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Tese de Doutorado Natália Morais Gaspar RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE PPGSA IFCS UFRJ 2008

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Tese de Doutorado

Natália Morais Gaspar

RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA

DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE

PPGSA

IFCS

UFRJ

2008

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RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO

ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA DE

PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE

FLUMINENSE

Natália Morais Gaspar

Tese de Doutorado apresentada ao Programa dePós-graduação em Sociologia e Antropologia doInstituto de Filosofia e Ciências Sociais daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, comoparte dos requisitos necessários à obtenção dotítulo de Doutor em Ciências Humanas(Antropologia Cultural).

Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia

Rio de JaneiroJaneiro de 2008

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RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREA

DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE

Natália Morais Gaspar

Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia eAntropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Riode Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutorem Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Aprovada por:

____________________________________________--Presidente, Professora Dra. Beatriz Maria Alasia de Heredia

____________________________________________--Professora Dra. Iná Elias de Castro

____________________________________________--Professor Dr. José Sergio Leite Lopes

____________________________________________--Professora Dra. Maria Rosilene Barbosa Alvim

____________________________________________--Professora Dra. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha

Rio de JaneiroJaneiro de 2008

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Gaspar, Natália Morais.Relações de Poder e Gestão do Espaço: a Criação de uma Área de Proteção Ambiental no Norte Fluminense/Natália Morais Gaspar. – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008.xi, 197f.: il.; 31 cm.Orientadora: Beatriz Maria Alasia de HerediaTese (doutorado) – UFRJ/IFCS/Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2008.Referências: f 192-195.1. Relações de Poder. 2. Meio Ambiente. I. Heredia, Maria Beatriz Alasia de. II.Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Relações de Poder e Gestão do Espaço: a Criação de uma Área de Proteção Ambiental no Norte Fluminense.

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À Ana, minha amada filha. Muito obrigada pelamotivação, para esta tese e para a vida.

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Agradecimentos

Agradeço à minha orientadora, Beatriz Heredia, pela leitura crítica e

atenta, pelo diálogo sutil e perspicaz, e por nunca ter deixado de acreditar que

seria possível, apesar de todas as dificuldades enfrentadas.

Agradeço à saudosa Ana Maria Galano, pelo despertar do

estranhamento em relação ao que parece natural. A José Sergio Leite Lopes e

Rosilene Alvim, pelos indispensáveis questionamentos e sugestões à minha

qualificação. E a todos os professores do PPGSA, pelo diálogo enriquecedor,

ao longo da minha formação.

Agradeço à CAPES, pelo apoio durante o Doutorado. À FAPERJ, pela

remuneração como auxiliar de pesquisa no projeto “Gestão Municipal e

Formas de Participação Popular”, da Professora Beatriz Heredia. E ao CNPQ,

por ter apoiado a minha formação na Iniciação Científica e no Mestrado.

Agradeço a todos os interlocutores com quem dialoguei ao longo do

trabalho de campo. Especialmente a Flor de Maria, Edgar Gomes, Olga e

Aldair Proença, Marcio Nascimento, Leandro Chevitarese, Rodrigo

Nascimento, Clara, Wili e Rafael.

Agradeço aos colegas de Graduação, Mestrado e Doutorado no IFCS,

pelas discussões instigantes e pela paciência. E agradeço aos meus amigos,

cujo apoio foi fundamental para que eu pudesse concluir minha formação –

Renata Telles, Fernanda Passarelli, Bárbara Estrada, Ana Luiza Beraba, Bianca

Brandão, Luísa Helena Pitanga, Bianca Abreu, André Saldanha, Juliana

Loureiro, Flávio Neubauer. Agradeço à Bárbara Estrada, também, pelo lindo

mapa.

Finalmente, agradeço à minha mãe, Eliane Soares Morais, pelo

imensurável apoio, em todos os sentidos, sem o qual teria sido impossível

concluir esta tese. Agradeço, também, ao meu pai, Walter Gaspar Filho, e aos

meus avós, Dailton Moraes e Renée Soares Morais, in memorian, pelo seu

amor.

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RESUMO

RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA ÁREADE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE

Natália Morais Gaspar

Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologiae Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal doRio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau deDoutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

O objeto deste estudo é o processo de mudanças nas relações de poder ocorridoem um distrito do norte fluminense transformado em Área de Proteção Ambiental(APA). Em uma localidade que era quase que exclusivamente agrícola até os anos 80,moradores de origem urbana vêm desempenhando um papel fundamental naimplantação da unidade de conservação. Até então, alguns grandes proprietáriosintermediavam o acesso da população à maioria dos serviços públicos e aos benefíciosprovenientes de relações personalizadas com políticos. Foi criada uma nova instância depoder, o Conselho Gestor da APA. Com base no Zoneamento e nas recomendaçõescontidas no Plano de Manejo, foi atribuído ao Conselho Gestor o papel de promoveruma reconfiguração do espaço, através da regulação de toda sorte de atividadesinterpretadas como interferências no meio ambiente. O processo de criação da APA doLima consolidou novas regras para a utilização do espaço e dos recursos, fundadas nãosomente na premissa da preservação ambiental, como também na sua apropriação pelogrupo que conduziu este processo. Assim, a criação da APA consolidou, também, ainserção de neo-rurais que atuaram como ambientalistas locais nas relações de poder ena disputa pelos recursos.

Palavras-chave: Relações de Poder, Meio Ambiente, Gestão Participativa, Unidade deConservação.

Rio de JaneiroJaneiro de 2008

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ABSTRACT

POWER RELATIONS AND SPACE DISTRIBUTION: THE CREATION OF ANENVIRONMENTALLY PROTECTED AREA IN THE NORTH OF THE STATE OF

RIO DE JANEIRO

Natália Morais Gaspar

Orientadora: Beatriz Maria Alasia de Heredia

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação emSociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção dograu de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

The aim of this study is to analyse the process of change in the power relationsthat take place in a district in the North of the state of Rio de Janeiro, Brazil, in an areawhich was officially declared an APA (Environmentally Protected Area). In a placewhich was almost exclusively agricultural up to the 80s, residents of urban origin havebeen taking on a fundamental role in the implementation of this EnvironmentallyProtected Area. Up until then some big land owners had served as middle-men in theaccess of the local population to the majority of public services as well as to variousbenefits they obtained through their personal relationships with politicians. An officialinstance of power was created, the Managing Board of the Environmentally ProtectedArea (APA). Based on Zoning and on the recommendations of the Administration Plan,the Managing Board was given the role of implementing the space distribution, throughspecific regulation of all activities thought to interfere with the physical environment.The creation of the Environmentally Protected Area of Lima promoted the consolidationof new rules for the use of space and resources, based not only on the assumption ofenvironmental protection but also on the empowerment of those individuals whoinitiated this process. Thus, the creation of this Environmentally Protected Area has alsopromoted the integration of the neo-rural residents who acted as local environmentalistsin the power relations and in the access to various resources.

Key-words: Power Relations, Environment, Participative Distribution, Protected Area.

Rio de JaneiroJaneiro de 2008

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RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA

ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE

Sumário

Introdução - 1

Informações preliminares sobre o campo - 7

CAPÍTULO 1 - DAS PLANTAÇÕES DE CAFÉ À FRUIÇÃO DA NA TUREZA -

14

1. Do café ao turismo - 14

2. Novos moradores em busca da natureza - 20

2.1. Os hippies dos anos 70 - 22

2.2. O turismo que veio para ficar - 27

3 – Convívio, compartilhamento do espaço e mudanças nas relações sociais - 34

CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DA ONG AMBIENTALISTA LOCAL - 38

1 – Os guardiães voluntários do paraíso ameaçado - 39

2 – A institucionalização e profissionalização dos guardiães da natureza - 44

2.1 - A ONG e a APA - 45

2.2 - A ONG e os projetos - 48

CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE CIVIL E A APA - 57

1. A associação de comerciantes – 59

2 – A associação de moradores - 65

3 – A associação do Vale das Águas – 69

4 – A associação da Nascente – 71

5 - A formação do Conselho Gestor da APA - 73

CAPÍTULO 4 - ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA - 81

1 – Formação e atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais – 81

2 – Composição da diretoria - 84

3 – As assembléias e o discurso em favor do povo - 87

4– Classificações do espaço - 92

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5 – A atuação da associação nos fóruns da APA - 94

6 – O discurso dos moradores - 96

7 – O discurso de resistência, um princípio de agrupamento e as nuances apagadas - 99

CAPÍTULO 5 – AS PRIMEIRAS ATIVIDADES DO CONSELHO:

REGULAMENTANDO, PLANEJANDO E CONSTRUINDO O DISCURSO

OFICIAL - 102

1 - A Elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor - 102

2 – As representações sobre o Conselho Gestor da APA ao longo do processo de

elaboração do Plano de Manejo - 104

3 – A relação dos ambientalistas locais com a prefeitura durante o período de formação

do aparato institucional e legal da APA – 110

4 - A “participação” na elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase 1 - 112

5 – Os embates na elaboração do Plano de Manejo - 121

6 – A construção do discurso oficial - 125

6.1 – Pensar globalmente - 127

6.2 – Agir localmente - 131

7 – O Plano de Manejo e as relações de poder que fomentaram sua construção - 138

CAPÍTULO 6 – A ATUAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DA APA - 143

1 – O funcionamento do Conselho Gestor da APA - 144

1.1 – Composição e funcionamento da plenária - 145

1.2 –– A Secretaria Executiva - 151

1.3 – As Câmaras Técnicas - 153

2 – A proibição da pista de motocross e seus desdobramentos - 157

2.1 – A festa – 159

2.2 – A fazenda agroecológica - 166

3 – Disputas pelo Vale das Águas – 171

CONSIDERAÇÕES FINAIS - 182

REFERÊNCIAS – 192

MAPA DO LIMA – 197

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RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA

ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE

Índice

Introdução - 3

Informações preliminares sobre o campo - 9

CAPÍTULO 1 - DAS PLANTAÇÕES DE CAFÉ À FRUIÇÃO DA NA TUREZA -

14

1. Do café ao turismo - 16

2. Novos moradores em busca da natureza - 22

2.1. Os hippies dos anos 70 - 24

2.2. O turismo que veio para ficar - 29

3 – Convívio, compartilhamento do espaço e mudanças nas relações sociais - 36

CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DA ONG AMBIENTALISTA LOCAL - 40

1 – Os guardiões voluntários do paraíso ameaçado - 41

2 – A institucionalização e profissionalização dos guardiões da natureza - 46

2.1 - A ong e a APA - 47

2.2 - A ong e os projetos - 50

CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE CIVIL E A APA - 59

1. A associação de comerciantes - 61

2 – A Associação de Moradores - 67

3 – Associação do Vale das Águas - 70

4 – Associação da Nascente - 72

5 - A formação do Conselho Gestor da APA - 75

CAPÍTULO 4 - ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA - 82

1 – Formação e atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais - 82

2 – Composição da diretoria - 85

3 – As assembléias e o discurso em favor do povo - 88

4– Classificações do espaço - 93

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5 – A atuação da associação nos fóruns da APA - 95

6 – O discurso dos moradores - 97

7 – O discurso de resistência, um princípio de agrupamento e as nuances apagadas - 100

CAPÍTULO 5 – AS PRIMEIRAS ATIVIDADES DO CONSELHO:

REGULAMENTANDO, PLANEJANDO E CONSTRUINDO O DISCURSO

OFICIAL - 103

2 - A Elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor - 103

2 – As representações sobre o Conselho Gestor da APA ao longo do processo de

elaboração do Plano de Manejo - 105

3 – A relação dos ambientalistas locais com a prefeitura durante o período de formação

do aparato institucional e legal da APA - 111

4 - A “participação” na elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase 1 - 113

5 – Os embates na elaboração do Plano de Manejo - 122

6 – A construção do discurso oficial - 126

6.1 – Pensar globalmente - 128

6.2 – Agir localmente - 132

7 – O Plano de Manejo e as relações de poder que fomentaram sua construção - 139

CAPÍTULO 6 – A ATUAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DA APA - 143

1 – O funcionamento do Conselho Gestor da APA - 144

1.4 – Composição e funcionamento da plenária - 145

1.5 –– A Secretaria Executiva - 151

1.6 – As Câmaras Técnicas - 153

2 – A proibição da pista de motocross e seus desdobramentos - 157

2.1 – A festa – 159

2.2 – A fazenda agroecológica

3 – Disputas pelo Vale das Águas

xii

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RELAÇÕES DE PODER E GESTÃO DO ESPAÇO: A CRIAÇÃO DE UMA

ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO NORTE FLUMINENSE

IntroduçãoO objeto deste estudo é o processo de mudanças nas relações de poder ocorrido

num distrito do norte fluminense transformado em Área de Proteção Ambiental (APA)1.

O distrito de Lima foi produtor de café até os anos 30, cultivado por agricultores

familiares meeiros nas grandes propriedades. Com a decadência deste cultivo, houve um

período de retração da economia, com sensível diminuição da população, do comércio e

dos serviços. Neste período, aqueles que permaneceram mantiveram a agricultura

familiar de subsistência, enquanto que a banana tornou-se o principal produto

comercial. Nos anos 80, cresceu a pecuária extensiva e, ao final da década, com a

chegada da luz elétrica, o lugar começou a se tornar um destino turístico, tendo as

cachoeiras do Vale das Águas como principal atrativo. Na década de 90, houve grande

aumento do fluxo turístico e expansão do comércio, dos serviços e da infra-estrutura.

Ao mesmo tempo, crescia a presença da fiscalização ambiental, por parte de órgãos

federais, estaduais e municipais. Ao final da década e início da década seguinte, houve

uma proliferação de diferentes organizações da sociedade civil, tais como associações

de moradores, de produtores, de comerciantes e organizações não governamentais. Em

novembro de 2001, a totalidade do distrito foi transformada em APA por meio de uma

lei municipal. No ano de 2002, foi organizado um Conselho Gestor deliberativo para a

unidade de conservação e, em 2003, era publicado o seu Plano de Manejo, contendo o

Zoneamento da APA.

Os atributos naturais da área já despertavam o interesse de pessoas da cidade

desde a década de 70, quando começaram a ser adquiridos terrenos transformados em

residências secundárias (para lazer e veraneio), algumas das quais vieram a se tornar a

residência principal de seus proprietários, muitos deles interessados em adotar um estilo

de vida diferente daquele que vinham tendo nas suas cidades de origem. A fixação de

moradores de origem urbana tornou-se uma tendência crescente desde então.

Associadas à presença de pessoas da cidade, cada vez mais numerosa, surgiram, na

década de oitenta, e avolumaram-se no final dos anos 90, as iniciativas em prol da

1 SNUC, Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau deocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmenteimportantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivosbásicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar asustentabilidade do uso dos recursos naturais. (Lei nº 9.985/2000)

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preservação do meio ambiente. Da comunicação de crimes ambientais aos órgãos

competentes, mais freqüentes nos anos 80, à formação de organizações da sociedade

civil e participação no Conselho Gestor da APA mais recentemente, moradores de

origem urbana que se fixaram no distrito vêm desempenhando um papel fundamental na

implantação da unidade de conservação naquele território.

Neste contexto, ocorreram algumas mudanças nas relações de poder locais, nas

quais, até então, alguns grandes proprietários intermediavam o acesso da população à

maioria dos serviços públicos e aos benefícios provenientes de relações personalizadas

com políticos.

Foi criada uma nova instância de poder, o Conselho Gestor da APA. Com base

no Zoneamento e nas recomendações contidas no Plano de Manejo, foi atribuído ao

Conselho Gestor o papel de promover uma reconfiguração do espaço, através da

regulação de toda sorte de atividades interpretadas como interferências no meio

ambiente. O conselho ficou composto, inicialmente, por seis organizações da sociedade

civil local e seis órgãos do governo municipal, sendo presidido pela Secretaria

Municipal de Meio Ambiente. E dispõe de uma secretaria executiva.

Antes de conhecer de perto o processo de implantação da APA, reuni

informações a respeito da implantação de outras unidades de conservação (UC), através

dos trabalhos de Menezes (2004), Barreto Filho (1999), Diegues (1996).

Recentemente, esta APA foi tema de trabalhos acadêmicos, destacando-se uma

dissertação de mestrado em Psicologia Social e uma tese de doutorado em Geografia.

Sem deixar de reconhecer a existência de grupos alheios ou contrários à criação da

unidade de conservação, ambos destacam a “participação” e o papel da “comunidade”,

através de seus representantes, no processo de implantação da APA (Seabra 2005: 127;

Cozzolino 2004: 121). E, inclusive, utilizam estes elementos para justificar a escolha

daquele local para a realização de seus estudos.

Além disso, nas comunicações públicas e documentos da prefeitura (órgão

criador da UC) e da própria APA, a sua criação e as medidas subseqüentes de formação

do Conselho Gestor e elaboração do Plano de Manejo são descritos como um “processo

participativo” (por exemplo, Viva Rio 2003: p. 6).

A princípio, esta APA difere da maioria das APAs brasileiras pela rapidez com

que foram instalados os seus instrumentos de gestão – Conselho Gestor deliberativo,

2

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Plano de Manejo, Zoneamento2. Segundo pesquisa feita com entidades presentes no

workshop Panorama das Áreas de Proteção Ambiental no Brasil3, com intenção de

obter uma visão do estágio de implementação das APAs: quanto à existência de

Conselho Gestor, 18% das APAs o possuem e 1% declaram estar em formação; das 64

APAs pesquisadas, 45% não possuem plano de manejo ou instrumento semelhante, e,

em apenas 23% do total das APAs, ele está em implementação; quanto ao Zoneamento,

apenas 18% das APAs possuem este estudo (Cozzolino 2004: 44). Esta situação permite

indagar a respeito dos elementos que, numa conjuntura específica, permitiram que esta

unidade de conservação tivesse a sua implementação tão agilizada.

Em 1997, tive meu primeiro contato com a ONG ambientalista local,

identificada pelos estudos acima referidos como a instituição que pôs em discussão a

idéia de criar uma unidade de conservação no distrito (Cozzolino 2004: 64), ou que teve

a iniciativa de “sensibilizar e mobilizar parte da comunidade e o poder público” para a

transformação da área do distrito em APA (Seabra 2005: 120). À época, eu freqüentava

a localidade na condição de turista. Filiei-me à instituição e participei de algumas

reuniões, além de desenvolver um trabalho, ainda na graduação, sobre o uso da

fotografia em mobilizações ambientalistas. Havia indicações de que os integrantes da

organização procuravam aliar uma sincera e obstinada vontade de evitar o que era

interpretado como a deterioração dos atributos naturais da região, especialmente das

cachoeiras do Vale das Águas, à aspiração de criar meios para fixar residência, ou ao

menos freqüentar assiduamente a região, através de trabalhos relacionados à proteção do

meio ambiente.

Em 1999, presenciei duas reuniões de lideranças locais com um facilitador do

SEBRAE, para elaboração de um planejamento “estratégico” para o turismo. Estavam

presentes não somente integrantes da ONG ambientalista, mas também da recém

fundada associação comercial, que sediava o evento. Boa parte daqueles que

participaram da elaboração do documento vieram, mais adiante, a participar, também,

das negociações e atividades de implantação da APA, na condição de lideranças

2 A lei 9998 de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), no Art. 27,estabelece que o Plano de Manejo deve ser elaborado num prazo de cinco anos da criação da unidade, eassegura a “ampla participação da população residente” no caso das APAs e outras UCs de usosustentável. O Decreto 4430, de 22 de agosto de 2002, regulamenta o Plano de Manejo (capítulo IV) e oConselho (capítulo V), que pode ser consultivo ou deliberativo. 3 Organizado pela Fundação O Boticário e pela The Nature Conservancy do Brasil, com patrocínio daAgência de Cooperação USAID, o evento reuniu cerca de 70 pessoas, representando: 19 APAs federais,38 estaduais e 12 municipais e 27 instituições (secretarias de meio ambiente, prefeituras e ONGs),pertencentes a 17 estados brasileiros (Guaryasssu 2003 apud Cozzolino 2005).

3

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comunitárias, à frente de organizações e associações civis locais que viriam a ser

fundadas ou revitalizadas nos anos seguintes. Estas observações conduziam à impressão

de que havia moradores e empreendedores locais efetivamente empenhados em

preservar os atributos naturais da região, que foram se organizando em instituições da

sociedade civil e se capacitando para tomar parte na gestão da futura unidade de

conservação.

A literatura que trata do movimento ambientalista tem elaborado tipos ideais

para compreender as diversas inspirações e aspirações das correntes e ramificações dos

ambientalistas e suas idéias, inseridos ou não em organizações civis ou órgãos do

governo (Castells2002: pp. 141-166), Diegues (1996), Milton (1993), Viola (1987).

Neste estudo de caso, contribui para a análise das motivações daqueles militantes não só

a aproximação com os tipos de movimentos ambientalistas, mas também com reflexões

a respeito do neo-ruralismo (Chamboredon 1980), (Carneiro 1999), (Giuliani 1990),

uma vez que havia indicações de que o apreço pela natureza local também pudesse estar

associado ao desejo de se estabelecer e permanecer na localidade.

A análise das motivações que levaram aquele conjunto razoavelmente

heterogêneo de pessoas a tomar a frente do processo de criação de uma unidade de

conservação, naquela localidade específica, coloca questões em diferentes níveis.

Primeiramente, é necessário indagar se, em que medida e como, as trajetórias,

características e motivações dos militantes, que chamarei daqui por diante de

ambientalistas locais, influenciaram a construção do processo de implementação da

unidade de conservação. E de que modo estes elementos se fizeram presentes na atuação

dos ambientalistas locais no âmbito de uma nova instância de poder, o Conselho Gestor

da APA, encarregado dali por diante de construir e implantar novas regras para a gestão

do espaço e dos recursos. E na interação dos ambientalistas locais, dentro do Conselho

Gestor, com as instituições já operantes, anteriormente, naquele território.

Em janeiro de 2001 (antes, portanto, da criação da APA), tive meu primeiro

contato direto com trabalhadores rurais e pequenos produtores, realizando entrevistas

em diferentes regiões do distrito, que deveriam subsidiar a elaboração do meu projeto

de mestrado. Constatei um grande descontentamento com relação à fiscalização

ambiental, especialmente em relação às queimadas que precedem a lavoura. Ao mesmo

tempo, a maioria desconhecia a realização de encontros para discussões e negociações

em torno da criação de uma área protegida. Havia indicações de diminuição das

lavouras e abandono das atividades agrícolas devido ao medo da fiscalização.

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Retornei a campo em março de 2002, quando ocorreu a primeira reunião,

amplamente divulgada, a respeito da APA. Nesta reunião foram indicados os futuros

representantes da sociedade civil no Conselho Gestor, que veio a ser oficialmente

nomeado em outubro. A reunião foi palco de tensas e acirradas discussões sobre o

processo de criação da unidade de conservação. Pela primeira vez, veio a público o

descontentamento de uma grande parcela da população, especialmente dos produtores e

trabalhadores rurais, com a desinformação dos moradores a respeito da APA, com a

fiscalização ambiental e com escolha, aparentemente prévia, daqueles que viriam a

representar a “comunidade” no Conselho Gestor. Os descontentes se queixavam da

ausência de representantes do “verdadeiro povo do lugar”. Foi mencionado, também,

que alguns dos representantes escolhidos para falar em nome da “comunidade” eram

“funcionários da prefeitura” (terceirizados via uma cooperativa), o que os impediria de

defender os interesses da população.

A partir da percepção destes conflitos, orientei minha pesquisa de modo a captar

a interpretação daqueles que manifestaram seu descontentamento na reunião e da

parcela da população em nome da qual eles se pronunciavam. Dali por diante,

acompanhei todas as assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais em

vias de constituição, a única organização local visivelmente contrária ao processo em

andamento. Realizei 45 entrevistas com trabalhadores rurais e pequenos produtores,

desta vez concentrados em duas regiões do distrito, das quais provinha a maioria dos

freqüentadores daquelas assembléias – que chegaram a reunir duas centenas de pessoas,

num distrito de menos de 2000 habitantes.

Muitas foram as questões suscitadas pelas interpretações dos trabalhadores rurais

e pequenos produtores a respeito do processo que transformou o distrito em APA. E

tantas outras referentes à articulação daquelas interpretações com os discursos das

lideranças que falavam em seu nome, em diferentes circunstâncias. Em primeiro lugar,

era freqüente, tanto nas entrevistas quanto nos discursos públicos, a atribuição da

condução de todo o processo a pessoas de fora. Havia indicações, portanto, de uma

reivindicação de autenticidade e de vínculo com o território, e do acionamento deste

instrumento nas disputas pela definição das regras de gestão do espaço e seus recursos.

Além disso, as interpretações dos trabalhadores e pequenos produtores rurais permitiam

supor que eles compreendiam aquele processo sob uma perspectiva totalmente diversa

daquela que figurava nos discursos de ambientalistas locais e de autoridades do

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governo, na qual tanto o espaço quanto os atributos naturais eram pensados e

valorizados de forma diferente.

Nas Ciências Sociais e, especialmente, na Antropologia, tem prevalecido a

perspectiva que não toma os problemas ambientais como dados, tampouco trata os

riscos ambientais como conseqüências diretas dos perigos inerentes à situação física. Os

estudiosos têm tratado as disputas em torno de questões ambientais como disputas de

diferentes concepções da natureza e do mundo, cujo desenlace sempre está imbricado

nas relações de poder (Douglas 1982, Parkin & Croll 1992, Ingold 1993, Milton 1993).

Este estudo de caso também pode ser pensado como uma análise do processo de

disputas em torno do significado e do uso do espaço e dos atributos naturais, cujo

desenrolar só pode ser pensado se associado às relações de poder. No entanto, é preciso

compreender a forma e os mecanismos específicos através do quais vão sendo alterados

alguns padrões de uso do espaço e seus recursos, pois é necessário dimensionar e

conhecer os limites destas mudanças.

Residindo no lugarejo durante o ano de 2002, além de observar a organização

dos trabalhadores e pequenos produtores rurais, pude acompanhar semanalmente as

reuniões para elaboração do Plano de Manejo da APA, das quais tomavam parte os

indicados para representar a “comunidade” no Conselho Gestor (CG). Procurei,

também, informações a respeito das organizações da sociedade civil que viriam a

integrar o CG, através da imprensa, de atas e documentos internos, e da freqüência a

algumas de suas reuniões públicas.

Por um lado, havia indicações de que o processo de implementação da APA

havia sido excludente e autoritário, pelo menos em relação à parcela da população

qualificada, nos discursos das lideranças da associação de produtores e trabalhadores

rurais, como “o verdadeiro povo” do distrito. De outro lado, havia dirigentes e

integrantes de várias associações e de uma ONG ambientalista pessoalmente

empenhados e entusiasmados, muitas vezes sobrecarregados, buscando cumprir etapas e

atender parâmetros necessários à implantação da unidade de conservação. Estes

parâmetros incluem o modelo da gestão participativa e seus mecanismos específicos.

Assim, no seu modo de ver, pode-se dizer que estavam fazendo de tudo para implantar a

gestão participativa na APA. Diante disso, na visão dos ambientalistas locais, aqueles

que se diziam excluídos assim estavam porque, de fato, não queriam participar, ou

ainda, possuíam a disposição deliberada de atrapalhar todo o processo. O contraponto

entre estas diferentes versões constituía-se num problema a ser pesquisado.

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Recentemente, alguns autores têm-se debruçado sobre o tema da implantação e

gestão de unidades de conservação. Multiplicam-se os estudos sobre as limitações do

envolvimento participativo das populações classificadas como tradicionais e dos grupos

étnicos na implementação destas áreas protegidas4. De uma maneira geral, estes estudos

apontam para a presença indispensável de intermediários e tradutores dos interesses

destas populações no processo dito participativo – papel geralmente delegado às ONGs

e/ou antropólogos e/ou ambientalistas -, distorcendo as suas necessidades e aspirações e

adequando-as aos critérios da preservação ambiental. Simultaneamente, põem em

questão os efeitos da submissão destas populações à tutela do Estado em troca de alguns

direitos territoriais, geralmente operada por intermediários, sem que as mesmas estejam

sequer cientes de todas as implicações deste “reconhecimento”5. E há ainda os casos,

como o deste estudo, nos quais a população que lida com os atributos naturais sequer

consegue ser reconhecida como tradicional.

Entre os mecanismos correntemente utilizados para implementar a chamada

“gestão participativa”, figuram como protagonistas as idéias de “empoderamento”

(empowerment) e stakeholders que, para Lobão, apesar de serem distintos e, em alguns

casos, apresentarem uma historicidade própria, nos cenários nos quais as políticas

públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável estão sendo aplicadas, fazem

parte de um “pacote”6.

Ainda de acordo com Lobão, uma das principais ferramentas para a aplicação

deste pacote é o Projetismo. No âmbito dos projetos envolvendo os temas do

desenvolvimento e do ambientalismo, o projetismo designa “uma forma específica de

articular elementos, manifesta na concepção, realização e avaliação de ‘projetos’ que

muitas vezes independe do contexto e dos atores sociais para os quais são formulados”.

(Pareschi, 2002 apud Lobão 2006).

Informações preliminares sobre o campo

O distrito transformado em APA, que hoje possui cerca de 2000 habitantes,

caracterizava-se, até a década de 70, pelo largo predomínio da agricultura e da criação

4 Diegues (1996), Menezes (2004: 209), Lobão (2006).5 Em sua tese, Lobão alerta para a contribuição de certos antropólogos para que a tutela de determinadaspopulações seja regulamentada, sem que tenham sido devidamente esclarecidas sobre as condições nasquais serão exercidos seus novos direitos (2006: 261).6 “Este pacote também tem autoria e um momento de consolidação: as políticas do Banco Mundial e doBID para os países do Sul, notadamente o Resource Book on Participation, do BID, e o World BankParticipation Sourcebook, do Banco Mundial” (2006: 235).

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de animais como atividades econômicas. A cultura do café predominou até os anos 30,

produzido principalmente por meeiros, que construíam suas casas nas terras do

proprietário e realizavam uma pequena lavoura, na qual trabalhava toda a sua família,

além de trabalharem nas plantações de café do patrão. Com a decadência da produção

cafeeira, a banana passou a ser a cultura dominante, produzida por terceiros,

praticamente nos mesmos moldes anteriores, com a ressalva de que iniciou-se um

período de progressivo abandono do lugarejo por diversas famílias de agricultores e de

decadência econômica, evidenciada pela sensível diminuição dos estabelecimentos

comerciais, dos serviços e da infra-estrutura de transportes, além do declínio

populacional.

Nos anos 70, o turismo começou a fazer parte do rol de atividades econômicas,

expandindo-se cada vez mais até os dias de hoje e mudando a configuração econômica e

espacial do lugar. Este turismo foi atraído principalmente pelas cachoeiras e corredeiras,

situadas num vale onde a mata atlântica passou por um processo de regeneração,

assumindo um aspecto de paisagem percebida como “selvagem” e “intocada” por estes

freqüentadores – o Vale das Águas, além de outras paisagens consideradas de grande

beleza cênica.

É um distrito que tem como uma de suas características o isolamento infra-

estrutural e de comunicação, especialmente se comparado a outros distritos serranos do

mesmo município, um dos mais ricos do país em função da exploração do petróleo7.

Está localizado a cerca de 85km da sede do município, sem transporte coletivo que leve

diretamente à sede, devido, principalmente, às estradas sem pavimentação. Há somente

uma linha de ônibus, mal conservados, que conduz à cidade mais próxima a cerca de

30km, pertencente a outro município. A luz elétrica chegou à localidade em 1986, e a

telefonia fixa nas residências, somente em 2001, não havendo sinal, tampouco, de

telefonia móvel. Não há policiamento local, havendo somente um posto da Guarda

Municipal estabelecido em 2002. O local não dispõe de serviços básicos, tais como

agência de correios, caixas bancários eletrônicos, posto de gasolina ou farmácia.

Em linhas gerais, o turismo que se desloca para a localidade busca contato com a

natureza e/ou a tranqüilidade atribuída ao meio rural, além da possibilidade de consumir

substâncias ilícitas com pouca ou nenhuma repressão policial. Os turistas costumam

fazer uso recreativo de recursos naturais, como cachoeiras e trilhas abertas na mata,

7 O distrito pertence a um município situado na região Norte Fluminense, mas apresenta váriascaracterísticas da região Serrana. Giuliani problematiza a aplicação da noção de “região” ao meio agráriofluminense (1998: pp.65-78).

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além de desfrutarem da vida noturna que se desenvolveu no lugarejo, formada por

bares, alguns com música ao vivo, e shows de forró. Não há na localidade

empreendimentos turísticos de luxo, que exigiriam o emprego de grande capital. A

maioria das casas de aluguel seguem um padrão de construção barato e, com mais

freqüência no pequeno centro comercial, não dispõem de quintal próprio,

compartilhando o mesmo lote com outras casas.

Além dos turistas que freqüentam o distrito nos períodos de férias, feriados e

finais de semana, alojados em pousadas, campings e casas alugadas por temporada, há

aqueles que adquirem ou alugam sítios, ou pequenas casas, como residência secundária,

para veraneio.

Há ainda pessoas que conheceram a localidade na condição de turistas e que

decidiram lá fixar residência. Desde a década de 70, este tipo de ocupação vem se

expandindo, empreendida tanto por aposentados e pensionistas quanto por jovens

mantidos pelos pais, ou empregados em profissões que permitem um deslocamento

temporário das grandes cidades, ou ainda que possibilitam a relação via internet com

clientes ou patrões – como tradutores, roteiristas de televisão, artesãos, músicos, etc.

Este segmento de moradores do distrito costuma, também, investir ou empregar-se em

empreendimentos voltados ao atendimento do turismo, como lojas de roupas e

acessórios, lanchonetes, restaurantes, pousadas, bares e campings.

Já os moradores que viviam no distrito na época em que ele era quase que

exclusivamente agrícola e que lá permaneceram desde então, ou que habitaram outros

lugares e retornaram, estão ligados economicamente às atividades turísticas da

localidade em graus bastante variados, havendo ainda moradores que declaram não se

beneficiar dela em absoluto. Dentre estes, muitos têm como importante fonte de renda a

aposentadoria rural de um ou mais membros da família.

Estas variações apresentam, numa certa medida, uma distribuição espacial,

concentrando-se os moradores que abandonaram por completo as atividades agrícolas e

de criação de animais nas regiões do pequeno centro comercial e do vale onde estão

situadas as cachoeiras mais visitadas. Nestas regiões, estes moradores empregam-se

como caseiros, empregadas domésticas, cozinheiras e arrumadeiras, em pousadas,

restaurantes, pensões e campings. Alguns constroem casas ou suítes para aluguel, ou

montam pequenos estabelecimentos comerciais que vendem lanches e refeições.

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Nas cercanias, outros vales de afluentes do rio principal, onde o turismo também

vem penetrando num ritmo mais lento, porém crescente, muitos moradores constroem

casas ou suítes para alugar, tanto por períodos mais longos quanto por temporada.

Há muitos cantões onde, no entanto, não existe sequer um estabelecimento

comercial; onde ocorrem, resumem-se a botecos e mercearias. Nestas regiões, há ainda

muitos sítios de veranistas ou moradores recentes, onde são oferecidos empregos de

caseiro e empregada doméstica, além de serviços como faxinas, lavagem de roupas ou

jardinagem.

Outra importante fonte de renda para os moradores da localidade são os

empregos públicos na esfera municipal, diretos ou sob a forma de prestação de serviços.

A maioria das funções exercidas nas três escolas municipais do distrito (merendeiras,

faxineiras, secretárias, professores e outros funcionários), nos dois postos de saúde (à

exceção dos médicos) e numa espécie de centro cultural, fundado em 2000 (que realiza

exposições, oferece cursos diversos - informática, artesanato, violão, xadrez, corte e

costura, teatro, etc., além de sediar reuniões de associações e organizações diversas),

além de serviços como reparos nas estradas e no fornecimento de água, recepção e

distribuição de correspondência, transporte escolar, são contratados pela prefeitura

municipal via uma cooperativa, sem licitação ou concurso público. Estes empregos e

serviços são bastante disputados pelos moradores de maneira geral e o modo mais

freqüente de obtê-los é através de contatos personalizados com políticos da esfera

municipal, ou seus cabos eleitorais e assessores.

Recentemente, outras oportunidades de trabalho, temporário, têm sido criadas na

localidade, com a implantação de dois projetos ambientais financiados por medidas

compensatórias de empresas termoelétricas em vias de instalação no município. O

primeiro deles, realizado em 2002, consistiu na elaboração de um plano de manejo para

a unidade de conservação e previa, ainda, a criação de um sistema de sinalização e o

reflorestamento de uma área piloto. Foi coordenado pela ONG Viva Rio e teve como

coordenadora local uma ONG ambientalista, fundada no distrito em 1995. O segundo,

foi um projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes. O projeto incluiu a

realização de atividades em outros municípios do estado do Rio de Janeiro, tais como a

revitalização de um horto que fornece as mudas para o reflorestamento. As atividades a

serem realizadas no distrito em questão consistiam na parte de educação ambiental,

coordenada pela mesma ong ambientalista local envolvida no projeto anterior. Foi

realizado um curso de capacitação de “monitores ambientais” e, em seguida, 15

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monitores selecionados entre os diplomados pelo curso realizaram atividades de

“sensibilização” de proprietários rurais em relação ao reflorestamento, bem como

eventos nas escolas, igrejas e em locais públicos, com temáticas ambientais.

Simultaneamente, o IEF (Fundação Instituto Estadual de Florestas) coordenou o

reflorestamento de algumas áreas do distrito, atividade da qual a ONG ambientalista

local não participou formalmente mas, através de um de seus integrantes, realizou a

seleção dos “agentes de plantio” que trabalham no reflorestamento.

Assim, observamos que, hoje, as atividades em prol da preservação do meio

ambiente constituem-se, também, numa possibilidade de emprego e renda para os

moradores.

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CAPÍTULO 1 – DAS PLANTAÇÕES DE CAFÉ À FRUIÇÃO DA

NATUREZA

Os discursos formulados por moradores do distrito do Lima a respeito da

transformação da localidade em Área de Proteção Ambiental fornecem elementos para

pensar mudanças nas relações sociais associadas à criação da unidade de conservação.

Num determinado nível, estas mudanças aparecem, nos depoimentos dos

moradores de origem camponesa8, identificadas com o estabelecimento de um conjunto

de novos moradores na região, os “neo-rurais”9. Numa esfera mais ampla, estas

mudanças são associadas a um conjunto de transformações pelas quais vem passando a

localidade nas ultimas três décadas: o advento do turismo, o estabelecimento de

moradores de origem urbana, iniciativas em prol da preservação do meio ambiente e

melhorias da infra-estrutura e dos serviços.

A interpretação de grande parte da população local a respeito da criação da

unidade de conservação se organiza em dois eixos de oposições: antigamente/agora e

gente do lugar/gente de fora. Estas categorias são sempre relacionais e contextuais. O

seu uso, portanto, depende das circunstâncias em que são acionadas – quem está

ouvindo, quando e onde - e de quem as aciona. E a sua compreensão é indissociável das

outras categorias em relação às quais são acionadas em cada discurso específico. Assim

sendo, é preciso ter em mente que são utilizadas de acordo com a necessidade e a

vontade de marcar posições em lutas materiais e simbólicas.

8 Shanin põe em discussão a definição de “camponês”, desde as tentativas de seleção de característicasgerais que possam ser buscadas em quaisquer camponeses de qualquer parte do mundo até interpretaçõessegundo as quais o conceito de campesinato é dissolvido em seu contexto societário. Neste sentido, elepropõe que “aceitar a existência e a possível transferência dos camponeses ‘intermodos’ [de produção] échegar mais perto das riquezas e contradições da realidade”, ou seja, “os camponeses representam umaespecificidade de características sociais e econômicas que se refletirão em qualquer sistema societário emque operem”. Assim, “os camponeses e sua dinâmica devem ser considerados tanto enquanto tais, comodentro de contextos societários mais amplos, para maior compreensão do que são eles e do que é asociedade em que vivem.” (1980:68-69) Neste estudo de caso, a generalização da especificidadecamponesa faz-se pertinente, pois, a despeito das amplas variações do campesinato local, especialmenteno acesso à terra, a identificação das suas espeficidades contribui para clarificar a sua diferenciação, oumesmo oposição, à outra parcela de habitantes daquele território, os neo-rurais.9 Giuliani, a partir da análise de autores que estudaram o fenômeno do neo-ruralismo na França e,primeiramente, utilizaram este conceito, entende o neo-ruralismo como um fenômeno nascido dasdefinições existenciais dos indivíduos e que responde mais a desejos e aspirações que a necessidades – avalorização da natureza e da vida cotidiana, a busca da autodeterminação, do trabalho como prazer, daintegralização do tempo e das relações sociais, e ainda a recusa do tempo e do espaço da indústria, acrítica à ditadura dos papéis produtivos típicos da cidade que dirigem os indivíduos a labirintos defrustrantes relações secundárias -, apontando para formas organizativas novas, com características elimites a serem descobertos e definidos.

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Dessa forma, o antigamente acionado nos discursos pode estar remetido a

diferentes momentos passados, em oposição a um agora que pode estar definido como

alguma transformação específica – por exemplo, o estabelecimento de sanções a

determinadas técnicas agrícolas10 – ou como um conjunto de mudanças interpretadas

como interdependentes, como o estabelecimento de novos moradores e o crescimento

do turismo11. Do mesmo modo, dependendo do contexto, gente de fora tanto pode

designar turistas ocasionais que promovem desordem nos feriados12 quanto moradores

de origem urbana estabelecidos no distrito há mais de trinta anos13.

Diante disto, este capítulo tem o objetivo de contribuir para a compreensão do

significado das categorias acionadas pela população para interpretar as mudanças nas

relações sociais a partir da transformação do distrito do Lima em APA. Com este

escopo, faço uma sistematização das relações sociais na localidade num passado

relativamente recente, cerca de um século, que remonta à geração dos pais dos

moradores mais idosos14. Ou seja, desde as fazendas de café no início do século XX,

passando pelo abandono dos cafezais em escala comercial nos anos 60, e o crescimento

da produção de banana e da pecuária. Em seguida, trato da fixação de novos moradores,

de origem urbana, na localidade do Lima, a partir dos anos 70. Foi entre estes novos

componentes da população local que surgiram e ganharam força as iniciativas em prol

da preservação do meio ambiente, que culminaram na criação da APA.

10 No depoimento de Zaqueu, trabalhador diarista de 39 anos, ele divide o tempo em antes e depois dasrestrições ambientais e fala das implicações desta mudança para o povo: “Acabou o lugar da gente.Antigamente, podia produzir alguma coisa, agora não pode, não pode desmatar. O povo vai comer mato?Se desmatar, você é preso.” (Entrevista 2004) 11 No depoimento de Sandra, dona de casa de 41 anos, a clivagem temporal está relacionada à presença denovos moradores e freqüentadores do distrito do Lima: “O Lima, hoje, tem mais gente desconhecida doque do lugar. De primeiro, você conhecia todo mundo. Hoje, não conhece mais ninguém. O povo éculpado porque abriu mão das coisas, vendendo e alugando – quase todos venderam terra. Com isso, vemmuita gente nem sempre boa. Eu moro distante, não me incomoda, mas eu sinto. Nem morar, eu sintomais no feriado.” Na fala de Sandra, ao contrário da fala de Zaqueu citada anteriormente, o povo aparececomo culpado pela mudança (neste caso, o estabelecimento de novos moradores), e não como uma vítimavulnerável às restrições ambientais. 12 No depoimento de Esther, pequena produtora de 55 anos, ela qualifica os turistas ocasionais comogente de fora: [Pesquisadora: “O que a senhora acha do turismo no Lima?”] “Da pior qualidade, só dáfumador de maconha. Isso é o que eu vi no Lima até hoje. Há trinta anos não era isso, a gente conheciatodo mundo. Hoje, só tem gente de fora.” Esther estabelece uma clivagem temporal com a chegada doturismo.13 Como na fala de Dario, trabalhador rural diarista de 22 anos, que qualifica como gente de fora algunsmoradores do distrito envolvidos com a implementação da APA: “Acho que funcionaria, mas teria que teruma reunião pra fazer um acordo com os moradores do lugar. Tem muita gente de fora querendo mandar,de olho é nas verbas. A APA, esse projeto, vem de muito tempo. Deviam continuar a limpeza dacachoeira, que eles já fazem.” (Entrevista Dario 2003)14 A sistematização das relações sociais no passado, em relação às quais ocorre a mudança de que tratamos variados discursos de moradores, apesar de ter levado em conta documentos históricos, dados oficiais ea literatura pertinente (Antonio Candido 2001, Liana Cardoso 1985), está baseada, principalmente, nosrelatos de moradores a respeito de seu próprio passado e de seus ancestrais.

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1. Do café ao turismo

O cultivo do café em escala comercial teve início na localidade ao final do

século XIX, com a vinda de imigrantes suíços provenientes de Nova Friburgo15. O

distrito do Lima viveu o apogeu das plantações de café já no século XX, depois,

portanto, da abolição da escravatura. Não há registro, oral ou escrito, de escravos na

região. Nas fazendas de café, a produção se organizava através da cessão de terras a

lavradores, que cultivavam café, milho e feijão, entregando uma parte da produção ao

proprietário, além de diversos gêneros alimentícios para consumo próprio. Os

lavradores se estabeleciam, com suas famílias, no interior das fazendas.

Estes lavradores, em virtude das condições do contrato de trabalho, segundo as

quais eram donos de, somente, metade do café que produziam, eram chamados meeiros.

O contrato era sempre oral e sem prazo determinado, estruturando-se em torno do

cultivo do café, principal produto das fazendas. Os meeiros recebiam um cafezal para

“tomar conta”, proporcional à quantidade de membros da sua família em condições de

trabalhar. Encarregavam-se de todos os cuidados necessários com a produção, desde as

três capinas anuais até a colheita, secagem e armazenamento do produto (geralmente

dentro de suas próprias casas) até o momento da venda. A venda era realizada pelo

proprietário e o meeiro recebia a metade do valor, descontando-se as despesas com

transporte e acondicionamento.

Entre as fileiras de pés de café, os lavradores cultivavam também milho e feijão,

arcando com as sementes e o material de trabalho (enxada, enxadão, foice, balaios e

sacas para armazenar os produtos), de cuja produção entregavam a terça parte ao

proprietário da terra, com o produto já limpo e separado. No caso do milho, o

fazendeiro ainda ficava com a quinta parte do fubá produzido nas suas moendas, a

chamada “maquia”16. Esta forma de organização dos cultivos permitia a conjugação do

trabalho entre eles, devido à intercalação do ciclo dos produtos e, desse modo, da

demanda de trabalhos diferenciados em etapas distintas da produção.

O meeiro estabelecia-se com sua família numa casa, geralmente de pau-a-pique,

dentro da fazenda. Tinha “permissão” para cultivar outros produtos ao redor da casa,

para consumo próprio, como aipim, cana, banana, hortaliças e árvores frutíferas, além15 Sardenberg 1960.16 Como ilustram as lembranças de Bernardo, pequeno produtor que herdou o sítio do pai: “Meu pai tinhaengenho de farinha. Quando desativou, eu fazia no engenho do meu cunhado. De oitenta litros de farinha,dava 10 para poder moer. Milho eu moía no moinho do Seu Edson. De cada 20 litros de fubá, a gentedava 5 – a maquia.” (Entrevista Bernardo – 2002)

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de “botar criação”, contanto que estes “bichos de terreiro” fossem devidamente cercados

para evitar estragos na lavoura17.

Muitas vezes, quando era necessário desbravar trechos de mata para cultivar

novos cafezais, o meeiro e sua família sequer recebiam uma casa, mas somente a

“permissão” para construir sua moradia no interior da propriedade. Entre algumas

famílias de lavradores, ocorria um certo nomadismo, com o estabelecimento em outras

propriedades, para iniciar novos cafezais, a cada 5 ou 6 anos. Daí, também, a

precariedade das casas construídas pelas famílias para sua própria habitação.

Com o sistema de meação, os proprietários das fazendas mantinham mão de obra

cativa no interior das propriedades, pois não só o meeiro como toda a sua família é

envolvida pelo contrato de trabalho. Tanto que, para estabelecer-se como meeiro, é

necessário não somente possuir as ferramentas de trabalho, mas também ser casado,

pois há muitas etapas da produção em que todos os “braços” da família são exigidos. Os

filhos adultos trabalham na lavoura dos pais, até se casarem e poderem se tornar

meeiros também.

Assim, a relação de autoridade estabelecida entre o lavrador e o patrão é

reproduzida no interior da família do primeiro, que comanda a produção e gerencia os

produtos (o uso ou o produto da venda)18.

Os fazendeiros, de uma maneira geral, também desempenhavam um papel

fundamental na intermediação do acesso dos seus lavradores aos serviços públicos,

fossem eles de saúde, de educação ou vida civil. Os poucos plantadores de café que

tiveram acesso às primeiras letras o tiveram em escolas mantidas pelos fazendeiros no

interior das fazendas. Quando havia problemas de saúde, era o fazendeiro quem

providenciava o transporte para o hospital, bastante distante da localidade. Para tirar

documentos, registrar crianças, em caso de morte, era o fazendeiro quem providenciava

o transporte para a cidade e, muitas vezes, auxiliava os lavradores nos trâmites

burocráticos, com os quais a grande maioria deles apresentava grandes dificuldades.

