterior à sociedade civil, por consequência, fruto da vontade constituinte

dos cidadãos. Já os historicistas preconizam que não existem garantias

sérias e estáveis de manutenção das liberdades – uma vez que o poder

político já tenha se apoderado da capacidade de defini-las. Assim, para o

historicista, a melhor forma de se tutelar e garantir essas liberdades é

mediante a atuação da jurisprudência em virtude de sua natureza mais

prudente e ligada ao transcurso natural do tempo e à evolução da

sociedade.79

1.6.1.3 O modelo estatalista

O modelo Estatalista é o que se forma na Europa continental a

partir do século XIX, no período exatamente posterior à chamada codificação

dos ideais jusnaturalistas com os Códigos Civis Francês e Alemão e que

coincide com o aparelhamento burocrático do Estado de Direito liberal e a

formação do Direito Público europeu.80

Na realidade, “a melhor forma de compreender a doutrina

estatalista é confrontá-la com aquilo que ela pretende superar: o

individualismo revolucionário que a antecede. Quanto ao modelo historicista,

o estatalismo não o rechaça completamente. Pelo contrário, acaba se

aproximando dele em alguns pontos, embora discorde em relação ao modo

de fundamentação do próprio poder”.

Como afirma FIORAVANTI, o modelo estatalista se difere do

individualista porque neste, ao contrário daquele, presume-se a existência da

sociedade civil dos indivíduos como anterior ao Estado. Mas o elemento

estado e o sentimento de descontinuidade histórica – que também se

79 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 5.3.2.2, p. 338.

80 ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, cit., n. 5.3.2.2, p. 338-339.

77

manifesta no modelo estatalista – afigura-se presente já neste primeiro

período pós-revolução.

Em resumo, no paradigma estatalista todas as liberdades se

fundam única e exclusivamente sobre as normas impostas pelo próprio

Estado. Assim, forçosamente se deve admitir que nesse modelo, apenas

existe um único direito fundamental, qual seja, de ser tratado conforme as leis

do Estado.

No modelo estatalista, faz-se necessário ressaltar o relativo

desprestígio que a jurisprudência (Judiciário) sofre quando o paradigma

estatalista é comparado ao modelo historicista principalmente. Em sistema

político erigido sobre princípios de caráter estatalista, é difícil que o juiz

[ordinário ou administrativo] seja completamente livre para tutelar direitos

individuais no momento em que se chocarem com razões de autoridade.

Nesses momentos críticos, o Estado não pode atuar como terceiro neutro

perante conflitos estabelecidos entre as razões individuais dos particulares e

as razões da autoridade pública da burocracia do Estado.81

1.6.2 Direitos Fundamentais e a Constituição Federal de 1988

Atualmente, na maior parte dos Estados Democráticos, os

direitos fundamentais estão catalogados e assegurados em textos

constitucionais. Por consequência, os direitos fundamentais possuem

absoluta normatividade, devendo ser aplicados imediatamente.

Nesse sentido, FRIEDRICH MÜLLER pontua que os direitos

fundamentais, a partir do momento em que são positivados no texto

constitucional, passam a ser considerados direitos vigentes, adquirindo

81 FIORAVANTIM, Maurizio. Los Derechos Fundamentales, cit., Cap. 3, n. 2, p. 120.

78

caráter estatal-normativo, por conseguinte, seu respeito significa respeitar o

próprio direito positivo.82

Por isso, impossível no nosso sentir, à utilização da expressão

“direitos humanos fundamentais” adotada por alguns autores, inclusive com

título de obras83, tendo em vista que direitos fundamentais obrigatoriamente

são observados como positivados no texto constitucional, enquanto direitos

humanos, em regra, são identificados numa visão supraconstitucional, aberta.

Assim, a positivação dos direitos fundamentais nos textos

constitucionais é importante e necessária para a respectiva concretização

desses direitos. Todavia, os direitos fundamentais, ainda que tenham sua

normatividade diretamente proveniente do texto constitucional, têm a

existência como fruto do desenvolvimento histórico de cultura de cada

sociedade (historicismo).

Nessa perspectiva é que se apresenta importante à elaboração

de uma teoria referente às restrições aos direitos fundamentais. 84

Atualmente, tão importante quanto assegurar a implementação dos direitos

fundamentais, é estabelecer em que hipóteses é legítima uma restrição a

esses direitos. Em estudo dedicado ao tema, concluímos serem necessários

cinco requisitos cumulativos: a) a restrição deve estar constitucionalmente

autorizada; b) deve ser proporcional; c) seu fundamento pode ser de

interesse social, mas não simplesmente no interesse público; d) a restrição

deve estar exaustivamente fundamentada (inc. IX do art. 93 da CF); e) o ato

82 MÜLLER, Friedrich. Teoria e interpretação dos direitos humanos nacionais e internacionais – especialmente na ótica da teoria estruturante do direito in Clèmerson Merlin CLÈVE, Ingo Wolfgang SARLET e Alexandre Coutinho PAGLIARINI (org.)., Direitos humanos e democracia, Rio de Janeiro: Forense, 2007, n. I, p. 46

83 Exemplificando, as obras com o mesmo título “Direitos Humanos Fundamentais” de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Alexandre de Morais.

84 Para teorização sobre restrições a direitos fundamentais, ver: ABBOUD, Georges. O mito da supremacia do interesse público sobre o privado – A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitOs necessários para se autorizar restrição a direitos fundamentais. Revista dos Tribunais, n. 907, 2011.

79

administrativo que restringir direito fundamental pode ser revisto pelo

judiciário.

A restrição a qualquer direito fundamental deve,

necessariamente, observar o princípio da proibição de excesso

[übermassverbot] (princípio da proporcionalidade). Isto é, toda restrição a

direito fundamental deve ser proporcional.

Outrossim, a restrição dos direitos fundamentais pode estar

constitucionalmente autorizada e fundamentada em interesse social, mas não

simplesmente no interesse público. Isso ocorre porque a decretação do

“interesse público” é um ato arbitrário do Estado que, como um Midas, coloca

o selo de “público” em tudo o que toca. Ou seja, do ponto de vista prático,

seria tarefa árdua conseguir demonstrar que determinada restrição não

atende o interesse público contra justamente o instituidor e o principal

beneficiário da restrição. Ao contrário, o interesse social demanda justificativa

exaustiva por parte do poder público quando determinar a restrição a algum

direito fundamental, haja vista que terá que demonstrar,

pormenorizadamente, quais os direitos fundamentais que serão beneficiados

com a medida e qual o dispositivo constitucional autorizador de referida

restrição.

No Estado Constitucional, não há mais espaço para o ato

administrativo puramente discricionário. A discricionariedade não se coaduna

com o Estado Democrático de Direito, uma vez que todo ato do poder

público, principalmente aquele restritivo de direitos, deve ser amplamente

fundamentado, expondo com exaustão os fundamentos fático-jurídicos a fim

de demonstrar porque aquela escolha da Administração Pública é a melhor

possível.

No Estado Democrático de Direto, a mera alegação de

preservação do interesse público não permite a realização de qualquer

restrição a direito fundamental algum.

80

Todo ato da Administração Pública que pratique restrição a

direito fundamental poderá ser revisto pelo Judiciário, primeiro porque nessa

matéria, inexiste discricionariedade administrativa que não possa ser

sindicada pelo Judiciário; segundo, porque em última instância é tarefa do

próprio Judiciário examinar se existe ilegalidade e principalmente a

(in)constitucionalidade do ato do poder público que restrinja direito

fundamental, qualquer restrição a esse direito configurará flagrante violação

ao disposto na CF 5.º XXXV.

Destarte, os direitos fundamentais não devem ser

compreendidos apenas na dimensão do texto constitucional, isso porque, a

positivação desses direitos é fruto do desenvolvimento histórico da sociedade

e da evolução do próprio constitucionalismo, que tem como uma de suas

funções principais, a regulação do poder e, consequentemente, a

preservação dos direitos fundamentais.

1.7 A Constituição como centro gravitacional da interpretação da lei

infraconstitucional em termos de compatibilização e adequação

A definição de uma ordem jurídica como a instituída em nossa

Constituição Federal em termos de um “Estado Democrático de Direito”85,

traz em si, como fórmula política, a representação de quanto uma

Constituição expressa a ideologia com base em que se pretende organizar a

convivência política em um dado país86.

85 De acordo com Peter Häberle a Constituição num Estado Democrático de Direito não estrutura apenas o Estado em sentido estrito, mas também o espaço público e o privado, constituindo, assim, a sociedade. HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional, Buenos Aires, Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2007, § 2.º p. 84; § 54 p. 272

86 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de derecho político, Madrid, 1977, vol. 2, p. 532.

81

Tal representação coloca a Constituição como um vetor de

orientação para a interpretação de suas normas e, por meio destas, de todo o

ordenamento jurídico.

Esta concepção indica que o Estado Democrático de Direito

representa uma superação dialética da antítese entre os modelos liberal e

social ou socialista de Estado 87 e tem como compromisso básico a

harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais, a

saber:

i) pública, ocupada pelo Estado;

ii) privada, em que se situa o indivíduo e

iii) coletiva, como segmento intermediário, no qual há o

interesse de indivíduos enquanto membros de determinados grupos,

formados para a consecução de objetivos econômicos, políticos, culturais ou

outros88.

Propõe-se com isso, uma reflexão hermenêutica atualizada, que

faça gravitar as considerações tecidas tendo como centro de análise a

própria Constituição Federal. A interpretação especificamente constitucional

que aqui se propõe leva em conta que praticar a interpretação constitucional

é diferente de interpretar a Constituição de acordo com os cânones

tradicionais da hermenêutica jurídica, que foram, na realidade, desenvolvidos

em época na qual as matrizes do pensamento jurídico assentavam-se em

bases privatísticas.

Por mais que caiba à intelecção do texto constitucional a

recorrência aos tradicionais métodos filológico, sistemático, teleológico etc.,

87 DÍAZ, Elías. Estado de derecho y sociedad democrática, Madrid, 1975.

88 GUERRA FILHO, Willis Santiago Guerra Filho e CARNIO, Henrique Garbellini (col.). Teoria da ciência jurídica. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, tópico 5.10, p. 186.

82

levando em conta a força dos direitos fundamentais, tem de ser observado

que, atualmente, toda a atuação jurisdicional, toda atividade hermenêutica do

juiz submete-se ao princípio da interpretação conforme a Constituição

(verfassungskonforme Auslegung), no seu duplo sentido de impor que a lei

infraconstitucional seja sempre interpretada, em primeiro lugar, tendo em

vista a sua compatibilização com a Constituição e, em segundo lugar, de

maneira a adequar os resultados práticos ou concretos da decisão a ser

tomada ao máximo possível a quanto determinam os direitos fundamentais

concernidos89.

Com isso, estamos buscando exatamente o que nos tempos

atuais se espera de uma Constituição: linhas gerais para guiar a atividade

estatal e social, no sentido de promover o bem-estar individual e coletivo dos

integrantes da comunidade que soberanamente se estabelece90.

Hodiernamente, como já exposto, a teoria do direito explora o

conceito de direito a partir das noções de regras e princípios. As primeiras

possuem a estrutura lógica que tradicionalmente se atribui às normas do

Direito, com a descrição ou “tipificação” de um fato, ao que se acrescenta a

sua qualificação prescritiva, amparada em uma sanção.

Já os princípios jurídicos, nesse contexto, são entendidos como

igualmente dotados de validade positiva, encontrando, de um modo geral,

assentados na constituição, mas não se reportam a um fato específico, de

que se possa precisar com facilidade a ocorrência, extraindo assim uma

consequência prevista normativamente. Os princípios devem ser entendidos

como indicadores de uma opção pelo favorecimento de determinado valor, a

ser levado em conta na apreciação jurídica de uma infinidade de fatos e

situações, cabendo a eles, por dotados também de dimensão ética e política,

89 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais, 5 ed., São Paulo: RCS editora, 2006, cap. V, p. 69 e 70.

90 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição, 3 ed., São Paulo: RCS editora, 2007, p. 8.

83

apontar o rumo que se deve seguir para tratar de qualquer ocorrência de

acordo com o direito em vigor, caso ele já não contenha uma regra que a

refira ou que a discipline suficientemente.

Assim, se houver duas regras que dispõem diferentemente

sobre uma mesma situação ocorre o chamado excesso normativo, tendente a

provocar uma antinomia jurídica, em havendo divergência entre as

disposições jurídicas, a ser afastada com base em critérios que, em geral,

são fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico, para que assim se

mantenha sua unidade e coerência, exigência que decorrem da própria

isonomia. Já em relação aos princípios, na medida em que não disciplinam

nenhuma situação jurídica específica, não entram em choque imediatamente,

pois são compatíveis ou compatibilizáveis uns com os outros, em se

mostrando alguma colisão, em dada situação concreta, entre os valores neles

positivamente consagrados e, já por isso, relativizados.

Nesta linha argumentativa, a discussão deve ser remetida à

ordem dos princípios constitucionais, destacando-se a importância de se

proceder a uma interpretação adequada e especificamente constitucional.

José Joaquim Gomes Canotilho, inspirado em modelo

germânico, elenca como espécies de princípios, em ordem crescente de

abstratividade, os “princípios constitucionais especiais”, os “princípios

constitucionais gerais” e os “princípios constitucionais estruturantes”91, sendo

que estes últimos se apresentam ainda, entre nós, como se generaliza na

fase mais recente do constitucionalismo, sob duas formas de primordial

importância, a saber, a do princípio do Estado de Direito e a do Princípio

Democrático.

Estes princípios constitucionais, pensados em torno da distinção

entre regras e princípios antes referida, determinam a atual ordem jurídica

91 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional, Lisboa: Almedina, 1989, p. 12 e segs.

84

que concretiza uma ideia motora condensada na fórmula política adotada em

nossa Constituição: o Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, Friedrich Müller pontua que os direitos

fundamentais, a partir do momento em que são positivados no texto

constitucional, passam a ser considerados direitos vigentes, adquirindo

caráter estatal-normativo, e por conseguinte, seu respeito significa o mesmo

que respeitar o próprio direito positivo.92

A via adequada para esta análise se revela na interpretação de

acordo com as opções valorativas básicas, expressas no texto constitucional,

considerando-se tanto a Constituição, como todo o sistema interno ao

ordenamento jurídico, enquanto um sistema de regras e princípios, a suscitar

necessidade de se desenvolver uma hermenêutica constitucional igualmente

diferenciada da hermenêutica tradicional93.

1.8 Princípios da Interpretação Constitucional

Como bem observa Willis Santiago Guerra Filho é a natureza

diferenciada de princípios e regras que suscita a necessidade de se

desenvolver uma hermenêutica constitucional igualmente diferenciada, diante

da hermenêutica tradicional. Especialmente a distinção por último referida,

segundo a qual os princípios se encontram em estado latente de colisão uns

com os outros, requer o emprego dos princípios, da interpretação

constitucional, que passamos a expor, na formulação já clássica de Konrad

92 MÜLLER, Friedrich. Teoria e interpretação dos direitos humanos nacionais e internacionais – especialmente na ótica da teoria estruturante do direito in CLEVE, Clèmerson Merlin, SARLET, Ingo Wolfgang e PAGLIARINI, Alexandre Coutinho (org.)., Direitos humanos e democracia, Rio de Janeiro: Forense, 2007, n. I, p. 46

93 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição, cit., p. 144.

85

Hesse, de modo mais próximo conhecida entre nós pelos portugueses, em

especial por José Joaquim Gomes Canotilho.94

(1) O primeiro — e mais importante — desses princípios é o da

unidade da Constituição, que determina que se observe a interdependência

das diversas normas da ordem constitucional, de modo a que formem um

sistema integrado, no qual cada norma encontra sua justificativa nos valores

mais gerais, expressos em outras normas, e assim sucessivamente, até

chegarmos ao mais alto desses valores, expresso na decisão fundamental do

constituinte. No caso da nossa Constituição, a decisão política fundamental

se acha claramente indicada no “Preâmbulo” e no seu art. 1º, enquanto

opção por um Estado Democrático de Direito. Ela há de se situar ao nível do

que na hermenêutica filosófica de Gadamer se denomina “pré-compreensão”

(Vorverständnis), designando a pré-disposição orientadora do ato

hermenêutico de compreensão.

(2) Princípio do efeito integrador, indissoluvelmente associado

ao primeiro, ao determinar que, na solução dos problemas jurídico-

constitucionais, dê-se preferência à interpretação que mais favoreça a

integração social, reforçando a unidade política.

(3) Princípio da máxima efetividade, também denominado

princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, por determinar que, na

interpretação de norma constitucional, atribua-se a ela o sentido que a confira

maior eficácia, sendo de se observar que, atualmente, não mais se admite

haver na Constituição normas que sejam meras exortações morais ou

declarações de princípios e promessas a serem atendidos futuramente. Tal

princípio assume particular relevância na inteligência das normas

consagradoras de direitos fundamentais.

94 O desenvolvimento deste tópico foi construído a partir da referência de Willis Santiago Guerra Filho. Para tanto, cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago e CARNIO, Henrique Garbellini (col.). Teoria da ciência juridica. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 178-180.

86

(4) Princípio da força normativa da Constituição, que chama a

atenção para a historicidade das estruturas sociais, às quais se reporta a

Constituição, donde a necessidade permanente de se proceder a sua

atualização normativa, garantindo, assim, sua eficácia e permanência. Esse

princípio nos alerta para a circunstância de que a evolução social determina

sempre, se não uma modificação do texto constitucional, pelo menos

alterações no modo de compreendê-lo, bem como as normas

infraconstitucionais.

(5) Princípio da conformidade funcional, que estabelece a estrita

obediência do intérprete constitucional à repartição de funções entre os

poderes estatais, prevista constitucionalmente.

(6) Princípio da interpretação conforme a Constituição, que

afasta interpretações contrárias a alguma das normas constitucionais, ainda

que favoreça o cumprimento de outras delas. Determina, também, esse

princípio a conservação de norma, por inconstitucional, quando seus fins

possam harmonizar-se com preceitos constitucionais, ao mesmo tempo em

que estabelece como limite à interpretação constitucional as próprias regras

infraconstitucionais, impedindo que ela resulte numa interpretação contra

legem, que contrarie a letra e o sentido dessas regras.

(7) Princípio da concordância prática ou da harmonização,

segundo o qual se deve buscar, no problema a ser solucionado em face da

Constituição, confrontar os bens e valores jurídicos que ali estariam

conflitando, de modo a que, no caso concreto sob exame, se estabeleça qual

ou quais dos valores em conflito deverá prevalecer, preocupando-se,

contudo, em otimizar a preservação, igualmente, dos demais, evitando o

sacrifício total de uns em benefício dos outros. Nesse ponto, tocamos o

problema crucial de toda hermenêutica constitucional, que nos leva a

introduzir o topos argumentativo da proporcionalidade, como destacamos no

capítulo que segue.

87

Expostos os princípios da interpretação constitucional, cabe

agora imbricá-los a outros princípios, incluindo o princípio da

proporcionalidade, o que é objeto do capítulo que segue.

88

CAPÍTULO 2 - O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A DIALÉTICA

DOS PRINCÍPIOS

2.1 Princípio da Proporcionalidade e Interpretação Constitucional

Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional,

representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve

igual obediência, por ser a mesma posição que ocupam na hierarquia

normativa, preconiza-se o recurso a um “princípio dos princípios”, o princípio

da proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução de

compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos

princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o(s) outro(s), e

jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo seu

“núcleo essencial”.

Esse princípio, embora não esteja explicitado de forma

individualizada em nosso ordenamento jurídico, é uma exigência inafastável

da própria fórmula política adotada por nosso constituinte, a do “Estado

Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não se concebe como bem

realizar o mandamento básico dessa fórmula de respeito simultâneo dos

interesses individuais, coletivos e públicos (harmonização).

O princípio da proporcionalidade, tal como hoje se apresenta no

direito constitucional alemão, na concepção desenvolvida por sua doutrina,

em íntima colaboração com a jurisprudência constitucional, desdobra-se em

três aspectos, a saber: proporcionalidade em sentido estrito, adequação e

exigibilidade. No seu emprego, sempre se tem em vista o fim colimado nas

disposições constitucionais a serem interpretadas, fim esse que pode ser

atingido por diversos meios, dentre os quais se haverá de optar. O meio a ser

escolhido deverá, em primeiro lugar, ser adequado para atingir o resultado

almejado, revelando conformidade e utilidade ao fim desejado. Em seguida,

comprova-se a exigibilidade do meio quando este se mostra como “o mais

suave” dentre os diversos disponíveis, ou seja, menos agressivo dos bens e

89

valores constitucionalmente protegidos, que porventura colidem com aquele

consagrado na norma interpretada. Finalmente, haverá respeito à

proporcionalidade em sentido estrito quando o meio a ser empregado se

mostre como o mais vantajoso, no sentido da promoção de certos valores

com o mínimo de desrespeito de outros que a eles se contraponham,

observando-se, ainda, que não haja violação do “mínimo” em que todos

devem ser respeitados. Após essa apresentação resumida, por sua

importância inigualável, passemos a tratar em separado e mais

extensamente desse princípio.

A discussão hermenêutica deve ser analisada sob o viés atual

das manifestações do constitucionalismo, cabendo a retomada prática da

metodologia definida para análise da questão no tópico próprio, supra.

Como se procurou demonstrar, se torna cada vez mais

difundido entre nós esse avanço fundamental da teoria do direito

contemporâneo, que em uma fase pós-positivista, com a superação dialética

da antítese entre o positivismo e o jusnaturalismo, distingue normas jurídicas

que são regras, daquelas que são princípios95.

De um modo geral, quem deu maior impulso para o

reconhecimento da natureza diferenciada dos princípios enquanto norma

jurídica foi – na teoria do direito anglo-saxônica – Ronald Dworkin, com sua

tentativa de superação do conceito de ordenamento jurídico como um

conjunto de regras primárias e secundárias, devida ao pensamento de

Herbert Hart. A recepção dessa proposta de superação do positivismo na

Alemanha se deve, principalmente, a Robert Alexy96.

95 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição, cit. cap. 22, p. 137 e 138.

96 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008 e El concepto y la validez del derecho. Tradução de Jorge M. Seña. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997

90

Dworkin apresenta o direito como uma prática interpretativa.

Nela, todos os procedimentos metodológicos são instalados em função das

controvérsias que temos.

Por essa razão é que Dworkin97 não aceita qualquer tipo de

discricionariedade judicial, pois permitir que o juiz decida de modo a inovar na

seara jurídica pode representar um exercício arbitrário (não justificado em

princípios da comunidade moral) da coerção estatal, colocando-se no tênue

liame que sustenta o exercício legítimo da força e a exceção.

Nesta linha argumentativa, segundo Dworkin, uma decisão

judicial estará justificada não apenas quando respeita a equidade dos

procedimentos, senão quando também respeita a coerência de princípios que

compõem a integridade moral da comunidade. Ou seja, a ideia de princípio

em Dworkin não é materializável a priori em um texto ou enunciado emanado

de um precedente, lei ou mesmo da Constituição, mas um argumento de

princípio que remete à totalidade referencial dos significados destes

instrumentos jurídicos98.

Neste sentido calha muito bem igualmente o entendimento de

Friedrich Müller, que ao se referir ao termo pós-positivismo indicou que este

não se remonta a um antipositivismo qualquer, mas sim a uma postura

teórica que, sabedora do problema fundamental, não enfrentado pelo

positivismo – qual seja: a questão interpretativa concreta, espaço da

chamada “discricionariedade judicial” – vai procurar apresentar novas

perspectivas teóricas e práticas, que ofereçam soluções para o problema da

97 Cf. DOWRKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 50 e segs.

98 Cf. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins fontes, 2003, pp. 305 e segs.

91

concretização do direito, e não para problemas abstrato-sistemáticos

apenas99.

2.2 O princípio da proporcionalidade e a distinção da teoria alemã do

princípio da proporcionalidade da previsão inglesa do princípio da

irrazoabilidade

De acordo com a doutrina sabidamente de origem germânica100,

o princípio da proporcionalidade representa a proibição do excesso, em sede

de restrição de direitos fundamentais. Como se verifica em posicionamentos

do Supremo Tribunal Federal, a proibição do excesso foi considerada muitas

vezes como uma das facetas do princípio da proporcionalidade101, proibindo

a restrição excessiva de qualquer direito fundamental.

99 Cf. MÜLLER, Friedrich. O novo Paradigma do Direito. Introdução à teoria e metódica estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 11.

100 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição, cit. cap. 11, p. 63 ss.

101 A título exemplificativo: RE 349703 Relator: Min. CARLOS BRITTO, Julgamento: 03/12/2008 Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Ementa: PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do

92

Dessa forma, na situação concreta em que um direito

fundamental estiver sendo restringido com excesso, presente estará o

postulado da proibição de excesso (übermassverbot).

Somente vagarosamente os estudiosos do direito vão se dando

conta da necessidade, intrínseca ao bom funcionamento do Estado

Democrático de Direito, de se reconhecer e empregar de modo correto o

princípio da proporcionalidade, a Grundsatz der Verhältnismäβigkeit, também

chamada de “mandamento da proibição de excesso” (Übermaβverbot).

Talvez, isso tenha ocorrido e venha ocorrendo - inclusive de

modo muito demorado com relação a outros países que já cumpriram a sua

função na fase atual do constitucionalismo, iniciada no segundo pós-guerra –

pelo fato de não existir em nosso texto constitucional uma previsão expressa

do princípio em tela.

Como bem observa Willis Santiago Guerra Filho, infelizmente,

não trilhamos o caminho seguido por constituintes de outros países, que

cumpriram sua função já na fase atual do constitucionalismo, a qual se pode

considerar iniciada no segundo pós-guerra. Em nossa Constituição à

diferença, por exemplo, da Constituição Portuguesa, de 1974, que em seu

art. 18º, dispondo sobre a “força jurídica” dos preceitos constitucionais

consagradores de direitos fundamentais - de modo equiparável ao que é

crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

HC 104410, Relator: Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 06/03/2012 Órgão Julgador: Segunda Turma, Ementa: HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA.

93

feito, em nossa Constituição, nos dois parágrafos do art. 5º -, estabelece, no

parágrafo 2º, expressis verbis: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades

e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as

restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou

interesses constitucionalmente protegidos”. Essa norma, notadamente em

sua segunda parte, enuncia a essência e destinação do princípio da

proporcionalidade: preservar os direitos fundamentais. O princípio, assim,

coincide com a essência e destinação mesma de uma Constituição que, tal

como hoje se concebe, pretenda desempenhar o papel que lhe está

reservado na ordem jurídica de um Estado de Direito Democrático. Daí

termos já referido a esse princípio como “princípio dos princípios”, verdadeiro

principium ordenador do direito. A circunstância de ele não estar previsto

expressamente na Constituição de nosso País não impede que o

reconheçamos em vigor também aqui, invocando o disposto no § 2º do art.

5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (etc)”.102

Por assim ser é que existe o entendimento de referido princípio

como “princípio dos princípios”, verdadeiro principium ordenador do direito.103

O princípio da proporcionalidade, desse modo, corresponde a

um direito ou garantia fundamental, tal qual ocorre com o princípio da

isonomia. Aliás, a nós parece estar o princípio da proporcionalidade

incrustado no princípio do devido processo legal, guardando estreita

correlação com a isonomia, percebida já pelos antigos gregos, tal como nos

reporta Aristóteles quando aborda o assunto em sua ética104.

102Cumpre informar que Virgílio Afonso da Silva e Humberto Ávila têm posicionamento diferente, não aceitando esta ideia – a propósito, Willis Santiago Guerra Filho. Teoria processual da Constituição, cit., cap. 26, p. 177 ss.

103GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: RCS, 2006, p. 79; Id., Teoria processual da Constituição, cit., cap. 23, p. 151 ss.

104GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição, cit., caps. 9 e 26, p. 53 ss. e 175 ss. resp.

94

Importante salientar, por zelo de entendimento, que toda a

discussão sobre o princípio da proporcionalidade que se está desenvolvendo

é intimamente relacionada com a concepção do ordenamento jurídico

formado por regras e princípios, como anteriormente se referiu. Tais

princípios podem se converter em normas de direitos fundamentais, tal como

vem se observando com a proposta de dois importantíssimos juristas-

filósofos (para lembrar a expressão de Rudolf von Jhering difundida entre nós

por Clóvis Bevilácqua) da atualidade que são Ronald Dworkin105, no ambiente

anglo-saxão e Robert Alexy106 na Alemanha e de lá se espraiando por todo o

enorme espectro de influência continental europeia.

2.2.1 O alcance do princípio da proporcionalidade: os princípios parciais

ou subprincípios.

Para bem se firmar o alcance do princípio da proporcionalidade

é necessário agora fazer uma incursão em seu conteúdo.

O princípio da proporcionalidade deve ser entendido como um

mandamento de otimização do acatamento máximo a todo direito

fundamental, do que resulta, concretamente, em situação de conflito entre

tais direitos, a serem solucionados na melhor medida jurídica e faticamente

possível, conforme apresenta Robert Alexy, e assim sendo se reparte em

“três princípios parciais” (Teilgrundsätze), tal como desenvolvido pela

jurisprudência constitucional alemã.

105DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1985, p. 82 e seg.

106 Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2002, p. 81-137. Vale lembrar também as importantes figuras dos antecessores, no âmbito germânico, que são Josef Esser e Friedrich Müller, que tal como os autores citados superam o legalismo do positivismo normativista, para o qual as normas do direito positivo se reduziriam a textos de regras.

95

São eles: “princípio da proporcionalidade em sentido estrito”, ou

“máxima do sopesamento” (Abwägungsgebot), “princípio da adequação” e

“princípio da exigibilidade” ou “máxima do meio mais suave” (Gebot des

mildesten Mittels).

Pois bem, basta-nos agora uma exposição breve sobre os três

subprincípios107.

O princípio da proporcionalidade em sentido estrito prevê que

se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma

disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente o melhor

possível. Isto quer dizer não apenas realizar uma ponderação qualquer, para

assim satisfazer tal (sub)princípio, mas sim que, ao fazê-la, não se pode ferir

o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de qualquer um dos direitos

fundamentais colidentes, no sentido de que mesmo que haja desvantagens

para o interesse de pessoas (de qualquer forma juridicamente consideradas),

acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz

para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens, na

perspectiva de maior preservação daquele núcleo essencial, onde se

encontra entronizada a dignidade humana.

Os subprincípios da adequação e exigibilidade ou

indispensabilidade (Erforderlichkeit) determinam que o meio escolhido se

preste a atingir o fim estabelecido, mostrando-se assim “adequado”, meio

este que também deve se mostrar “exigível”, o que significa que não há outro

igualmente eficaz e menos danoso a direitos fundamentais.

Bem da verdade, em nosso País, o princípio da

proporcionalidade precisa ser melhor desenvolvido, tanto por parte de

doutrinadores, como da jurisprudência, mesmo a de índole constitucional,

conquanto o venham referindo com cada vez mais frequência e intensidade,

107Mais amplamente, GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição, cit., cap. 11, p. 63 ss.

96

tal como se fora verdadeira panaceia universal, banalizando-o por meio de

uma espécie de inflação do seu uso, ao ponto de se ter de lembrar o que

chamamos de “reflexividade da proporcionalidade”, a significar uma exigência

de que se aplique o princípio da proporcionalidade a ele mesmo, evitando

excessos e abusos em seu emprego. Ainda assim, outro problema existente

é que muitas vezes a atenção a ele dada é incorreta, confundindo com um

princípio de razoabilidade, que na Europa se refere antes como de

irrazoabilidade108.

A aplicação generalizada do princípio, no entanto, deve ser

muito bem entendida, no intuito de evitar o problema de sua tendência, tal

qual a doutrina alemã logo percebeu, de sua super-expansão,

“Oberdehnung”, que designa um exagero em sua aplicação, o que poderia

levar consequentemente a um relaxamento na aplicação da lei.

Inclusive este uso desmesurado em nosso país acarreta

algumas vezes tanto um relaxamento da lei como até mesmo um abuso,

cometido além da lei, ou seja, algo completamente contrário ao sentido em

que se constitui o princípio da proporcionalidade.

Para evitar esses problemas é que devemos conferir ao

princípio da proporcionalidade certo caráter “reflexivo”, de modo que só se

possa aplicá-lo mediante um exame pontual da “adequação”, “exigibilidade” e

“proporcionalidade em sentido estrito”. Sua utilização deve ocorrer em

momentos oportunos e necessários.

Por fim, resta apenas ressaltar o aspecto do procedimento

decisório que envolve o princípio da proporcionalidade.

Este procedimento tem a finalidade de permitir a necessária

ponderação em face dos fatos e hipóteses a serem considerados.

108 Cf. AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O Proporcional e o Razoável. In: Revista dos Tribunais, vol. 798, 2002.

97

Tal procedimento deve ser estruturado – e também, institucionalizado – de uma forma tal que garanta a maior racionalidade e objetividade possíveis de decisão, para atender ao imperativo da realização de justiça que é imanente ao princípio com o qual nos ocupamos. Especial atenção merece, portanto, o problema do estabelecimento de formas de participação suficientemente intensiva e extensa de representantes dos mais diversos pontos de vista a respeito da questão a ser decidida. Isso significa, então, que o procedimento com as garantias do ´devido processo legal´ (Due process of Law), i.e., do amplo debate, da publicidade, da igualdade das partes etc., se torna instrumento do exercício não só da função jurisdicional, como tem sido até agora, mas sim das demais funções do Estado também, donde se falar em ´jurisdicionalização´ dos processos legislativo e administrativo e “judicilização” do próprio ordenamento jurídico como um todo109.

Nesta dimensão, entende-se como princípio da

proporcionalidade uma medida geral de proteção exclusiva de direito

fundamental e, especificamente, da dignidade humana que se encontra

agasalhada na essência mesma de tais direitos. Com isso, evita-se confundi-

lo com o chamado princípio da razoabilidade, um produto nacional oriundo do

aproveitamento de modo distorcido de lições estrangeiras, que não se

recomenda o uso interno nem a exportação.

2.2.2 A Irrazoabilidade

Para que reste mais clara a distinção entre proporcionalidade e

razoabilidade (sinônimo de proporcionalidade em sentido meramente lexical,

visto que no latim, proportio é equivalente a ratio) cumpre evidenciar, para o

seu melhor entendimento, o grau de separação existente entre estes

conceitos usados de modo equivocado como sinônimos.

109GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: RCS, 2007, p. 109.

98

Alguns autores identificam o surgimento da proporcionalidade

na Magna Carta de 1215, algo um tanto questionável, pois na Inglaterra fala-

se em princípio da irrazoabilidade e não em princípio da razoabilidade. Já daí

principia a confusão que se deve evitar. E sendo ainda mais preciso, a

origem do princípio da irrazoabilidade, na forma como é aplicado na

Inglaterra não se encontra em 1215, mas bem mais recentemente em

decisão judicial proferida neste país, sim, mas apenas em 1948.