O fato de cultivar milho, feijão (mesmo entregando ao fazendeiro a terça parte) e

outros produtos para o próprio consumo ser tratado como uma “permissão” do

17 As condições do contrato verbal de trabalho guardam significativas semelhanças com a cafeiculturapraticada nas fazendas do Espírito Santo nas décadas de 60 e 70 (Cardoso 1985: 51-83), à exceção dasdiárias devidas ao fazendeiro que, no caso da localidade em estudo, são substituídas pela disponibilidadedos lavradores em tomar parte em toda sorte de serviços necessários à fazenda, mediante a convocaçãopelo fazendeiro. 18 Como aparece no depoimento de Esther, pequena produtora: “Antes, trabalhava a família toda. Nós eratudo empregado de papai” (Entrevista Esther 2002)

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fazendeiro, além da “concessão” de uma moradia, somados aos “favores” em relação ao

acesso aos serviços públicos e civis, contribuíam para construir uma relação de

dependência e eterna dívida de gratidão (quando não era, também, monetária) do

lavrador para com o proprietário da fazenda. O caráter pessoal desta relação, daquele

lavrador específico em relação àquele fazendeiro, era reforçado por laços de parentesco

e compadrio, numa região pouco populosa19 e de grande endogamia. Assim,

freqüentemente, os lavradores de um determinado fazendeiro eram seus irmãos,

sobrinhos, primos20. Nestes casos, ou seja, quando considerados como parentes dos

proprietários, os lavradores tendiam a fixar-se nas propriedades às vezes pela vida

inteira, sendo menos freqüente o nomadismo.

Esta tendência se intensificou com o processo de desvalorização do café, que

começou a ser sentido na região a partir dos anos 30 e culminou com a paralisação do

cultivo em escala comercial deste produto no início da década de 60. O declínio

populacional, desde então, foi de 54,46%, estabilizando-se o número de habitantes de

1991 a 200021. O distrito, até o início da década de 80, parecia mais “isolado” e carente

de serviços e infra-estrutura do que nos anos 20, no apogeu do café22. Muitos lavradores

migraram para São Paulo e para o Paraná, para continuar plantando café. Outros foram

para as cidades próximas, para o setor de comércio, indústria e diversas formas de

biscate e sub-emprego urbanos.

Durante o período da produção em larga escala do café, não foi possível obter

registro da existência de sitiantes ou pequenos produtores, o que tampouco permite

negar sua existência. Havia, nos cantões de relevo muito acidentado, no interior das

grandes propriedades, lavradores que arrendavam terrenos para produzir gêneros de

19 Em 1950, segundo o censo demográfico, o distrito contava com 2.872 habitantes, estando 2.753 delesestabelecidos no “quadro rural”.20 Jolas, Verdier & Zonabend estudaram, entre a população rural francesa, a designação das distânciasrelativas a ego no parentesco. De longe e de perto seriam categorias definidas a partir de relaçõesgenealógicas, mas pesam, também, a vizinhança e o convívio nas atualizações dessas regras. (1970: 11-16).21 Em 1970, havia no distrito 2.195 habitantes (VIII Recenseamento Geral), 23,43% a menos que em1950. Nos dez anos seguintes, a população decaiu em mais 34,43%, havendo em 1980 1.448 habitantes(IX Recenseamento Geral). O Censo Demográfico de 1991 revela uma interrupção à tendência dedecréscimo populacional, totalizando o distrito 1.524 habitantes, estando 1.299 deles na área rural. Em2000, novo decréscimo, o distrito passa a somar 1.184 habitantes, 344 deles na zona urbana, ou seja,29,05%.22 Sobre o tempo em que era lavrador numa fazenda de café, Alceu, aposentado rural, revela sua nostalgiaem relação à prosperidade do tempo do café: “No tempo que não tinha estrada, tinha farmácia. Agora temposto de saúde e não tem farmácia. Morre mais gente do que antigamente. Antigamente não tinha estrada.A gente ia a cavalo, era 5 horas até [município vizinho]. Saía cedo e chegava 11 horas na estação de trempra embarcar a produção. E todo mundo era mais feliz que hoje, uma fartura danada. Quando eu fuicriado no Lima, tinha cartório, padaria muito boa. Agora, para cuidar de coisa de cartório, tem que ir láem [outro diatrito serrano do mesmo município].” (Entrevista Alceu 2002)

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subsistência. Depois dos anos 30, há registros de divisão das fazendas por herança e há

indícios de estabelecimento de pequenos sitiantes como posseiros em terras

abandonadas.

Para aqueles que permaneceram trabalhando nas fazendas após a decadência do

café, o regime de trabalho e de propriedade da terra permaneceu o mesmo, sendo que a

banana passou a ser o principal produto comercial das fazendas, cultivado em meação (o

proprietário fornecia as mudas) 23, e sem o mesmo sucesso mercantil do café de outrora.

Já nas fazendas em que o solo havia sido esgotado pelos cafezais, foi plantado capim

para criação de gado bovino. A pecuária foi um fator de expulsão de lavradores, uma

vez que um só homem pode cuidar de uma grande extensão de pasto. Até os anos 80 a

banana predominou e, dali em diante, a pecuária passou a ser a principal atividade das

fazendas, por motivos que veremos mais adiante.

Durante este período de retração, quando baixaram bastante os lucros das

fazendas e a mão de obra se tornou relativamente escassa, intensificou-se a tendência de

os proprietários cederem em meação terrenos para parentes muito próximos, inclusive

filhos e irmãos. Passou a ser freqüente, também, a divisão das terras em vida entre os

filhos adultos24, mesmo antes de se casarem25. Alguns dos lavradores aparentados com

os proprietários conseguiram obter a concessão de continuar morando nas suas casas

mesmo depois da paralisação de muitas lavouras, nos anos 80, e a transformação das

terras em pasto26.

23 Como aparece no depoimento de Almir, pequeno produtor: “A gente mora aqui desde 68. Esses anostodos, fui lavrador de seu Josuel Santana, como meeiro na produção de banana e dando a terça parte domilho e do feijão. Seu Josuel dava as mudas de banana. Há 10 anos, ele assinou minha carteira pra eupoder me aposentar pelo Fun-Rural. Ainda tenho plantio de aipim, mas diminuiu muito por causa desseproblema de não poder plantar.” (Entrevista Almir 2002) Almir e Olívia continuam a morar no terreno deSeu Josuel, que é tio de Olívia, mesmo com a drástica diminuição da produção. 24 Como no caso do marido de Sandra, dona de casa de 41 anos, “Aí o pai dele [do marido] achou melhordividir para os filhos trabalharem, o pasto tava ficando mato e depois não ia poder derrubar. Ele não podiafazer tudo sozinho, dividiu pros três irmãos, todos três quiseram. Um já morava lá, casou mas não saiu. Ooutro não mora lá mas cuida da parte dele. Aí meu esposo quis mudar pra lá [região da Seara]”(Entrevista Sandra 2002) Antes disso, Sandra e o marido moravam num sítio de veranistas na região daNascente, onde ele era caseiro.25 O pai de Joel, que fora grande produtor de café, dividiu, em vida, as terras entre os três filhos e duasfilhas. Joel é o caçula, está com 33 anos e ainda é solteiro. Trabalha o pedaço de terra que lhe cabe e o dasduas irmãs que moram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e são donas de casa. “Eu trabalho maiscom banana. (...) Não dou a meia pra elas [irmãs] porque a produção é pouca. Se desse, plantava mais...Pro uso, só tem feijão. Esse ano colhi 3 sacos de 60kg, mais ou menos 200 kg. Agora tenho umas 20galinhas, tem época que chega a ser 50, 60, mas a gente vai matando, vai comendo.” (Entrevista Joel2002)26 Como ilustra o caso da família de Dario, que mora na propriedade em que o pai trabalhava antes demorrer: “Nasci perto do Vale das Águas. Vim morar na Fazenda da Seara com um ano. Moramos lá atéhoje, não é próprio mas não pagamos aluguel. Quando meu pai era vivo, era lavrador, trabalhava à terça eà meia para Seu Edson.” (Entrevista Dario 2002)

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As migrações, seja para continuar plantando café, ou continuar na agricultura,

em outros estados, seja para trabalhar no comércio ou na indústria, configuram um

leque de possibilidades de reorganização das relações sociais. Em muitos casos, alguns

membros da família se estabelecem em outros lugares, mas mantêm vínculos com os

familiares que permanecem no distrito. Dependendo da intensidade deste vínculo, os

parentes estabelecidos em outras localidades atuam como pontos de apoio na busca de

serviços de saúde, educação e outros. Muitos dos migrantes que vieram a se estabelecer

em municípios relativamente próximos do distrito, ou na própria sede do município,

mantêm o seu domicílio eleitoral no distrito, constituindo-se o dia das eleições um dia

festivo de reencontro de famílias e de reafirmação de laços e compromissos27. Portanto,

a análise do decréscimo populacional deve levar em conta que freqüentemente ele não

significa o rompimento absoluto do vínculo dos antigos moradores com a localidade.

A trajetória do senhor Aristides ilustra a manutenção de vínculo com parentes na

localidade, mesmo com a migração para um estado mais distante como o Paraná.

Nasceu em 1932, em plena crise do café, no Lima, e foi criado no sítio de seu pai, no

Vale das Águas. Eram 12 irmãos e todos trabalharam na lavoura do pai, inclusive as

mulheres.

“Era tudo do meu pai e ele comprava o que precisava para nós.

Aí depois eu casei, passei a ter minha roça e dar a terça. Depois

fui pro Paraná [em 1962], já tinha meus dois filhos, passei 32

anos lá trabalhando na agricultura. (...) [Pesquisadora – E por

que o senhor resolveu voltar pro Lima?] Por causa do estado de

saúde da mulher, né, queria ficar perto dos parentes.”

Quando retornou, em 1994, Aristides comprou um lote no pequeno centro

comercial, onde construiu a casa onde mora e mais três suítes nos fundos do terreno,

que aluga aos turistas nos finais de semana e feriados.

Um dos principais motivos mencionados por Aristides para a sua mudança para

o Paraná, em 1962, foi o isolamento e a falta de infra-estrutura da localidade:

[Pesquisadora – Por que o senhor foi para o Paraná?] “Porque a

coisa aqui tava ruim, né, as coisa aqui não é fácil. Pra pegar uma

condução do Vale das Águas a [cidade mais próxima] era difícil.

[Pesquisadora – Não tinha condução?] “Não. Glicério, tinha que

27 “Das minhas filhas que moram no Rio, duas trabalham em loja, no comércio. As outras duas nãotrabalham, têm filhos pequenos. De vez em quando elas vêm aqui, elas votam aqui.” (Entrevista Bernardo2002)

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sair de manhã cedo, de madrugada, pra pegar condução no

Glicério, tudo a pé, você sabe lá o que é isso? Muito chão. Até

achei por bem, eu tinha um colega no Paraná, achei por bem lá,

e lá me dei bem também.”

Do processo de desvalorização do café, que culminou com a extinção do seu

cultivo em escala comercial na localidade (início da década de 60), até a intensificação

do turismo no final dos anos 80, o distrito viveu um período de isolamento em relação

às cidades próximas, devido à crescente carência de transportes e precariedade das vias

de acesso. Além disso, grande parte do comércio local fechou as portas – como

padarias, farmácias, mercados - e serviços como correio e cartório deixaram de existir

na localidade.

Esta situação contribuiu para aumentar a dependência da população em relação

aos favores dos fazendeiros. Além do transporte à cidade e o auxílio em trâmites

burocráticos, os fazendeiros mantinham relações pessoais com políticos e funcionários

do governo. Não só os fazendeiros, mas também alguns de seus filhos e parentes, que

estudaram e empregaram-se nas cidades, possuíam laços de amizade e

comprometimento com pessoas influentes nos serviços públicos. Como se tratam de

relações personalizadas, cada fazendeiro ou pessoa a ele ligada possuía sua própria rede

de contatos, o que delimitava o âmbito das facilidades que ele poderia obter. Dessa

forma, da obtenção de uma vaga num hospital ou numa escola à habilitação para a

aposentadoria, diferenciavam-se os tipos de favores que cada fazendeiro era capaz de

obter28. Esta diferenciação contribuía para a personalização das relações de cada

morador da localidade com diferentes intermediários, de acordo com as suas

necessidades. Este emaranhado de comprometimentos gerava tensões e, ao mesmo

tempo, constituía-se na base das alianças no “tempo da política”29.

Durante este período de isolamento, nos anos 70, começaram a se fixar no

distrito do Lima os primeiros neo-rurais, na região do Vale das Águas. Ainda pouco

28 Karina Kushnir mostra como, do ponto de vista de determinados políticos e sua rede de relações, ocorreo acesso aos recursos públicos. Segundo a autora, acesso é a categoria-chave para entendermos a naturezadas relações da rede social destes políticos. O acesso define a noção de política (onde se tem acessos), depoder público (segundo os níveis de acesso) e a identidade de um político (aquele que tem “bonsacessos”). Amizade seria a palavra mais empregada para definir os sentimentos entre os membros da redeporque, no mundo dos acessos, valoriza-se a lógica da emoção e do apego em detrimento à lógicaburocrática. (2000: pp. 88-107)29 Palmeira demonstra a existência de uma certa autonomia entre a ‘lealdade do voto’ e as ‘lealdadesfundamentais’ a familiares ou parentelas. Para ele, a lealdade política tem a ver com o compromissopessoal, com favores devidos a uma determinada pessoa, em determinadas circunstâncias. A lealdadepolítica articula uma outra esfera de sociabilidade e, eventualmente, as diferentes esferas podem entrar emconflito (1996: 46).

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numerosos e em ritmo lento, novos moradores de origem urbana iam adquirindo

terrenos no Vale das Águas e no pequeno centro comercial. Foi o início discreto e

silencioso da transformação do uso daquele espaço: não mais para a produção agrícola,

e sim como lugar de fruição do contato direto com a natureza por pessoas vindas da

cidade.

2. Novos moradores em busca da natureza

Até os anos 70, os poucos novos moradores que se fixavam no distrito do Lima

possuíam laços com outros moradores do lugar, através de redes de relações familiares,

de compadrio, de amizade, que não estão atreladas somente ao critério territorial. Esta

forma de atração e fixação de novos moradores não implicava mudanças significativas

nas relações sociais da comunidade, uma vez que os novos moradores, além de pouco

numerosos, compartilhavam uma mesma “linguagem” (não apenas uma língua, mas

uma proximidade intelectual, responsável por transmitir, através das gerações, valores,

sentimentos e saber – características relativamente homogêneas que se sobrepõem às

especificidades individuais de seus membros)30. Eles chegavam agrupados em famílias,

para empregar-se como meeiros na lavoura ou na criação de gado, ou adquirindo terras

para se tornarem pequenos produtores agrícolas e até mesmo através da posse.

A partir dos anos 70, passaram a fixar residência na localidade novos moradores

provenientes de grandes cidades, que, de uma maneira geral, não possuíam vínculos de

parentesco ou laços com a comunidade. No final dos anos 80, esta forma de migração se

intensificou sensivelmente, mostrando íntima relação com o turismo e apresentando

diversas formas intermediárias entre a fixação de residência definitiva e a freqüência

ocasional à localidade. Aparentemente, a motivação destes migrantes estava

relacionada à aspiração de adotar um estilo de vida em contato direto com a “natureza”.

As motivações destes novos moradores, e a sua forma de fixação no distrito, são

associadas a valores e aspirações construídos no âmbito da contracultura e do neo-

ruralismo.

Giuliani estudou neo-rurais estabelecidos no município de Nova Friburgo.

Segundo ele, a decisão de morar no campo, para estes neo-rurais, é uma escolha – de

não mais morar na cidade nem tampouco trabalhar em profissões urbanas e,

principalmente, de valorização do cotidiano.

30 Baseado em Tonnies, para quem a comunidade é composta de indivíduos e famílias que se conhecemintimamente, têm hábitos e uma história de vida comuns, para cuja constituição a existência de umterritório comum pode contribuir, mas não é um critério exclusivo ([1931] 1957)

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A designação de neo-rurais ajuda a compreender as motivações de alguns dos

habitantes do distrito serrano que venho pesquisando, principalmente em virtude de

serem pessoas vindas das cidades, que optaram por um estilo de vida pautado no

“contato com a natureza”. No entanto, este recurso analítico exige cuidados, pois não se

trata de tomar o “rural” ou o “urbano” como realidades empíricas, mas como

representações sociais e, portanto, sujeitas a apropriações diversas, de acordo com as

circunstâncias sob as quais são acionadas31. Assim sendo, é preciso compreender os

interesses e motivações que estão em jogo na opção daquele conjunto específico de

pessoas por um determinado estilo de vida.

Alguns aspectos diferenciam os novos moradores do distrito serrano no qual foi

realizada minha pesquisa de campo daqueles estudados por Giuliani. Os neo-rurais do

município de Nova Friburgo pareciam dispor de um volume maior de capital para

investir em suas propriedades, assim como de um planejamento concreto do

empreendimento a ser desenvolvido – criação de rãs, escargots ou cultivo de ervas finas

– e de uma formação escolar de, no mínimo, nível superior, além de contatos sociais nos

centros urbanos e experiências de viagens ao exterior. Sua organização produtiva é

decididamente capitalista, todavia com certas ambigüidades: “ao falar de suas

atividades, os “novos rurais” expressam uma satisfação com o fato de terem construído

as condições de uma vida mais serena, mais harmoniosa, na qual o tempo de trabalho

não contrasta com o tempo livre”. Todavia, os “neo-rurais” exigem de seus

trabalhadores uma “racionalidade urbana” na organização do trabalho e no processo

produtivo, porém lhes impõem condições rurais ‘tradicionais” quando se trata de

salário, moradia ou jornada de trabalho (p. 65).

A inserção destes neo-rurais não parece ter provocado grandes mudanças no

local: “a introdução repentina de um grande volume de tecnologia moderna, assim como

contatos diretos e freqüentes com a grande cidade, coloca-os imediatamente no centro

da atenção. A sua maneira urbana de ser, de consumir, de se relacionar, começando com

31É preciso não perder de vista que o termo “neo-rural” remete a uma noção do que seria o “rural” esugere uma inovação em relação a ele. Parece implícita uma referência ao rural tradicional, espaço deprodução agrícola, habitado pelos trabalhadores ligados a esta atividade – que seriam os “rurais”-, emcontraposição à qual se desenha a figura do “neo-rural”, que valoriza aquele mesmo espaço em função deoutros elementos além dos produtivos – especialmente aqueles que remetem à proximidade com a“natureza” e à negação do estilo de vida associado ao “urbano”. Carneiro sustenta que a ruralidade nãopode mais ser definida em oposição à urbanidade e sugere “reconhecer espaços de sociabilidade e dearticulações econômicas distintos dentro de uma mesma localidade (...) para romper com as oposiçõesbinárias e dar conta das inserções plurais dos indivíduos socialmente posicionados na sociedade urbano-industrial” (1998: 73). Chamboredon propõe, ao invés de uma sociologia da sociedade camponesa, umasociologia do novo conjunto de utilizadores do território tido como rural e dos seus novos usos sociais(1980: 97-98).

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a construção da moradia, em geral muito superior ao padrão de conforto médio da área,

torna-os pessoas distintas. Sua influência, porém, não parece passar de objeto de

imitação dentro do possível (...) As relações com os vizinhos são mantidas no nível do

mínimo indispensável, sendo que os códigos sociais do meio são apreendidos para que

possa haver uma adaptação ao local, na medida em que as circunstâncias tornem isso

conveniente. Portanto, embora a inserção seja repentina, a assimilação é muito lenta.

Durante um tempo reativamente longo, funcionam formas de existência paralelas, sem

que o território seja significativamente afetado pela “nova inserção”.

Diferentemente dos neo-rurais estudados por Giulianni, aqueles que vieram a se

estabelecer no distrito que sedia minha pesquisa parecem ter trazido mudanças bem

mais significativas para a localidade a partir, principalmente, da década de 90, quando

alguns passaram a atuar como ambientalistas locais. No entanto, para compreender

estas mudanças, será necessário retornar à chegada dos primeiros neo-rurais ao distrito,

nos anos 70, alguns dos quais figuraram entre os ambientalistas mais atuantes

localmente no momento da implementação da APA.

2.1. Os hippies dos anos 70

Os primeiros neo-rurais que chegaram ao distrito, na década de 70, eram jovens32

entre 20 e 30 anos de idade, provenientes de cidades grandes, fortemente influenciados

por valores propagados no âmbito do movimento da contracultura33, especialmente o

movimento hippie.

É emblemático desta influência o fato de alguns destes neo-rurais terem se

estabelecido no distrito com a intenção de formar uma “comunidade alternativa”, no

vale do distrito onde hoje se situam as cachoeiras mais visitadas pelos turistas – o Vale

32 A juventude tem sido pensada como uma definição cultural, ao invés de uma condição biológica. Ainterpretação da juventude como fase de transição e seus atributos são tratados como conotações culturaisde amplo significado que os indivíduos assumem como parte de sua personalidade em muitos estágios davida (Mitterauer 1986; Ziehe, 1991 apud Melucci 1997).33 O historiador norte-americano Theodore Roszac designa como “contracultura” o movimento culturalque teve lugar nos Estados Unidos entre 1942 e 1972 (1995: xii). A propagação internacional dessesvalores em países com regimes políticos diferentes e de desenvolvimento econômico desigual tem origemno que interpreta-se como o “nascimento e a formação de uma cultura adolescente no seio da cultura demassas, a partir de 1950” (Morin 1997: 137). Segundo E. Morin, o termo “contracultura” é insuficiente,uma vez que passou a existir um novo paradigma cultural “fundado sobre a recusa do princípio daalternância e sobre a crítica da participação no mundo fundada no consumo” (Morin 1997: 135). Roszacdistingue esse movimento dos protestos das gerações anteriores por ter procurado colocar em prática ascríticas à sociedade em que viviam (1968: 26). Castells entende por contracultura “a tentativa deliberadade viver segundo normas diversas e, até certo ponto, contraditórias em relação às institucionalmentereconhecidas pela sociedade, e de se opor a essas instituições com base em princípios e crençasalternativas” (2002: 147).

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das Águas. A formação desta “comunidade” se deu através da aquisição de sítios

contíguos, em sociedade, por amigos que pretendiam produzir os próprios alimentos e

construir a própria moradia, coletivamente, acreditando, assim, estar rompendo com a

sociedade de consumo. Cultivavam, sem uso de fertilizantes químicos, milho, feijão,

frutas, hortaliças e ervas medicinais, criavam galinhas e chegaram a produzir vinagre de

banana e banana passa. A produção não visava o lucro, mas alguns dos excedentes eram

comercializados em um nicho de mercado que começava a se delinear, o de produtos

“orgânicos”. Segundo dois dos integrantes desta “comunidade alternativa”, as tarefas

eram divididas e as decisões tomadas coletivamente, de acordo com as necessidades e

aptidões de cada um.

A atitude de uma das integrantes da “comunidade alternativa”, que decidiu dar à

luz a um filho “da maneira mais natural possível”, no sítio, sem luz elétrica e muito

distante dos serviços de saúde, também demonstra o grau elevado de adesão aos valores

propagados pela contracultura. A recusa de uma visão científica do mundo foi uma das

atitudes típicas dos jovens que constituíram o movimento da contracultura. Um parto

sem assistência médica num local de difícil acesso e pouca infra-estrutura, para uma

filha de funcionários públicos, proveniente de uma grande cidade, que normalmente

teria acesso a boas maternidades, significava também uma ruptura com os valores

dominantes no seu meio social e uma tentativa de pôr em prática um pensamento crítico

em relação à sociedade industrial e de consumo. Neste caso, o parto num hospital foi

associado por ela a uma artificialização de um processo natural.

A tomada de atitudes e decisões com a intenção de romper radicalmente com a

sociedade de consumo acontecia em meio a jovens que, antes de optar por fixar-se na

localidade com o objetivo de transformar seus estilos de vida, já vinham se relacionando

e tomando parte em redes presentes nos seus centros urbanos de origem. E foi a sua

inserção nestas redes que alimentou seus planos de mudar seu estilo de vida.

As trajetórias de dois integrantes daquela “comunidade alternativa” permitem

antever que opções de vida à margem dos padrões dominantes entre pessoas da sua

idade e posição social já vinham se delineando em suas vidas: ao invés de buscar

formação universitária e profissões estáveis, eles eram artesãos que começariam,

também, a tentar se tornar agricultores. E que a idéia de se fixar no distrito surgiu

através de sua rede de amizades:

Mara era artesã, fazia bijuterias de prata que expunha na Feira Hippie da Praça

Saens Peña. No início de 1974, havia morado quatro meses com o pai, funcionário da

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Caixa Econômica Federal, em Brasília. Foi quando teve a idéia de comprar dois cavalos

para andar pelo interior. De volta ao Rio de Janeiro, expondo [artesanato] na Tijuca, um

amigo a convidou para conhecer o Lima e participar da “comunidade”, como ela narra:

“Esse final de semana estamos indo para Lima. Um amigo

comprou uma propriedade e está fazendo uma sociedade

alternativa, ou melhor [ela se corrige], comunidade. O Rodrigo

[seu marido] já morava nessas terras há dois anos. Houve uma

proposta do sócio dele para eu ficar para dar uma força, pois o

Rodrigo sozinho tinha que plantar, cozinhar... Resolvi dar um

tempo para ver como era. Nunca tinha cozinhado, feito nada

disso. Fui ficando. Surgiu um relacionamento e estamos juntos

até hoje. Dois anos depois o meu segundo filho nasceu. ” Mara

lembra com a exatidão a data da chegada ao distrito: 23/07/74.

Antes de ir morar no distrito em 1979, a convite do amigo Jaime (hoje

proprietário de um camping), para fazer uma “comunidade agrícola” ou “comunidade

ecológica”, Pedro, originário do subúrbio de Irajá, era músico e artesão no Rio de

Janeiro. Fazia toda sorte de objetos de madeira e, especialmente, instrumentos musicais

(berimbau, maculelê, etc.). Morar no Vale das Águas exigia uma certa infra-estrutura,

devido à distância e à irregularidade do terreno. Pedro explica que comprou o terreno

onde atualmente funciona seu camping, no centro comercial do distrito, com a intenção

de, em pouco tempo, mudar-se para o Vale das Águas:

“Para fazer uma base e depois subir. Lá [Vale das Águas] tinha

que ter estrutura, cavalos... Aqui era uma chácara, com horta,

não tinha luz. Acabei ficando aqui embaixo, não inteirei o

dinheiro para a compra do terreno lá. Fiquei morando o tempo

que deu para viver. Pensava em fazer um atelier de percussão,

plantar cabaça, fazer berimbau; trazer um grupo de capoeira e

desenvolver um trabalho com as crianças.”

No entanto, o ímpeto de ruptura com a sociedade de consumo não surgia com a

mesma intensidade para todos os sócios proprietários do sítio no Vale das Águas. Além

disso, no tocante à criação dos filhos, o desejo de ruptura com a sociedade de consumo

mostrava seus limites:

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Mara explica que sua partida, com sua família, para Cabo Frio, em 1980, teve

como motivações os conflitos no interior da “comunidade alternativa” e a falta de infra-

estrutura do local:

“Por sermos os únicos moradores naquele momento,

começaram a haver divergências de opinião com os outros

sócios, que faziam faculdade no Rio e só vinham nos finais de

semana e feriados. Teoria é uma coisa, prática é outra. Passamos

a não nos entender e vendemos a nossa parte. Ao mesmo tempo,

o Lima não oferecia infra-estrutura para as crianças, médico,

escola... e o sítio não dava retorno financeiro para buscar esses

recursos fora”.

Pedro fala das dificuldades para construir, de fato, uma “comunidade

alternativa”. Diz que foi embora do distrito por causa da falta de retorno financeiro, da

frustração com alguns projetos que falharam em virtude dos conflitos com a

“comunidade local” e da dificuldade de formar a “comunidade alternativa”.

“Minha mulher fez um trabalho com as crianças, uma oficina de

percussão e confecção de instrumentos, mas houve rejeição da

comunidade. Alguns pais ameaçaram tirar os filhos da escola,

porque ela era hippie. Este tipo de problema foi um dos que nos

levaram a ir morar no Amazonas”.

Nem todos os neo-rurais que se estabeleceram na localidade na década de 70

integraram a “comunidade alternativa”, mas o fato de ela ter chegado a existir é bastante

revelador das motivações que moviam aqueles migrantes.

Além desta particularidade – ou seja, a de terem sido fortemente influenciados

por valores associados à contracultura e ao desejo de ruptura com a sociedade de

consumo -, os neo-rurais que chegaram ao distrito na década de 70, apesar de fazerem

parte de uma classe de proprietários, uma vez que foram capazes de adquirir as terras

que ocuparam, diferiam daqueles estudados por Giuliani, verdadeiros empreendedores

capitalistas.

No entanto, significativas semelhanças podem ser encontradas. Os pretensos

hippies também precisavam contratar empregados para trabalhar em suas propriedades,

pois logo perceberam que não seriam capazes de cuidar dos terrenos, plantações e

afazeres domésticos. Estas contratações eram feitas de acordo com os padrões rurais

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“tradicionais” no que se refere a salário, jornada de trabalho e moradia, assim como

procediam os neo-rurais de Friburgo.

O Vale das Águas, região do distrito primeiramente ocupada por estes neo-

rurais, assim como o pequeno centro comercial do lugarejo, passaram a ser alvo do

desejo crescente de pessoas das grandes cidades interessadas em adquirir sítios para

residência ou veraneio, que vieram a conhecer o lugar através de suas redes de

amizades. A especulação imobiliária provocou uma redução significativa dos terrenos

cedidos a lavradores locais como meeiros ou terceiros, muitos dos quais passaram a

trabalhar como caseiros ou diaristas, empregadas domésticas, faxineiras e lavadeiras

para os neo-rurais.

Apesar disso, o estabelecimento destes neo-rurais na década de 70 não chegou a

provocar grandes transformações no quotidiano local. Assim como em Nova Friburgo,

depois do estranhamento inicial, permaneceram como que formas de existência

paralelas.

No entanto, os primeiros neo-rurais deste distrito serrano não provocavam

grande admiração na população local, como aconteceu em Nova Friburgo. As suas

técnicas de produção mantinham muitos pontos em comum com a agricultura e criação

de animais praticada pelos lavradores locais, consistindo as diferenças basicamente na

utilização de adubos naturais e seleção de cultivos e métodos que evitassem a realização

de queimadas. A ausência de luz elétrica limitava tanto o emprego de tecnologia

avançada quanto o padrão de consumo, e suas residências, à exceção das instalações

sanitárias dentro da casa e dotadas de um pouco mais de conforto, seguiam os padrões

locais. Além de criticarem técnicas agrícolas e de criação de animais consideradas mais

trabalhosas, a população local apresentava grandes reservas em relação a hábitos pouco

ortodoxos dos forasteiros, tais como o banho de rio para recreação, que muitas vezes

dispensava roupas de banho ou de qualquer outro tipo, e o consumo de maconha.

O conflito de valores com os forasteiros aparece nas declarações da lavradora

Manuela, de 85 anos, que mora no Vale das Águas há 60 anos. Quando o marido

morreu, ela permaneceu na mesma casa, morando com o filho caçula, de 54 anos, que é

“colono”, dá um terço de suas colheitas para o proprietário. Sobre o turismo, ela conta:

“Os primeiros da hippada foi Jaime e Rodrigo. Os turistas, pra

quem tem comércio e até pra quem não tem, são os únicos que

vêm trazer dinheiro. Minha nora trabalha no Jaime e no

Everaldo, fazendo limpeza de casa, lavando roupa. Pior é

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quando vêm esses maconheiros. Deviam botar guarda pra

revistar os carros, porque vem gente boa, mas vem gente que

não presta.”

Apesar de Manuela se referir aos primeiros neo-rurais de maneira pejorativa,

como “hippada”, valoriza o estabelecimento destes moradores como gerador de

trabalho para os moradores de origem camponesa, como exemplo a sua nora. O turismo,

que ganhou impulso na localidade a partir do final da década de 80, também é

valorizado por Manuela como gerador de renda, mas ela se ressente do consumo de

maconha pelos turistas. A fala de Manuela toca em dois pontos importantes da relação

dos moradores do Lima com o turismo: como fonte de renda, mas também como fonte

de conflitos de convivência devido ao uso de substâncias ilícitas, barulho noturno e

desordem.

2.2. O turismo que veio para ficar

A chegada da luz elétrica às regiões mais centrais do distrito, em 1986,

aconteceu num momento em que tomavam fôlego o crescimento do turismo e o

estabelecimento da pecuária extensiva em maior escala. Os neo-rurais da década de 70

que retornaram, outros que haviam permanecido e outros que começavam a chegar,

num ritmo crescente dali em diante, passaram então a investir em produtos e serviços

direcionados aos turistas.

“Em 85, colocaram luz no Lima e nós começamos a planejar

o regresso. Rodrigo estava trabalhando com marcenaria. Em 86,

voltamos para abrir uma marcenaria neste lote e construir uma

casa. Só que nesta época o Lima já vivia uma realidade mais

voltada para o turismo. Quando eu fui embora, não havia

turismo algum. Então decidimos fazer daqui um comércio, mas

o sonho do sítio não acabou. A idéia era criar um comércio para

um dia vender e voltar às origens. Agora estou partindo para

isso” [entrevista de Mara, 2001 – naquele momento, proprietária

de um bar/lanchonete/loja de artesanato]

“Este tipo de problema foi um dos que nos levaram a ir morar no

Amazonas. Antes, ficamos um tempo em Trancoso [litoral sul

da Bahia], onde me aprimorei no artesanato com madeira. No

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Amazonas foi onde consegui viver mais ecologicamente.

Moramos sete anos dentro de um barco. Minha mulher estava

fazendo um trabalho de biologia. Enquanto isso, várias pessoas

moraram nesse terreno: Rita [ex-proprietária de um camping e

artesã], Dadá [ex-proprietário de uma boate] , D. Zé [músico].

Eles criaram cavalos, a onda no Lima era andar a cavalo. Há

cinco anos voltei para cá. O projeto aqui é fazer mais que um

camping, uma coisa mais temática. É o projeto rasta-reggae,

que inclui fazer instrumentos, plantar ervas medicinais e um

camping temático, onde se pode escutar um reggae, fazer uma

comida natural, uma fogueira. O reggae é a música do futuro,

não fala em violência. É o que eu tô vivendo e é o que me

sustenta.” [entrevista com Pedro, 2001]

Os projetos de vida e trabalho destes neo-rurais permitem antever que, embora a

intenção de ruptura total com a sociedade de consumo não tenha perdurado em suas

vidas nos moldes previstos (sob a forma de uma “comunidade alternativa”), suas

ocupações ligadas ao turismo sofrem influência de discursos e simbologias propagados

pela contracultura, através, por exemplo, da utilização de imagens, músicas e objetos na

decoração de seus estabelecimentos comerciais que fazem referência àquelas

simbologias.

Isto ocorre em associação com características específicas do ramo do turismo

que predomina no lugarejo. Trata-se de um turismo que consome produtos materiais e

simbólicos relacionados a uma gama de manifestações culturais às vezes bastante

distintas, mas que apresentam pontos em comum. Algumas destas características em

comum, que procurarei enumerar aqui, não estão presentes em cada um destes

segmentos de consumo, mas eles compartilham uns com os outros vários destes

aspectos: a busca do contato com a natureza; o consumo de substâncias ilícitas; a

valorização de estilos musicais, movimentos religiosos, literários e artísticos, filosofias

e estilos de vida e toda uma variedade de símbolos a eles relacionados que pretendem se

constituir numa alternativa aos padrões dominantes na sociedade de consumo. Por

exemplo, há um restaurante vegetariano; um camping rasta reggae; uma creperia e bar

cujo nome foi extraído da religião dos Maias; um camping sem luz elétrica e com

acesso somente por trilha, que incentiva a prática da meditação e o consumo de

produtos vagetarianos; uma lanchonete cujo nome fazia menção à fome que sucede o

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consumo da maconha – “Laricas”; a comercialização de roupas indianas e artesanais, e

daí por diante.

Os turistas, mais numerosos nos feriados, costumam fazer uso recreativo de

recursos naturais como cachoeiras e trilhas abertas na mata, além de desfrutarem da vida

noturna que se desenvolveu no lugarejo, formada por bares, alguns com música ao vivo,

e shows de forró. A maioria das casas de aluguel (assim como a maioria das pousadas)

seguem um padrão de construção barato e, com mais freqüência no pequeno centro

comercial, não dispõem de quintal próprio, compartilhando o mesmo lote com outras

casas. Há um sem número de campings, aparentemente a forma de hospedagem mais

procurada.

Além dos turistas que freqüentam o distrito nos períodos de férias, feriados e

finais de semana, alojados em pousadas, campings e casas alugadas por temporada, há

aqueles que adquirem ou alugam sítios ou pequenas casas como residência secundária,

para veraneio.

Há ainda pessoas que conheceram a localidade na condição de turistas e que

decidiram lá fixar residência. Desde a década de 70, este tipo de ocupação vem se

expandindo, empreendida tanto por aposentados e pensionistas, pessoas que vivem de

rendas, quanto por jovens mantidos pelos pais, ou empregados em profissões que

permitem um deslocamento temporário das grandes cidades ou ainda que possibilitam a

relação via internet com clientes ou patrões – como tradutores, roteiristas de televisão,

artesãos, músicos, etc. Este segmento de moradores do distrito costuma, também,

investir ou empregar-se em empreendimentos voltados ao atendimento do turismo,

como lojas de roupas e acessórios, lanchonetes, restaurantes, pousadas, bares e

campings.

Todos estes, provenientes de centro urbanos e cuja fixação de residência na

localidade figura em seus discursos como uma opção, agrupo sob a designação de neo-

rurais, sem que a unificação sob este conceito obscureça a diversidade dos indivíduos

que ele reúne.

A comparação com o conjunto de utilizadores do território de quatro villages

situados na região da Provence, na França34, contribui para lançar luz sobre esta

diversidade e, ao mesmo tempo, sobre os aspectos que permitem agrupá-los sob uma

mesma classificação. Chamboredon se refere ao espectro de posições sociais ambíguas,

situadas entre o pólo urbano e o pólo rural, e decisivas para o estudo das novas relações

34 Pesquisa comentada por Chamboredon (1980).

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entre a cidade e o campo. Os autores da pesquisa comentada por Chamboredon

argumentam que a natureza das relações dos consumidores do campo e da sociedade

rural – todos os não-camponeses freqüentando aqueles villages em tempo parcial - com

a sociedade rural (essencialmente comandada pelo passado social da linhagem e a

trajetória do indivíduo) determina suas relações com a terra e a paisagem. Assim,

“camponeses desenraizados querendo manter suas raízes ou burgueses fazendo um

retorno lúdico hebdomadário à terra têm em comum querer negar a definição da terra

como meio de produção e de definir tendencialmente o campo como paisagem.” (1980:

106)

Primeiramente, no caso francês, tratam-se de consumidores do rural “em tempo

parcial”. No caso desta pesquisa, bem como naquele dos neo-rurais estabelecidos em

Nova Friburgo, o consumo do rural pelos citadinos vai além do turismo e da residência

secundária, uma vez que eles de fato fixaram residência nas localidades rurais.

Outra diferença importante é que, no caso francês, há uma valorização do

camponês, por parte dos consumidores urbanos, como modelo de um estilo de vida não

predador e não destruidor, livre dos hábitos de consumo urbanos, respeitoso dos ritmos

e dos equilíbrios naturais - como transparece na prática da agricultura parcialmente livre

das exigências de rentabilidade econômica (costume e estilo de vida, passa tempo, lazer)

- mesmo que como uma representação idílica que implica uma desqualificação

simbólica do agricultor, condenado a se “modernizar” para sobreviver.

No caso do distrito do Lima, os neo-rurais valorizam, essencialmente, o aspecto

selvagem e intocado das paisagens, e criticam os agricultores por derrubarem e

queimarem a “mata” com o objetivo de cultivar lavouras. Neste sentido, os agricultores

são considerados ora como destruidores da natureza que precisam ser punidos, ora como

pessoas que precisam ser educadas ou conscientizadas a respeito da necessidade de

manter intacta a natureza.

A fala de uma aluna durante o curso de capacitação de monitores ambientais,

promovido pela ONG ambientalista Grupo Germinal35, expressa com autenticidade as

35 As aulas do supracitado curso tiveram o mérito de reunir, pela primeira vez num ambiente de estudo,moradores do distrito de diferentes pertencimentos - desde aqueles “criados na roça” até moradores deorigem urbana das mais variadas formações – para discutir a transformação do distrito em APA. Adiferença desta reunião ter ocorrido no âmbito de um curso é que não estavam em jogo decisões a respeitodo uso do espaço e dos recursos, o que proporcionou um ambiente amistoso, no qual muitos alunos sesentiram à vontade para trocar experiências. A análise dos efeitos deste curso são analisadas no capítulo2.

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motivações dos neo-rurais que se estabelecem no distrito do Lima, além de tratar da sua

relação com a população local de origem camponesa:

“Então, essa diversidade toda que a gente tá convivendo aqui no

Lima. Porque é, né, muito diverso esse lugar. (...) A gente não

nasceu nessa terra. Se está aqui, é por algo especial. Tem que

tratar com todos esses valores, né? Aqui, além de ser um curso

pra capacitar monitores ambientais, esse espaço aqui é muito

interessante porque a gente ta se reconhecendo como cidadãos,

moradores dessa terra. Acho que, mesmo com toda a dificuldade

de compreensão que a gente possa ter, a gente sabe que a gente

quer estar aqui e viver bem nessa terra. A gente gosta de estar

aqui, ninguém ta aqui obrigado. (...) Acho que existe a coisa do

se sentir ligado afetivamente a uma terra que está protegida. Eu

vim pra cá pensando em vir pruma Área de Proteção Ambiental.

Os meus valores estavam ligados a isso. Cheguei a denunciar o

cara que estava cortando árvore lá na Barra do Lima, e eu vi que

afinal eu deveria ter ido conversar com ele, porque eu sou uma

educadora. Só fui me dar conta disso depois que eu fui

conversar com ele. Já tinha passado o fiscal lá por causa do

problema. Eu me senti super mal por ter entrado em contato

assim, através da lei. A gente tem que se informar, a gente chega

muito idealista e o pessoal daqui fica com a coisa fechada.

Devido a isso, a gente tem que se comunicar.” [Laura, mestre

em Belas Artes, morando no distrito há 2 anos e professora do

ensino médio na escola municipal local]

Laura, como ela declara, veio da cidade grande atraída pelo fato do distrito do

Lima ser uma Área de Proteção Ambiental, onde ela poderia adotar um estilo de vida

em contato com a natureza, de acordo com os valores que escolhera para sua vida. No

seu “idealismo”, acabou por denunciar um vizinho às autoridades, entrando em contato

“através da lei”. Subjacente à fala de Laura, primeiramente, há uma concepção da

preservação da natureza segundo a qual toda e qualquer “interferência” humana na

natureza é nociva, uma vez que fica suposto que o ato de cortar a árvore é

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indiscutivelmente ruim36. A sua auto-crítica se refere à atitude que tomou diante do

acontecimento. Fazendo uma denúncia, ela tratou seu vizinho como um criminoso que

devia ser punido. Ela se retrata e afirma que a atitude correta seria a de tratá-lo como

alguém que precisa ser conscientizado a respeito dos efeitos negativos do seu ato. A

visão de Laura expressa com autenticidade a concepção de preservação da natureza

professada pelos neo-rurais estabelecidos no distrito do Lima, bem como as suas

posturas diante das práticas da população local de origem camponesa e os conflitos

resultantes da sua convivência num mesmo espaço.

A interpretação dos moradores de origem camponesa do distrito do Lima a

respeito da convivência com “novos” moradores de origem urbana e com o turismo

difere da interpretação dos “neo-rurais” a respeito desta convivência. Muitos se

ressentem de mudanças nas relações sociais, estabelecendo comparações com um

passado anterior à chegada de novos moradores, quando havia um controle da

comunidade sobre quem circulava na localidade37.

A fala de Sandra, esposa de um pequeno pecuarista e pedreiro, quando indagada

a respeito de mudanças recentes no lugar onde mora, trata desta mudança nas relações

sociais:

“Mudou, mas tá ruim. Bastante coisa piorou pra quem sempre

viveu aqui. Todos os moradores falam também. Muita gente

estranha de fora, muito diferente, o Lima, hoje, tem mais gente

desconhecida do que do lugar.”

No caso deste trecho da fala de Sandra, ela havia sido questionada,

especificamente, sobre mudanças no distrito. A comparação com o passado, no entanto,

36 Esta não é a única concepção da preservação do meio ambiente possível, como sugerem as falas dosneo-rurais do distrito do Lima. A questão ambiental institucionalizou-se e globalizou-se, mas a maneirapela qual são concebidas medidas em defesa do meio ambiente difere. Galano resenhou um número darevista Études Rurales que trata da aplicação de medidas chamadas de agroambientais em países comoFrança, Bélgica, Inglaterra, Irlanda e Estados Unidos durante a década de 90 (1999). A autora analisousete artigos produzidos por pesquisadores de dois centros de pesquisa franceses que oferecem umpanorama de análises de práticas de proteção do meio ambiente e de paisagens naquele país. Chamo aatenção para a diferença da concepção das medidas ambientais adotadas num parque no Sul da França,que associa a pecuária à proteção da natureza: “houve cortes de árvores em pontos estratégicos e criaçãode faixas de centenas de metros sem vegetação, para impedir a propagação do fogo. Para conservar asnovas áreas desmatadas, recorreu-se à introdução de gado trazido de outras regiões do país, onde,segundo as estações, era precária a situação dos pastos” (Galano 1999: 4).37 O território comum não é um critério exclusivo, tampouco indispensável, para a formação de umacomunidade. Bailey introduz o conceito de comunidade moral, que envolve as relações de conflito ediferença, definindo um conjunto de indivíduos compartilham valores e categorias e que têm suareputação conhecida por todos. Para demonstrar como ocorre a pequena política, na vida cotidiana decada um, ele recorre a um village nos Alpes Franceses com 400 habitantes, onde mulheres evitam servistas conversando em público para não se tornarem alvo de fofoca. Há, portanto, por parte dacomunidade, um controle da circulação das pessoas.

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surgia espontaneamente quando era requisitada a opinião dos entrevistados a respeito do

turismo no distrito do Lima.

Muitas das declarações sobre o turismo trazem uma nostalgia em relação ao

tempo em que não havia turistas na localidade, associando o turismo à desordem, ao

barulho, ao consumo de drogas. Como opina Ilka, ex-lavradora, hoje proprietária de

uma lanchonete situada num ponto privilegiado para o atendimento ao turismo:

“De primeiro, não tinha turista no Lima. Tava melhor, o pessoal

vivia tranqüilo. Depois, as famílias vinham pra cá. E agora não

vêm mais por causa dessa turma que só vem fumar e fazer

bagunça.”

Marieta, lavradora e professora primária aposentada, também identifica um

primeiro momento em que o turismo era constituído por “famílias”. Sua fala expressa o

sentimento dos moradores em relação à desordem associada aos advento do turismo:

“O turismo é coisa boa, sob um ponto de vista, porque traz

crescimento para o lugar. Por outro lado, houve muita piora

depois que o Lima virou ponto turístico, não sei se em todo

lugar é assim. De primeiro, tinha famílias que vinham e traziam

dinheiro. Eles têm deixado de vir porque tem pessoas que vêm

usar drogas, essa moçada nos feriados e finais de semana.

Amontoou muita gente. Os primeiros moradores do lugar se

sentem coagidos, à noite não dormem direito. Pode ter trazido

um resultado para o comércio, mas houve piora”.

Como apareceu na fala de Marieta, muitas das declarações sobre o turismo

ressaltam a sua importância para a geração de renda, mesmo que contenham queixas

com relação à desordem promovida pelos turistas.

Uma parte das respostas sobre o turismo revela conotações para o termo

“turismo” que são específicas daquela localidade e das mudanças nas relações sociais

locais. Quando indagada sua opinião a respeito do turismo no distrito do Lima, alguns

dos entrevistados associaram espontaneamente o turismo às restrições impostas a

determinadas técnicas agrícolas, como as capinas e queimadas.

As declarações de Edir e Maneco, trabalhadores rurais diaristas, contêm uma

associação direta entre turismo e proibições ambientais, enfatizando sua dimensão

negativa, embora não qualifiquem o turismo como algo de todo ruim:

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“Turismo não é ruim, mas perturba. Não pode queimar nada,

isso revolta qualquer um.” [Edir, 26 anos, entrevistado em 2002]

“Em parte é bom, mas não muito. É ruim porque não pode mais

botar roça.” [Maneco, 22 anos, entrevista de 2004]

A associação direta entre “turismo” e restrições ambientais, como mudanças que

vieram no mesmo pacote, sugerem que, nestes casos, os moradores de origem urbana

são considerados como responsáveis pela implantação destas restrições e, na

compreensão dos entrevistados, não se diferenciam dos demais turistas.

3 – Convívio, compartilhamento do espaço e mudanças nas relações sociais

Neste distrito serrano transformado em unidade de conservação, convivem

atualmente pessoas das mais variadas origens sociais e familiares, com valores, projetos

de vida e crenças bastante diversas. Varia também a sua posição social, havendo desde

proprietários de sítios e chácaras, pequenos lotes e outros que habitam casas ou

pequenas suítes alugadas, e até mesmo alguns que residem por longos períodos em

barracas de camping.

Ao contrário daquela comunidade rural tradicional que ainda figura em nosso

imaginário e que, apesar de socialmente estratificada, apresenta um grau elevado de

homogeneidade no tocante a crenças, valores e comportamentos38, a vida cotidiana nesta

localidade hoje apresenta alguns aspectos da convivência urbana cosmopolita – vida

noturna movimentada; convivência entre pessoas de origem diversa, que não são

capazes de localizar umas às outras num mapeamento mental de parentesco39; relações

comerciais que já apresentam um certo grau de impessoalidade, entre outras

características.