Como nota Luis Virgilio Afonso da Silva, o teste da

irrazoabilidade, conhecido também como teste de Wednesbury, implica tão

somente em rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis. Com isso,

na esteira do pensamento do referido autor, nota-se que o teste sobre a

irrazoabilidade é muito menos intenso do que os testes que a

proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar atos

absurdamente irrazoáveis110.

Certamente que o tema em questão pode ser analisado tanto

sobre a temática do princípio da proporcionalidade, quanto sobre a temática

da razoabilidade, razão pela qual passamos a tratar de cada um de forma

apartada.

Não obstante também o princípio da irrazoabilidade ser princípio

implícito, imperioso ressaltar que a sua violação pode ser considerada até

mais grave que a violação dos princípios positivados em nosso ordenamento

jurídico111, tanto é que Nelson Nery Junior pondera que: “é mais grave violar-

se um princípio não positivado, que decorre do sistema, isto é, que está

acima dos preceitos normativos porque não precisa ser mencionado pela lei,

do que desrespeitar-se uma norma escrita112.

110Cf. AFONSO DA SILVA, Virgílio Afonso, cit., p. 23-50.

111 Cf. ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1961, p. 90.

112 NERY JUNIOR, Nelson. O juiz natural no direito processual comunitário europeu, in: Revista de Processo, n. 101, p. 106.

99

3. Proporcionalidade como princípio de solução de colisões vinculadas

a direitos fundamentais e a proporcionalidade relacionada aos meios

Nos parece salutar apontar para o leitor, antes mesmo da

avaliação do princípio da proporcionalidade vinculado a casos que tratam de

direitos sociais (trabalhistas), a diferença existente entre proporcionalidade

princípio e proporcionalidade causa X efeito, pois de forma até comum

observamos enorme confusão sobre o tema.

Isso porque, quando tratamos tecnicamente, sobretudo de

eventual reparabilidade de um determinado dano supostamente causado

dentro de uma demanda, a lei infraconstitucional113 nos atrai para a aplicação

do raciocínio na fixação do quantum indenizatório num modelo denominado

equitativo, partindo de critério supostamente denominado proporcionalidade,

que avalia: 1) a existência do dano; 2) a extensão do dano; 3) o grau de

contribuição do agente para a ocorrência do dano114.

A proporcionalidade aqui referida nenhuma relação possui com

o princípio da proporcionalidade discutida e sustentada seja na teoria de

Alexy, ou da teoria de Dworkin, isso porque, trata-se de critério de aferição do

“quantum”, e não da avaliação no nível de princípios constitucionais de

eventual resistência entre duas garantias ou direitos constitucionais.

Infelizmente, a liberdade na aferição do quantum deixado

apenas e tão somente nas mãos do julgador, gera uma discricionariedade

aviltante, inviabilizando em certa medida, a aplicação do direito como previsto

no próprio texto constitucional, ou seja, o trilho processual se esvai, sendo

113 Artigo 944 do Código Civil “A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

114 Destaque-se que a contribuição para o dano pode ter critério de natureza objetiva, ou seja, no caso de indenização que seja sustentada pela reparação na hipótese de responsabilidade objetiva, essa contribuição se origina “in re ipsa”, com a avaliação das teorias do risco.

100

substituído muitas vezes (ou em quase todas às vezes) pelo juízo da

consciência, inaceitável pelo ordenamento jurídico nacional.

Contudo, discutir o tema da aplicabilidade do quantum nesse

microssistema infraconstitucional não é o objetivo do presente estudo, sendo

apenas necessário destacar, como se procurou fazer, a evidente diferença

entre um e outro.

3.1 Eficácia Horizontal e vertical dos direitos fundamentais (mito ou

verdade?)

Inúmeros trabalhos científicos e de grande valia ao

desenvolvimento da ciência, tem sido apresentados com o objetivo de

estudar a eficácia ou não dos direitos fundamentais inseridos no texto de

1988.

Daí falar-se em eficácia vertical, eficácia horizontal das

previsões existentes no texto de 1988 e no de outras nações.

Respeitamos em tempo e modo referidos posicionamentos, até

porque nos permitiram e nos permitem avançar nos estudos das soluções

dos conflitos sociais, que a cada dia se evidenciam com características das

mais diversas.

A pergunta que nasce como consequência lógica é: Seria

possível criar respostas legais para todas as circunstâncias conflitivas

sociais?

Para nós a resposta negativa é evidente.

Nessa seara, que a tendência de aplicação, como se tem

utilizado atualmente, da eficácia horizontal e vertical do texto constitucional

101

não nos parece medida que de guarida total à solução dos mais variados

conflitos sociais.

Isso porque, se partiria para uma “normatização” do texto

constitucional, na já ultrapassada classificação da norma-regra e da norma-

princípio.

Contudo, há que se notar, que quando tratamos de direitos ou

garantias fundamentais, simplesmente não podemos dar validade para um

desses direitos em detrimento do outro, sob pena de se negar vigência ao

próprio texto constitucional.

Sob esse ângulo, definitivamente a solução é oca.

De outro prisma de análise, podemos ter ainda, regras

infraconstitucionais criadas, e, portanto, formalmente aplicáveis, que

simplesmente contrariam preceitos de espectro constitucional.

Imagine-se a inserção de uma norma legal que simplesmente

proíba o ingresso de um determinado gênero de pessoas nas partidas de

futebol.

Ora, sabemos todos que essa regra, como posta é

inconstitucional, simplesmente pelo fato de não obedecer o princípio da

isonomia constitucional (interpretação conforme o princípio), não sendo

possível afastar o princípio constitucional e aplicar a regra infraconstitucional.

Em resumo, o que nos parece necessário é a ampliação não do

conceito de norma, mas de compreensão de sua criação não apenas pelo

legislativo, e sim pelo caso concreto. Explique-se.

Havendo um conflito em direitos ou garantias fundamentais, não

há solução diversa salvo compreender que da análise do caso concreto

avaliada pelo princípio da proporcionalidade, nasce uma norma. Uma norma

102

específica para aquele caso, e que poderá não servir para mais nenhum

outro.

Essa pode, ser a tônica da possibilidade do direito alcançar os

anseios da sociedade, ao menos quanto aos conflitos de direitos e garantias

fundamentais, o que nos parece já, um bom começo.

4. Necessidade de fundamentação plena

Os tribunais, ou melhor, o próprio Judiciário Brasileiro como um

todo, caminha no sentido de soluções rápidas, da entrega da tutela em tempo

menor, da diminuição do número de processos.

Para isso foram criadas metas, e em tudo que se lê e se houve,

não só no Judiciário, mas nessa nossa sociedade violentamente capitalista

se revela em números.

Numa conclusão absolutamente simplória, os homens viraram

números!! E isso facilmente se observa em toda a obra-projeto sobre a

modernidade do pensador polonês Zygmunt Bauman115, que codifica esse

momento como “Mundo Líquido”, onde todos os caminhos são cambiantes e

flexíveis, ou ainda na obra “o mundo é plano”116 do jornalista americano

Thomas Friedman, ao destacar o desenvolvimento (se assim se pode

chamar) no século XXI.

Não obstante a duração razoável do processo esteja inserida

textualmente na Carta de 1988, sua dimensão não pode ser suplantada por

um tecnicismo formalista – incorporado nos seus praticantes quase a um

nível robótico.

115 Destaques para uma de suas obras da coleção denominado. ZYGMUNT, Bauman. Amor líquido. São Paulo: Zahar, 2012, passim.

116 FRIEDMAN, Thomas. O mundo plano. São Paulo: Editora Objetiva, 2005, passim.

103

É contrariando essa linha que propugnamos pela aplicação do

princípio da proporcionalidade, pois em inúmeros casos nos dias atuais, os

critérios de hierarquia, cronologia e especialidade de normas

infraconstitucionais são insuficientes para solucionar conflitos.

Unindo referidas questões da atualidade e pensando na árdua tarefa

de fundamentar uma decisão por meio da aplicação do princípio da

proporcionalidade de modo a entregar a tutela com o mínimo de segurança

jurídica, acabamos por desaguar na questão da fundamentação da decisão

judicial, que de igual sorte encontra supedâneo no texto constitucional,

considerando a redação do artigo 93, inciso IX.

A rigor, a fundamentação exacerbada de uma decisão judicial é direito

fundamental do cidadão 117 . Ademais toda restrição a qualquer direito

fundamental de, necessariamente, observar o princípio da proibição de

excesso (Übermassverbot). Dessa forma, toda restrição a direito fundamental

deve ser proporcional. 118

No caso de colisão de princípios a decisão deve trafegar

obrigatoriamente – para que seja suficientemente fundamentada – pelos

subprincípios que sustentam a proporcionalidade, a saber: o princípio da

adequação, a máxima do meio mais suave e da proporcionalidade em

sentido estrito.

Aqui, é de extrema relevância a realização do caminho na decisão,

para que fique claramente demonstrado ao jurisdicionado o mínimo de

subjetividade possível na decisão.

De salientar ainda, que referida decisão deve demonstrar ao seu final

que não aniquilou a garantia ou direito fundamental vencido no caso

117 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, cit., p. 399.

118 ABBOUD, Georges, CARNIO. Henrique Garbellini e OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e filosofia do direito, cit., p. 238.

104

concreto, mas que apenas lhe retirou parte da intensidade no sentido de

preservar intacta aquela garantia constitucional que preponderou no caso

avaliado.

Nesse sentido, apenas para exemplificar, ao julgar uma ação que

envolva o direito constitucional de greve em contraponto ao direito de

constitucional de propriedade, por meio do mecanismo processual

identificado como interdito proibitório, o caso concreto poderá revelar a

prevalência de um ou de outro, através dos contornos fáticos que envolvem a

demanda, proibindo o excesso de um dos direitos a ponto de aniquilar o

outro.

Essa demonstração só ocorrerá com a realização do caminho de

testes dos subprincípios com o caso concreto.

No caso citado, não se afastará o direito a greve, mas poderá ser

necessário relativizar esse direito se o princípio da propriedade estiver sendo

violado numa intensidade insustentável. De outro lado, não se negará o

direito a posse e a propriedade, desde que a greve não seja de uma

intensidade de modo a invadir o direito à propriedade.

Esse o caminho que nos parece necessário e conforme a constituição

para que a decisão e sua fundamentação sejam plenas.

Como se pode observar, ao se tratar de direitos e garantias

fundamentais, o cuidado deve ser ainda mais severo, sendo de extrema

necessidade o exato conhecimento dos fatos (caso concreto) que envolvem a

colisão.

Ao tratar da relação de emprego, e de direitos fundamentais que a

circundam, a CLT apresenta uma hipótese muito útil ao conhecimento desses

fatos, como se observa na transcrição do artigo 765:

105

“Art. 765 - Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão

ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo

andamento rápido das causas, podendo determinar

qualquer diligência necessária ao esclarecimento

delas”.(grifei)

Relevante destacar que no caso do Julgador necessitar de outras

informações para ter conhecimento do caso concreto, deve se valer desse

dispositivo legal para a própria prevenção de violação de direitos

fundamentais no caso concreto.

O Tribunal Constitucional Alemão, quando necessário, nesse mesmo

sentido busca todas as informações necessárias extra autos, para o

julgamento de referidas colisões, como ofícios aos órgãos públicos, perícias,

e demais hipóteses.

4.1 Os Direitos Sociais e a Insuficiência de Regras Infraconstitucionais

para Solução de Conflitos (um mundo “novo”)

Como já destacado no presente trabalho, os direitos sociais,

que envolvem também os direitos e garantias relacionados às relações de

capital e trabalho, como se revestem de conteúdo constitucional (artigos 6º e

7º) de fundamentabilidade, constantemente se apresentam ao Judiciário em

casos concretos em conflito com outras garantias e/ou direitos fundamentais.

E qual a razão ou quais as razões para que isso ocorra? Talvez

possamos observando o contexto social, enumerar algumas delas.

Por primeiro, poderíamos destacar o dinamismo das relações

sociais nos dias atuais, que por vários ângulos de análise, tornam fértil o

terreno dos conflitos.

106

A sociedade brasileira, assim como em outros países que

possuem em seu cerne a relação ou regime capitalista, avança como um

todo, numa velocidade incontrolável na busca pelo capital.

O sucesso no mundo dito capitalista se reduziu ao sucesso

financeiro.

Nada mais há de importante, relevante ou interessante, ainda

que isso seja inserido nas mentes das pessoas em geral, de forma

inconsciente muitas vezes.

A família, o lazer, o descanso, são elementos que

definitivamente – e infelizmente – ecoam na sociedade capitalista num

segundo plano.

O aparato para a inserção desse novo modo de viver e de

pensar absolutamente desgastante, em certa medida, encontra amparo na

tecnologia e na elevada concorrência do mercado. Ambas, possuem seu viés

positivo e necessário – o que é inegável – contudo, utilizadas

desenfreadamente, como hoje se observa, causam evidente desgaste para

toda a sociedade.

No caso da relação de trabalho, por exemplo, na visão

absolutamente capitalista podemos destacar que o empregado bom é o

empregado “on-line”, ou ainda àquele empregado que troca sua família, seu

descanso, suas férias, para atender qualquer pedido da empresa a qualquer

tempo.

Evidentemente que esse cenário de desvirtuamento desse tipo

de relação não poderia trazer problemas idênticos àqueles enfrentados pela

legislação infraconstitucional de 1943 (CLT) e algumas de suas alterações.

O regime de criação da CLT atendia a realidade cultural

absolutamente diversa, onde a comunicação era realizada por carta, não por

107

internet, onde o trabalho era manual, e não totalmente automatizado, onde a

produção era o segredo do sucesso, e não a gestão.

Mudando o cenário, evidente que o espectro do conflito se

altera e acreditar que a edição de leis será mais rápida que o avanço social é

uma utopia.

Exemplo clássico poderia ser dado pelo fenômeno

administrativo que alcança as relações de emprego de hoje, denominado

terceirização, que na verdade é a exteriorização de parte do processo

produtivo de uma empresa.

Há quem defenda – e, aliás, são inúmeros os projetos de lei -

que há de existir uma lei para resolver toda a questão da terceirização,

principalmente em razão da defesa de que em regra, referidos serviços

adicionam o empregado a uma situação precária de vida.

Mas afinal, será que hoje terceirizamos todos os tipos de

serviços, ou a cada dia nascem inúmeras novas profissões e atividades

empresariais?

Será que uma lei de terceirização já não nasceria solucionando

apenas poucos conflitos?

Outra questão que pode ser posta diz respeito às atuais

reivindicações realizadas por empregados no judiciário nos dias atuais.

Noutra época, os processos tratavam de problemas já postos e

conhecidos muito bem pela legislação ordinária. O trabalhador reivindica o

pagamento de horas extras, cabendo ao Juiz por meio de simples subsunção

dos fatos discutidos com os pedidos, reconhecer ou não o direito.

Contudo, nos dias atuais, enfrentamos questões difíceis (hard

cases), geralmente vinculadas a direitos ditos inespecíficos, em que

empregados são revistados com suposta violação a sua intimidade,

108

discussões sobre a privacidade ou não dos e-mails, debates sobre doenças

psíquicas muitas vezes oriundas do desgaste emocional aviltante causado

pelo trabalho, a existência ou não de assédio moral e sexual em situações

corporativas, entre outros tantos exemplos.

Indaga-se então: Será a lei infraconstitucional capaz de criar

uma hipótese de incidência para essa complexidade de mundo em que

vivemos, permitindo ao julgador que pela simples subsunção do fato a uma

norma pré-estabelecida dê guarida a essa ou aquela proteção?

Evidente que não.

Então como compatibilizar a promessa do Estado Democrático

de direito, enquanto uma escolha política de um povo com as garantias e

direitos fundamentais por meio da edição de leis?

E mais, como compatibilizar a garantia da decisão dita “justa”

ou mais próxima do justo, e fundamentada sem a utilização de critérios

objetivos capazes de externar a segurança jurídica da decisão, evitando

assim a discricionariedade num elevado grau?

No nosso entender há apenas uma saída, que é justamente a

aplicação dos princípios de forma volátil quanto às garantias e direitos

fundamentais, permitindo a análise de casos concretos individualmente, pelas

regras do princípio da proporcionalidade.

Além do exposto, por fim, é necessário passar em revista aos

princípios específicos do direito do trabalho para avaliar se existe, em certa

medida, choques com o princípio da proporcionalidade, ou se na verdade,

referidos princípios dão completude ao sistema.

Para isso nos valeremos da obra do Professor Uruguaio

Américo Plá Rodriguez, que sedimentou em obra memorável os princípios da

relação entabulada entre capital e trabalho.

109

4.2 O princípio da proporcionalidade e os princípios do direito do

trabalho. Choque ou complemento?

4.2.1. In dubio, pro operário

Para Américo Plá Rodriguez119 a regra do in dubio pro operário

é o “critério que deve utilizar o juiz ou o intérprete para escolher, entre vários

sentidos possíveis de uma norma, aquele que seja mais favorável ao

empregado”.

E continua, agora citando Deveali, no sentido de que “podemos

dizer que o reconhecimento do caráter especial do Direito do Trabalho

importa em rechaçar o princípio admitido no direito privado, segundo o qual

os casos duvidosos devem resolver-se a favor do devedor (in dúbio, pro reo).

(...) Se o direito privado aceita o princípio do favor pro reo é porque, na

generalidade das relações civis ou comerciais, o devedor é o mais fraco e

necessitado. Mas nas relações laborais ocorre exatamente o contrário, posto

que, na generalidade dos casos, o trabalhador, cuja situação de debilidade

frente ao empregador constitui o pressuposto básico do direito laboral,

apresenta-se como credor frente a seu empregador”.120

Isso mostra, de certa maneira, que o ramo do direito do trabalho

possui princípios próprios, não estando vinculado à premissa de igualdade

entre às partes que demandam.

Aqui, cumpre salientar, que na nossa visão, esse desiquilíbrio é

da relação, que se sustenta, principalmente na subordinação.

Noutras palavras, as regras infraconstitucionais, em tese, não

diferenciam o faxineiro do diretor de uma empresa, bastando que se

119 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: Editora LTr, 2004, pág. 107.

120 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho, cit., p. 108.

110

comprove os elementos da relação de emprego, podemos pensar na

formação do vínculo empregatício, na interpretação do princípio in dubio pro

operario.

Na verdade, o princípio em testilha, pode ser aplicado apenas e

tão somente na legislação infraconstitucional, pois se debruça ao que parece,

nos tradicionais critérios de validade ou não validade de norma, optando

entre uma e outra, não se podendo falar, com todo respeito, nessa aplicação

no nível de discussão entre colisão de direitos fundamentais, sob pena de se

priorizar um direito em detrimento do esvaziamento completo do outro, o que

não se pode aceitar, como já destacado.

4.2.2. Norma mais favorável

Leciona ainda o saudoso Américo Plá Rodriguez121 que a regra

da norma mais favorável determina “no caso de haver mais de uma norma

aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não

seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas”.

Importante destacar mais uma vez, que quando tratamos de

regras infraconstitucionais e que não sejam emplacadas pela colisão de

direitos fundamentais talvez a aplicação do princípio encontre guarida, pois

estaremos tratando de dúvidas de subsunção dessa ou daquela norma.

Mais há ainda outra hipótese de sucesso no princípio posto,

quando tratamos não de proporcionalidade, mas sim, de interpretação

“conforme” o texto Constitucional.

Referimo-nos ao caput do artigo 7º da Constituição Federal que

dita especificamente:

121 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho, cit., p. 107.

111

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de

outros que visem à melhoria de sua condição social”.

Vê-se que o direcionamento do princípio da norma mais

favorável encontra sustentação no próprio texto maior, e por essa razão,

estamos tratando de aplicação de um princípio com sustentação numa

interpretação dita “conforme”, ou seja, que possui em seu bojo a irradiação

da “regra” principiológica no epicentro constitucional para um ramo específico

do direito.

Isso se torna de clareza solar, quando apresentamos exemplos

clássicos. Vamos a uma deles.

Se o instrumento coletivo firmado entre duas categorias fixa

hora extra de 70% e a Constituição Federal revela que o adicional mínimo a

ser aplicado (inciso XVI do artigo 7º) é, “no mínimo” de 50%, o que ocorre

na verdade é a aplicação do caput do artigo 7º já citado combinado com o

artigo XVI do mesmo artigo, para conferir ao trabalhador a hora extra com

70%, tendo em vista que essa regra melhora sua condição social, pois

aumenta seu poder de compra e sua sustentação financeira, além de

claramente tornar possível o avanço da própria economia.

Por tal razão, não elevamos na verdade o instrumento coletivo a

uma categoria maior que o texto constitucional, e sim, respeitamos o texto

constitucional, que claramente indica essa possibilidade. Mas observe-se,

aqui não há um choque entre direitos e garantias fundamentais

constitucionais, há sim uma completude do texto constitucional realizado pela

via dos instrumentos coletivos.

Mas repita-se, isso se dá no nível de direitos regulamentados

infraconstitucionalmente em hipótese em que não se observe choque ou

colisão de direitos fundamentais.

112

Américo vai adiante, sugerindo métodos de aplicação de

prevalência. Um desses métodos é o do critério de aplicação, e, citando

Durand 122 , propõe os seguintes princípios orientadores de aplicação da

norma mais favorável:

1) a comparação deve ser efetuada considerando o conteúdo

das normas. Não pode, entretanto, compreender as

consequências econômicas longínquas que a regra possa

ocasionar. Pode ocorrer que uma convenção coletiva,

impondo às empresas um ônus muito pesado, seja geradora

de desemprego e provoque uma perturbação econômica aos

trabalhadores. Nem por isso deixa de ser considerada mais

favorável, se o estatuto que estabelece é, em si mesmo,

preferível ao da lei;

Com evidente respeito ao mestre e ao momento em que o texto

fora redigido, nos dias atuais, não se permite mais, uma visão micro do

mundo do trabalho.

Tanto é verdade, que o próprio texto constitucional permite a

redução salarial (ainda que apenas firmada por instrumentos coletivos) de um

empregado.

Se essa visão fosse correta, estaríamos negando o texto

constitucional, para a aplicação de um princípio sem a observância da

realidade social. Assegurar a aplicabilidade de uma única forma nos atrai

para a antiga visão de mera “subsunção”, e no caso, o que é pior,

“subsunção” entre aspas, pois estamos tratando de uma suposta “subsunção”

de princípio específico, o que nos parece impossível de sustentar.

Nessa linha, não só é possível, como conveniente e legitimo, o

afastamento desse princípio seja para atender o comando constitucional - no

122 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho, cit., p. 127-128.

113

caso do exemplo dado – como na hipótese de que essa aplicação pura e

simples seja capaz de atrair a colisão de garantias fundamentais de

empregados e de empregadores, pelo critério de aplicação do princípio da

proporcionalidade, esse sim de natureza vinculativa ao Estado Democrático

de Direito.

2) a questão de saber se uma norma é ou não favorável aos

trabalhadores não depende da apreciação subjetiva dos

interessados. Ela deve ser resolvida objetivamente, em função

dos motivos que tenham inspirado as normas;

Aqui, como já comentado, verifica-se a identificação plena do

saudoso professor com o dito “espírito da lei” ou “espírito do legislador”, o

que não parece possuir mais espaço numa visão dita pós-positivista.

Não obstante a ideia apresentada de uma apreciação objetiva

da norma, o que afasta o julgamento conforme a consciência, repudiado nos

dias atuais, nos parece que a objetividade não encontra supedâneo na

inspiração do legislador, mas sim, no texto constitucional, seja pela aplicação

da proporcionalidade, caso em choque garantias fundamentais, seja pela

interpretação conforme, fazendo valer a vontade do texto maior, com menor

nível de discricionariedade possível.

E continua o Autor:

3) o confronto de duas normas deve ser feito de uma maneira

concreta, indagando se a regra inferior é, no caso, mais ou

menos favorável aos trabalhadores. Uma cláusula de escala

móvel, admitindo a revisão dos salários, no caso de variação

de custo de vida em 10%, em elevação ou em baixa, enquanto

o coeficiente legal de revisão é de 5%, será julgada

prejudicial em caso de alta do custo de vida, posto que

impede a revisão dos salários, enquanto teria sido favorável

no caso de baixa, retardando a diminuição dos salários;

114

Salientamos que mesmo na existência de previsibilidade da

melhoria da condição social do trabalhador no caput do artigo 7º do Texto

Constitucional, como bem apontado pelo renomado jurista, deve ser avaliado

o caso concreto, no sentido de observar a existência ou não de colisão de

direitos ou garantias fundamentais.

Não podemos deixar escapar que empresas, enquanto pessoas

jurídicas e geradoras de emprego, de igual forma estão sob o manto protetor

constitucional quanto às garantias ditas fundamentais.

Isso significa dizer, que em regra, podemos entender o

desnivelamento ocasionado pela subordinação existente na relação de

emprego, contudo, hipótese pode ocorrer, em que não se poderá

simplesmente esvaziar completamente um direito fundamental em detrimento

de outro apenas e tão somente em socorro do princípio da norma mais

favorável.

4) como a possibilidade de melhorar a condição dos

trabalhadores constitui uma exceção ao princípio da

intangibilidade da regra imperativa hierarquicamente

superior, não se pode admitir a eficácia de uma disposição

inferior, embora se possa duvidar de que seja efetivamente

mais favorável aos trabalhadores”.

Aqui, a hipótese nos parece ser de interpretação da regra

inferior conforme o texto constitucional.

4.2.3. Verdade real

O princípio em si já é um paradoxo, pois existe verdade

absoluta?

115

Talvez a intenção e avaliação do princípio andem estritamente

ligada à possibilidade de decisões com sustentação meramente formal, ou

seja, observando apenas a formalidade existente no contrato entre partes e

seus parâmetros de fixação não seriam indicadas para a solução de conflitos

na esfera trabalhista.

Contudo, para nós, ainda que esse princípio tenha sua origem

em estudos da relação de emprego, acaba por se confundir com o ideário de

justiça, busca constitucional para todo e qualquer ramo do direito.

O princípio da proporcionalidade aqui estudado, observado por

esse matiz, evidentemente ganha contornos significativos, pois ao analisar

caso a caso quando em choque garantias fundamentais, nos aproxima em

tempo e modo da suposta verdade real, pois afasta o “ante” normativo criado,

aplicado por simples subsunção.

Uma hipótese que poderia ser ventilada no nível constitucional

é o constante conflito – de natureza processual - entre duração razoável do

processo e garantia da ampla defesa, ambos incrustados na Carta de 1988

como garantias certas.

Poderia ser esvaziado por completo o tempo de duração

razoável do processo ou a garantia da ampla defesa com supedâneo na

busca de uma verdade dita real?

Evidente que não.

Observe-se que a verdade real não poderia e não pode ter mão

única, tendo em vista que um resultado obtido em qualquer processo judicial

vale para todas às partes que dele participam.

Na hipótese ventilada, podemos ter uma duração que nos

parece excessiva do processo, contudo necessária para permitir a ampla

defesa; de outro lado, casos existem em que concedida à possibilidade de

116

defesa de forma suficiente, evidente que prevalecerá a duração razoável do

processo como motor de aceleração da decisão.

117

CAPÍTULO 3. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NAS RELAÇÕES

TRABALHISTAS

3.1 Constituição Federal e os Direitos Sociais do Trabalhador

Através dos tempos chegando até a presente quadra,

identificamos hoje no texto da Carta de 1988 direitos sociais.

Referidos direitos e garantias encontraram no então texto de

1988 expressão inigualável. Isso porque desde o Preâmbulo da Carta, se

observa que os direitos sociais são especificados mesmo na “antevisão” da

redação Constitucional, portanto, base de sua construção, de seu objetivo.

Importante destacar que direitos sociais devem ser observados

na leitura da constituição de uma forma mais abrangente, como garantias e

direitos da sociedade como um todo, e não especificamente dos

trabalhadores.

Contudo, de uma forma mais específica, cabe pontuar que os

valores sociais do trabalho, ou seja, a importância valorativa do trabalho para

o seio da sociedade como um todo, é identificada no texto como um dos

fundamentos do Estado Democrático de Direito.

3.2 Escorço Histórico

Há evidente avanço histórico no texto constitucional ao longo

dos tempos.

A esse avanço passamos a nos dedicar.

118

Como todos sabemos a carta política de 1988 se apresenta

num viés formal e material de observação123.

Nos ensina Paulo Gustavo Gonet Branco124:

Fala-se em Constituição no sentido substancial quando o

critério definidor se atém ao conteúdo das normas

examinadas. A Constituição será, assim, o conjunto de

normas que instituem e fixam as competências dos principais

órgãos do Estado, estabelecendo como serão dirigidos e por

quem, além de disciplinar as interações e controles

recíprocos entre tais órgãos. Compõem a Constituição

também, sob esse ponto de vista, as normas que limitam a

ação dos órgãos estatais, em benefício da preservação da

esfera de autodeterminação dos indivíduos e grupos que se

encontram sob a regência desse Estatuto Político. Essas

normas garantem às pessoas uma posição fundamental ante o

poder público (direitos fundamentais).

Escorado na lição de Konrad Hesse constante na obra “Temas

Fundamentais de Direito Constitucional”, o mesmo autor implementa inserido

no conteúdo substancial outro desdobramento: “A Constituição passa a ser o

local para delinear normativamente também aspectos essenciais do contato

das pessoas e grupos sociais entre si, e não apenas as suas conexões com

os poderes públicos”125.

Sob o aspecto formal, continua o Autor: “é o documento escrito

e solene que positiva as normas jurídicas superiores da comunidade do

123 O leitor pode encontrar todos os textos das constituições nacionais no site: www.planalto.gov.br.

124 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª Ed. Revista e atualizada, São Paulo; Saraiva, 2001, p. 63 e 64.

125 Idem, p. 65.

119

Estado, elaborados por um processo constituinte específico. São

constitucionais assim, as normas que aparecem no diploma constitucional,

que resultam das fontes do direito constitucional, independente do seu

conteúdo126”.

Desnuda-se aos nossos olhos que a Constituição de um País é

a regra superior que compõe suporta o ordenamento jurídico, visa garantir a

segurança de “por quem”, “quando” e “como” se dará um comando e suas

inter-relações de uma nação, além reger como norma 127 de natureza

essencial a relação entre pessoas e grupos que pertencem a essa mesma

sociedade128.

126 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, p. 66.

127 Nos dias atuais há imensa discussão doutrinária no campo da filosofia do direito sobre o que é norma, principalmente no campo constitucional, pois após o giro linguístico ocorrido na Europa tratando o texto da norma como linguagem, há evidente decadência da visão positivista de Hans Kelsen propalada em sua obra “Teoria Pura do Direito”, tratando a norma como “dever ser” de uma sociedade. Nos dias atuais, ainda, concorre com essa Teoria aquela apresentada por Friederich Müller denominada “Teoria Estruturante do Direito”, que tem em si a ideia de que num julgamento o Estado através de um Juiz competente cria a norma com o julgamento, fazendo com que o texto da lei tenha conteúdo meramente linguístico e em certa medida programático, sendo a norma efetivamente criada com a decisão judicial. Esse destaque é necessário, tendo em vista que pelo dinamismo do direito do trabalho ocasionado pelas mudanças sociais e constantes no mundo do trabalho, talvez num futuro próximo não seja mais possível á aplicação da simples subsunção, pois trará tratamentos iguais para fatos sociais diferentes. Na teoria estruturante cada julgamento trata em si e isoladamente cada fato social, elevando inclusive a importância do magistrado, que se afasta de uma função meramente mecânica, permitindo o avanço no entendimento em acompanhamento aos fatos sociais. Em palavras mais simples, a “Teoria Estruturante” trata cada caso como único. Ao leitor que pretender compreender com maior densidade o tema, sugerimos no campo filosófico a leitura da obra “Verdade e Método” de Hans-Georg Gadamer e no campo do direito a importante avaliação Georges Abboud na Obra “Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais”, Editora Revista dos Tribunais, em especial páginas 46/47.

128 Destaca Manoel Gonçalves Ferreira Filho na obra “Curso de Direito Constitucional”, Ed. Saraiva. 16ª Edição. São Paulo, 1987, p. 87 “A Constituição é a base da ordem jurídica e a fonte de sua validade. Por isso, todas as leis a ela se subordinam e nenhuma pode contra ela dispor. A supremacia da Constituição decorre de sua origem. Provém ela de um poder que institui a todos os outros e não é instituído por qualquer outro, de um poder que constitui os demais e é por isso denominado Poder constituinte”.

120

Não se vê portanto, a possibilidade de se ignorar a envergadura

e significação de tal documento, também conhecido como carta, como se

entregue fosse a cada cidadão em seu respectivo endereço garantindo sua

aplicabilidade em respeito ao ser social.

No espectro do direito dito trabalhista, vinculados às

expressivas garantias sociais à crescente desses direitos são incontestáveis,

como já indicou Paulo Bonavides ao tratar da relação do direito

Constitucional com o Direito do Trabalho:

São numerosos os dispositivos constitucionais que inserem

princípios de proteção aos trabalhadores consagrando

admiráveis conquistas da classe obreira. Medite-se a esse

respeito no sindicato livre, no direito de greve, na previdência

social, no salário mínimo, no repouso semanal remunerado,

na participação obrigatória nos lucros da empresa etc.

(arts.6º,7º,8º e 9º)129

Contudo, o objetivo aqui é apenas destacar parte dos avanços

ocorridos com o passar do tempo no direito do trabalho no texto e contexto

constitucional.

A Constituição ainda Imperial de 1824, criada no período

escravagista, em tese nada citou em relação ao tema, proibindo apenas o

trabalho na hipótese de violação de costumes, segurança e saúde de

cidadãos, além da extinção das corporações de ofícios, como se observa em

seu artigo 179.

“XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou

commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha

aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.

129 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 46.

121

XXV. Ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juizes,

Escrivães, e Mestres”. (SIC)

O texto Constitucional de 1891, mesmo já pertencente ao

período republicano, sob influência clara da Constituição dos Estados Unidos

da América 130 , apresentou dois avanços, sendo eles:1) liberdade de

associação e liberdade do exercício de profissão, ambos identificados no

artigo 72, parágrafos 8º e 24º respectivamente.

Os professores Octavio Bueno Magano e Estêvão Mallet131 com

esteio em Pinto Ferreira que “A Constituição de 1934 é a primeira a abrir

largo espaço à ordem econômica e social, o que denota clara influência do

constitucionalismo social”.

Tal fator fora observado principalmente em razão da revolução

constitucionalista paulista de 1932, que apresentou a extrema necessidade

da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte pelo então Getúlio

Vargas.