Partindo da população atual desta localidade, poder-se-ia tratar os diversos

pertencimentos e interações de cada um de seus habitantes como teias, algumas das

quais possuem seu centro na localidade e lançam ramificações a distâncias variáveis –

como as famílias de lavradores ou ex-lavradores que habitam a localidade há gerações, e

que possuem membros morando e trabalhando nas cidades, que mantêm um vínculo de

38 Na obra de Galpin, Sorokin e Zimmerman, são atribuídas ao rural características físicas claramenteobserváveis, em função, principalmente, das atividades produtivas, conferindo-lhe uma referênciaespacial nítida (1981).39 John Commerford descreveu com acuidade o modo pelo qual os moradores da roça controlam acirculação de pessoas nas localidades rurais da Zona da Mata de Minas Gerais, com base no princípio deque “quem circula nessas localidades ou é morador do lugar ou é parente de morador do lugar” (2003:19). Alguns moradores do distrito onde foi feita minha pesquisa se ressentem da perda da capacidade deexercer este controle, como veremos na segunda parte desta tese.

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intensidade variável com a família que permaneceu; ou as relações de amizade e

convivência entre os remanescentes daqueles que, há 35 anos, vieram da cidade grande

para um vale do distrito com a intenção de fundar uma “comunidade alternativa de base

agrícola”, alguns dos quais hoje lideram o ambientalismo local, fazendo uso dos

contatos e acessos que mantiveram desde que moravam na cidade.

Outras destas teias, ao contrário, são pequenas ramificações provenientes de

centros os mais longínquos – como o movimento Rastafari, originário de uma religião

jamaicana; a contracultura, surgida nos Estados Unidos nos anos 60, e dentro dela o

movimento hippie; o vegetarianismo, que já encontrava adeptos na Inglaterra do início

do período moderno40; o Daime, religião organizada em torno do consumo de

ayhuasca41; as igrejas evangélicas – Igreja Batista, Assembléia de Deus, Congregação

Cristã do Brasil, Igreja Presbiteriana – e a Igreja Católica; o pertencimento à clientela de

determinados políticos; militância ou engajamento em partidos políticos; afiliação a

sindicatos; afiliações profissionais as mais diversas; etc.

Considerando-se cada habitante desta localidade como um ponto ligado a outros

por fios de algumas destas teias, podemos imaginar que em cada um destes pontos se

interceptam em teias diferentes, de acordo com os pertencimentos variados de cada

indivíduo, e que a espessura dos fios que os ligam aos centros das teias varia de acordo

com a intensidade da sua ligação, numa hierarquia de prioridades dos pertencimentos

que em cada ponto – cada indivíduo - pode ser definida numa ordem diferente42 . Por

40 Thomas 1996: pp. 342-355.41 “Santo Daime é uma expressão multivocal, ou seja, pode ter vários significados. Refere-sea um movimento religioso que teve início entre as décadas de 20 e 40 no estadodo Acre e a partir da década de 80 expandiu-se por todo o Brasil e posteriormentepara o exterior. O termo Santo Daime referencia também dois grupos religiosos:Alto Santo e Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, ouCEFLURIS1. Além disso, Santo Daime é o nome que os participantes deste movimentoreligioso dão à bebida que consomem em seus rituais” (De Rose 2006)

42 Clifford Geertz encontrou nas villages balinesas um conjunto de sistemas sociais complexos, que eleprocurou conceitualizar como “a interseção de planos de organização social teoricamente separáveis”.Cada plano consiste num conjunto de instituições sociais baseadas em princípios de afiliaçãocompletamente diferentes. Em qualquer village particular, todos os planos importantes estarão presentes,mas a maneira pela qual eles se interceptam, se ajustam uns aos outros, difere, pois não há um principioclaro em termos do qual esta interseção deva ser constituída. Assim, uma village é definida como umaregião vagamente demarcada na qual planos de organização social se interceptam de uma maneira tal queas pessoas vivendo naquela região têm mais laços umas com as outras do que com pessoas das regiõesadjacentes (1967: 267). A contribuição de Geertz ajuda a pensar os diferentes pertencimentos dosmoradores daquele distrito serrano, a maneira como se sobrepõem e se ajustam uns aos outros. Nestecaso, é preciso notar, que o processo que teve por marco a transformação do distrito em unidade deconservação contribui para a constituição de um plano de organização social no qual o pertencimentoterritorial é acionado na reafirmação tanto de laços quanto de clivagens entre as pessoas que moram ou dealguma forma se relacionam naquele espaço.

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exemplo, Pedro trabalha com instrumentos musicais de madeira, mora neste distrito, é

adepto do Rastafarismo, gosta de escutar reggae e é proprietário de um camping. Estes

são alguns dos aspectos da sua vida que o ligam a determinadas redes de pessoas. O

entrelaçamento destas afinidades e pertencimentos, e a determinação daqueles que são

prioritários em sua vida, ocorre, no entanto, de maneira única na pessoa de Pedro.

No entanto, por detrás da aparente diversidade, nesta localidade específica

coexistem dois feixes de pertencimentos bastante nítidos. Ou seja, os fios das teias se

sobrepõem com muito maior freqüência em dois feixes distintos. Pode-se encontrar algo

em comum entre os citadinos que se estabeleceram nesta localidade: sejam quais forem

suas adesões políticas, espirituais, profissionais ou filosóficas, e sua posição social, de

alguma forma a busca de um estilo de vida em “contato direto com a natureza” figura

entre os fundamentos de sua visão de mundo, o que permite pensá-los como neo-rurais.

E é entre este segmento da população que se recrutam aqueles que hoje interagem com

o poder público e os políticos em favor da aplicação de medidas ambientais. Há,

também, algo em comum que abarca muitos moradores do distrito, apesar da sua

diversidade de pertencimentos: a racionalidade camponesa, mesmo que situada no

passado - na própria infância e/ou juventude, ou na geração familiar imediatamente

anterior -, continua irradiando valores e padrões de comportamento e relacionamento43.

Além disso, ambos estes feixes estão relacionados pelo menos em dois planos.

De uma perspectiva mais ampla, é o contato direto com a natureza o ponto de contato

entre eles. Enquanto os neo-rurais optaram por mudar suas vidas em busca deste

contato, os camponeses têm acesso ao conhecimento e à vivência de gerações cuja

existência esteve atrelada ao relacionamento direto com os elementos do mundo natural

(a dependência em relação ao clima, às condições do solo, etc.). É esta a dimensão

preponderante na construção deste rural específico, desta ruralidade que tem como

lócus aquele determinado distrito serrano.

O que nos leva ao segundo plano em que neo-rurais e camponeses têm seus

pontos de contato: o espaço territorial. Não pelo simples fato de o coabitarem, mas por

esta coabitação estar permeada de disputas em torno da utilização deste espaço e dos

recursos materiais e simbólicos a ele associados44.

43 Carneiro argumenta que a “racionalidade camponesa” pode persistir no contexto de predominância dasociedade urbano- industrial, “desde que ela não seja percebida como um modelo cristalizado, uniforme ea-histórico, mas no sentido de uma visão de mundo pautada em relações sociais específicas e que seexpressa ativamente, de forma a transformar e a recriar o seu mundo social e natural (1998:73).44 Patrick Champagne expõe os limites das monografias villageoises , criticando o corte das populações deacordo com a posição que elas ocupam no espaço geográfico. Para Champagne, as transformações que

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afetaram as populações das aldeias podem ser analisadas como uma modificação da configuração doespaço da aldeia que resulta do desprendimento parcial, em relação ao espaço físico, dos campos derelações dos indivíduos que permanecem no interior das aldeias. Ele propõe tratar os villages concretos,ou as diferentes formas tomadas sucessivamente por um mesmo village, como um dispositivo quaseexperimental que permite estudar os mecanismos através dos quais se efetuam as transformações domodo de agregação dos indivíduos que ocupam um mesmo espaço de residência. (1975: 66) Por outrolado, Champagne chama a atenção para a interseção espacial destes campos de relações, uma vez que asdivisões administrativas fazem parte da realidade e impõem suas restrições específicas aos indivíduos,notadamente fixando os quadros políticos no interior dos quais a concorrência para a ocupação dasposições locais de poder encontra-se regrada e organizada (1975: 60). Neste estudo de caso, há indicaçõesde que a dimensão política do compartilhamento do espaço, reforçada com a criação da APA coincidindocom os limites administrativos do distrito, define um campo de relações cuja importância vem crescendona medida em que as restrições impostas aos indivíduos circunscritos naquele espaço têm sidopreponderantes sobre outros campos de relações, como veremos ao longo desta tese.

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CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DA ONG AMBIENTALISTA LOCAL

A ONG45 ambientalista Grupo Germinal é identificada por estudos acadêmicos

que abordam o processo de criação da APA do Lima como a instituição que pôs em

discussão a idéia de criar uma unidade de conservação no distrito (Cozzolino 2004: 64),

ou que teve a iniciativa de “sensibilizar e mobilizar parte da comunidade e o poder

público” para a transformação da área do distrito em APA, caracterizando-a, ainda,

como “a organização mais atuante do local, reconhecida pela comunidade e pelo poder

público, em função de seu trabalho, há anos, em prol da qualidade ambiental de todo o

distrito” (Seabra 2005: 120).

Esta organização não abarcou todos os componentes do ambientalismo local - ou

seja, todos os envolvidos na militância em favor da preservação ambiental e da

implantação da unidade de conservação - a não ser durante um curto período de tempo.

Mas tem-se constituído na instituição sob a qual o ambientalismo local encontra-se

melhor organizado e capacitado para construir o discurso ambientalista local e

influenciar a gestão do território da APA46.

Para efeito de análise, a trajetória do Grupo Germinal será dividida em duas

partes. A primeira delas, até a criação da APA, quando prevaleciam o voluntariado e o

amadorismo na sua atuação. Na etapa seguinte, quando teve início um processo de

profissionalização e institucionalização da entidade, sob a forma de parcerias com o

Estado e com organizações não governamentais maiores47. 45 O crescimento das ONGs em todo o mundo está relacionado à crise do sistema capitalista, nos anos 70,e às políticas restritivas ao Estado de Bem-Estar Social, que se seguiram nos anos 80, no sentido degarantir a “austeridade e o equilíbrio fiscal” a partir de políticas de ajustes estruturais justificadas pelaideologia do neoliberalismo. Mas, no caso específico da América Latina, este crescimento deve-setambém ao “fechamento” da arena pública às organizações, aos partidos políticos de esquerda e àsuniversidades pelos regimes autoritários típicos da década de 1970. Organizações não-governamentais eas organizações da igreja católica (como as Comunidades Eclesiais de Base - CEB’s - e as pastorais)constituíram-se assim em lugares alternativos onde se podia fazer “um trabalho social”, dedicado aatividades localizadas, em comunidades. Se, até a década de 80, o planejamento do desenvolvimento e asua implementação eram de responsabilidade exclusiva do Estado, a partir da década de 90, frente aodiscurso da “incapacidade” de cumprir estas funções, as ONG's (e o “mercado”) começam a suprirparcialmente esta carência (Little, 1994: 78 apud Pareschi 2002: )46 Foucault propõe estudar o poder em sua face externa, onde ele se relaciona direta e imediatamente comseu campo de aplicação, onde ele se implanta e produz efeitos reais . Neste caso, trata-se de compreendercomo um aparato legal e de diretrizes que foram concebidas por centros de poder longínquos foramapropriados e instrumentalizados por grupos do distrito do Lima interessados em influenciar a gestãodaquele território. Foucault chama a atenção para a necessidade de uma análise ascendente do poder:partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depoisexaminar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados,subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e porformas de dominação global (1996[1979]: 182-184).47 Segundo Samyra Crespo, do ISER (Instituto de Estudos da Religião, uma ONG), em 1996, mais de70% das ONGs existentes não tinham sido legalizadas, não tendo sede ou estatuto. Mesmo as maiores

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1 – Os guardiães voluntários do paraíso ameaçado

Trata-se de uma organização não governamental que surgiu da mobilização de

um grupo de freqüentadores assíduos da localidade do Lima, no inicio da década de 90.

Entre uma e duas dezenas de pessoas se mobilizaram para remover do lixo deixado na

área das cachoeiras mais visitadas. Além de se organizarem para catar o lixo quase que

diariamente, estas pessoas começaram a produzir cartazes e placas, procurando

sensibilizar outros visitantes para que não deixassem lixo nas cachoeiras nem pelas ruas

e passaram a buscar apoio de alguns comerciantes locais, para realizarem estas

atividades e também para que cuidassem de seu próprio lixo. Este apoio consistia na

doação de materiais para confecção dos cartazes e placas, e eventuais refeições para

quem realizava as atividades. Passaram, também, a conversar com proprietários e

turistas, buscando paralisar os acampamentos desordenados na área das cachoeiras e

direciona-los para áreas de camping.

Quanto às motivações das pessoas que realizavam estas atividades, destaca-se o

apego afetivo de freqüentadores assíduos àquelas cachoeiras, como um local de refúgio

das tensões urbanas e contato com a natureza. Soma-se a estes fatores a perspectiva de

obter pequenos subsídios, na forma de refeições, que pudessem prolongar a estadia

destas pessoas no distrito, geralmente em condições bem mais precárias do que aquelas

que estas pessoas dispunham em seus lares, na cidade grande. A vontade destes

primeiros ambientalistas de permanecer na localidade estava ligada, também, à

aspiração de independência em relação aos recursos familiares e às regras da vida

familiar às quais estavam submetidos em suas residências de origem.

A permanência no distrito, prolongada tanto quanto possível em condições

materiais humildes, era vivida como um período de liberdade em relação à família e aos

compromissos, associada, às vezes, à possibilidade de consumir substancias ilícitas

dentre elas, dificilmente ultrapassavam a barreira de 20 militantes (Scharf, 1996: 5). Além disso, Crespoas divide em dois grandes grupos, segundo suas linhas de ação. No primeiro, e majoritário, estariamorganizações onde o amadorismo e o voluntariado prevaleciam; onde haveria um vínculo com acomunidade com a qual trabalham, prevalecendo também posturas mais radicais, ligadas a campanhas dedenúncia e reivindicação. No segundo grupo, estariam organizações de perfil profissional, que recebemverbas de outras organizações, em geral estrangeiras, e trabalham com projetos específicos. Arnt eSchwartzman (1992) já haviam notado esta divisão entre as organizações existentes na ou voltadas para aAmazônia em 1992. Por um lado, grupos de denúncia e crítica com falta crônica de meios para realizarações; por outro, grupos prestadores de serviços que giram em torno da órbita do Estado, que são maisestruturados e tecnicamente capacitados. Segundo os autores, estes grupos sofrem de problemascomplementares. Carências de recursos, de capacidade técnica, jurídica e de pesquisa incapacitam asustentação de programas e estreitam as denúncias, tornando-as, às vezes, ineficazes. Ao mesmo tempo, acooptação e a cooperação com o Estado induzem à indulgência crítica e ao distanciamento dosmovimentos sociais (Arnt e Schwartzman, 1992: 131).[apud Pareschi]

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despreocupadamente. Era comum, inclusive, que estes períodos fossem interpretados

com um certo misticismo, como momentos de busca espiritual e/ou existencial.

Aliada ao apego afetivo à localidade estava a idéia de preservação daquele lugar,

baseada em noções difusas de uma necessidade de preservação ambiental num nível

mais amplo. Como aparece na narração do fundador Matheus, a respeito do surgimento

do Grupo Germinal:

“As pessoas acampavam e não se importavam muito com a

natureza, apesar de viverem na natureza no acampamento.

Como, por exemplo, os lixos. O lixo produzido por essas

pessoas ficava no mesmo lugar. Essas pessoas acampavam nas

margens do rio e as suas necessidades, ou seja, necessidades

de ... é... biológicas, fisiológicas. E eram também de cozinhar,

lavar a louça, ficava tudo ali. E eu também não tinha noção do

quanto aquilo era nocivo ao meio ambiente. E a minha primeira

atitude foi começar a catar lixo. Catar lixo, catar lixo, e sempre

limpando, limpando...”. [entrevista 2005]

Embora seja admitido o pouco conhecimento sobre o meio ambiente e a

atividade de limpeza descrita quase como um impulso inconsciente, o relato destes

ambientalistas a respeito das iniciativas nas quais eles se dirigiam a outros

freqüentadores das cachoeiras, com apelos para que adotassem o comportamento

julgado adequado no momento de visita àqueles atrativos, revela uma postura de

autoridade e conhecimento, refletida na utilização de verbos como “ordenar”, “nortear”,

“zelar”. Ou seja, quando passavam da simples limpeza a atividades consideradas como

de educação ambiental, aqueles ambientalistas pareciam investir-se de uma autoridade

conferida a eles pelos laços afetivos que haviam estabelecido com a localidade. Esta

atitude perdurou e fortificou-se nos anos seguintes, como veremos.

Esta passagem, da humildade à autoridade, ocorreu quando alguns dos

praticantes da limpeza das cachoeiras decidiram se organizar coletivamente e

começaram a empreender outras ações com o objetivo de diminuir o turismo

considerado predatório. Por exemplo, eles começaram a tentar organizar a visitação de

ônibus de excursões, cujos passageiros costumavam trazer isopores com comidas e

bebidas e utilizar produtos como bronzeadores:

“Eu parava o ônibus, me apresentava. [Se apresentava

como?] Como Matheus, e que desenvolvia um trabalho dentro

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da comunidade. Dentro dum projeto o qual o nome era

Germinal, que tinha uma perspectiva educativa para o

acampamento. E estava fazendo o ordenamento para essa

visitação. Eu entrava no ônibus, me identificava, e dizia o que

podia e o que não podia. E aí eu trazia essas pessoas pro arraial,

estacionava o ônibus deles e conduzia eles sem nada para as

cachoeiras. [sem nada, você diz, é sem isopor...] É, sem a

chamada farofagem.”

Ou seja, o ambientalista imbuía a si próprio da autoridade de proibir

determinadas práticas e ordenar a visitação das cachoeiras, sem que este poder lhe

tivesse sido atribuído por nenhuma instância pública ou pelos proprietários das áreas de

visitação. Para isso, apoiava-se no argumento de estar desenvolvendo “um trabalho

dentro da comunidade”, no âmbito de um “projeto” de educação para os acampamentos.

Posteriormente, uma artista plástica aderiu ao grupo de ambientalistas e

começaram a realizar “oficinas de educação ambiental” voltadas para o público infantil,

que consistiram na confecção de murais e de uma cartilha de papel reciclado e pintura a

mão de camisetas com temas ecológicos. O grupo passou a ter nome próprio e realizou

algumas atividades, como mutirões de coleta de lixo, gincanas e pequenas

manifestações de “conscientização ecológica”, integradas em grande parte pelas

crianças envolvidas nas oficinas. Neste período, as atividades eram registradas com

fotografias, que depois eram utilizadas na confecção de murais, afixados no caminho

para as cachoeiras e em alguns estabelecimentos comerciais. Entre as crianças de todas

as idades que participavam das atividades, predominavam os filhos de neo-rurais, mas

havia também filhos de famílias de origem camponesa, que passaram a morar no

pequeno centro comercial e trabalhar na construção civil.

Transformado em organização não governamental em 1995, o grupo foi

expandindo suas preocupações ambientalistas a problemas como o saneamento,

iniciando um levantamento da situação das fossas e sumidouros das residências e

comércio; especulação imobiliária, com a comunicação a um órgão público de um

loteamento considerado irregular. E passou a tomar força a idéia de criar uma espécie de

“parque” ou “área protegida”, no vale onde estão situadas as principais cachoeiras.

Naquele momento, começavam a ser travados os primeiros contatos dos ambientalistas,

organizados numa instituição, com órgãos governamentais, especialmente da esfera

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municipal, através, principalmente, de comunicações sobre irregularidades que eram

chamadas pelos funcionários governamentais de denúncias.

Seguiu-se um período em que estudantes universitários de diferentes áreas se

interessaram em desenvolver atividades e pesquisas em conjunto com a ONG, como

trabalhos para disciplinas em suas faculdades. Estudantes de geografia realizaram um

levantamento topográfico da área das cachoeiras; futuros médicos fizeram um

levantamento parasitológico na população infantil; estudantes de psicologia

revitalizaram as oficinas de educação ambiental para crianças; eu mesma, cursando a

graduação em ciências sociais, desenvolvi um trabalho de final de curso sobre a

utilização da fotografia no âmbito destas mobilizações ambientalistas. Estes estudantes

permaneciam acampados na sede da ONG, situada num terreno cedido por um

comerciante local, durante a realização de suas pesquisas. Para eles, era também uma

oportunidade de realizar seus trabalhos de faculdade desfrutando da estadia num lugar

turístico.

Ao longo do tempo, variou bastante a composição do grupo de pessoas que

trabalhava ativamente na ONG ambientalista. Pode-se dizer que, para cada tipo de

atividade que ia sendo empreendida, pessoas diferentes se interessavam em participar.

No entanto, alguns elementos foram constantes, tais como a participação ativa de um

dos fundadores, em cujo relato a trajetória da instituição se confunde com sua própria

trajetória de vida48, e a manutenção quase ininterrupta da atividade, ora voluntária ora

remunerada, de cuidado com a área das cachoeiras do Vale das Águas, chamada de

“monitoramento”.

No capítulo anterior, veio se delineando o apreço dos neo-rurais pela natureza

local. E a escolha de determinados lugares – principalmente as cachoeiras do Vale das

Águas – como símbolo desta natureza e alvo das preocupações de ordem ambiental.

Esta tendência se manifesta claramente nas primeiras ações da ONG ambientalista local,

48 Ronaldo Lobão fala dos Indivíduos Não Governamentais (ING), que se movimentam de acordo comseus interesses e ideologias particulares: “Quem ainda não conheceu uma ONG que é formada por apenasuma pessoa, ou só ela fala, age, decide, não em seu nome, mas em nome de sua ONG?” (2006: 214). Nocaso da ong ambientalista do local da minha pesquisa, participam das reuniões e tomadas de decisões umconjunto de pessoas que não moram no distrito, e um fundador residente local. Os demais integrantes daong que residem no distrito, que geralmente são a mão de obra local dos projetos e do “monitoramentodas cachoeiras”, não comparecem ou não se pronunciam nas ocasiões de discussões e decisões sobre ainstituição, tampouco na elaboração dos projetos. O fundador residente no local, Matheus, constituía-senum elo entre os membros não-residentes e os residentes, geralmente monitores nas cachoeiras, além dedesempenhar o papel de “relações públicas” da ong, uma vez que era procurado para tratar de todo equalquer assunto relacionado à instituição.

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direcionadas para a proteção daqueles sítios específicos, contra o turismo considerado

predatório.

Os apelos em favor desta proteção, é preciso notar, se faziam em nome de todo o

distrito: “O Lima é nossa casa, é nossa terra, o respeito pelo lugar é um princípio de

consciência e um dever de todos” (Boletim Vida, publicação da ONG ambientalista,

janeiro de 1999, matéria sobre o trabalho de ordenamento da visitação às cachoeiras);

“O projeto [de ordenamento da visitação às cachoeiras] alcançou os objetivos previstos

para esse verão, estando de parabéns a equipe composta por (...) [8 pessoas], que

estiveram prontos para dar o melhor de si por nossos rios, pela nossa floresta, pelo

nosso Lima” (boletim Vida, fevereiro/março de 1999). A freqüência do pronome

“nosso” e suas variações também ajuda a construir a impressão de laços de ordem

afetiva com a localidade – ou a parte da localidade escolhida para representá-la (o Vale

das Águas), englobada, nos discursos da ONG, sob o nome do distrito, Lima.

As manifestações de apreço pela localidade e seus atributos naturais se

mesclavam a concepções difusas da necessidade de preservação da natureza “intocada”,

como transparece na crítica a algumas construções e loteamentos, nos periódicos da

ONG: “Continuam as obras e a venda de lotes às margens do rio (...), que além de

agredir a caracterização do ambiente local(...)”; “O proprietário vem

descaracterizando totalmente a biota local(...)”; ou ainda “Ajude-nos a preservar a

natureza e manter a integridade do local” (Boletim Vida, janeiro de 1999).

Mesclavam-se, também, a clamores pela preservação da natureza enquanto

reserva de recursos para as gerações futuras. Por exemplo, a criação de uma RPPN49 no

distrito, em 1999, com o apoio da ONG, foi associada, no periódico da entidade, à

entrada do distrito em “uma época de mudanças e de conscientização em relação a

necessidade de proteção ecológica através de instrumentos legais que garantam a

integridade do que estamos tomando de empréstimo às gerações futuras”

Nesta fase inicial, os integrantes da ONG ambientalista local se aproximavam de

dois tipos, dentre os cinco elaborados por Castells para o movimento ambientalista: o

ambientalismo contracultural50, que compartilha idéias dos pensadores da ecologia

49 Reserva Particular do Patrimônio Natural, definida no art. 21 da lei do SNUC (Lei n 9.985/2000).50 Roszac afirma que “o movimento ambientalista jamais teria ido além da sua orientaçãoconservacionista se não fossem aqueles que estavam querendo ponderar os limites da sociedade urbano-industrial. A contracultura redescobriu a ecologia humana como uma força crítica que demandava umareavaliação do crescimento econômico, do estilo de vida baseado no consumo e da ciênciaantropocêntrica. Encontrou uma nova leitura, ecologicamente fundamentada, do mito do nobre selvagem.No coração da sociedade industrial, os jovens estavam dignificando as culturas dos povos primitivos,encontrando uma sabedoria na sua capacidade de viver sustentavelmente no seu habitat. Isto conferiu ao

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profunda (como Arne Naess), como a prioridade pelo respeito à natureza acima de

qualquer instituição criada pelo homem; e a mobilização das comunidades locais em

defesa do seu espaço, manifestando-se na defesa daquele local específico para o seu

próprio uso e deleite.

2 – A institucionalização e profissionalização dos guardiães da natureza

Ao final da década de 90, cresceu o interesse do poder público municipal em

relação à possibilidade de se criar uma “área protegida” na região. Desde então,

integrantes da ONG foram tomando parte em discussões e negociações públicas e

privadas, que culminaram na transformação do distrito em Área de Proteção Ambiental

(APA), bem como na aplicação de medidas ambientais que precederam e sucederam a

criação da UC.

É preciso abordar, aqui, as atividades específicas desta instituição, no contexto

da criação da UC. Estas atividades consistiram, principalmente, na execução de partes

de dois projetos de aplicação de medidas compensatórias51 de usinas termoelétricas em

vias de instalação no Estado do Rio de Janeiro: a coordenação local da elaboração do

Plano de Manejo da APA – Fase 1 e a parte de educação ambiental de um projeto de

recomposição de matas ciliares e nascentes da bacia hidrográfica52.

No presente momento, com o objetivo de conhecer melhor as motivações dos

ambientalistas que, ao longo do tempo, se dispuseram a atuar na localidade reunidos sob

a forma de uma ONG e a trajetória desta organização, procurar-se-á pensar a

participação da organização não governamental nas medidas ambientais locais

supracitadas sob o ponto de vista dos seus integrantes, situando os acontecimentos

locais na trajetória e no processo de constante re-formação da instituição.

2.1 - A ONG e a APA

movimento ambientalista um impulso cultural que foi além do mero gerenciamento de recursos”(1995:p.xxvii-xxviii).51 Para Leite Lopes, a noção de “compensação ambiental” tem uma conotação específica, “que é aquelaque tem sido lançada na esteira das privatizações: tratar-se-ia de saldar dívidas ambientais passadas,monetizadas sob a forma de multas ou indenizações calculadas em processos judiciais, ou aindapagamento pela poluição futura, enquanto os investimentos necessários em equipamentos que controlema poluição não são efetivados. (...) é algo novo, algo que não era cobrado antes, decorrente da novaquestão ou causa ambiental, apropriada por diferentes atores sociais com interesses diversos” (2004: 278)52 Projetos são considerados vetores de um planejamento capaz de produzir “condutas que levem aefetivação de resultados específicos” e constituem-se no modus operandi das ONGs “que vivem deprojetos”. (Pareschi 2002 apud Lobão 2006: 235).

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Nas etapas que sucederam a transformação do distrito em APA, especificamente

no ano de 2002, as assembléias da ONG tiveram seu quorum bastante aumentado, pois

vários outros ambientalistas locais identificavam, naquele momento, a instituição como

a melhor preparada para participar da negociação sobre a aplicação de medidas

ambientais na localidade. Assim, lideranças de outras organizações da “sociedade civil”

local53, que também classificavam a si mesmas como ambientalistas, passaram a

freqüentar as reuniões da ONG e mesmo a integrar a sua diretoria e conselho fiscal.

Foi um momento, também, em que as pessoas que vinham se interessando por

questões consideradas ambientais na localidade, seja se organizando em instituições da

“sociedade civil”54, seja individualmente, através de reivindicações e denúncias de

irregularidades dirigidas a órgãos públicos e práticas consideradas ecológicas nas suas

propriedades – como agricultura orgânica e preservação de matas ciliares – se

interessaram em participar de várias instituições da sociedade civil locais, inclusive

tomando parte em suas diretorias, freqüentemente nas diretorias de mais de uma

instituição ao mesmo tempo. Houve, desse modo, uma explosão das organizações da

“sociedade civil” na localidade, com o fortalecimento das já existentes e surgimento de

novas entidades, claramente estimuladas pela possibilidade de compor o Conselho

Gestor da unidade de conservação recém instituída.

Dentre estas, quatro organizações, que vieram a compor o Conselho Gestor da

APA – a ONG ambientalista, a associação de moradores do distrito, uma associação

comercial e a associação de moradores específica da região do Vale das Águas –

possuíam, em seus quadros de diretoria e conselhos, integrantes dos quadros das outras

três organizações. Ou seja, cerca de uma dezena de pessoas constituíam-se nas

lideranças destas quatro entidades que tomavam a frente nas negociações da aplicação

de medidas ambientais no distrito.

53 Da associação de moradores e proprietários do Vale das Águas, da associação comercial e agropastorile da associação de moradores do Lima, cuja atuação será analisada no capítulo 3.54 De acordo com Napoleão Miranda, “a década de 90 tem se mostrado particularmente fértil no tocanteao fortalecimento, no Brasil assim como em outras partes do mundo, notadamente na América Latina e naEuropa do Leste, de um setor da organização social que tornou-se conhecido como Sociedade Civil.Ampliando em muito os limites deste termo, tal como ele foi originalmente usado nos séculos XVIII eXIX, e que se confundia na prática com as relações econômicas e sociais típicas da sociedade burguesaem luta para se afirmar na Europa – implicando, portanto, naquele contexto, a diferenciação e o conflitocom o Estado -, a sociedade civil que se desenha neste final de século se desvincula estritamente dosinteresses econômicos dos mais diversos grupos sociais para incorporar questões e problemáticas queenvolvem direitos humanos e sociais os mais diversos, concepções normativas e valorativas amplas, e,com freqüência, divergentes, assim como causas de interesse geral, como é o caso da defesa do meioambiente e da ecologia, das questões étnicas e de gênero.” (1998: 53)

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Foi este grupo de pessoas que, naquele mesmo período, passou a participar das

reuniões da ONG ambientalista, somando-se a seus outros integrantes. A atuação destas

pessoas na ONG contribuiu para a organização de atas, balanços, cadastramento de

filiados. Mas, principalmente, constituiu-se numa tentativa de influenciar o

posicionamento da entidade nas questões relativas à APA dentro do Conselho Gestor e,

de um ponto de vista mais amplo, na implementação da UC.

Por exemplo, foi maciça a participação dos ambientalistas locais na assembléia

extraordinária convocada para discutir o posicionamento da ONG diante de uma

proposta de regimento interno para o Conselho Gestor da APA, elaborada pela

secretaria municipal de meio ambiente. Naquele momento, a questão mais polêmica era

se as reuniões do CG seriam abertas ou não à presença de qualquer cidadão, e se estes

teriam direito à palavra, pois o regimento interno proposto previa reuniões restritas aos

conselheiros. Muitos integrantes da ONG eram favoráveis à participação dos cidadãos

comuns, mas os ambientalistas recém filiados, em acordo com um dos fundadores da

ONG, insistiam que a proposta de emenda da ONG recomendasse somente a presença

dos cidadãos, sem direito à voz. A vitória por maioria simples da indicação de

encaminhar uma contra-proposta que recomendasse o direito à presença e voz dos

cidadãos foi fruto do empenho e das idéias democratizantes de integrantes da ONG que

não residiam no local, mas que tinham participação ativa nas reuniões ordinárias (ao

contrário dos integrantes moradores, que, em sua maioria, trabalhavam no

monitoramento das cachoeiras, e não tomavam parte das discussões em assembléias).

Eles conseguiram derrotar a posição dos recém-filiados ambientalistas locais,

integrantes também de outras organizações da sociedade civil, que defendiam reuniões

restritas aos membros do Conselho Gestor.

Esta polêmica, para ser compreendida, precisa ser situada no curso dos

acontecimentos. O ano de 2002 foi aquele em que ocorreram as primeiras medidas

oficiais de implementação da UC, tais como a formação do CG, a elaboração de seu

regimento interno e a elaboração da primeira fase do Plano de Manejo da APA. Foi

também o período em que uma parte da população conseguiu organizar a resistência à

maneira pela qual estas medidas foram implementadas, consolidada numa associação de

produtores e trabalhadores rurais, sobre a qual discorreremos no capítulo quatro. A

tentativa de participação das lideranças desta organização de produtores e trabalhadores

rurais nas reuniões públicas que tratavam das questões relativas à APA teve como

resultado o acirramento dos ânimos e de grandes hostilidades em meio aos

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ambientalistas locais. Para eles, aquelas pessoas estavam criando obstáculos para as

suas ações, “atrapalhando” a instauração da preservação ambiental na localidade.

Procurando driblar estes inconvenientes, os ambientalistas locais se organizaram de

forma a representar o máximo possível de instituições da “sociedade civil”, obtendo

maioria no CG. E, na sua visão, a ONG ambientalista era a entidade melhor capacitada

para conduzir estas ações:

“Eu só acho que o Grupo Germinal cada vez vai precisar

de mais coisas, porque tudo que é meio ambiente hoje passa

pelo Germinal. Tem que funcionar, porque veja bem, há um

perigo aí, há uma rejeição total, você vê quem tá aqui, há um

perigo aí muito grande, vocês não estão vendo o que eu vejo.

Então o Germinal, todo mundo tem que entrar, tem que ampliar

mesmo porque tá tendo essa ampliação. Tá vindo dinheiro, vem

muito dinheiro aí pro meio ambiente e todo mundo tem que

fiscalizar isso. (...) Tudo está sendo canalizado pro Germinal, é

uma história que você tem que ficar em cima. (...) O Germinal

veio vindo, isso tudo teve um fruto, agora não pode deixar cair,

porque tem dinheiro envolvido (...) Mas só o que eu quero dizer

é que aqui é uma comunidade onde há um enorme índice de

rejeição ao meio ambiente e às pessoas que trabalham com o

meio ambiente. Nós temos que trabalhar em cima disso, com

disciplina.” [Jaime, presidente da associação de moradores do

Vale das Águas, em reunião do Grupo Germinal em setembro de

2002].

Portanto, a presença de outros ambientalistas locais no interior da ONG, que

não os membros que já faziam parte da instituição, durante o processo de implantação

da APA, objetivava viabilizar, dentro do CG, a aplicação de medidas ambientais da

forma como eles julgavam adequada. E, também, de organizar a sua própria atuação

frente aos conflitos com os ditos representantes dos produtores e trabalhadores rurais e,

com menor freqüência, a outros opositores que viessem a se manifestar55.

55 É preciso notar que, naquele momento, a maneira escolhida para fazer frente a estas disputas foi a deprocurar restringir a presença, o direito à palavra e o acesso a informações por parte daqueles que seopunham a algumas ou à totalidade das medidas ambientais, condicionando estes acessos aosrepresentantes de organizações formalmente instituídas e canalizando as discussões para o interior destasorganizações, quando inevitáveis.

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2.2 - A ONG e os projetos

Para compreender a institucionalização e profissionalização da ONG

ambientalista no contexto local, procuraremos analisar a repercussão interna da atuação

da entidade em dois projetos financiados por medidas compensatórias de usinas

termoelétricas. A participação nestes dois projetos foi interpretada por muitos

integrantes da ONG como uma nova fase do trabalho da instituição, na qual o

envolvimento de maiores quantias de dinheiro foi apontado como o portador de

mudanças na configuração da entidade.

Nesta nova fase, vieram a fazer parte da ONG novos filiados que buscavam,

principalmente, oportunidades de trabalho que viabilizassem sua fixação e/ou

permanência no distrito. Entre os integrantes da instituição, passou a ser delineada com

mais clareza uma oposição entre os ideais ecológicos e o pragmatismo quanto à

necessidade de adequar a ONG às exigências de financiadores. Como aparece no

depoimento de Arthur, que trabalhou no ordenamento da visitação às cachoeiras e como

monitor ambiental no projeto financiado pela termoelética:

“Quando eu entrei no Germinal, é..., foi exclusivamente por

necessidade, mesmo, de ter uma outra oportunidade na

comunidade. Porque, até então, eu vinha como turista. (...) Mas,

com o decorrer do tempo, a gente via, eu, pelo menos, via o lado

ambiental, né?, que era pregado por todos. E com o decorrer, o

passar do tempo, eu fui vendo que os valores foram um pouco

esquecidos. Quando se envolvia grana, quando se envolvia isso,

não sei dizer até o porquê, mas acho que os valores se perdiam

no meio de tudo ali. Eu fiquei por algum tempo, até pela

necessidade de continuar, de receber o meu salário. E por

acreditar em algumas pessoas que tavam lá dentro. A partir do

momento em que as máscaras foram caindo, assim pra mim, das

pessoas que foram mostrando como é que eram, e que foram se

corrompendo ao decorrer. É... eu cheguei e contestei.”

[Entrevista 2005]

Arthur interpreta a sujeição às exigências dos financiadores como uma atitude

venal dos ambientalistas, que destoava de seus discursos em favor da preservação do

meio ambiente.

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A primeira participação da ONG num projeto financiado por medida

compensatória foi a coordenação local da elaboração da primeira fase do Plano de

Manejo da APA. Durante cerca de um ano, pela primeira vez, a sede da instituição

funcionou equipada com computador moderno, duas linhas telefônicas e duas

secretárias. A coordenação local, exercida praticamente por um dos membros da

diretoria, auxiliado pelas secretárias, consistia em acompanhar a execução das tarefas

previstas nas rubricas do projeto, tais como os grupos de trabalho que realizaram

estudos sobre a APA, a preparação de um concurso de desenho nas escolas e todo o

processo que levou à escolha de uma logomarca para a APA, a confecção de um novo

sistema de sinalização para o distrito, e assim por diante, tendo sido a ponte entre os

participantes locais e a coordenação externa, realizada pela ONG Viva Rio.

Na prática, essa coordenação local consistia, também, num certo controle e

poder de influência sobre quais seriam as pessoas indicadas para trabalhar no projeto, o

que, sem dúvida, deu início à nova fase em que a participação na ONG passou a ser

vista pela população como oportunidade de trabalho. Não que isto não acontecesse

antes, pois, desde a primeira organização para remover lixo das cachoeiras, tinha-se em

mente a possibilidade de que a atividade viesse a se tornar remunerada. Mas, neste

período específico, esta passou a ser uma característica marcante das novas adesões aos

quadros da entidade.

O segundo projeto deste tipo, no qual a ONG tomou parte, foi o setor de

educação ambiental de um projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes da

bacia hidrográfica, de 2004 à primeira metade de 2005. Esta participação consistiu na

elaboração e realização de um curso de “Capacitação de Monitores Ambientais”,

ministrada a cerca de 60 alunos divididos em duas turmas, dentre os quais foram

selecionados 15 para trabalhar no projeto, com atividades de educação ambiental nas

escolas, na casa de cultura do distrito e em locais públicos, tais como eventos com peças

teatrais, gincanas, mutirões de limpeza, etc. Além disto, mudas produzidas por

integrantes da ONG num horto situado na localidade, no interior do uma RPPN, foram

compradas para o reflorestamento, além do poder informal conferido a um diretor da

ONG de selecionar os agentes de plantio que trabalhariam no projeto.

Antes da própria execução do projeto, a análise das etapas da negociação em

torno do seu conteúdo entre os membros da ONG e os financiadores e órgãos

governamentais, durante mais de dois anos, revela bastante a respeito de como as

concepções iniciais dos ativistas da ONG foram sofrendo modificações e restrições para

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se adequarem aos critérios dos patrocinadores, sob a forma de um projeto, e a respeito

das questões de ordem ética que estas modificações foram suscitando entre os

integrantes da ONG, ao longo deste processo de negociação.

Na segunda metade do ano de 2002, este projeto foi objeto de colocações e

discussões em reuniões da ONG e, também, de conversas informais, inclusive durante

as reuniões de elaboração do Plano de Manejo – fase 1. Naquela época, os integrantes

da ONG negociavam a execução, inclusive, da parte técnica de reflorestamento, que

veio a ser executada pela Fundação Instituto Estadual de Floretas (IEF – RJ). E eram

dirigidas constantes críticas aos cortes de verba nas negociações do projeto,

especialmente na parte de educação ambiental – que veio a ser a parte executada pela

ONG.

Imaginava-se que a ONG Viva Rio, que, naquele momento, coordenava a

elaboração da primeira fase do plano de manejo, viria a ser contratada para gerenciar a

execução geral do projeto, e ela participava, então, das negociações com o IEF e a

empresa de consultoria representante do patrocinador, inclusive encaminhando

demandas da ONG ambientalista local. Uma conversa entre o coordenador do Viva Rio

e um integrante da diretoria da ONG, durante as reuniões locais do Plano de Manejo,

ilustra bem aquele momento das negociações. Negociava-se para que a totalidade das

mudas produzidas pela ong local, num horto situado numa RPPN do distrito, fossem

compradas para o reflorestamento, o que veio a se concretizar parcialmente, pois vieram

a ser utilizadas, também, mudas produzidas pelo horto do IEF. É evidente o empenho do

representante da ONG em “gerar empregos”, o que condiz com o fato de que o ano de

2002 pode ser considerado o início do período em que a participação na ONG era vista

como associada à possibilidade de conseguir trabalho na localidade56.

Desde o primeiro projeto, começaram a surgir entre os integrantes da ONG

questionamentos éticos relativos às negociações e execuções das atividades previstas

nos projetos. Por exemplo, na elaboração do Plano de Manejo, foi bastante contestada a

destinação de R$ 10.000,00 para a confecção de uma logomarca para a APA, chamada

de “identidade visual”. Integrantes da ONG reclamavam de uma decisão tomada de

56 Matheus [ONG] – Se nós tivermos 70 mil mudas, serão absorvidas (...). E se nós tivermos as 170 mil[previstas no projeto]? Boris [Viva Rio] – Tudo daqui. Uma coisa que eles colocaram foi a questão do custo do minhocário (...)Aí eu não quis discutir muito com o IEF (...).M – Esse tipo de coisa, eles dão continuidade, eles geram emprego.B – Eles fizeram o orçamento de quanto custava um quilo de húmus.M – É mais barato, mas é uma coisa que não dá continuidade. Um minhocário não é só pra produzirhúmus, é pra educação ambiental, de capacitação. E geração de emprego mesmo também.

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cima para baixo, sem levar em conta as prioridades locais. Chegaram a ser questionados

os limites da tão aclamada participação comunitária, que não atingia todas as decisões a

respeito do projeto a ser executado.

Os sucessivos cortes na parte de educação ambiental no projeto de

reflorestamento, em vias de negociação, também foram alvo de críticas. Alguns

integrantes da ONG interpretavam estes cortes como a demonstração de que os

financiadores não atribuíam valor algum à educação ambiental, não se importando de

fato com as repercussões das medidas ambientais para a vida dos habitantes locais, mas

somente com a quantidade de árvores a serem plantadas e o tamanho da área do

reflorestamento. A seu ver, vinha-se impondo uma visão da preservação do meio

ambiente como uma compensação quantitativa e biológica, numa área qualquer do

Estado que sofreria o impacto da instalação da termoelétrica. A existência de moradores

e trabalhadores rurais na área a ser reflorestada parecia irrelevante.

Esta perspectiva provocou contestações entre integrantes da ONG que

propunham “uma abordagem sócio-ambiental” da preservação. Os mais utópicos

chegaram a questionar a validade de se preservar o meio ambiente firmando parcerias

com empresas altamente poluidoras, dando a elas o aval e a legitimidade para

continuarem poluindo. No entanto, prevaleceu, na ONG, a visão pragmática que toma

esta forma de financiamento como praticamente o único meio possível de sobrevivência

deste tipo de organização na atualidade57. Isto coincidiu, também, com uma adesão de

novos filiados em busca de oportunidades de trabalho, e com o desejo de crescimento da

instituição em termos de quantidade de capital movimentado e do poder de alavancar

oportunidades de trabalho para seus integrantes58.

57 Pareschi observa que as “relações entre as ONG's e as entidades financiadoras foram marcadas pelaambigüidade pois a própria natureza institucional das entidades brasileiras é colocada em cheque a partirdas políticas de financiamento que secundarizam os custos de infra-estrutura e salários dos quadros queproporcionam a profissionalização das mesmas. Fernandes chamou isso de uma relação paternalista pois aresistência destas agências de conceder verbas de cunho “institucional” é justificada freqüentemente sob oargumento de que as verbas para projetos não sejam “desviadas” para gastos burocráticos e por issopredomina a forma de financiamento via “projetos” (Fernandes, 1985: 27). Esta “forma” de apoio cria um“tipo de instituição” que não é discutido, promovendo conseqüências para a qualidade e efetividade dosprojetos, já que as ONG's do Sul vivem num ambiente instável de financiamento, sendo obrigadasfreqüentemente, a se preocupar mais com a procura de novas fontes de financiamento e a aprovação denovos projetos do que com a qualidade dos projetos em andamento”.

58 Lená, por exemplo, afirma que a competição das ONGs por “bases” pode ocasionar o estabelecimentode relações clientelistas justamente pelo fato de as ONGs se colocarem como intermediárias entrepopulações locais e agências financiadoras na expressão das “necessidades” daquelas, frente àsprioridades destas, para lograr o financiamento (Lená, 1997: 324).

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A predominância desta visão não acarretou, todavia, o desaparecimento de

opiniões discordantes entre os demais integrantes da ONG ambientalista, tendo sido

aquele período marcado por acaloradas discussões a cada decisão que vinha sendo

tomada. O discurso de um diretor executivo da ONG, na cerimônia de entrega de

certificados aos monitores ambientais, foi permeado de críticas ao financiador do

projeto e ao órgão estadual que o coordenava. Sua fala, na presença do gerente de meio

ambiente da empresa termoelétrica e de autoridades do órgão estadual, num

determinado nível, parecia refletir as discussões e questionamentos que vinham

ocorrendo no interior da ONG:

“Na pessoa do Marcos Arruda [gerente de meio ambiente

da empresa financiadora], ele é um grande empresário. Uma

pessoa que tem a visão. Que talvez tenha esse carinho de fato

com o planeta, com o meio ambiente. Mas se a [termoelétrica]

está patrocinando projetos deste tipo, ainda não é bem porque

ela quer. É porque para se instalar ela precisa de licença. (...) E,

dentro do sistema político, ele foi obrigado a se curvar ao

sistema político do Estado, o qual estaria gerenciando essa verba

e aplicação.” [Encerramento do Curso de Capacitação de

Monitores Ambientais – 2004]

Matheus procurava demonstrar uma postura crítica em relação à medida

compensatória, contemplando a visão de muitos membros da ong. Seu discurso refletia,

também, a competição com o órgão estadual pelo fornecimento das mudas para o

reflorestamento e pelo aumento da área a ser reflorestada com estas mudas59. Refletia,

principalmente, a intenção de gerar empregos para moradores locais, trazendo para a

ONG ambientalista o poder de selecionar estes trabalhadores. Ficava claro, naquela

cerimônia cujo público era constituído majoritariamente pelos alunos do curso

acompanhados de suas famílias, muitos deles ansiosos pela divulgação dos nomes dos

15 escolhidos para trabalhar no projeto, que este poder conferia à ONG, naquela

situação, legitimidade para falar em nome da comunidade diante das autoridades

presentes:

59 “Eu fico triste também quando nós precisamos de no mínimo 200 mil mudas, e quando a gente chegano horto do IEF, a gente observa que tem somente 14 mil disponíveis. (...) Valores diferenciados paratamanhos de mudas. E as mudas que nos chegam não nos chegam com a qualidade. As mudas que noschegam nos chegam pequenas, mas com o valor daquela muda que seria uma muda de qualidade.”[Encerramento do Curso de Capacitação de Monitores Ambientais – Discurso de Matheus – 2004]

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“Nós temos aí na base de 60 indivíduos da comunidade,

formados e capacitados como monitores. E só temos 10 vagas.

Meu Deus, que dor no coração, quando eu vejo um monte de

gente bonita, preparada, pra fazer um trabalho bonito. E cadê o

patrocínio, cadê o financiamento da educação ambiental? Cadê

as condições pra nossa comunidade realmente fazer o que tem

que fazer?”

E este poder e esta legitimidade foram trabalhados com muita habilidade pelo

autor do discurso, que arrancou longas palmas, de pé, ao término de sua fala.