Assinalam referidos Autores132 o texto do artigo de nº 115 para

fundamentar referida assertiva, que dita: “a ordem econômica deve ser

organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida

nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses

limites, é garantida a liberdade econômica”.

130 BELTRAN, Ari Possidonio. Direito do Trabalho e Direitos Fundamentais. São Paulo: Ltr 2002, p.110.

131 MAGANO, Ocatvio Bueno e MALLET, Estêvão. O Direito do Trabalho na Constituição. Ed 1ª. Editora Forense; 1993; p.11.

132 MAGANO, Ocatvio Bueno e MALLET, Estêvão. O Direito do Trabalho na Constituição, cit., p. 12.

122

Além disso, foi criada a Justiça do Trabalho133 - ainda que não

tão independente como nos dias atuais, em razão de encontrar-se vinculada

ainda ao Poder executivo (artigo 122 da CF de 1934); no espaço destinado

ao direito coletivo do trabalho implementou a autonomia sindical, pluralidade

sindical, reconhecendo as associações profissionais (artigo 120, parágrafo

único); reconhecendo ainda, as convenções coletivas de trabalho (artigo 121,

parágrafo 1º, letra “j”).

No que se refere ao direito dito individual do trabalho, os

notáveis os avanços, tenho em vista agora presentes: o princípio da isonomia

salarial (artigo 121, parágrafo 1º, letra “a”); 2) O salário mínimo (artigo 121,

parágrafo 1º, letra “b”); 3) a proibição do trabalho do menor de 14 anos e

noturno dos aos menores de 16 anos, bem como no caso de ambiente

insalubre protegeu a mulher e menores de 18 anos (artigo 121, parágrafo 1º,

letra “d”); 5) fixação de indenização na hipótese de dispensa sem justa causa

(artigo 121, parágrafo 1º, letra “g”); 6) limitou jornada diária em 8 horas,

acenando para sua prorrogação apenas através de autorização legal (artigo

121, parágrafo 1º, letra “c”; 7) garantiu o repouso semanal (artigo 121,

parágrafo 1º, letra “e”); assegurou o direito às férias anuais remuneradas134.

(artigo 121, parágrafo 1º, letra “f”)

Prelecionam os professores Magano e Mallet 135 que referida

Constituição ainda se expressou quanto: “da assistência médica e sanitária

ao trabalhador e à gestante, assegurando-se a esta descanso antes e depois

133Silva Filho, Ives Gandra Martins. História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Homenagem a Armando Casimiro Costa. Organizadores Amauri Mascaro Nascimento, Irany Ferrari, Ives Gandra Martins da Silva Filho. 3ª Ed. São Paulo; LTr, 2011, p.139

134 Ressalte-se que até então vigia sobre as férias a lei 4.982 de 25 de dezembro de 1925 que deu direito ao gozo de férias de 15 dias sem prejuízo do recebimento aos empregados de estabelecimentos comerciais, industriais, bancários e de instituições de caridade do Distrito Federal e Estados.

135 MAGANO, Octavio Bueno e MALLET, Estêvão. O Direito do Trabalho na Constituição, cit., p. 13.

123

do parto, sem prejuízo do salário e do emprego. Instituiu-se a previdência

social, mediante contribuição igual da União, do empregador e do

empregado”.

Nesse sentido, o texto de 1934 foi um divisor de águas para a

conquista no texto maior de direitos sociais.

Os textos encampados pelas Constituições de 1937 e de 1946

com características corporativistas136, inserindo o trabalho agora como dever

social, sendo que a de 1937 proibiu a greve137 e o lock-out138, bem como

reconheceu o sindicato como mero ente receptor de determinações do poder

estatal, com função meramente assistencial.

Digno de nota quanto ao texto da Constituição de 1946, o

reconhecimento da greve como direito (artigo 158), e no campo individual,

por ter observado o maior desgaste do trabalho realizado no período noturno,

garantindo diferença na paga (artigo 157, inciso III); além desses avanços,

houve por bem criar a assistência aos desempregados (artigo 157, XV);

136 Ensinam Estêvão Mallet e Octávio Bueno Magano com esteio em Marcello Caetano sobre os postulados básicos e princípios do corporativismo: “a atividade econômica deve guiar-se por padrões morais; não há duas classes sociais irredutivelmente opostas, mas número indefinido de grupos econômicos operando em colaboração harmônica; a atuação social do indivíduo há de se desenvolver através do seu grupo econômico; o interesse nacional coloca-se acima de todos os interesses particulares; o Estado tem deveres a cumprir na vida econômica e social”. MAGANO, Octavio Bueno e MALLET, Estêvão. O Direito do Trabalho na Constituição, cit., p. 15.

137 A greve ou estado de greve, como forma de pressão reivindicatória, consiste na paralização coletiva dos trabalhos pelos empregados visando atendimento de suas reivindicações. Foi durante muitos anos considerada como delito penal (exemplos da Inglaterra, em 1799/1880, Nos Estados Unidos por decisão em 1806, bem como pelo Código de Napoleão na França em 1806) como destaca SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 5. No Brasil, não foi diferente, com proibições no texto constitucional, contudo, hoje, o direito de greve é assegurado pelo artigo 9º da Constituição Federal de 1988.

138 Expressão inglesa que traduzida livremente significaria “fechar a porta”. Na verdade é atitude do empregador que consiste em paralisar as atividades da empresa, se valendo do seu poder econômico, com objetivo de frustrar alguma reivindicação da classe trabalhadora. Proibida tal prática no Brasil pela Lei 7.783/89, artigo 17.

124

permitiu a participação dos trabalhadores nos lucros da empresa (artigo 157,

IV); bem como firmou a necessidade do seguro contra acidentes do trabalho

(artigo 157, XVII).

Já o texto de 1967, no dizer de Magano e Mallet139 “apresentou

poucas inovações, mas todas elas significativas”.

Sucintamente, apontam os Autores algumas inovações: no

campo processual: irrecorribilidade das decisões do Tribunal Superior do

Trabalho salvo se contrárias a Constituição (artigo135); no campo do direito

social (Título III do texto, artigo 158), inserindo os seguintes princípios

programáticos140 destacam: liberdade de iniciativa, valorização do trabalho

como dignidade humana, função social da propriedade, harmonia e

solidariedade entre os fatores de produção, desenvolvimento econômico,

repressão ao abuso do poder econômico caracterizado pelo domínio dos

mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrários dos lucros,

participação dos trabalhadores na gestão da empresa, ainda que em casos

excepcionais, além da criação através do inciso XIII do Fundo de Garantia

por tempo de Serviço, ainda como opção ao regime de estabilidade, dando

início a decadência da estabilidade decenal.

Destacam os mesmo autores, a importância da criação do

salário-família, com previsão constitucional 141 (artigo 158), dando a este

natureza previdenciária, possibilitando o ressarcimento dos valores pagos a

esse título.

139 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 18.

140 Princípios programáticos são em síntese aqueles que têm como objetivo disciplinar interesses sociais e econômicos, e como exemplos poderíamos citar a valorização do trabalho e a busca pela Justiça social.

141 O salário-família já possuía previsão infra-constitucional na lei 4.266/1963.

125

Como ponto negativo do Texto, podemos destacar ainda com

esteio nos autores que citam ainda palavras de época do Professor Evaristo

de Moraes, a limitação do direito de greve quanto aos servidores públicos142

e nas atividades ditas essenciais143.

Ensina Beltran144 sobre a Emenda Constitucional 1º de 17 de

outubro de 1969, objeto de revisita a finalidade do Texto Constitucional:

“Embora tal revisão não tivesse alterado o elenco dos direitos sociais, alterou

fundamentalmente a finalidade da ordem econômica: enquanto o texto de

1967consignava que ela, com fundamento nos princípios enumerados, teria

“for fim realizar a justiça social”, o texto de 1969 previa que “a ordem

econômica e social em por fim realizar o desenvolvimento econômico e a

justiça social”, tudo com fundamento nos princípios que menciona”.

Na quadratura atual, com vigência a Carta de 1988, que em

avanço inegável e incalculável, reconheceu especialmente e expressamente

os direitos dos trabalhadores, atribuindo a esses topologia especial.

No artigo 1º, de se destacar, que apresenta como fundamento

do próprio texto constitucional “os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa” (inciso IV).

Some-se a referida previsão, que direitos atribuídos à classe

trabalhadora se apresenta no capítulo II denominado “DOS DIREITOS

SOCIAIS”, que está inserido no Título II denominado “DOS DIREITOS E

GARANTIAS FUNDAMENTAIS”.

142 Importante destacar que a discussão sobre o direito de greve do servidor público ainda não está completamente solucionada até hoje, mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal se manifestado em 25 de outubro de 2007 no Mandado de Injunção 708-DF pela aplicabilidade da lei 7.783/1989 aos servidores públicos.

143 Verificar artigos 9º e 11º da lei 7.783 de 1989 sobre greve nas atividades ditas essenciais.

144 BELTRAN, Ari Possidonio. Direito do Trabalho e Direitos Fundamentais, p.113.

126

O destaque inicial é a alteração dita topológica145 da inserção

dos direitos dos trabalhadores, que parte de uma simples declaração de

direitos na Constituição de 1967, aparecendo nessa quadra, como garantia

fundamental. Isso é muito relevante, pois pela primeira vez na história

constitucional146, se reconhece a importância dos direitos sociais147 como

fundamentais148, daí a fala de que o texto Constituição de 1988, além de

democrática, na sua forma, é uma Constituição social de direito em sua

essência.

No trabalho denominado “Dumping Social149 referido momento

histórico e de previsão, não deixou ser observado, que destacaram com

fundamento Norberto Bobbio: “A consolidação do Estado Social constitui, de

acordo com o jurista italiano, um compromisso histórico entre a propriedade

privada como direito absoluto, própria do Estado Liberal, e o mundo do

trabalho organizado. Um compromisso necessário para salvar o sistema

capitalista, do qual nasce direta ou indiretamente a democracia moderna”.

145 Topologia além de um ramo da matemática pode ser compreendida no contexto como um conjunto de partes de um conjunto que verificam certas propriedades de intersecção e união.

146 Não obstante a Constituição Federal de 1967 tenha valorizado o trabalho como viés da dignidade humana, a mudança é significativa.

147 Conceitua José Afonso da Silva os direitos sociais com as seguintes palavras: “assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais, são portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito constitucional Positivo.30ª ed, São Paulo: Editora Malheiros, 2008, p.287.

148 Ao explicar a importância do texto constitucional como base do direito de um País destaca o professor Nelson Nery Junior: “[...] É cada vez maior o número de trabalhos e estudos jurídicos envolvendo interpretação e aplicação da Constituição Federal, o que demonstra a tendência brasileira de colocar o Direito Constitucional em seu verdadeiro e meritório lugar: o de base fundamental de um direito do País”. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª edição, p.25.

149 MAIOR, Jorge Luiz Souto e MENDES, Ranulio e SEVERO, Valdete Souto. Dumping Social nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr., 2012, p.16.

127

Adicionam os autores revelando a base sustentadora da nova

carta, que trouxe o chamado capitalismo social responsável, numa visão

axiológica150:

[...] O direito social não é apenas uma normatividade

específica. Trata-se de uma regra transcendental que impõe

valores à sociedade e, consequentemente, a todo ordenamento

jurídico. Esses valores são: a solidariedade (como

responsabilidade social de caráter obrigacional), a justiça

social (como consequência da necessária política de

distribuição dos recursos econômicos e culturais produzidos

pelo sistema), e a proteção da dignidade humana (como forma

de impedir que os interesses econômicos suplantem a

necessária respeitabilidade à condição humana).

Tais direitos sociais estão sacramentados no texto

constitucional dos artigos 6º ao 11º, contudo, nem todos tem referência direta

ao trabalho, se fazendo importante, realizar uma estreita e pontual

classificação com amparo no Professor José Afonso da Silva, que acenou

para a divisão entre direitos sociais do homem produtor e direitos sociais do

homem consumidor.

Aponta que o homem dito consumidor encontra seus direitos no

artigo 6º da Carta de 1988, como os direitos à saúde, segurança social,

desenvolvimento intelectual, desenvolvimento da família entre outros.

Nos valendo de suas palavras151:

Entram na categoria de direitos sociais do homem produtor,

os seguintes: a liberdade de instituição sindical (instrumento

de ação coletiva), o direito de greve, o direito de o trabalhador

150 Visão de valores.

151 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito constitucional Positivo, cit., p. 287.

128

determinar as condições de seu trabalho (contrato coletivo de

trabalho), o direito de cooperar na gestão da empresa (co-

gestão ou autogestão) e o direito de obter um emprego. São os

previstos do artigo 7º ao 11º.

Além de tais destaques, não podemos afastar o Ato das

disposições Constitucionais Transitórias (artigo 10º) que de igual sorte trouxe

inúmeras garantias.

O artigo 193 do texto, inserido no Título VIII que trata da ordem

social, destacou ainda: “a ordem social em como base o primado do trabalho

e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.

O artigo 8º delimitou a forma da organização sindical; o artigo 9º

o direito de greve; o artigo 10º revelou a representação parelha dos órgãos

públicos que se refiram a interesses profissionais e o ario 11º tratou do

representante interno na empresa, como objetivo de promover o

entendimento dos trabalhadores com a direção da empresa.

Mas também não poderíamos afastar o registro quanto ao

significante avanço no texto do Artigo 7º da Constituição Federal de 1988,

esses sim, reais conquistas da relação de emprego e trabalho.

São eles:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de

outros que visem à melhoria de sua condição social:”

Já na cabeça do artigo, verificamos duas alterações

significativas.

129

Por primeiro, o tratamento igualitário ao trabalhador rural152 e ao

trabalhador urbano, encontrando uma isonomia - agora constitucional –

quanto ao tratamento destes, não obstante a legislação crie perspectivas

próprias de cada forma de prestação de serviço em razão do desgaste,

localidade, entre outras situações consideradas e razão da característica da

prestação de serviços.

De forma segunda, a expressão constitucional “além de outros

que visem à melhoria de sua condição social”, está a revelar um pacto social

oriundo dessa isonomia, ou seja, diz o texto maior, que a regra dos direitos

sociais não está limitada ao que o próprio texto destaca, mas sim que,

direitos que visem à melhoria dessas condições sociais do trabalhador e

urbano, e só esses, encontrarão respaldo no texto maior153 154.

Vamos aos incisos:

Inciso I:

152 Ver lei 5.889/73, portanto anterior ao texto constitucional que estatui normas específicas para o trabalho rural no Brasil.

153 Aqui destaca-se o princípio da interpretação dita “conforme”, como ensina Luis Carlos Hiroki Muta com as seguintes palavras: “Tal princípio não é, propriamente, específico da interpretação constitucional, mas um princípio que orienta o controle de constitucionalidade, ou seja, o exame da validade ou não de uma lei em face da Constituição, dotada de supremacia formal. Se todos os meios de interpretação disponíveis (gramatical, histórica, lógica etc.) não permitirem a redução do texto a um sentido e conteúdo unívoco, coexistindo vários, uns constitucionais e outros não, o que deve prevalecer, segundo tal princípio, é a interpretação que conduza a uma solução conforme a Constituição. MUTA, Luis Carlos Hiroki. Direito Constitucional. Tomo I. Ed. Elsevier.Rio de Janeiro. 2007, p. 35.

154 No mesmo sentido Willis Santiago Guerra Filho e Henrique Garbelinni Carnio em “Teoria da Ciência Jurídica”. Ed. Saraiva,2009. São Paulo; 2ª Edição, p. 179, item 6: “ Princípio da interpretação conforme a Constituição, que afasta interpretações contrárias a algumas das normas constitucionais, ainda que favoreça o cumprimento de outras dela. Determina também, esse princípio a conservação da norma, quando inconstitucional, quando seus fins possam harmonizar-se com os preceitos constitucionais, ao mesmo tempo em que estabelece como limite à interpretação constitucional as próprias regras infraconstitucionais impedindo que ela resulte numa interpretação contra legem, que contrarie a letra e o sentido dessas regras”.

130

“I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou

sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização

compensatória, dentre outros direitos”;

Em razão da discussão na Assembleia Constituinte, foi afastada

a figura da estabilidade plena (decenal), que havia sido instituída pela lei Eloy

Chaves em 1923155.

Para Amauri156 em obra escrita em 1989, portanto logo após a

edição do texto, quatro são as novidades apresentadas pela então Carta

Social, a saber: supressão da estabilidade no emprego; o retorno da

indenização no caso de dispensa; a adoção do conceito de dispensa

arbitrária; garantia de outros direitos, além da indenização compensatória,

que seriam objeto de lei.

“II - seguro-desemprego, em caso de desemprego

involuntário157”;

Por corolário lógico, tendo a Constituição Federal de 1988

extirpado a estabilidade plena, precisaria assegurar com pulso firme

garantias para empregados que sofressem dispensa de seus empregos.

Relevante compreender que a atitude constitucional visava

garantir também o equilíbrio econômico, pois empregado sem emprego, e,

portanto, sem renda, não ativaria a economia através do consumo, ainda que

esse fosse para sua subsistência.

“III - fundo de garantia do tempo de serviço”;

155 Consultar lei 5.107 de 1966 sobre o FGTS, bem como o inciso XII do artigo 157 da CF de 1946 e 158 XIII da CF de 1967.

156 MASCARO, Nascimento Amauri. Direito do Trabalho na Constituição de 1988. Saraiva.1989, p. 45.

157 Consultar Decreto-lei 2.284 de 10 de março de 1986 que institui o seguro desemprego no Brasil.

131

Já inserido na constituição de 1967 pela Emenda de 1969, o

regime de FGTS, contudo tratado ainda à época como opcional158.

Diferentemente, a Constituição de 1988 inseriu o regime de

forma definitiva, respeitado, evidentemente, o direito adquirido realizado por

opção do empregado.

Na época, muitas foram às críticas dos doutrinadores,

principalmente em razão do entendimento de que a estabilidade não poderia

ser trocada por nada, em razão da ideologia que circundam a relação de

emprego e seus princípios.

Amauri159 ao avaliar, chegou a dizer: “Se há um instituto que

apresenta dois efeitos paralelos e opostos de modo claro, é o Fundo de

Garantia do Tempo de serviço. Protege e desprotege. Garante e traz

insegurança. É um bem e é um mal”.

A verdade é que o texto constitucional realizou uma troca clara,

partindo da estabilidade na relação para a possibilidade da dispensa,

tentando criar uma teia de possibilidades para que os empregados não

ficassem a deriva em caso de dispensa do emprego, prestigiando ainda, o

princípio da solidariedade constitucional, que sob a égide dos recolhimentos

mensais de 8% com base no salário do empregado realizados pelo

empregador, passaria então definitivamente a contribuir com o acesso a

subsistência do empregado em caso de desligamento de seu ofício.

Mesmo com as críticas da época, todas extremamente

fundamentadas, conseguimos identificar hoje a importância desse marco

fixado pelo Constituinte.

158 Ver artigo 165, XIII da Constituição de 1967 e leis 5.107 de 1966 e 5.598 de 1973.

159 MASCARO, Nascimento Amauri. Direito do Trabalho na Constituição de 1988, cit., p. 94.

132

Isso porque, nessa quadra, é fácil identificar a grande migração

de empregados entre empresas no mundo dito “globalizado”, e mais, em

breve conversa com a Professora e importante jurista portuguesa Maria do

Rosário Palma Ramalho, guardadas as diferenças culturais evidentemente,

conseguimos identificar as enormes dificuldades encontradas em Portugal

nos dias atuais em razão da manutenção do regime de estabilidade para a

realização de uma simples dispensa de um empregado, o que muitas vezes

compromete a própria economia da empresa, e por consequência, daquele

País.

Noutras palavras, o que a nós parece, é que a fidelização do

regime de FGTS pela Constituição Federal de 1988 foi um avanço, contudo,

por inúmeras razões, não tão bem compreendido à época.

“IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado,

capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com

moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte

e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder

aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”;

Conta Amauri 160 , em síntese, que três modificações foram

introduzidas pelo texto, por primeiro, a atribuição de competência ao

Congresso Nacional para fixar o salário mínimo por lei; por segundo, o

acréscimo constitucional para que o salário mínimo comtemple no âmbito

familiar161 à educação, à saúde, o lazer e à previdência social como garantias

asseguradas com o recebimento desse salário; por terceiro, insere a

necessidade de reajustes periódicos, mesmo sem determinar o tempo para

tanto.

160 MASCARO, Nascimento Amauri. Direito do Trabalho na Constituição de 1988, cit., p. 133 e 117.

161 As Constituições de 1934,1937 tratavam o salário mínimo como garantia mínima individual, o que foi alterado pelo texto da CF de 1946 para revelar o atendimento no âmbito familiar.

133

“V - piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do

trabalho”;

O Texto constitucional evoluiu ainda, não só para fixar um

salário mínimo, bem como para abrir um espaço para a fixação de pisos

através de regras inerentes á complexidade do trabalho, evoluindo nos dias

atuais para a fixação de salários mínimos para determinadas profissões,

desde que superiores ao mínimo, visando à melhoria da condição social dos

empregados.

Não obstante seja reservado à União legislar sobre matéria

trabalhista (artigo 22 do Texto Constitucional), por delegação (parágrafo

único do mesmo artigo 22), editada por lei complementar, é permitido ao

Estado atuar nessa seara162.

“VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção

ou acordo coletivo”;

Até o texto de 1988, nenhuma Constituição Nacional havia

tratado do tema “irredutibilidade 163 ”. Essa uma importante e relevante

inovação.

Aqui, identificamos uma garantia dúplice, tendo em vista que a

regra é dirigida ao Estado e ao empregador.

Ao Estado, no sentido de que os programas de reajustes não

devem violar o poder de compra e das garantias mínimas asseguradas e de

outro lado, ao empregador, impedindo Constitucionalmente a redução do

salário nominal, no intuito de garantir ao trabalhador o instituto da

162 Apenas como exemplo ver lei complementar 103/2000, como preleciona Amauri Mascaro Nascimento. Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Salário, Conceito e Proteção. Sao Paulo LTr. 2008. São Paulo, p. 175.

163 Consultar artigo 468 da CLT sobre alterações no contrato de trabalho.

134

previsibilidade, ou seja, o trabalhador tem o direito de realizar sua

programação com base no salário que recebe.

Contudo, a regra constitucional abriu uma importante exceção,

ao relatar que “salvo o disposto em acordo ou convenção coletiva”.

Seria então permitida a redução pela redução desde que

elaborada por entidades sindicais?

Evidente que a resposta prima facie é negativa. O texto

estampa a possibilidade da redução em momento de desestruturação

econômica ou social em que um bem maior que o salário esteja em perigo, a

exemplo o próprio emprego. Aqui há evidente espaço para a aplicação do

princípio da proporcionalidade em determinadas situações.

Essa conclusão é retira do “caput” do texto constitucional,

relembrando seus termos que garante o disposto nos incisos “além de outros

que visem à melhoria de sua condição social”.

Noutras palavras reduzir por reduzir não alcança essa

finalidade, o que nos leva a crer que a então Constituição Federal dever ser

lida como avanço e não como retrocesso social.

Uma redução salarial só pode ser reconhecida quando apontar

o mal maior que seria causado em caso da ausência daquela negociação

entre os atores sindicais.

Por fim, importante ressaltar, que o texto depositou importante

confiança nos representantes da categoria, ressalvando que apenas as

negociações por eles realizadas podem acarretar a redução, inovação que

aponta para o destaque da autocomposição.

“VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que

percebem remuneração variável”;

135

Não escapou ainda ao texto maior, eventual violação que

poderia ser propagada aqueles salários pagos de forma variável, comum aos

vendedores, retirando do texto anterior a expressão “fixo”.

Isso porque, ao dizer que o salário mínimo dará a família o

conteúdo mínimo de sobrevivência, não poderia em contradição, revelar que

o mínimo seria garantido apenas se alcançada uma variação salarial imposta

pelo empregador.

De certo modo, reafirma o inciso VII a proteção às garantias

mínimas oriundas da parcela salarial.

Portanto perfeitamente possível na vigência do texto de 1988 a

fixação de salário variável puro164, desde que ao final do mês, receba o

salário mínimo.

“VIII - décimo terceiro salário com base na remuneração integral

ou no valor da aposentadoria”.

Mesmo a regra do 13º salário datar de 1962165, não havia nos

anteriores textos constitucionais referida garantia, que elevou seu pagamento

a garantia constitucional.

“IX - remuneração do trabalho noturno superior à do diurno”;

Os textos das constituições de 1937,1946 e 1967 já haviam

tratado do tema, não havendo grande inovação.

“X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua

retenção dolosa”;

164 Exemplo do vendedor comissionista puro.

165 Lei 4090 de 13 de julho de 1962 que estipula a gratificação natalina alterada pela 4.749 de 12 de agosto de 1965, bem como do empregado rural nas leis 5.589/73.

136

Tentando atenuar regimes de trabalho culturalmente inseridos

no Brasil, sobretudo no campo, em que comumente havia retenção de

valores salariais, condicionando seu pagamento a determinadas situações,

não passou distante do texto constitucional, não obstante indique a

necessidade de lei para tanto, a proibição da retenção salarial, o que é

medida de extrema importância principalmente num país de dimensões

continentais como o nosso.

“XI - participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da

remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa,

conforme definido em lei”;

Mesmo com a previsão já destacada no cerne das constituições

de 1946 e 1967, essa última tratando inclusive da participação na própria

gestão, contudo sem qualquer resultado prático, a inovação do texto de 1988

foi a desvinculação do recebimento de alguma parcela sob referida rubrica

desvinculado da remuneração166.

Essa importante referência constitucional fez com que houvesse

maior atratividade do empresariado em criar mecanismos de participação,

sem que tal parcela acabasse por integrar o contrato de trabalho para efeito

de reflexos em inúmeras verbas167.

“XII - salário-família pago em razão do dependente do

trabalhador de baixa renda nos termos da lei168”;

Criado pelo Texto de 1967, mantido pela Emenda de 1969, foi

novamente estampado na Carta de 1988, deixando para o legislador

166 MASCARO, Nascimento Amauri. Direito do Trabalho na Constituição de 1988, cit., p. 147.

167 Ver lei 10.101/2000 que regulamentou a participação dos trabalhadores nos lucros e resultados da empresa.

168 Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998.

137

infraconstitucional a fixação dos limites. Sem relevante inovação sob o ângulo

constitucional.

“XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas

diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e

a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de

trabalho169”.

Embora não de forma explícita como assevera Orlando Gomes

e Elson Gottschalk170 desde 1932 já se fixava limite da duração do trabalho 8

(oito) horas diárias e 48 (quarenta e oito) semanais.

Contudo, o texto da Carta de 1988, reduziu referida fixação de

48 (quarenta e oito) horas semanais para 44 (quarenta e quatro) horas

semanais, trazendo evidente avanço na proteção do trabalhador, com

permissão de redução e compensação de horários desempenhados através

da atuação dos sindicatos, tendo em vista o constante nascimento de

inúmeras atividades em socorro do clamor da modernidade, bem como em

razão dos desdobramentos das especificações de cada atividade

desempenhada171.

Importante dizer, que o texto constitucional criou no nível de

garantia fundamental dois módulos limitadores para o excesso de duração do

trabalho, um diário e outro semanal, ou seja, ultrapassado qualquer dos

módulos, estará o empregador em pleno descumprimento a previsão

constitucional.

169 Vide Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.

170 GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 19 ed., Rio de Janeiro, 2012, p. 287.

171 Veremos adiante em tópico oportuno a intensa discussão da época quanto à interpretação de referido artigo, pois doutrinadores sustentavam a possibilidade de tal acordo ser realizado entre trabalhadores e empregadores de forma direta, enquanto outros creditavam a postura constitucional direcionada apenas aos atores representativos da categoria.

138

“XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos

ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”;

Além proteger diretamente em linhas gerais o trabalhador

quanto à duração do trabalho, a Constituição de 1988 foi adiante,

reconhecendo o desgaste físico ocasionado pelo labor realizado em turnos

chamados de ininterruptos.

Aqui se está a proteger com fixação de jornada limitada a seis

horas, aqueles empregados que atuam em escalas de revezamento de

horários. Exemplo: uma indústria que funcione 24 horas diárias, com

empregados que revezem na escala, ora trabalhando das 6 às 12, ora das 12

às 18, ora das 18 às 24, ora das 24 às 6.

Esses empregados, de acordo com o texto, não poderão

laborar mais de 6 (seis) horas diárias, devido ao excessivo desgaste causado

ao organismo em razão da constante alteração do horário de sua jornada de

trabalho.

Avanço digno de nota no campo da proteção aos direitos

sociais.

“XV - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos

domingos”;

Mesmo existindo já desde a Constituição de 1934, e vinculado

pela lei 605/49, são dois os princípios assegurados pelo Texto de 1988, nas

palavras de Amauri172 :”1º) O repouso semanal será remunerado, o que

significa que o trabalhador terá o direito ao descanso da semana sem

prejuízo do salário(...) 2º) O descanso semanal será preferentemente no

domingo, não o sendo recairá sobre outro dia da semana, a critério do

empregador”.

172 MASCARO, Nascimento Amauri. Direito do Trabalho na Constituição de 1988, cit., p. 180/181.

139

Hoje, com a velocidade e a gestão do trabalho a distância, pelos

avançados meios de comunicação e com a globalização do mercado de

trabalho, esse avanço constitucional se torna cada vez mais palpável.

Empregados hoje atuam como se fossem “ligados a uma

tomada”, e a necessidade do descanso cada vez mais tem ocupado lugar

especial na doutrina. Nos dias atuais, desligar o computador não significa

muitas vezes descansar, pois temos o blackberry, o i-phone o i-pad e tantos

outros meios que acabam mantendo o empregado em atenção constante.

O descanso aos domingos inclusive mereceu especial atenção

no trabalho desenvolvido pelo Professor Leonel Maschietto em sua tese de

doutoramento junto a PUC de São Paulo que teve como tema “O Trabalho

aos domingos como elemento de dissolução da entidade familiar e restrição

ao direito ao lazer”.

“XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no

mínimo, em cinquenta por cento à do normal173”.

Referida previsão no nível constitucional extirpou do mundo

jurídico a previsão do artigo 59 da CLT que fixava adicional até então inferior,

criando digamos “um não incentivo” a realização de trabalhos extraordinários

por parte do empregador, sem que a remuneração desse trabalho de certa

forma recompensasse o maior desgaste do empregado.

“XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um

terço a mais do que o salário normal174”;

Inserido no texto a periodicidade das férias em pelo menos um

ano com o respectivo direito ao descanso, bem lhe garante o abono de 1/3

sobre o valor.

173Vide Decreto lei 5.452 de 1943, art. 59 § 1º.

174 Voltaremos ao tema para tratar especificamente da Convenção 132 da OIT.

140

“XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do

salário, com a duração de cento e vinte dias”;

Aqui houve evidente avanço, pois as constituições anteriores

não fixavam tempo, apenas utilizando até então expressões como “antes e

depois do parto”, contudo, o artigo 392 da CLT proibia o trabalho em quatro

semanas anteriores ao parto e em oito semanas após o parto, tendo o texto

constitucional se apresentado como fator tempo a garantia de 120 dias175.

XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei;

Deixou claro à Constituição a importância do direito a licença,

contudo preferiu deixar os limites serem fixados por lei infraconstitucional.

“XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante

incentivos específicos, nos termos da lei”;

Em continuidade ao cerne de tratamento isonômico, deixou o

texto de forma clara sua intenção de proteger a mulher, permitindo a livre

concorrência entre homens e mulheres.

Atentemos para a expressão “incentivos específicos”, que de

certa forma está a conduzir o legislador a atuar dentro de sua teia de

normatividade de modo a incentivar a aglutinação da mulher ao mercado,

sem esquecer a proteção que é merecedora em razão de condições

especiais.

Assegure-se que essas condições especiais não se vinculam

em nenhuma hipótese a capacidade da mulher, que tem demonstrado, no dia

a dia que sua força e capacidade é no mínimo igual a do homem, se

considerado o gênero, mas sim, a merecida proteção com relação a

maternidade em seus amplos aspectos entre outros, sem que se crie

175 MASCARO, Nascimento Amauri. Direito do Trabalho na Constituição de 1988, cit., p. 185.

141

qualquer embaraço em razão dessa proteção a sua constante inserção no

mercado de trabalho.

“XXI - aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no

mínimo de trinta dias, nos termos da lei”;

Adotado pelo texto constitucional, como já dito, a não

preservação da estabilidade, tendo em vista a fixação do regime de FGTS

como obrigatório, criou como segurança, e nesse nível, voltando-se

especificamente ao direito do dos trabalhadores, regra imediata quanto ao

limite mínimo de 30 (trinta) dias e pró-futuro de proporcionalidade do aviso

prévio.

Importante nesse momento compreender isso, em especial em

razão do Mandado de Injunção julgado pelo Supremo Tribunal Federal sobre

o tema e a edição da recente lei 12.506/2011 que está a tratar do tema após

23 anos de silêncio das casas legislativas do nosso país.

“XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de

normas de saúde, higiene e segurança”;

Firmou ainda o texto em testilha como garantia, tendo em vista

a experiência adquirida desde a revolução industrial, com vertiginosos

excessos de trabalho com consequências realmente devastadoras quanto à

saúde e a própria vida dos trabalhadores, uma harmonização entre normas

de saúde, higiene e segurança, que desde 1978 (Nrs – Portaria 3.214 de

1978) avançam no sentido de concretizar o comando constitucional.

“XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas,

insalubres ou perigosas, na forma da lei”;

Aqui houve a elevação ao contexto constitucional o trabalho em

referidas condições, para insalubridade 176 e periculosidade 177 que já

176 Artigo 189 da CLT.

142

possuíam previsão à época na lei infraconstitucional, criando a figura do

adicional de penosidade, que até a presente data é um “vácuo jurídico”, pois

não encontrou norma infraconstitucional que o instrua e denomine. Há hoje

um projeto de lei de 2002 sobre o tema, que ainda não foi aprovado178.

“XXIV – (omissis)”;

“XXV – (omissis)”;

“XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de

trabalho”;

A expressão reconhecer tem significado especial nesse caso,

pois identifica de forma constitucional a legitimidade plena dos pactos

celebrados pelos atores sociais sindicais em nome de suas categorias.

Noutras palavras, reconhece a constituição e empresta força de

fonte do direito para o sistema dos textos produzidos pela via dos

instrumentos coletivos.

Evidente que não há direito absoluto, e como já destacado no

presente trabalho, há uma dependência direta do caso concreto na avaliação

de direitos fundamentais .

“XXVII - proteção em face da automação179, na forma da lei”;

Com uma visão extremamente avançada aos fatos culturais e

sociais ocorridos no mundo, o texto não ignorou a imensa probabilidade dos

avanços tecnológicos tornarem dispensável a atuação do ser humano nos

inúmeros campos de trabalho.

177 Artigo 193 da CLT.

178 Consultar projeto de lei 7.097/02.

179 Do latim “automatus” que significa mover-se por si”.

143

Referido inciso, evidentemente tem também como receptor da

norma o Estado, que através de ações afirmativas, em decorrência do

princípio da solidariedade dos entes públicos e privados, criar políticas de

proteção a eventual empobrecimento das possibilidades de emprego em

razão da automação.

A diminuição dos postos de trabalho, em razão da troca do

homem pela máquina é observado com absoluta tranquilidade nos dias

atuais, e, apenas para exemplificar, não são poucos os ônibus que já estão a

operar sem a função do cobrador, o sistema bancário se vale da internet e de

seus caixas eletrônicos para a realização de transações financeiras, deixando

os operadores desses sistemas, que neles atuavam por muitos anos, em

vertiginosa decadência profissional.

“XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do

empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando

incorrer em dolo ou culpa”;

Aqui, houve evidente avanço quanto à reponsabilidade do

empregador dita horizontal em relação a acidentes.

Isso porque, independente da atuação do Órgão da Previdência

Social, que suporta necessidades dos empregados em caso de infortúnios, já

com contribuição do empregador, esse se viu agora, sujeito de dever em

relação a eventual ocorrência de acidente, não só mais na espécie culpa

grave e dolo, mas sim, inclusive, na hipótese de simples culpa.

Some-se a isso que o Código Civil editado em 2002, aplicável à

referida relação de forma subsidiária, ampliou a responsabilização do

empregador, permitindo inclusive sua responsabilidade objetiva, ou seja,

aquela que mesmo que não tenha contribuído em razão de negligência,

imprudência ou imperícia, desde que a atividade por si desenvolvida,

apresente risco ao trabalhador, deverá responder.

144

Convém destacar o texto do artigo 927 e parágrafo do Código

Civil vigente.

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar

dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano,

independentemente de culpa, nos casos especificados em lei,

ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor

do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de

outrem”.

Algumas discussões nasceram em razão de referida

possibilidade, principalmente pelo fato do texto constitucional não possuir a

previsibilidade da responsabilidade sem culpa, dita teoria do risco,

subdividida na doutrina como risco proveito, com fundamento na expressão

“Ubi emolumentum, ibi et onus esse debet”, vinculando aquele se se vale de

uma atividade danosa colhendo o bônus, deve suportar o ônus; risco criado,

que decorre da criação do risco pela atividade; risco excepcional, pelo

desempenho de uma atividade imposta e incomum a função da vítima ; e

risco profissional, que decore da própria atividade desenvolvida.

Como já salientado, somo favoráveis à aplicação da

responsabilidade dita objetiva, observado caso a caso, tendo em vista que o

texto Constitucional não é limitador de direitos, pela simples observância do

artigo 7º caput.

“XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de

trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores

urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de

trabalho180”;

180 Redação dada pela Emenda Constitucional nº 28, de 25/05/2000.

145

Inserido no texto a garantia da busca de direitos, contudo,

resguardando pelo fator lapso temporal, referida pretensão, garantindo que a

Justiça do Trabalho mantém suas portas abertas para apreciação de

questões oriundas da relação de emprego pelo prazo de 2 (dois) anos do

final do contrato, limitando contudo, a discussão aos últimos 5 (cinco) anos

contados da data da propositura da ação.

Exemplificando, um empregado que labora por cinco anos e

espera até um dia antes da prescrição de 2 (dois) anos após sua saída para

ingressar com a ação, não reclamará os últimos cinco anos, mas sim apenas

praticamente 3 (três) anos, pois os últimos 5 (cinco) anos são considerados

da data da distribuição da ação.

Importante destacar, que ações meramente declaratórias, como

declaração simplesmente da relação de emprego não sofrem a incidência da

prescrição nos termos do artigo 4º do Código de Processo Civil.

De outro lado, não obstante Sumulado pelo Excelso TST que

eventuais créditos inerentes ao FGTS se submetam a prescrição trintenária,

o STF, em 2012, reconheceu em sede de recurso extraordinário a

repercussão geral do tema, pois parte da doutrina tem entendido que por se

tratar de direito trabalhista, deveria ser submetido à regra de prescrição

quinquenal do artigo ora apreciado e não nos termos da lei 8.036/90, artigo

23, parágrafo 5º.

“XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de

funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado

civil”;

Regra claramente protetiva de isonomia de tratamento se opera

no inciso XXX do texto constitucional, inviabilizando seja no momento da

admissão, seja no exercício das funções, diferença de tratamento aos

empregados em razão de sexo, idade, cor e estado civil.

146

Referido inciso, impede diagnósticos pelas empresas do

instituto odioso denominado preconceito, procurando garantir a qualquer

gênero de ser humano, qualquer violação em razão da pouca idade ou

avançada idade, de sua situação civil (aqui muita importância para as

mulheres, que como deve ser, não podem ser estigmatizadas em razão de

serem casadas e em idade fértil), pois eventual gravidez, garantia provisória

no emprego, além da proteção a imensa diversidade existente no Brasil de

raças, permitindo que todos aos olhos do texto constitucional, tenham o

direitos de perceber o mesmo salário para o qual foram contratados.

“XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário

e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”;

Tema relevante diz respeito aquele ser humano que possui

necessidades especiais, que também não escapou a proteção constitucional,

com intenso trabalho nos dias atuais do Ministério Público do Trabalho, digno

de nota, bem como da própria legislação infraconstitucional, que criou

obrigatoriedade de cotas para inserir referidos trabalhadores no mercado de

trabalho.

Evidente que não há sentido para que qualquer tratamento

diferenciado seja recebido por referidas pessoas quanto a salário. Dificuldade

que existe, nos dias atuais, em razão da ausência de politicas públicas claras

sobre a inserção, seja no campo do transporte, seja no campo da própria

habilitação para determinadas funções, é encontrar empregados nessas

condições devidamente habilitados, função que nos termos da lei, pertence

ao Estado.

“XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e

intelectual ou entre os profissionais respectivos”;

Aos olhos da Constituição Federal, todo trabalho tem igual valor

no significado de “nível de importância”, não no sentido de ser remunerado

147

de forma idêntica, pois dependendo do cargo e função desenvolvida, um

salário será fixado.

Além de valorizar toda e qualquer forma de trabalho, o texto

implementa mais uma vez a isonomia, destacando que mesmo entre os

profissionais respectivos, deve ser reconhecida a isonomia.

“XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a

menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos,

salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos181”;

Regra claramente protetiva se observa no inciso XXXIII ao

menor que está em desenvolvimento intelectual e físico.

Apesar do texto se apresentar como uma Emenda de 1998,

inegável que nos dias atuais essa proteção é de vital importância, pois traz a

lume a garantia de que em referido momento da vida, se permita ao jovem

maior proteção aos riscos do trabalho em ambiente não sadio, seja pelo

contato com agentes biológicos ou de perigo iminente, seja pela própria

impossibilidade de um sono reparador no momento de desenvolvimento de

sua estrutura psíquica e corporal.

“XXXIV - igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo

empregatício permanente e o trabalhador avulso”.

Apenas para destacar, em regra a atuação do trabalho avulso

se dá em zonas portuárias, com forte atuação sindical e do Órgão Gestor de

Mão de obra, que pela força de atuação, tendo a Constituição Federal

implementado idênticas condições de direitos.

181 Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998.

148

“Parágrafo único. São assegurados à categoria dos

trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV,

XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua integração à previdência

social”182.

Especial atenção, merece o parágrafo único do Texto

Constitucional, que estendeu ao doméstico 9 (nove) direitos garantidos aos

empregados urbanos.

Tratou-se de considerável avanço, pois as constituições

anteriores silenciavam sobre o tema, a CLT afastava a aplicação das regras

dos urbanos aos domésticos, havendo apenas à época a precisão da lei

5.589 de 1972, que pouco ou nada diz de extrema relevância, salvo

conceituar no campo jurídico quem é o empregado que deva ser considerado

doméstico.

Há hoje movimentação mundial, especialmente da Organização

Internacional do Trabalho que busca equiparar o doméstico ao mais próximo

possível do trabalhador urbano, como já foi feito pelo direito espanhol183,

havendo recente edição de Emenda Constitucional 72/2013 promulgada em 3

de abril do mesmo ano, que garantiu aos empregados domésticos idêntico

tratamento ao empregado dito comum.

Não obstante muitos direitos ali elencados dependam de

regulamentação, trata-se de importante avanço, evitando a segregação de

referidos empregados de direitos e garantias que já deveriam ter sido

reconhecidas a longas décadas.

182 Importante destacar para o leitor que há Projeto de Emenda Constitucional (478/2010) que visa igualar todos os direitos do empregado doméstico aqueles já conquistados pelo trabalhador urbano. Em janeiro de 2012, através do Real Decreto 1620 de 2011, a Espanha já reconheceu inúmeros direitos dos empregados domésticos daquele País. A luta pela igualdade de direitos tem sido discutida e debatida incessantemente junto a Organização Internacional do Trabalho, que por meio da Recomendação 201 e a Convenção 189 luta pelo trabalho decente no mundo.

183 Real Decreto 1.620 de 2011.

149

3.3 Apenas um Destaque do Avanço Do Estado de Direito Liberal ao

Estado Social dos Direitos Fundamentais

Os avanços acima demonstrados estão a nos revelar que

partimos de um Estado interventor, autoritário, individualista, para um Estado

que visa reconhecer direitos e garantias fundamentais para todos e em todos.

A clara evolução do Estado aqui relatada pode ser observada

em contexto absolutamente ímpar no mundo, na obra do Ilustre Professor

Paulo Bonavides 184 escrito como tese para defesa da Cátreda junto a

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, ainda na década de

1950, mas de inigualável atualidade.

Aponta o professor a histórica evolução constitucional através

dos tempos com revoluções primeiro na busca da liberdade e da igualdade,

até os dias atuais, em que se busca a fraternidade e de outras gerações de

direitos, o que diz ser objeto da busca do “Homem concreto185”.

Revela que perpassando pela institucionalização do poder,

encontramos o Estado liberal, Estado Socialista, o Estado Social (das

Constituições meramente programáticas) se chega ao Estado Social dos

Direitos fundamentais, que diz ser esse último por inteiro capacitado da

juridicidade e da concreção dos preceitos e regras que garantem esses

direitos.

Destaca o avanço através dos tempos da substituição do

homem-súdito pelo homem-cidadão, já ocorrida desde a declaração dos

direitos do homem, pelos franceses, relatando que sempre viveremos da

observação da revolução francesa.

184 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal Ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 9ª Edição. 2009.

185 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal Ao Estado Social, p. 31.

150

Salienta que a qualificação do povo titular de nova legitimidade,

“não somente encarna a vontade dos governados, senão a transmuta em

vontade governante”.

Essa razão histórica de avanço da própria forma política e

ideologia da sociedade converge ao que parece, com a existência de uma

estruturação de Poder – enquanto escolha social - que não permite se olhar

de forma diferente para cada cidadão, não se permite negar vigência das

garantias constitucionais a cada cidadão, não se permite negar resposta a

cada cidadão, pois passaram esses por escolha política e social de

governados a governantes. Esse é o Estado Social dos Direitos

Fundamentais.

Nesse sentido de avaliação que encontra especial localização a

ideia de aplicabilidade plena do princípio da proporcionalidade, afastando a

(im)pura ideia de que o positivismo tudo soluciona, afastando a antiquada

ideia de que o todo não se divide em partes e que às partes não compõem o

todo.

A robótica não é capaz de jurisdicionar no Estado Democrático

de Direitos Fundamentais na existência de conflitos entre garantias e direitos

fundamentais. A Concretude desses direitos somente se dá pelo homem para

o homem independente de quem seja o homem.

4. Hipóteses de Atratividade do Princípio da Proporcionalidade no

Direito do Trabalho

O cerne do presente trabalho é de alguma forma colaborar para

o raciocínio a aplicabilidade concreta do princípio da proporcionalidade

inserido no contexto das relações sociais, em especial as relações que

vinculam empregados e empregadores.

151

Inviável abordar todas as hipóteses possíveis, tendo em vista

que o próprio princípio por abandonar a antiquada receita da subsunção, já

nasce com o famoso adágio popular como “divisor de águas” de um único

vetor próprio da norma com seu consequente exato.

Isso em razão da veemente negação da existência de direitos

absolutos na colisão de garantias e direitos fundamentais em casos

concretos, contudo, procuramos avaliar algumas situações mais comuns,

principalmente dos dias atuais, que em grande parte envolvem direitos

chamados inespecíficos, pois assim o são em relação ao trato do cotidiano

observado entre empregados e empregadores.

4.1 A revista íntima

A revista íntima dos empregados pelos prepostos dos

empregadores tem levado um número sem fim de processos ao Tribunal

Superior do Trabalho, para que este venha dirimir a seguinte controvérsia:

Está havendo violação de um direito ou exercício desmesurado de outro?

Como sabemos, fora consagrada a dignidade da pessoa

humana186 como princípio fundamental em nosso ordenamento após a efetiva

promulgação de nossa Constituição Federal de 1988 (artigo 1º, III), donde

ainda podemos observar a bem-vinda 187 positivação dos direitos de

186 Jorge Miranda salienta que a “dignidade da pessoa humana é da pessoa em qualquer dos gêneros, masculino e feminino. Em cada homem e em cada mulher estão presentes todas as faculdades da humanidade” e que “cada pessoa tem, contudo, de ser compreendida em relação com as demais. A dignidade de cada pessoa pressupõe a de todos os outros”. MIRANDA, Jorge. Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril: Princípia Editora, 2006, pág. 474.

187 Para Flávia Piovesan a “Carta de 1988, como marco jurídico de transição ao regime democrático, alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, colocando-se entre as Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à matéria”. PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, pág. 25.

152

personalidade da pessoa, efetivamente no seu artigo 5º188 (caput e incisos V

e X). A Revista íntima violaria, então, em tese, prima facie, este direito.

Também fora consagrado no texto constitucional o direito de

propriedade (artigo 5º, XXII), sendo este o fundamento legal encontrado pelo

empregador para o exercício do seu poder de direção. Porém este exercício

estaria sendo praticado abusivamente.

Este quadro nos leva a necessidade de analisar os dois

institutos constitucionalmente tutelados, e não os resolver como uma

antinomia189 propriamente dita, como alguns pensam, pois estamos perante

uma colisão de garantias e valores constitucionais, que apenas a

proporcionalidade será capaz de resolver, por se tratarem de direitos e

garantias suportadas pela carta de 1988.

Como bem disse João Leal Amado 190 “estamos, afinal, no

coração do conflito entre as exigências gestionárias, organizativas e

disciplinares do empregador, por um lado, e os direitos do trabalhador, por

outro”.

188 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

189 Trata-se aqui de uma antinomia aparente, já que os critérios para solucioná-la são normas integrantes do ordenamento jurídico e o intérprete ou o aplicador do direito pode conservar as duas normas incompatíveis, optando por uma delas, conforme definição da professora Maria Helena Diniz, cf. DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008, pág. 25.

190 AMADO, Joao Leal. Contrato de Trabalho. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 218.

153

E continua o jurista português:

Não propriamente os seus direitos enquanto trabalhador

(direito à greve, liberdade sindical, direito a descanso semanal

e a férias, direito ao salário, segurança no emprego, etc), mas

os seus direitos inespecíficos, isto é, os seus direitos não

especificamente laborais, os seus direitos enquanto pessoa e

enquanto cidadão (direitos de 2ª geração, hoc sensu).

É certo que o empregador detém o poder de direção e deve

exercê-los conjuntamente com os demais atos de gestão de seu negócio.

Também é certo que dentre os direitos fundamentais do

empregado temos o direito à privacidade e a própria intimidade, ambos

direitos consagrados no já citado artigo 5º, X, da Constituição Federal.

Ora, detendo o empregador o poder de direção cabe ao mesmo

tornar eficaz toda e qualquer medida para que o risco de sua atividade seja

efetivamente atenuado, sendo certo, porém, que este poder não se mostra

absoluto, ou seja, há limitações.

Temos observado que várias empresas, sob a justificativa do

aumento da produção, segurança do negócio, controle de estoque,

fiscalização e comando dos empregados, o monitoramento dos passos e

atividades dos seus empregados, importando o fenômeno da revista íntima

pessoal uma destas modalidades efetivamente adotadas para viabilização

desse monitoramento.

Não sem razão, já que em alguns seguimentos a empresa tem

o dever de fiscalização não só para com ela mesma e seus acionistas, mas

também para com o Estado e com toda a sociedade. Trata-se de um dever

muitas vezes até de cunho social.

154

Imaginemos o caso de uma empresa que fabrica armas.

Evidente que além de proteger a sua propriedade, referido empregador,

diminui o risco de desvios de armas que podem municiar traficantes e outros

segmentos espúrios, garantindo, ainda que de forma indireta, a segurança

nacional, em respeito ao princípio da solidariedade constitucional, em que a

sociedade como um todo, unida ao Estado, deve buscar o bem estar da

população.

Outro exemplo ainda pode ser dado.

Alguns seguimentos do ramo farmacêutico têm dentre seus

produtos industriais, determinadas drogas que, se o desvio não for

eficazmente coibido, poderão ser objeto efetivo de comércio ilegal. Assim, a

utilização de meios rigorosos para fiscalização com o objetivo de impedir a

saída ilícita do medicamento da empresa é de certa forma uma obrigação. A

empresa estaria obrigada a impedir (ou ao menos contribuir) para que não

sejam estes medicamentos instrumentos de tráfico ilegal, já que a

comercialização indiscriminada no mercado negro afeta significantemente a

saúde pública.

Esta seria uma hipótese cabível da manutenção da revista

íntima na empresa, que seria implantada em razão da empresa, por exemplo,

manipular medicamentos psicotrópicos, chamados controlados, submetendo-

se a fiscalizações severas de vários órgãos sanitários e até mesmo policiais.

Recentemente observamos o caso do furto das provas do

ENEM por três empregados da gráfica responsável pela impressão dos

exames. Para evitar este tipo de ação e para cumprir condições contratuais

de sigilo, poderia o empregador, caso assim entendesse, proceder a revista

dos empregados envolvidos no processo de impressão e transporte das

referidas provas, até que as provas saíssem de sua guarda e

responsabilidade.

155

Importante salientar que estas medidas em nada se

caracterizam como sendo discriminatórias. Seriam sim, absolutamente

necessárias, dentro do padrão da proporcionalidade, desde que na sua

concretude não esvaziassem outro direito fundamental garantido

constitucionalmente.

Nesse sentido leciona Guilherme Machado Dray191.

Não constituirão, pois, práticas discriminatórias, todas

aquelas que se baseiem em convicções enraizadas na

sociedade quanto ao reconhecimento da adequação social e

‘económica’ de certos motivos de diferenciação, na medida,

obviamente, em que tais convicções se revelem objectivamente

adequadas ao tipo de actividade laboral que se visa

desenvolver e desde que não se afigurem contrárias, como tal,

à dignidade humana.

Neste contexto, podemos verificar que a revista íntima, por si

só, não é reprovada pelos nossos Tribunais do Trabalho prima facie.

Pelo contrário, o próprio TST-Tribunal Superior do Trabalho tem

admitido reiteradamente a possibilidade da revista íntima do empregado:

“RECURSO DE REVISTA. REVISTA NOS PERTENCES DO EMPREGADO (BOLSAS E SACOLAS). INEXISTÊNCIA DE DIREITO A DANO MORAL. A mera revista visual e geral nos pertences do empregado, como bolsas e sacolas, não configura, por si só, ofensa à intimidade da pessoa, constituindo, na realidade, exercício regular do direito do empregador, inerente ao seu poder de direção e fiscalização. Recurso de revista conhecido e provido”. (Processo: RR - 2121700-69.2005.5.09.0029. Data de Julgamento: 07/04/2010, Relatora

191 DRAY, Guilherme Machado. O Princípio da Igualdade no Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 1999, pág. 277.

156

Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 09/04/2010)

“RECURSO DE REVISTA - DANO MORAL - REVISTA VISUAL DE BOLSAS E SACOLAS. A inspeção visual de bolsas, pastas e sacolas dos empregados, sem contato corporal ou necessidade de despimento, e ausente qualquer evidência de que o ato possua natureza discriminatória, não é suficiente para, por si só, ensejar reparação por dano moral. Precedentes. Recurso de Revista conhecido e provido”. (Processo: RR - 1587500-13.2006.5.09.0012. Data de Julgamento: 17/03/2010, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 19/03/2010)

É que, conforme já salientado, isoladamente consideradas, as

revistas, por si só, não têm o caráter de implicar em reconhecimento imediato

de dano ou interferência na intimidade do empregado, conforme o já citado

entendimento pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Pois bem, feitas estas considerações a respeito da possibilidade

da revista íntima pelo empregador, passamos agora a analisar os elementos

no caso concreto do vencimento desse princípio em razão do outro, sem que

o direito da intimidade seja esvaziado completamente.

O tão salientado poder diretivo que o empregador é possuidor,

que é o poder de comando da empresa e que lhe permite determinar o modo

como a atividade do empregado deve ser realizada, em decorrência do

contrato de trabalho, sofre marcantes limitações192, sendo a principal delas: o

direito fundamental de intimidade do empregado, que protege este (como

pessoa) da efetiva ingerência abusiva dos outros.

192 Podemos também citar como limitação o dever de assistência, citado por Antônio Monteiro Fernandes como sendo “a responsabilidade do empregador pelas condições de segurança e de vida que são oferecidas no âmbito da organização que criou e dirige” inclusa aí “a exigência da oferta de ‘boas condições de trabalho, tanto do ponto de vista físico como moral’”. FERNANDES, Antonio monteiro. Direito do Trabalho. 13ª edição. Coimbra: Almedina, 2006, pág. 283.

157

Para a professora Alice Monteiro de Barros193, esta ingerência

se dá através “dos sentidos dos outros, principalmente dos olhos e dos

ouvidos de terceiro” e a “tutela dirige-se contra as intromissões ilegítimas”.

É justamente a extrapolação dos limites desta ingerência

decorrente do poder de direção do empregador o freio legal e o marco

limítrofe entre o direito do empregador - poder de direção estampado

constitucionalmente como o direito de propriedade - e o direito do empregado

(direito a intimidade).

O freio legal ao poder fiscalizatório empresarial, tem origem no

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da

Constituição Federal de 1988) e na regra constitucional da inviolabilidade da

honra e intimidade das pessoas (art. 5º, X, do mesmo texto magno), e dá-se

justamente no momento em que o exercício daquele direito do empregador

colide diretamente com o do empregado, sendo o seu elemento divisor: o

abuso do exercício.

Mauro Schiavi 194 leciona que “o poder de fiscalização do

empregador quando exercido com abuso, pode violar a intimidade dos

empregados e causar-lhes prejuízo de ordem moral”.

Guilherme Machado Dray195 por seu turno nos relata que “o

direito do trabalho, desde a célebre ‘Questão Social’, sempre avançou

gradualmente no sentido da limitação das arbitrariedades e do poder de

‘direcção’ do empregador”, seja limitando a jornada, proibindo o trabalho

193 BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 5ª edição. São Paulo: LTr, 2009, pág. 642.

194 SCHIAVI, Mauro. Ações de Reparação por Danos Morais Decorrentes da Relação de Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2009, pág. 133.

195 DRAY, Guilherme Machado. Código do Trabalho Anotado. 5ª edição, Coimbra: Almedina, 2007, pág. 110.

158

infantil, protegendo as trabalhadoras grávidas ou protegendo o emprego e

limitando o despedimento.

Agora, numa fase mais contemporânea, continua o jurista

português, o Direito do Trabalho passa a atender “a novos problemas, mais

sofisticados, próprios da sociedade laboral hodierna, em que o exercício dos

poderes patronais lança mão da ciência e da tecnologia para efeitos de

controlo e gestão da unidade produtiva”.

E o vem fazendo muito bem, seja na esfera legal, doutrinária e

na esfera jurisprudencial. Vamos a esfera legislativa.

4.2 Esfera legislativa

As limitações ao poder diretivo do empregador, quando abusivo,

foram definidas em nossa Constituição Federal de 1988, especificamente nos

artigos 1º, III (que encerra o princípio da dignidade da pessoa humana) e IV

(valores sociais do trabalho), no artigo 5º, X (regra constitucional da

inviolabilidade da honra e intimidade das pessoas) e nos artigos 5º, XXIII, e

173, §1º, inciso I (limitação expressa ao atendimento da função social).

A Lei n.º 9.799, de 26.5.1999, por seu turno, incluiu o artigo 373-

A na CLT, deixando expresso, em seus vários incisos, a intenção legislativa

em limitar o poder diretivo do empregador, quando dispôs:

“Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a

corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho

e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado:

VI - proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas

empregadas ou funcionárias”.

E, mais recentemente, o Código Civil de 2002 assim prevê:

159

“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da

personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis196, não podendo o seu

exercício sofrer limitação voluntária”.

“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a

lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e

danos197, sem prejuízo de outras sanções previstas em

lei”.

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária,

negligência ou imprudência, violar direito e causar dano

a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato

ilícito”.

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187),

causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Podemos observar assim que as normas supracitadas

apresentam um traço denominador bem comum, ou seja, visa-se garantir um

justo e efetivo equilíbrio entre a manutenção na esfera jurídica do trabalhador

dos direitos que lhe assistem enquanto cidadão e o princípio da liberdade de

gestão empresarial.

196 Segundo as lições de Fábio Konder Comparato “nenhum indivíduo tem o direito de decidir da natureza do justo e do injusto” e que “as vontades particulares são suspeitas; elas podem ser boas ou más, mas a vontade geral é sempre boa: ela nunca conduziu ao engano, ela jamais o fará” e “a vontade geral impõe, assim, a supremacia do bem público sobre o interesse privado”. KOMPARATO, Fabio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pág. 250-251.

197 Para o professor Mauro Schiavi “o dano moral pode atingir a pessoa, na sua esfera individual, mas também um grupo determinável ou até uma quantidade indeterminada de pessoas que sofrem os efeitos do dano derivado de uma mesma origem”. SCHIAVI, Mauro. Aspectos polêmicos e atuais do dano moral coletivo decorrente da relação de trabalho. São Paulo: Revista LTr, 2008, vol. 72, n.º 07, julho de 2008, pág. 82.

160

4. 3 Esfera doutrinária

Também em nossa moderna doutrina, observamos

manifestações das mais valiosas no tocante ao tema em comento.

O poder diretivo do empregador é obviamente uma realidade e

porque não dizer uma efetiva necessidade para garantia até mesmo da

manutenção do negócio empresarial, mas também encontra eco na doutrina

a defesa da necessidade de se criar e manter certas limitações a este poder

diretivo do empregador.

O professor Amauri Mascaro Nascimento 198 leciona com a

grande propriedade, que sempre lhe é peculiar, que “abre-se, no direito do

trabalho, uma esfera de proteção que não pode ser deixada unicamente à

autonomia individual nos contratos de trabalho e à economia de mercado.

Pressupõe mecanismos de atuação interferentes porque se situa em um

âmbito de ordem pública social tão significativo para as relações trabalhistas

como são os direitos fundamentais da pessoa para o direito constitucional,

como são os direitos de personalidade”.

E continua, “a fiscalização não é um poder ilimitado sob pena de

transgressão do direito à privacidade (ex. abuso nos meios de revista do

empregado na saída da fábrica)”.

Sandra Lia Simon 199 é menos comedida ao afirmar que “as

revistas íntimas pessoais não encontram fundamento no poder de direção do

empregador, por privilegiarem um único direito, o de propriedade, em

detrimento de diversos valores constitucionais, tais como a dignidade da

198 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Princípios do direito do trabalho e direitos fundamentais do trabalhador. São Paulo: Revista LTr, 2003, vol. 67, n.º 08, agosto de 2003, pág. 907.

199 SIMON. Sandra Lia. Revistas pessoais: direito do empregador ou desrespeito aos direitos humanos fundamentais do empregado? Brasília: Revista do TST, vol. 69, n.º 02, jul/dez de 2003, pág. 71.

161

pessoa humana do trabalhador, seus direitos de personalidade, o princípio da

presunção de inocência, as garantias dos acusados, o monopólio estatal da

segurança”.

Na mesma linha José João Abrantes200, ao afirmar que “o poder

de ‘direcção’ do empregador e o correlativo dever de obediência do

trabalhador, exercendo-se em relação a uma prestação que implica

‘directamente’ a própria pessoa deste, as suas energias físicas e intelectuais,

representam um potencial perigo para o livre desenvolvimento da

personalidade e para a dignidade de quem trabalha”.

Não comungamos com a ideia de inflexibilidade, principalmente

em casos efetivamente excepcionais, como já salientamos em linhas

anteriores. Obviamente sem exageros de qualquer sorte.

Importa ressaltar que seria bem razoável (num mundo ideal) a

prevalência, nos contratos de trabalho, da predominância da boa-fé bilateral

entre as partes.

Nessa linha Alice Monteiro de Barros201 bem leciona que “é de

todos sabido que o contrato de trabalho envolve um mínimo de fidúcia entre

ambas as partes. Se ao empregador remanesce dúvida sobre a integridade

moral do candidato ao emprego deve, então, recusar a contratação. Não há

como conciliar uma confiança relativa com o contrato de trabalho variável

conforme a natureza da atividade da empresa”.

Mauro Schiavi202, assevera que “em compasso com o princípio

da função social da empresa, deve o empregador investir em tecnologias

200 Estudos sobre o Código do Trabalho. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pág. 147.

201 BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 5ª edição. São Paulo: LTr, 2009, pág. 643.

202 SCHIAVI, Mauro. Ações de Reparação por Danos Morais Decorrentes da Relação de Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2009, pág. 134.

162

para fiscalização de seu patrimônio sem precisar recorrer a revistas pessoais

que causem grande constrangimento ao empregado”.

Aqui, verificamos o meio, justificando o fim, em total sinergia

com o texto de 1988 e ao princípio da proporcionalidade.

4. 4 Esfera jurisprudencial

Como já asseveramos em linhas anteriores, a revista íntima, por

si só, não é reprovada pelos nossos Tribunais do Trabalho.

O TST-Tribunal Superior do Trabalho tem admitido a revista

íntima do empregado quando feita sem contatos físicos, de forma superficial,

meramente visual e sem discriminação203.

Todavia não tem tolerado de forma alguma as condutas

abusivas dos empregadores que extrapolam do seu poder de direção,

submetendo alguns empregados a tratamentos discriminatórios (elegendo os

revistados), humilhantes (revistas em público em roupas íntimas) e vexatórios

(atacando a imagem ou a dignidade do empregado).

As ementas abaixo colacionadas deixam patente e indiscutível

este posicionamento204:

203 Ainda neste sentido: RR-647840-84.2006.5.12.0034-Data de Julgto: 10/03/2010, Rel. Ministro: Renato de Lacerda Paiva, 2ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 30/03/2010; ROMS-43900-58.2009.5.05.0000 Data de Julgto: 09/03/2010, Rel. Ministro: Pedro Paulo Manus, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Divulgação: DEJT 19/03/2010; RR-2064000-12.2005.5.09.0652, Data de Julgto: 24/02/2010, Rel. Ministro: Antônio José de Barros Levenhagen, 4ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 05/03/2010; RR-1229000-81.2007.5.09.0015 Data de Julgto: 16/12/2009, Rel. Ministra: Rosa Maria Weber, 3ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 05/02/2010.

204 Neste mesmo sentido: RR-1196700-76.2005.5.09.0002 Data de Julgto: 03/02/2010, Rel. Ministra: Rosa Maria Weber, 3ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 19/02/2010 e RR-41185-60.2004.5.15.0058 Data de Julgto: 30/09/2009, Rel. Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 02/10/2009.

163

“RECURSO DE REVISTA. NULIDADE DO JULGADO POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Desfundamentado o recurso de revista, quando não indicado nenhum dos pressupostos de que trata o artigo 896, e alíneas, da CLT. Recurso de revista não conhecido. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. VISTORIA DIÁRIA. EMPREGADOS EM ROUPAS ÍNTIMAS. A submissão de empregados a revistas apenas em roupa íntima juntamente com outros colegas de trabalho, cujo procedimento é repetido a cada vez que tivessem que entrar ou sair da empresa, configura prática vexatória e constrangedora, que fere a dignidade dos seus empregados, direito fundamental, irrenunciável, previsto no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido no tema. (...)”. (RR - 1388200-71.2004.5.09.0002 Data de Julgamento: 14/04/2010, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 23/04/2010).

“RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. VISTORIA DIÁRIA. EMPREGADOS EM ROUPAS ÍNTIMAS OBRIGADOS A CAMINHAR EM FILA PARA SEREM VISTORIADOS. EVIDÊNCIA DE DANO MORAL. OFENSA A DIREITO FUNDAMENTAL. A v. decisão expressamente declina que a atividade da empresa reclamada demanda zelo na fiscalização do patrimônio, pois comercializa produtos farmacêuticos, cujas substâncias podem ocasionar sérias conseqüências. A proteção do patrimônio, todavia, não dá margem a ofensa a direito fundamental do empregado, pela prática reiterada de fiscalização, na entrada e na saída, com vistoria dos trabalhadores em roupas íntimas, em fila, em exposição que não pode ser recepcionada, face o direito à dignidade da pessoa humana. Evidenciado o descumprimento do termo de compromisso firmado com o Ministério Público em diversas filiais da reclamada e da comprovação de que a empresa submetia seus empregados a tais revistas, não há como afastar a existência de dano moral, restando ilesos os dispositivos invocados. Recurso de Revista não conhecido. DANO MORAL. VALOR DA INDENIZAÇÃO. A decisão recorrida encerra entendimento acerca de estar o valor da condenação apto a indenizar os danos sofridos pelo reclamante, não trazendo elementos que permitam concluir pelo acerto ou desacerto do quantum fixado pela sentença e mantido pela

164

Corte a quo. Recurso de revista não conhecido”. (RR - 182100-16.2003.5.06.0004 Data de Julgamento: 19/08/2009, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 04/09/2009)

O STF-Supremo Tribunal Federal, suscitado acerca da matéria,

manifestou-se por duas ocasiões.

Na primeira por intermédio do Agravo Regimental em Agravo de

Instrumento n.º 220.459-2 (julgamento 28.9.1999) a Ementa deu-se assim:

“EMENTA: - Agravo regimental. Revista pessoal em

indústrias de roupas íntimas. - Inexistência, no caso, de

ofensa aos incisos II, III, LVII e X do art. 5º da Constituição.

Agravo a que se nega provimento”.