O curso de capacitação de monitores ambientais foi a parte do projeto que a

ONG executou integralmente. Movidos, em muitos casos, pela possibilidade de

trabalhar no projeto, muitos moradores se interessaram em fazer o curso, e o número de

vagas foi ampliado procurando absorver todos que se inscreveram: duas turmas de cerca

de 40 alunos. Para os objetivos desta análise, é interessante notar que as aulas se

constituíram, em diversos momentos, em fóruns de discussão entre os moradores sobre

os problemas do distrito. Dois anos depois das acaloradas discussões que envolveram a

criação da APA, num ambiente de estudo, no qual não estavam sendo disputados

diretamente os recursos advindos da política – como as reuniões públicas realizadas nas

sucessivas etapas de criação e implantação da unidade de conservação -, foi possível

que moradores, na condição de alunos, se pusessem frente a frente para pensar sobre a

localidade.

Vale chamar a atenção para as implicações de alguns aspectos das etapas da

preparação e execução do curso sobre a trajetória e o funcionamento da organização

ambientalista local. O curso foi elaborado e ministrado majoritariamente por integrantes

da ONG de nível universitário e que não residem no distrito, são freqüentadores e

veranistas, e por profissionais do seu círculo de relações pessoais. Dentre os muitos

alunos, estavam os integrantes locais da ONG que trabalham no monitoramento das

cachoeiras (antigamente voluntário, hoje financiado pela prefeitura via uma

cooperativa) e nos empregos locais gerados pelos projetos dos quais a ONG toma parte.

Insuflado, talvez, pela adesão do diretor da escola municipal à ONG, tomando parte na

execução do curso, e pela divulgação da atividade nas escolas, houve grande interesse

de diferentes moradores do distrito em fazer o curso. O Relatório do Curso de

Capacitação de Monitores Ambientais, entregue pela ONG ao órgão estadual, procura

evidenciar os esforços e os resultados no sentido de envolver e mobilizar a

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“comunidade”, com seus heterogêneos “segmentos sociais”: “É importante ressaltar

também que a ampla mobilização comunitária conquistada pelo grande número de

alunos envolvidos no curso, que acabou com isso atingindo indiretamente um número

significativo de familiares e amigos dos cursistas. Desde modo, por meio do Curso de

Capacitação de Monitores Ambientais, o Sub-Projeto de Educação Ambiental e o [nome

do projeto] tornaram-se, efetivamente, assunto do dia-a-dia na comunidade,

conquistando a simpatia e o interesse de diferentes segmentos sociais – certamente uma

etapa fundamental para o processo de mobilização e sensibilização comunitária em

desenvolvimento.” O interesse despertado e a repercussão do curso e do processo de

seleção dos monitores trouxe, de fato, a ONG para muitas conversas quotidianas de

muitos moradores.

No entanto, não é possível dizer o mesmo do trabalho desenvolvido pelos

monitores, tendo havido, também, um número razoável de desistências e sucessivas

recomposições do grupo de trabalho. Com a exceção de um evento público que ofereceu

forró e teatro na praça, as demais atividades foram freqüentadas por um número mais

restrito de pessoas, muitas delas familiares e amigos dos monitores. O conjunto dos 15

monitores, também, veio a se cristalizar, nas etapas finais do projeto, como formado, em

sua maioria, por parentes e amigos, reduzindo o alcance das atividades de educação

ambiental – tais como uma espécie de gincana para coletar caramujos, considerados

uma praga exógena; teatro e atividades educativas nas escolas, e assim por diante.

A atividade do horto escola, segundo o seu coordenador (em entrevista), apesar

de capacitar um número pequeno de pessoas, frutificou, pois alguns dos alunos criaram

seus próprios hortos. Ele também comentou o curso como uma atividade de sucesso,

que na etapa do trabalho dos monitores também resultou num número pequeno de

pessoas que passaram a se empenhar com as questões ambientais. Mas, quanto ao

reflorestamento, criticou a atuação do órgão estadual e ainda levantou a possibilidade de

dirigir-se ao Ministério Público para inviabilizar a licença da termoelétrica.

Pode-se observar que a participação nestes projetos trouxe um crescimento para

a ONG ambientalista local, em termos de popularidade e aumento do quadro de filiados,

bastante relacionados às oportunidades de trabalho nestes projetos. A coordenação local

da elaboração do Plano de Manejo contribuiu, também, para a participação na ONG de

outros ambientalistas locais, líderes de outras instituições da sociedade civil, tentando

organizar politicamente a sua atuação no processo de implantação da APA.

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Neste novo momento da trajetória da ONG, assume ela estilos de atuação que a

aproxima das ramificações do movimento ambientalista que, na tipologia adotada por

Castells, recebem o nome de conservacionistas. O ponto comum das organizações

conservacionistas é a defesa pragmática das causas voltadas à preservação da natureza

mediante o sistema institucional: “a meta a ser atingida na escalada é a preservação da

vida selvagem, sob suas mais diversas formas, dentro dos parâmetros razoáveis sobre o

que pode ser conquistado no atual sistema econômico e institucional” (2002: 145).

Pode-se dizer que, apesar de discussões internas e até mesmo o desligamento de

alguns integrantes, prevaleceu o pragmatismo e a adaptação às regras do sistema

institucional. E que foi desta forma que a organização consolidou sua inserção nas

relações de poder locais, passando a usufruir de benefícios oriundos ou intermediados

pelo poder público e influenciando a construção de novas regras para a gestão do

território e dos recursos. E que contribuiu para esta inserção o poder de alavancar

oportunidades de trabalho para a população local, geralmente distribuídas através de

relações personalizadas, seguindo o padrão em vigor na localidade.

À exceção dos 15 monitores ambientais inicialmente selecionados, as demais

oportunidades de trabalho (agentes de plantio, monitores para o Vale das Águas,

elaboração do item “aspectos abióticos” do Plano de Manejo) foram intermediadas por

um dos diretores da ONG. De uma maneira geral, eram selecionadas pessoas do seu

círculo de relações pessoais, muitas delas compartilhando de sua afiliação religiosa. As

pessoas selecionadas, normalmente, desenvolviam uma espécie de dívida de gratidão

para com este diretor (como observamos na entrevista de Arthur, no início deste

capítulo), saldada por meio do apoio público ao trabalho da ONG em diferentes

circunstâncias. Assim, a seleção das pessoas beneficiadas pelas oportunidades de

trabalho parecia ocorrer tal qual são correntemente obtidos outros benefícios na

localidade (como prestações de serviços e empregos ligados à prefeitura, obtenção de

vagas em hospitais, etc.)60.

Por conseguinte, as oportunidades de trabalho assim distribuídas pela ong, por

intermédio de um dos seus diretores, eram interpretadas pela população, de uma

60 A obtenção de um trabalho suscita uma espécie de dívida, situação que apresenta semelhanças com a“lealdade do voto”, observada por Palmeira: na hora de votar, as pessoas votam na facção em que votamas pessoas com quem têm compromisso, e/ou se sentem mais comprometidas (1996: 47). Não seriapossível afirmar se, neste caso, a dívida de gratidão das pessoas empregadas pela ong se estenderia a umalealdade na hora das eleições mas, sem dúvida, estas pessoas se constituem na base de apoio da ong nasnegociações relativas à implantação de medidas ambientais.

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maneira geral, como mais uma forma de acesso privilegiado a benefícios, como tantas

outras em vigor nas relações sociais locais.

O processo de seleção de 15 monitores, formados no curso supracitado, para

trabalhar no projeto de educação ambiental, apresentou especificidades reveladoras da

força desta representação a respeito da obtenção de benefícios.

Naquele período, havia uma divisão entre os integrantes da ONG que residiam

na cidade grande e tinham formação universitária – encarregados de elaborar projetos,

atas, e que participavam ativamente das assembléias da instituição – e os membros da

ong que moravam no distrito – embora provenientes das cidades, geralmente tinham

formação escolar menor e se empregavam nos projetos e como monitores no Vale das

Águas. O Curso foi planejado e executado pelos membros da ONG residentes nas

cidades. Conscientes das representações a respeito da obtenção de oportunidades de

trabalho como baseadas em relações personalizadas, por parte da comunidade, os

organizadores do curso decidiram selecionar os contemplados com o “emprego” através

de um sorteio entre os alunos que haviam atendido a todas as exigências do curso de

capacitação (dos 80 inscritos, 53 formados). Mesmo assim, os comentários dos

monitores não selecionados e seus familiares, no dia seguinte da seleção por sorteio

público, iam no sentido de apontar critérios pessoais na seleção dos monitores – seja

questionando a honestidade do sorteio, seja ignorando por completo a sua realização.

Desse modo, a partir da observação de um curso em que se mesclaram alunos de

diferentes origens e regiões do distrito, parece que a assimilação da ONG pelos

moradores e a sua inserção nas relações de poder se deu pela acomodação da instituição,

não só aos critérios dos financiadores e do governo, mas também pela adequação às

práticas e regras que organizam a vida política local. Ou seja, o Grupo Germinal passou

a ser assimilado pela população como mais um forma de acesso personalizado a

empregos e benefícios.

CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE CIVIL E A APA

Nos dois anos que precederam a transformação do distrito do Lima em APA,

proliferaram as organizações da sociedade civil local, principalmente sob o formato de

associações61. Este movimento foi claramente estimulado pela prefeitura, através da

secretaria de meio ambiente, que acenava com a possibilidade de criação de uma área

61 Ronaldo Lobão fez uma boa síntese dos estudos sobre o associativismo no Brasil, desde as associaçõeslivres do período do Império até as ONGs, desde os anos 90 (Lobão 2006: 210-213).

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protegida no distrito. Era preciso, então, criar organizações que pudessem representar a

comunidade para integrar a “gestão participativa” da unidade de conservação62.

Em 1999, foi criada a associação comercial e agropastoril do distrito do Lima,

com uma confortável sede construída na propriedade do fazendeiro Bento, transformada

em RPPN no início daquele ano. E também a associação de moradores da Nascente,

formada por neo-rurais e sem grande apelo popular. No ano 2000, neo-rurais aliados a

uma parte da elite agrária local, vinculada à Igreja Católica, revitalizaram a associação

de moradores do distrito do Lima. Em 2001, começaram os esforços de proprietários do

Vale das Águas (área das cachoeiras) para fundar uma associação local. Estas quatro

associações, o Grupo Germinal (ONG ambientalista local, tratada no capítulo anterior) e

o “segmento religioso” foram escolhidos para representar a “sociedade civil” no

Conselho Gestor da APA, em 2002. Neste período, também, o clube de futebol local,

sediado na propriedade de Airton Rocha (que dá acesso às cachoeiras do Vale das

Águas), regularizou sua documentação para pleitear uma vaga no CG, mas não foi

contemplado.

A princípio, as lideranças destas organizações da “sociedade civil” pensavam

que o território a ser protegido seria uma área no Vale das Águas, que concentra

atrativos turísticos da localidade - cachoeiras e trilhas. Já no início de 2001, era sabido

pelas lideranças locais envolvidas nas negociações com a prefeitura que a UC recobriria

todo o território do distrito do Lima.

A notícia começou a se espalhar entre os moradores. Em meados de 2001, uma

minuta do texto da lei de criação da APA, elaborada pela prefeitura e discutida com

algumas lideranças locais, “vazou” e foi divulgada entre os moradores, causando revolta

com relação às proibições e restrições quanto ao uso dos recursos naturais. Sucedeu-se

uma mobilização para criação de uma associação de pequenos produtores rurais, núcleo

da resistência organizada à transformação do distrito em UC.

O objetivo mais comum dos moradores e proprietários locais que compuseram

estas organizações era, mais do que tomar parte, não ficar de fora da gestão de uma

unidade de conservação que viria a ser criada na localidade. Pois, para “participar”, era

62 Para Lobão, o associativismo vinculado às políticas ambientais geralmente se constitui “em decorrênciade uma determinada demanda ou, como no caso das reservas extrativistas, por determinação legal. Defato, as associações são as únicas interlocutoras autorizadas a se relacionar com o Estado ou seusrepresentantes. E devo deixar claro que essa exclusividade não foi concedida pelos grupos sociais e simpelo Estado (...) As associações, no contexto do ambientalismo, são tratadas como intimamente ligadas aoconceito de comunidade. Elas são vistas como representantes ou são criadas para representar os interessesde uma comunidade.”. (2006: 206 - 207)

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preciso fazer-se representar via uma instituição. Dentre estes moradores e proprietários,

havia aqueles que vinham lutando politicamente para implantar medidas de preservação

ambiental no distrito – os ambientalistas locais. Engajando-se em diversas instituições,

segundo diferentes critérios – como moradores, proprietários, comerciantes,

ambientalistas, etc. -, procuravam assegurar sua influência sobre o posicionamento

destas instituições quanto à gestão da UC.

Do momento da criação da unidade de conservação e formação do seu Conselho

Gestor até o final de 2003, os ambientalistas locais conseguiram representar quatro das

seis organizações da “sociedade civil” no CG – o Grupo Germinal, a associação do Vale

das Águas, a associação comercial e a associação de moradores do distrito do Lima. Foi

um período em que, aliados à secretaria municipal de meio ambiente, os ambientalistas

locais, à frente daquelas quatro organizações, conseguiram determinar os rumos da

implantação da unidade de conservação, através da definição das suas regras internas de

funcionamento (Regimento Interno do Conselho Gestor e a própria lei que criou a APA)

e da formulação de um planejamento (Plano de Manejo) e de uma organização

territorial para a APA (Zoneamento). Assim sendo, neste período inicial, no qual se

acirraram os conflitos relacionados à aplicação de medidas ambientais sintetizadas na

criação da APA, grupos que possuíam interesses em comum, mas que nem por isso

eram indiferenciados, se uniram para fazer frente à oposição e conseguiram estabelecer

a unidade de conservação e as suas principais regras de funcionamento.

As outras duas organizações da “sociedade civil” que compuseram o CG naquele

período – a associação de moradores da Nascente e o “segmento religioso” – foram

chamadas a comparecer aos diversos fóruns da APA (para elaboração do Regimento

Interno do CG, para elaboração do Plano de Manejo e do Zoneamento), e

compareceram ocasionalmente, mas não chegaram a influenciar as tomadas de decisão.

A única organização que conseguiu elaborar um discurso de resistência ao

processo de implantação da APA foi a associação de produtores e trabalhadores rurais

do distrito do Lima, que não chegou a integrar o Conselho Gestor. Esta associação

reunia uma parcela significativa da população de origem camponesa do distrito em

assembléias lotadas, sob a liderança de dois grandes proprietários aliados a neo-rurais,

que não estavam associados ao ambientalismo local. A associação atuou durante um

curto período, exatamente aquele que identificamos acima como o período de

implantação da APA. O seu curto período de atuação, no entanto, teve o papel de

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impedir que as medidas ambientais que vinham sendo implantadas ignorassem por

completo a presença de produtores e trabalhadores rurais no distrito do Lima63.

As quatro organizações da “sociedade civil” que, naquele período, foram

representadas no processo de implantação da APA por ambientalistas locais, agindo em

bloco para promover a instalação da UC, não constituem, no entanto, um mesmo grupo.

As particularidades da composição de cada uma delas transparecem quando analisadas

em sua trajetória. A partir de 2003, com a APA já instalada e começando a operar,

passado o momento em que era necessário fazer frente a toda forma de oposição para

viabilizar a criação da UC, as especificidades de cada uma destas organizações

ressurgiram em conflitos internos ao CG, como veremos no último capítulo. Por isso,

serão analisadas aqui as trajetórias de cada uma das associações que vieram a fazer parte

do CG na sua primeira formação.

1. A associação de comerciantes

O surgimento de uma associação comercial e agropastoril, em 1999, pode ser

tomado como marco inicial do período de organização da “sociedade civil” local

preparatório para a criação da APA. A fundação desta associação foi fruto da aliança

entre alguns neo-rurais favoráveis à implantação de medidas ambientais e um grande

fazendeiro, em cuja propriedade havia sido criada uma Reserva Particular do

Patrimônio Natural (RPPN)64 com o apoio da ONG ambientalista local, o Grupo

Germinal. O fazendeiro era, também, proprietário de uma loja de materiais de

construção e, vez por outra, contratado pela prefeitura para construir pontes, consertar

estradas, etc. A sede da associação foi construída na sua propriedade e financiada por

ele65.

Alguns dos comerciantes militavam em favor da implantação de medidas

ambientais na localidade e da criação de uma unidade de conservação, ou seja, eram

ambientalistas locais. Foram eles que conseguiram arregimentar outros comerciantes

para integrar a associação. À época, um acontecimento considerado trágico contribuiu

para que os comerciantes locais se interessassem em se organizar e administrar a região

dos atrativos turísticos: um acidente com morte por afogamento numa das cachoeiras

justificou a sua interdição pelo Corpo de Bombeiros. Após a retirada dos bombeiros, o

63 A atuação desta associação será analisada no capítulo 4. 64 As RPPNs não se submetem à legislação da APA, pois estão sujeitas a legislação específica.65 Ao mesmo tempo, era construído um horto para produção de mudas de mata atlântica em suapropriedade, em parceria com a ONG ambientalista local.

59

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proprietário do terreno que dá acesso às cachoeiras visitadas pelos turistas, Airton

Rocha, cercou e fechou este acesso por alguns dias, durante o mês de janeiro – mês de

férias e, portanto, de aumento do fluxo turístico e do faturamento do comércio66.

Em janeiro de 2000, logo após o acidente, presenciei uma reunião na recém

inaugurada sede da associação, onde havia cerca de 20 comerciantes – donos de

pousadas, campings, restaurantes, lanchonetes, lojas de roupas, etc. -, 3 integrantes da

ONG ambientalista, Grupo Germinal, que não eram comerciantes, e o fazendeiro-

presidente da associação, Bento. A presença dos integrantes da ONG se justifica pela

estreita parceria que vinha acontecendo entre o Germinal e o fazendeiro Bento – a ONG

apoiara a transformação de parte da fazenda em RPPN e vinha colaborando na

administração do horto construído em sua propriedade67.

A importância da parceria entre Bento e o Germinal para esta associação era

indiscutível, influenciando até mesmo sua denominação estatutária – “associação

comercial, agropastoril e ecoturística do Lima” – para englobar o fazendeiro e os

integrantes da ONG. Na fundação desta associação, estiveram em jogo a disposição dos

comerciantes em se unir para gerenciar os atrativos turísticos, evitando novos acidentes

e mantendo as cachoeiras funcionando, a intenção de ambientalistas locais e do

fazendeiro Bento em estar à frente de uma associação para integrar a gestão da unidade

de conservação e a intenção do Grupo Germinal de se manter à frente do

“monitoramento” das cachoeiras.

Na reunião que presenciei, naquele momento crítico que sucedeu ao acidente,

discutia-se a criação de uma espécie de parque particular na área das cachoeiras, com

cobrança de ingresso. A principal medida seria a cotização dos comerciantes para a

construção de um portal de entrada, e discutia-se o que deveria existir neste portal –

banheiros, recepção, armários para guardar os objetos cujo porte seria proibido na

cachoeira, lugar para os cachorros (que os turistas tentam levar para as cachoeiras e que

ficariam retidos neste portal), etc. - e quem trabalharia nele – pessoas contratadas pela

associação, a Guarda Municipal, ou a ONG ambientalista? Dois integrantes da ONG

ambientalista (universitários do Rio de Janeiro que passavam os finais de semana no

distrito) intervieram em favor da administração do parque por um “fórum comunitário”.

66 Como será analisado no capítulo 6, esta não foi a última vez em que o proprietário Airton Rocha‘fechou’ o acesso às cachoeiras por dentro de sua propriedade.67 Esta colaboração entre Bento e o Germinal ocorria através do então presidente da ONG, Matheus, queera quem negociava com o fazendeiro e selecionava adolescentes da comunidade para trabalhar no horto.Os membros da ONG que integravam sua diretoria mas não residiam no distrito, eram universitários doRio de Janeiro, não chegavam a influenciar as decisões a respeito destes “projetos”.

60

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Indiretamente, estava sendo colocada em questão, naquele momento, a continuidade do

Grupo Germinal no “monitoramento das cachoeiras”. E quem administraria a

arrecadação com os ingressos: se os comerciantes se cotizassem para melhorar a infra-

estrutura do Vale das Águas iriam querer dispor do lucro. Além disso, discutia-se o uso

público ou privado da área, se administrada por uma associação de comerciantes ou por

um “fórum comunitário”. Como veremos mais adiante, no capítulo 6, esta discussão

retornará em outros momentos.

A matéria de capa do informativo desta associação, de janeiro de 2000, refere-se

à quantia destinada à empresa municipal de turismo naquele ano e expõe os projetos da

associação para o Vale das Águas - “Desapropriação da área das cachoeiras para criação

do Parque Ecológico, Portal de Entrada, Guarda Parques, Guias Turísticos e Posto de

Informação Turística”; e para todo o distrito - “Restauração da ponte sobre o rio Lima e

dos pontilhões de madeira entre a Barra do Lima e a Nascente (já temos projeto),

melhoria e conservação da estrada (...)”. Pouco depois, a prefeitura financiou a

construção de um portal de entrada, não na entrada do Vale das Águas, mas na entrada

do distrito pela Barra do Lima (o acesso mais utilizado) e a reforma da supracitada

ponte. O fazendeiro-presidente da associação de comerciantes foi contratado para

executar as obras. No texto do informativo, a associação expressa a intenção de tornar

pública aquela área particular, ao mesmo tempo em que reforça a idéia da criação de

uma área protegida, ainda restrita ao Vale das Águas. Ou seja, as reivindicações da

associação expressam o anseio dos comerciantes de evitar que os atrativos turísticos do

Vale das Águas tornassem a ser “fechados” pelos proprietários da região. Ao mesmo

tempo, são propostas obras que vieram a ser realizadas pelo seu presidente, o fazendeiro

Bento. Assim sendo, as reivindicações da associação vão de encontro não só às

necessidades dos comerciantes, mas também favorecem a realização de obras pelo

presidente-fazendeiro-construtor, pois a aliança entre comerciantes e aquele fazendeiro

foi essencial para a constituição da entidade.

Paralelamente a estas discussões, a associação firmou uma parceria com a

Prefeitura para sediar a elaboração de um “planejamento do turismo”, conduzido pelo

SEBRAE. Esta atividade durou cerca de 4 meses, e o número de participantes diminuiu,

de cerca de 20 pessoas, no início, até 7, no final. Entre os 7 restantes, estavam um

integrante da diretoria da ONG ambientalista e outro, da diretoria da associação de

moradores, Mara. Outros três integravam a diretoria da própria associação comercial. O

planejamento foi elaborado a partir de reuniões quinzenais na sede da associação,

61

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conduzidas por um “facilitador” do SEBRAE, através de metodologias ditas

participativas, baseadas em espécies de dinâmicas de grupo pré-formatadas.

Enumerados os problemas, foram selecionadas como ações prioritárias: “proporcionar

água com qualidade nas residências, criação de um parque ecológico, articular para a

implantação de uma subprefeitura e sensibilizar o poder legislativo para a aprovação de

uma lei de zoneamento, uso e ocupação do solo.”

É importante notar que cinco, daquelas sete pessoas, estiveram diretamente

envolvidas ao longo do processo de implantação da APA, ficando de fora o fazendeiro

Bento e um comerciante que deixou o distrito. Seja representando instituições da

sociedade civil no Conselho Gestor, seja como funcionários do CG ou contratados para

a execução de projetos ambientais, estas lideranças vêm trabalhando pela

implementação da preservação ambiental na localidade. A atividade com o SEBRAE

pode ser vista como um treinamento das pessoas identificadas como lideranças locais,

favoráveis à criação de uma unidade de conservação, para que pudessem atuar segundo

as regras e a linguagem das metodologias da “gestão participativa”68.

É também interessante o fato de que, seis anos depois, todas aquelas quatro

metas haviam sido, de certa forma, atingidas. A implantação da subprefeitura, cujo

objetivo era trazer para a localidade (distante da sede municipal) o acesso ao poder

municipal, teria sido alcançada através da formação de um Conselho Gestor com

representantes da prefeitura, presentes no distrito, no mínimo, bimestralmente, para as

reuniões do CG. A diferença de ser um Conselho Gestor é que, além dos representantes

municipais, há representantes da “sociedade civil” que, supostamente, participam das

decisões em pé de igualdade com as autoridades públicas.

A criação do “parque ecológico” ter-se-ia transmutado na criação da APA. Esta

mudança não foi sem conseqüências, uma vez que o “parque ecológico” recobriria

somente a região do Vale das Águas, de uso quase que exclusivamente turístico. Com a

APA recobrindo todo o território do distrito do Lima, a população de origem camponesa

da localidade passou a ser diretamente afetada pelas restrições ambientais.

68 Henri Accelrad chama a atenção para “o esforço crescentemente generalizado de criação, em inúmerospaíses da América Latina, de projetos voltados para a disseminação de tecnologias de resolução deconflitos ambientais. Em muitos casos, originários em instituições sediadas em países centrais, voltadospara a “capacitação” de entidades e comunidades de países periféricos, tais iniciativas (...) pressupõem(...) que a paz e a harmonia deveria provir de um processo de despolitização dos conflitos através detáticas de negociação direta capazes de prover “ganhos mútuos”. Trata-se de psicologizar o dissenso,prevenindo conflitos e tecnificando seu tratamento através de regras e manuais destinados a transformaros ‘pontos quentes” em “comunidades de aprendizado’” (2004:10). No distrito do Lima, o SEBRAE seencarregou de fornecer esta primeira “capacitação” das pessoas identificadas como lideranças, queviriam, mais tarde, a atuar no processo de implementação da APA.

62

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A lei “zoneamento, uso e ocupação do solo” havia sido estabelecida, através do

zoneamento do Plano de Manejo da APA – Fase 1, e da lei de uso e ocupação do solo

elaborada pelo Conselho Gestor e aprovada pela câmara de vereadores. Com estes

instrumentos, os gestores do distrito do Lima, já transformado em APA, conquistaram

um poder muito maior para regulamentar o uso do espaço e dos recursos.

Já o fornecimento de água com qualidade às residências pode ter sido o mote

para o projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes da bacia hidrográfica.

Como já havia rumores da negociação desta medida compensatória no âmbito estadual,

a meta pode ter sido estabelecida com vistas a obter parte desta verba para o distrito do

Lima, uma vez que algumas das pessoas envolvidas neste “planejamento turístico”

vieram a trabalhar no supracitado projeto.

Teriam aquelas cinco pessoas conseguido mobilizar os demais moradores para,

de maneira participativa, implantar as medidas identificadas por eles, representantes da

comunidade, como prioritárias? Ou estariam os métodos da gestão participativa

conduzindo a metas previamente estabelecidas pelo poder público, talvez em acordo

com algumas pessoas escolhidas para representar a comunidade?

Embora contando com poucos integrantes no momento da criação da APA (final

de 2001), a atuação dos representantes desta associação durante o processo de criação

da UC foi constante. Até 2004, a representação desta associação comercial no Conselho

Gestor da APA foi conduzida por ambientalistas locais, Ivan e Rô. Aliados aos

representantes da associação de moradores do distrito do Lima, da associação do Vale

das Águas, do Grupo Germinal, e do “segmento religioso”, e unidos aos representantes

do governo municipal, constituíram-se num grupo que liderou a implantação da APA.

Em 2004, a diretoria desta associação mudou de mãos, num processo conflituoso

que foi resolvido judicialmente ao final de 2006. Este processo está relacionado às

novas regras de gestão do espaço estabelecidas pelo zoneamento da APA, como será

melhor especificado no capítulo 6. Está relacionado, também, a disputas políticas

anteriores e paralelas aos efeitos da transformação do distrito em unidade de

conservação. E constitui-se num acontecimento propício para a observação de como

estes diferentes níveis das relações de poder se entrelaçam e interagem, com a

agregação de novos atores e o acionamento de diferentes mecanismos.

Um fazendeiro recém-estabelecido no distrito, Julio Bill, construiu, na sua

propriedade, uma pista de motocross, que foi embargada pela secretaria municipal de

meio ambiente por estar situada numa “zona de conservação da vida silvestre”. O caso

63

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provocou polêmica nas reuniões plenárias do Conselho Gestor da APA, a partir de

2004, e parece ter sido o episódio que desencadeou uma série de conflitos entre este

fazendeiro e integrantes do CG da APA, como será analisado mais adiante.

Como parte do processo de disputas que se estabeleceu a partir de então, ocorreu

o conturbado processo eleitoral desta associação comercial e agropastoril, que passou a

contar com uma nova diretoria, presidida pelo supracitado fazendeiro, por algumas

lideranças da associação de produtores e trabalhadores (associação esta que construíra a

oposição ao processo de implementação da APA, em 2002)69, e mais três comerciantes

locais.

Seguindo as regras estatutárias, a chapa se inscreveu para concorrer à diretoria,

apesar dos protestos dos integrantes da associação com relação ao fato de serem pessoas

que nunca haviam participado da instituição. No dia das eleições, contando com o apoio

de lideranças da associação de produtores e trabalhadores rurais, muitos dos moradores

que freqüentavam as assembléias daquela associação compareceram para votar a favor

da chapa oposicionista, somando-se a moradores da região onde está situada a

propriedade de Julio Bill. Havia automóveis mobilizados para trazer eleitores de locais

mais afastados e “boca de urna” em todo o centro do distrito.

Por parte da chapa sucessora da diretoria, em contrapartida, também parece ter

ocorrido uma caça aos eleitores, com moradores de regiões mais afastadas sendo

buscados em casa para votar, em meio às redes de relações pessoais dos integrantes da

associação com o apoio de lideranças da associação de moradores do distrito, de

funcionários do centro cultural, que sediou as eleições, e da Igreja Católica.

Pela contagem de votos, a chapa de Julio Bill venceu as eleições, mas a chapa

perdedora levou o caso à justiça com acusações de compra de votos e coação dos

eleitores. Apesar disto, a nova diretoria tomou posse, estando apta, inclusive, a

administrar verbas municipais destinadas a realização de eventos. No entanto, a

representação desta associação do CG da APA ficou suspensa, por decisão da plenária,

até a decisão da Procuradoria do Município a favor da diretoria eleita.

Tratou-se de uma disputa entre os ambientalistas locais, que faziam parte da

chapa que perdeu as eleições, e que vinham representando a associação comercial no

processo de implementação da APA desde a fundação desta associação, em 1999, contra

remanescentes da associação de produtores e trabalhadores rurais. Esta última havia

liderado a oposição ao processo de criação da APA. Alguns de seus membros

69 Ver capítulo 4.

64

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constituíram novas alianças, com o fazendeiro recém-chegado, Julio Bill, e com outros

neo-rurais (que não haviam integrado nenhuma das associações formadas no distrito até

aquele momento, por diferenças pessoais com os ambientalistas locais). Assim,

conseguiram assumir a direção desta associação.

2 – A Associação de Moradores

Entre as organizações da sociedade civil local que estiveram envolvidas na

implementação da APA, a associação de moradores do distrito é a mais antiga, fundada

em 198370, a partir da iniciativa de alguns neo-rurais. Nos anos 80, esta associação

chegou a mobilizar muitos moradores, de diferentes origens sociais, mesclando neo-

rurais à população camponesa da localidade, e atingiu algumas conquistas, como

ressalta a lavradora e professora aposentada Marieta:

“A primeira associação que foi organizada aqui no Lima

conseguiu alguma coisa, reivindicou ao prefeito sala para o

jardim de infância, mais médico para o posto. Conseguiu

ambulância pro posto, dentista pro posto, a associação pediu e

chegou. As pontes dos córregos. Uma das coisas que havia uma

preocupação muito grande era o cemitério da Barra do Lima.

Isso não foi por conta do prefeito, mas do povo. Um proprietário

da Barra doou mudas para a cerca viva, o povo plantou, passou a

ter mais cuidado com o cemitério através da associação.”

Marieta chama a atenção não só para as reivindicações atendidas pelo prefeito,

mas também para a organização do povo viabilizada pela associação. Mesmo tendo sido

fundada por neo-rurais, a associação foi capaz de mobilizar alguns dos moradores de

origem camponesa para objetivos comuns.

Ao final dos anos 80, a mobilização em torno desta associação havia

esmorecido. A instituição continuou existindo, dirigida por uma família de grandes

proprietários ligados à Igreja Católica, a família Miranda, realizando reuniões

esporádicas e geralmente vazias no “grupo escolar”. Neste período, sua atuação

restringiu-se ao encaminhamento de ofícios a órgãos do governo com reivindicações

relativas a cuidados com a estrada, luz elétrica, atendimento no posto de saúde, etc. A

instituição se manteve responsável, também, pela entrega da correspondência, uma vez

70 Acreditamos que na esteira da proliferação de associações de moradores na década de 80, analisada porRenato Boschi e relacionada aos movimentos sociais urbanos.

65

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que não há posto dos correios na localidade. Esta incumbência contribuiu, neste período

de esvaziamento, para que muitos moradores pudessem visualizar a continuidade da

associação, uma vez que todos contavam com este serviço. Além disso, havia o poder

da associação de selecionar um ou dois adolescentes para efetuar a entrega da

correspondência, através de critérios personalizados.

No início dos anos 90, houve um esforço por parte de neo-rurais que haviam

participado da fundação desta associação de moradores para reativá-la, como revela o

depoimento de Mara, comerciante e ambientalista local:

“Eu sempre entendi que uma comunidade que tem uma

associação de moradores tem meio caminho andado pra resolver

problemas de qualidade de vida. Tentamos um tempo

conscientizar a população do que ela [associação] é e o poder

que ela te de fazer acontecer. Mas foi um trabalho árduo, difícil,

e num momento eu acabei cansando.”

Um ano depois desta entrevista, ocorria uma nova tentativa de movimentar a

associação de moradores, insuflada pela perspectiva de fazer parte da gestão da área

protegida que viria a ser criada. As novas diretorias, daí em diante, foram compostas

pela aliança entre quatro neo-rurais – três deles integrantes também das diretorias da

associação comercial e da ONG ambientalista – e a família Miranda, que se manteve na

diretoria da associação.

Nesta nova fase da associação, as reuniões, que ocorriam até então na escola

municipal, passaram a acontecer no recém inaugurado centro cultural do distrito

(mantido pela prefeitura)71. Esta localização permite a observação e a entrada de

curiosos, muitos dos quais não chegam a se envolver nas discussões. No período

observado (de 2002 a 2005), alternavam-se reuniões ordinárias mensais que chegavam a

60 presentes, e outras com somente uma quinzena de pessoas, ou somente os membros

da diretoria. As grandes mobilizações parecem ocorrer em torno de temas polêmicos:

problemas com a merenda nas escolas municipais; a proposta de implantação de uma

delegacia de polícia no distrito; a festa do distrito, financiada todo ano pela prefeitura

(como em outros distritos serranos do mesmo município). Nestas ocasiões, o público se

compõe, de uma maneira geral, de moradores dos arredores do centro comercial do

71 O centro cultural localiza-se na área comercial e turística do distrito, por onde transitam moradores dediferentes regiões, em virtude do comércio. As reuniões ocorrem no pátio, ao alcance dos olhares dequem passa na rua.

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distrito – neo-rurais e ex-lavradores ou pluriativos72 envolvidos com atividades

turísticas. Os ambientalistas locais que passaram a fazer parte desta associação, devido

ao seu capital cultural, desempenharam papel determinante na convocação de reuniões,

e condução e organização das mesmas, bem como de sua documentação. Assim, houve

uma revitalização da associação, que passou a realizar reuniões mensais que, algumas

vezes, mobilizavam um número razoável de moradores.

Esta associação, após sua reorganização, ficou sendo liderada por ambientalistas

locais e grandes proprietários da família Miranda, ligados à Igreja Católica, que já

dirigiam a associação no período de pouca mobilização. Entre estes ambientalistas

locais estava Mara, que passou a dirigir o Centro Cultural onde ocorriam as reuniões da

associação e, com isso, passou a dispor do poder de selecionar funcionários para o

centro cultural. A aliança com ambientalistas locais proporcionou à família Miranda

uma retomada de seu poder político, uma vez que passou a influenciar a seleção de

funcionários para o centro cultural e a ter algumas de suas reivindicações atendidas por

órgãos municipais, devido à própria revitalização da associação, através de reuniões

organizadas e conduzidas pelos ambientalistas locais.

Ao mesmo tempo, a aliança com a família Miranda conferia credibilidade aos

ambientalistas locais junto à população de origem camponesa da localidade. No

entanto, a freqüência deste setor da população se limitava a moradores do pequeno

centro comercial e residencial, muitos deles ligados a atividades comerciais e turísticas,

embora alguns ainda mantivessem suas “roças”. A influência desta associação não se

estendia aos moradores de origem camponesa dos diversos cantões do distrito do Lima.

A aliança com a família Miranda permitiu aos ambientalistas locais a

representação da associação de moradores do distrito do Lima no Conselho Gestor da

APA. A participação desta associação no processo de criação da APA foi conduzida por

alguns membros da sua diretoria e raramente trazida à tona nas reuniões mensais

supracitadas. A titularidade da representação da associação de moradores do distrito do

Lima, de 2002 a 2003, coube à neo-rural e ambientalista local Lúcia, que alternava

períodos de residência na Região dos Lagos (RJ) e no distrito do Lima. A suplência

72 Pluriativos são pequenos agricultores que combinam a agricultura com outras fontes de rendimento(Graziano da Silva, 1996). Carneiro sugere um movimento de reorientação da capacidade produtiva dapopulação residente no campo, que se expressa em novas formas de organização da atividade agrícola,como uma alternativa ao êxodo rural, ao desemprego urbano, e ao padrão de desenvolvimento agrícoladominante (1998: 56). No caso do distrito do Lima, membros das famílias de moradores cuja tendênciaseria migrar para a cidade em busca de trabalho permanecem na localidade, empregados no atendimentoao turismo. Há lavradores que mantêm suas roças, ao mesmo tempo em que trabalham como pedreiros,ou mesmo constroem suítes e casas para aluguel em seus terrenos.

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coube a Darcy Miranda, proprietária de terras e de uma pousada, filha de Alcina

Miranda, representante do “segmento religioso” no Conselho Gestor pela Igreja

Católica.

Durante o ano de 2004, um racha entre Lúcia, que representava a associação no

CG, e os demais ambientalistas locais que integravam o CG, por motivos pessoais,

levou à saída de Lúcia da associação de moradores. Aquela circunstância possibilitou

que um casal de neo-rurais recém-estabelecidos no distrito, Paulo e Lena Albuquerque,

que vinha participando das reuniões ordinárias e realizando alguns projetos em parceria

com o centro cultural, assumisse a representação desta associação no CG. Eles eram

amigos pessoais do proprietário do terreno de acesso às cachoeiras, Airton Rocha.

Haviam, anteriormente, tentado obter uma vaga para representar o clube de futebol local

no CG. Sua curta atuação no CG foi marcada por um discurso crítico ao distanciamento

da APA e do Conselho em relação à população nativa do distrito, caracterizada por eles

como “pobre”, “isolada nos cantões” e “analfabeta”, e em favor da “valorização do

homem do campo”.

Em 2005, a representação desta associação no CG foi retomada nos moldes da

aliança anterior, entre ambientalistas locais e a família Miranda, ficando a cargo de

Darcy Miranda, que teve Mara, diretora do centro cultural, como suplente.

3 – Associação do Vale das Águas

A região do Vale das Águas parece, hoje, um anexo, contíguo ao pequeno

centro comercial do distrito, que concentra os principais atrativos turísticos do lugarejo:

cachoeiras e trilhas. Foi nesta região que os primeiros neo-rurais se fixaram no distrito,

na década de 70, adquirindo propriedades e transformando o uso de terrenos que, antes,

eram cedidos em meação para a agricultura familiar. Atualmente, a região está

constituída por vários sítios, cujos proprietários moram em cidades e os utilizam para

veraneio. Alguns poucos fixaram residência no local, dois deles criando áreas de

camping. A maioria dos trabalhadores rurais da região, pouco numerosos, estão

empregados como caseiros. Há três famílias de moradores que se denominam

“colonos”, na propriedade de um sitiante veranista. Eram antigos “terceiros”, idosos,

que permaneceram como moradores que já não precisam dar a terça parte da produção

ao proprietário.

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Ao longo do ano de 2000, partiu dos proprietários de origem urbana, neo-rurais e

veranistas, a iniciativa de constituir uma associação para representar esta região,

considerada a mais importante do distrito, em termos turísticos. Na visão de muitos

comerciantes, sem aquelas cachoeiras não há turismo, como transparecera nas reuniões

da associação comercial, ainda em 1999. Foi criada, então, a associação de “moradores

e proprietários” do Vale das Águas. Como outras que surgiram no distrito, neste

período, havia uma intenção inegável de garantir um lugar ao sol na gestão da unidade

de conservação que viria a ser criada. Esta associação foi citada nos informativos da

ONG ambientalista e da associação comercial como parceira no projeto de

monitoramento das cachoeiras. E, no jornal bimestral do distrito, que foi fundado quase

que concomitantemente à criação da APA com financiamento municipal, manifestou-se

duas vezes em favor do ordenamento do turismo no Vale das Águas. Ou seja, havia a

intenção de unir os demais proprietários do Vale das Águas (e não só Airton Rocha,

proprietário do terreno que dá acesso às cachoeiras) para influenciar as decisões a

respeito dos atrativos turísticos e do monitoramento das cachoeiras. Nestas discussões, o

projeto desta associação para os atrativos do Vale das Águas coadunava com os

interesses manifestados pela ONG Germinal e pela associação comercial, em desacordo

freqüente com o proprietário Airton Rocha. Portanto, além de integrar o grupo de

ambientalistas locais empenhados na implantação da APA do Lima, as lideranças da

associação do Vale das Águas, proprietários de terrenos da região, pretendiam fazer

frente a determinados posicionamentos de Airton Rocha quanto ao gerenciamento dos

atrativos turísticos.

A discussão a respeito da utilização das cachoeiras do Vale das Águas esteve na

origem e permeou todo o processo de implementação da APA do distrito do Lima.

Projetos, acordos e desacordos referentes àquela região já figuravam nas pautas de

reuniões da ONG ambientalista local desde 1996, e da associação comercial fundada em

1999.

A fundação da associação de moradores e proprietários do Vale das Águas, a

partir da mobilização de ambientalistas locais, proprietários de sítios nesta região,

aliados a outros proprietários de terrenos no mesmo vale, pretendia influenciar as

decisões sobre a gestão daqueles atrativos turísticos, além de tomar parte na gestão da

APA como um todo. No entanto, o proprietário do principal terreno no Vale das Águas

(que dá acesso às cachoeiras), Airton Rocha, nunca chegou a participar ativamente desta

associação. Isto aconteceu por rivalidades pessoais entre Airton e alguns dos integrantes

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da diretoria da associação, mas principalmente pelo posicionamento destes diretores

como ambientalistas locais, aliados à ONG Grupo Germinal e à secretaria de meio

ambiente na implementação da APA. Como já foi visto quando analisamos a associação

comercial, a ONG propunha uma utilização pública daqueles atrativos e pretendia se

manter à frente do “monitoramento” das cachoeiras. Já Airton Rocha apresentava o

projeto de cobrança de ingresso às cachoeiras e criticava alguns aspectos do trabalho de

monitoramento realizado pela ONG.

Assim sendo, durante todo o período analisado, a atuação desta associação no

processo de implantação da APA do distrito do Lima foi conduzida por ambientalistas

locais que eram, ao mesmo tempo, proprietários de terrenos no Vale das Águas.

A aliança destes proprietários com os demais ambientalistas locais e com a

secretaria de meio ambiente proporcionou a esta associação determinadas facilidades no

processo da sua institucionalização. Em setembro de 2002, com representantes já

atuando como conselheiros (como será visto logo adiante) na gestão da APA, as

providências burocráticas para o registro da associação eram ponto de pauta da reunião

ordinária bimestral da entidade, com 6 presentes – 4 proprietários de sítios e integrantes

da diretoria, sendo 2 veranistas e 2 neo-rurais, e dois empregados destes sitiantes. O

registro oficial aconteceu no mês seguinte, às vésperas da oficialização do CG.

Ou seja, a associação do Vale das Águas, mesmo sem dispor da documentação

exigida no momento da formação do Conselho Gestor, foi considerada apta a ocupar

uma cadeira no CG. No momento da homologação do conselho pelo prefeito, esta

associação já se encontrava devidamente registrada. Assim sendo, a aliança pela criação

da APA permitiu que esta prerrogativa fosse utilizada pela associação. Outras

organizações locais, como a associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima

(que liderou a oposição ao processo de implementação da APA), não contaram com a

mesma tolerância.

4 – Associação da Nascente

A região da Nascente é cortada pela estrada municipal, que atravessa o distrito

longitudinalmente. É a mais distante em relação ao município vizinho pelo qual é feito o

acesso à localidade. Há nesta região uma escola municipal e um sub-posto de saúde,

remanescentes de uma expansão da infra-estrutura e dos serviços municipais ocorrida

no final da década de 80, quando o acesso ao distrito pelo outro extremo da estrada

municipal, vindo dos distritos serranos, ainda era bastante utilizado. Atualmente,

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predominam na região a pecuária, o cultivo de banana, pousadas confortáveis e casas e

sítios de veraneio. Trata-se, portanto, de uma região isolada das demais devido à

precariedade dos transportes e das comunicações, que apresenta suas especificidades –

um turismo mais elitizado que se estabelece em pousadas e sítios de veraneio (não há

campings nesta região); a ausência de vida noturna; a presença de pequenos produtores

e trabalhadores rurais, muitos deles envolvidos também em atividades turísticas.

Ao final da década de 90, ocorreram mobilizações para a constituição de uma

associação de moradores da localidade, que não chegou a ser registrada, tampouco

contar com uma diretoria estruturada. As duas principais lideranças foram um grande

proprietário e um filho de comerciantes da região, que se intitulava o “presidente” da

associação. No início do ano de 2000, alguns neo-rurais se uniram a dois proprietários

de terras para reestruturar a associação, com vistas, também, a tomar parte da gestão da

unidade de conservação que viria a ser criada no distrito. Em agosto, foi oficializada a

existência da associação, através de uma ata de constituição e da aprovação de um

estatuto. Em setembro, ocorreram as eleições, prestigiadas por cerca de uma dezena de

moradores, nas quais este novo grupo venceu, por ampla maioria, a chapa liderada pelo

antigo “presidente”.

Entre a eleição e o registro formal, em 25 de janeiro de 2001, problemas tais

como acusações de requisição de benefícios em nome da associação para uso particular

e realização de eventos considerados barulhentos resultaram na deposição da presidente

eleita. O registro foi realizado já em nome da segunda diretoria – composta pelos

mesmos membros da anterior, cada um “subindo” um cargo, e completada por um dos

membros do conselho fiscal. Durante o seu mandato, as principais atividades desta

diretoria foram a realização de uma festa junina e a organização, em parceria com a ong

ambientalista Germinal, do monitoramento de uma cachoeira que começava a se

constituir em atrativo turístico, durante um feriado. Além disso, o trabalho consistiu,

basicamente, no envio de ofícios a órgãos públicos e empresas prestadoras de serviços

de energia elétrica, telefonia, coleta de lixo, transporte coletivo, segurança,

monitoramento da qualidade da água, iluminação e construções públicas, solicitando

melhorias infra-estruturais e a manutenção da escola, do posto de saúde e do cemitério

locais. O resultado destes esforços foi a regularização da coleta de lixo, a obtenção de

uma ambulância para o sub-posto de saúde e obras de iluminação e calçamento da

praça. Quando solicitado pela secretaria municipal de meio ambiente e pela secretaria

de educação, a associação enviou representantes para as discussões a respeito da APA e

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do centro cultural, respectivamente. E deu início a um cadastramento dos produtores

rurais da região, em parceria com a secretaria municipal de agricultura, que não foi

concluído. Segundo os integrantes da diretoria, o trabalho foi todo realizado por eles,

pois encontraram grande dificuldade em mobilizar a população local para participar de

reuniões e atividades. Somente dois temas, em momentos específicos, teriam sido

responsáveis por assembléias “lotadas”: “luz no campo” e “segurança”.

Em setembro de 2002, uma nova diretoria foi eleita por aclamação, num

contexto de pouca mobilização. Mantiveram-se dois membros da diretoria anterior e

entraram três pessoas não residentes no local, que o freqüentam nos finais de semana –

dois, filhos de proprietários rurais locais que trabalham em cidades grandes e um filho

de um veranista. Naquele momento de pouca mobilização, um dos argumentos

destacados no processo eleitoral - na comunicação para formação de chapas e

convocação para as eleições – era a importância da manutenção da associação para

conservar uma cadeira de conselheiro no CG da APA.

Em 2004, aquele primeiro “presidente” da associação da Nascente, de quando a

instituição ainda não havia sido registrada, nem começado a atuar formalmente,

constituiu uma chapa e venceu as eleições. Em 2005, a associação teve uma atuação no

âmbito do CG da APA, reivindicando atenção aos moradores atingidos pela construção

de uma estrada na Fazenda de São João, onde foi implantado um projeto de

“agroecologia”, como veremos no capítulo 6.

Assim sendo, a associação de moradores da Nascente foi, de início, conduzida

por neo-rurais aposentados que residiam no local e que buscavam melhorias infra-

estruturais para a região. Estes neo-rurais não se aliaram aos ambientalistas locais no

processo de implementação da APA, tampouco conseguiram mobilizar muitos

moradores para tomar parte nos trabalhos da associação. Dessa forma, sua atuação

restringiu-se ao encaminhamento de reivindicações tanto à Prefeitura quanto ao

Conselho Gestor. Ao final de 2002, o representante desta associação no CG encaminhou

ofício com críticas à falta de participação popular e de qualidade técnica na elaboração

no Plano de Manejo da APA, mas a associação não possuía força política para

apresentar qualquer forma mais eficiente de resistência ao processo em curso no distrito.