O Relator Ministro Moreira Alves assim se posicionou:

“1. Inexistem, no caso, as alegadas ofensas aos incisos II, III,

LVII e X do art. 5º da Constituição, porquanto as revistas

pessoais em causa, dada a natureza dos produtos fabricados

pelas ora agravadas e feitas por amostragem, não infringem,

por si sós, os citados dispositivos constitucionais, não dando

margem a danos morais como salientou o acórdão recorrido,

examinando o caso concreto”.

Noutra oportunidade, através do exame do Recurso

Extraordinário n.º 160222-8-Rio de Janeiro (julgamento 11.4.1995-DJ 01-09-

1995-PP-27402) a Ementa deu-se assim:

“E M E N T A - I. Recurso extraordinário: legitimação da

ofendida - ainda que equivocadamente arrolada como

testemunha -, não habilitada anteriormente, o que, porem,

não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes

ao termino do prazo do Ministério Público , (STF, Sums. 210

165

e 448). II. Constrangimento ilegal: submissão das operarias

de industria de vestuário a revista intima, sob ameaça de

dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na

garantia constitucional da intimidade e acórdão absolutório

do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento

questionado a intimidade das trabalhadoras, embora

existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de

trabalho: questão que, malgrado a sua relevância

constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a

prescrição superveniente, contada desde a sentença de

primeira instância e jamais interrompida, desde então”.

(grifamos)

O Relator Ministro Sepúlveda Pertence lamentando ter que

deixar de apreciar a questão em razão da citada prescrição superveniente

assim se manifestou:

“12. Lamento que a irreversibilidade do tempo corrido

faça impossível enfrentar a relevante questão de direitos

fundamentais da pessoa humana, que o caso suscita, e

que a radical contraposição de perspectivas entre a

sentença e o recurso, de um lado, e o exarcebado

privalismo do acórdão, de outro, tornaria fascinante.

13. Não tenho alternativa: declaro extinta a punibilidade

do fato pela prescrição da pretensão punitiva”.

4.5. A fiscalização de e-mails

Todos aqueles que atuam no ramo trabalhista possuem

conhecimento do dinamismo em que está acometido o direito laboral em

razão das mudanças decorrentes das alterações dos quadros econômico e

social, motivados pela automação nas empresas, pela robotização das linhas

166

de produção e principalmente pelas novas tecnologias no campo da

informática.

Neste rol de implementos tecnológicos nos interessa

especificamente discutir aqui a questão da fiscalização do empregador sobre

suas mensagens de internet, mais especificamente os e-mails do

empregado-cidadão, sejam eles corporativos ou não.

Interessa saber se esta fiscalização sobre os e-mails fere os

direitos do empregado-cidadão 205 à privacidade e ao sigilo de

correspondência ou se esta fiscalização decorre do pleno poder diretivo do

empregador e do seu direito de propriedade, já que o e-mail disponibilizado é

corporativo e concedido para “fins de trabalho”.

E mais. Tal atitude do empregador se justificaria para garantia

de direitos futuros (neutralização de ônus) em razão da sua responsabilidade

objetiva, caso venha a ser acionado judicialmente em razão de prejuízos

causados a terceiros pelo uso indevido da ferramenta eletrônica por parte do

empregado nas dependências da empresa.

Diante deste quadro e mesmo se tratando de e.mail corporativo,

teria o empregador amparo legal para invadir certa esfera de privacidade do

empregado-cidadão e, por conseguinte, violar um direito fundamental

constitucionalmente conferido? Seriam os direitos fundamentais efetivamente

relativizados na sua aplicação na presente situação?

Podemos notar aí uma colisão entre o direito de privacidade do

empregado-cidadão e o poder potestativo do empregador (representado pelo

205 A expressão empregado cidadão revela claramente que ao ultrapassar os muros da empresa, esse empregado não perde sua condição de cidadão, ou seja, suas garantias e direitos constitucionais não se desprendem em razão da existência de um contrato de trabalho, pelo contrário, se solidificam, orientando atos e condutas tanto do empregador como do empregado.

167

direito de propriedade no texto maior), e isso é natural quando se trata da

eficácia horizontal206 dos direitos fundamentais.

Como bem disse João Leal Amado 207 “estamos, afinal, no

coração do conflito entre as exigências gestionárias, organizativas e

disciplinares do empregador, por um lado, e os direitos do trabalhador, por

outro”.

E continua o jurista português:

“Não propriamente os seus direitos enquanto trabalhador

(direito à greve, liberdade sindical, direito a descanso

semanal e a férias, direito ao salário, segurança no emprego,

etc), mas os seus direitos inespecíficos, isto é, os seus direitos

não especificamente laborais, os seus direitos enquanto

pessoa e enquanto cidadão (direitos de 2ª geração, hoc

sensu)”.

Diante desse quadro a sociedade anseia respostas a seguinte

indagação: quais valores (aqui retomada a questão da jurisprudência dos

valores) devem prevalecer ou se será mais um caso solucionável

exclusivamente pelo critério usual para estes colisão entre direitos

fundamentais?

206 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais é a incidência dos direitos fundamentais, previstos na Constituição, também às relações privadas. É a vinculação “geral” dos particulares – e não somente do Estado - aos direitos fundamentais e isso se justifica porque tais direitos, como princípios e valores que obviamente são, não podem deixar de serem aplicados em toda a ordem jurídica e, por conseguinte, também nas áreas do direito privado (princípio da unidade do ordenamento jurídico).

207 AMADO , Joao Leao. Contrato de Trabalho. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 218.

168

Como sabemos, o cidadão ganha status jurídico de empregado

quando do preenchimento dos requisitos elencados no artigo 3º da CLT,

passando a figurar dentro de uma empresa como ente ao qual recaem

deveres (prestação de serviços, boa-fé contratual, assiduidade etc) e direitos

(percepção de salários, boa-fé contratual, respeito à integridade física e moral

etc).

Mas nessa lógica, não deixa o empregado a sua condição de

cidadão percebida mais claramente nos relacionamentos ocorridos do lado

de fora da empresa, ou seja, continua sendo e gozando dos direitos de

cidadão dentro da empresa também, não abandonando jamais esta condição.

É que o podemos denominar de empregado-cidadão.

É o que ocorre também com o contribuinte-cidadão, preso-

cidadão etc. Todos numa condição jurídica própria e específica, mas sem

abandonar a condição humana e os direitos fundamentais do cidadão.

Como empregado-cidadão tem garantido expressamente na

Constituição Federal os seguintes direitos fundamentais, dentre outros:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,

nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a

imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo

dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das

comunicações telegráficas, de dados e das comunicações

telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas

169

hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de

investigação criminal ou instrução processual penal [...]

4.6 A Fiscalização do Empregador sobre as Mensagens de Correio-

Eletrônico do Empregado-Cidadão

Como dissemos alhures, interessa saber se esta fiscalização

sobre os e-mails do empregado-cidadão decorre do pleno poder diretivo do

empregador e do seu direito de propriedade, já que o e-mail disponibilizado é

corporativo e, sendo este e-mail corporativo, teria o empregador amparo legal

para invadir certa esfera de privacidade do empregado-cidadão.

Já sabemos que o poder de direção do empregador encontra

seu fundamento no direito de propriedade (CF, artigo 5º, XXII), sendo certo

que a própria Constituição Federal também lhe impôs como limitação

expressa o atendimento da função social (CF, artigo 5º, XXIII, e artigo 173,

§1º, inciso I).

Também encontramos seu fundamento no artigo 2º da CLT208,

na medida em que o empregador “dirige a prestação pessoal do serviço”.

Sucede que, detendo o empregador este poder diretivo

(também chamado de poder de comando), lhe é permitido definir e gerir toda

a forma de como a atividade do empregado deverá se realizar.

Para o professor Maurício Godinho Delgado 209 , o poder de

direção é definido como sendo "o conjunto de prerrogativas asseguradas pela

ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador,

para o exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado,

ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção,

208 Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

209 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 5ª edição. São Paulo: LTr, 2006, pág. 631.

170

regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à

empresa e correspondente prestação de serviços".

Este poder de fiscalização se caracteriza pelo poder de controle

num sentido amplo, ou seja, é o grupo de prerrogativas que detém o

empregador para o acompanhamento eficaz e permanente das atividades

executadas pelo empregado, incluída aí também certa vigilância necessária

dentro das dependências da empresa, tais como: o controle de acesso a

internet, revistas íntimas, vigilância das portarias, monitoramento através de

circuitos internos de televisão, etc.

4.7 Regra constitucional da inviolabilidade da intimidade e vida privada das pessoas

Esta regra, prevista no artigo 5º, X, da Constituição, a princípio

retira do empregador, qualquer possibilidade de violar, acessar ou fiscalizar

as mensagens eletrônicas do empregado quando a ferramenta eletrônica é

utilizada pelo empregado para fins profissionais e pessoais, desde que não

utilizado de forma abusiva.

Ensina Antonio Jeová Santos210 que

o direito à privacidade ou à intimidade nada mais é do que

projeção da dignidade humana. Para ser digno, é necessário

que o ser humano possa dispor, no âmbito da sua esfera

individual, de um largo espaço em que prefira permanecer

sozinho, sem a intromissão de terceiros. Esse reduto diz

respeito à própria liberdade individual. Nem o Estado, muito

menos outros indivíduos podem nele interferir.

210 SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral na internet. São Paulo: Editora Método, 2001, pág. 166.

171

Salvo previsão contratual, instituição de programa e políticas

específicas de vedação e regras de utilização da ferramenta eletrônica, o

empregador em hipótese alguma poderá acessar os e.mail’s dos

empregados.

Como sabemos, os correios eletrônicos são comumente

utilizados pelas pessoas para comunicação com o mundo externo e com

seus amigos e familiares, a exemplo do que ocorre com o telefone e demais

instrumentos de comunicação da empresa, e isso, salvo oposição expressa e

procedimentalizada, deve ser tolerada pelos empregadores pelos seguintes

fundamentos em várias situações hierárquicas:

- os usos e costumes (CLT, Art. 8º e LICC, Art. 4º)

- função social da empresa (CF, Art. 5º, XXIII)

- função social do contrato (CC, Art. 421)

- direito à informação (CF, Art. 5º, XIV)

4.8 Regra constitucional da inviolabilidade da correspondência

Conforme já colocado, esta regra tem previsão constitucional no

artigo 5º, XII, e se revela importante instrumento de proteção da vida privada

do empregado, na medida em que pode não ser da vontade do empregado a

violação de sua intimidade (não ilícita) ao tratar com seus amigos e familiares

sobre os mais variados assuntos pessoais.

Nunca é demais lembrar que o artigo 187 do Código Civil

assevera que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-

lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou

social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, e isso poderia ser caracterizado

pelo uso abusivo do empregador do seu poder diretivo.

172

Ademais a Lei n.º 9.296/96, que regula a parte final do inciso XII

do artigo 5º da CF, prevê em seu artigo 10º que:

Constitui crime realizar interceptação de comunicações

telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo

da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não

autorizados em lei.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

Esta conduta ilícita é denominada por Marcelo de Luca

Marzochi 211 de crime de computador, definindo-o “toda conduta ilícita

praticada por meio de computador ou sistema de informática, que venha

causar prejuízo ou moral a outrem”.

Obviamente há que frisar que os exageros não podem ser

suportados.

Antônio Lago Junior212 lembra que “quando se fala em Internet,

a grande questão jurídica que se coloca é a seguinte: quais seriam os limites

para o direito constitucional consagrado ‘a liberdade de expressão do

pensamento e ao direito de informação”.

E conclui: “nenhum direito, por mais nobre que seja, é absoluto

e, por essa razão, estará sujeito a sofrer certas restrições a fim de

salvaguardar os direitos de outrem”.

Poderíamos até sustentar que quebra de sigilo do e.mail do

empregado, alegando que a atitude do empregador se justificaria para

garantia de direitos futuros (neutralização de ônus) em razão da sua

211 MARZOCHI. Marcelo de Luca. Direito.br: aspectos jurídicos na Internet no Brasil. São Paulo: LTr, 2000, pág. 21.

212 JUNIOR. Antônio Lago. Responsabilidade civil por atos ilícitos na internet. São Paulo: LTr, 2001, pág. 95.

173

responsabilidade objetiva, caso venha a ser acionado judicialmente em razão

de prejuízos causados a terceiros pelo uso indevido da ferramenta eletrônica

por parte do empregado nas dependências da empresa.

O argumento não é impertinente, mas esbarra em duas

premissas muito práticas:

- as causas excludentes de responsabilidade do empregador,

como por exemplo, culpa exclusiva da vítima ou de terceiros;

- o poder diretivo do empregador “não é poder de polícia”,

cabendo tão somente ao empregador, caso haja dúvidas ou certa

desconfiança quanto aos procedimentos do empregado, notificar a autoridade

específica estatal para as providências legais.

4.9 O direito ao descanso e a exigência de trabalho

Leciona Luciano Martinez 213 , com apoio no artigo 24 da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, que toda pessoa tem direito ao

repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração

do trabalho e que “trata-se, portanto, de uma proteção oferecida ao

trabalhador visando, fundamentalmente, a sua saúde laboral e a sua

integridade física”.

Daí a rigidez na proteção e a limitação às transações que, a

princípio, pressupõe lesividade.

Quanto às modalidades de intervalo para descanso, Adalberto

Martins214 assevera que os “descansos relacionados com a jornada são os

denominados ‘intervalos legais’ (intrajornadas e interjornadas)” e “os

213 MARTINEZ , Luciano. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2010, pág. 298.

214 MARTINS, Adalberto. Manual Didático de Direito do Trabalho. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, pág. 220.

174

descansos relacionados com o trabalho semanal são os ‘descansos

semanais’”.

Assim, os intervalos situados dentro da duração diária de

trabalho são os intervalos intrajornadas e os intervalos situados entre uma

jornada e outra são os denominados intervalos interjornadas.

Como características principais, podemos afirmar que os

intervalos intrajornadas admitem distintas variações temporais, como por

exemplo: 1 hora a 2 horas, quinze minutos, dez minutos etc (conforme a

norma legal examinada). Além disso, podem ser ou não remunerados,

segundo a respectiva norma jurídica aplicável.

Já o intervalo interjornada, por sua vez, diz respeito a um

padrão temporal básico, qual seja, o de 11 horas segundo o disposto no

artigo 66 da CLT215, que comporta raríssimas exceções.

Há também outras figuras, como o descanso semanal e

descanso em feriados, que são muito próximas na ordem jurídica trabalhista.

Contendo estrutura jurídica similar, submetidas a regras

idênticas ou afins, enquadram-se naquilo que se denomina: dias de repouso.

Insta salientar que o decreto regulamentador da Lei n. 605/49

trata, inclusive, de maneira igual às duas figuras jurídicas, englobando-as sob

215 Art. 66 - Entre 2 (duas) jornadas de trabalho haverá um período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso.

175

a denominação geral de "dias de repouso": ilustrativamente, artigos 1º216;

6º217, caput; 7º218, caput; 11219, caput do Decreto n.° 27.048/49).

Como bem salienta Homero Batista Mateus da Silva 220

“respondem os descansos semanais remunerados por incontáveis questões

controvertidas no âmbito dos contratos de trabalho, verificando-se grande

desconhecimento sobre a matéria no âmbito dos departamentos pessoais e

operadores do direito em geral”, principalmente quanto aos requisitos de

autorização do trabalho aos domingos e feriados pelo Ente Público (leia-se o

Ministério do Trabalho através da SRTE-Secretaria Regional do Trabalho e

Emprego).

4.10 A proteção do mercado da mulher e a igualdade de tratamento

Uma das principais formas de proteção do mercado de trabalho

da mulher é a garantia de emprego à gestante, conferida pela norma

constitucional.

216 Art. 1º Todo empregado tem direito a repouso remunerado, num dia de cada semana, perfeitamente aos domingos, nos feriados civis e nos religiosos, de acordo com a tradição local, salvo as exceções previstas neste Regulamento.

217 Art. 6º Executados os casos em que a execução dos serviços for imposta pelas exigências técnicas das empresas, é vedado o trabalho nos dias de repouso a que se refere o art. 1º, garantida, entretanto, a remuneração respectiva.

218 Art. 7º É concedida, em caráter permanente e de acordo com o disposto no § 1º do art. 6º, permissão para o trabalho nos dias de repouso a que se refere o art. 1º, nas atividades constantes da relação anexa ao presente regulamento.

219 Art. 11. Perderá a remuneração do dia de repouso o trabalhador que, sem motivo justificado ou em virtude de punição disciplinar, não tiver trabalhado durante toda a semana, cumprindo integralmente o seu horário de trabalho.

220 MATEUS DA SILVA. Homero Batista. Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Volume II – Jornadas e Pausas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, pág. 125.

176

Tem por objetivo principal a proteção da saúde e integridade

física do nascituro e, em segundo plano, assegurar a tranquilidade à mãe

que, nesse estado, encontra-se mais suscetível de alterações emocionais,

que poderão interferir negativamente no desenvolvimento da criança, bem

como garantir que a mesma possa ter condições de se manter, enquanto

estiver cuidando do nascituro nos seus primeiros meses de vida, atrelando-se

ao contrato de trabalho da empregada gestante, desde a confirmação da

gravidez, até cinco meses após o parto.

Este entendimento solidificou-se em setembro de 2012, com a

alteração do Item III da Súmula 244 do Tribunal Superior do Trabalho.

Súmula nº 244 do TST

Súmula n.º 244 do TST. GESTANTE. ESTABILIDADE

PROVISÓRIA (redação do item III alterada na sessão do

Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012,

DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012

I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador

não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente

da estabilidade (art. 10, II, "b" do ADCT).

II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a

reintegração se esta se der durante o período de estabilidade.

Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais

direitos correspondentes ao período de estabilidade.

III - A empregada gestante tem direito à estabilidade

provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea “b”, do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese

de admissão mediante contrato por tempo determinado.

177

Também na OIT – Organização Internacional do Trabalho,

criada com o Tratado de Versalhes em 1919, institucionalizaram-se medidas

de proteção especial ao trabalho feminino, por meio de instrumentos

internacionais, que desde então vão se sucedendo e se aperfeiçoando,

através de Convenções, cuja vigência pende de ratificação pelo País-membro

e de Recomendações.

Preconizou, esta criação, em seu “sétimo princípio” a igualdade

de remuneração para homens e mulheres por um trabalho de igual valor,

acolhendo-o na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em

seu artigo XXIII, 2.

Igualmente, a OIT, através da Convenção n.100 e da

Recomendação n.90, ambas de 1952, sendo o primeiro passo para um

segundo momento retratado, em numerosos instrumentos internacionais,

sobre a igualdade e de tratamento entre homens e mulheres.

Seguiram-se a Convenção de n. 4, de 1919, sobre o trabalho

noturno de mulheres, revista pelas Convenções de ns. 41/34, 89/48 e uma

recomendação sobre o trabalho noturno de mulheres na agricultura, a de n.

13/21. Ainda quanto ao trabalho em subterrâneos, a de n. 4/19, referente à

proteção de mulheres e menores contra o saturnismo, e a de n. 13/21,

relativa à interdição de trabalho com emprego de cerusita.

Na esfera de proteção à maternidade, citem-se as seguintes

Convenções: a Convenção de n. 3/19, revista pela de n. 103/52, a de n.

95/52 e a de n. 110, parte VII, de 1958, e de n. 183, de 2000.

A proteção à maternidade abrange os seguintes direitos, sendo

uns próprios da mulher, na qualidade de gestante, outros respeitantes ao seu

relacionamento e ao do cônjuge masculino com a criança, no período da

gravidez e gestação:

178

a) transferência de função, por motivo de saúde, durante a

gravidez, com a garantia de retorno, cessado o impedimento;

b) direito de pôr fim ao contrato de trabalho, se, com base em

atestado demonstrar ser o trabalho prejudicial à sua gestação;

c) dispensa de horário de trabalho, para fim de realização de, no

mínimo, seis consultas médicas, além de exames complementares.

No período do parto e do pós-parto:

a) licença à maternidade, tida como benefício de natureza

previdenciária, cuja retribuição se faz pelo salário-maternidade;

b) direito a descansos remunerados na jornada de trabalho,

para fim de amamentação do filho. Serão em número de dois, de meia hora

cada um, até que a criança complete seis meses, limite este passível de

dilatação, a critério da autoridade competente;

c) em período de amamentação, as mulheres não deverão ser

empregadas em trabalhos que acarretem exposição a benzeno ou a produtos

contendo benzeno (Convenção OIT n. 136);

d) nos estabelecimentos em que trabalhem pelo menos trinta

mulheres com mais de dezesseis anos de idade, a mulher gestante terá

direito a local apropriado onde possa guardar seu filho, sob a vigilância e

assistência, no período de amamentação;

e) direito à assistência gratuita aos filhos, desde o nascimento

até seis anos de idade em creches e pré-escolas (art. 7º, XXV da

Constituição da República).

Os direitos comuns pertinentes durante a maternidade são:

179

a) Garantia de emprego e de salário. A proibição de sua

dispensa estende-se desde a confirmação da gravidez até cinco meses após

o parto (art. 10, II, b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –

ADCT);

b) assistência médica e hospitalar (arts. 201 a 203 da

Constituição da República);

Além do mais, o pai detém direito assegurado pela Carta

Magna, quanto a licença à paternidade, prevista no artigo 7º, XIX e artigo 10,

§1º do ADCT.

4.11 Limites da negociação coletiva

Preliminarmente é importante salientar que a Constituição não

fez vedações legais e sequer impôs limites às negociações coletivas,

conforme podemos observar pelo disposto no seu artigo 7° in verbis:

“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,

além de outros que visem à melhoria de sua condição

social:

XXVI - reconhecimento das convenções e acordos

coletivos de trabalho;

XIII - duração do trabalho normal não superior a oito

horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a

compensação de horários e a redução da jornada,

mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;”

180

Aliás, a bem lançada definição de “negociação coletiva” por

Paulo Sergio João221, a qual, segundo ele, “deve ser entendida como uma

forma de adequação de interesses entre as partes, cujo objetivo é o alcance

de uma solução capaz de satisfazer, no plano imediato, as divergências

emergentes e, no plano mediato, ser uma oportunidade de aprendizado na

busca de melhores condições sociais e de trabalho”.

Também nesse mesmo sentido Suely Ester Gitelman222, que

entende que “no Direito do Trabalho vigente não se busca mais somente a

proteção do contrato individual de trabalho e sim, a oferta de emprego para

toda a coletividade, razão pela qual, em decorrência da flexibilização das

normas trabalhistas, os direitos individuais de trabalho podem ser objeto de

transação, uma vez que em decorrência da concessão desses direitos

advirão vantagens mais favoráveis ou benéficas para todos os

trabalhadores”.

E conclui:

“A flexibilização laboral surgida da crise econômica que

assola o país, é um mecanismo de ajuste da empresa face à

instabilidade econômica, com o intuito de garantir postos de

emprego, e deve ser recebida não com surpresa e indignação,

mas como forma de sindicatos que atuam na mesma posição

celebrarem acordo afastando definitivamente o paternalismo

estatal das relações de trabalho”.223

221 JOÃO, Paulo Sergio. Estrutura sindical no Brasil e negociações coletivas – efeito das cláusulas em negociações coletivas sobre o direito material. In Direito, gestão e prática: direito empresarial do trabalho. Coord. Denise Poiani Delboni e Paulo Sergio João. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, série GVlaw, pág.31.

222 GITELMAN, Suely Ester. A convenção coletiva de trabalho no direito brasileiro. São Paulo: s.n., 2001, Dissertação de Mestrado, Programa: Direito, Orientador: MANUS, Pedro Paulo Teixeira, pág. 119.

223 GITELMAN, Suely Ester. A convenção coletiva de trabalho no direito brasileiro, cit., p. 123.

181

Porém, este não é o entendimento predominante na doutrina.

Em sentido oposto ao entendimento de que as convenções ou

acordos são objeto de livre negociação e estipulação, o Jurista Maurício

Godinho Delgado 224 salienta que todos aqueles preceitos constitucionais

anteriormente citados “colocam como valor intransponível o constante

aperfeiçoamento das condições de saúde e segurança laborais, assegurando

até mesmo um direito subjetivo à redução dos riscos inerentes ao trabalho,

por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Por essa razão,

preceitos jurídicos que, ao invés de reduzirem esse risco, o alargam ou

aprofundam, mostram-se francamente inválidos, ainda que subscritos pela

vontade coletiva dos agentes econômicos envolventes à relação de

emprego”.

Ainda: “as normas jurídicas estatais que regem a estrutura e

dinâmica dos intervalos trabalhistas também são, de maneira geral, no Direito

Brasileiro, normas imperativas. O caráter de cogência próprio às regras do

Direito do Trabalho também deve ser enfatizado”.225

Nesse diapasão, entende-se que a renúncia, pelo trabalhador,

no âmbito da relação de emprego, a alguma vantagem ou situação resultante

de normas respeitantes a intervalos poderia ser prejudicial e, por

conseguinte, ser declarada inválida.

Paulo Sergio João 226 assevera que: “quanto às partes, a

liberdade de negociação livre de trabalhadores relativamente aos

empregadores sobre as condições de trabalho está diretamente vinculada ao

224 DELGADO, Maurício Godinho. Jornada de trabalho e descansos trabalhistas. 3ª edição. São Paulo: Editora LTr, 2003, pág. 120.

225 DELGADO, Maurício Godinho. Jornada de trabalho e descansos trabalhistas, cit., p. 120.

226 JOÃO, Paulo Sergio. Estrutura sindical no Brasil e negociações coletivas – efeito das cláusulas em negociações coletivas sobre o direito material. In Direito, gestão e prática: direito empresarial do trabalho. Coord. Denise Poiani Delboni e Paulo Sergio João. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, série GVlaw, pág.32.

182

exercício da liberdade sindical, direito este de natureza individual, mas

exercido coletivamente por meio de agrupamento em torno do sindicato,

entidade chamada para capacitar e legitimar a manifestação da autonomia

privada de modo coletivo”.

E conclui de forma muito pertinente 227 : “qualquer restrição

imposta pelo Estado no exercício desta liberdade implica violação direta do

exercício da liberdade sindical”.

Agora, se por meio dos instrumentos coletivos autônomos não

se reconhece validade a acordos, quanto mais por meio das relações

bilaterais, ou seja, aquelas feitas diretamente entre empregado e

empregador.

De forma taxativa a doutrina entende que a transação

meramente bilateral, sem o apoio e amparo de negociação coletiva, também

se submete ao mesmo conjunto indissolúvel de princípios e regras.

Deste modo, como critério geral, será inválida a transação

bilateral que provoque prejuízo do trabalhador (artigo 468, CLT228), como por

exemplo, a redução de intervalo por aquém do mínimo fixado na legislação

(como o intervalo para refeição e descanso de, pelo menos, 1 hora – artigo

227 JOÃO, Paulo Sergio. Estrutura sindical no Brasil e negociações coletivas – efeito das cláusulas em negociações coletivas sobre o direito material. In Direito, gestão e prática: direito empresarial do trabalho, cit., p. 32.

228 Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

183

71 229 , caput, CLT); ou eliminação de intervalo remunerado habitual

espontaneamente concedido pelo empregador (Súmula n.º 118 do TST230).

Portanto, como defende o Professor Maurício Godinho

Delgado231: “o espaço para a renúncia é praticamente nenhum, assim como é

extremamente reduzido o espaço para a própria transação bilateral

(preservando-se válida apenas quando não for lesiva)”.

Mais uma vez nosso entendimento, data venia, inclina-se na

contramão do reconhecimento absoluto da rigidez destas transações,

inclusive, também, quanto às alterações bilaterais, ou seja, é possível sim

uma flexibilização neste ponto, desde que avaliadas pontualmente garantias

e direitos constitucionais.

Primeiro porque o próprio legislador já previu no ordenamento

algumas hipóteses de produção de atos unilaterais pelo empregador em

busca de reduzir um dos intervalos legais (redução sem real prejuízo).

É o que podemos notar, por exemplo, no disposto no artigo 71,

§ 3º da CLT232, que permite que se diminua o lapso temporal mínimo de 1

hora para refeição e descanso caso o estabelecimento atenda integralmente

229 Art. 71 - Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas.

230 Súmula nº 118. JORNADA DE TRABALHO. HORAS EXTRAS. Os intervalos concedidos pelo empregador na jornada de trabalho, não previstos em lei, representam tempo à disposição da empresa, remunerados como serviço extraordinário, se acrescidos ao final da jornada.

231 DELGADO, Maurício Godinho. Jornada de trabalho e descansos trabalhistas. 3ª edição. São Paulo: Editora LTr, 2003, pág. 120.

232 CLT, art. 71. § 3º O limite mínimo de uma hora para repouso ou refeição poderá ser reduzido por ato do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, quando ouvido o Serviço de Alimentação de Previdência Social, se verificar que o estabelecimento atende integralmente às exigências concernentes à organização dos refeitórios, e quando os respectivos empregados não estiverem sob regime de trabalho prorrogado a horas suplementares.

184

às exigências concernentes à organização dos refeitórios e quando os

respectivos empregados não estiverem sob regime de trabalho prorrogado a

horas suplementares.

Ainda que tal possibilidade de redução dependa de ato do

Ministério do Trabalho e Emprego, depois de ouvido o órgão responsável

pela área de segurança e medicina do trabalho do respectivo ministério

(artigo 71, § 3º), tal hipótese já contempla a quebra do caráter absoluto da

impossibilidade de alteração.

Fora isso, e, ainda no campo da alteração bilateral, houve

manifestação de Leonel Maschietto sobre a matéria233, donde defendeu a

autonomia privada da vontade de certos grupos de empregados, podendo

destacar dentre eles os altos empregados, os advogados de notável saber

jurídico e outros empregados, excluídos do grupo de hipossuficientes e

inseridos de forma indiscutível no grupo dos que gozam de plena autonomia

jurídica para dispor diretamente de seus direitos (leia-se aqui: assuntos de

seu interesse).

Isso tudo no escopo infraconstitucional, pois a avaliação no

circuito constitucional deve tratar caso a caso.

Roberto Barreto Prado 234 , por seu turno, defende que “a

prerrogativa pertence ao sindicato e não aos empregados individualmente

considerados. ‘Êstes’ são abrangidos pelas normas do ‘acôrdo’ coletivo,

ainda que contra sua expressa e manifesta vontade”.

233 MASCHIETTO, Leonel. A Liberdade Contratual no Direito Individual do Trabalho Contemporâneo. Anais do 49º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho. Coordenação Amauri Mascaro Nascimento. São Paulo: Editora LTr, junho/2009, págs. 91-93.

234 PRADO, Roberto Barreto. Tratado de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1967, vol. II, pág. 723.

185

Os “hipossuficientes” ou os empregados com “debilidade

econômica absoluta”, descritos por Cesarino Junior235 num outro momento

cultural e econômico, estão, em relação aos autossuficientes

(empregadores), “numa situação de hipossuficiência absoluta, pois

dependem, para viver e fazer viver sua família, do produto de seu trabalho”.

Um outro grupo surge com certa autonomia privada da vontade,

afastando sensivelmente a necessidade de interferência e proteção estatal e

se manifestando isoladamente e com independência jurídica, podendo

livremente manifestar sua vontade a anuir àquilo que bem quiser dispor,

excetuados, por óbvio, as situações de fraudes e outros vícios de vontade.

Mas ainda o próprio Professor Maurício Godinho Delgado236 traz

duas situações em que a doutrina e jurisprudência têm aceitado o que,

diríamos, é do campo da flexibilização, ou seja, reconhecem que há espaço

aberto à negociação coletiva no tocante à flexibilização das normas relativas

a intervalos intrajornadas.

A lacuna da lei quanto aos expressos limites da negociação

impõe a busca das respostas no conjunto das regras e princípios do Direito

do Trabalho, bem como na leitura prática que a jurisprudência tem produzido

a esse respeito.

Ainda lecionando, sobre esta questão Maurício Godinho

Delgado237 defende que sempre que se falar em flexibilização, transação e

235 CESARINO JUNIOR, A.F. Direito Social Brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1970, 1º vol., pág. 25.

236 DELGADO, Maurício Godinho. Jornada de trabalho e descansos trabalhistas. 3ª edição. São Paulo: Editora LTr, 2003, pág. 121.

237 Para Maurício Godinho Delgado, sempre que se falar em flexibilização, transação e negociação coletiva, devemos refletir em torno dos princípios do direito do trabalho, ressaltando o princípio da adequação setorial negociada, sendo que à luz de tal princípio as normas autônomas coletivas negociadas somente podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista quando observarem dois critérios autorizativos essenciais: a) quando as normas coletivas implementarem padrão setorial de direitos superior ao padrão

186

negociação coletiva, devemos refletir em torno dos princípios do Direito do

Trabalho e em dois critérios essenciais.

O primeiro critério, o da norma mais favorável, é marcadamente

simples, já que se trata de alteração mais vantajosa ao empregado. Logo,

difícil concluir pela ilegalidade, já que a norma coletiva não chega sequer a

afrontar, portanto, o princípio da indisponibilidade de direitos obreiros ou o

das garantias mínimas.

A análise do segundo critério, o das normas autônomas

transacionando parcelas trabalhistas de indisponibilidade apenas relativa e

não de indisponibilidade absoluta, parece merecer maiores comentários.

É possível vislumbrar-se norma coletiva negociada que afronte

apenas parcelas trabalhistas de indisponibilidade relativa (embora rara a

hipótese, já que as normas concernentes a intervalo são, essencialmente, de

saúde do trabalhador).

Isso ocorreria, por exemplo, com uma norma que ampliasse o

intervalo não remunerado entre dois interregnos de trabalho (alargando, pois,

o intervalo máximo de 2 horas de que fala o artigo 71, caput da CLT –

dispositivo que tem sido comum nas negociações coletivas da área de

transporte urbano). A indisponibilidade aqui seria relativa, porque o

alargamento do intervalo não afetaria, em princípio, diretamente a tutela da

saúde do trabalhador.

Contudo, imperativo reconhecermos que grande parte das

normas relativas a intervalo são normas de saúde e segurança laborais, e,

por conseguinte, normas de saúde pública. Como tem predominado na

geral oriundo da legislação heterônoma aplicável (o clássico princípio da norma mais favorável, portanto); b) quando as normas autônomas transacionarem parcelas trabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta). DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios do direito do trabalho. Jornal Trabalhista. Brasília: CTA, ano XI, n.º 535, 12.12.94.

187

doutrina e jurisprudência, tais, asseguram às parcelas trabalhistas a

qualidade de indisponibilidade absoluta (entendimento que não comungamos,

como já explanado).

Sendo direitos revestidos (ou reconhecido por alguns) como de

indisponibilidade absoluta, os mesmos não poderiam ser transacionados nem

mesmo por negociação coletiva.

Observe-se que referida discussão como posta, é realizada

apenas no aspecto infraconstitucional, e não no escopo do conflito de direitos

resguardados e garantidos constitucionalmente.