Em 2005, a diretoria da associação da Nascente foi assumida por uma chapa

liderada por um presidente proveniente de uma família de origem camponesa. Ao

mesmo tempo, a implantação do projeto de uma “fazenda agroecológica” na região da

Nascente trouxe risco de inundação das casas de alguns moradores. Estes fatores

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contribuíram para uma maior mobilização em torno desta associação, que fizeram com

que suas reivindicações fossem tomadas mais a sério pelos gestores da APA. No

entanto, à exceção da questão pontual relativa a este projeto, a associação da Nascente

continuou sem força política para influenciar as tomadas de decisão relativas à unidade

de conservação, embora fizesse parte do Conselho Gestor.

5 - A formação do Conselho Gestor da APA

As instituições municipais e civis que viriam a integrar o Conselho Gestor da

APA (CG) foram definidas, publicamente, em março de 2002, numa reunião local

coordenada pela secretaria municipal de meio ambiente. No entanto, o CG só veio a ser

oficializado pelo prefeito em outubro daquele ano. O conselho ficou sendo presidido

pelo secretário de meio ambiente e formado por quatro secretarias municipais

(agricultura, meio ambiente, interior e obras) e duas empresas municipais (turismo e

saneamento), representando o setor governamental; representando a sociedade civil,

ficaram a ONG ambientalista – Grupo Germinal, a associação de comerciantes, a

associação de moradores do Lima e as duas associações de moradores regionais (Vale

das Águas e Nascente) e, ainda, um representante do “segmento religioso”, cuja

titularidade coube à Igreja Católica e a suplência, à Igreja Batista.

A reunião local para definição dos integrantes do CG foi palco de grandes

confrontos verbais. O local da reunião, o centro cultural local, encontrava-se lotado,

com muitas pessoas em pé e até assistindo à reunião do lado de fora.

A secretaria do meio ambiente, único órgão público presente ao evento,

constituía a “mesa” e havia trazido uma proposta, definindo de antemão os integrantes

do conselho, até então 5 civis e 5 municipais (estavam de fora a secretaria de interior e o

“segmento religioso”). As 5 entidades da sociedade civil selecionadas haviam trazido

para a reunião o nome dos escolhidos, titular e suplente, para serem seus conselheiros.

Para as vagas municipais do CG, foram trazidos pela secretaria somente os nomes dos

órgãos municipais, sem indicação das pessoas. As entidades da sociedade civil já

haviam trazido seus representantes escolhidos, devido aos constantes pedidos de

urgência por parte da secretaria, segundo o qual a nomeação do CG era iminente. As

instituições municipais, no entanto, não demonstravam o mesmo empenho com a

agilidade do processo.

Airton Rocha, proprietário do terreno que dá acesso às cachoeiras do Vale das

Águas, pleiteou vaga no conselho para o clube de futebol local, sediado em sua

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propriedade, alegando ser uma instituição de grande aceitação da população. Esta foi,

também, uma maneira encontrada por Airton para ter seus interesses representados no

CG, uma vez que ele era proprietário de um terreno considerado estratégico e

apresentava divergências com outras instituições locais, como a associação do Vale das

Águas e o Grupo Germinal. O clube de futebol levou para a reunião a documentação

exigida e seus representantes já escolhidos, Lena e Paulo Albuquerque, um casal de

neo-rurais recém-estabelecido na localidade e que possuíam relações pessoais de

amizade com Airton Rocha. No entanto, foi negada uma vaga ao clube de futebol, sob o

argumento de que o “segmento esportivo” não era uma instituição “essencial” e poderia

ser “contemplado num outro momento”.

Cerca de seis pessoas, três delas futuras lideranças da associação de produtores e

trabalhadores rurais então em vias de constituição, fizeram colocações a respeito da

transformação do distrito em APA, como um processo sobre o qual a maioria da

população não havia sequer sido informada, especialmente a população mais pobre e os

trabalhadores rurais. Alguns deles se referiram a esta parcela da população como o

verdadeiro povo do lugar e ao conjunto de pessoas que lideraram a implantação local da

APA como de fora. Estes pronunciamentos despertaram longos aplausos. E também

algumas vaias73.

Diante disso, os ambientalistas locais - alguns deles encarregados de representar

no CG da APA o Grupo Germinal, a associação do Vale das Águas, a associação

comercial e a associação de moradores do Lima - se uniram às autoridades municipais

na defesa da criação da UC, enfatizando a necessidade de união da população da

localidade e os prováveis recursos financeiros que seriam atraídos para a APA. Estas

lideranças foram, então, chamadas pelos questionadores de “tropa de choque do

governo”, e foi levantada a acusação de que muitos deles seriam empregados da

prefeitura via uma cooperativa terceirizada, o que os desqualificaria pra representar a

população dentro do CG74.73 A informação sobre quem aplaudiu e quem vaiou seria esclarecedora, mas este foi o primeiro eventopúblico que presenciei desde minha chegada ao campo para a pesquisa do Mestrado e eu ainda nãoconhecia as fisionomias de todos. Inclusive, antecipei a minha chegada quando meus informantes,integrantes da ONG ambientalista local, me alertaram sobre a importância da reunião, que esperava-seque fosse decisiva para o futuro dos moradores da localidade.74 “Outra dimensão relevante das ONG diz respeito a seu financiamento. A idéia de um “terceirosetor” local, organizando-se e encetando uma ação coletiva em direção aos seus objetivos, não encontraeco na realidade. Vemos como modelo geral um sistema de financiamento que é estatal na maioria doscasos – estados nacionais ou estrangeiros. Quando não estatal, sua fonte são recursos internacionaisque tiveram origem em renúncia fiscal em seus países sede. ” (Petras & Veltmeyer,2003, p. 133). Lobão faz uma ligação com o conceito de Projetismo, já discutido. “O conceito de“sociedade civil” seria desprovido do sentido virtuoso que lhe é assegurado.

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Quanto aos questionamentos relativos à ausência de representantes do

verdadeiro povo do lugar, a secretaria apresentou a proposta de criação de mais uma

vaga no CG para um suplente e um titular representando o “segmento religioso”. Para

manter a “paridade”, foi acrescentada ao rol dos representantes do governo municipal a

secretaria de interior. Foi enfatizada a necessidade de urgência para indicação dos

nomes dos representantes religiosos, marcada para dali a uma semana, pois logo seria

feita a homologação pelo prefeito. E assim ficou definida a composição do CG. A

reunião acabou em balbúrdia, sem que houvesse votação ou anúncio da decisão que

havia sido tomada.

Na semana seguinte, foi colocado que a reunião seria restrita aos “membros do

conselho” e a pauta era a elaboração de um regimento interno para o CG, que previa

reuniões bimestrais restritas aos conselheiros e possíveis técnicos que viessem a ser

convidados. Estavam presentes o secretário do meio ambiente e futuro presidente do

conselho, a futura conselheira representante da secretaria do meio ambiente, e

representantes das organizações da sociedade civil locais indicadas para fazer parte do

CG, inclusive os representantes do “segmento religioso”. A presença de outros

cidadãos, Margarida e Miguel Ângelo, que viriam a liderar a associação oposicionista

(de produtores e trabalhadores rurais), foi colocada pela mesa como aceita como uma

demonstração de tolerância e democracia. Eles questionaram a definição dos integrantes

do CG sem votação na reunião anterior, mas seus questionamentos não foram levados

em consideração. Ao contrário da reunião anterior, não havia um “público” assistindo à

reunião, estavam presentes só os indicados para compor o CG, o que permitiu esta

postura da mesa. Esta observação fornece elementos para compreender por que os

representantes da população de origem camponesa tanto clamavam por reuniões

“abertas”: reuniões formadas só pelos indicados para compor o CG possibilitavam que

as colocações críticas fossem desconsideradas pela maioria dos conselheiros.

Até aqui, a observação do processo que conduziu à transformação do distrito do

Lima em Área de Proteção Ambiental e da formação do Conselho Gestor deliberativo

da UC, passando pela organização e constituição das organizações da “sociedade civil”

que vieram a integrá-lo inicialmente, permite alguns apontamentos.

De fato, mesmo incorporando um ideário positivo, ou de esquerda, ele ainda é na maioria dos casosexógeno e incompleto. Empoderamento, igualdade de gênero, desenvolvimento sustentável são conceitosque acabam por servir como um arcabouço de colaboração com órgãos e agências do estado e dosfinanciadores (Lobão 2006: 213-214). No caso do distrito do Lima, há indicações de que as contratações eempregos gerados na esfera municipal comprometam a capacidade de determinadas lideranças da“sociedade civil” em expressar os descontentamentos da população.

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Como nas experiências de envolvimento público e participação popular no

controle da poluição industrial, que, segundo Leite Lopes, constituem-se “numa base

não desprezível para o aprendizado e para o estímulo generalizado à participação dos

cidadãos na melhoria do meio ambiente e de suas condições de vida” (2004: 250),

observa-se que, no distrito do Lima, a implantação da gestão participativa na APA

estimulou a formação ou reorganização de organizações da sociedade civil com base no

incremento da participação de uma parte da população na melhoria do meio ambiente e

de suas condições de vida.

Como vimos, a proliferação das associações e a seleção de algumas delas para

compor o Conselho Gestor da APA contribuíram para o “empoderamento” de, pelo

menos, um determinado conjunto de pessoas – os ambientalistas locais -, que passou a

tomar parte na criação e implementação de novas regras para a gestão do espaço e dos

recursos. Ficou claro que, pelo menos no período inicial de implementação da APA, nas

quatro organizações da “sociedade civil” que vieram de fato a tomar parte nas decisões,

havia um conjunto de no máximo uma dezena de pessoas que se revezava na

composição das suas diretorias e tomava a frente das negociações em torno da unidade

de conservação. E que este conjunto era composto por pessoas semelhantes quanto à

origem urbana e à opção por se estabelecer no distrito, além, é claro, da sua simpatia ou

adesão pelo movimento ambientalista75.

Como nos casos analisados pelo grupo de pesquisa de Leite Lopes no estado do

Rio de Janeiro, além do movimento ambientalista – representado neste caso pelo Grupo

Germinal -, diversas associações de moradores passam a atuar na questão ambiental (do

Vale das Águas, do Lima, da Nascente). Além disso, no distrito do Lima, somaram-se

às associações de moradores uma associação de comerciantes76.

75 As primeiras iniciativas ambientalistas daquelas pessoas que, mais tarde, vieram a atuar em conjunto econstituir a base das associações fundadas no final dos anos 90 – os ambientalistas locais - foramdenúncias de desmatamentos considerados “irregulares” no distrito do Lima, durante os anos 80,encaminhadas de forma individual, porém, cada vez mais articulada. À exceção de Matheus, do GrupoGerminal, os futuros ambientalistas locais integravam, à época daquelas denúncias, uma associaçãoambientalista do município, fundada na esteira de campanhas populares contra os abusos da indústriapetrolífera no município (ver Cozzolino: 63). A militância naquela associação, na sede do município,possibilitou que os ambientalistas que residiam ou eram proprietários no distrito do Lima se conhecesseme até mesmo estabelecessem laços de amizade, passando a articular suas denúncias e ações de caráterambiental pensadas para o distrito.

76 A atuação destas organizações apresenta semelhanças com aquelas tratadas pela literatura, envolvendoas mesmas questões não resolvidas: a preocupação com a “manipulação” do movimento por políticos ouadministrações, que lançariam mão da “legitimidade” e do “prestígio” das associações; e o problema darepresentatividade, que se torna crítico quando um ou alguns poucos militantes representam o“movimento”, uma vez que a dinâmica da participação em conselhos e fóruns dificulta a permanente

76

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A seleção das instituições, do poder público e da “sociedade civil”, para compor

o Conselho Gestor da APA, atende os critérios da legislação, mas não deixa de se

constituir numa apropriação local destes critérios, uma vez que eles são bastante gerais e

deixam uma considerável margem de arbítrio para o órgão criador da unidade.

As instituições que representam o poder público, que poderiam ser de diversos

tipos77, são todas secretarias e empresas municipais. A seleção destas instituições ficou a

cargo do presidente do conselho, o então secretário de meio ambiente Francisco Pinto,

que a justificou de forma sucinta na reunião de formação do CG, em março de 2002:

“Bom, meio ambiente é obvia, porque a APA é pra proteger o

meio ambiente. Obras, porque sempre precisa de obras no Lima.

Turismo porque é a vocação do lugar, e saneamento é

indispensável. Agricultura, porque tem agricultura. E interior

porque aqui é interior.”

Desde aquele primeiro momento até 2006, houve questionamentos por parte da

“sociedade civil organizada” quanto à necessidade de se incluir as secretarias de

educação e saúde, mas a presidência sempre protelou esta escolha para momentos

futuros. É possível imaginar que esta seleção tenha sido estabelecida com base nas

alianças do próprio secretário de meio ambiente, e não nas atribuições formais dos

órgãos municipais.

As organizações da sociedade civil, que também poderiam, de acordo com a

legislação78, abranger um espectro mais amplo de entidades, restringiram-se,

primeiramente, às instituições com sede no distrito. O critério assumido publicamente

pela secretaria de meio ambiente era o de que qualquer organização local poderia fazer

parte do CG, desde que dispusesse da documentação exigida. Este critério excluía a

associação de produtores e trabalhadores rurais, que ainda estava em vias de

constituição. Ao mesmo tempo, a documentação em dia não foi suficiente para que

fosse incluído no CG o clube de futebol local, sediado na propriedade de Airton Rocha.

consulta às bases. “É nessa dificuldade que se originam as suspeitas confirmadas ou não de cooptação dosmembros dos movimentos e das próprias entidades” (Lopes e alli 2004: 248).

77 Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Capítulo V – Do Conselho. Art. 17.1º - A representação dos órgãos públicos deve contemplar, quando couber, os órgãos ambientais dos trêsníveis da Federação e órgãos de áreas afins, tais como pesquisa científica, educação, defesa nacional,cultura, turismo, paisagem, arquitetura, arqueologia e povos indígenas e assentamentos agrícolas.78 2º - A representação da sociedade civil deve contemplar, quando couber, a comunidade científica eorganizações não governamentais ambientalistas com atuação comprovada na região da unidade,população residente e do entorno, população tradicional, proprietários de imóveis no interior da unidade,trabalhadores e setor privado atuantes na região e representantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica.

77

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Além disso, a associação do Vale das Águas só veio a regularizar sua fundação em

outubro de 2002, às vésperas da nomeação oficial do CG. À época da reunião pública de

formação do CG (em março), não dispunha, portanto, da supracitada documentação.

Isto, no entanto, não veio a público, e a associação do Vale das Águas foi tomada como

apta para integrar o CG. Assim sendo, é possível observar que os critérios impessoais

ditados pela legislação foram apropriados de acordo com os interesses da aliança que

conduzia a implantação da APA, selecionando organizações aliadas e excluindo

organizações oposicionistas.

Dentre as seis organizações selecionadas para compor o CG, quatro foram

representadas no CG, naquele período inicial, por ambientalistas locais. A exceção foi a

associação de moradores da Nascente, representada, a partir da nomeação oficial do CG

(outubro de 2002), por um filho de lavradores, engenheiro agrônomo, residente na sede

do município. E o “segmento religioso”, cuja representante, como vimos, aliou-se aos

ambientalistas locais em virtude de sua parceria na associação de moradores do distrito

do Lima.

A inclusão, na última hora, do “segmento religioso” e da secretaria de interior

foi uma tentativa clara de amenizar as contestações a respeito da falta de representação

do verdadeiro povo do lugar no CG.

A Igreja Batista, que ficou com a suplência, de fato, possui um grande número

de freqüentadores no distrito do Lima e realiza uma série de atividades, como grupos de

jovens, aulas de música e de coral, encontros com Igrejas Batistas de outras localidades,

etc. A Igreja Católica parece ser bem menos ativa, não ocorrendo sequer missas na

localidade, mas conta com adeptos pertencentes à elite agrária local. Além destas duas,

há no distrito diversas outras igrejas evangélicas, tais como Assembléia de Deus,

Presbiteriana, Congregação Cristã do Brasil, com templos também nas regiões da

Nascente e da Barra do Lima, que não foram cogitadas para compor o CG. A escolha de

instituições religiosas para representar a população foi justificada por serem as únicas

organizações oficialmente existentes que teriam o poder de reunir a população local.

Mas eram, também, instituições que não esboçavam qualquer atuação política no

sentido de defender os interesses da população.

A escolha da secretaria de interior, para manter a “paridade”79, não parece se

justificar somente pelo fato de o distrito ser “interior”, como disse o secretário

79 Decreto 4.430, de 22 de agosto de 2002. Art. 17 3º - A representação dos órgãos públicos e da sociedade civil nos conselhos deve ser, sempre quepossível, paritária, considerando as peculiaridades regionais.

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Francisco Pinto. Como será visto mais adiante, há indicações de que este seria o órgão

municipal com o qual o presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais do

Lima, que vinha tentando construir uma oposição ao processo de implementação da

APA, Edson Aguiar, possuía uma aliança política. A indicação da secretaria de interior

parece ter sido, naquele momento, uma tentativa de incluir o senhor Edson Aguiar, sem

contemplar, no entanto, a organização de produtores e trabalhadores que ele vinha

liderando.

Assim sendo, durante o período de criação da Área de Proteção Ambiental e

formação do seu Conselho Gestor, prevaleceu o poder de mando da aliança entre os

ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio ambiente. Como se tratava de

garantir a implantação da APA, os diferentes grupos dos quais faziam parte os

ambientalistas locais atuaram em bloco, obscurecendo diferenças entre eles. As

iniciativas para a inclusão de representantes do povo do lugar foram no sentido de

despolitizar a sua atuação, seja contemplando somente algumas de suas lideranças, seja

atribuindo sua representação às Igrejas, de fraca atuação política na localidade. Foram

indicadas pessoas populares, que contavam com a simpatia de parte da população de

origem camponesa, mas como representantes de instituições que dificilmente

encaminhariam questionamentos e reivindicações em nome daquela parcela da

população – a Igreja e a secretaria de interior, uma entidade do governo80.

80 Não houve, tampouco, intermediários capazes de tornar possível a passagem da qualificação de“incompetentes” e “irracionais”, freqüentemente atribuída a comunidades atingidas, à oportunidade deestas serem ouvidas, através de profissionais ou instâncias que constituem uma antiexpertise, como noscasos de “participação da população” no controle da poluição industrial, analisados por Leite Lopes e alli(2004: 259).

79

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CAPÍTULO 4 - ORGANIZANDO A RESISTÊNCIA

1 – Formação e atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais

A criação de uma associação de produtores e trabalhadores rurais concomitante

às primeiras medidas para a implantação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) no

distrito do Lima constituiu-se na única forma de oposição organizada e formal ao

processo de criação da unidade de conservação naquele momento.

A análise das circunstâncias e características da formação e atuação desta

associação ajuda a compreender os elementos acionados nos discursos das lideranças,

em diferentes situações, que contribuíram não só para construir uma resistência

organizada ao processo de implementação da APA, como também para a elaboração das

vivências relacionadas a este processo nos discursos dos moradores.

Os relatos de diferentes fundadores apontam uma situação controversa na

fundação da associação. Em meados de 2001, um grupo formado por ambientalistas

locais e funcionários da secretaria municipal de meio ambiente teria elaborado uma

minuta da lei de criação da APA, que teria “vazado” e se difundido entre a população. O

supracitado grupo nega a existência de tal minuta.

O conteúdo da minuta teria desencadeado a revolta “da população” que, após

tentar sem sucesso levar o assunto para as reuniões da associação de moradores, haveria

decidido fundar a sua própria associação. As lideranças convocaram, então, uma

assembléia, que ocorreu em setembro de 2001 e teve a lista de presença assinada por

cerca de 200 pessoas. Os artigos mais criticados no texto da minuta eram os que

estabeleciam proibições para o uso do fogão a lenha e a queimada de “capoeiras”81.

Esta situação fornece elementos para pensar a criação da associação de

produtores e trabalhadores rurais e a criação da própria APA. Primeiramente, se havia

necessidade de manter o conhecimento sobre o conteúdo da lei que criaria a APA

restrito a um determinado conjunto de pessoas – aquelas empenhadas em viabilizar a

transformação do distrito em APA - , era porque este conjunto de pessoas previa que a

sua divulgação poderia provocar reações que poderiam atrapalhar, ou mesmo

81 Reproduzo trecho da “minuta” da lei de criação da APA:“Art. 5º - Na Área de Proteção Ambiental constituída pela presente Lei, dentro dos limites constitucionaisque regem o exercício do direito de propriedade, não serão permitidas atividades modificadoras,degradantes ou impactantes, tais como:I – Extração, corte ou retirada de cobertura vegetal existente, excetuados os parasitas, ervas daninhas eexemplares de espécies exóticas que estejam degradando o ecossistema;(...)IV – Utilização de fogo para atividades de lazer, alimentação, agrícolas, pecuniárias e outras;”

80

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inviabilizar, a criação da unidade de conservação. Ou seja, aqueles que estavam à frente

da criação da APA sabiam que se organizava uma oposição a este processo e que havia

uma parte da população descontente com a implantação de medidas ambientais.

Por outro lado, o conteúdo da minuta só poderia ter sido divulgado em meio à

população de origem camponesa através de intermediários que leram e interpretaram o

texto legal. As notícias que se espalharam, de forma oral, eram, portanto, simplificações

do texto. O que se ouvia dizer, no distrito do Lima, era que “vão transformar o Lima em

parque”, “ninguém mais vai poder plantar”, “vão proibir o fogão a lenha”. Estas notícias

repercutiram de forma a incitar a mobilização de grande parte da população, que já

vinha sendo afetada diretamente pela fiscalização ambiental, ou indiretamente pelo

medo da fiscalização.

Em larga medida, pode-se dizer que as assembléias foram a principal atividade

desta associação. Aconteceram, ao todo, 4 assembléias, no período de setembro de 2001

a dezembro de 2002, durante o qual estiveram concentradas as atividades da

associação82. Em todas as assembléias, entre os pontos abordados, figuravam questões

relativas ao posicionamento a ser tomado diante da APA: a decisão de enviar

representantes para as reuniões locais de elaboração do Plano de Manejo, a escolha

destes representantes, os informes a respeito do que eles (neste caso, as pessoas que

conduziam a implantação da APA) vinham decidindo e, principalmente, a decisão de

“entrar na justiça” para exigir participação na gestão da APA. À exceção desse tema,

houve a indicação e votação da diretoria e dos conselhos fiscal e sub regional, a sua

posse e, posteriormente, a escolha de uma substituto para o segundo secretário que

havia falecido. As assembléias eram os momentos em que o discurso de resistência ao

processo de implantação da APA era formulado pelas lideranças, diante dos associados.

Eram, portanto, o momento de constituição daquele conjunto de pessoas ali presente

enquanto um grupo, coeso na sua resistência e unido nos seus objetivos.

O conjunto dos pronunciamentos realizados nas assembléias da associação de

produtores e trabalhadores rurais constrói um discurso de reação ao processo de

implementação de medidas ambientais no distrito do Lima. Este discurso apóia-se no

direito à participação da população residente na gestão da unidade de conservação. Mas,

82 Além das assembléias, as atividades da associação consistiram em providenciar o registro da entidade,montar uma barraca de doces e salgados na festa do distrito e encomendar 50 camisetas com o nome daassociação (através de doações em dinheiro dos próprios dirigentes, de uma deputada federal e dotrabalho de dirigentes e cerca de uma dezena de associados). Foi elaborada uma ficha de cadastro para osassociados, que não chegou a ser preenchida por todos.

81

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mais do que isso, o cerne do discurso é a reivindicação do reconhecimento do vínculo

de uma parcela da população com o território, em função da antiguidade do seu

estabelecimento ali e do seu modo de vida – o verdadeiro povo do lugar. Esta

reivindicação se baseia, também, na desqualificação dos moradores que estiveram

envolvidos na transformação do distrito em APA como gente de fora, negando, de certa

forma, a identificação daquelas pessoas com aquele território – que foi um dos

argumentos centrais para a apresentação do processo como participativo pelas

autoridades municipais83.

Além disso, alguns dos dirigentes da associação de produtores e trabalhadores

rurais compareceram a reuniões coordenadas pela ONG Viva Rio para elaboração do

plano de manejo da APA, ou convocadas por autoridades municipais para tratar da

unidade de conservação. Foi elaborado um “manifesto” com as reivindicações da

associação relativas à APA, encaminhado às autoridades municipais. O discurso das

pessoas que falavam em nome da associação de produtores e trabalhadores rurais –

Edson Aguiar, o presidente; Miguel Ângelo, segundo secretário; e, com maior

freqüência, Margarida, assessora técnica -, dirigido às autoridades municipais e aos

representantes das demais organizações da “sociedade civil”, era em defesa dos

“agricultores”, dos “pequenos produtores”, e da população do distrito do Lima, de uma

maneira geral. Eles questionavam a criação da APA sem prévia informação da

população, a ausência de representantes dos “pequenos produtores” no Conselho Gestor

da APA, a elaboração de um Plano de Manejo e de um Zoneamento, sem estudos

aprofundados sobre as atividades agrícolas na região e sobre as condições de vida da

população agricultora.

Os dirigentes providenciaram, também, a formação de uma comissão para uma

conversa com o promotor do Ministério Público a respeito da implementação da APA –

a estratégia era de “provocar” a promotoria a entrar com uma ação civil pública, mas o

83 Para Boudieu, o discurso herético deve não somente contribuir para quebrar a adesão ao mundo dosenso comum (no caso do distrito do Lima, a assimilação dos ambientalistas locais como parte dacomunidade e a inatingibilidade do discurso pela preservação do meio ambiente), professandopublicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas também produzir um novo senso comum e fazerentrar nele as práticas e experiências até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo, investidas dalegitimidade que conferem a manifestação pública e o reconhecimento coletivo (1988: 70). Neste sentido,o acionamento do discurso em defesa do povo do Lima, em oposição aos ambientalistas locais ou àsautoridades municipais, como gente de fora, vai de encontro não só ao descontentamento de parte dapopulação com as medidas ambientais, vistas como proibições, mas também com relação aos problemasde convivência e assimilação dos novos moradores e freqüentadores de origem urbana ao quotidiano dalocalidade. Portanto, o discurso das lideranças da associação de produtores e trabalhadores rurais tornoupúblico, organizou e institucionalizou, pela primeira vez, o descontentamento de uma parcela significativada população.

82

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MP não agiu como esperado. Esta ausência de resposta do Ministério Público foi uma

grande decepção para os dirigentes da associação - especialmente para os neo-rurais,

Margarida, Miguel e Maurício, que apostavam na entrada do MP diante de tantas

“irregularidades” encontradas por eles no processo de criação da APA84.

Após a visita ao Ministério Público e diante do resultado negativo desta

estratégia, cessaram as atividades da associação, embora ela permaneça formalmente

existindo. Não só o desânimo com a atitude do Ministério Público, mas a fraqueza de

uma diretoria apoiada no trabalho de poucas pessoas também contribuiu para o fim das

atividades desta associação. Os três neo-rurais que eram essenciais para a continuidade

dos trabalhos ficaram impossibilitados de continuar, por motivos pessoais ou morte.

Pouco depois, Edson Aguiar passou a representar a secretaria de interior no Conselho

Gestor. Desprovidos de suas lideranças, os pequenos produtores e trabalhadores rurais

não foram capazes de seguir com a associação.

2 – Composição da diretoria

Os dois dirigentes da associação que tinham maior visibilidade pública entre os

associados, faziam mais discursos e convocavam para as assembléias – o presidente,

Edson Aguiar, e o assessor técnico, Carlos Santana – pertencem a duas famílias

importantes na localidade. Tanto o presidente quanto o pai do assessor técnico são

considerados grandes proprietários, que procederam divisões das suas terras entre os

filhos e outros parentes, na condição de meeiros.

84 Estas “irregularidades” foram apontadas pelo Manifesto elaborado pela associação de produtores etrabalhadores rurais e encaminhado aos indicados para compor o Conselho Gestor da APA e copiado edistribuído a moradores do distrito: “A Associação de Produtores e Trabalhadores Rurais do Lima(APTRS) vem, por este meio, manifestar o seu repúdio ao processo anti-democrático de implantação daÁrea de Proteção Ambiental (APA) do Lima, bem como às irregularidades que permearam a formação doseu Conselho Gestor e as discussões de um Regimento Interno para este órgão e a elaboração do PlanoDiretor para a unidade de conservação deste distrito, recentemente re-nomeado de "Plano de Manejo -Fase 1", sob a coordenação da ONG Viva Rio. (...)Por estas razões, cremos estar o Conselho Gestorassim composto estruturalmente comprometido e inapto, portanto, a representar a comunidade do Sanacomo um todo. (...)Ao invés de contratar profissionais capacitados para a realização de estudos,extremamente necessários, a respeito dos meios físico, biológico e sócio-econômico que compõem odistrito do Lima, formaram-se "grupos de trabalho" compostos, majoritariamente, por membros dasdiretorias de algumas das instituições da sociedade civil representadas no Conselho Gestor. Estes, quedeveriam estar envolvidos, exclusivamente, no trabalho de representação dos seus respectivos segmentossociais através de um intercâmbio constante de informações com a comunidade, foram utilizados comomeros executores de tarefas, tendo ficado responsáveis pela realização de pesquisas para as quais nãopossuem preparo profissional, apesar da boa vontade e empenho de alguns deles. Além disso, a execuçãodestas tarefas resultou na remuneração de alguns dos conselheiros que representam as instituições dasociedade civil, embora ainda não estivessem oficialmente nomeados, o que, cremos, comprometeprofundamente a sua capacidade de representar os interesses dos seus respectivos segmentos sociais.”

83

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O presidente, Edson Aguiar, é uma pessoa popular e carismática entre a

população de origem camponesa do distrito do Lima. É considerado, pelos pequenos

produtores e trabalhadores rurais, como um grande proprietário. Sua popularidade se

deve, além de suas características pessoais, ao seu poder de intermediar o acesso de

moradores mais pobres a documentos civis85, vagas em hospitais, e até mesmo

empregos públicos ou contratações para prestar serviços a diferentes esferas do

governo. Seus acessos a órgãos e funcionários públicos se devem ao fato de que

trabalha, há diversos pleitos, como cabo eleitoral de políticos do município, uma das

quais chegou a Deputada Federal86. Já foi encarregado de obras da prefeitura na década

de 80, período em que a população do distrito convivia com o isolamento viário e de

telecomunicações e não atraía muita atenção do poder público. Ou seja, na década de

80, Edson Aguiar fazia parte de uma elite política local, que intermediava o acesso da

população à maior parte dos serviços públicos e benefícios do governo.

Assim como o senhor Edson Aguiar, o assessor técnico Carlos Santana é

proveniente desta mesma elite política do passado. Carlos, autor de grande parte dos

discursos proferidos nas assembléias, trabalha na sede do município numa grande

empresa. Trabalha como cabo eleitoral da mesma deputada apoiada por Edson Aguiar e

tem ambições de fazer carreira política. Conhece políticos, tem acesso a informações a

respeito das administrações municipal e estadual e acompanha de perto os

acontecimentos na Câmara Municipal e os processos eleitorais.

Carlos e Edson constituíam-se nas lideranças que formulavam o discurso da

associação em nome do verdadeiro povo do Lima em contraposição à gente de fora, que

conduzia a implantação da APA. E eram eles que contavam com a credibilidade da

população e que eram capazes de mobilizá-la para comparecer em massa às assembléias

da associação.

A associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima foi viabilizada pela

aliança entre aqueles dois dirigentes, Edson e Carlos, e três neo-rurais, Margarida,

85 Sua “ajuda” consiste, muitas vezes, em levar a pessoa ao órgão adequado e ajudá-la a preencherformulários e preparar cópias da documentação. Acompanhei uma vez sua ida à cidade com um cidadãodo distrito que pretendia se aposentar e, pelo que pude observar, sua ajuda não consistia em privilégiostais como passar na frente na fila ou deixar de apresentar algum documento, mas sim no auxílio emrelacionar-se com órgãos oficiais e documentos escritos.86 Isso não significa que a sua influência se estenda a todos os órgãos públicos uma vez que, por exemplo,teve construções embargadas e foi autuado por fiscais municipais do meio ambiente. Nem contribuiu parafacilitar o registro da associação em cartório, que foi bastante trabalhoso devido à necessidade de adequara documentação às exigências do Novo Código Civil. Tampouco influenciou o MP local a tomarprovidências com relação às reivindicações da associação na tramitação da APA.

84

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Miguel Ângelo e Maurício. Estes últimos ficaram responsáveis pela elaboração dos

documentos e lida com os trâmites burocráticos necessários à constituição da

associação. Mais do que isso, foram a assessora técnica Margarida e, com menor

freqüência, o secretário Miguel Ângelo, que acompanharam as etapas da implantação da

APA e compareceram aos fóruns formados por representantes das outras associações e

da prefeitura, falando em nome dos “pequenos produtores” e “trabalhadores rurais” do

distrito do Lima. Eles eram as pessoas habilitadas, não só a estudar os textos legais e os

poucos documentos da APA disponíveis até aquele momento, como também a lidar com

a linguagem “técnica” e as metodologias participativas que vinham sendo utilizadas,

discutindo em pé de igualdade com os condutores da APA.

A motivação destes neo-rurais em participar desta associação está associada

tanto às suas opções ideológicas quanto a diferenças pessoais com os ambientalistas

locais. Margarida, Miguel Ângelo e Maurício, com um passado de militância de

esquerda, enxergaram na grande mobilização popular promovida pela associação de

produtores e trabalhadores rurais uma possibilidade de reação da população mais pobre

do distrito a medidas ambientais implantadas, a seu ver, de maneira autoritária e elitista.

O primeiro secretário, Maurício, reside no município vizinho e possui um sítio

de veraneio no distrito, na região do São Pedro. É engenheiro aposentado de uma

empresa estatal e participa da vida política do município onde reside como membro do

Conselho Tutelar e da APAE, atividades que qualifica como beneficentes, nas quais

contribui elaborando atas e outros documentos. Tímido demais para falar em público,

Maurício foi responsável pela elaboração das atas das assembléias e organização do

livro-ata, pela organização das listas de presença nas mesmas e pelo registro da

associação em cartório. Para ele, a “ajuda” a esta associação era mais uma de suas

atividades políticas de militância puramente ideológica, uma vez que não tinha

ambições de fazer carreira política ou profissional.

O segundo secretário da diretoria eleita em 2002, Miguel Ângelo, que veio a

falecer ao final daquele ano, era mergulhador aposentado da exploração de petróleo e

morava em seu sítio no distrito, na região da Fortuna, onde desenvolvia pequenas

experiências em agricultura orgânica. Foi fundador do sindicato da sua categoria e

presidente do mesmo por dois mandatos. Via sua participação na associação como uma

contribuição de militância ideológica. Foi ele quem encaminhou a proposta de que as

reivindicações da associação fossem encaminhadas ao Ministério Público.

85

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Margarida se formou em enfermagem e trabalhou em comunidades carentes do

Rio de Janeiro. Posteriormente, graduou-se em Museologia e aposentou-se pela

prefeitura do Rio de Janeiro. É proprietária de um sítio de veraneio no distrito, na região

do São Pedro, onde residiu durante 10 anos depois de ter-se aposentado. Foi uma grande

entusiasta e incentivadora do trabalho da associação, contribuindo com a elaboração de

artigos para jornais locais e do “manifesto” da associação.

Completavam a diretoria da associação o segundo secretário escolhido para

substituir Miguel Ângelo e as duas tesoureiras. Eram jovens “nascidos e criados” no

distrito. Não chegaram a ter uma atuação significativa na associação.

3 – As assembléias e o discurso em favor do povo

As assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais do distrito do

Lima diferiam sensivelmente das reuniões de todas as outras organizações da

“sociedade civil” local.

Ocorriam na residência do presidente da associação, Edson Aguiar, num amplo

quintal de terra batida situado na frente da casa, ao ar livre, no final da tarde, aos

sábados. A maioria das pessoas ficava em pé, alguns se sentavam na escada que dá

acesso à casa, outros em tijolos ou pedras. Havia apenas uma mesa pequena, como uma

carteira escolar, com uma cadeira onde ficava sentado o secretário, Maurício, para a

qual todos se dirigiam antes e durante a reunião para assinar o livro de presença. As

pessoas encarregadas da coordenação da reunião ficavam de pé, de frente para os

demais associados, que hora ficavam todos de frente para a coordenação, hora

formavam uma meia lua voltada para a mesa. A quantidade de participantes variava de

uma a duas centenas de pessoas com uma leve predominância de homens adultos,

havendo também jovens e mulheres, muitas das quais com crianças.

As assembléias tinham início com um agradecimento do presidente pela

presença de todos e a Deus. Em seguida, o secretário lia a ata da reunião anterior,

sempre explicando a importância de fazê-lo – para que os que estiveram presentes

confirmassem se foi aquilo mesmo que aconteceu e para que os ausentes tomassem

conhecimento. Nas quatro assembléias que presenciei, a ata foi aprovada sem ressalvas

e por unanimidade, através do gesto de cada um erguendo um braço.

A pauta era sempre conduzida pelo assessor técnico, Carlos Santana, que

discursava e atribuía a palavra a quem erguesse o braço. Cerca de uma dezena de

pessoas, sempre as mesmas, pediam a palavra nas discussões, entre elas quatro dos

86

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dirigentes. O restante dos associados, em sua maioria, ouvia com atenção e tecia

comentários com as pessoas próximas. No momento de indicação da diretoria e dos

conselhos, houve conversações em voz baixa e indicações ao pé do ouvido do assessor

técnico. As conversas também proliferaram quando se decidiu fazer uma manifestação

pública, em torno da maneira como ela ocorreria – o local da caminhada, o conteúdo das

faixas e cartazes, sugestões de se bater panelas, levar instrumentos de trabalho e

instrumentos musicais.

Todas as propostas postas em votação foram aprovadas por unanimidade,

algumas delas precedidas por uma discussão para englobar diferentes proposições num

consenso. A diretoria também foi eleita por unanimidade, sem chapa concorrente. O

tom dos discursos sempre foi predominantemente calmo, variando entre a seriedade e

algumas brincadeiras. Os poucos momentos de exaltação faziam referência a pessoas

que lideravam localmente a implantação da APA e a autoridades municipais. A

assembléia em que a diretoria tomou posse (julho de 2002) foi tratada como a “festa de

posse”, e foram distribuídos cachorro quente e refresco.

As assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima

diferiam das reuniões das demais organizações da “sociedade civil” local em diferentes

aspectos. Primeiramente, chama a atenção o elevado número de pessoas presentes. A

rusticidade do evento também difere das demais associações: não havia cadeiras,

microfones, e ficavam todos ao ar livre.

Mas destaca-se, principalmente, a maneira de conduzir a reunião. Apesar de

muitos presentes, poucos se pronunciavam nestas assembléias, geralmente os membros

da diretoria. Os pronunciamentos eram feitos em tom de discurso político, muitas vezes

seguidos de aplausos. Assim, parecia haver uma distinção entre a “mesa” e o público.

Esta conformação parecia contribuir para a predominância da concórdia e da

unanimidade na aprovação dos encaminhamentos. Nas reuniões das demais associações,

havia menos gente e boa parte dos presentes se pronunciava sobre as decisões,

assemelhando-se as reuniões a conversas ou discussões sobre os pontos de pauta.

De uma maneira geral, o discurso dos dirigentes da associação de produtores e

trabalhadores rurais, durante as assembléias, atribuía a criação da APA à gente de fora,

à revelia do povo do Lima87. Permeava todo o discurso das lideranças a qualificação87 Como na fala do presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima, em que aexclusão do povo é tratada como uma “disfeita”, ou seja, ele reivindica o reconhecimento da importânciadaquela parcela da população: “Eu acho que até na verdade é disfeitar o povo do Lima. Porque elesfizeram um trabalho muito grande aí pra fazer o Conselho Gestor da APA. Que que acontece? Não tinhanem 3, nem 5 pessoas do Lima. Não tinha ninguém, né Carlos, lá na reunião deles. Aquele negócio lotado

87

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daqueles ali presentes às assembléias, como “a nata do Lima”, “pessoas enraizadas no

Lima”, o verdadeiro povo do Lima. A utilização destas expressões demonstra o

reconhecimento da existência de alguns moradores favoráveis à criação da UC. No

entanto, estar-se-ia sugerindo que os vínculos dos membros desta associação com o

território do distrito seriam mais profundos - o verdadeiro povo do Lima -, conferindo-

lhes direitos relacionados à autenticidade destes vínculos88.

“Eles botaram no jornal, eles falaram em público, mas ninguém

comunicou à população do Lima, não estava sendo sabedora e

consultada do que é a APA. E, na verdade, a nata do Lima, os

verdadeiros do Lima, não têm conhecimento do que é a APA.”

[Carlos, assessor técnico]

No início da fala de Carlos, não fica claro a quem o termo “eles” se refere, em

oposição à população do distrito. Se às autoridades municipais, por exemplo, ou aos

ambientalistas locais, ou outras hipóteses. No entanto, a seguir, quando ele diz que a

nata do Lima, os verdadeiros do Lima, não sabem o que é a APA, transparece que há

outros no local, menos verdadeiros e que não constituem a sua nata, que sabem, foram

informados e consultados. Nesta colocação de Carlos, as categorias nata do Lima e

verdadeiros do Lima soam ambíguas em relação ao povo do Lima, utilizado

anteriormente. Pois não fica claro se a nata ou os verdadeiros seriam toda a população

excluída da negociação em torno da APA, que estaria, neste caso, sendo qualificada

como melhor do que a outra parte da “sociedade”, ou se Carlos se refere à elite que

dominava localmente antes do advento do ambientalismo.

Cabe, ainda, aprofundar o olhar sobre a utilização freqüente da expressão povo

do Lima no discurso de mobilização da associação, produzido nas assembléias. Ela

parece atuar como um símbolo essencial na construção deste discurso89.

de gente de fora pra isso não resolve. Quem tem que resolver é o povo do Lima, que ta aí, ó que bonito aí,graças a Deus que o povo chega junto. Mas eles não fez. Não pode ser assim”. [Edson Aguiar, assembléiade 6 de abril de 2002, fazendo referência à reunião de formação do CG da APA, em 18 de março]88 Nesta fala de Carlos, a utilização da categoria povo tem também o sentido de maioria da população,além desta maioria ser caracterizada como a “mais enraizada” no Lima: “Uma vez que tem um projeto aíque criou a área de preservação ambiental, a APA. Que na verdade não passou por essa parte dasociedade do Lima. (...) então nós tivemos aqui [refere-se à assembléia anterior, na qual fora criada aassociação] pessoas enraizadas no Lima. Não desfazendo de uma associação que tem 11, mas umaassociação com 200 pessoas do alto do Firmamento ao alto de Geleira é a verdadeira associação querepresenta o verdadeiro desejo e anseio do povo. (...) Se eles ousassem, eu digo eles os de lá, ousassempassar por um plebiscito, de antemão teria rejeitado. Mas se eles convocassem os moradores para umaconversa ampla, geral e irrestrita, com certeza a APA poderia ser criada, mas dentro dos limites da nossasociedade.” [Carlos, assessor técnico, na assembléia de 6 de abril de 2002]89 David Kertzer chama a atenção para três propriedades dos símbolos, acionados nos dramas rituaislargamente encontrados na política. A condensação de significado se refere ao modo pelo qual símbolos

88

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Primeiramente, a expressão povo do distrito traz a nítida associação de uma

população com um território, como já vinha aparecendo nas citações anteriores. Esta

reivindicação de autenticidade tem também um aspecto temporal, que aparece no uso

concomitante de expressões como: os mais antigos no Lima, nascido e criado no Lima,

enraizados no Lima.

A palavra “povo”, contida na expressão povo do Lima, permite que seja também

associada à idéia de uma grande quantidade de pessoas, e, especialmente, de maioria. E

sugere, ainda, a idéia de pessoas mais pobres, em oposição a uma elite. Nesta fala do

presidente da associação, o povo aparece como maioria, comparada a “uma

mixariazinha”; e como os mais pobres, afetados pelas fiscalizações, em oposição a uma

elite de pessoas que estariam sendo beneficiadas pela APA:

“O povo do Lima é esses que tão aí, tá vendo? Isso que é o povo

do Lima. Mas essa APA não foi feita pelo povo do Lima. Uma

mixariazinha lá falando pelo povo. Só fala em castigar o povo

do Lima. Só fala que não pode criar boi, fazer plantação. (...)

Porque nós estamos completamente na mão de quem não sabe o

que é agricultura, e que são, tão levando o deles, mas o povo do

Lima não tá. Eles, quando faz uma casinha, eles não traz

solução, traz pobrema. Eles não traz um prego pra ajudar um

pobre, mas traz pobrema, traz aqueles fiscais lá pra dizer que

não pode, que vai derrubar, vai fazer isso e aquilo. Nós não

queremos isso.”

Neste trecho do discurso de Edson Aguiar, povo assume o sentido de maioria

quando oposto àqueles que implementaram a APA dizendo-se representantes da

população. Ou seja, trata-se de dizer que a maioria da população não está representada

no processo de criação da APA. Quando Edson trata da fiscalização, o povo passa a

conotar também as pessoas mais pobres, “castigadas” pela fiscalização, e a oposição é

construída entre nós e eles. O presidente da associação se inclui na categoria vitimizada

individuais – verbais ou icônicos – representam e unificam uma rica diversidade de significados. Já amultivocalidade seria a variedade de diferentes significados ligados ao mesmo símbolo. Enquanto acondensação se refere à interação destes diferentes significados e sua síntese em um novo significadopara um indivíduo, a multivocalidade sugere o fato de que o mesmo símbolo pode ser entendido pordiferentes pessoas de modo diferente. Além da condensação e multivocalidade, os símbolos são ambíguos– não têm um significado preciso. A complexidade e a incerteza de significado dos símbolos são fontes dasua força (1988: 11).

89

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pelos fiscais, em pé de igualdade com a população de origem camponesa, em oposição a

uma elite que estaria se beneficiando com as medidas ambientais. A divisão da

população de origem camponesa, entre uma elite agrária e os pequenos produtores e

trabalhadores rurais, fica, assim, obscurecida. Ou seja, a construção da divisão entre

uma população que seria autêntica do lugar e outros moradores está relacionada às

circunstâncias nas quais foi enunciada e a quem a enuncia. E, como outras

classificações, realça determinadas características e apaga determinadas nuances90.

A associação de produtores e trabalhadores rurais reunia tanto trabalhadores

diaristas - nas mais diversas funções que se podem entender como rurais atualmente

(lavradores diaristas, caseiros, pessoas contratadas por um dia para limpar quintais,

consertar cercas, tratar de animais, etc.) - e não proprietários de terras, quanto grandes

proprietários, cujas propriedades conjugavam agricultura, pecuária e até mesmo

turismo. Havia, também, alguns comerciantes e proprietários de sítios para lazer e/ou

veraneio, muitos dos quais não se adequam à classificação de, propriamente,

“enraizados” no distrito.

O agrupamento daquelas uma ou duas centenas de pessoas ali presentes como

povo do Lima, em oposição àqueles que tomavam parte na implementação da APA –

gente de fora – ao mesmo tempo em que permitia acionar a autenticidade do vínculo

com o território para denunciar a falta de participação na criação da UC, obscurecia

divisões internas do conjunto de associados.

Principalmente, a enunciação da oposição povo do distrito X gente de fora

colocava, se levada ao extremo, os implementadores da APA como os inimigos do

povo, reunindo sob o nome de povo tanto patrões quanto empregados, proprietários e

meeiros, unidos contra uma ameaça externa, a gente de fora.

A composição da diretoria da associação, com grandes proprietários e veranistas

e proprietários de sítios para lazer e fruição da natureza, demonstra como a classificação

de gente de fora só era acionada quando conveniente, pois havia neo-rurais entre os

dirigentes. Além disso, a colaboração dos dirigentes ex-moradores de grandes cidades,

com seus contatos, foi fundamental para o encaminhamento das questões levantadas

pela associação.

90 Segundo Bourdieu, a passagem do estado de grupo prático ao estado de grupo instituído supõe aconstrução do princípio de classificação capaz de produzir o conjunto de propriedades distintivas que sãocaracterísticas do conjunto dos membros deste grupo e de anular ao mesmo tempo o conjunto depropriedades não pertinentes que uma parte ou a totalidade de seus membros possui a outros títulos e quepoderiam servir de base a outras construções (1988: 70).

90

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A retirada da palavra “pequenos”, antes de “proprietários”, da denominação

cogitada para a associação na primeira assembléia, demonstra como foi necessário criar

uma classificação mais ampla que desse conta da aliança em torno da qual se constituiu

a associação – grandes proprietários pertencentes a uma antiga elite política, neo-rurais

que se diferenciavam dos ambientalistas locais pela militância ideológica a favor das

classes menos favorecidas, e os pequenos produtores e trabalhadores rurais do distrito

do Lima.

4 – Classificações do espaço

O discurso dos dirigentes da associação de produtores e trabalhadores rurais do

distrito do Lima e o discurso dos moradores de origem camponesa revelam uma forma

de classificar o espaço do distrito diferente daquela utilizada por ambientalistas locais e

autoridades municipais. A nomeação de lugares e a valorização positiva ou negativa

dos mesmos, contidas nestes discursos, fornecem elementos para analisar as

interpretações dos diferentes grupos a respeito do distrito do Lima.

Nas situações em que o discurso em nome do verdadeiro povo do Lima é acionado,

Lima engloba todo o distrito e é valorizado positivamente. Todavia, quando, nas

assembléias, estava-se falando das diversas subdivisões do distrito, Lima deixa de

constituir uma categoria inclusiva e valorizada positivamente. O Lima passa a designar,

somente, o lugar onde estão concentrados o comércio e algumas casas, e é associado aos

efeitos negativos do turismo – barulho, bagunça, pessoas dormindo nas ruas e tráfego

intenso91.

A ocasião da escolha dos integrantes da chapa única que veio a ser eleita por

unanimidade para presidir a associação é reveladora das categorias de classificação do

espaço reconhecidas por aquele grupo de pessoas presente nas assembléias.

Especialmente a indicação dos membros do conselho sub-regional da associação, cuja

composição (inclusive quantas e quais regiões iriam integrá-lo) foi em grande parte

decidida durante a própria assembléia, através de indicações da mesa e de outros

presentes. A própria decisão da diretoria de criar um conselho “sub-regional”, com a

intenção de que fizessem parte da diretoria pelo menos um representante de cada

“região” do distrito do Lima, fornece elementos para pensar a formação de alianças que

91 Nas entrevistas com produtores e trabalhadores rurais, esta conotação do Lima se repete, nasdeclarações de muitos entrevistados que dizem não freqüentar mais o Lima em função dos efeitosnegativos do turismo citados acima e do fato de que “não se encontra mais ninguém conhecido”.

91

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estava na base desta decisão. Edson Aguiar e Carlos Santana, devido a relacionamentos

estabelecidos através de contatos políticos, como cabos eleitorais ou encarregados da

prefeitura, possuíam alianças com líderes de vizinhanças, de igrejas, de cada pequeno

cantão do distrito do Lima. Eles acionaram estes contatos para convocar o povo para as

assembléias e fizeram questão de incluí-los em sua luta contra a implementação da

APA, pois isto era um “trunfo” diante dos ambientalistas locais, cuja área de influência

se limitava, principalmente, ao pequeno centro comercial e ao Vale das Águas.

Ao todo, foram identificadas oito localidades que deveriam estar representadas

no conselho sub-regional: Barra do Lima, Nascente, São Pedro e Santa Rita (unificados

sob o nome do primeiro, mas citados separadamente), Seara, Firmamento, Fortuna,

Vitória e Lima.

Para os quatro primeiros lugares - Barra do Lima, Nascente, São Pedro/Santa

Rita, Seara -, logo surgiram indicações e foram preenchidas as vagas para titular e

suplente. Os três seguintes – Firmamento, Fortuna e Vitória - tiveram indicado somente

um titular, enquanto o Lima ficou sem representação92. Foi decidido que os eleitos

estariam autorizados a nomear os cargos vagos, o que não veio a se concretizar,

permanecendo o conselho sub-regional conforme foi escolhido na assembléia.

E é necessário notar que a região do Vale das Águas não foi sequer mencionada

para integrar o conselho sub-regional, tampouco a diretoria ou o conselho fiscal, embora

faça parte do conjunto de categorias de lugar reconhecidas pelo grupo como existentes.

Isto fica evidente na fala do presidente da associação, na assembléia seguinte, sobre a

delimitação da APA, colocando que a unidade de conservação não deveria abranger

todo o distrito, mas: “só nas áreas como o Vale das Águas, que já não tem nada pra lá,

aqueles cantão de Escola, aquela disgrama que ninguém tá aproveitando” (Escola é um

afluente do córrego da Pedra do Caju, em torno do qual se situa o Vale das Águas).

Sem que haja uma correspondência unívoca, é possível constatar que as regiões

cuja representação foi encontrada sem dificuldade concentram um número maior de

associados. Nas regiões do São Pedro, Seara e Barra do Lima, também, concentram-se

os membros da diretoria que de fato se empenharam na associação. As outras regiões

92 Ao procurar uma pessoa para representar o Lima no conselho sub-regional da associação, a pergunta dodirigente Carlos Santana expressa a conotação do Lima como o pequeno centro comercial e residencial dodistrito, qualificado negativamente em função de malefícios associados ao turismo – consumo desubstâncias ilícitas, barulho, desordem: “De dentro do Lima, do focozinho ali do fuzuê (...) Quem morano fuzuê do Lima?” A pergunta ficou sem resposta, e aquela região ficou sem representação no conselhosub-regional.

92

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escolhidas, embora com menos participantes das assembléias, figuram entre os locais

identificados e reconhecidos pelo grupo. Para duas das regiões que indicaram somente

um titular, foram selecionados representantes ausentes à assembléia, que já tinham

mandado o recado de que “aceitavam”. Ou seja, era uma demonstração de que o apoio

àquela associação ia além dos associados reunidos, ali, em assembléia.

Os dirigentes da associação procuravam demonstrar que a distribuição dos

cargos da diretoria e do conselho fiscal também atendia, entre outras, a preocupações

com a divisão por localidade. A diretoria executiva tem dois representantes da Seara,

inclusive o presidente e sua filha, e os outros são de São Pedro, Santa Rita, Fortuna,

Lima e Barra do Lima. Ao anunciar a chapa única, o assessor confirmou:

“Então ficou bem dividido, né? Pegamos um bocadinho

de cada lugar. (...) [No conselho fiscal,] tem pessoas da Barra do

Lima, da Fortuna, da Nascente e outro da Barra também. Acho

que tá bem dividido.” [Carlos Santana, assessor técnico]

Reafirmando a autenticidade da associação de produtores e trabalhadores rurais

na representação da população, os discursos dos dirigentes, em assembléia, reivindicam

para a entidade o papel de representar cada pequena localidade do distrito, ao contrário

das outras associações locais existentes, que pareciam só ter preocupações com o Lima

e o Vale das Águas. A estrutura de cargos criados para a diretoria e conselhos da

associação permite inferir a sua ampla área de influência, com representantes escolhidos

(mesmo que ausentes à assembléia, por meio de “recados”) de diversas regiões.

5 – A atuação da associação nos fóruns da APA

O processo de constituição da associação de produtores e trabalhadores rurais foi

concomitante ao processo de criação da APA. Paralelamente às medidas necessárias à

formação da associação, tais como a formação de uma chapa, a eleição, a elaboração e

aprovação do estatuto, vimos que todas as assembléias versaram sobre a atitude da

associação em relação à implementação da APA no distrito.

Desde a reunião para formação do Conselho Gestor da APA, em março de 2002,

a assessora técnica Margarida foi a dirigente da associação de produtores e

trabalhadores rurais que mais esteve presente nos diferentes fóruns que tiveram por

tema a implantação da unidade de conservação no distrito do Lima. Além dela,

estiveram presentes, em algumas ocasiões, o presidente da associação, Edson Aguiar, e

o secretário Miguel Ângelo.

93

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Todos eles, mesmo antes da constituição formal da associação, fizeram

pronunciamentos em favor da população de origem camponesa do Lima, questionando a

sua exclusão das suas negociações em torno da APA. No entanto, havia diferenças nas

suas maneiras de se expressar.

O presidente, Edson Aguiar, ele próprio de origem camponesa, falava em nome

do povo do Lima e atribuía a implementação da APA à gente de fora, como em seus

discursos nas assembléias da associação. Ele esteve presente em três ocasiões: na

reunião de formação do Conselho Gestor; numa das reuniões para elaboração do Plano

de Manejo para a qual foram convocadas todas as pessoas identificadas, pelo

coordenador do Viva Rio, como “lideranças comunitárias”; e na apresentação do Plano

de Manejo à comunidade. Ou seja, compareceu somente nas ocasiões em que houve

uma convocação pública por parte da Prefeitura ou seus representantes. Nestas ocasiões,

em que havia diferentes moradores presentes, a fala de Edson se dirigia não só às

autoridades presentes, como também ao público. Dessa forma, Edson demonstrava ao

público, de uma maneira geral, que estava se posicionando em defesa do povo.

Já Margarida e Miguel Ângelo, neo-rurais, falavam em nome dos “pequenos

produtores”, dos “trabalhadores rurais”, ou, simplesmente, da “população”. Além das

ocasiões em que Edson Aguiar esteve presente, Margarida e, com menor freqüência,

Miguel Ângelo, procuraram acompanhar as reuniões semanais para elaboração do Plano

de Manejo da APA. Naquelas ocasiões, geralmente, estavam reunidos somente

ambientalistas locais e autoridades municipais, e era a eles que se dirigia o discurso

formulado pelos representantes desta associação.

Em junho de 2002, a associação de produtores e trabalhadores rurais escolheu

Margarida e Miguel Ângelo como seus representantes no processo de implementação da

APA. Antes disso, eles procuravam não falar em nome da associação, colocando-se

como “cidadãos” que se atribuíam o direito de tomar parte nas discussões. Sempre se

manifestavam contra as decisões tomadas sem divulgação e sem tentativas de incluir o

restante da população.

Muitas vezes, seu papel foi o de informar aos membros da diretoria, ou nas

assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais, sobre o andamento da

implantação da APA, as decisões que vinham sendo tomadas e o que eles estavam

planejando fazer. As “informações” eram transmitidas com indignação, especialmente

pelo fato de os argumentos em defesa dos produtores e trabalhadores rurais não estarem

sendo levados em consideração, e eram seguidas de discussões entre as lideranças sobre

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como encaminhar a atuação da associação diante das etapas do processo de

implementação da UC.

Depois de ter sido indicada como representante da associação de produtores e

trabalhadores rurais, Margarida assumiu uma postura mais combativa. Redigiu um

“manifesto” em nome da associação, “exigindo” o acesso a documentos como o

regimento interno do Conselho Gestor e as atas das reuniões de formação do Conselho

Gestor e aprovação do seu regimento interno, bem como a revisão destas decisões. O

manifesto foi entregue a cada um dos conselheiros (o conselho ainda não havia sido

oficializado pelo prefeito, como foi visto no capítulo 3). Diante da ausência de resposta

dos representantes da sociedade civil e do governo, decidiu-se levar a questão ao

Ministério Público Estadual.

Margarida e Miguel Ângelo recusaram-se a “participar” nos moldes pré-

determinados pelos preceitos da gestão participativa, e na forma sob a qual vinham

sendo apropriados e implementados localmente. Ou seja, recusaram-se a compor um

dos grupos de trabalho, formados por conselheiros e membros das organizações que

compunham o conselho, encarregados de realizar estudos para o Plano de Manejo.

Questionavam a falta de profissionais para conduzir estes estudos, que viriam a

subsidiar decisões a respeito do território e dos recursos do distrito do Lima. Nas

ocasiões em que foram utilizadas dinâmicas de grupo “participativas”, Margarida

questionou a finalidade daquelas metodologias e acrescentou que “a população” deveria

tomar parte, de fato, era das tomadas de decisão.

6 – O discurso dos moradores

De uma maneira geral, os moradores de origem camponesa, quando

interrogados a respeito da criação da APA do Lima, ou da implantação de medidas em

prol da preservação do meio ambiente, queixam-se das restrições ambientais. É comum

que surjam comparações com o passado, quando não havia estas restrições, valorizando-

o positivamente. O presente é, nestes casos, associado à escassez ou mesmo à miséria.

Como aparece no desabafo do lavrador Alceu, de 74 anos, diante da simples pergunta,

“o senhor é lavrador?”:

“Agora aqui não pode roçar, trabalhar, fazer nada. (...) Hoje não

faço mais nada. Tem uma grotinha de roça, com inhame e

banana. Não compensa mais o trabalho de plantar.(...)

Antigamente, era muito trabalho, a gente trocava dia, fazia

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mutirão. A vida era sacrificada, mas melhor que hoje. Tá uma

miséria danada. Quem tem uma moitinha de terra bota boi, não

planta mais nada. Como essa APA, não pode mais queimar nada,

roçar nada.”

Sem que isso tenha sido perguntado, Alceu estabelece a comparação com o passado,

tendo como marco a criação da APA. O passado era de muito trabalho, mas o presente é

de “miséria”. Alceu foi meeiro, no distrito do Lima, até 1981, quando se divorciou e se

mudou para o município vizinho, onde teve diversos empregos. Aposentou-se em 1996

e retornou ao Lima, comprando um lote onde reside, na região da Santa Rita. Vive da

aposentadoria, de um salário mínimo, complementada por lavouras cada vez menores,

cultivadas em meação na própria região da Santa Rita.

No entanto, é preciso notar que a interpretação a respeito da implantação de

medidas ambientais varia segundo a posição social do morador. Como Alceu, outros

lavradores atribuem as restrições ambientais à agricultura à APA, ao IBAMA, ao

governo, de forma impessoal. Como declara Raul, lavrador (meeiro na região do Vale

das Águas) de 73 anos e aposentado:

“Hoje em dia, a gente não pode plantar, o IBAMA não deixa. Se

tiver uma madeirinha, não pode arrancar.”

Os pequenos produtores, aqueles que possuem terra suficiente para produzir,

também se queixam das proibições ambientais, mas atribuem-nas à gente de fora. Como

na fala de Bernardo, pequeno produtor da região da Santa Rita:

“Agora, não se pode mais derrubar capoeira para plantar.

Querem tomar conta da nossa terra, o dinheiro deles tá falando

alto. Mas eu não vendo minha terra, para evitar mais gente de

fora no lugar.”

Bernardo se sente capaz de fazer frente às mudanças, pois tem o poder de não

vender a sua terra. Esta alternativa não figura no horizonte dos trabalhadores diaristas e

meeiros, que atribuem as restrições ambientais, de forma genérica e impessoal, ao

governo ou ao IBAMA. As proibições ambientais são associadas, pelo pequeno

produtor, ao poder do dinheiro da gente de fora, que quer “tomar conta” da nossa terra.

Assim sendo, o discurso que atribui as proibições ambientais à gente de fora,

construído nas assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais, expressa

categorias do discurso dos pequenos produtores a respeito das medidas ambientais e

trata esta interpretação como a realidade de todo o povo do Lima.

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Algumas das respostas dos entrevistados sobre sua opinião a respeito das

atividades ambientalistas no distrito (2001) e a respeito da transformação do distrito em

Área de Proteção Ambiental (2002) evocaram a comparação dos fazendeiros com os

menores, ou ainda a comparação entre ricos e pobres. Estes pares de oposição, assim

como antigamente/agora e gente do lugar/gente de fora, são acionados para permitir

uma interpretação das mudanças nas regras de gestão do espaço e dos recursos. No

entanto, a oposição entre fazendeiros e menores, ou pequenos, não é reproduzida no

discurso das lideranças da associação.

A comparação, geralmente do próprio entrevistado ou da categoria na qual ele

se vê incluído, com os fazendeiros, está ligada a uma interpretação que tende a

minimizar a importância das mudanças relacionadas à criação da APA, uma vez que elas

são compreendidas sob o prisma de uma cisão que já existia e operava antes do advento

das medidas ambientais. Ou seja, é como se, apesar de algumas regras terem mudado,

permanecesse o poderio dos fazendeiros, imunes à fiscalização ambiental. Como

aparece no desabafo de Virgílio, de 21 anos, empregado como jardineiro na casa de um

neo-rural e que mantém uma plantação de banana na região da Fortuna, da qual entrega

a terça parte ao proprietário da terra:

[sobre a APA] – “Em parte é bom, proteger o meio ambiente,

tem muitos fazendeiros com pasto. Mas não tão ajudando o

pequeno agricultor. Os pastos não dão emprego porque eles

botam veneno. Mas a gente não pode mais roçar as capoeiras.”

Na visão de Virgílio, a proteção do “meio ambiente” poderia ser positiva se

aplicada aos fazendeiros. Todavia, parece estar penalizando, somente, o pequeno

agricultor. Fica implícita a impunidade dos fazendeiros, tratados como eles, que

continuam botando “veneno”, em oposição a a gente, a quem as proibições de fato se

aplicam.

Em cerca de uma dezena de entrevistas, o fazendeiro Bento, proprietário de uma

fazenda transformada em RPPN (imune à legislação da APA e submetida diretamente

ao IBAMA) na região da Barra do Lima, é citado nominalmente. Ele aparece ora como

imune à fiscalização ambiental, ora como o autor de denúncias relativas a queimadas

realizadas por pequenos produtores. Como nas declarações do pequeno produtor

Bernardo, a respeito da criação da APA:

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“Bento é fazendeiro, entrou num negócio, negociou as terras,

recebeu mudas e dinheiro pra não desmatar. Mas os menores

não podem fazer isso.”

Quando entram em cena os fazendeiros, os discursos permitem que o conjunto

de mudanças supracitado seja melhor dimensionado nas relações de poder locais. Pois,

aos fazendeiros, é atribuída uma imunidade às restrições ambientais, vistas como

aplicadas somente aos pequenos ou menores. Assim sendo, apesar da inserção de um

novo conjunto de pessoas nas relações de poder e nas disputas pelo espaço e pelos

recursos, o poder dos grandes proprietários não teria sofrido abalos, aos olhos da

população.

7 – O discurso de resistência, um princípio de agrupamento e as nuances apagadas

Em contraposição ao discurso pela preservação ambiental e em nome da

comunidade, a associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima elaborou um

discurso em defesa do verdadeiro povo do lugar, classificando os implementadores da

APA como gente de fora. Além disso, a categoria povo também é acionada para situar

os ambientalistas locais ao mesmo tempo como uma elite e como minoria.

Esta tentativa de introduzir uma nova classificação nos parâmetros da

negociação política pela gestão do território da APA e seus recursos deu voz a

ressentimentos latentes e tácitos na população de origem camponesa do distrito do

Lima. Para tanto, usou categorias acionadas pelos pequenos produtores para interpretar

a criação da APA, tornando-as extensivas a toda a população de origem camponesa do

distrito. Por isso, foi capaz de mobilizar tantas pessoas para as assembléias e angariar

tantos associados.

Ao contrário do que atestam os ambientalistas locais (que jamais presenciaram

sequer uma assembléia desta associação), as assembléias reuniam um conjunto de

moradores realmente animados com a formação da associação e com a possibilidade de

ter seus interesses representados no processo de implementação da APA. Isto não exclui

a possibilidade de que o seu comparecimento às assembléias tenha sido motivado, em

parte, por comprometimentos políticos com o senhor Edson Aguiar ou com a família

Santana93. A despeito de possíveis comprometimentos políticos ou dívidas de gratidão93 Nos fóruns da APA, nas ocasiões em que os representantes da associação de produtores e trabalhadoresrurais mencionavam a quantidade de membros da associação e de pessoas presentes às assembléias,ambientalistas locais atribuíam aquele número de pessoas aos “votos de cabresto” comandados por EdsonAguiar. No entanto, nas assembléias desta associação que presenciei, o público parecia interessado nasdiscussões e entusiasmado com a associação, embora não fizesse pronunciamentos.

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que possam também ter contribuído para a presença massiva de moradores de origem

camponesa nas assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais do Lima,

os membros desta associação pareciam conhecer muito bem os objetivos daquelas

assembléias e demonstravam entusiasmo na mobilização “contra a APA”.

Era assim que os moradores definiam o trabalho da associação: como “a luta

contra a APA”. No entanto, os dirigentes da associação tomavam o cuidado de falar

“contra o processo de criação da APA”. Isto acontecia porque havia uma compreensão,

por parte dos dirigentes da associação, de que não podiam se posicionar contra a

“preservação do meio ambiente”. Sua mobilização era, dessa forma, contrária “à

maneira pela qual a APA foi criada” - sem participação popular.

Para dar visibilidade a este grupo na disputa política, foi preciso introduzir nas

discussões uma outra classificação, que opõe a gente de fora ao povo do lugar, que,

como qualquer classificação, para estabelecer-se, obscurece nuances e ambigüidades –

os diferentes pertencimentos dos membros da associação – que poderiam dar margem a

outras formas de classificação.

Observando de perto, alguns dos próprios membros da diretoria e dos conselhos

da associação, assim como a representante que mais falou em nome da associação nos

fóruns de discussão da APA, Margarida, poderiam perfeitamente ser classificados como

gente de fora. No entanto, sem a contribuição destas pessoas, a associação não teria

chegado a existir, pois eles detinham o conhecimento da linguagem e dos trâmites

burocráticos para criar a instituição, além de estarem aptos a negociar com os

ambientalistas locais e as autoridades municipais e questionar suas ações segundo os

critérios pertinentes. Como em outros casos analisados na literatura, são necessários

intermediários, geralmente profissionais ou instâncias que constituem uma

antiexpertise, para que as populações atingidas passem a ser ouvidas (Lopes 2004: 259).

Neste caso, os intermediários eram semelhantes aos ambientalistas locais quanto à

origem e posição social, mas a sua vivência em partidos políticos de esquerda ou

sindicatos tornou possível que a sua abordagem do problema de criação da APA

privilegiasse questões de desigualdade social sobre os problemas ambientais. Desta

forma, eles encaravam a sua participação na associação como um trabalho abnegado de

militância política.

A divisão entre povo do lugar e gente de fora também obscurece as diferenças

internas do povo do lugar, formado tanto por grandes proprietários de terras quanto por

trabalhadores diaristas, e todas as matizes intermediárias entre estes dois pólos. Não há

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dúvida de que estiveram envolvidos na formação desta associação grandes proprietários

de terras preocupados com a interferência da fiscalização ambiental em suas atividades

e com a inserção dos ambientalsitas locais na disputa pelos recursos públicos. No

entanto, a aliança indispensável com proprietários de origem urbana que militavam a

favor dos “pequenos” permitiu que fossem conferidas voz e visibilidade às necessidades

da população mais pobre do distrito do Lima.

Numa localidade onde não há registro de qualquer tipo de organização de

trabalhadores rurais ou agricultores, tampouco sindicatos rurais94, a associação de

produtores e trabalhadores rurais do Lima desempenhou o papel de trazer à tona um

grupo até então marginalizado das discussões em torno da transformação do território

do distrito em unidade de conservação. As debilidades desta aliança impediram a

continuidade, de fato, da associação. No entanto, o seu curto período de atuação teve o

papel de impedir que as medidas ambientais que vinham sendo implantadas ignorassem

por completo a presença de produtores e trabalhadores rurais no distrito do Lima.

94 De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, os camponeses, no Brasil, sempre “dependentes deuma camada superior – fosse esta composta de fazendeiros, de criadores de gado, de comerciantes, dechefes políticos, de citadinos endinheirados – os camponeses esposavam-lhes as disputas e partilhavam-lhes as lutas. (...) Não se desenvolve entre eles uma solidariedade horizontal ou classista. (1976: 28-30)”

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PARTE II

CAPÍTULO 5 – AS PRIMEIRAS ATIVIDADES DO CONSELHO:

REGULAMENTANDO, PLANEJANDO E CONSTRUINDO O DISCURSO

OFICIAL

Após a reunião pública para a formação do Conselho Gestor da APA, em março

de 2002, as primeiras medidas para promover a implantação da unidade de conservação

– elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor e do Plano de Manejo – Fase 1

(que contém o Zoneamento) – transcorreram num período de conflito com a associação

de produtores e trabalhadores rurais, durante o qual prevaleceu a aliança entre

ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio ambiente (órgão criador da UC),

permanecendo em suspenso as diferenciações entre os grupos que compunham esta

aliança .

1 - A Elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor

O funcionamento do Conselho Gestor da APA foi formalmente estabelecido

através do Regimento Interno (RI), cuja elaboração constituiu-se num processo tenso e

conflituoso. A primeira proposta de RI foi encaminhada pela secretaria de meio

ambiente e as discussões tiveram início antes mesmo da nomeação oficial do CG pelo

prefeito, simultaneamente às reuniões locais para elaboração do Plano de Manejo,

durante o ano de 2002.

As discussões locais para elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor

tiveram início logo após a conturbada reunião para a formação do CG (analisada no

capítulo 3), numa reunião no centro cultural. Dentre os representantes do poder

público, estiveram presentes somente o secretário de meio ambiente e as representantes

da secretaria de meio ambiente e da secretaria de obras no CG e, em nome da

“sociedade civil”, os indicados para representar todas as organizações, além de pessoas

que falavam em nome dos “pequenos produtores” e do clube de futebol local. Para

muitos dos indicados a representar as organizações locais, não havia ficado claro na

reunião anterior que a composição do CG estava definida.

A leitura da proposta de RI não chegou ao final devido às constantes

intervenções e críticas, especialmente com relação à previsão de reuniões restritas aos

membros do CG. Uma semana depois, reuniram-se somente os indicados para compor o

CG na sede da associação comercial local, em local distante do centro, na Barra do

Lima. Esta localização, bem como a não divulgação do encontro, permitiu que a reunião

fosse restrita aos indicados para compor o CG.

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O tema do Regimento Interno do CG só foi retomado95 em agosto, numa reunião

na sede do município entre os representantes do poder público, e em outubro, às

vésperas da posse oficial do CG, em duas reuniões locais. Posteriormente, a proposta foi

finalizada para encaminhamento à homologação do prefeito depois de uma reunião do

Conselho Gestor em janeiro de 2003.

De uma maneira geral, as alterações propostas pelos representantes das

organizações locais à minuta trazida pela secretaria de meio ambiente iam no sentido de

garantir uma freqüência maior das reuniões plenárias, dos relatórios do CG, estudar a

possibilidade de criação de um fundo para gerir a APA (embora o secretário tenha

esclarecido que as despesas com a APA competem à secretaria de meio ambiente),

garantir maior antecedência nas convocações de reunião e definição da sua pauta e

submeter todas as deliberações à aprovação dos conselheiros, como, por exemplo, a

escolha do Secretário Executivo. Ou seja, iam no sentido de assegurar maior freqüência

dos representantes do município à localidade e agilidade na atuação do CG, com

relatórios semestrais e pautas definidas com maior antecedência. Havia uma

preocupação, também, por parte dos representantes da “sociedade civil”, em assegurar o

seu poder de influenciar as tomadas de decisão.

A questão da “participação” dos cidadãos comuns, não integrantes do CG, nas

reuniões plenárias, foi tratada em todas as ocasiões e veio a ser definida ao final de

outubro de 2002. “Os conselheiros decidiram que as reuniões do [CG da APA] serão

realizadas em duas etapas, a primeira restrita aos conselheiros com caráter deliberativo e

a segunda aberta a comunidade em geral com caráter consultivo.” (Conselho Gestor –

Ata de Reunião – 24/10/2002)

A proposta original previa reuniões restritas aos membros do CG, ficando

entendido que as colocações da população seriam debatidas no âmbito das organizações

locais e trazidas ao CG por seus representantes. A contra-proposta de reuniões abertas e

com direito a voz concedido aos cidadãos foi trazida pelo representante da ong

ambientalista local, Matheus, e foi fruto de acirradas discussões em reuniões internas

desta instituição96.

Quando encaminhada na plenária, esta contra-proposta provocou polêmica e sua

decisão foi adiada para a reunião seguinte, que resultou na decisão transcrita acima. As

atas oficiais, aprovadas e assinadas pelos conselheiros, revelam pouco a respeito das

95 Segundo o conteúdo das atas disponíveis para consulta na Secretaria Executiva do CG.96 Ver capítulo 2, págs. 38 e 39.

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discussões suscitadas por este ponto. O acesso a minutas destas atas que vieram a sofrer

alterações para sua aprovação pelo CG revela um pouco mais a respeito destes debates.

Não constam destas minutas os argumentos apresentados pelo representante da ong a

favor da proposição apresentada, não sendo possível imaginar se esta argumentação

chegou a ocorrer, tampouco seu grau de insistência (uma vez que os representantes da

ONG no CG eram justamente aqueles que se posicionaram contra a proposta de

conceder o direito à palavra aos cidadãos, na ocasião da reunião interna da ONG). No

entanto, foi possível identificar o conteúdo das manifestações contrárias a esta proposta

na reunião do CG, encaminhadas pelo presidente, Francisco Pinto, e pela representante

da empresa municipal de saneamento: os cidadãos comuns deveriam participar das

organizações da sociedade civil local e estas encaminhariam suas colocações, pois havia

uma percepção de que sua presença nas plenárias do CG provocaria distúrbios no

andamento das mesmas. O presidente do CG ainda ressaltou o caráter democrático da

formação de um conselho deliberativo, ao invés de simplesmente consultivo, como

obriga a legislação federal. Ou seja, havia, também, uma preocupação do secretário em

reafirmar o caráter participativo do CG, apesar das reuniões fechadas.

Apesar de impossibilitados de tomar parte nas reuniões para elaboração do RI,

representantes da associação de produtores e trabalhadores rurais encaminharam uma

proposta alternativa de RI. Na reunião do CG de janeiro de 2003, última a tratar do RI

antes do seu encaminhamento ao prefeito, a representante da secretaria de meio

ambiente propôs a inclusão de três incisos referentes à criação de um Fundo Ambiental,

a ser estabelecido por lei municipal, para custear a APA, frisando ter utilizado trechos

da proposta encaminhada pela dita associação. A inclusão foi aprovada. Ou seja, havia

uma preocupação dos futuros conselheiros em demonstrar o caráter “democrático” e

“participativo” do trabalho do CG, documentando em ata a inclusão de parte da

proposta encaminhada pela associação excluída.

2 – As representações sobre o Conselho Gestor da APA ao longo do processo de

elaboração do Plano de Manejo

Pouco tempo depois das reuniões para formação do Conselho Gestor e

elaboração do seu Regimento Interno, começaram as reuniões locais coordenadas pela

ONG Viva Rio para elaborar o então chamado “plano diretor” para a APA. A análise

das representações sobre o Conselho Gestor da APA que surgiram ao longo deste

processo, que durou de março a novembro de 2002, contribui para a compreensão do

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significado do Conselho Gestor para os representantes da “sociedade civil” local que

dele tomaram parte no período que sucedeu à sua formação.

Durante a maior parte do processo de confecção do Plano de Manejo, de março

a outubro de 2002, o CG ainda não havia sido criado oficialmente, pois faltava que

fosse homologado pelo prefeito. No entanto, era freqüentemente tratado pelos

participantes regulares das reuniões de elaboração do plano como já existente e

operante. Esta atitude das lideranças locais é reveladora do papel atribuído por elas ao

CG, como uma instância de poder decisório local cuja autoridade poderia ultrapassar a

do poder público municipal.

As primeiras reuniões locais para elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase

1 foram tratadas pelos seus participantes como reuniões do Conselho Gestor. Somente

os indicados, titulares e suplentes, foram avisados sobre a primeira reunião. Entendia-se

que o plano seria elaborado pelo conselho e por pessoas indicadas pelos conselheiros

para executar as tarefas.

As reuniões eram semanais, coordenadas pelo representante da ONG Viva Rio, e

seus participantes regulares foram os escolhidos para representar quatro entidades da

“sociedade civil” local: Matheus, da ONG ambientalista – Grupo Germinal; Lúcia e

Darcy Miranda, da associação de moradores do Lima; Jaime e Hermes, da associação de

moradores do Vale das Águas e Ivan e Rô, da associação comercial. A presença dos

futuros representantes do “segmento religioso”, Alcina Miranda e Brian, e da associação

de moradores da Nascente, Rogério e Cristina, foi esporádica e não houve de fato o seu

envolvimento com os trabalhos que foram realizados. Os futuros conselheiros

representantes das secretarias e empresas municipais não freqüentavam as reuniões,

exceto em ocasiões específicas97. Mesmo assim, até o final de junho, os participantes

regulares das reuniões se intitulavam o conselho, e neste título respaldavam muitas de

suas ações. Por exemplo, entrevistas com os “empresários” e “produtores rurais” do

distrito do Lima, para confecção de um diagnóstico sócio-econômico para o Plano de

Manejo, foram feitas em nome do Conselho Gestor da APA.

Esta pressa em se auto-intitular como o conselho estava relacionada a duas

circunstâncias. A primeira delas era uma compreensão do conselho como uma

autoridade máxima local, uma instância pela qual toda e qualquer atividade realizada no

distrito deveria ser autorizada antes de acontecer. Era comum a repetição de frases

97 Quando se tratava da “recuperação de uma área degradada”, para a qual buscou-se uma parceria com aempresa municipal de saneamento; ou para a elaboração de um “sistema de sinalização”, para o qual foicontactada a secretaria municipal de comunicação social, que não dispunha de assento no CG.

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como: “De agora em diante, tudo que for feito na APA vai ter que passar primeiro pelo

conselho”. Os ambientalistas locais ansiavam por este poder de fiscalização e

regulamentação há muito tempo, desde que começou a ser cogitada a criação de um

“parque ecológico comunitário” na área das cachoeiras. A partir do momento em que

houve a definição das entidades e pessoas que integrariam o CG, e as constantes

afirmações da secretaria de meio ambiente de que a nomeação oficial era iminente, os

ambientalistas locais se sentiram imbuídos da autoridade que lhes faltava para iniciar

um processo mais sistematizado de normatização do uso dos recursos naturais no

distrito. A principal medida, neste sentido, foi a produção do Zoneamento da APA, que

passou a nortear, dali por diante, o uso do espaço no distrito do Lima.

A segunda circunstância era a necessidade de conter a atuação dos opositores do

processo de implantação da APA, que pareciam estar se organizando e ficando mais

eloqüentes a cada dia. Tratar a elaboração do Plano de Manejo como um trabalho do

conselho permitia limitar a interferência de outras lideranças locais que prejudicavam o

andamento das tarefas previstas no projeto de elaboração do plano – principalmente da

associação de produtores e trabalhadores rurais. Este tratamento, associado a uma

exigência de rapidez nos trabalhos por parte da secretaria de meio ambiente

(inicialmente, foi dito aos participantes das reuniões que o plano deveria ser elaborado

em um mês), fazia com que qualquer questionamento soasse como algo que estava

atrapalhando o andamento das atividades. O conselho serviria, então, para agilizar o

envolvimento da comunidade, pois as decisões seriam discutidas no interior de cada

organização e trazidas ao conselho por seus representantes. Desse modo, também, a

presença de representantes da associação de produtores e trabalhadores rurais foi, até

determinado momento, tratada como uma concessão.

Por exemplo, diante das demandas por participação de lideranças da recém

formada associação opositora, o coordenador do Viva Rio, Boris, colocou que o CG

deveria ter representantes de todos os “atores sociais”. E acrescentou:

“Do ponto de vista de burocracia, se a associação de produtores

rurais vai entrar no conselho, eu nem sei como é que é, o que

precisa, tem que ver com o Francisco [secretário de meio

ambiente]. Do ponto de vista da construção do plano diretor,

vocês já estão no conselho. O que vocês têm agora que negociar

com o secretário é a inclusão oficial.” [Reunião do Plano Diretor

– abril de 2002]

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Ao que o representante do Grupo Germinal respondeu:

“O secretário não manda nada, quem manda são as pessoas de

que o conselho se compõe.”

Esta resposta de Matheus, representante da ONG ambientalista local,

exemplifica a intenção de construir uma espécie de poder local, que superaria o poder

público municipal. Isto porque, quando se refere ao conselho, Matheus se refere àqueles

conselheiros ali presentes, aos quais caberia a decisão de “permitir” a presença dos

representantes da associação de produtores e trabalhadores rurais, embora aquela

associação ainda não dispusesse da documentação exigida para compor o CG.

No entanto, Margarida e Miguel Ângelo, que naquele momento ainda não

haviam sido escolhidos pela associação de produtores e trabalhadores rurais para

representa-la nos fóruns da APA, recusavam-se a aceitar que sua presença fosse tratada

como uma concessão. Eles admitiam fazer parte da dita associação e falavam em defesa

dos “pequenos produtores”, mas faziam questão de deixar claro que estavam exercendo

o direito de tomar parte naquelas reuniões enquanto cidadãos, porque a elaboração do

Plano Diretor não deveria ser restrita aos membros do conselho. Ou seja, eles

questionavam a forma pela qual vinha sendo tratada a “participação” na elaboração do

Plano de Manejo98.

A resposta dos elaboradores do plano a estes questionamentos ia no sentido de

reafirmar o modelo de “participação” adotado. Como exemplifica o discurso do

coordenador do Viva Rio, Boris, numa apresentação do Plano de Manejo à comunidade,

em outubro, com o CG já oficializado:

“Até o final do mês de outubro, nós terminaremos a

composição desse plano, vamos montar o primeiro volume,

vamos apresentar ao Conselho Gestor, iniciando pelo presidente

do conselho. E a recomendação da Feema, e da Ecologus

[representante do patrocinador], sic é que a gente faça uma

reunião depois de apresentação geral do plano. Quem pode

98 A idéia da “participação popular” na gestão pública, ou envolvimento público, que começou a tomarforça, no Brasil, no período pós-constituinte, tem sido tratada na maior parte da literatura de formanormativa, avaliando-se experiências de “participação”. Outra fatia significativa da literatura apresentadiscussões teóricas de filosofia do direito ou ciência política, calcadas na oposição entre “democraciaparticipativa” e “democracia representativa”. Para uma análise mais abrangente, Heredia e Palmeirapropõem que se incluam “as condições sociais e políticas que possibilitam a emergência de agentes eforças políticas interessadas, de algum modo, nesse tipo de experiência ou, então, em oposição àsmesmas” (1999: 10).

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agregar sugestões, alterações, são os membros do Conselho

Gestor, que representam os segmentos da sociedade. Outros

segmentos que não compõem ainda o conselho podem

encaminhar. A gente não queria, isso é uma preocupação minha,

é abrir assim pra toda a comunidade, todo mundo falando, senão

a gente não vai terminar nunca mais esse plano. A sociedade, em

seus segmentos organizados, encaminha. Então esses segmentos

ouvirão a apresentação do plano. Nesse último momento, a

gente ainda pode fazer algumas modificações, porque até o final

do mês de novembro a gente tem que entregar pronto o plano.”

As lideranças das organizações da sociedade civil local que estavam se

empenhando em realizar as etapas apontadas como necessárias para a implantação da

APA - ou seja, os ambientalistas locais - interpretavam os questionamentos dos

opositores locais (que, com o passar do tempo, ficaram sendo somente os representantes

da associação de produtores e trabalhadores rurais) como implicâncias e revanchismos

de ordem pessoal, provenientes de pessoas cuja intenção era, somente, atrapalhar a

implantação da APA. Alguns chamavam a atenção para o aspecto dito “político”,

interpretando a postura questionadora como motivada por alianças daquelas pessoas

com políticos, cujos benefícios diminuiriam com o poder do Conselho Gestor. Como

aparece no alerta de Jaime, representante da associação do Vale das Águas,

argumentando contra a presença de cidadãos comuns nas reuniões do Plano de Manejo:

“Não se pode usar a democracia em favor de pessoas que estão

contra tudo isso. O que acontece é que algumas pessoas que

estão aqui há muitos anos no Lima, eles não são a favor disso,

não são a favor de nada aqui. Elas são a favor de suas facilidade

políticas. É preciso entender a comunidade do Lima pra tomar

uma atitude dessas. A democracia, nós estamos aqui para

proteger a democracia, mas não podemos com a democracia

facilitar pra outras pessoas que na verdade são anti-democráticas

impeçam essa coisa que é a APA” [reunião do Plano de Manejo,

em abril de 2002].

Com o passar do tempo e a demora na nomeação oficial do conselho pelo

prefeito, os ambientalistas locais passaram a questionar a ausência dos representantes

da municipalidade nas reuniões e o pouco empenho do secretário-futuro-presidente para

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agilizar os trâmites oficiais, pondo em dúvida a sua auto-intitulação como conselho. É o

que aparece neste diálogo entre Matheus, do Grupo Germinal, e Ivan, da associação

comercial:

“Ele [Francisco Pinto, secretário de meio ambiente e presidente

do CG], como presidente, ele tá parado, essa é a verdade. Nós

precisamos do conselho preparar um oficio ou uma carta

convocando ele pra uma reunião do conselho.” [Matheus]

“O conselho não pode fazer isso porque não existe

conselho.” [Ivan]

“Então vamos nos intitular o conselho gestor da APA:

Germinal, associação de comerciantes, associação do Vale das

Águas e associação de moradores.” [Matheus, reunião do Plano

de Manejo, junho de 2002]

Diante da constatação da fraca atuação do presidente, o representante da ONG

explicita o desejo de estabelecimento de um poder local, formado pelos representantes

das quatro organizações locais empenhados na confecção do Plano de Manejo. O

representante da associação comercial, por sua vez, enxerga dificuldades para exercer

este poder sem o respaldo da prefeitura99.

Assim sendo, a atuação do conselho, naquele período, foi a projeção dos planos

dos ambientalistas locais para a gestão do distrito do Lima, o que se refletiu na

construção do Plano de Manejo. No entanto, para passar do planejamento à ação, era

necessário contar com as autoridades do governo.

3 – A relação dos ambientalistas locais com a prefeitura durante o período de

formação do aparato institucional e legal da APA

A aliança entre os ambientalistas locais e alguns órgãos municipais,

especialmente a secretaria do meio ambiente, era repleta de tensões. Em parte porque

99 José Sergio Leite Lopes sugere considerar o envolvimento público “como um processo de comunicaçãosocial no qual vários atores participam das tomadas de decisão em graus variados de intensidade,juntamente com as autoridades públicas. Esse envolvimento público pode se fazer de forma fraca ouforte, dependendo do contexto institucional mais amplo e da natureza e do grau de transparência, bemcomo da abertura dos processos de interação e comunicação entre governos e cidadãos. Dessa forma,passa-se a depender do exame empírico de cada caso, dando-se importância para a análise etnográfica ehistoriográfica. (2004: 258)” Neste caso, embora houvesse um grupo organizado e atuante interessado emtrazer decisões e ações para a esfera local, sua atuação era limitada não só pela dependência em relação aoorçamento municipal e da secretaria de meio ambiente, como também pela necessidade do respaldo e doaparato institucional.

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fora consolidada com a criação da APA, em 2002, após um período em que o poder

público, especialmente o municipal, era alvo de constantes críticas por parte dos

ambientalistas locais. Como atestam uma manchete do informativo da associação

comercial, de 1999 - “Poder público é o maior obstáculo ao desenvolvimento do

turismo” – ou o informativo da ONG ambientalista do mesmo ano, em matéria sobre

loteamentos “irregulares” - culpando o “desinteresse e a inabilidade das Secretarias de

Obras e de Meio Ambiente do município”.

Cerca de 6 meses após a criação da APA, os ambientalistas locais

interpretavam as negociações com o órgão municipal como um mal necessário à

implantação da preservação ambiental no distrito. E questionavam a efetividade do

poder atribuído a eles pela prefeitura através do conselho, à medida em que iam se

deparando com os limites da cooperação do governo municipal.

A relação dos ambientalistas locais com a Prefeitura, de uma maneira geral, e

com a secretaria de meio ambiente, especificamente, por ser o órgão que alavancou a

criação da APA, era de constante cobrança. A sensação era de que o empenho por parte

daquelas lideranças locais na implantação das medidas ambientais era sempre muito

maior do que o das autoridades municipais100.

Enquanto os ambientalistas locais acreditavam fazer o seu papel dentro das

exigências de prazos e conteúdos exigidos pela prefeitura, tudo lhes parecia ficar

pendente e se arrastar quando era a hora da atuação das autoridades municipais,

especialmente nos trâmites considerados burocráticos – assinatura de ofícios pelo

prefeito, aprovação de documentos, etc.

A necessidade de cobrança insistente era reconhecida até mesmo pelos

conselheiros governamentais. Na apresentação do Plano de Manejo à comunidade, em

outubro de 2002, o representante da secretaria de agricultura, Antônio Jardim, reafirmou

a importância da cobrança em relação ao poder público:

“Tudo a gente vai decidir no Conselho Gestor. Em que

depender do poder público, tem que haver decisão e cobrança

insistente.”

Diante disso, o representante da ONG local, Matheus, cobra:

100 Nos casos estudados por Leite Lopes (et allii), nos locais onde a participação é mais elevada, os“movimentos populares” apresentam “a queixa de que os conselhos muitas vezes deixam a desejar pordecidirem com base na pressão desigual por parte do Executivo local, que detém as informações, osquadros técnicos, e os meios políticos de executar.” (2004:254). O caso desta pesquisa, somando-se aosestudados por Leite Lopes, fornece elementos para pensar as dificuldades de implantação de umaparticipação efetiva da população em diferentes áreas de tomadas de decisão.

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“Então eu quero ouvir agora com a participação dos

representantes de cada secretaria que compõem o Conselho

Gestor do poder público. Se vão ouvir o que a comunidade

solicita e se realmente vão colocar em prática. O que sempre

faltou foi o poder público realmente participar.”

Outro integrante da ONG acrescenta:

“A gente gostaria de ter acesso a que as pessoas que são os

representantes do poder público no conselho, de alguma

maneira, tenham poder decisório.”

Ao que o secretário-presidente esclareceu que os conselheiros municipais

teriam, sim, poder decisório. Ou seja, havia uma desconfiança dos ambientalistas locais

em relação à efetividade do poder atribuído ao Conselho Gestor no discurso das

autoridades municipais. Pois de nada adiantaria que decisões fossem tomadas pelo CG

se não viessem a ser executadas pelos órgãos municipais.

Na apresentação final do plano, em novembro, o conselheiro representante da

associação de moradores do Vale das Águas, Jaime, expressou o seu temor em relação

aos compromissos do governo municipal e questionou o alcance do poder atribuído ao

CG:

“Essa participação, o poder das lideranças não tem. Na hora que

o pau quebrar, a prefeitura corta.(...) A comunidade vai ficar

contra a liderança porque a liderança não vai conseguir colocar

as coisas que ela quer colocar. Tem que ser dito que vai esbarrar

na prefeitura. Porque eles têm, como é que se diz, os

interesses...”

A conselheira da secretaria de meio ambiente diz ser preciso ver o poder público

como aliado, não como inimigo. E Jaime questiona os limites da aliança entre os

ambientalistas locais, chamados de lideranças, e a secretaria do meio ambiente, pois,

no âmbito da prefeitura, haveria outros “interesses” em jogo. Jaime percebe que outras

“lideranças” também possuem suas alianças dentro da prefeitura e, num momento de

conflito, não se sabe quais alianças falarão mais alto.

A necessidade de cobrança em relação ao poder público não é uma característica

exclusiva do município ao qual pertence o distrito do Lima. Neste caso, embora a

relação entre ambientalistas locais e poder público fosse tensa, não era percebida dessa

forma pela população. Aos olhos de muitos moradores, os ambientalistas locais

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pareciam estar tirando proveito da aliança com o governo, especialmente pela

desconfiança de que alguns deles seriam contratados pela prefeitura via uma

cooperativa. Assim sendo, a cobrança por parte das lideranças em relação à Prefeitura,

muitas vezes, não encontrava reconhecimento na comunidade, como atestam os receios

de Jaime no depoimento acima. Ele temia que, passado o momento do conflito, no qual

todos apóiam a implantação da APA, a parcela da população simpática à implantação de

medidas ambientais começasse a perceber que as decisões tomadas pelo CG esbarravam

na necessidade de apoio material e institucional da Prefeitura e se voltasse contra os

conselheiros locais. Diante disto, o secretário reafirmou o poder de decisão dos

conselheiros governamentais no interior de suas secretarias ou empresas municipais.

4 - A “participação” na elaboração do Plano de Manejo da APA – Fase 1

A aliança entre ambientalistas locais e secretaria de meio ambiente, que

conduziu a implantação da APA, construiu um discurso em favor da criação da unidade

de conservação no distrito do Lima, alicerçado na participação da comunidade. Reza a

legislação que as unidades de conservação devem ter sua gestão orientada por conselhos

compostos por representantes do governo e da sociedade civil, de forma participativa101.

A contratação da ONG Viva Rio pela secretaria de meio ambiente, para

coordenar a execução do projeto de confecção de um Plano de Manejo para a APA, foi

orientada pela necessidade de utilizar métodos considerados participativos102. Como

explicou o coordenador do Viva Rio, Boris Tavares, na primeira reunião local para

elaboração do plano:

“Eles convidaram a gente não pela especialização específica em

algum assunto técnico, mas pela capacidade de gestão. Gestão,

mediação de conflitos e aproximação entre os diversos atores103.

101 A emergência de idéias em torno do desenvolvimento sustentável concorreu para o fortalecimento deprescrições participativas, considerando o conhecimento local como essencial para a concepção deprojetos fundados na valorização dos recursos disponíveis. Ao mesmo tempo, as prescrições do programaComunidade Solidária estimularam, ao longo dos anos 90, a instalação de conselhos municipais emdiversas esferas da vida social.102 Concordo com Lobão quando afirma que os conceitos de “empoderamento”, participação estakeholders, apesar da apresentarem uma historicidade distinta em alguns contextos, constituem umpacote nos cenários nos quais as políticas públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável estãosendo implantadas (p.235). Ele questiona o efeito da implantação destes conceitos “exógenos” emsistemas sociais distintos.103 Nos documentos do PRONAF, por exemplo, o planejamento participativo é fortemente recomendado“a fim de que os diversos atores implicados possam democraticamente influir nos planos e projetosgerados, de uma maneira ascendente, refletindo, assim, os interesses das comunidades rurais”. (GovernoFederal, 1995).

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Pra fazer qualquer trabalho junto às comunidades, usar como

base teórica a agenda 21104 e o DLIS , que é outro marco teórico

do Desenvolvimento Local Integrado Sustentável105 (...). Então é

constituir um conselho, e é basicamente isso que tá sendo feito

aqui, fazer um diagnóstico participativo, quer dizer, trazer até

dinâmicas, metodologias pra, junto com os atores sociais,

identificar não só os problemas, as soluções, as fortalezas e

fraquezas, as ameaças e as oportunidades, o que tem na própria

comunidade que pode ser agregado aos projetos pra facilitar.”