A justificativa, segundo a doutrina, tentando avançar para o

campo constitucional, é que tais parcelas são aquelas caracterizadas na

essência por uma tutela de interesse público, por se constituírem em uma

base mínima aceitável de direitos 238 que a sociedade democrática não

concebe ver reduzido em qualquer seguimento econômico-profissional, sob

pena de se afrontar a própria dignidade da pessoa humana e a valorização

mínima deferível ao trabalho (artigos 1.º, III e 170, caput, CF/88).

Isso significa, por exemplo, poder ser reconhecido como

inválido o dispositivo de convenção ou acordo coletivo que dispense o

intervalo intrajornada em lapsos temporais de trabalho superiores a 4 horas

contínuas (ou superiores a 6 horas), afrontando, a princípio, os respectivos

intervalos mínimos específicos pelo artigo 71 da CLT239.

238 Instituto esse conceituado por Maurício Godinho Delgado como “patamar mínimo civilizatório”. Introdução ao direito do trabalho. São Paulo: Editora LTr, 1995, págs. 166-167).

239 Art. 71 - Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas.

188

Outrossim, como sabemos, o intervalo de 1 hora em jornadas

superiores a 6 horas (caput do artigo 71 da CLT) pode sim ser reduzido caso

o estabelecimento tenha refeitório próprio (e não haja a prática de horas

suplementares), pois como já salientamos, esta redução é expressamente

autorizada pela lei (§ 3º do artigo 71 da CLT).

Mas, temos que admitir, será inválida (se avaliada

infraconstitucionalmente) a supressão do referido intervalo ou sua redução a

níveis temporais incompatíveis ao cumprimento de seus objetivos centrais

(saúde, higiene e segurança laborais), como por exemplo, a fixação de

intervalo para almoço de 10 (dez) e 15 (quinze) minutos.

Noutro aspecto, poderá ser reconhecida em casos concretos se

avaliada na esteira do princípio da proporcionalidade, em que a colisão de

direitos fundamentais se apresentarem em discussão.

Bem, como de maneira geral todos os intervalos intrajornadas

são bem curtos (excetuado o previsto no caput do artigo 71 da CLT), mesmo

uma simples redução pode ser tida como afronta à tutela das normas

imperativas de saúde, medicina e segurança do trabalho, podendo vir a ser

reconhecida como inválida, ressalte-se, na questão avaliada

infraconstitucionalmente .

Permitindo a Constituição a efetiva diminuição do salário240 por

negociação coletiva nos termos do artigo 7º, VI241, aparentemente podemos

240 Cesarino Junior, leciona que “é princípio ensinado pelos tratadistas do salário que este deve obedecer à três critérios no seu cálculo: as necessidades do trabalhador, as possibilidades da empresa e a produtividade do trabalho. (...) ‘Êste princípio foi até certo ponto consubstanciado no art. 137, letra c, da Constituição de 1937, que inscreveu: ‘a modalidade do salário será a mais apropriada às exigências do operário e da emprêsa”.(in, CESARINO JUNIOR, A.F. Consolidação das Leis do Trabalho. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, vol. I, pág. 433.)

241 Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

189

supor que a mesma confere plena validade à norma coletiva negociada que

suprimisse até mesmo os intervalos intrajornadas remunerados (quem sabe,

também aquele descrito no artigo 72 da CLT242, por exemplo), dependendo

caso a caso referida avaliação.

Mas é importante salientar que estas reduções devem vir

acompanhadas de meios calibradores, a fim de se evitar o embate direto com

o disposto no artigo 7.º, XXII 243 , CF, que trata da redução dos riscos

inerentes ao trabalho.

E mais: segundo nos informa Otavio Pinto e Silva 244 “toda

negociação deve partir de um pressuposto básico: o de que as partes se

comprometem a negociar de boa-fé e a proceder com lealdade em todos os

seus entendimentos, assim como na execução do que vier a ser acordado”.

Isso poderá trazer maior legitimidade a negociação coletiva

redutora dos intervalos e outras questões.

Em resumo, a avaliação na esfera infraconstitucional muita se

separa da avaliação na esfera constitucional, e havendo colisão de direitos

constitucionais, apenas caso a caso, sem esvaziamento completo de um em

face do outro, podemos encontrar a solução adequada.

242 Art. 72 - Nos serviços permanentes de mecanografia (datilografia, escrituração ou cálculo), a cada período de 90 (noventa) minutos de trabalho consecutivo corresponderá um repouso de 10 (dez) minutos não deduzidos da duração normal de trabalho.

243 XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

244 SILVA, Otavio Pinto e. A contratação coletiva como fonte do direito do trabalho. São Paulo: Editora LTr, 1998, pág. 105.

190

5. Casos práticos internacionais

Considerando as linhas traçadas até então para a aplicação do

princípio da proporcionalidade, necessário se torna trazer alguns casos

práticos, dando início pelos casos ou situações postas no Judiciário

Internacional. As decisões e os respectivos países escolhidos são

justificados, em especial, pelo conteúdo trabalhado em seu texto com base

no princípio da proporcionalidade.

Oportuno salientar, que o presente estudo busca desvendar a

possibilidade da aplicação do princípio da proporcionalidade e seus

contornos nas relações de emprego e trabalho, e em certa medida sua

diferenciação do princípio da irrazoabilidade, hoje denominado por muitos de

princípio da razoabilidade.

Defendemos ainda, na linha científica proposta, e com

fundamento nos autores citados, a aplicação de regramentos que visam dar

contornos objetivos à aplicação do princípio da proporcionalidade, o que se

dá por meio dos subprincípios já aqui detalhados.

De outro lado, em razão do contexto que se apresenta referido

princípio, que visa solucionar casos concretos de choques entre garantias

e/ou direitos fundamentais, e observando ainda, a diferenciação que

procuramos demonstrar quanto à criação da norma no momento do

julgamento, afastando a visão puramente “do texto sem contexto” da norma

ou ainda, a busca pelo espírito do legislador no momento de sua criação,

inviável nos pareceu afastar do presente trabalho casos concretos, em que

referido princípio da proporcionalidade ou ainda, da razoabilidade são

destacados como meios aparentes de fundamento.

Evidentemente que o objetivo não é de crítica a essa ou aquela

decisão, pois a compreensão de aplicabilidade do princípio e de seus

subprincípios não é tarefa fácil, mas sim, de exercitar tecnicamente o que até

aqui foi apresentado.

191

De salientar ainda, que não tivemos acesso ao processo em

sua integralidade, mas apenas aos Acórdãos na íntegra.

5.1 Situação 1 – Caso Português dos Delegados de Propaganda Médica

Em 21 de Agosto de 2006 os trabalhadores (delegados de

propaganda médica) envolvidos em uma despedida coletiva intentaram uma

ação (processo n. 2993/06.5TTLSB.L2.S1)245 , com processo especial, no

Tribunal de Trabalho de Lisboa contra a empresa que os despediu.

Pleiteavam que tal despedida fosse declarada ilícita e ainda a reintegração

nos seus postos de trabalho com a antiguidade e categoria de antes, além de

que lhes fossem pago retribuições que, englobando os danos patrimoniais e

os morais, somavam dez mil euros para cada um.

A ré era uma empresa farmacêutica que figurava na lista das

150 empresas com capital próprio de 20 milhões de euros e ocupa a 17ª

posição entre a 25 maiores empresas farmacêuticas. Entretanto, afirma que o

mercado farmacêutico atravessava fase complicada economicamente,

especialmente em Portugal, onde o governo estava em crise e a população

com baixas condições financeiras. Além disso, enfrentava congelamento de

preços e perda de mercado em função do crescimento dos medicamentos

genéricos.

A ré foi condenada no primeiro julgamento e interpôs recurso

para o Tribunal da Relação de Lisboa. Foi proferida nova decisão que decidiu

julgar a ação procedente e improcedente o pedido reconvencional e, em

consequência disso, declarou ilícita a despedida coletiva operada pela ré e

245Disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/14d1de64de83bac780257b1a004ccb84?OpenDocum (acesso em 17.3.2014)

192

que visou os autores, condenando-a a reintegrá-los nos seus postos de

trabalho, com a antiguidade e categoria que lhes pertenciam, a pagar aos

autores, além das retribuições, acrescidas dos respectivos subsídios de férias

e de Natal devidos, até ao trânsito em julgado da decisão, a importância de €

4.000,00 a título de indenização por danos não patrimoniais sofridos e bem

assim a pagar-lhes a quantia que viesse a ser apurada em sede de execução

de sentença e correspondente aos danos patrimoniais sofridos em resultado

de terem sido privados de veículo automóvel, cedido pela ré, e dos prêmios

trimestrais de produtividade não recebidos desde Dezembro de 2005.

Quantias estas acrescidas de juros de mora, contados à taxa legal, desde a

data dos respectivos vencimentos e até efetivo e integral pagamento.

Inconformada, a ré interpôs, de novo, recurso para o Tribunal da

Relação de Lisboa, que deliberou não acolher o recurso interposto e

confirmar, na íntegra, a sentença recorrida. Desta decisão que apresenta

recurso de revista, o qual vai manter a decisão, com os fundamentos que

passamos a expor.

De acordo com o STJ, ainda que a ré tenha demonstrado a

existência de previsíveis alterações de mercado no que respeita a procura

dos seus bens, não ficou suficientemente demonstrado que essa alteração

implicasse a necessidade de dispensa dos autores, cuja atividade, não só,

não foi reduzida, como se apurou que a ré teve necessidade de contratar

mais pessoal com formação idêntica.

Em suma, verificou-se a inexistência de um nexo de

causalidade entre as razões de mercado apurados e a dispensa efetuada, de

forma que, “segundo juízos de razoabilidade, aquelas fossem idóneas a

determinar uma diminuição de pessoal operada através do despedimento

colectivo dos autores, o que torna o despedimento ilícito, ao abrigo do

art.º429, c) do CT., com referência ao art.º 431 do mesmo diploma, tal como

foi decidido na sentença recorrida”. E, por considerar a dispensa coletiva

ilícita, manteve-se a condenação à ré em relação aos danos não

patrimoniais, posto que demonstrado o infortúnio causado aos empregados.

193

O que importa ressaltar nesta decisão, para os objetivos

propostos, é mostrar quão intrínseco à ideia de direito é a noção de

proporcionalidade, mesmo que, justamente por normalmente permanecer

implícita, inconsciente, se dá de modo ilegítimo, incongruente com o que se

propõe numa democracia.

No caso sob análise, quando dizem que a questão a ser

resolvida é verificar o nexo de causalidade entre as razões expostas pela

empresa e a necessidade de se despedir determinados empregados, aí

reside o lócus privilegiado da proporcionalidade, que é o que fundamenta e

dá sentido ao vínculo existente entre às partes em conflito. É o que

proporciona avaliar a legitimidade de uma conduta em relação aos reflexos

que ela terá na parte contrária.

Chega-se à conclusão de que, havendo problemas econômicos

ou de qualquer ordem, será lícita a dispensa coletiva se ficar demonstrado

que esta surtirá efeito em reduzir ou solucionar os problemas enfrentados.

Tal procedimento interpretativo é denominado como um juízo de

razoabilidade. Apesar desta denominação, podemos verificar grande

semelhança com o que temos apontado como uma aplicação ilegítima da

proporcionalidade, posto que fundamentada em uma compreensão

inautêntica.

Tomando o direito como um instrumento a ser utilizado para

conformar o convívio social, parte-se do pressuposto de que uma conduta

pode ter sua legitimidade aferida com a sua adequação com a lei, com um

princípio, com o que se diz ser a constituição, com um valor, ou seja, trata-se

de descrever uma relação em que se estabelece um critério e, então, se

avalia uma conduta. Se esta estiver conforme aquele, ela é considerada

lícita.

Este é o ponto em que a violência é mascarada, fundamentada

em discursos retóricos em que o ser humano, em sua singularidade, é

deslocado, fica fora do debate, tendo sua vida totalmente absorvida pelo

194

direito. A proporcionalidade, se aplicada corretamente nos termos que se

propõe neste trabalho, propicia desconstruir estes discursos, estas crenças,

além de soluções legítimas. No caso em questão, por exemplo, pode-se até

considerar um “acerto” quanto ao conteúdo da decisão, mas o pano de fundo,

o não dito do que se decidiu é o local que se identifica o problema. Mostrando

a empresa que, em caso de crise financeira, poderia reduzir custos e

permanecer mais competitiva no mercado com uma demissão coletiva, esta

se mostraria lícita? Mas seria legítima? Acreditamos que a proporcionalidade

oferece um caminho mais correto a ser seguido. Deveria a empresa, além de

mostrar a necessidade de tal dispensa, deveria ainda, mostrar que não teria

outras alternativas mais benéficas aos empregados e, por último, dever-se-ia

mostrar até que ponto o ordenamento jurídico-político possibilita uma

dispensa coletiva para salvaguardar interesses da empresa. Não nos parece

correto, desde uma abordagem comprometida com os direitos humanos, que

uma empresa possa proceder a uma dispensa coletiva, mas não possa sofrer

um recuo econômico, que não a coloque em risco, é claro.

5.2 Situação 2 – Caso Português de Sanção Abusiva e Danos Morais

O autor instaurou no Tribunal de Trabalho de Almada ação

(processo n.598/09.8TTALM.L1.S1)246 contra o Banco de Portugal pedindo

que se declarasse extinto por caducidade o procedimento disciplinar ou que,

subsidiariamente, se declare que os comportamentos que lhe são imputados

no referido procedimento não constituem violação do dever de segredo. Além

disso, requer que o réu seja condenado a lhe pagar indenizações que

englobam vários aspectos, como subsídios descontados e danos não

patrimoniais, entre outros.

Foi declarada “ilícita e consequentemente nula a sanção de

suspensão aplicada ao Autor, devendo o Réu proceder à eliminação do

246 Disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b0c2476d8654aef080257ab10037f704?OpenDocument (acesso em 18.3.2014)

195

registo disciplinar daquele da infracção em causa e repor a respectiva

antiguidade como se nunca tivesse sido sancionado”, além do dever de

indenizar os danos materiais e os não patrimoniais.

O réu, inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da

Relação de Lisboa, assim como o autor, e descontentes com a decisão

deste, ambos impetraram recurso de revista para o TSJ. Aquela corte alterou

a sentença recorrida na parte em que condenou o réu a pagar ao autor o

montante de seis mil euros a título de danos morais, mas manteve o restante,

ou seja, a reintegração do autor e as indenizações por danos materiais. O

STJ confirmou a sentença recorrida.

Aparenta ser relevante o ponto em que se discute se é devida

ou não a indenização referente aos danos não materiais, no qual focaremos a

análise desta decisão, pois podemos encontrar, embora não tenha sido

explicitada pelos magistrados, uma aplicação correta da proporcionalidade.

O autor alega que sofrera um processo disciplinar ilícito, o qual

continha em seu início a intenção de sua dispensa, e, portanto, sofrera danos

psicológicos, tendo sua vida familiar e profissional afetada. Dever-se-ia

decorrer daí, portanto, uma indenização por danos não materiais.

Acontece que tal procedimento disciplinar foi instaurado pelo

fato de o autor ter descumprido seu dever de sigilo em relação ao banco em

que trabalhava. Isto aconteceu quando o autor, em um processo judicial,

juntou documentos sigilosos e, devido ao caráter público do processo, no

entender do banco, houve quebra do dever de sigilo. O autor alegou que sua

conduta era lícita, uma vez que coerente com seu direito de ação.

O cerne da discussão é, então, a licitude de tal procedimento

disciplinar, dependendo da resposta a esta questão a possibilidade ou não de

indenização referente a danos morais. Não resta dúvida, no processo, que o

autor sofreu danos psicológicos e em sua convivência familiar e profissional,

mas há que se decidir se tais danos decorreram de um procedimento

196

disciplinar ilícito e, portanto, deveria ser indenizado, ou se tal procedimento

constituía direito do banco, sendo legítimo, caso em que não há que se falar

em indenização.

Ao analisar a questão, sem mencionar em nenhum momento o

princípio da proporcionalidade, assim se argumentou:

Nem se diga que o A./apelante ao haver procedido

daquele modo, o fez no exercício do seu direito de

acção. Repare-se que o mesmo, ao exercer aquele

direito, nem sequer juntou ou requereu a junção de tais

documentos com a petição inicial formulada no aludido

processo, mas apenas como elementos de prova

meramente acessória à que já havia indicado nos autos

e apenas em sede da audiência de discussão e

julgamento que ali teve lugar, sendo certo que poderia e

deveria ter actuado de outro modo, designadamente

apresentando outros elementos de prova, mormente

testemunhal, que, porventura, fossem capazes de

esclarecer o tribunal, naquele outro processo, sobre a

actividade desenvolvida pelo A. ao serviço do ali R., ou,

no mínimo, solicitar a este autorização para a respectiva

utilização em juízo ou requerer ao tribunal a junção dos

mesmos pelo próprio R., já que eram documentos que

lhe pertenciam e que estavam em seu poder,

permitindo, desse modo, a abertura de uma discussão

prévia sobre a sigilosidade dos elementos contidos

nesses documentos e, consequentemente, a

possibilidade ou não da junção dos mesmos àquele

processo, ou a forma de se obter a junção dos mesmos

sem pôr em causa os direitos em conflito (o direito do A.

os poder utilizar enquanto elementos de prova e o

direito de sigilo deles decorrente, designadamente em

197

relação às pessoas ou entidades a que se reportavam

esses documentos).

Assim, ainda que de âmbito limitado, não há dúvida que

o aqui A./apelante, ao actuar da forma que o fez no

referido processo e em relação à junção de tais

documentos, violou o sigilo profissional a que estava

vinculado».

Demonstrou-se na decisão que, embora tais documentos

pudessem provar o que alegava o autor, não ficou demonstrada a sua

adequação, posto que além de haver outros meios de prova à sua

disposição, tão eficientes quanto este, houve excesso também em tê-los

juntado sem antes discutir tal possibilidade, pois sabia tratar-se de segredos

de terceiros, que também mereciam proteção jurídica.

E, ao proceder deste modo, ou seja, com excesso, observou-se

realmente que direitos de terceiros foram desrespeitados sem nenhuma

causa que o tornasse legítimo. Podemos vislumbrar aqui, portanto, as três

etapas da aplicação do princípio da proporcionalidade, apesar de não

mencionadas explicitamente, como propomos ser o modo correto.

Decorreu-se do exercício hermenêutico realizado uma decisão

correta, legítima, em que se pôde verificar que o autor, ao agir de modo

desproporcional, ensejou um procedimento disciplinar legítimo, não podendo

requerer indenização moral por danos sofridos em um procedimento que tem

sua origem em seu próprio ato ilícito. Seria um caso em que estar-se-ia a

utilizar o direito contra o próprio direito, a pior forma de injustiça que existe,

pois a mais dissimulada.

198

5.3 Situação 3 – Caso Português da Dispensa por Justa Causa e Boa-Fé

Trata-se de caso (processo n. 4914/07.9TTLSB.L1.S1)247 em

que a autora pede que se anule a sanção disciplinar de dispensa com justa

causa e se condene a ré a compensá-la no valor das retribuições que deixou

de auferir desde a dispensa até ao trânsito da sentença e a pagar-lhe €

1.500,00 de indenização por danos patrimoniais e € 35.000,00 por danos não

patrimoniais, com juros. A empregada desempenhava a função de técnica

superior de higiene e segurança.

Após a realização da audiência de julgamento foi proferida

sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente, porque

parcialmente provada, declarando ilícita a dispensa da autora, que anulou, e

condenando a ré, em conformidade, a reintegrar a autora no seu posto de

trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, e a condenando a

pagar à autora a quantia de € 49.416,56 acrescida de juros de mora, à taxa

legal, desde a citação e até integral pagamento, somada das quantias que se

vierem a vencer pelo mesmo título (art. 437.º do CT aprovado pela Lei

99/2003) até ao trânsito em julgado da decisão final do processo.

A ré, inconformada, interpôs recurso de Apelação para o

Tribunal da Relação de Lisboa, que lhe concedeu provimento, julgando

procedente o recurso interposto e revogando a sentença recorrida por

considerar que existiu justa causa na dispensa efetuada, com a consequente

absolvição da ré dos pedidos contra si formulados. Decisão contra a qual a

autora interpôs recurso de revista, levando o caso ao TSJ, o qual confirmou a

decisão.

247 Disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e71f52e348eef140802579d1004bfa43?OpenDocument (acesso em 19.3.2014)

199

A recorrente argumentou que, devido ao caráter de perenidade

intrínseco à relação laboral, o recurso à sanção de dispensa em processo

disciplinar apenas se justifica, “no necessário respeito pelo princípio da

proporcionalidade, quando as medidas conservatórias ou correctivas se

revelarem de todo inadequadas”, entendendo que foi desproporcional sua

dispensa em razão de sua conduta ter sido um ato isolado, além de se tratar

de trabalhadora com 6 anos de emprego e sem antecedentes disciplinares.

Resumindo, tal decisão “atenta contra o princípio da proporcionalidade que

deve existir entre a sanção e a gravidade da infracção.

A recorrente tinha que fazer visitas em estabelecimentos e

elaborar relatórios anuais da atividade dos serviços de segurança, higiene e

saúde no trabalho. As empresas têm que apresentar tal relatório,

impreterivelmente, até o dia 30 de abril. Acontece que a empregada efetuou

algumas visitas, mas não elaborou, logo em seguida, os relatórios

correspondentes, como seria o procedimento normal.

Restando ainda vários relatórios a serem feitos e o prazo quase

no limite, a técnica de higiene e segurança solicitou à empregadora

autorização para frequentar uma ação de formação sobre ‘Ruído’, pedido que

lhe foi indeferido em virtude de ainda não terem sido efetuados os relatórios

das vistorias acima referidas, e ainda porque nessa altura, em 14.3.2007,

estava-se ainda em período de realização dos relatórios anuais da atividade

dos serviços de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho, que as empresas

têm que apresentar no ISHST, impreterivelmente, até ao dia 30 de Abril.

A autora entrou de baixa médica no dia seguinte, em 15.3.2007,

por 10 dias, depois prorrogados por mais 30 e depois novamente prorrogada

até 23.5.2007. Apurou-se ainda que a autora, ao sair da reunião do dia 14 de

Março de 2007, o fez a cantarolar, depois da gerente da ré não lhe ter dado

autorização para frequentar a ação de formação pelos motivos acima

referidos, o que, no entender da corte, denuncia uma falta de respeito e

urbanidade para com a empresa.

200

Além disso, enquanto a autora estava afastada do serviço, foi-

lhe solicitado que prestasse informações sobre os documentos

correspondentes às visitas que havia feito, pois os mesmos, deixados por ela

antes de sair, não continham as informações necessárias para que outro

técnico pudesse fazer os relatórios. A autora somente respondeu ao segundo

contato feito, mas não forneceu informações necessárias para resolver a

situação. A ré teve que contratar outra técnica de higiene e segurança que

teve que se deslocar às empresas que mais urgentemente necessitavam dos

relatórios a fim de repetir as vistorias.

Em relação às atitudes da autora, ponderou a corte que “era-lhe

exigível, nas descritas circunstâncias, outra conduta, não sendo preciso ir

mais longe para significar que, num quadro de normalidade, aferível pelo

padrão ou critério geral do bom pai de família, deveria ter cumprido

adequadamente os seus deveres funcionais, elaborando em tempo próprio os

relatórios sequentes às vistorias realizadas, aceitando, com urbanidade e

sem retaliação, a negação de autorização para frequência do referido

workshop, colaborando, com normal disponibilidade, na realização alternativa

dos relatórios que a sua ausência, sem mais, inviabilizou.”

Assim, decidiu que “o cominado despedimento mostra-se

proporcionado à gravidade do comportamento assumido pela A.”

Deve ser destacado que a proporcionalidade foi utilizada como

argumento interpretativo tanto pela autora, para afirmar que sua dispensa foi

desproporcional, quanto pela corte, no sentido contrário, para decidir pela

licitude da dispensa, considerando que esta foi proporcional ao

comportamento assumido pela autora. Devemos, então, destacar qual

interpretação está correta, de modo que fique claro que o princípio da

proporcionalidade não oferece um álibi hermenêutico capaz de sustentar ou

fundamentar qualquer resposta, mas constitui um procedimento através do

qual, se corretamente efetuado, pode-se obter uma decisão correta, legítima.

201

Apesar de em nenhum caso ter-se percorrido, explicitamente,

as etapas da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido

estrito, podemos perceber que apenas uma interpretação as percorre,

mesmo que não tenha ficado claro. Esta, que é a correta, é a interpretação

do STJ.

Na argumentação da autora o princípio da proporcionalidade é

utilizado de modo a se verificar a licitude da dispensa no processo disciplinar

tendo como pano de fundo que esta se deve à correlação ou não com o

ordenamento jurídico, o que pode se dar considerando-o no todo, seus

princípios ou qualquer norma. Trata-se de erro comum, já indicado aqui, que

se repete em várias decisões também no Brasil. O que se tem, na verdade, é

uma decisão, a priori, de que a dispensa não pode ser considerada lícita e,

então, procede-se a uma busca no ordenamento jurídico de alguma regra

que comporte tal interpretação. Não se percorre as etapas dos sub-princípios,

o que acarretaria, inevitavelmente, a ilegitimidade do pressuposto assumido.

Em contraposição, na decisão do STJ fica claro que o processo

disciplinar mostrou-se necessário para apurar as condutas da autora,

totalmente incompatíveis com o que se espera de um empregado. Depois,

mostra-se que a punição de dispensa, além de necessária, era adequada,

posto que qualquer outra pena, mais branda, não seria condizente com suas

atitudes. E, principalmente, que por tais atitudes serem graves, houve a

quebra da confiança, de modo que seria impossível requerer da empregadora

que mantivesse o vínculo empregatício, o que tratar-se-ia em liquidação de

seus direitos. Importa salientar que, na decisão, não há que se falar em

liquidação dos direitos da empregada, posto que esta deu causa à dispensa

sem estar acobertada por nenhum direito que pudesse legitimar suas

condutas.

202

5.4 Situação 4 – Casos da Inconstitucionalidade na Colômbia sobre

Subordinação no Contrato de Trabalho Foi proposta uma ação de inconstitucionalidade (expediente D-

2581, sentença C-386/00)248 em relação a uma lei que altera o artigo 23 do

Código Sustantivo del Trabajo, o qual estabelece os requisitos para se

configurar uma relação de trabalho. Traz como requisitos essenciais a

atividade ser desempenhada pelo próprio trabalhado (alínea a) e o salário

como contraprestação ao serviço (alínea c). A alínea b é alvo da presente

ação de inconstitucionalidade, sendo seu texto:

“b. La continuada subordinación o dependencia del

trabajador respecto del empleador, que faculta a éste

para exigirle el cumplimiento de órdenes, en cualquier

momento, en cuanto al modo, tiempo o cantidad de

trabajo, e imponerle reglamentos, la cual debe

mantenerse por todo el tiempo de duración del contrato.

Todo ello sin que afecte el honor, la dignidad y los

derechos mínimos del trabajador en concordancia con

los tratados o convenios internacionales que sobre

derechos humanos relativos a la materia obliguen al

país, y”.

De acordo com o autor, o grande problema está na expressão

“mínimos”, pois entende que ao acrescentar esta palavra, há um retrocesso

em relação às conquistas históricas dos trabalhadores. Entende ele que o

legislador não pode reduzir a esfera de proteção apenas aos direitos

mínimos, sendo que deve-se impor como limite aos poderes do empregador

todos os direitos dos trabalhadores. No seu entender constituem os direitos

“não mínimos” os que emanam das demais fontes formais que não a lei,

248 Disponível em:

http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2000/c-386-00.htm (acesso em 20.3.2014)

203

como a convenção coletiva, laudo arbitral, pacto coletivo, contrato de

trabalho, estatutos sindicais, acordos e decisões unilaterais do empregador

que gerem direitos. Além de que, sustenta que tal alteração não está de

acordo com a Constituição, uma vez que esta reconhece a necessidade de

proteção aos trabalhadores, para equilibrar uma relação injusta por natureza.

O ministro do trabalho e da seguridade social proferiu parecer

em que sustenta a legitimidade de tal alteração. Diz que esta tinha como

finalidade aumentar os índices de emprego, no contexto de abertura

econômica. Salienta ainda que o papel da Constituição é justamente

consagrar os direitos mínimos, a partir dos quais devem se desenvolver as

relações sociais, inclusive nas relações de trabalho. Não há, portanto,

nenhuma inconstitucionalidade, em sua opinião.

A Corte decidiu que a expressão “mínimos” não é

inconstitucional, posto que não se trata de diminuir direitos conquistados.

Ainda assevera que:

“En consecuencia, el literal b) del artículo 23 del C.S.T.

no puede entenderse como una norma aislada ni del

ordenamiento jurídico superior, ni del conformado por

los tratados y convenios humanos del trabajo, ni de las

demás disposiciones pertenecientes al régimen legal

contenido en el referido código que regulan las

relaciones individuales y colectivas del trabajo, de las

cuales pueden derivarse derechos para el trabajador

que deben ser respetados por el empleador. Por

consiguiente, sin perjuicio del respeto de los derechos

mínimos mencionados, cuando el empleador ejercite los

poderes propios de la subordinación laboral esta

obligado a acatar los derechos de los trabajadores que

se encuentran reconocidos tanto en la Constitución,

como en las demás fuentes formales del derecho del

trabajo.”

204

Portanto, o argumento principal é que o artigo em apreço deve

ser interpretado dentro do contexto institucional do país, deve-se levar em

consideração todo o ordenamento, sendo que assim considerado, pode-se

demonstrar que quando se diz que os limites dos poderes inerentes ao

empregador nas relações de trabalho, estes são os direitos pertencentes aos

empregados. Estes direitos não podem ser considerados, portanto, em uma

interpretação sistemática, como sendo apenas aqueles positivados

formalmente, mas todos os provenientes de tratados de direitos humanos que

integrem o ordenamento jurídico, e todas as demais fontes de direitos no

âmbito do direito do trabalho.

Esta decisão é fundamental para o empreendimento aqui

proposto de propiciar uma compreensão correta do princípio da

proporcionalidade. Sua relevância não se deve muito aos argumentos

trazidos para se decidir sobre a constitucionalidade ou não do artigo atacado,

mas mais da discussão em si, ou seja, da importância do tema central que a

condiciona: como pode o direito conferir legitimidade à relação laboral?

Não pretendemos explicitar se o princípio da proporcionalidade

foi aplicado ou não e nem como teria sido tal aplicação. Não vamos discutir

também sobre o acerto ou erro da decisão, discorrendo sobre o que nela foi

dito. Vamos focar, por hora, exatamente no que não foi dito, intentando

explicitar o pano de fundo que conforma tanto o discurso do autor quanto o

da Corte, mostrando o quão próximos estão entre si, e quão distantes ficam

da questão essencial do que é o direito, partindo de uma compreensão

inautêntica deste, sendo que a consequência é a impossibilidade de se

aplicar corretamente o princípio da proporcionalidade ao partir dos

pressupostos assumidos.

O grande problema é que se busca decidir questão

fundamental, ou seja, quais os limites, o que conforma uma relação

empregatícia legítima. Do modo como procedem autor e Corte, podemos ver

que assumem um pressuposto comum: a legitimidade do direito do trabalho

reside em proporcionar as garantias trabalhistas que não podem ser violadas

205

em nenhuma hipótese. A questão então a ser resolvida é decidir sobre os

critérios e limites do que seriam os direitos mínimos.

A crítica que fazemos é a seguinte: é possível o direito

estabelecer, a priori, quais os direitos mínimos possuem os trabalhadores e,

ainda, estabelecer que estes nunca podem ceder? É possível o direito conter

as respostas antes dos problemas? O que permanece encoberto na

argumentação do autor e da Corte é que respondem afirmativamente a estas

questões. E, assim procedendo, ter-se-ia como consequência lógica que,

estabelecendo-se de antemão o que é o correto, o que é lícito, os limites das

condutas, podemos vislumbrar os parâmetros que possibilitam ver a correção

ou não de uma pretensão ou conduta apenas mostrando se se enquadra ou

não com o assumido.

O direito, assim compreendido, torna-se simples instrumento

com o qual busca-se resolver os conflitos de interesses. Isto se mostra

problemático, pois não possibilita decisões que abarquem todos os interesses

e pontos de vista envolvidos, tolhe-se o debate, a inclusão dos envolvidos em

nome de uma falaciosa neutralidade em que um interesse prevalece e o outro

é extinto. É esta (in)compreensão fundamental sobre o direito que acarreta,

como já explicitamos em outros casos abordados, uma aplicação puramente

retórica do princípio da proporcionalidade, em que este nada mais faz que

servir como álibi teórico para uma decisão subjetivista imposta a todos. O que

se vê, quando assumidos implicitamente os pressupostos aqui evidenciados,

é uma busca no ordenamento de qualquer texto normativo ou, na falta de

algum, a invocação de algum princípio, a partir dos quais seja possível

mostrar a licitude de uma conduta ou interesse, por estar de acordo com o

direito.

O princípio da proporcionalidade, nos moldes aqui propostos,

rompe com esta compreensão equivocada do direito, pois comprometida com

seu caráter ficcional, ou seja, parte-se da impossibilidade de o direito

propiciar respostas sem casos, antes destes. Uma conduta ou interesse não

pode ser avaliada somente em relação ao ordenamento jurídico,

206

independentemente da conduta ou interesse que a contradiz, pois assim ter-

se-á sempre uma decisão em que se escolhe qual deve prevalecer, sendo

que a outra será descartada. É por isso que os direitos, inclusive os

fundamentais, não são absolutos, o que não foi ponderado na decisão em

discussão. Este nos parece seria o caminho mais correto para se abordar o

assunto. Assim, apesar de se poder concordar que a expressão “mínimos”

não é inconstitucional, dever-se-ia explicitar que a legitimidade do exercício e

– o que é inerente – a restrição de outros, está atrelada na manutenção, no

máximo possível, dos direitos em conflito, ou seja, de modo que nenhum

possa ser aniquilado.

5.5 Situação 5 – Casos da Inconstitucionalidade na Colômbia Contra os

arts. 15 (parcial) e 156 (parcial) do Código Sustantivo del Trabajo

Vamos, então, analisar um caso em que um cidadão propõe

uma ação (expediente D-5310 e D-5321, sentença C-177/05) 249 para

contestar a constitucionalidade do artigo 16 do Código Sustantivo del Trabajo

da Colômbia. Seu texto é o seguinte:

“ART. 16.- Efecto. 1. Las normas sobre trabajo, por ser

de orden público producen efecto general inmediato, por

lo cual se aplican también a los contratos de trabajo que

estén vigentes o en curso en el momento en que dichas

normas empiecen a regir, pero no tienen efecto

retroactivo, esto es, no afectan situaciones definidas o

consumadas conforme a las leyes anteriores.