Nesta apresentação feita por Boris, ele procura transmitir às lideranças locais

alguns dos princípios das metodologias de “participação” que seriam utilizadas para a

elaboração do então “plano diretor”, com base na desobrigação do poder público em

relação a determinados assuntos e a construção de “parcerias” com a população

organizada.106

O Plano de Manejo da APA – Fase 1 foi elaborado pelo coordenador da ONG

Viva Rio, com o apoio de técnicos contratados para itens pontuais – como o

Zoneamento – e, em reuniões semanais, realizadas no distrito do Lima, das quais

participaram regularmente representantes de quatro organizações da “sociedade civil”

local – associação de moradores do Lima, associação de moradores e proprietários do

Vale das Águas, associação comercial e agropastoril do distrito do Lima e Grupo

Germinal (a ONG ambientalista local). Estas quatro organizações, juntamente com o

“segmento religioso” e a associação de moradores da Nascente, haviam sido indicadas

para compor o Conselho Gestor da APA. Embora a elaboração do Plano de Manejo

104 A operacionalização do desenvolvimento sustentável, como proposto pela Agenda 21, passa pelanegociação entre os principais grupos interessados, que elaboram em conjunto uma agenda integrada,levando cada parte interessada a assumir responsabilidades, tendo como meta comum o desenvolvimentolocal econômica, social e ambientalmente “sustentável”. Esta perspectiva tem sido denominada de“Desenvolvimento Local”.

105 O Desenvolvimento Local estaria relacionado aos processos de descentralização, quando o poder dedecisão e realização é transferido de instâncias mais centrais para os municípios e comunidades,simultâneos ao esvaziamento do poder dos estados nacionais. Como ponto fundamental da construção dodesenvolvimento local figura o “planejamento local”. Este processo de planejamento se baseia naformulação de uma visão coletiva da realidade local, com base no “envolvimento dos atores sociais”.

106 Lopes (et allii) coloca que “a propalada retração do Estado com relação a assuntos públicos vemacompanhada dessa perspectiva de consolidar a colaboração entre governo e população, e o vício dadesobrigação de antigas responsabilidades pode tornar-se a virtude das ‘parcerias’” (2004: 258). Éprecisamente esta lógica que o coordenador do Viva Rio pretende expressar com seu discurso.

112

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tenha tido início em abril de 2002 e o CG só tenha sido oficializado pelo prefeito em

outubro daquele ano, os participantes regulares daquelas reuniões locais trabalhavam na

elaboração do plano, tratando a si mesmos como o conselho. Além destes, alguns

associados destas mesmas instituições, que não integravam suas diretorias, também

participaram das reuniões de elaboração do plano com regularidade.

A participação daquele conselho na elaboração de um Plano de Manejo para a

APA consistia na execução de tarefas relacionadas à elaboração do plano e a outros

“produtos” do projeto no qual ele estava inserido: realização dos estudos identificados

como necessários pelo coordenador externo; execução das tarefas previstas no projeto

de elaboração do plano, tais como: um sistema de sinalização para a APA (placas); a

escolha de uma “identidade visual” para a APA; e a recuperação demonstrativa de uma

“área degradada”.

O conselho que se envolveu ativamente na elaboração do plano constituía-se de

cerca de uma dezena de pessoas, metade das quais tiveram acesso à educação escolar

até o nível médio, três haviam completado o nível superior (Biologia, Jornalismo e

Publicidade) e as outras não o haviam concluído. Estas pessoas tinham acesso e

consultavam com freqüência diversas fontes de informação – jornais, revistas, livros e

internet. Muitas delas tinham uma certa experiência no relacionamento institucional e

informal com políticos e órgãos governamentais, advinda da sua trajetória de

reivindicações ao poder público, em sua maioria de ordem ambiental e relacionadas ao

próprio distrito. Além disso, algumas destas pessoas possuíam empregos na esfera

municipal, contratados via uma cooperativa. Algumas delas eram proprietárias de terras

no Vale das Águas.

Sendo assim, pela sua formação escolar, sua trajetória de atividades e as áreas de

conhecimento para as quais estava voltado o seu interesse, eram pessoas que

compartilhavam um universo comum de conhecimentos não especializados a respeito

de alguns temas ambientais ou ecológicos. Eram capazes de discorrer fluentemente, sem

o compromisso do rigor técnico ou científico, a respeito de saneamento, reciclagem de

lixo, agricultura, uso de insumos químicos, ecoturismo, mapeamento, solo, clima, fauna,

flora, legislação ambiental e assuntos afins107. Além disso, alguns deles pareciam

107 Da mesma forma que um Plano de Manejo de uma Área de Proteção Ambiental, se feito de acordocom o Roteiro Metodológico do IBAMA, um “pequeno projeto de desenvolvimento sustentável” “nãopode ser realizado por pessoas que não sejam formadas na mesma tradição cultural daqueles queelaboram os roteiros ou serão seus avaliadores”. Os grupos aos quais os projetos se destinam, em geral,estão situados em “outros universos culturais cujas lógicas diferem substancialmente da lógica cartesianae positivista dos projetos de desenvolvimento” (Pareschi 2002 apud Lobão 2004:241)

113

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encarar a sua participação em assuntos de interesse coletivo, especialmente de caráter

ecológico, como uma espécie de missão ideológica em prol da ecologia, ou até mesmo

uma missão existencial.

Nas reuniões para elaboração do Plano de Manejo, era comum lançarem mão da

sua vivência de uma, duas ou até três décadas no distrito – acumulando variadas

experiências em termos de produção agrícola, manejo de suas propriedades, convivência

com o turismo e a população local, encaminhamento de reivindicações ao poder público

– como um conhecimento que lhes permitia proferir afirmações generalizantes e

concludentes a respeito da localidade. Esta postura, de acordo com algumas destas

pessoas e confirmada pelo representante da ONG Viva Rio, Boris, contribuiu para que

uma parte das tarefas previstas para a confecção do então denominado “plano diretor”

fosse trazida para a realização local, possibilitando o envolvimento desses indivíduos e

o aproveitamento destes seus conhecimentos108.

No início da confecção do plano, o coordenador externo Boris definiu quatro

áreas temáticas (fatores bióticos, abióticos, sócio-econômicos e jurídico-institucionais)

para os estudos sobre a APA. A participação das lideranças locais consistiria em dividir-

se em três grupos para levantar as informações existentes sobre estes três temas (a parte

“jurídico-institucional” caberia à secretaria de meio ambiente), que deveriam resultar

em textos para integrar o plano. O conselho foi mencionado pelo representante da ONG

local, Matheus, na divisão de tarefas para elaboração de estudos sobre a APA:

“Inclusive isso poderia ser partilhado entre os segmentos que

compõem o conselho. Por exemplo, a questão social, ela poderia

ser compartilhada entre o segmento religioso, associações de

moradores. Esses segmentos mais bióticos e abióticos poderiam

ficar dentro do segmento ambiental. E depois tudo ser discutido

em conjunto, em conselho, para que todos possam trabalhar, pra

que todos possam participar.” (reunião do plano diretor – abril

de 2002)

A preocupação de Matheus em reafirmar a “participação” de “todos” se justifica

pela presença de Margarida e Miguel Ângelo, da associação de produtores e

trabalhadores rurais, e suas demandas por participação. 108 “Então, como a sociedade aqui do Lima já tá bem organizada, já tem Conselho Gestor, tem ongs comoo Germinal trabalhando há anos, muita informação produzida, muitas universidades, a turma da Fabrícia[Psicologia Social – UFRJ](...) Vamos reunir toda a informação disponível porque isso vai ser a fonte,subsídios para a elaboração do plano.” (Representante do Viva Rio na primeira reunião local paraelaboração do Plano de Manejo – abril de 2002)

114

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Boris, o coordenador do Viva Rio, procurava valorizar esta forma de trabalhar,

tratada como uma “estratégia”:

“Pegar os quadros locais, não tão feras assim...”. “Mas

conhecedores...” [acrescentou Matheus, da ONG]. “Mas

conhecedores e que vão fazer o trabalho que esse ferão [um

técnico] produziria.”

E como exemplo da capacidade das lideranças locais em realizar os estudos

previstos, Matheus exemplifica com o caso da representante da associação de moradores

do Lima, Lúcia:

“Uma pessoa conhecedora de domínio histórico, porque ela tem

um laço muito forte com a comunidade bem nativa.”

Lúcia, por ser freqüentadora da Igreja Católica e amiga pessoal de Darcy

Miranda, é considerada integrada na comunidade nativa. A designação da população

local de origem camponesa como nativa, pelos ambientalistas locais, durante a

elaboração do plano, apresenta desdobramentos que serão analisados mais adiante.

Ou seja, a participação, inicialmente, foi interpretada por aquelas lideranças

como trabalhar, de forma remunerada, no projeto que previa a elaboração de um Plano

de Manejo para a APA. O fato de estarem realizando tarefas que normalmente caberiam

a especialistas era mencionado como o envolvimento de “atores sociais” na elaboração

do documento, agregando conhecimentos específicos frutos do seu vínculo com a

localidade – as suas vivências e experiências desde que haviam se estabelecido no lugar,

além dos vínculos afetivos com o território construídos ao longo desta permanência.

Inicialmente, as demandas por “participação” de Margarida e Miguel Ângelo, da

associação de produtores e trabalhadores rurais, foram respondidas de forma a incluí-los

nos “grupos de trabalho”. Foi dito que aqueles representantes poderiam participar no

grupo que estudava a sócio-economia, trazendo demandas e informações sobre os

agricultores, apesar de a sua associação não estar formalizada para ser incluída

oficialmente no Conselho Gestor.

Aqueles que foram assimilados como representantes dos produtores rurais

declararam, então, fazer parte, de fato, da dita associação. Porém, estariam ali presentes

como cidadãos, pois não haviam sido escolhidos como representantes. E questionaram a

legitimidade das organizações da “sociedade civil” selecionadas para integrar o CG, na

115

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condição de representantes da população local109. Questionaram a capacidade daqueles

representantes para realizar os estudos para o plano, ao mesmo tempo em que se

recusaram a participar daqueles levantamentos por não se sentirem capacitados para

tanto. Ou seja, nas suas demandas, a “participação” era entendida como a possibilidade

de questionar até mesmo a maneira pela qual estava sendo organizada a elaboração do

plano (sugerindo a contratação de especialistas), de pôr em debate o processo de

formação daquele Conselho Gestor, enfim, era uma demanda por uma discussão ampla

a respeito de todo o processo de implantação da APA.

O coordenador externo procurava trazê-los para a “participação” nos moldes

previstos, explicando que aqueles questionamentos teriam lugar nos capítulos seguintes

do plano, para os quais seriam feitas dinâmicas de grupo com identificação de

problemas e soluções por parte dos “atores sociais” locais. Naquele momento, a pauta

da reunião, todavia, seriam os estudos sobre a APA. Quanto à insuficiência técnica

daqueles que estudavam, Boris mais uma vez elogiou o envolvimento dos “atores

locais” na execução das tarefas, como parte da uma “gestão participativa”. E explicou

que não se tratava de um Plano de Manejo, mas de um “plano diretor” acompanhado de

zoneamento, como fora previsto na lei de criação da APA, o que permitiria um limite

mais superficial para as informações levantadas.

Quando os questionadores, Margarida e Miguel Ângelo, compareceram a outra

reunião, em maio de 2002, os membros do conselho já estavam plenamente

empenhados nas suas tarefas. Conversavam sobre as informações que haviam sido

levantadas naquela primeira semana de trabalho pelos três grupos e sobre a maneira de

obter materiais, tais como fotos aéreas, imagens de satélite, mapas e levantamentos.

Empolgados com as suas atividades e constantemente apressados por uma exigência de

urgência por parte da secretaria de meio ambiente, sempre lembrada por Boris, os

109 Margarida (Segunda reunião do Plano de Manejo, maio de 2002) -“Eu tô vendo assim uma coisaextremamente irregular em termos de legitimidade, em termos de trabalho envolvendo toda a populaçãode fato, tá entendendo? E, rapaz, eu não sei, esse conselho tá me parecendo bastante ilegítimo. Atéporque, ele também não foi precedido pelas organizações que representam a sociedade civil, de uma... Euqueria saber assim das atas, tá entendendo? Como é que as pessoas foram, digamos assim, escolhidas,entende? Não existe muitos dados a esse respeito. São coisas que nós, pelo menos eu enquanto cidadã,apesar de eu fazer parte da recém formada associação de produtores e trabalhadores rurais, não estoufalando em nome dessa associação, estou falando enquanto cidadã, entende? Eu vi, acompanhei todo esseprocesso e realmente foi um processo bastante conturbado e extremamente anti-democrático, entendeu?Essa é a minha visão, não é só a minha visão. Nós temos cento e não sei quantas pessoas fazendo parte daassociação de produtores rurais, que têm essa mesma visão. São pessoas que trabalham, tiram o seusustento da pequena produção, mas são cidadãos, têm que ser considerados.”

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ambientalistas locais interpretavam aqueles questionamentos como algo que estava

atrasando e atrapalhando a elaboração do então plano diretor da APA110.

A freqüência dos questionadores às reuniões semanais não foi regular, uma vez

que eles não se envolveram com a realização dos estudos e execução das tarefas. Foram

convidados a comparecer, a pedido do coordenador externo, nos dias em que foram

realizadas dinâmicas de métodos considerados participativos, quando suas colocações

provocavam discussões acaloradas e bastante hostis. Nestas ocasiões, foram trazidas

também lideranças do chamado “segmento religioso” e da associação de moradores da

Nascente, que, embora tivessem sido selecionados para integrar o CG, não se

envolveram com as demais atividades de elaboração do plano.

Na ausência de Margarida e Miguel Ângelo, foram tecidas uma série de

considerações sobre as suas reivindicações, por parte dos ambientalistas locais. Estas

considerações eram freqüentemente suscitadas por afirmações do coordenador externo

sobre a necessidade de envolver todos os atores sociais, ou ao menos identificá-los e às

suas demandas para que constasse no documento em vias de elaboração.

À pergunta de Boris - “esses outros segmentos que também deveriam ser

ouvidos estão representados no conselho?” -, Hermes, futuro suplente do representante

da associação de moradores do Vale das Águas, respondeu que “os que não estão é

absolutamente porque não querem”. E acrescenta que a vaga destinada ao “segmento

religioso” no CG estaria suprindo a necessidade de participação da população.

Os ambientalistas locais desqualificavam a demanda por “participação” das

lideranças dos produtores e trabalhadores rurais, lembrando que eles haviam se

recusado a participar dos estudos para elaboração do plano:

110 Há semelhanças com o caso da elaboração do Plano Municipal de Desenvolvimento Rural (PMDR),pelo conselho municipal de desenvolvimento rural, em Lagoa Seca, na Paraíba. “Na lógica dosrepresentantes da prefeitura, o plano deveria ser elaborado rapidamente por ser (...) uma condição para oacesso ao PRONAF (...). Pelo lado da concepção da maioria dos conselheiros aliados ao sindicato dostrabalhadores rurais, o CMDR deveria ser um lugar de coordenação visando estabelecer um plano de açãoconcertado.” (Marques & Flexor 2006: 17). Os autores mencionam este caso como um exemplo de comoa hegemonia dos “pleitos da prefeitura” pode sufocar a participação da sociedade civil. No presenteestudo de caso, este sufocamento parece ainda mais inevitável, uma vez que as pessoas que falavam emnome dos trabalhadores rurais sequer estavam incluídas no Conselho Gestor. Por se tratar da gestão deuma unidade de conservação (ao contrário de um conselho destinado especificamente ao“desenvolvimento rural”), não era requerida especificamente a presença de representantes dostrabalhadores rurais, mas dos “atores locais”, o que tornava possível o questionamento até mesmo daexistência de trabalhadores rurais naquela localidade, como veremos mais adiante. Ao mesmo tempo, ospróprios representantes da sociedade civil compartilhavam a pressa na elaboração do Plano de Manejo e ointeresse em atender às exigências de prazo dos financiadores, uma vez que a elaboração do planoocorreu financiada como um “projeto”.

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“São pessoas que nunca vêm às reuniões” [Lúcia, representante

da associação de moradores]

“Se não participam, a culpa não é nossa (...) O grupo lá só não

participa porque não querem participar.” [Jaime, representante

da associação do Vale das Águas]

O coordenador do Viva Rio, diante destas colocações, reafirmou a necessidade

de, pelo menos, fazer constar no plano as demandas de todos os segmentos

identificáveis. Respondia que aqueles “distoantes” deveriam ser incorporados.

Os ambientalistas locais questionavam, também, a qualificação dos “distoantes”

como “agricultores”:

“Sou agricultor também, olha as minhas mãos aqui.” [Hermes,

suplente da associação do Vale das Águas]

Tornou-se constante a preocupação do coordenador do Viva Rio com a

incorporação de outros “segmentos”. A partir de uma matéria de um jornal local, ele

perguntou aos ambientalistas locais sobre o clube de futebol que havia reivindicado

vaga no CG. Os participantes começaram a desfiar críticas em relação a um dos

fundadores do clube, Airton Rocha, atribuindo a reivindicação de participação à sua

pessoa. O coordenador pergunta a importância do clube enquanto “segmento”, que

todos reconhecem, e conclui-se pela necessidade de entrevistar um de seus diretores

para que conste no Plano de Manejo.

Ao mesmo tempo, o coordenador externo procurava evitar reuniões abertas às

colocações de qualquer cidadão, e não somente àquelas dos representantes de

instituições. Para isso, durante um planejamento da apresentação pública do plano,

mencionou o Conselho Gestor como um “instrumento” para tornar mais rápida a

“discussão” do Plano de Manejo com a comunidade, e de legitimá-lo enquanto

expressão da vontade da comunidade. Como fica claro no procedimento sugerido por

Boris para submeter o documento às opiniões dos moradores:

“Cada entidade do conselho leva pras suas bases. Acho

interessante que uma maneira da gente embasar essas decisões é

que cada entidade organiza uma reunião com seus associados

todos, mostra o material que produzimos, o que eles acham, se

tem alguma correção, não sei quê, aí tá pronto, aí volta pro

conselho. Porque se a gente levar ele inteiro pra discutir com a

comunidade, a gente vai perder (...) Isso vai dar respaldo pra

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secretaria municipal de meio ambiente, porque de repente

alguém questiona, ah, isso aqui, eu não acho que seja isso. Você

não acha, mas o comitê gestor fez assim, convocou as

comunidades, então isso aí é o que a comunidade pensa.”

O temor do coordenador externo, e dos demais conselheiros, em relação às

reuniões “abertas”, provavelmente, era o de que se repetissem os acontecimentos das

reuniões de formação do Conselho Gestor e discussão do Regimento Interno do CG.

Quando era convocada uma reunião “aberta” e muitos moradores compareciam, os

questionamentos quanto à falta de participação popular, freqüentemente encaminhados

pelos membros da associação de produtores e trabalhadores rurais, costumavam

encontrar apoio no público presente à reunião. Quando as reuniões eram restritas aos

conselheiros, ou mesmo estendidas aos representantes de organizações que não

integravam o conselho, as críticas acabavam por ser enquadradas nas metodologias de

dissolução de conflitos, dentro da linguagem da “gestão participativa”.

Enfim, ao longo do processo de elaboração do planejamento para a APA, foram

atribuídos sentidos diversos à participação. Para os ambientalistas locais, participar era

empenhar-se na realização das tarefas previstas no projeto de elaboração do Plano de

Manejo, atendendo às exigências necessárias para dar encaminhamento a mais uma

etapa da implantação da APA. Para outros, questionadores daquele processo, participar

seria ter a oportunidade de debater os fundamentos da implantação da APA, a

legitimidade do seu órgão gestor. Para outros, ainda, seria ter a oportunidade de

acompanhar e debater, enquanto cidadãos, as medidas que estavam sendo planejadas

para o distrito.

No discurso das autoridades municipais, o empenho dos ambientalistas locais na

realização das tarefas e o empenho do coordenador externo em identificar possíveis

segmentos e procurar saber suas demandas eram demonstrações da “participação

comunitária” na elaboração do Plano de Manejo. A disposição em participar da

comunidade do distrito foi citada pelo secretário de meio ambiente como um dos fatores

determinantes para a criação da unidade de conservação. E aos conflitos foi atribuído

um sentido positivo, como um fator capaz de atrair a atenção do poder público para

pensar e trabalhar as questões trazidas pela população.

5 – Os embates na elaboração do Plano de Manejo

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Ao longo do processo de elaboração do Plano de Manejo da APA, foi levantada

uma série de questionamentos, por parte de alguns moradores, em relação ao próprio

documento em vias de elaboração e ao conselho.

Algumas destas críticas foram pontuais, colocadas em ocasiões específicas. Por

exemplo, a associação de moradores da Nascente encaminhou um ofício, na reunião de

apresentação do Plano de Manejo à comunidade, em outubro de 2002, colocando em

dúvida a qualidade do documento elaborado e requerendo aprofundamento dos estudos

em relação ao distrito do Lima antes da validação do Zoneamento. As críticas foram

contornadas pelo coordenador do Viva Rio, com base no argumento de que aquela era

apenas a “Fase 1” do plano, que os estudos seriam aprofundados posteriormente. A

questão do Zoneamento foi deixada de lado. A associação da Nascente não voltou a

tocar neste ponto. Como se tratava de uma associação com poucos membros atuantes,

não havia base de apoio para que estes questionamentos fossem levados adiante.

Na mesma reunião, um membro da associação de pousadas, então em vias de

formação, levantou uma questão que já havia surgido na ocasião da formação do

Conselho Gestor. Ele pôs em dúvida a legitimidade de alguns conselheiros indicados

por organizações locais em representar os interesses da população, uma vez que

acreditava serem alguns deles “empregados da Prefeitura”. Esta crítica não foi

respondida diretamente. O coordenador do Viva Rio colocou que o trabalho do CG, dali

por diante, seria de permanente tensão entre os diferentes interesses ali representados e

que outras organizações locais poderiam ser incluídas futuramente.

Esta questão, levantada vez por outra por diferentes moradores, fornece

elementos para pensar as condições em que se consolidou a aliança entre ambientalistas

locais e a Prefeitura e os efeitos desta aliança para as relações de poder locais e a gestão

do território da APA. As contratações pela Prefeitura, não só para tratar de serviços

relacionados à proteção do meio ambiente, mas para os diferentes serviços de

responsabilidade municipal, eram instrumentos de criação de comprometimentos

pessoais e dívidas de gratidão de moradores do distrito do Lima para com políticos,

funcionários públicos e outros moradores locais que intermediavam estes benefícios. As

contratações municipais, num município que enriquecera recentemente em função do

petróleo, mas num distrito isolado e pobre, constituíam-se numa importante fonte de

renda para diversas famílias, uma vez que a agricultura diminuía e o turismo, sazonal e

de baixa renda, não assegurava rendimentos considerados suficientes.

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Por um lado, a contratação de ambientalistas locais, que vinham militando

desde a década de 90 em favor da preservação ambiental, pela Prefeitura, permitia que

eles passassem a ser igualados, aos olhos da população, aos demais moradores que se

beneficiavam de relações personalizadas com políticos. As relações personalizadas de

moradores com políticos são prática corrente na localidade e não costumam abalar a

reputação destes moradores. No entanto, como os ambientalistas locais empreendiam

ações que interferiam e visavam restringir as atividades dos demais moradores, e faziam

isto em nome do bem da comunidade, o fato de que passassem a ser remunerados pelo

poder municipal, na visão da maioria da população, parecia contradizer as boas

intenções daqueles militantes e igualá-los a todos os demais na busca da satisfação de

seus interesses pessoais. Permitia, também, dessa forma, que eles fossem assimilados

pela população ao padrão das relações de poder da localidade, como novos concorrentes

sobre os mesmos recursos.

Por outro lado, simultânea à determinação em proteger a natureza na localidade

do Lima e especialmente o aspecto intocado das cachoeiras do Vale das Águas, havia a

intenção de muitos dos ambientalistas locais em obter rendimentos através de trabalhos

relacionados à proteção do “meio ambiente”. As contratações pelo poder público

municipal foram de encontro a esta ambição. No entanto, estabeleciam uma relação de

dependência em relação à Prefeitura que poderia contribuir para limitar o alcance das

suas cobranças e reivindicações políticas em nome da comunidade.

Além das críticas pontuais encaminhadas por diferentes moradores, durante o

processo de elaboração do Plano de Manejo, foram constantes os questionamentos de

membros da associação de produtores e trabalhadores rurais em relação à falta de

transparência e de participação popular na formulação do plano e na atuação do

conselho. Nas ocasiões em que estes questionamentos eram colocados, os

ambientalistas locais argumentavam tanto no sentido de desqualificar pessoalmente as

lideranças que falavam em nome daquela parcela da população, quanto no sentido de

desqualificá-los enquanto representantes legítimos dos produtores e trabalhadores

rurais. Além disso, eram desqualificados os trabalhadores e produtores rurais da

localidade como um todo111.

111 Bourdieu analisa a formação dos grupos de ação política. Para ele, a ação propriamente política visaproduzir e impor representações do mundo social que sejam capazes de agir sobre esse mundo, agindosobre a representação que os agentes fazem dele. “Ou, mais precisamente, a fazer e desfazer os grupos –e,ao mesmo tempo, as ações coletivas que eles possam empreender para transformar o mundo socialconforme seus interesses – produzindo, reproduzindo ou destruindo representações que tornam estesgrupos visíveis para si mesmos e para os outros e que possam tomar a forma de instituições permanentes

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Os ataques à legitimidade dos representantes da associação de produtores e

trabalhadores rurais apresentavam como um de seus eixos principais o questionamento

ao enquadramento daquelas lideranças como trabalhadores ou produtores rurais112.

Nesta direção, iam também os questionamentos quanto à associação entre

conteúdo das críticas colocadas por aqueles representantes à vontade e às demandas dos

produtores e trabalhadores rurais da localidade. Como aparece neste diálogo entre um

membro da associação de produtores e trabalhadores rurais, recusando o convite do

coordenador do Viva Rio para trabalhar na pesquisa sócio-econômica para o “Plano

Diretor”, e um representante da associação comercial:

“Eu chegar em nome de fazer uma pesquisa para o Conselho

Gestor, que já tem problemas com essas pessoas, que, de

repente, elas não consideram legítimo porque não conseguiram

participar, vai complicar pra mim como membro da associação,

e acho que também não tenho conhecimento para isso.”

[Margarida, assessora técnica da associação de produtores e

trabalhadores rurais]

“Se eles são desinformados, são analfabetos, como é que eles

têm essa visão de que eles não estão participando, que eles estão

de fora?” [Ivan, representante da associação de comerciantes,

em reunião do Plano de Manejo, maio de 2002]

Ivan estaria sugerindo que as reivindicações de participação estariam partindo

de lideranças, que não são produtores e trabalhadores rurais.

Ou, ainda, eram lançadas acusações de “degradação ambiental” a estes

representantes, que estariam ali apenas para defender seus interesses pessoais e

contrariando os interesses da comunidade113.

Na sua argumentação, durante os confrontos com representantes dos produtores

e trabalhadores rurais, os ambientalistas locais também criticavam os trabalhadores

rurais da localidade. Diante da afirmação de que os trabalhadores rurais seriam a

maioria da população, chegou-se a negar a existência de agricultura e de agricultores na

de representação e de mobilização.” (1988: 70, tradução livre).112 “O que o senhor Edson produz pra se dizer produtor rural?” Representante da associação do Vale dasÁguas – terceira reunião do plano diretor113 “São pessoas que venderam lote na beirada do rio. Venderam pedaço de pedra na beirada do rio. Essaspessoas são contra tudo, nunca são a favor de nada que possa facilitar a comunidade.” Matheus,representante da ong ambientalista local, esclarecendo ao representante do Viva Rio sobre quem eram aspessoas que haviam levantado críticas à falta de representação dos “pequenos produtores” durante oprocesso de implementação da APA (terceira reunião do plano diretor, junho de 2002).

122

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localidade, como aparece nesta discussão de Margarida com os elaboradores do Plano

de Manejo:

“Boris [Viva Rio] – O pessoal fala de agricultura aqui, mas

não tem agricultura, tem agropecuária.

Margarida – É claro que tem agricultura.

Marcílio [Suplente da ONG Grupo Germinal] – Eu posso

dizer que agricultura não existe.

Jaime [associação do Vale das Águas] – Se existisse, as casas

de farinha não estariam abandonadas.”

Foi questionada, também, a defesa da importância da agricultura de subsistência

para a manutenção de determinadas famílias, alegando-se que, hoje em dia, muitos

possuem alguma fonte de renda relacionada ao turismo. Ou então, em outros momentos,

procurou-se reduzir a abrangência da categoria “produtores e trabalhadores rurais”,

localizando-os na região do Vale do São Pedro. Finalmente, os produtores e

trabalhadores rurais eram tratados, também, como “pessoas que nunca vêm às reuniões

e, portanto, não querem participar”.

Foram desqualificados, em diversos momentos, ainda, os conhecimentos e

práticas tradicionais relativos à agricultura local. As técnicas de cultivo e criação de

animais eram descritas como ultrapassadas. Frisava-se a necessidade de substituí-las ou

transformá-las em técnicas escolhidas como as ambientalmente corretas114. Neste

sentido, os trabalhadores rurais foram criticados por sua resistência à mudança e por

uma visão pragmática e interesseira, pois foi colocado que só mudariam se houvesse

alguma contrapartida financeira115. Chegou a ser sutilmente sugerido que os

trabalhadores rurais da localidade eram preguiçosos116.

Assim, observamos que, neste caso, os ambientalistas desvalorizam os

conhecimentos e as técnicas dos agricultores locais, como causadores de “impacto” ao114 Boris (Viva Rio, segunda reunião do Plano Diretor, maio de 2002) – ‘Como é que vai manter o cara naterra? Trazendo técnicos, ensinando ele a trabalhar, porque ele acha que sabe trabalhar mas não sabe. Elesabe trabalhar como se trabalhava há cem anos atrás, não pode parar no tempo. Tem que chamar aEmater, discutir, fazer uma coisa que tenha um efeito demonstrativo”. Boris (quarta reunião do planodiretor, junho de 2002) – “Tá meio subjacente a esse trabalho todo que existe uma nova cultura a serpromovida. Tem que ser mudada essa cultura, não só do cara que cria galinha.”115 Eles “falam a linguagem do dinheiro” (Jaime, da associação do Vale das Águas).116 Esta sugestão ocorreu quando, planejando soluções para associar turismo e agricultura, os participantesregulares das reuniões pensavam sobre as casas de farinha desativadas e a ausência de mão-de-obra parareativá-las. Naquele momento, estava presente à reunião a representante do “segmento religioso” noConselho Gestor. Ela afirmou, então, que o trabalho nas casas de farinha era uma “verdadeira escravidão”e narrou a permanência de toda a família durante dias e noites ininterruptos nestas atividades. Diantedisto, Ivan, representante da associação de comerciantes comentou, em tom jocoso: “É, dá muitotrabalho...”

123

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“meio ambiente” e como ultrapassadas. As técnicas de produção consideradas

adequadas, na visão dos ambientalistas locais, eram aquelas que vinham sendo

implantadas por “neo-rurais” em suas propriedades117.

Os embates durante a elaboração do Plano de Manejo fornecem elementos para

pensar a reorganização de determinados aspectos das relações de poder no distrito do

Lima. É indiscutível a posição conquistada pelos ambientalistas locais, aliados a setores

da Prefeitura, com a criação da APA. Além do poder de regulamentar toda sorte de

atividades e de empreender projetos, os criadores da APA passaram a dispor,

principalmente, do poder de enunciar o discurso oficial a respeito destas

transformações. Em cada um dos pontos críticos levantados ao longo do processo

estudado, coube aos criadores da APA a atribuição de decidir a respeito do

encaminhamento tomado e, mais do que isso, de formular a interpretação destas

questões em documentos oficiais e nos discursos públicos.

6 – A construção do discurso oficial

A associação entre duas ordens de representações no discurso ambientalista local

– a preservação ambiental como de interesse planetário, de toda a humanidade e das

gerações futuras; e a preservação da natureza daquele território específico como um

local escolhido para ser um paraíso natural – foi o grande “pulo do gato” que permitiu

que determinadas pessoas pudessem se organizar em múltiplas instituições da

“sociedade civil” e falar em nome da comunidade, durante a implementação da APA. O

ambientalismo local chegou até mesmo, sob certo aspecto, a tomar lugar normalmente

destinado às populações tradicionais, índios ou quilombolas em outras unidades de

conservação implantadas pelo Brasil118, quando o aproveitamento do seu conhecimento

sobre o local e da sua vivência (que às vezes chega a ser quantificada temporalmente,

como acontece com as populações tradicionais e semelhantes!) foram tratadas como

“envolvimento direto” dos “atores sociais locais”, no Plano de Manejo da APA. Como

pode ser lido neste trecho:

117 Diferentemente dos utilizadores do campo em tempo parcial encontrados por Chamboredon (1980) naFrança, que desqualificam os agricultores que adotaram técnicas consideradas modernas, como amecanização, mas valorizam o agricultor tradicional, pelo seu contato com a natureza e, inclusive, comoespécies de guardiães de determinados valores. 118 Como nas Resex de Arraial do Cabo e de Pirajubaé, cujos Planos de Utilização foram resultado de umprocesso de negociação entre diversos interesses de vários setores, de pesquisa inclusive. “As decisões,todas votadas, tiveram não só o saber tradicional como fonte, mas também o saber científico, reivindicadoem caso de dúvidas, ou apresentado a título de sugestão.” (Lobão 2005: 56)

124

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“A existência de um grupo organizado e atuante durante todo o processo de gestação daAPA DO LIMA, composto por futuros representantes da sociedade civil local noConselho Gestor, orientou o encaminhamento dos trabalhos.

A única possibilidade de sucesso na formulação (e futura implementação) de umplanejamento estratégico (...) seria o envolvimento participativo e eficiente desse grupo,através da massa crítica de informações que detinha, dos relacionamentos amadurecidosao longo do tempo com a comunidade e da disponibilidade para dedicar parte de seutempo à consecução das tarefas associadas à elaboração do Plano de Manejo (...).

É considerável o desafio representado pela inserção direta dos atores locais numprocesso que se inicia com o planejamento, considerando suas deficiências dequalificação técnica e especificidades culturais, mas isso é fundamental para legitimaros produtos gerados e para facilitar sua incorporação ao cotidiano das comunidadescontempladas.” (Viva Rio 2003: 42)

O Plano de Manejo da APA do Lima – Fase 1, particularmente, é um documento

que cristaliza aspectos importantes do discurso dos ambientalistas locais naquele

momento. A sua análise deve levar em conta que há, também, elementos introduzidos

pelo coordenador da ONG Viva Rio com vistas a satisfazer as exigências dos

patrocinadores, da secretaria municipal do meio ambiente e dos órgãos governamentais

que ditam os critérios para a gestão de unidades de conservação.

A legitimação do “grupo organizado e atuante” como “representantes da sociedade

civil”, ratificado pelo Plano de Manejo – documento cuja função é reger o uso daquele

espaço e seus recursos naturais – não deixa dúvidas quanto à inserção daquele grupo de

pessoas nas relações de poder locais. As suas motivações envolvem um desejo de

preservar os atributos naturais daquele espaço específico, escolhido para a vivência do

contato direto com a natureza e ambicionado como local de moradia e sobrevivência. E,

no nível do discurso, a preservação daqueles sítios específicos está associada ao

ambientalismo como causa planetária, de interesse de toda a humanidade e das gerações

futuras.

Analiso, então, a construção do discurso ambientalista local em seus dois

aspectos fundamentais – a preservação do meio ambiente global e a preservação do

meio ambiente local. E as implicações de um discurso construído desta forma sobre o

modo pelo qual os ambientalistas locais se inseriram nas relações de poder.

6.1 – Pensar globalmente

125

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As variadas afiliações, não só dos ambientalistas locais, mas dos neo-rurais de

uma maneira geral, a diversas correntes do pensamento “holístico” e do pensamento

ecológico119, contribuíram para consolidar no discurso ambientalista local a

representação da necessidade da preservação ambiental como global, planetária e

relativa a toda a humanidade. Vinculada a esta compreensão estaria o fato de a

preservação ambiental ser destinada à manutenção das condições de vida para as

gerações futuras.

As implicações do tratamento de questões ambientais como uma necessidade de

sobrevivência da espécie humana com repercussões planetárias e para as gerações

futuras são múltiplas. No caso estudado, este tratamento confere uma superioridade à

argumentação daqueles que defendem a implantação de medidas tidas como ambientais

na localidade, uma vez que qualquer posicionamento contrário a estas medidas passa a

ser visto como contrário à preservação ambiental e aos interesses de todos120. No

entanto, somente um pequeno grupo tem o poder de definir as situações identificadas

como problemas ambientais e a sua gravidade, bem como as medidas mais adequadas

para tratar destes problemas (desde que se adequando minimamente aos critérios mais

gerais, definidos por instituições externas ao local). Aqueles que se opõem, seja ao

conjunto das medidas ambientais, seja a alguma medida específica ou algum aspecto

dela, são tratados ora como egoístas e mercenários, que só pensam nos seus lucros

pessoais e não se importam com problemas coletivos, ora como pessoas que

desconhecem a importância da preservação ambiental e precisam ser conscientizadas.

119 O pensamento ecológico, de acordo com Edgar Morin, está baseado em certos resultados daciência ecológica e procura objetivar e expressar a validade do movimento ecológico. Trata-se de umpensamento sistêmico, de auto-organização. O ecossistema é entendido como um fenômeno organizador;um fenômeno de computação, multiforme e global. Acrescenta que este pensamento, na atualidade, deveser enriquecido por duas contribuições convergentes: a da hipótese Gaia, que atribui propriedades auto-reguladoras ao conjunto da biosfera; e a contribuição das ciências da terra, entendendo o planeta comoum sistema vivo homeostático e em constante evolução. Um sistema auto-organizado e não fechado. Osambientalistas locais se aproximaram do ambientalismo pela via de correntes de pensamento que sepretendem alternativas à sociedade de consumo, e que se manifestavam entre os demais neo-rurais quevieram a se fixar no distrito. Entre as pessoas que tomaram a frente da implantação de medidasambientais naquele distrito e outras, que simplesmente simpatizavam com estas medidas, havia desdehippies que começaram a freqüentar a localidade na década de 70 até adeptos do Daime no final dos anos90, passando por Rastafaris, ou simplesmente, pessoas interessadas em terapias ditas alternativas, padrõesde alimentação diversos da maioria da população (vegetarianos de diferentes abordagens, macrobióticos,etc.), correntes de pensamento ditas “holísticas”.

120 Quanto aos apelos em nome da comunidade e do bem de todos, o discurso dos ambientalistas locais seaproxima da caracterização feita por Bourdieu do discurso dos dominantes. Segundo ele, trata-se de umalinguagem política “não marcada politicamente, (...) orientada em direção à naturalização da ordem sociale empregando sempre a linguagem da natureza”, sustentada por “um ethos da conveniência e da decência,atestada pelo evitar das formas mais violentas da polêmica, pela discrição”, enfim, por “tudo quemanifesta a denegação da luta política enquanto luta” (1988:71, nota 3).

126

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Ou seja, é negada a possibilidade de que o argumento do opositor esteja correto121. Ele,

de alguma forma, deverá ser obrigado ou convencido pelo discurso dominante, aquele

que defende a implantação de medidas ambientais no distrito. Como aparece neste

trecho da entrevista com Matheus, fundador da ONG ambientalista Grupo Germinal,

representante desta ONG no CG até 2004 e Secretário Executivo do CG a partir de

2005:

“Pesquisadora - E como é que é a coisa da participação da

população na APA do Lima?

Matheus – Ô, Natália, na verdade, desde o começo da

história dos tempos, nunca se pôde agradar gregos e troianos.

(...) Como, por exemplo, pessoas que são malfeitores e destroem

o planeta. Nós, que amamos o planeta, mesmo divergindo de

certas idéias, nós vamos deixar de sofrer por causa disso? Nós

vamos sofrer as conseqüências. E eles, que também são

depredadores, eles vão ficar livres, não vão sofrer as

conseqüências planetárias? Eles vão sofrer. (...) Eu não tenho a

visão que a APA seja uma coisa ruim. Está sendo ainda mal

entendida. Mal agregada. Mal patrocinada, para aquelas pessoas

que ainda não entendem, ou precisariam de uma ajuda. Eu

também não sei se não tivesse APA, se elas aceitariam toda essa

assessoria, toda essas coisas técnicas, também não sei.

Pesquisadora – Atualmente, você acha que a população

participa da APA do Lima? Uma parte da população, ou alguém,

de alguma forma?

M – Querendo ou não, elas participam no dia a dia. Ou

acordando com as decisões e as gestões, ou não. Então, de todas

as formas, há uma participação. Nem aquela pessoa que não

participa ali diretamente, ela às vezes faz coisas boas, ela é

afetada por alguma ação, ou por ela ter feito alguma coisa

errada, ou não. Então, de qualquer maneira, as pessoas, elas tão

participando, elas tão inseridas. Não tem jeito.”

121 Henri Accelrad critica a idéia de que existiria uma ‘consciência ambiental’ una, aquela correspondentea um ambientalismo antecipatório fundado nos indicadores objetivos do colapso ecológico. (...) Nestaótica, a cooperação e o consenso ‘supraclassista’ seriam as categorias que melhor especificam aproblemática ambiental.” (2004: 13)

127

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Neste trecho da entrevista com o secretário executivo do Conselho Gestor

(2005), ele classifica as ações dos moradores como boas ou ruins, segundo sua

adequação aos critérios ambientais. As pessoas que praticam ações ruins são

“malfeitores” ou precisam “de uma ajuda” para compreender estes critérios. E, na visão

de Matheus, deveriam aceitar estes critérios por boa vontade, ao invés de somente por

serem obrigados pela APA a aceitar. Ele salienta que as conseqüências destas ações

serão sofridas por todos, pois são agressões ao “planeta”. Assim, justifica a necessidade

de a população se adequar às regras da APA122.

A preponderância do discurso ambientalista é, dentre outros fatores, possibilitada

pela associação entre aquelas medidas ambientais específicas, cuja elaboração, conteúdo

e forma de aplicação são construídos em meio a relações sociais e disputas de poder

específicas123, e um discurso que proclama a necessidade da preservação ambiental

como global124 e de interesse e obrigação de cada ser humano.

Esta característica do discurso ambientalista local vai de encontro ao discurso

ambientalista dos órgãos governamentais e agências nacionais e internacionais

envolvidos com a criação de unidades de conservação. O Plano de Manejo da APA do

Lima, apoiado em manuais elaborados pelo IBAMA e pela FEEMA e na experiência do

122 Ronaldo Lobão aponta com acuidade a assimetria numa interlocução em que uma das partes fala emnome de interesses concretos e a outra parte alega interesses difusos (como o direito a um meio ambientesaudável). “Este é infinitamente mais poderoso porque ele aciona adeptos que não necessitam atuar emconjunto,nem sequer se conhecer. Qualitativa e quantitativamente, os “interesses difusos” dizem representarmais que interesses coletivos.” (p. 235)123 Foucault propõe “fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têmuma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram eainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc.,por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global (184).

124 Tratando o ambientalismo como um discurso, Tim Ingold procura analisar o significado daimagem do globo no debate contemporâneo sobre meio ambiente. Para ele, a noção de um meio ambienteglobal assinala a culminância de um processo de separação entre a humanidade e o mundo. Comocontraponto, atenta para a idéia do mundo como esfera, ilustrando com um desenho veneziano de 1564que mostra o homem no centro de várias esferas concêntricas. O globo só pode ser percebido de fora,enquanto as esferas são vistas de dentro. Numa perspectiva global, a vida é vivida na superfície domundo. No nível fundamental da realidade física, esta superfície teria existido muito tempo antes daexistência de qualquer forma de vida. Assim, o significado não está no contexto relacional doenvolvimento do mundo com aquele que o percebe, mas inscrito na superfície do mundo pela sua mente.Conhecer o mundo, então, é uma questão de reconstrução cognitiva. E este conhecimento não é adquiridopelo engajamento direto, de um modo prático, com os objetos que nos cercam, mas sim pelaaprendizagem de como representá-los, na mente, sob a forma de um mapa. Daí a idéia do meio ambientecomo um substrato para imposição externa de uma forma cultural arbitrária. O mundo se torna umatabula rasa para a inscrição da história humana. Uma vez que o mundo é percebido como um globo, nósnão pertencemos ao mundo, nem compartilhando da sua essência nem regulando com seus ciclos eritmos. Como a nossa verdadeira humanidade é vista como consistindo na transcendência da naturezafísica, é o mundo que pertence a nós. Desse modo, a noção de agir sobre o meio ambiente como umaintervenção planejada na natureza é fundamental para a noção ocidental de produção.

128

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coordenador da ONG Viva Rio, contribui para consolidar esta apreensão da questão

ambiental encampada pelos ambientalistas locais.

Nas diretrizes para a “Educação Ambiental”, um dos objetivos básicos do Plano

de Manejo é “estimular uma visão global (abrangente e holística) e crítica das questões

ambientais”. Dentre as ações complementares de educação ambiental, sugere-se a

“formação de parcerias com instituições governamentais e ONGs: com o objetivo de

executar projetos multi/interdisciplinares, que visem solucionar problemas ambientais

locais (agir localmente, pensar globalmente)”.

A apreensão da questão ambiental como global está relacionada a uma apreensão

cognitiva do mundo através da mente, do conhecimento científico, que implica uma

separação entre a humanidade e o mundo. O Plano de Manejo da APA do Lima, como

outros planejamentos semelhantes elaborados para outras unidades de conservação,

encampa esta visão científica que implica a separação entre a humanidade e o mundo.

Por exemplo, o texto elaborado por ambientalistas locais para caracterizar os “aspectos

bióticos” da APA, quando trata da vegetação, coaduna com a visão de uma natureza à

parte, sobre a qual as ações humanas são tratadas como interferências, pois utiliza

classificações da biologia que reproduzem a idéia da floresta “intocada” 125. Embutida na

terminologia técnica, uma concepção da verdadeira floresta como uma mata intocada

pelo homem – a mais rica em espécies vegetais, em densidade, em espécies animais –

da qual ainda podem ser encontrados “remanescentes”, ora chamados de “mata

primária”. A mata recomposta após o toque das mãos humanas é tratada como

“secundária”. As atividades humanas são tratadas como “interferência” ou

“degradação”, mesmo se equiparadas a outros fatores dos quais dependem as

características “florísticas e fisionômicas”, como a “zona altitudinal”, o “relevo” e o

“solo”. 126 Em nenhum momento são pensadas situações em que o homem possa ser

visto como parte da natureza, como interagindo naquele ecossistema.

125 Diegues, a partir da literatura sobre a criação dos parques naturais nos Estados Unidos, analisa ahistória do conservacionismo brasileiro. Os ambientalistas locais do distrito do Lima assemelham-se aos“preservacionistas” que, segundo Diegues, “dominam as entidades conservacionistas clássicas e maisantigas, como a FBCN (Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza), criada em 1958, e muitasoutras mais recentes, como a Fundação Biodiversitas, Funatura, Pronatura etc.”, assim como influenciaminstituições como o IBAMA e o Instituto Florestal de São Paulo. “Esses grupos são constituídos, emgeral, por profissionais oriundos da área de ciências naturais para os quais qualquer interferência humanana natureza é negativa. (...) Para eles, a natureza selvagem é intocada, intocável(...)”. (1996: 236)126 Warren Dean, em A Ferro e a Fogo, procurou demonstrar que a vida humana não é possível na mataatlântica sem alterá-la, mesmo para os povos indígenas que a habitaram. Portanto, a idéia de uma “matavirgem” é bastante improvável.

129

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6.2 – Agir localmente

Ao mesmo tempo, além deste conjunto de argumentos em favor de interesses

difusos no nível planetário, o discurso ambientalista local trazia apelos em “defesa” do

Lima, da preservação do “meio ambiente” local, e da comunidade do Lima, baseados

em representações de apreço afetivo pela localidade, que encontravam eco no discurso

dos demais neo-rurais estabelecidos na região.

Muitos dos neo-rurais que se estabeleceram no distrito do Lima (dentre eles os

ambientalistas locais) e até mesmo alguns freqüentadores assíduos, que nunca

chegaram a residir no local, criaram representações de vínculos afetivos e existenciais

com o Lima. Era como se aquele fosse o local específico escolhido para a vivência de

suas opções alternativas aos padrões dominantes de consumo e comportamento. A

escolha deste lugar, por sua vez, está imbricada na sua apreensão como um recanto de

natureza selvagem, no qual são possíveis vivências do contato “direto” com a natureza –

como banhos de cachoeira e caminhadas por trilhas abertas na mata.

Mas é preciso salientar que há sítios específicos, os mais freqüentados por estes

amantes da natureza, concentrados no córrego do Vale das Águas - principalmente as

quedas d´água e o caminho em direção a uma formação rochosa considerada de grande

beleza cênica – que, de certa forma, simbolizam a localidade para eles. Muitos dos neo-

rurais e freqüentadores assíduos, quando falam o nome do distrito, Lima, estão se

referindo àqueles locais específicos somados ao pequeno centro comercial – que são os

locais freqüentados por eles.

Nestes locais específicos, escolhidos pelos neo-rurais e alguns turistas como os

mais propícios para vivências de contato com a natureza, a população rural foi bastante

reduzida pela expropriação, desde os anos 70 – em virtude da especulação imobiliária

que permitiu a acomodação dos próprios neo-rurais - e, hoje em dia, é praticamente

invisível para quem percorre as trilhas que levam aos principais atrativos naturais. Esta

característica torna tais locais ainda mais propícios à construção de representações sobre

eles como recantos de natureza selvagem127.