“2. Cuando una ley nueva establezca una prestación ya

reconocida espontáneamente o por convención o fallo

249 Disponível em:

http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2005/C-177-05.htm (acesso em 23.3.2014)

207

arbitrario por el patrono, se pagará la más favorable al

trabajador”.

Sustenta o autor que ao se aplicar as normas de trabalho de

modo que produzam efeito geral e imediato há desrespeito, caso a nova

norma seja prejudicial ao trabalhador, à Constituição, posto que esta não

poderia permitir um retrocesso em relação a direitos sociais, devendo

prevalecer a norma mais benéfica.

O problema jurídico a ser resolvido, de acordo com a própria

Corte, é saber se as novas normas que versam sobre as questões laborais

podem ter efeito imediato em todas as relações vigentes, devido ao seu

caráter público, ou apenas podem afetar estas se forem para benefício do

trabalhador, nunca podendo prejudicá-lo.

Invocando sua própria jurisprudência a Corte diz que a questão

passa por, primeiro, diferenciar os direitos adquiridos das expectativas de

direito, sendo que:

“A partir de la mencionada sentencia, la Corte ha

decidido que, en principio, los cambios en la ley laboral

se aplican a las relaciones de trabajo vigentes,

independientemente de si son favorables o

desfavorables para los intereses del trabajador, siempre

y cuando el trabajador no tenga ya un derecho adquirido

a que se aplique la vieja normatividad, por cuanto ya

había reunido los requisitos necesarios para poder

acceder al derecho cuya reglamentación fue

modificada.”

Podemos constatar que o raciocínio lógico construído é de que

somente quando se trata de direitos adquiridos, ou seja, direitos que passam

a integrar definitivamente o patrimônio do seu titular, tem-se um limite claro

para a atividade legislativa. Ou seja, o legislador tem que levar em

208

consideração tais direitos, mas pode frustrar meras expectativas de direitos,

não sendo estas óbice à sua atividade de prescrever regras para o convívio

social. Reconhecer a diferença entre direitos adquiridos e expectativas de

direito é essencial, na visão da Corte, para que se possa vislumbrar quais os

limites da discricionariedade do poder legislativo.

Esta discussão é tão essencial quanto a anterior, pois também

trata de uma questão fundamental, trata-se de decidir sobre questões

essenciais em relação ao direito, que vão condicionar sua compreensão e

toda sua aplicação subsequente. Muito além da decisão de

constitucionalidade em causa, interessa explicitar o que fundamenta tal

decisão, os pressupostos assumidos, especialmente porque, neste caso,

poderemos mostrar uma compreensão, pelo menos à primeira vista, correta

do direito, diferentemente da última decisão analisada e, especialmente,

como é fundamental para tal compreensão o princípio da proporcionalidade.

Primeiro devemos destacar que a interpretação oferecida até o

momento não está incorreta, mas estaria se parasse neste ponto em que

chegou. Se terminasse aí, não restaria diferença essencial entre ela e a

decisão anterior. O que poderíamos extrair das duas, como já fizemos em

relação à anterior, é que partem do pressuposto de que o ordenamento, em

si, contém as respostas para os conflitos que devem ser decididos, de modo

que qualquer decisão que se enquadre no ordenamento, ou no que diz sê-lo

o intérprete, estaria correta. O trabalho do juiz seria “escolher” qual interesse

considera deva prevalecer e, uma vez que consiga encontrar para ele uma

disposição normativa, sua decisão estaria fundamentada e, portanto, correta.

Já evidenciamos a incongruência e debilidade de se proceder

deste modo, ou seja, partindo de uma compreensão inautêntica do que é o

direito, especialmente onde se pretende afirmar um Estado Democrático de

Direito. Passamos a considerar agora outros argumentos trazidos na

presente decisão, que constituem, também, jurisprudência da própria Corte,

quando decidia um caso em que a alteração da lei frustraria expectativas de

209

trabalhadores que não tinham ainda adquirido um direito, mas estavam muito

próximos disso:

“Conforme al principio de proporcionalidad, el legislador

no puede transformar de manera arbitraria las

expectativas legítimas que tienen los trabajadores

respecto de las condiciones en las cuales aspiran a

recibir su pensión, como resultado de su trabajo. Se

estaría desconociendo la protección que recibe el

trabajo, como valor fundamental del Estado (C.N.

preámbulo, art. 1º), y como derecho-deber (C.N. art.

25). Por lo tanto, resultaría contrario a este principio de

proporcionalidad, y violatorio del reconocimiento

constitucional del trabajo, que quienes han cumplido con

el 75% o más del tiempo de trabajo necesario para

acceder a la pensión a la entrada en vigencia del

sistema de pensiones, conforme al artículo 151 de la

Ley 100 de 1993 (abril 1º de 1994), terminen perdiendo

las condiciones en las que aspiraban a recibir su

pensión”.

A Corte considera que mesmo se tratando apenas de uma

expectativa de direito, posto que não cumpridos ainda os requisitos

necessários para que estes se tornassem direitos adquiridos, a expectativa

se mostrara muito próxima de consolidar-se. Se ficasse ao alvedrio do

legislativo a possibilidade de frustrá-la, poder-se-ia falar em injustiça, sendo

que a Corte considera tal possibilidade desproporcional. O que deve ficar

claro neste caso é que se considera ser desproporcional piorar a situação de

quem se encontra muito próximo de atingir um status que lhe garantiria de

tais mudanças prejudiciais. Podemos vislumbrar aqui, então, ser aplicada

uma proporcionalidade. Mas o foi de modo correto?

Acreditamos que não. Apesar da argumentação mais

sofisticada, que avança muito mais nas questões abordadas e aprofunda as

210

discussões, podemos demonstrar como que os pressupostos assumidos

permanecem os mesmos. O pano de fundo que condiciona a discussão e,

portanto, limita as compreensões possíveis, permanece impensado. O

exercício hermenêutico desenvolvido pela Corte leva à conclusão de que a

desproporcionalidade é proveniente da ínfima quantidade de tempo que

separa a expectativa de direito de sua “aquisição”. Portanto, o pressuposto

permanece sendo de que, em regra, somente quando se trata de direito

adquirido a situação do empregado não pode ser alterada para prejudicá-lo.

Acredita-se poder encontrar respostas no mundo das ideias, as

quais podem ser acopladas, posteriormente, ao mundo dos fatos.

Para reforçar a crítica desenvolvida vamos recorrer à aplicação

do princípio da proporcionalidade feita pela Corte na decisão em apreço, em

que percorre seus subprincípios, a fim de que possamos deixar claro que a

proporcionalidade não é mero método de interpretação para aplicação do

direito, mas constitui uma postura do intérprete na busca de uma solução

legítima, a qual deve ser construída, e não escolhida, como se houvessem

várias respostas antes do caso. Assim procedeu a Corte:

“El anterior análisis permite concluir que las reformas laborales

que disminuyen protecciones alcanzadas por los trabajadores son

constitucionalmente problemáticas por cuanto pueden afectar el principio de

progresividad. Ellas podrían vulnerar la prohibición prima facie de que no

existan medidas regresivas en la protección de los derechos sociales. Por

ende, la libertad del Legislador al adelantar reformas laborales de este tipo

dista de ser plena, pues no sólo (i) no puede desconocer derechos adquiridos

sino que además (ii) debe respetar los principios constitucionales del trabajo

y (iii) las medidas deben estar justificadas, conforme al principio de

proporcionalidad. Esto significa que las autoridades políticas, y en particular

el Legislador, deben justificar que esas disminuciones en la protección

alcanzada frente a los derechos sociales, como el derecho al trabajo, fueron

cuidadosamente estudiadas y justificadas, y representan medidas adecuadas

211

y proporcionadas para alcanzar un propósito constitucional de particular

importancia.”

Não basta percorrer as três etapas referentes aos subprincípios

da proporcionalidade se parte-se de uma compreensão incorreta do que é o

direito. Isto fica claro nesta decisão em que se considera que o legislador

pode produzir leis prejudiciais aos trabalhadores desde que estas se mostrem

“medidas adequadas e proporcionais para alcançar um propósito

constitucional de particular importância”. Esta lógica não seria diferente para

os conflitos de interesse aos quais o direito deve dar uma resposta. O

problema é que não se consegue romper com a formalidade do direito, e o

exercício hermenêutico não passa de uma retórica que busca fundamentar

uma decisão subjetivista. O que só é possível se assumido, a priori, que

realmente existe “um propósito constitucional de particular importância”, o

que equivale a assumir que há direitos mais fundamentais que outros, ou

pelo menos que devem prevalecer quando em conflito. A decisão será

qualquer coisa, menos proporcional, pois descartará um direito ou interesse

para que outro prevaleça, como se fosse este mesmo o escopo do judiciário.

O princípio da proporcionalidade deve, pelo contrário, não

justificar a licitude de uma conduta ao promover sua correlação com o

ordenamento, mas deve, depois de se averiguar se tratar de interesse

legítimo, ainda confrontá-lo com interesses contrários. Não cabe ao juiz

escolher entre estes, desde que todos legítimos, mas construir uma decisão

em que sejam preservados ao máximo. Assim, não se pode dizer que uma lei

nova pode prejudicar expectativas de direitos por estas não conformarem,

ainda, direitos adquiridos, mas também não dá para considerar que estes

configurem limites intransponíveis, o que acabaria por criar condições em que

soluções de compromisso, ou seja, democráticas, seriam impossíveis.

Decidir-se que o retrocesso deve ser impossível em alguns

casos e decidir-se que será tolerável em outros, independentemente do caso

concreto, são posições que parecem contrárias, mas na verdade, por

possuírem o mesmo fundamento, têm como consequência a imposição de

212

um ato de força em que um pressuposto prevalece e impede o debate, o

confronto com outros pontos de vista. O direito é usado contra outros direitos.

Trata-se de paradoxo consequente de uma má compreensão do que é o

direito e o papel de seus intérpretes. Em nosso entender, tratando-se de

direitos adquiridos ou expectativas de direito, o caminho para a solução deve

ser o mesmo. Somente podem ser prejudicados se se mostrar que é

necessário que o seja, que o prejuízo seja o menor possível e que,

principalmente, independentemente da importância da medida que requer tal

prejuízo, seja para fomentar a criação de novos empregos ou para enfrentar

crises econômicas, o prejuízo não pode significar aniquilação de direitos nem

de expectativa legítima, já que não são aqueles absolutos nem esses

descartáveis.

6. Casos Práticos da Justiça Trabalhista Nacional e a Utilização

Equivocada dos Princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade

6.1 Situação 1 - Revista Íntima em Empregados

Procuraremos analisar criticamente duas decisões sobre o

mesmo tema, considerando que a revista íntima realizada em empregados

tem sido matéria constante nos Tribunais.

A primeira se refere ao processo Nº TST-RR-3588100-

54.2007.5.09.0015 de relatoria da Exa. Sra Ministra Maria de Assis Calsing,

na 4ª Turma, com julgamento ocorrido em 29/02/2012.

Neste caso, o empregado, vigilante que trabalhava numa

agência bancária, diariamente, além de passar pelo detector de metais

sempre que adentrava ao estabelecimento, ainda era submetido à revista

pessoal.

Tal revista pessoal ainda era filmada, bem como realizada na

presença de um segundo segurança.

213

Havia então, um detector de metais, uma revista pessoal que

era filmada, além da presença de um terceiro funcionário como expectador.

O I. Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região considerou

que ainda que sem contato físico, mas condicionando os empregados a

levantar a calça e a camisa nas condições acima assinaladas, tais revistas

ofenderiam a dignidade do trabalhador.

Asseverou ainda que a conduta da Reclamada para com seus

empregados, em relação aos quais deveria manter relação de confiança,

autoriza a conclusão de que havia presunção de que aqueles empregados

revistados poderiam cometer furtos.

Decidiu então o Regional da seguinte forma:

“Assim, considerando a gravidade do dano, a capacidade

econômica das reclamadas, o princípio da razoabilidade e tendo

como norte o fato de que o dano moral é acima de tudo

incomensurável, condeno a Reclamada ao pagamento de

indenização por dano moral no importe de R$ 20.000,00’.”

O Tribunal Superior do Trabalho, ao avaliar a decisão, disse que

o I. Regional considerou que a revista realizada, por si só, por seu caráter

abusivo e por colocar o empregado em situação vexatória, deveria ser

indenizada, porém, relatou que a questão deveria ser analisada à luz da

licitude da conduta de promover tais revistas nos funcionários. Ponderou

ainda que:

“...os direitos fundamentais, que se assentam na própria

Constituição da República, podem sofrer limitação quando

estiver em jogo a necessidade de se viabilizar o funcionamento

adequado de certas instituições – são as situações chamadas

de relações especiais de sujeição.”

214

Dito isto, descreveu o princípio da proporcionalidade e seus

subprincípios, donde concluiu que apenas sendo cada um deles obedecidos

é que se poderia proceder à limitação de direitos fundamentais.

Porém, apesar de descrever corretamente como deveria ser

aplicado o princípio da proporcionalidade, destacou:

“Necessário verificar, assim, a partir do quadro registrado pelo

Regional (portanto, dentro dos limites traçados pela Súmula 126

desta Corte), se o meio escolhido, isto é, a revista íntima

(solicitar que o empregado levantasse a camisa e as barras das

calças, sem contato físico), foi adequado para atingir o resultado

almejado. E a conclusão a que se chega é que sim, o

comportamento adotado mostrou-se adequado, sobretudo

porquanto consignado pela decisão recorrida que não eram

praticados excessos, uma vez que não havia contato físico, nem

eram adotados quaisquer procedimentos que fossem, por si

sós, constrangedores.Dessa feita, em respeito ao princípio da

proporcionalidade, e, porquanto constatado, a partir do quadro

fático retratado no acórdão regional, que as revistas praticadas

pela Reclamada tinham por finalidade apenas a preservação da

segurança do patrimônio da Empresa, e dos próprios

Empregados, tratando-se de comportamento adequado,

sobretudo porquanto consignado pela decisão recorrida que não

eram praticados excessos, uma vez que não havia contato

físico, nem eram adotados quaisquer procedimentos que

fossem, por si só, constrangedores, não se constata a prática

de ato ilícito por parte do Empregador, nos termos dos arts. 187

e 927 do CCB, sendo indevida a indenização por danos morais”.

O TST se referiu - como se observa - ao princípio da

proporcionalidade para reformar a decisão do Regional, afastando a

condenação imposta.

215

Não houve ainda demonstração explicita e de forma

suficientemente fundamentada que a conduta de revistar os empregados,

apesar de se mostrar aparentemente a mais adequada para a finalidade de

garantir o patrimônio do empregador – aos olhos do Julgador -, deveria ainda

se mostrar necessária e, mesmo assim, se ofendesse de modo a esvaziar

direito fundamental do empregado, deveria ser coibida e, portanto, passível

de indenização.

O TST até descreve os subprincípios da proporcionalidade e

ressalta sua aplicação, mas fica adstrito apenas à fase da adequação, sem

mostrar a necessidade da conduta adotada (revista dos funcionários), ou

seja, que não teria meio mais suave, e muito menos a fase que nos parece

mais relevante, qual seja: a proporcionalidade em sentido estrito, pois não

considerou se, em relação à outra parte, é preservada sua garantia

constitucional ainda que em medida menor em razão do caso concreto.

O segundo caso trata da revista íntima em agente de disciplina

de presídio. O processo tem como identificação o Nº PROCESSO Nº TST-

RR-28000-10.2009.5.11.0019 e também é de relatoria da Exa. Sra Min. Maria

de Assis Calsing, na 4ª Turma, com julgamento em 03/08/2011.

O contexto revela que o agente de disciplina era submetido a

revista íntima onde tinha de se desnudar, agachar três vezes e abrir a boca

botando a língua para fora; essa revista era feita em uma sala fechada,

perante dois colegas que deixavam o turno e era de pleno conhecimento seu

desde o curso preparatório para o ingresso na função; o próprio agente ao

deixar o turno também vistoriava os que entravam para lhe render.

Importante salientar que o detector de metais e aparelho raio-x que havia no

presídio não se prestavam a detectar a entrada de droga.

A questão que o TST coloca é se a pretexto da defesa da

segurança ou de um interesse coletivo, a intimidade de um indivíduo, direito

fundamental, pode ser afrontada na forma como acima foi exposta.

216

O Juízo de origem deferiu o pleito de indenização por danos

morais, no valor de R$10.269,20, em razão do procedimento de revista íntima

a que o empregado fora submetido, por entender que acarretou em desvalia

moral e social face ao constrangimento diário comprovado por meio de suas

testemunhas. Esta decisão foi reformada pelo Tribunal Regional, que

considerou prevalecer sobre os direitos fundamentais do agente penitenciário

o interesse público, e destacou o fato da necessidade de tal procedimento,

uma vez que:

“o detector de metal não consegue detectar droga quando

envolvida em massa de pão ou de pizza e introduzida no ânus

de uma pessoa; que no raio-x se detecta apenas a parte óssea

da pessoa ou se tiver metal; que este invólucro que mascara o

transporte de drogas no corpo humano pode ser confundido no

raio-x por alimentos e fezes”.

O Tribunal Superior do Trabalho, se escorando no mesmo

sentido delineado pelo Regional acenou no mesmo sentido partindo do

seguinte pressuposto:

“os direitos fundamentais, que se assentam na própria

Constituição da República, podem sofrer limitação quando

estiver em jogo a necessidade de se viabilizar o funcionamento

adequado de certas instituições – são as situações chamadas

de relações especiais de sujeição.”

Apesar de apontar as três etapas da aplicação do princípio da

proporcionalidade, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido

estrito, disse o Tribunal Superior do Trabalho:

“...é, portanto, o princípio da proporcionalidade que vai traçar a

legalidade ou não de determinada conduta quando estiver na

balança esta mesma conduta em oposição a um direito

fundamental individual.”

217

Em outro momento, discorre mais pormenorizadamente sobre o

princípio da proporcionalidade e seus subprincípios:

“Ainda segundo o autor dantes citado, estes critérios

correspondem às seguintes perguntas: a) o meio escolhido foi

adequado e pertinente para atingir o resultado almejado?; b) o

meio escolhido foi o “mais suave” ou o menos oneroso entre as

opções existentes no jogo?; c) o benefício alcançado com a

adoção da medida buscou preservar valores mais importantes

do que os protegidos pelo direito que a medida limitou? (op. cit.,

p. 376). Sendo afirmativas todas as respostas, será legítima a

limitação ao direito fundamental.”

Como nem o detector de metais nem o aparelho de raio-x

poderiam substituir a revista que era procedida, considerou-se que o meio

era adequado.

Quanto à sua necessidade reconheceu-se na decisão que:

“se poderia cogitar da existência de outros meios para se

detectar a presença de drogas na entrada dos presídios, como,

por exemplo, cães farejadores, câmaras de segurança e portal

detector de drogas e explosivos que acusam a presença de

substância entorpecente pela emanação do calor humano.

Entretanto, não há como se cogitar de que cão farejador

pudesse, pelo olfato, cheirar, no ânus de alguém, droga envolta

em pão ou pizza, em razão da presença de odores bem mais

fortes na localidade. Da mesma forma, as câmaras de

segurança não podem ser colocadas nos banheiros onde as

drogas assim transportadas são liberadas, até mesmo sob pena

de ferir, aí sim, a intimidade dos indivíduos. E com relação ao

portal detector de drogas pela emanação do calor humano, o

preço desta aparelhagem, infelizmente, a torna praticamente

inviável para os presídios brasileiros, os quais, como se pontuou

218

anteriormente, revelam situação caótica. Ademais, ainda estão

apenas em fase de teste pela polícia federal, como dá conta a

imprensa escrita.”

Cogita-se três diferentes meios alternativos ao procedimento

aplicado. Porém todos são refutados. Diz-se que:

“não há como se cogitar de que cão farejador pudesse, pelo

olfato, cheirar, no ânus de alguém, droga envolta em pão ou

pizza, em razão da presença de odores bem mais fortes na

localidade”; que as câmeras de segurança não poderiam ser

instaladas no banheiro, sob pena de ferir a intimidade dos

indivíduos; já em relação “ao portal detector de drogas pela

emanação do calor humano, o preço desta aparelhagem,

infelizmente, a torna praticamente inviável para os presídios

brasileiros”.

Queremos destacar que não basta, pela metodologia de

avaliação utilizada no presente trabalho afirmar não haver meios mais

suaves, nem mesmo listar alguns e, a partir de uma avaliação subjetiva,

refutá-los, quando a afirmativa em relação aos cães farejadores deveria ser

provada, e não apenas deduzida; quanto às câmeras no banheiro, faltou

explicitar porque seria mais atentatório à dignidade humana do que a revista

a que são submetidos os agentes (eles concordariam com essa afirmação?);

e quanto ao detector de drogas, a refutação se dá com base em um critério

econômico, mas também não se explicita a legitimidade de tal argumentação.

No tocante à terceira etapa, a proporcionalidade em sentido

estrito, considerou o TST que:

“a resposta a esta última indagação exsurge cristalina no

sentido afirmativo, porque o objetivo da revista era nada menos

do que garantir a segurança dos presídios, em benefício de toda

219

a população, inclusive dos que ali trabalham. A razão pública

aqui suplanta a limitação da intimidade do Autor.”

Esta conclusão só é possível a partir do pressuposto de que a

proporcionalidade em sentido estrito deveria responder à questão colocada: o

benefício alcançado pela revista íntima buscou preservar valores mais

importantes do que os protegidos pelo direito que tal medida limitou?

E, assim, decidiu o TST depois das ponderações sobre o

princípio da proporcionalidade que:

“não se divisa, no caso dos autos, violação do art. 1.º, III e IV,

da Constituição da República (princípios da dignidade da

pessoa humana e dos valores sociais do trabalho)”.

Trata-se de grande equívoco, pois a última fase é justamente

para garantir que nenhum dos direitos (fundamentais) em conflito seja

totalmente extinto, que ceda completamente ao outro. Isto é o que garante a

democracia. Trata-se da função de impor limite ao poder, o que sustenta a

função contramajoritária dos direitos fundamentais.

Portanto, dizer-se que o interesse público deve prevalecer sobre

o privado é um pressuposto falso, ilegítimo e impossível de se compatibilizar

com a democracia e a proporcionalidade. Os direitos fundamentais devem

servir justamente para que uma pessoa não tenha seus direitos (sua

dignidade) completamente aviltados frente a qualquer instituição, frente à

ordem, frente ao interesse público ou mesmo por questões econômicas.

O princípio da proporcionalidade não pode servir como um

instrumental à disposição de quem o aplica para compatibilizar determinada

conduta com o ordenamento, de modo que tal proceder, como já salientado,

somente poderia decidir por sua legalidade ou licitude. Ocorre que tal

princípio, além de propiciar esta análise, impele o órgão responsável pela

decisão a ir além, a confrontar tal conduta não apenas com o ordenamento

220

jurídico, mas com seus efeitos em relação a quem tenha, em função dela,

direitos (também fundamentados no mesmo ordenamento) aviltados.

Deve-se deixar claro, portanto, que tal princípio deve rechaçar

totalmente a possibilidade de um direito prevalecer e justificar a exclusão de

outro. Uma decisão correta, legítima, proporcional, é aquela em que há uma

solução de compromisso, em que cada direito cede até um ponto que não

possa ser ultrapassado.

6.2 Situação 2 – Entidades Sindicais e Multas Cominatórias

Trata-se de hipótese em que tanto o sindicato profissional como

as entidades sindicais patronais pugnam a exclusão das multas cominatórias

que lhes foram impostas em decorrência do não cumprimento da decisão

liminar que determinara a manutenção dos serviços mínimos. Processo nº

5440820125050000 544-08.2012.5.05.0000, relatoria do Exmo Sr.Ministro

Walmir Oliveira da Costa, Seção Especializada de Dissídios Coletivos,

julgamento em 12.8.2013.

O Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região declarou a

abusividade da greve, autorizou o desconto dos dias parados, fixou multa ao

sindicato profissional no valor de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais)

e aos sindicatos econômicos no valor de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil

reais). Apreciando as reivindicações dos trabalhadores, extinguiu o processo,

sem resolução de mérito, no tocante às cláusulas não econômicas, e deferiu

reajuste salarial de 7,5% (sete e meio por cento) e vale refeição no valor

unitário de R$ 11,22 (onze reais e vinte e dois centavos).

Disse a R. decisão:

“Em obediência aos princípios da proporcionalidade e da

razoabilidade, a multa por descumprimento de ordem judicial

(astreintes) deverá ser fixada pelo magistrado em consonância

com as peculiaridades de cada caso, tendo em conta a

221

capacidade econômica das partes, sob pena de torná-la

excessiva, implicando enriquecimento sem causa.”

A partir desta argumentação o Tribunal Superior do Trabalho

decidiu por reduzir a multa imposta ao sindicato dos trabalhadores, levando

em consideração seu porte, porém em momento algum explicita qual seria

esse porte, não apresenta um critério a partir do qual possa afirmar que a

multa imposta pelo Tribunal Regional do Trabalho era desproporcional.

Já a multa imposta aos sindicatos econômicos foi excluída,

posto que o Tribunal Superior do Trabalho considerou não ter ficado provado

nos autos a responsabilidade patronal pelo descumprimento da ordem judicial

nem que tenha contribuído para o não atendimento das necessidades

inadiáveis da comunidade, conforme artigos 9 e 11 da Lei nº 7.783/1989.

Quanto à multa imposta ao sindicato profissional, se o valor se

mostra absurdo, caso em que de plano é possível aferir sua ilegitimidade,

tratar-se-ia de afronta à razoabilidade. No tocante à proporcionalidade, é

necessário, ao declarar abusivo o valor estipulado, explicitar porque o seria,

explicitar qual o critério utilizado para se aferir a legitimidade de tal conclusão,

mostrando que o valor estipulado não serviria para coibir a ação que ensejou

a multa sem que, porém, não torne inviável seu pagamento pelo sindicato, o

que, na decisão do TST, por mais que esteja pressuposto, não foi explicitado.

Já a decisão de extinguir a multa imposta aos sindicatos

econômicos nos parece ainda mais carente de uma correta fundamentação.

Importante ressaltar que a Lei nº 7.783/1989 traz em nos artigos 9º e 11 o

seguinte:

“Art. 9º Durante a greve, o sindicato ou a comissão de

negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou

diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes

de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja

paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração

222

irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a

manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da

empresa quando da cessação do movimento

Parágrafo único. Não havendo acordo, é assegurado ao

empregador, enquanto perdurar a greve, o direito de contratar

diretamente os serviços necessários a que se refere este artigo.

Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os

empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum

acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços

indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da

comunidade.

Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade

aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a

sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.”

Importa chamar a atenção que a proporcionalidade,

especialmente em casos que envolvem o conflito de direitos fundamentais,

não pode ser utilizada como um instrumento ou mera técnica hermenêutica à

disposição do órgão julgador para dirimir dúvidas quanto à estipulação de

valores, como no caso para diminuir o valor da multa imposta ao sindicato

dos trabalhadores, ou para extinguir a multa imposta aos sindicatos

econômicos, valendo-se para tanto de confrontar as ações de cada parte com

(um)a lei, desconsiderando-se deliberada ou inconscientemente o caráter

político da decisão.

Fica claro que os artigos transcritos da Lei 7.783 de 1989

possibilitam, ao limitar o direito de greve, tanto ao empregador garantir suas

atividades, podendo contratar livremente os serviços não prestados, quanto à

comunidade a prestação mínima do serviço, se essencial, prejudicando-a o

mínimo possível. E, neste ultimo caso, a responsabilidade é tanto dos

empregados como dos empregadores, obrigados de comum acordo.

223

Toda esta dimensão, data venia, não foi levada em

consideração no presente caso avaliado pelo TST, que, portanto, deixa de

aplicar corretamente a proporcionalidade, cuja ideia consta da lei supracitada,

ou seja, resolver o conflito de modo a garantir o mínimo de cada direito em

tensão, além dos direitos de terceiros ou da coletividade que possam ser

aviltados.

Importante destacar que, apesar de o TST considerar não terem

os sindicatos econômicos contribuído para a não prestação do serviço no

mínimo exigido em decisão liminar, ao final, condena-os no tocante às

matérias que ensejaram a greve, salientando ainda que:

“Portanto, não foi o sindicato profissional que "deu causa ao

rompimento", mas os representantes da classe patronal que se

negaram a discutir a possibilidade de alteração da norma

coletiva, proclamando no processo negocial a validade e a

prevalência da cláusula 70ª da CCT 2011/2012.

Sendo assim, a pretensão dos suscitantes, ora recorrentes, de

que fossem examinadas em sede de dissídio coletivo outras

condições afora aquelas relativas ao reajuste salarial, aos

tíquetes de alimentação e ao plano de saúde beira à

deslealdade negocial e à litigância de má-fé.”

A questão é que, apesar de reconhecer que a atitude da classe

patronal beira à deslealdade negocial e à litigância de má-fé, e de demonstrar

que a Constituição confere à Justiça do Trabalho competência normativa

para decidir o conflito coletivo, observando que as empresas deixaram toda a

frota à disposição dos empregados para o serviço que:

“na hipótese em comento, conquanto os autos revelem

intransigência de ambas às partes quanto a forma de

cumprimento da liminar, como registrado na ata da audiência de

conciliação já mencionada, é certo que não há demonstração no

224

sentido de que o sindicato econômico impôs obstáculos ao

cumprimento da ordem judicial”.

Não há, portanto, ao que parece, a aplicação da

proporcionalidade de modo correto apontado pela doutrina, como até propicia

a lei, que, na verdade, não foi aplicada corretamente também. O conflito

político, ou seja, que envolve diretamente os direitos fundamentais, nem

mesmo foi salientado. Condena-se as atitudes patronais que ensejam a

greve, tanto que o TST mantém o deferimento do aumento real de 2,72%

(dois vírgula setenta e dois por cento); não se leva em consideração que a lei

estabelece o dever tanto dos empregados como do patrão de manter o

mínimo de serviços essenciais, e, mesmo assim, retira-se a multa imposta

aos sindicatos econômicos e diminui-se a multa imposta ao sindicato dos

trabalhadores.

O não-dito de tal decisão é o que preocupa. A possibilidade de

decidir a questão desmembrando-a e, então, decidir cada problema

pontualmente, tendo como parâmetro sua legalidade (invoca-se qualquer lei

que o prove) ou sua necessidade/possibilidade (invoca-se a jurisprudência da

Corte os problemas sociais, econômicos etc a serem evitados), acaba por

camuflar o monopólio da violência requerido pelo Estado e a impossibilidade

da política, ou seja, da participação efetiva de cada indivíduo de modo que

ninguém ou nenhuma classe possa ter seus direitos (e, especialmente, o

direito a ter direitos) extintos.

6.3 Situação 3 – Danos Morais e Proporcionalidade

Nesta decisão se aborda uma questão (processo nº TST-RR-

393-13.2010.5.02.0221, relatoria do Exmo Sr. Ministro Alexandre de Souza

Agra Belmonte, 3ª Turma, julgamento 26.6.2013).

Referida questão diz respeito ao fato de que a despeito de se

reconhecer que:

225

“O TST deve exercer um controle sobre o quantum fixado nas

instâncias ordinárias, em atenção proporcionalidade prevista no

artigo 5º, V, da CF, esta Corte vê-se impedida de decidir a

questão quando na mesma não tiver sido, quanto aos fatos,

alvo de apreciação do TRT, na hipótese do Tribunal “a quo” não

ter trazido elementos balizadores para tanto, como “o capital

social da empresa, a profissão da autora ou sua expectativa

salarial; e estes elementos não foram disponibilizados no

decisum”.

O TST, fundamentando sua decisão na súmula 126 (Incabível o

recurso de revista ou de embargos (arts. 896 e 894, "b", da CLT) para

reexame de fatos e provas), diz que o reexame do conjunto fático-probatório

é defeso em seus julgamentos.

A questão é bastante interessante.

Numa primeira análise, se trata de proporcionalidade entre dano

e conduta para fixação de uma reparação (como apresentamos a diferença

no presente trabalho), e não propriamente de aplicação do princípio da

proporcionalidade entre conflito de garantias/direitos fundamentais.

Contudo, se bem observado, verifica-se que a garantia dessa

proporcionalidade encontra-se no rol de direitos e garantias fundamentais do

Texto Constitucional, ou seja, sua defesa, pode e deve ser arguida pela via

do princípio da proporcionalidade aqui estudado desde que exista colisão

com outro direito fundamental.

Aqui muitos choques entre garantias e direitos fundamentais no

nível do texto maior podem ocorrer, sendo possível a avaliação através dos

critérios dos subprincípios da proporcionalidade, pela fixação ou não da

indenização e de sua extensão.

Isso porque dita o artigo 5º, V da CF:

226

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

Mas há um choque de garantias Constitucionais extremamente

relevantes num único inciso.

Observe-se que ao mesmo tempo em que se têm uma garantia

fundamental expressa de um direito de resposta e indenização, seja essa

moral ou material, no mesmo inciso constitucional, se resguarda outra

garantia de igual quilate para quem responde a essa violação, que se dá pela

resposta proporcional ao agravo que essa cometeu.

Algumas questões nascem obrigatoriamente da situação posta,

sendo elas:1) Como se avalia tal questão sem observar os fatos diretamente?

2) Como se avalia a questão posta a um Tribunal que possui o dever de velar

pela Constituição sem avançar para o entendimento de que a norma não é o

texto, mas se forma no caso concreto? O que se chama no Acórdão de tese

não seriam os próprios fatos?

Nesse sentido, duas reflexões se sobrepõem as questões acima

realizadas: 1) ou o Tribunal Superior do Trabalho está a adotar, ainda que

sob outra rubrica, ainda de natureza positivista, a teoria da proporcionalidade;

ou o Tribunal Superior do Trabalho no caso de indenização permite a invasão

no terreno dos fatos, pois outro raciocínio não é passível de enquadramento

na nossa ótica.

No caso do Acórdão aqui apreciado, nos parece que a ausência

de pré-questionamento do tema – ainda que no terreno dos fatos, chamado

de tese – não foi invocado, atraindo o respeito pelo TST da inércia de

jurisdição.

Isto está claro quando o Acórdão destaca que:

“como se vê, é irrefragável a ocorrência de ilícito e dano, mas

não há no acórdão recorrido outros elementos que autorizem o

227

arbitramento de novo valor à indenização. Para se avaliar que o

valor fixado é desproporcional ou desarrazoado seria

imprescindível a presença dessas circunstâncias fáticas”.

6.4 Situação 4 – Valor Indenizatório e Súmula 126 TST

Esta decisão (AIRR 4104720115020372 410-

47.2011.5.02.0372, relatoria de Exmo Sr. Ministro Maurício Godinho Delgado,

3ª turma julgamento em 25.9.2013) apresenta questões muito próximas das

examinadas na decisão anterior, posto que trata da quantificação do valor

indenizatório e da aplicação da súmula 126 do TST, que (res)suscita a

divisão questão de fato-questão de direito.

No tocante aos danos morais, assim se posicionou o TST

através do R. Acórdão:

“A lacuna legislativa na seara laboral quanto aos critérios para

fixação leva o julgador a lançar mão do princípio da

razoabilidade, cujo corolário é o princípio da proporcionalidade,

pelo qual se estabelece a relação de equivalência entre a

gravidade da lesão e o valor monetário da indenização imposta,

de modo que possa propiciar a certeza de que o ato ofensor

não fique impune e também para que possa servir de

desestímulo a práticas inadequadas aos parâmetros da lei.”

Este posicionamento mostra, com todo respeito, uma

aproximação que não nos parece ser legítima entre os princípios da

razoabilidade e o da proporcionalidade, em razão da dificuldade efetiva de

aplicação e reconhecimento dos respectivos princípios.

Como já antedito, o princípio chamado hoje de razoabilidade,

simplesmente teve origem com a denominação de princípio da

228

irrazoabilidade, ou seja, aos olhos de qualquer um, o caso é absurdo,

irrazoável; Já o princípio da proporcionalidade enfrenta choque de garantias e

direitos fundamentais prometidos a cada cidadão pelo texto Constitucional,

com avaliação de maior preponderância de uma garantia em face da outra,

sem que a vencida seja completamente abandonada, no caso concreto.

Na parte final do Acórdão, não obstante não faça referência

específica ao princípio da proporcionalidade relata que:

“pelo qual se estabelece a relação de equivalência

entre a gravidade da lesão e o valor monetário da

indenização imposta, de modo que possa propiciar a

certeza de que o ato ofensor não fique impune e

também para que possa servir de desestímulo a

práticas inadequadas aos parâmetros da lei”.

Aqui, demonstrado o equilíbrio que é propiciado pelo princípio

da proporcionalidade, contudo, em razão do não conhecimento do mérito do

recurso por aplicação da Súmula 126 do TST, não se observa a avaliação

dos subprincípios para a fixação ou não do dano, o que na verdade acabaria

por revelar, com todo respeito, uma decisão fundamentada no Juízo da

consciência, o que não é admitido pela Carta Constitucional de 1988.

No que diz respeito à súmula 126 do TST, o Acórdão assim

dispõe:

“Ressalte-se que as vias recursais extraordinárias para

os tribunais superiores (STF, STJ, TST) não traduzem

terceiro grau de jurisdição; existem para assegurar a

imperatividade da ordem jurídica constitucional e

federal, visando à uniformização jurisprudencial na

Federação. Por isso seu acesso é notoriamente restrito,

não permitindo cognição ampla.”

229

Como já salientado, data venia, tal posicionamento é

completamente ilegítimo, pois além de se pautar numa polarização

impossível (questão de fato-questão de direito), numa concepção de norma já

superada, e tem como pressuposto a existência de uma ordem jurídica que

só pode ser mantida, coerentemente, se lhes couber o monopólio de dizer o

que cabe e não cabe, atraindo mais uma vez o Juízo da consciência.

Com respeito a todos os esforços do Tribunal Superior do

Trabalho, a nós não parece ser essa a Garantia Constitucional que

possuímos, e nem a que esperamos nessa quadra.

6.5 Situação 5 – Formalidades Legais e Proporcionalidade

O cerne da controvérsia na presente situação em destaque,

está em saber se poderia a empresa reclamada, após o recurso, em sede de

embargos de declaração, comprovar através de página do Diário Oficial a

irregularidade da data da publicação certificada nos autos, o que tornaria seu

apelo tempestivo (Processo RR 942001920035150109 94200-

19.2003.5.15.0109, relatoria do Exmo Sr.Ministro Guilherme Augusto Caputo

Bastos, 2ª Turma, julgamento 31.8.2011)

Na Origem o Tribunal Regional da 15ª Região não conheceu do

recurso ordinário da reclamada empresa por entendê-lo intempestivo.

Opostos embargos de declaração, a egrégia Corte Regional negou-lhes

provimento.

A parte teve conhecimento da publicação da decisão em

28/09/2006, conforme consta da folha do diário oficial colacionada, sendo

que, após recorrer para o TST, esse se posicionou no sentido de destacar

que não é razoável exigir-lhe que se precavesse à eventual declaração de

intempestividade causada por erro na certidão judicial, erro esse que,

inclusive, é atribuível ao próprio Poder Judiciário. E assim justifica.

230

“A contemporânea leitura processual deve-se dar

através da ótica constitucional, que assegura ao

jurisdicionado, entre outros, o direito ao devido processo

legal. Tal princípio, em sua acepção substancial, limita a

visão formalista do processo e exige que o julgador se

paute, ao proferir suas decisões, pelos princípios da

razoabilidade e proporcionalidade, não observados, a

meu ver, no caso”.

Apesar de não explicitar a proporcionalidade e, especialmente,

não diferenciá-la da razoabilidade, ambos os princípios são citados como

fundamento. Importante ressaltar que, no mérito, estamos absolutamente de

acordo com a decisão, pois mesmo sem enfrentar a colisão das garantias do

acesso a justiça, direito de defesa, devido processo legal ou mesmo de uma

interpretação conforme do texto infraconstitucional, o entendimento já se

mostra mais avançado, pois a parte teve seu recurso não conhecido por duas

vezes, tendo que chegar ao TST para demonstrar um erro tão banal.

6.6 Situação 6 – Norma Coletiva, Horas Extras e Proporcionalidade

Foi ajustado por meio de norma coletiva o pagamento de 45

(quarenta e cinco) minutos diários a título de horas in itinere, a despeito do

fato de que o tempo verdadeiramente gasto pelo reclamante nos percursos

de ida e volta ao trabalho era de duas horas, havendo flagrante disparidade

entre o tempo de percurso efetivamente utilizado pelo trabalhador para

chegar a seu local de trabalho e aquele fixado pela norma coletiva (Processo

nº TST-RR-2388-25.2011.5.03.0148, relatoria da Exa Sra. Ministra Maria das

Graças Silvany Dourado Laranjeira, 2ª turma, julgamento em 24.4.2013)

O Tribunal do Trabalho da 3ª Região deu provimento ao recurso

ordinário interposto pelo reclamante, para aumentar os limites das horas in

itinere que foram estabelecidos por meio de norma coletiva.

231

No entendimento do relator, referida cláusula constitui:

“renúncia pura e simples à parte do direito as horas itinerantes, sem que a

reclamada tenha oferecido qualquer contraprestação específica, não se

constituindo em uma negociação equilibrada”

Não obstante o inciso XXVI do artigo 7º da CR/88 - reconheça a

validade dos acordos e convenções coletivas.

Porém, diz ele que tal situação:

“fere os limites do bom senso e afronta os princípios da

primazia da realidade e da razoabilidade, sendo certo

que: Tal cláusula é francamente lesiva ao trabalhador,

pois viola o disposto no § 2º do art. 58 da CLT,

acrescentado pela Lei n. 10.243/2001, em evidente

renúncia de direitos, sendo nula de pleno direito,

porquanto levada a efeito com a firma intenção de

fraudar ou desvirtuar norma trabalhista (art. 9º da CLT).”

No TST a decisão foi mantida, sendo que se considerou ser

princípio basilar da nossa Constituição Federal a proteção dos direitos

humanos, o qual alberga a proibição do retrocesso social. E, de acordo com

este princípio:

“uma vez reconhecidos, os direitos fundamentais, entre os

quais se insere o direito ao trabalho justo, adequado e não

prejudicial à vida e saúde do trabalhador e aos direitos sociais

laborais, não podem ser eles suprimidos ou diminuídos.”

Assim, observando-se a técnica da “ponderação de interesses e

considerando o princípio da proporcionalidade”, não há que se falar, no

entender do TST, em ofensa do art. 7º, XXVI, da Constituição Federal.

232

A proporcionalidade é usada como meio de fundamentação da

decisão que, apesar de parecer correta no mérito, não me parece quanto à

fundamentação.

Não se explicita as etapas da proporcionalidade de modo

correto, pois apesar de considerar que havia “renúncia pura e simples à parte

do direito as horas itinerantes, sem que a reclamada tenha oferecido

qualquer contraprestação específica, não se constituindo em uma negociação

equilibrada”, logo depois parte de pressupostos que não são verídicos, data

venia, como a afirmação de que “direitos fundamentais não podem ser

suprimidos ou diminuídos”. O principal argumento utilizado é o princípio da

proibição de retrocesso, o que evidencia partir-se do pressuposto de que os

direitos fundamentais são absolutos e existem “em si mesmos”, e não apenas

em conflito, no caso concreto.

Diz ainda que: “houve afronta os princípios da primazia da

realidade e da razoabilidade”.

O fato de não se proceder às etapas da proporcionalidade e não

se proceder a uma argumentação mais exaustiva é muito prejudicial nesse

tipo de julgamento, permissa venia, mesmo que no mérito possa estar na

visão de uns ou de outros correto, pois a impressão que fica, como na

maioria dos julgados, é que o papel do juiz é escolher qual direito deve

prevalecer, qual deve ser garantido e qual deve/pode ser afastado, o que é

totalmente contrário à proporcionalidade de modo que esta se preste a

efetivar o Estado Democrático de Direito.

6.7 Situação 7 – Adicional de Periculosidade, Norma Coletiva e

Proporcionalidade

Esta decisão é bastante interessante e frequenta bastante os

tribunais. O Tribunal Regional do Trabalho decidiu como válida a redução do

233

adicional de periculosidade por meio de negociação coletiva. Já o Tribunal

Superior do Trabalho reformou o Acórdão, com o argumento de que se trata

de direito que não pode ser flexibilizado por meio de normas coletivas, por

constituir medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantida no

art. 193, § 1.º, da CLT, resultando desse entendimento não ser possível a

fixação de percentual inferior ao legal (Processo nº TST-RR-43500-

54.2009.5.02.0056, relatoria da Exa Sra. Ministra Maria de Assis Calsing, 4ª

Turma, julgamento em 18.9.2013)

Em conflito temos o direito a higiene, saúde e segurança

(constantes no rol de direitos fundamentais), sem entrar no mérito da

impossibilidade da saúde, higiene e segurança do empregado poderem ou

não ser “monetarizadas” por meio de criação de adicionais, pois questão

afeta a outra discussão, mas foi a solução à época encontrada pelo

legislador; e de outro lado, temos outro direito, o direito também fundamental,

relativo ao reconhecimento constitucional dos instrumentos coletivos de

trabalho firmados entre os entes sindicais.

Aqui, como já destacamos no presente estudo, não há que se

falar em prevalência da vontade coletiva em detrimento da vontade de um

cidadão, pois a aplicação do princípio da proporcionalidade também possui

como cerne ser contramajoritária.

Em nenhuma das decisões, seja do Tribunal Regional seja do

Tribunal Superior, fala-se em proporcionalidade, não obstante seja

escancarado o conflito entre os direitos fundamentais.

Porém, pensamos que esta seria imprescindível para uma

decisão fundamentada, inclusive para atender o artigo 93, inciso IX da Carta

de 1988.

Poderia o Tribunal Superior do Trabalho decidir, como se

legislando estivesse, e fixar a base de quais matérias podem ou não ser

transacionadas em negociações coletivas sem observar o choque entre os

234

direitos fundamentais? Se não há direito absoluto, nem mesmo os direitos

fundamentais, como poderia ser admitida tal postura? Não haveria na

hipótese uma espécie de “engessamento” da matéria, com decisão

puramente no que se acha certo ou errado, portanto, impedindo a aplicação

da proporcionalidade para se chegar a respostas constitucionalmente

corretas?

Nas duas decisões diz-se aplicar a Constituição, sendo que de

acordo com o Regional, esta garante a validade das negociações coletivas,

enquanto que no entender do TST a Constituição não permite negociação

que envolva direito que não pode ser flexibilizado. Fica patente como uma

decisão que envolve o conflito de direitos fundamentais não se legitima a não

ser por meio do princípio da proporcionalidade. As duas decisões se

fundamentam em premissas corretas, mas que, por desconsiderarem a

tensão existente, a qual deve ser mantida de modo que nenhuma das partes

ceda em relação à outra e que lhes seja garantida a máxima eficácia de seus

direitos, deixa encoberto o pano de fundo político a ser resolvido.

Concordamos que as negociações coletivas devem ser

reconhecidas, e também que há casos em que elas devam ser

desconsideradas ou sofrer limitações, ou seja, as duas premissas são

possíveis, e por isso mesmo, já fica evidente a ilegitimidade de se considerar

uma em detrimento da outra. E, ao se considerar ambas, deve se valer do

princípio da proporcionalidade, a partir do qual podemos vislumbrar os casos

em que o valor estipulado em lei poderia ser reduzido em uma negociação

coletiva, sendo que esta também teria que se mostrar proporcional, ou seja,

que a redução se mostrasse necessária, adequada e que, no caso concreto,

fosse o modo de privilegiar ao máximo os direitos fundamentais em conflito.

235

6.8 Situação 8 – Limites de Jornada e Princípio da Proporcionalidade

O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Processo nº

TST-ARR-47-77.2010.5.04.0004, relatoria do Exmo Sr. Ministro Guilherme

Augusto Caputo Bastos, 5ª Turma, julgamento em 12.6.2013).

Limitou a jornada de trabalho, posto que desconsiderou os

cartões de ponto apresentados, visto que continham marcação britânica dos

horários, conforme a Súmula 338, III (Os cartões de ponto que demonstram

horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova,

invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do

empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir.

(ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003). Porém, não adota a integralidade

da jornada trazida pelo empregado, expondo que estaria obrigado a tanto, já

que:

“O magistrado apenas aplicou, em sua decisão, os

princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, ao

que está autorizado. Eventual insatisfação com os

limites da jornada deveriam ter sido impugnados

diretamente com dispositivos pertinentes.”

Diz-se que na decisão foram aplicados os princípios da

proporcionalidade e da razoabilidade, sendo que em nenhum momento foi

demonstrada tal aplicação, muito menos a diferenciação entre estes

princípios.

Até possível vislumbrar certa proporcionalidade na decisão,

posto que ao se desconsiderar os cartões de ponto devido às marcações

britânicas, o que indica não representarem a realidade, não acatou

integralmente à jornada indicada pelo reclamante.

Apenas faltou explicitar e desenvolver melhor a

proporcionalidade.

236

Em outra questão deste julgamento, o Tribunal Regional do

Trabalho da 4ª Região decidiu pela aplicação do piso salarial regional, para

cálculo do adicional de insalubridade.

Acontece que o TST reformou esta decisão, com o fundamento

de que a Súmula Vinculante número 4 do STF que diz ser inconstitucional a

utilização do salário mínimo como indexador de base de cálculo de vantagem

de servidor público ou de empregado, tratando a matéria de forma genérica,

ou seja, não elegeu o salário ou a remuneração do trabalhador a ser utilizada

para a base de cálculo relativa ao adicional de insalubridade. Porém, apesar

de reconhecer tal inconstitucionalidade, a parte final da Súmula Vinculante nº

4 do STF vedou a substituição desse parâmetro por decisão judicial, razão

pela qual, outra não pode ser a solução da controvérsia senão a permanência

da utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de

insalubridade, ressalvada a hipótese de salário profissional strictu sensu, até

a edição de Lei dispondo em outro sentido ou até que as categorias

interessadas se componham em negociação coletiva para estabelecer a base

de cálculo que incidirá sobre o adicional em questão.

O Tribunal Pleno desta Corte chegou a editar a Resolução nº

148/2008, modificando a redação da Súmula nº 228 e cancelando a Súmula

nº 17, na tentativa de ajustar o entendimento da Casa ao teor da Súmula

Vinculante nº 4 do STF.

Todavia, no dia 15/7/2008, o Ministro Presidente do Supremo

Tribunal Federal concedeu liminar nos autos da Reclamação nº 6.266/DF,

ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria - CNI, suspendendo a

aplicação da nova redação da Súmula nº 228, na parte em que permite a

utilização do salário básico para calcular o adicional de insalubridade.

Neste sentido a decisão do STF:

"(...) Com efeito, no julgamento que deu origem à

mencionada Súmula Vinculante nº 4 (RE 595.714/SP,

237

Rel. Min. Cármen Lúcia, Sessão de 30.4.2008 -

Informativo nº 510/STF), esta Corte entendeu que o

adicional de insalubridade deve continuar sendo

calculado com base no salário mínimo, enquanto não

superada a inconstitucionalidade por meio de lei ou

convenção coletiva. Dessa forma, com base no que

ficou decidido no RE 565.714/SP e ficado na Súmula

Vinculante nº 4, este Tribunal entendeu que não é

possível a substituição do salário mínimo, seja como

base de cálculo, seja como indexador, antes da edição

de lei ou celebração de convenção coletiva que regule o

adicional de insalubridade. Logo, à primeira vista, a

nova redação estabelecida para a Súmula nº 228/TST

revela aplicação indevida da Súmula Vinculante nº 4,

porquanto permite a substituição do salário mínimo pelo

salário básico no cálculo do adicional de insalubridade

sem base normativa".

Seguindo a decisão do STF, ao manter o salário mínimo como

base de cálculo, apesar de reconhecida sua inconstitucionalidade, ressalta o

TST que:

“a solução “importou na observância do princípio da

segurança jurídica, com o fim de não serem

surpreendidas as partes com um parâmetro para cálculo

do adicional de insalubridade, sem que lei assim

disponha.”

No tocante ao critério a ser utilizado para cálculo do adicional de

insalubridade me parece que a decisão do TST, que reformou a do TRT,

mostra-se incorreta, ao contrário desta.

A fundamentação baseou-se em uma decisão e uma súmula

vinculante do STF, que dizem que apesar de a CF proibir usar-se como

238

critério o salário mínimo, o mesmo deve continuar sendo usado até que haja

lei ordinária regulamentando a questão.

Tal decisão não me parece proporcional. Privilegia a “segurança

jurídica” e a “proibição de surpresa”, quando na verdade parece haver é uma

negligência quanto a direitos fundamentais dos trabalhadores nestas

condições, o que só poderia ter ocorrido com a demonstração da

proporcionalidade, o que não houve no caso.

Sem falar que tal fundamentação parece guardar relação com a

concepção de normas constitucionais programáticas, como se a CF, apesar

de prever expressamente algo (no caso, que o salário mínimo não pode ser

utilizado como critério), não pode ser aplicada diretamente. Tais modos de

compreender o Direito e a CF me parecem não consonantes com o Estado

Democrático de Direito.

Se é inconstitucional utilizar como critério o salário mínimo, uma

decisão que pretendesse por sua utilização, além de se poder se dar apenas

em um caso concreto, deveria explicitar porque tal decisão seria legítima, ou

seja, a partir da proporcionalidade, porque seria um meio necessário e

adequado para que sua aplicação não se mostrasse pior que sua não

aplicação, o que quer dizer que protegeria melhor direito(s) fundamental(is).

Interessante notar o forte cunho político – paradoxal - de uma

decisão que proíbe o magistrado de resolver um caso concreto conforme

norma constitucional uma vez que, ao aplicá-la, estaria legislando, sendo que

a Corte, ao criar uma Súmula com força de lei, por ser vinculante, acaba por

editar uma norma que desaplica a própria Constituição.

239

6.9 Situação 9 – Condições Mínimas de Higiene e Danos Morais

No presente caso (Processo nº TST-RR-1170-

65.2010.5.09.0459, relatoria do Exmo. Sr. Ministro Guilherme Augusto

Caputo Bastos, 5ª Turma, julgamento em 6.2.2013).

O reclamante laborou para o primeiro reclamado no período de

01.04.2009 a 16.11.2009, nas atividades de corte de cana de açúcar,

recebendo salários de R$ 666,00 ao mês. Ressaltou o Tribunal Regional do

Trabalho da 9ª Região que no desempenho de suas funções o reclamante

não dispunha de condições mínimas de higiene, ante a inexistência de

instalações sanitárias no local de trabalho, o que evidencia o

descumprimento das normas de saúde e higiene do trabalho. Em razão

disso, considerando a condição econômica do primeiro reclamado e a

gravidade da situação ofensiva a que submetida o reclamante, majorou a

compensação por danos morais para o importe de R$ 1.200,00 (um mil e

duzentos reais).

O TST optou por manter a decisão, sendo que:

“Considerando-se, ainda, a situação econômica do

reclamante e o curto período contratual (7 meses e 15

dias), bem assim a função pedagógica da condenação,

tem-se que o valor arbitrado mostra-se consonante com

os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Afasta-se, pois, a alegada violação dos artigos 5º, V, da

Constituição Federal e 944 do CC.”

Esta decisão se parece em muito com a maioria daquelas que

tem por objeto quantificar o valor de dano moral. Repete as mesmas linhas,

sempre buscando uma equivalência entre a condição de empregado e

empregador, de modo a não enriquecer o primeiro nem quebrar o segundo,

sem esquecer-se do caráter educativo.

240

Porém o detalhe que nos chama a atenção, para além do fato

de se propagar viger entre nós o sistema aberto, no qual o juiz pode escolher

subjetivamente o valor a atender tais requisitos.

Apesar de se alegar ter decidido com base na

proporcionalidade e razoabilidade, fica evidente sequer a diferenciação entre

estes dois princípios, e que, neste caso, torna evidente os prejuízos

decorrentes, pois a parte fica adstrita a um Juízo de valor pessoal e não

constitucional.

A nosso ver, o fato da inexistência de instalações sanitárias no

local de trabalho constituir um fato absurdo na presente quadra, uma afronta

temerária contra a dignidade humana, trata-se, portanto, de atitude que não

passa nem no exame da razoabilidade.

Diante disso, nos parece que a proporcionalidade usada para

justificar o valor da indenização se mostra distante da evolução do julgado.

Diante de fato tão grave à dignidade humana, nem sequer

razoável, o valor se mostra extremamente módico em razão da conduta do

empregador, bem como inexplicável. Utiliza-se do princípio da

proporcionalidade como mero instrumento retórico para quantificar o valor

indenizatório a um dano causado a um empregado, como se este fosse

apenas um dano comum.

Evidente que não se trata de qualquer dano. A

proporcionalidade deveria servir muito mais para explicitar o quão absurda é

a condição de trabalho em que inexiste instalações sanitárias.

A dignidade do empregado é completamente aviltada, pelo fato

de receber um tratamento completamente díspar com o que se espera

receber qualquer ser humano. Assim, quantificar a indenização referente ao

dano, utilizando-se como critérios a condição de quem causou o dano e de

241

quem o sofreu, sendo que se trata, obviamente, de analisar as condições

econômicas de cada um, se mostra totalmente inadequada no presente caso.

Sem falar que, a pretexto de evitar o enriquecimento ilícito de

quem sofreu o dano (que não é objeto do estudo), estipula-se uma

indenização módica para um ato em que não houve simplesmente um dano à

pessoa, mas esta foi negada sua existência enquanto pessoa, enquanto ser

humano que merece condições minimamente higiênicas no local de trabalho.

7. Súmulas do TST e a proporcionalidade

Dentro da metodologia apresentada no presente estudo,

observamos que algumas Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho acabam

por destoar da efetiva aplicação do princípio da proporcionalidade.

Visando exemplificar, tendo em vista que não é objetivo do

presente trabalho avaliar a totalidade das Súmulas, destacamos três, que a

nós parecem muito revelar quanto à inadequação, permissa venia, da

aplicação.

7.1 Súmula 369 do TST

A Súmula 369 do Tribunal Superior do Trabalho possui a

seguinte redação:

Súmula nº 369 do TST

DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA

(redação do item I alterada na sessão do Tribunal

Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012,

DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012

242

I - É assegurada a estabilidade provisória ao empregado

dirigente sindical, ainda que a comunicação do registro

da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada

fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da CLT, desde

que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra

na vigência do contrato de trabalho.

II - O art. 522 da CLT foi recepcionado pela Constituição

Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade a

que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes

sindicais e igual número de suplentes.

III - O empregado de categoria diferenciada eleito

dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na

empresa atividade pertinente à categoria profissional do

sindicato para o qual foi eleito dirigente.

IV - Havendo extinção da atividade empresarial no

âmbito da base territorial do sindicato, não há razão

para subsistir a estabilidade.

V - O registro da candidatura do empregado a cargo de

dirigente sindical durante o período de aviso prévio,

ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade,

visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da

Consolidação das Leis do Trabalho.

No tocante a proporcionalidade, objeto do nosso trabalho, a

preocupação a sua não aplicação adere aos termos do inciso II de referida

Súmula, que limitou a 7 (sete) o número de dirigentes e a 7 (sete) suplentes

no que se refere a estabilidade.

Com todo respeito que é merecedor o Tribunal Superior do

Trabalho, nos parece que referida Súmula não poderia ser editada nesses

243

termos, não obstante se compreenda a ideia de pacificação de conflitos sobre

o tema que se apresenta naquela Corte há longa data.

Sustentamos referida posição tendo em vista que não há, data

venia, como se reconhecer a recepção constitucional do artigo 522 da CLT

que dispõe ser limitado ao número de 7 (sete) o número de diretores do

sindicato, tendo em vista que se trata não de recepção, pois a interpretação

conforme já afastaria a aplicabilidade do artigo, mas sim, de colisão de

direitos fundamentais, que apenas no caso concreto poderia ser solucionada

pelos Tribunais.

Ressaltam referidos incisos do artigo 8º da Constituição

Federal:

“I- a lei não poderá exigir autorização do Estado para a

fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão

competente, vedadas ao Poder Público a interferência e

a intervenção na organização sindical”

“VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado

a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou

representação sindical e, se eleito, ainda que suplente,

até um ano após o final do mandato, salvo se cometer

falta grave nos termos da lei”

Diz o artigo 522 da CLT:

“Art. 522. A administração do sindicato será exercida

por uma diretoria constituída no máximo de sete e no

mínimo de três membros e de um Conselho Fiscal

composto de três membros, eleitos esses órgãos pela

Assembléia Geral”.

244

Por primeiro diga-se que o texto político de 1988

garante a não “ interferência e a intervenção do Poder

na organização sindical”.

Isso já tornaria inviável a proposta sumular de recepção do

artigo 522 da CLT, que nada mais é que a interferência pela própria lei na

organização sindical.

Referida situação traz a lume a necessidade de uma avaliação

constitucional do tema, pois regra não existe que se compatibilize com a

Constituição quanto a limitação do número de dirigentes que cada sindicato

possa vir a ter.

Nesse cenário, passamos a ter (constitucionalmente) a

proibição da dispensa do dirigente sindical e sua estabilidade (inciso VIII do

artigo 8º da CF), além da já citada não interferência do Estado na

organização sindical.

Na metodologia apresentada quanto a aplicabilidade do

princípio da proporcionalidade, que visa a proibição de excessos quanto a

garantias e direitos fundamentais, apenas no caso concreto, avaliando a

necessidade do sindicato quanto ao número de diretores, poderíamos chegar

a uma conclusão segura.

Tal fato se evidencia, principalmente, pois sabemos que não

temos apenas um número enorme de sindicados, como também, uma

variação de amplitude imensa de representatividade.

Um sindicato de trabalhadores bancários da capital de São

Paulo agrega uma representatividade extensa, precisando talvez de um

número infinitamente superior de diretores estáveis, com desmembramento e

necessidades em vários segmentos do sindicato, preservando a atuação

desses em relação à categoria.

245

De outro lado, para um sindicato de proporções infinitamente

menores, talvez 7(sete) dirigentes seja um excesso.

Nesse contexto constitucional, deveria e deve ser avaliado o

número de dirigentes estáveis, pela simples aplicação do princípio da

proporcionalidade.

7.2 Súmula 331 do TST

Aqui, nossa preocupação reside principalmente no inciso II do

texto sumular, quanto à impossibilidade de vínculo de emprego entre a

administração pública direta, indireta ou fundacional após a Carta de 1988,

com espeque no artigo 37, inciso II do Texto Constitucional.

Dita referida Súmula:

Súmula nº 331 do TST

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.

LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos

os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT

divulgado em 27, 30 e 31.05.2011

I - A contratação de trabalhadores por empresa

interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente

com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho

temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).

II - A contratação irregular de trabalhador, mediante

empresa interposta, não gera vínculo de emprego com

os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou

fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a

contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de

246

20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a

de serviços especializados ligados à atividade-meio do

tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a

subordinação direta.

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por

parte do empregador, implica a responsabilidade

subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas

obrigações, desde que haja participado da relação

processual e conste também do título executivo judicial.

V - Os entes integrantes da Administração Pública direta

e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas

condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta

culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º

8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do

cumprimento das obrigações contratuais e legais da

prestadora de serviço como empregadora. A aludida

responsabilidade não decorre de mero inadimplemento

das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa

regularmente contratada.

VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de

serviços abrange todas as verbas decorrentes da

condenação referentes ao período da prestação laboral.

Com todo respeito que é merecedor o entendimento Sumular,

como já salientado no presente trabalho, o Texto Constitucional não pode ser

interpretado por meio de um único artigo, bem como a Carta de 1988 não foi

elaborada priorizando um direito em detrimento de outro, muito menos dever

se avaliada isoladamente em função da proteção do Estado.

247

Não são poucas as ações em que a administração pública

sabedora dessa interpretação equivocada e isolada do artigo 37 do Texto

maior, atua em verdadeiro “venire contra factum proprium”.

Demonstre-se que apenas considerando o caso concreto se

poderá aplicar o artigo 37, inciso II ou outro texto constitucional, como o

artigo 7º caput, e seus desmembramentos, como garantias e direitos

fundamentais.

Por primeiro, necessário se ler o caput do artigo 37 da

Constituição que exige da administração pública a atuação dentro dos

princípios, como a moralidade, impessoalidade, legalidade, publicidade e

eficiência.

Em continuidade, ressalta a necessidade de concurso público.

Numa interpretação pura do artigo, primeiro deve se identificar

se a contratação se deu dentro dos parâmetros desses princípios, caso

contrário, não se poderia aplicar a regra do inciso II.

Afastado o respeito a tais princípios, descabido seria proteger o

ato que desrespeita a própria constituição.

Observe-se ainda, que os termos do contrato realizado com o

empregado devem ser avaliados sobre a proporcionalidade dos direitos, com

avaliação da proibição de excesso da própria administração pública.

Não temos dúvida, na metodologia utilizada, que prevaleceria o

reconhecimento da relação de emprego e os direitos elencados no artigo 7º

do Texto Constitucional, garantindo assim a aplicação a cada caso concreto o

manto constitucional da proporcionalidade, garantindo a prevalência de

direitos de minorias, com atuação contramajoritária, nos termos aqui já

discutidos.

248

7.3 Súmula 363 do TST

Dita referida Súmula:

Súmula nº 363 do TST

CONTRATO NULO. EFEITOS (nova redação) - Res.

121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem

prévia aprovação em concurso público, encontra óbice

no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo

direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em

relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o

valor da hora do salário mínimo, e dos valores

referentes aos depósitos do FGTS.

Na hipótese da Súmula ora comentada, a situação é

praticamente idêntica àquela acima delineada, contudo, cria com todo

respeito uma anomalia no ordenamento jurídico, pois ao declarar nula a

relação, incorre em três equívocos de plano: 1) cria um regime que não

existe, com pagamento de salário mínimo e depósito de FGTS; 2) protege a

quem deu causa a nulidade, mais uma vez socorrendo o interesse público

num estágio a priori, portanto deficiente; 3) condena quem prestou o serviço

a ser um nada jurídico.

Repise-se, apenas reconhecendo a colisão de direitos no caso

concreto, é possível solucionar o caso, portanto, não é hipótese, ao que

parece, para a redação sumular pré-concebida para toda e qualquer

hipótese.

249

CONCLUSÃO

Chegou a hora de concluir, o que não significa limitar a linha de raciocínio e pensamento aqui desenvolvidos.

Na verdade há aqui apenas uma passagem para uma nova empreitada de reflexões para que o direito se avive, por meio de seus pensadores, que na verdade representam seus construtores por essência.

Não se pretendeu aqui construir um raciocínio de que a aplicação do princípio da proporcionalidade é instrumento capaz de dirimir toda e qualquer controvérsia. Na verdade o objetivo foi aprofundar o conhecimento dessa forma de pensar, que no nosso sentir, revela de um lado a possibilidade de acompanhar nossa sociedade nos avanços diários, que trazem consigo inúmeras discussões jurídicas que envolvem a colisão de direitos fundamentais, e de outro, desvendar o nascimento e o desenvolvimento histórico e de aplicabilidade do princípio.

Procuramos ainda explicar a necessidade do reconhecimento do princípio da proporcionalidade para o efetivo reconhecimento do Estado Democrático de Direito, no seu viés estruturante da democracia.

Houve tentativa de acompanhar os avanços no pensamento desde o jusnaturalismo, positivismo em suas duas escolas, chegando ao pós-positivismo.

Considerando que defendemos sua aplicação em cada caso, foram apresentados casos concretos, com apontamento de sua aplicabilidade ou não dentro da teoria desenvolvida.

O trabalho foi desafiador, e os estudos nos revelaram que:

1) A evolução constante das relações sociais no mundo moderno não pode aguardar de forma silente a criação de leis, decretos, e regramentos infraconstitucionais para solucionar questões inerentes a colisões entre direitos fundamentais.

2) No que se refere ao direito do trabalho propriamente dito, o artigo 8º da CLT autoriza o reconhecimento de princípios para solução de conflitos, o que somado ao movimento da Constitucionalização do Direito e da interpretação conforme, garante uma segurança na linha de julgamento e consequente entrega da tutela à sociedade, afastando o julgamento conforme a consciência.

3) A aplicação do princípio da proporcionalidade possui um enorme grau de relevância na solução de matérias vinculadas às relações de trabalho, sobretudo pela natureza social destas, na medida em que houve uma mudança de eixo da proteção à propriedade para a proteção ao ser humano.

250

4) Numa colisão entre direitos fundamentais, o artigo 765 da CLT autoriza expressamente que os julgadores determinem as diligências necessárias e apropriadas para verificar no caso concreto para qual direito será dada a prevalência, sem que o outro seja expurgado do ordenamento jurídico, e assim, garantindo à sociedade a fundamentação da decisão.

5) A utilização dos subprincípios do princípio da proporcionalidade permite preservar a unidade da constituição para a sociedade em cada caso concreto, revelando a importância de cada caso para cada sujeito que compõe a relação intersubjetiva em que o direito está em discussão.

6) O princípio da proporcionalidade é arma de defesa contra correntes majoritárias, impedindo no nível de discussões de direitos fundamentais, a não preservação do Estado Democrático de Direito, que não é garantia de guetos, mas sim de todos.

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