127 Neste ponto, é interessante notar a diferença de valoração que a região do Vale das Águas recebe dediferentes lideranças locais. O presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais, EdsonAguiar, discursando em uma das assembléias da associação, desvaloriza aquele local como improdutivo,ao passo que o presidente da associação do Vale das Águas, Jaime, valoriza o local exatamente pelaausência de atividades produtivas. Para Edson, a APA poderia ter sido restrita ao Vale das Águas, pois “jánão tem nada pra lá (...), aquela disgrama que ninguém tá aproveitando”. Para Jaime, ao contrário, “Estaárea da APA deveria ser destinada para criadouro de animais em extinção. Queremos toda essa área plenade animais e árvores nativas.” Fica evidente a valorização, por um e por outro, de diferentes usos esignificados dos atributos naturais e do espaço. Para Jaime, a “mata” não é um vazio, é um “criadouro” denatureza. Já Edson não vê sentido algum em recursos naturais não aproveitados.

130

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A escolha deste conjunto de locais, agrupados sob o nome do distrito, como

especiais para a vivência do contato com a natureza está associada, também, a

representações de liberdade em relação a códigos de comportamento predominantes nas

grandes cidades e nas relações destes neo-rurais com suas famílias de origem. Além do

contato com a natureza, nestes locais, em determinadas épocas do ano, é possível

vivenciar o consumo de substâncias ilícitas sem repressão policial, e às vezes até mesmo

a abolição dos trajes de banho. Muitas vezes, estes comportamentos são representados

como associados ao contato com a natureza.

Previsivelmente, foi entre estes citadinos, encantados pela “descoberta” de locais

assim tão paradisíacos, que floresceu um misto de vontade e responsabilidade pela

preservação destes locais tal qual eles se encontravam quando foram “descobertos” por

eles. Somente alguns poucos neo-rurais e freqüentadores assíduos do distrito vieram a

se tornar ambientalistas locais, no sentido de se engajarem política e/ou

institucionalmente pela implantação de medidas ambientais na localidade. Mas foi entre

estas redes de pessoas que, primeiramente, se consolidou a idéia de que era necessário

proteger aqueles locais escolhidos contra o turismo predatório e a especulação

imobiliária. E é em meio a estas redes que as medidas de preservação ambiental, hoje

pensadas para a totalidade do distrito, encontram apoio, mesmo que tácito. Mesmo que

as lideranças e a forma pela qual a preservação ambiental está sendo implementada

suscitem críticas, a necessidade de preservar a natureza local jamais é questionada.

As representações de vínculo com a localidade constituem-se num dos pilares do

discurso construído pelos ambientalistas locais com vistas a interferir na gestão do

espaço e dos recursos. O seu pertencimento à comunidade é, também, um dos

argumentos chave nos discursos governamentais e de patrocinadores que pretendem

tratar a implementação de medidas ambientais como um processo participativo128.

Os laços pessoais e afetivos com a localidade figuram nos discursos públicos de

ambientalistas locais, sustentando tanto a sua reivindicação de legitimidade como

128 O Plano de Manejo, em diversos pontos, contribui para a oficialização deste discurso. Por exemplo, o“histórico” do Lima, elaborado por um ambientalista local, descreve da seguinte maneira a criação daAPA: “Receosa da total descaracterização da beleza natural do lugar, a comunidade, através de suasassociações, reagiu e conseguiu, junto à municipalidade, que todo o Distrito do Lima fosse transformadoem Área de Proteção Ambiental (APA), através da Lei nº (...)”. Ou seja, a criação da APA figura comouma conquista da comunidade.

131

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representantes da população quanto a atribuição a si próprios de conhecimento das

características locais129.

A análise de representações de vínculo com o território, contidas na entrevista

de um dos fundadores da principal instituição ambientalista local, permite perceber a

construção deste vínculo como imbricada, tanto em relatos de transformação existencial,

quanto de inserção num processo de mudanças ecológicas a nível planetário.

Na narrativa do fundador da ONG ambientalista, Matheus, a obtenção da sua

independência financeira em relação à família, através do trabalho em atividades

ambientais no distrito, é compreendida por ele como inserida em um processo de

evolução espiritual que incluiu a sua conscientização ecológica e que teve como marco

inicial o seu estabelecimento na localidade:

“E acabei me fixando na região. Propriamente o dia 7 de

setembro de 93, foi a minha independência! (...)Eu mesmo

fumava cigarro e jogava a binga no chão. Isso eu me lembro. [Aí

aqui mesmo você foi mudando ... ?] E me educando, isso aí,

entendeu? Eu não era uma pessoa como eu sou hoje em dia. Eu

era como toda a humanidade. E aproveitei a oportunidade que a

vida me deu e fui sensível o bastante pra poder deixar a coisa

fluir em mim e me transformar.”

Matheus evitou falar de sua afiliação religiosa, mas fica clara, em diversos

momentos, a situação dos acontecimentos relatados numa trajetória de aprendizado

pessoal de ordem espiritual proporcionada pela sua fixação no distrito. Por exemplo, ele

se refere ao seu estabelecimento profissional e financeiro como espécies de dádivas

recebidas do lugar e relacionadas ao seu trabalho ambientalista:

“[E porque que você decidiu vir morar no Lima?] É... Primeiro

porque eu... tive uma afinidade muito grande com o lugar. Eu

não sabia que o lugar iria me dar tudo que eu tenho hoje, com 13

anos aqui na região. Eu nem imaginava, eu não tinha idéia que

eu ia crescer, conquistar tudo o que eu tenho na vida. Mas, foi

porque, quando eu cheguei na região, eu brincando de... orientar,

de nortear condutas na região de visita aos atrativos, acabei129 Por exemplo, na ocasião da “apresentação do Plano de Manejo” à “comunidade”, um comerciante localquestionou, diante da ausência de técnicos na realização de determinados estudos, em que conhecimentoso texto estava baseado. Um ambientalista local, integrante do grupo responsável por aquela parte dotexto, respondeu: “São nove anos de trabalho aqui, eu tenho o coração nessa terra”. Os anos de trabalhosão tratados como vivência e como comprometimento afetivo em relação ao local.

132

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idealizando e executando um projeto que tinha perspectiva

educativa para o acampamento. Isso foi me fascinando, esse tipo

de trabalho social com a questão de preservação ambiental e

educação ambiental. Isso que me atraiu vir pra cá. E a partir daí

eu fui recebendo tudo do lugar. (...) Porque eu cresci aqui. Eu

aprendi a ser grande, a respeitar. Eu aprendi a ajudar, colaborar

na construção e regeneração planetária. E recebi tudo da vida

aqui, não me falta nada. (...) Eu acho que a palavra que pode,

é..., dizer bem isso, é o coração que bate dentro do meu peito é o

mesmo coração quando eu piso nessa terra, que bate nessa

terra.”

Este trecho da entrevista fornece elementos para pensar não só o apreço afetivo

(ou mesmo espiritual) manifestado por ambientalistas locais em relação ao Lima, mas

também a associação dos cuidados com aquele local com a “regeneração planetária”130.

Como representantes da comunidade e conhecedores da localidade do Lima, os

ambientalistas locais consideravam-se, também, aptos a caracterizar os demais

moradores da localidade, de origem camponesa – freqüentemente chamados, nas

conversas informais entre os ambientalistas, de nativos. Todavia, a apreensão dos

ambientalistas locais do restante da população do distrito do Lima baseava-se nos

contatos travados, predominantemente, com nativos residentes no pequeno centro

comercial, o Arraial, e no Vale das Águas.

Estes locais, escolhidos como especiais para o contato com a natureza e a

liberdade em relação a alguns padrões de comportamento dominantes na sociedade em

geral, eram vistos como uma espécie de “paraíso natural”. Num cenário de redução das

atividades tipicamente rurais, como agricultura e criação de animais, os poucos

trabalhadores rurais que restaram no Vale das Águas e no Arraial tornaram-se caseiros

de sítios de veranistas ou empregados “a dia” que prestam variados serviços aos novos

proprietários – como construção de cercas, preparação de canteiros para hortas, limpeza

dos arredores das residências; no caso das mulheres, faxinas, lavagem de roupas, etc.

Por seus patrões e pelos freqüentadores que notavam sua presença, eram percebidos

como “ignorantes”, que não só desconheciam a importância da preservação da natureza

130 “Para autores como Thévenot e Lafaye, ao contrário de uma causa universal ecológica que semanifestaria através de atores particulares, como sugere com freqüência o debate corrente, observa-seuma busca pela universalização de causas parcelares através de valores compartilháveis que tornam osatos justificáveis.” (Accelrad 2004: 19)

133

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local131 como também mostravam-se incapazes de compreender valores e

comportamentos alternativos àqueles predominantes na sociedade132. De uma maneira

geral, sua existência era quase invisível para os freqüentadores daqueles locais. Daí a

possibilidade de representar aqueles locais como desabitados.

Esta apreensão da população rural local era compartilhada pelos ambientalistas

locais, que tomaram parte nas negociações pela criação da APA. A decisão do órgão

municipal de estender a unidade de conservação a todo o distrito, e não somente ao Vale

das Águas, como fora inicialmente reivindicado pelos ambientalistas locais, não

suscitou grandes questionamentos entre aqueles ativistas. No momento da criação da

UC, muitos dos ambientalistas locais julgavam conhecer a realidade local, e baseavam

este julgamento nos seus anos de vivência na localidade. Não atentavam, no entanto,

para o fato de que a sua vivência, apesar de prolongada no tempo, muitas vezes

consistia na circulação por alguns locais específicos do distrito. O processo de

implementação da APA trouxe à tona o descontentamento dos produtores e

trabalhadores rurais, que se organizaram sob uma associação e passaram a “existir” aos

olhos de muitos dos ambientalistas locais que os desconheciam ou negavam a sua

existência.

O posicionamento dos ambientalistas locais, apoiados em sua aliança com a

Prefeitura e na retórica do coordenador da ONG Viva Rio, diante do surgimento do

grupo de produtores e trabalhadores rurais materializou-se no Plano de Manejo – Fase

1.

No plano, as diretrizes para as atividades rurais, em primeiro lugar, submetem-

nas ao projeto da preservação ambiental, elegendo como modelo a “agroecologia” e

131Arthur, que trabalhou por cerca de três anos na ONG ambientalista local – como monitor ambiental nascachoeiras e sob o projeto de recomposição das matas ciliares – atribui às suas atividades na ONGambientalista local a sua conscientização ecológica, e atribui o uso de “mata mato” à falta deconscientização: “Na época, foram administrados alguns cursos [pela ONG], hoje em dia, eu sou umapessoa muito mais consciente do que eu era. Hoje em dia, eu tenho muitos valores. Hoje em dia, eu faço aminha horta orgânica. Eu jamais vou roçar, como eu ouvi do cara, ‘ah, joga aí um mata mato”. Eles nãotêm a noção de que vai pro lençol freático. Então, hoje em dia, eu tenho uma consciência da agressão queeu posso fazer com pequenas coisas. Então eu acho que fiquei um pouco mais consciente pra esse ladoambiental.” (Entrevista Arthur 2005)132 Neste trecho do Plano de Manejo, são as pessoas “vindas de outros lugares” que contribuem para arecuperação da floresta, ficando implícita a contribuição das pessoas do lugar para a “interferênciasofrida” e explícita a queixa da falta de empenho das “autoridades”: “Apesar de toda a interferênciasofrida, a área florestada no distrito tem aumentado nos últimos 25 anos, seja pelo abandono das lavourasou pela iniciativa de pessoas vindas de outros lugares, que acabaram por contribuir com o processo derecuperação natural da floresta, através da aquisição de terras. Mas, infelizmente, nunca pela ação dasautoridades competentes ou pelo cumprimento das legislações específicas”. (Plano de Manejo da APA –Cap. 5)

134

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atrelando-as às atividades turísticas. O planejamento adotado permite notar um certo

desconhecimento a respeito dos trabalhadores rurais locais, no tocante às suas técnicas,

costumes e visão de mundo.

Ao mesmo tempo, todas as diretrizes mencionadas têm, entre seus objetivos,

variações do mesmo tema: “o fortalecimento da identidade cultural, ao restabelecer

formas tradicionais de produção da comunidade, a partir da mobilização das pessoas

que detêm esse conhecimento” (promovido pela produção de doces em compotas,

licores, etc., associada ao “Ecoturismo”); o resgate da “cultura e do saber locais”

(associado à produção de “fitoterápicos”); a valorização do “conhecimento dos

produtores rurais do Distrito do Lima acerca do seu ambiente, reafirmando

características culturais locais e seu papel como agentes do próprio desenvolvimento”.

Ou seja, é pressuposta a existência de conhecimentos, costumes e tradições específicos

da localidade, cuja valorização e/ou resgate imagina-se compatível com os objetivos da

preservação ambiental – embora, em nenhum momento, sejam especificados quais

seriam estes conhecimentos, costumes e tradições, nem a maneira pela qual eles seriam

compatíveis com a preservação ambiental.

Assim sendo, as razões pelas quais os produtores e trabalhadores rurais resistem

às mudanças são tratadas, no Plano de Manejo, como interesses de ordem econômica e

de sobrevivência, que poderiam, portanto, ser atendidos parcialmente através de

atividades pertinentes aos novos padrões. A possibilidade de que a resistência possua

motivações de ordem cultural, identitária ou afetiva não chega a ser cogitada:

“Conservação da biodiversidade” e “formas de utilização

racional dos recursos naturais” não são idéias fáceis de ser

absorvidas por usuários tradicionais, pois estes têm outras

prioridades, mais urgentes, como alimentação, moradia,

segurança e emprego.

Os meios para motivar os “moradores e usuários” a seguirem os novos padrões,

pensados no Plano de Manejo, são, principalmente, de ordem ambiental e econômica.

Ou seja, além da “conscientização” a respeito dos “danos” ambientais provocados pelas

atividades “degradadoras” ou “impactantes”, seriam apresentadas à população

alternativas de atividades econômicas mais rentáveis, adequadas aos padrões da unidade

de conservação. Os “estudos complementares” para a área “sócio-ambiental” sugerem a

criação de indicadores mensuráveis de forma objetiva para o acompanhamento da

“transição tecnológica”, dentre os quais destaca-se o “retorno financeiro” das atividades.

135

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Os argumentos são ilustrados com um quadro no qual se comparam vantagens e

desvantagens das agriculturas “orgânica” e “tradicional”, respectivamente. Em oposição

à “agroecologia”, definida como “um conjunto de princípios e técnicas que visam

reduzir o impacto ambiental da atividade agrícola, produzindo alimentos mais saudáveis

e valorizando o homem do campo, sua família, seu trabalho e sua cultura”, à

“agricultura tradicional” são atribuídas desvantagens que contribuem para elucidar quais

as práticas agrícolas que se agrupam sob esta denominação: “suas monoculturas

degradam a paisagem; produz altos índices de toxicidade pelos agroquímicos utilizados;

elimina a biodiversidade; degrada o solo; polui os recursos hídricos; aumenta a

utilização de energia no meio rural.” Ou seja, é chamada de “agricultura tradicional”

aquela praticada nas grandes propriedades, quase que completamente substituída pela

pecuária nos dias de hoje, no distrito do Lima. As queimadas e a rotação de culturas e

de terrenos, técnicas mais utilizadas pelos agricultores locais, não são mencionadas no

quadro, deixando de lado a polêmica a respeito da inclusão destes métodos sob o

conceito de “agricultura natural”133.

Embora, o item denominado “Aspectos Sócio-Econômicos” do Plano de Manejo

tenha se apoiado em entrevistas com os produtores rurais, e tenha sido tomado como um

dos fundamentos para as diretrizes elaboradas, os problemas como a “baixa preparação

da comunidade (para enfrentar a nova situação)” e os indicadores, tanto censitários

quanto da pesquisa para o Plano de Manejo, de analfabetismo e pouca escolaridade, não

são mencionados quando se traçam diretrizes para a APA do Lima. Tampouco são

levadas em conta as expectativas de determinados produtores rurais, que se ressentem

da falta de informações e aspiram à possibilidade de continuar suas atividades sem

grandes mudanças.

De uma maneira geral, o conjunto de diretrizes estabelecidas no Plano de

Manejo sugere a priorização do Ecoturismo como atividade econômica, atrelando a ele

as alternativas para as atividades rurais. A preocupação com reduzir as “interferências”

humanas e submetê-las a padrões considerados pouco agressivos, ou menos

“impactantes” ao meio ambiente, permeia todo o planejamento. Os objetivos de

valorização da cultura e do conhecimento locais e de incremento das atividades

econômicas estão submetidos a esta diretriz principal. Orientando-se pela legislação e

por documentos elaborados por órgãos governamentais, é conferida prioridade às

133 Sobre a classificação de técnicas agrícolas segundo critérios ambientais, ver “Agricultura Sustentável”– IBAMA (2001)

136

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necessidades identificadas como ambientais àquelas de caráter social ou cultural.

Embora seja atribuída alguma importância à “conscientização de moradores e usuários”

e à “gestão participativa”, fica clara a submissão destes objetivos àqueles de ordem

ambiental, planejando-se uma “transição tecnológica” para adequar as atividades atuais

ao modelo almejado:

“A participação da sociedade na gestão das unidades de

conservação, sobretudo as de uso sustentável, não pode

provocar o desvio dos objetivos de manejo pelos quais as

unidades foram tecnicamente estabelecidas ou propostas. (...) A

implantação dessas atividades deve ser gerenciada de forma

participativa pela comunidade, tendo como princípios o uso

sustentável dos recursos naturais existentes na unidade de

conservação e o respeito à capacidade de suporte dos

ambientes.”

7 – O Plano de Manejo e as relações de poder que fomentaram sua construção

O Plano de Manejo, além de refletir o planejamento dos ambientalistas locais

para o distrito do Lima, revela também o seu posicionamento em diversas disputas e a

maneira pela qual a posição de representantes da comunidade, conquistada por eles,

conferia-lhes vantagens nestas disputas. O Plano de Manejo também fornece elementos

para pensar as negociações e concessões, fruto da aliança entre ambientalistas locais e o

poder público municipal, e características da inserção dos ambientalistas nas relações de

poder.

Com relação ao posicionamento dos ambientalistas locais na disputa com a

associação dos produtores e trabalhadores rurais, que colocava em dúvida a sua

legitimidade como representantes da comunidade, em dois pontos distintos do Plano de

Manejo, os elaboradores do documento lançam mão de uma determinada divisão

espacial para “localizar” problemas.

Por exemplo, no item “Aspectos Abióticos”, elaborado por um grupo de trabalho

formado por integrantes da ONG Grupo Germinal, a identificação dos “usos” e

“problemas” de cada córrego e do rio parece obedecer não só a critérios técnicos, como

também ao posicionamento da ONG em determinadas disputas. A intenção de expandir

o trabalho de “monitoramento das cachoeiras”, realizado pela ONG ambientalista no

137

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córrego do Vale das Águas, a outros córregos, nos quais também ocorre visitação

turística (embora em menor quantidade), pode estar associada à sugestão, no item

“problemas” associado a um determinado córrego, de que sejam realizados “programas

de monitoramento e manutenção”, e à identificação da “invasão de turismo impactante”

num outro córrego (ambos na região da Nascente). Ao mesmo tempo, para o córrego de

São Pedro - que concentra os opositores ao processo de implementação da APA -, onde

é visível o crescimento da visitação turística, não há proposições neste sentido.

Por outro lado, na descrição de dois córregos que passam numa grande fazenda,

transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) com a orientação da

ONG ambientalista local, não consta o item “problemas”. Ou seja, quando se tratava de

“analisar” os córregos situados na propriedade do fazendeiro Bento, parceiro da ONG

na manutenção de um horto e de alguns “projetos”, os problemas não foram

mencionados. Assim, cabe questionar se a identificação de problemas como “uso de

agrotóxicos”, “uso impactante”, “desmatamentos”, “ocupação irregular do solo”,

“despejo de esgotos”, a diferentes córregos, poderia estar permeada de influências do

posicionamento (ou ausência de posicionamento) da ONG ambientalista local, à qual

estão filiados os integrantes do grupo de trabalho que elaborou o texto, diante de

disputas sobre o uso dos recursos naturais em cada uma das áreas abordadas.

O item “Aspectos Sócio-Econômicos” apresenta uma pesquisa baseada em

entrevistas com “produtores rurais” do distrito do Lima. Foram entrevistados produtores

de oito regiões do distrito e as suas “expectativas em relação à APA” foram

sistematizadas num quadro dividido por localidade (embora não tenha sido especificado

quantos produtores de cada área haviam sido entrevistados). A decisão de dividir as

expectativas por localidade pode estar relacionada à constatação de uma certa

uniformidade entre as respostas dos produtores de cada uma das localidades,

diferenciando-se das demais. Mas pode, também, estar relacionada à intenção de

localizar em regiões específicas os produtores rurais mais resistentes à implantação de

medidas ambientais, em contraponto a outras regiões, nas quais os produtores rurais

clamam por preservação ambiental.

No Vale das Águas, do qual os agricultores começaram a ser expropriados há

cerca de 30 anos, migrando ou empregando-se como “jardineiros da natureza”134 e onde,

hoje, existem alguns poucos caseiros ou “tomadores de conta” que têm permissão para

fazer uma pequena roça, e algumas experiências com agricultura orgânica e cultivo de

134 Carneiro (2000).

138

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ervas medicinais empreendidas por neo-rurais, as expectativas dos produtores são de

“preservação ambiental” e “assistência técnica”. É possível que estas expectativas

tenham sido mencionadas por “neo-rurais” que foram entrevistados na condição de

produtores.

Já no Vale do São Pedro, entre as expectativas relacionadas no quadro,

encontram-se a “continuidade da agricultura sem mudanças radicais”, a “maior

liberdade nas técnicas de plantio” e a necessidade de “informação”. Numa outra região

onde também se concentram muitos produtores rurais, a Nascente, uma das expectativas

é a “volta da antiga agricultura”. Localizando este tipo de expectativas na região do São

Pedro e na região da Nascente, era possível tratá-las como reivindicações específicas

daquelas localidades, que poderiam não corresponder às expectativas da população do

distrito de uma maneira geral. Aos “produtores” do Vale das Águas (provavelmente

neo-rurais), por exemplo, foram atribuídas expectativas de “preservação ambiental”.

O financiamento para a elaboração do Plano de Manejo da APA do Lima havia

sido obtido através da intermediação da Prefeitura, através da secretaria de meio

ambiente. É evidente a obrigatoriedade de mencionar projetos e atividades dos órgãos

municipais, mesmo que os objetivos específicos ou a dimensão da sua atuação não

fiquem claramente definidos. Por exemplo, quanto ao “Ecoturismo”, a parceria com a

empresa municipal de turismo figura entre os “objetivos específicos”, “incorporando

seus projetos e experiência no desenvolvimento de um turismo mais adequado ao

Lima”. Ou, quando o tema é agricultura orgânica, há que se mencionar uma experiência

da prefeitura nesta área, mesmo que os seus resultados sejam considerados bastante

questionáveis, até pelos ambientalistas locais: “o Projeto de Agricultura Orgânica –

Fruticultura, da Prefeitura de [município] em conjunto com a Secretaria de Agricultura,

é um passo inicial para a introdução do novo conceito de produção, baseado na

sustentabilidade”.

Os projetos em fase de negociação, envolvendo a ONG Viva Rio e a ONG

ambientalista local, aparentemente figuram entre os interesses subjacentes à ênfase em

determinadas atividades, principalmente na sugestão de implantação de “sistemas agro-

florestais”. Dois anos depois, em 2004, tinham início as atividades de recomposição de

matas ciliares e nascentes financiadas pela medida compensatória de uma multinacional,

dentre as quais previa-se uma experiência local em “agrofloresta”. Dentre as “ações

complementares” de “Educação Ambiental”, constam atividades para as quais tem sido

139

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reivindicado financiamento, alguns deles já realizados com financiamentos temporários

e voluntariamente por integrantes da ONG ambientalista local:

“Ecoturismo: visando fornecer aos visitantes, na entrada da APA DO LIMA,

um conjunto de informações relacionadas à área e orientá-los sobre os procedimentos e

atitudes desejáveis durante a visitação, assim como orientar os empresários locais sobre

as práticas sustentáveis para o desenvolvimento de suas atividades.

(...)

Desenvolvimento Comunitário: com o intuito de incrementar a participação da

comunidade nos aspectos relativos ao conhecimento e à melhoria de seu próprio

ambiente, deverão ser organizadas e incentivadas atividades que envolvam toda a

comunidade, como campanhas, mutirões, eventos etc;”

Estas atividades, posteriormente, foram financiadas durante 18 meses pelo setor

de educação ambiental do mesmo projeto de recomposição de matas ciliares e nascentes

citado acima. A ONG ambientalista, Grupo Germinal, foi contratada para a execução

destas atividades. Ou seja, foram incluídos como objetivos prioritários, no planejamento

da APA, projetos que já estavam em vias de negociação e que contemplariam a ong

ambientalista local.

Assim sendo, é possível perceber que, no período em que foi construído o

aparato legal e institucional no qual se apóia a gestão do território e dos recursos da

APA do Lima, as tomadas de decisão e o poder de enunciar o discurso oficial a respeito

da implantação da APA estavam nas mãos de ambientalistas locais, apoiados em sua

aliança com a secretaria municipal de meio ambiente135. Através de uma linguagem

“técnica” (tanto em relação à natureza quanto em relação à gerência participativa),

somada à associação entre questões locais a questões “globais”136, os implementadores

da APA do Lima conseguiram tornar vigente o seu projeto para aquele território. O

monopólio do discurso oficial a respeito da APA, ostentado por ambientalistas locais e

secretaria de meio ambiente, naquele período, tornou possível a justificação e a

legitimação de seu posicionamento em uma série de disputas locais, construindo o

135 De acordo com Hirschman, os “acordos negociados” e as “parcerias” entre agências governamentais egrupos de cidadãos para propósitos de controle e gerenciamento conjunto podem ter como um de seusmais efetivos instrumentos de sustentação o acesso maior e o compartilhamento de informaçõesambientais (1984 apud Lopes et allii 2004: 243).136 Segundo Accelrad, as lutas sociais envolvendo o meio ambiente tendem a ser despolitizadas pelacientificização das políticas ambientais, sendo a própria despolitização, por certo, uma estratégia deafirmação da distribuição de poder no campo de forças (2004: 21).

140

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Conselho Gestor como uma nova instância de poder local, apoiado nos instrumentos de

manejo da APA.

141

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CAPÍTULO 6 – A ATUAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DA APA

Após um conturbado período de formação do Conselho Gestor da APA,

analisado no capítulo três, e construção dos instrumentos de manejo da unidade de

conservação, examinada no capítulo 5, neste capítulo é empreendida a análise da

atuação do CG após sua oficialização pelo prefeito.

O ano de 2002, que compreendeu os acontecimentos mencionados acima, foi um

período de acirramento do conflito em que, diante da perspectiva de organização de uma

oposição que pretendia até mesmo a inviabilização da criação da APA, houve uma

união de forças para garantir a implantação da UC.

Todavia, tanto o grupo que se constituiu, naquele momento, como

ambientalistas locais, quanto diferentes setores do governo municipal, apresentavam

diferenças internas e divergências de interesses. A partir do momento em que a APA, o

Conselho Gestor e os instrumentos de manejo tornaram-se realidades irrevogáveis, e

que o CG foi oficialmente nomeado e começou, de fato, a operar, começaram a surgir,

aos poucos, disputas que expressavam divergências entre grupos que, no momento do

conflito, atuaram como um bloco único. Além disso, remanescentes do grupo que

chegou a atuar como oposição organizada ao processo de implantação da APA, sob a

liderança da associação de produtores e trabalhadores rurais, e que foi desmobilizado,

começaram a se reorganizar de diferentes maneiras, não mais como um grupo único,

tomando parte nas disputas pela gestão dos recursos da unidade de conservação.

Com base no conteúdo das atas de todas as reuniões do Conselho Gestor da

APA, desde a sua constituição oficial, em 18 de outubro de 2002 (sem deixar de levar

em conta a maneira pela qual estas atas foram elaboradas), somado às vivências do

trabalho de campo, foi possível analisar a tradução de diferentes conflitos sociais,

concernentes às estruturas e às forças políticas locais existentes, e a construção de novas

disputas, numa linguagem que pode ser descrita como “ambientalizada”. E a maneira

pela qual esta linguagem se soma aos modelos de “participação” resultantes de uma

macro-política dirigida à população e ao local. Neste sentido, as reuniões plenárias do

Conselho Gestor da APA foram, cada vez mais, se constituindo num palco para a

expressão e o encaminhamento das disputas locais.

Esta análise leva em consideração as observações de José Sergio Leite Lopes (et

alli) sobre a “ambientalização” dos conflitos sociais, como um processo histórico de

142

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construção de novos fenômenos, associado a um processo de interiorização, pelas

pessoas e pelos grupos sociais, das diferentes facetas da questão pública do “meio

ambiente”, notada pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na

sua institucionalização parcial (2004: 17).

Entre os fatores que contribuem para esta transformação, encontra-se a questão

da “participação”137. A partir da análise de casos empíricos, relacionados ao controle da poluição, José

Sergio Lopes identificou, na construção do interesse público e de diferentes instâncias

de participação, uma tendência ao localismo, que se faz sentir nos seguintes aspectos: “à

medida que as prefeituras e autoridades locais são tomadas como responsáveis pela

solução dos problemas, e como são procuradas e exigidas para tal; o reconhecimento e o

peso dos conselhos no encaminhamento das questões; a ênfase cada vez maior no

estabelecimento de “parcerias” entre diferentes tipos de organizações locais” (2004:

248).

Para Acselrad, a emergência do meio ambiente como objeto da política dá

origem a novas institucionalidades e “formas de participação”, constituídas para

articular movimentos ambientalistas e Estado, em certos casos burocratizando

associações e obscurecendo conflitos, através da pretensão ao consenso pré-construído

(204: 21).

1 – O funcionamento do Conselho Gestor da APA

De forma sucinta, pode ser afirmado que a atuação do Conselho Gestor da APA

se sustenta nas reuniões plenárias, ordinárias e extraordinárias, nas câmaras técnicas –

com prazo determinado e destinadas a tratar de problemas específicos – e nos

encaminhamentos realizados pela Secretaria Executiva.

– Composição e funcionamento da plenária

Durante os dois anos iniciais de funcionamento do CG (2003 e 2004), o

Regimento Interno previa reuniões plenárias divididas em duas partes: a primeira,

deliberativa, restrita aos membros do conselho e técnicos ou autoridades convidadas; a

segunda, consultiva, aberta.137 Esta transformação teria a ver com cinco fatores: o crescimento da importância da esfera institucionaldo meio ambiente entre os anos 70 e o final do século XX; os conflitos sociais ao nível local e seusefeitos na interiorização de novas práticas; a educação ambiental como novo código de conduta individuale coletiva; a questão da “participação”; a questão ambiental como nova fonte de legitimidade e deargumentação nos conflitos. (Lopes 2004: 20)

143

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Na prática, esta prerrogativa só era empregada quando compareciam muitas

pessoas à plenária, geralmente para tratar de algum assunto polêmico naquele momento,

ou quando estavam presentes pessoas dispostas a criticar alguma regra ou medida

adotada. Nestas ocasiões, as regras de funcionamento eram acionadas para que os

conselheiros pudessem conduzir o encaminhamento das questões, limitando as

interferências dos discordantes138.

Nas ocasiões em que a maioria dos presentes eram os próprios conselheiros, um

ou outro cidadão podia manifestar-se livremente, pois as reuniões plenárias, naquelas

circunstâncias, transcorriam como uma conversa sobre os pontos de pauta, com direito a

digressões sobre outros assuntos considerados razoavelmente pertinentes. Nestas

circunstâncias, a presença de cidadãos costumava ser aceita com bastante cordialidade,

pois os membros do CG procuravam demonstrar o seu empenho em orientar e auxiliar

os moradores na adequação aos critérios ambientais.

De acordo com as atas, as colocações de cidadãos comuns foram pouco

numerosas ao longo deste período, tornando-se mais freqüentes na segunda metade de

2004. Na maior parte dos casos, eram colocações pessoais, dúvidas ou queixas,

referentes a construções, limpeza de fossas, instalação de pequenos empreendimentos,

etc.

A exceção foi a presença, a três reuniões, do proprietário do terreno pelo qual é

feito o acesso às cachoeiras do Vale das Águas, Airton Rocha, para tratar de problemas

e soluções para o turismo naquele local, como será tratado logo adiante. Houve também,

mais raramente, colocações de moradores com críticas à atuação da prefeitura ou do CG

com relação a assuntos de interesse coletivo, tais como saneamento, monitoramento das

cachoeiras e atuação da fiscalização. Um deles falava em nome da Associação de

Pousadas, recém fundada, que em 2005 pleiteou assento no CG, mas, pelo que consta,

não dispunha, naquele momento, da documentação adequada. Como nem esta138 Neste trecho da entrevista com Matheus, que passou de representante da ONG ambientalista local aSecretário Executivo, ele defende esta forma de organização das reuniões plenárias, procurandodemonstrar a importância da aceitação das regras: “Inclusive, nesse segundo mandato, quando eu meabdiquei de ser conselheiro, e assumi a secretaria executiva, olha só as coisas como são, eu passei a serempregado. Eu não tenho direito a voz na reunião do conselho [risadas]. Eu taquei papel no chão, eutenho que ir lá e pegar, não tem jeito. Sacou? Eu passei a ser empregado. [Quem tem direito a voz nareunião, no caso, são só os conselheiros?] Os conselheiros. Entende? Se eu quiser ser representado, eutenho que ir na reunião do meu segmento e propor as coisas pra que aqueles representantes tragam.Porque eu, ali, eu sou um empregado. Eu tô do lado de trás da mesa, eu não tenho direito de discutir efalar, eu tenho que fazer os encaminhamentos, como secretário.” (Entrevista dezembro 2005). Apreocupação de Matheus em demonstrar a importância da aceitação das regras para a “participação”revela que estas regras eram objeto de disputas, e continuariam sendo durante todo o período analisado,como será visto.

144

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associação nem o seu representante ameaçavam, naquele momento, o poder do

Conselho Gestor, muitos conselheiros da “sociedade civil” se uniram ao questionador

nas críticas à Prefeitura, enfatizando a necessidade de “união” para cobrar uma atuação

mais efetiva do governo. Ou seja, quando não estava em jogo a disputa pelo poder de

interferir na gestão da APA, os ambientalistas locais começavam a dar mostras da

fragilidade de sua aliança com o poder público municipal.

No período que vai até o final de 2004, com o Conselho Gestor sendo presidido

pelo secretário de meio ambiente que conduziu criação da APA, Francisco Pinto, não

ocorreram mudanças significativas na composição do CG139, que chegassem a abalar a

aliança entre ambientalistas locais e a secretaria de meio ambiente. Foram substituídos,

neste período, a representante da Secretaria de Obras e os representantes da associação

de moradores do distrito.

A mudança na representação da associação de moradores do Lima tem a ver

com tentativas de pessoas ligadas ao proprietário do acesso às cachoeiras, Airton Rocha,

de integrar o CG. Durante um ano, os representantes da associação de moradores foram

o casal Paulo e Lena Albuquerque, amigos pessoais de Airton e que haviam tentado,

anteriormente, integrar o CG pleiteando uma vaga para o clube de futebol local. Durante

sua atuação, discordaram pontualmente dos ambientalistas locais e dos conselheiros da

esfera municipal, com um discurso pela valorização do “homem do campo” e da cultura

local e reivindicando uma melhor divulgação da APA e “conscientização” da

população. Um ano depois, a associação de moradores voltou a ser representada pela

aliança que sustentava sua diretoria – ambientalistas locais e a família Miranda, da elite

agrária local e ligada à Igreja Católica.

Até o final de 2004, aparentemente, a maioria das decisões do Conselho Gestor

da APA foi acatada por “consenso”, não tendo ocorrido, sequer, uma votação. Os atritos

ocorridos eram mais no sentido da cobrança em relação aos representantes do poder

público e aos componentes das câmaras técnicas quanto a encaminhamentos definidos

na plenária, mas não executados. Ou seja, permanecia o poder da aliança na qual se

fundara a criação da APA, entre ambientalistas locais e Prefeitura, com as tensões

características desta aliança, como foi visto no capítulo anterior.

139 Relembrando, o CG ficou assim composto: secretarias municipais de meio ambiente, obras, interior eagricultura, empresas municipais de turismo e saneamento; ONG ambientalista local (Grupo Germinal),associação de comerciantes, segmento religioso, associação de moradores do distrito do Lima, associaçãode moradores da Nascente, associação de moradores do Vale das Águas. Ver capítulo 3.

145

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As atas do período 2005/2006, notadamente mais detalhadas e assinalando os

conselheiros presentes, bem como a entidade que representam e a sua classificação

como titular ou suplente, permitem refletir mais de perto sobre diferentes aspectos

relacionados ao funcionamento do CG da APA.

O primeiro ponto a chamar a atenção é a permanência de alguns conselheiros,

mudando, no entanto, a organização que representam. Esta variação se estende,

inclusive, às cadeiras ocupadas por instituições do poder público municipal. As

diferentes inserções destas pessoas, como funcionários públicos, proprietários de terras

no distrito, bem como por sua afiliação religiosa ou ideológica, permitem que se

mantenham no CG, apesar da renovação dos representantes de cada entidade que o

compõe, além da entrada de novas instituições.

Outro aspecto digno de nota é que, com a divulgação das plenárias abertas à

“comunidade” e a intensificação das fiscalização sobre obras, comércios e

empreendimentos, as reuniões do CG passaram a ser palco da expressão de uma série de

conflitos, alguns deles insuflados pelos efeitos da fiscalização, mas muitos deles, apesar

desta motivação última, traduzindo e ressignificando disputas pré-existentes. As novas

formas de expressão destes conflitos englobam a entrada em cena de novos atores e

novas regras de gestão do espaço e dos recursos, que precisa ser dimensionada e

compreendida na sua interação com as relações de poder vigentes. A ambientalização

dos conflitos sociais, conforme representações destes conflitos exteriorizadas nas atas

das reuniões plenárias do CG, será tema do próximo item.

Quanto à renovação dos representantes das instituições que compõem o CG, é

preciso levar em conta a renovação do presidente do CG, o novo secretário municipal de

meio ambiente140, bem como a renovação da Secretaria Executiva, ocupada por um dos

fundadores da ONG ambientalista local e representante desta organização no CG até

então. Todas as instituições governamentais mudaram, pelo menos, um de seus

representantes. Mas é essencial notar que muitos ex-conselheiros foram realocados em

diferentes funções na esfera de influência direta ou indireta do poder público municipal.

E que houve casos em que conselheiros, ou pleiteantes a conselheiros, da dita

“sociedade civil”, passaram a representar instituições públicas. Com isto, mais da

140 Na gestão do antigo prefeito, do mesmo partido do atual, Pedro Paulo era secretário municipal decomunicação, tendo colaborado com a elaboração de um “sistema de sinalização” para a APA, no âmbitodo projeto de elaboração do Plano de Manejo e Medidas Iniciais, coordenado pelo ONG Viva Rio,contratada pela secretaria municipal de meio ambiente. Ou seja, o novo secretário de meio ambiente epresidente do CG, Pedro Paulo, já havia entrado em contato e trabalhado com os ambientalistas locais nagestão anterior.

146

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metade dos conselheiros do período 2003/2004 se mantiveram no CG no mandato

seguinte, muitos deles representando instituições diferentes.

Por exemplo, o representante da associação de moradores da região da Nascente

passou a representar a secretaria municipal de agricultura (em 2006, transformada em

empresa municipal de agricultura). Isto foi possível por ser Dalton um filho de

pequenos produtores rurais locais, da região da Nascente, que estudou agronomia e

trabalhou para a prefeitura por longos períodos, habitando atualmente a sede do

município. Portanto, Dalton podia ser inserido tanto como “morador” da Nascente

quanto como funcionário municipal.

O antigo representante da secretaria de agricultura, Antônio Jardim, deixou de

fazer parte do CG, mas compareceu a algumas reuniões na condição de responsável

técnico por um projeto de implantação de uma “fazenda agro-ecológica” na região da

Nascente. O ex-secretário executivo, Bianco Schmidt, passou a integrar a plenária na

condição de representante da secretaria municipal de meio ambiente.

Há, também, o caso do presidente da associação de produtores e trabalhadores

rurais, Edson Aguiar. Como foi visto no capítulo 4, após tentar acionar o Ministério

Público contra o processo de implementação da APA, sem sucesso, esta associação foi

esmorecendo, também em função da ausência de alguns componentes da diretoria (por

morte, mudança para outro Estado, doença, etc.). Em 2005, tendo apoiado a eleição do

atual prefeito, o presidente desta associação recebeu um cargo na Secretaria de Interior,

como “administrador do Lima”, e foi indicado para representar esta secretaria no CG.

No entanto, nunca chegou a conseguir encaminhar a documentação necessária para

efetivar esta representação. Ele participa de algumas plenárias, mas não tem direito a

voto, e a secretaria consta como ausente141.

A troca de instituições também ocorre entre os representantes das organizações

locais. A pessoa que representou a associação de moradores durante o ano de 2003,

Darcy Miranda, em 2005, passou a representar o “segmento religioso”, em nome da

Igreja Católica. O representante da associação comercial, Ivan, durante os anos de 2003

141 Há diferentes interpretações a respeito da demora de mais de dois anos no encaminhamento dadocumentação da secretaria municipal de interior para o CG. Segundo ex-componentes da diretoria daassociação de produtores e trabalhadores rurais, em conversa informal, isso se deve à grande dificuldadedo presidente da associação com a linguagem escrita e os trâmites burocráticos. De acordo com eles, aassociação só “aconteceu” sob a liderança dele porque foi assessorado por pessoas de fora que sedispuseram a ajudar. Ivan, funcionário da Secretaria Executiva do CG, em conversa informal (2007),aludiu à “ignorância” do representante escolhido e à falta de empenho da secretaria. Segundo ele, o ditorepresentante “se vendeu” ao atual prefeito, por isso, a associação deixou de “criar problemas”.

147

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e 2004, passou a ser funcionário da Secretaria Executiva, manifestando-se nas plenárias

como “morador da comunidade”, a partir de 2005.

A despeito da manutenção de uma parte significativa dos conselheiros, houve

renovação da representação de duas associações locais – a de moradores da região da

Nascente e a associação comercial, embora esta última tenha ficado sem representação

até o final de 2006, em virtude da contestação judicial do processo eleitoral pela antiga

diretoria.

Na associação da região da Nascente, foi eleita uma nova diretoria, composta

por proprietários rurais e moradores que haviam feito parte da primeira diretoria, em

1999, que não chegou a conseguir registrar a associação (ver capítulo 3). A

representação desta associação no CG passou a ser feita por um proprietário rural,

lavrador aposentado, e uma filha de lavradores, funcionária da escola municipal da

região da Nascente. Esta mudança significou um fortalecimento da população local que

quisera fundar esta associação em 1999, mas que não fora capaz de se organizar para

efetivar a institucionalização da associação e acabara se aliando a neo-rurais,

permanecendo a associação sem grande apelo popular e sem grande poder de

reivindicação. Com a organização de seus fundadores originais, a associação da

Nascente passou a mobilizar mais moradores e ampliou seu poder de reivindicação com

relação a assuntos locais, sem interferir, no entanto, nas decisões relativas à APA como

um todo.

A associação comercial e agropastoril teve sua diretoria renovada, em 2004,

num processo eleitoral contestado na justiça pela antiga diretoria, sob acusação de

compra de votos e coação de eleitores142. A nova diretoria tomou posse e passou a atuar,

tendo, inclusive, recebido verbas municipais para realização de eventos festivos no

distrito. Contudo, por decisão da plenária, ficou sem representação no CG até a decisão

da Procuradoria do Município, favorável à diretoria eleita, ao final de 2006. O

representante indicado para o CG foi o presidente da associação, o fazendeiro Julio Bill,

que teve embargado o uso de uma pista de motocross construída em sua propriedade,

em 2004 e, desde então, passou a contestar a atuação do CG e as regras de gestão da

APA. Este acontecimento desencadeou um processo de disputas, algumas delas

expressas nas reuniões plenárias do CG, como será visto logo adiante.

No início de 2005, foi aberta a inscrição para o CG de novas instituições. Quatro

organizações da sociedade civil local pleitearam vaga: a recém-fundada associação de

142 Ver cepítulo 3, página 50.

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moradores da região onde está situada a propriedade de Julio Bill (Alto da Vitória) e de

outra região adjacente (Fortuna); uma OSCIP143 fundada em 2003; a associação de

pousadas fundada em 2004, que já solicitara inclusão no ano anterior; e a recém-

fundada associação de moradores da Barra do Lima. Apenas a associação de moradores

da Vitória e da Fortuna foi incluída, por ser a única a ter encaminhado a tempo toda a

documentação exigida pelo Regimento Interno do CG. Sua representação passou a ser

feita por um casal de moradores da região – ele, músico, e ela, produtora cultural. A

efetivação da entrada desta associação, bem como da secretaria municipal de trabalho e

renda, só veio a ocorrer no inicio de 2006, pois precisou ser precedida de reformulações

no Regimento Interno que, anteriormente, continha os nomes das 12 instituições que

compuseram o CG na ocasião de sua homologação.

Em novembro de 2006, foram incluídas a associação de moradores da Barra do

Lima, que regularizara sua documentação, e a Guarda Municipal, que conta com um

posto no distrito desde 2004 e vem sendo chamada a atuar, tanto no uso turístico da

região do Vale das Águas, quanto em questões de ordenamento urbano, como será visto

logo adiante.

143 Organização da sociedade civil de interesse público, formada por neo-rurais, profissionais como umjornalista, uma advogada, e trabalhadores da área de educação.

149

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–– A Secretaria Executiva

De acordo com o que ficou estabelecido no Regimento Interno, cabe à Secretaria

Executiva do CG secretariar as reuniões, convocá-las, tratar das atas e controlar a

presença dos conselheiros, tratar da correspondência do CG, receber e encaminhar os

pareceres das Câmaras Técnicas e elaborar o relatório semestral de atividades do CG.

Este cargo, segundo decisão dos conselheiros no início de 2003, não é remunerado.

O exercício do primeiro Secretário Executivo, até o final de 2004, correspondeu ao

período em que o CG começou a operar, e era preciso dar início a toda a organização

burocrática e documental, além de estar previsto também o atendimento ao público por

parte da secretaria executiva, para informar e receber comunicados e denúncias. Pode

ser tratado como um período de estruturação do CG e da própria Secretaria Executiva.

A partir de 2005, cresceu a importância da Secretaria Executiva do Conselho Gestor no

encaminhamento de toda sorte de questões relativas à APA. Melhor equipada e

disponível para atender ao público, com a documentação organizada, a Secretaria

Executiva passou a intermediar o acesso dos moradores aos assuntos do CG.

Logo após a formalização do Conselho Gestor, o secretário do meio ambiente e

presidente do CG, Francisco Pinto, indicou um nome para ocupar o cargo de secretário

executivo: Bianco Schmidt. O indicado era proprietário de um sítio do Vale das Águas,

há cerca de trinta anos, integrante da associação de moradores da região do Vale das

Águas, e funcionário da secretaria do meio ambiente, bem como professor do

município. Ou seja, uma pessoa que poderia ser enquadrada em diferentes

classificações, como ambientalista local, funcionário público, representante da

secretaria de meio ambiente, etc., porque transita entre estas diferentes inserções. Este

secretário permaneceu no cargo até o final do ano de 2004. Durante este período,

surgiram críticas à atuação da Secretaria Executiva, levantadas por conselheiros e por

cidadãos, que ficaram registradas nas atas das reuniões plenárias.

Ao final do ano de 2003, foi posta em questão a sua permanência no cargo,

através de carta subscrita por alguns conselheiros (sob liderança dos representantes da

associação de moradores, Paulo e Lena). O Secretário Executivo foi mantido por apoio

do presidente e parte do plenário, sob a justificativa de que a secretaria vinha

trabalhando com parcos recursos e nenhuma infra-estrutura. As principais solicitações à

atuação da Secretaria Executiva, naquele momento, eram: “atenção na organização das

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pautas das reuniões plenárias, o envio de cópias das atas assinadas pelos membros do

[CG da APA], organização de arquivos para consultas de terceiros, cumprimento de

horário de funcionamento da Secretaria Executiva e comportamento e postura pessoal

do Secretário Executivo para com alguns membros do conselho e pessoas em geral”144.

Ao longo do ano de 2004, surgiram críticas pontuais a alguns destes itens, por parte da

população e dos próprios conselheiros. Todavia, embora a atuação do secretário fosse

controversa, prevaleceu o poder da secretaria de meio ambiente aliada à maioria dos

conselheiros locais.

Em 2005, com a posse do novo prefeito, um novo secretário de meio ambiente

assumiu a presidência do CG. Na primeira reunião ordinária anual, o até então

representante da ONG ambientalista local no CG, Matheus, foi eleito Secretário

Executivo, por nove votos a um, tendo concorrido com o então representante da

associação de moradores no CG, Paulo Albuquerque. Do processo eleitoral registrado

em ata, merecem destaque a proposta do perdedor de promover uma aproximação da

APA com a população e a sua reivindicação de remuneração para o cargo, uma vez que

seria um “trabalho profissional” que requereria o cumprimento de um horário, ao

contrário do seu oponente, que já é contratado pela secretaria de meio ambiente145. A

144 De fato, as atas do período 2003/2004 não contêm a assinatura dos conselheiros e a pauta,freqüentemente, é definida somente como “assuntos gerais; andamento das câmaras técnicas”, além denão constar menção à pessoa que as lavrou. À época, também, não se encontravam disponíveis paraconsulta, sendo difícil, inclusive, encontrar a Secretaria Executiva aberta para atendimento ao público.145 “Matheus – Essa função como secretário executivo não é remunerada. Eu tenho uma contratação paraprestar um outro serviço à Secretaria de Meio Ambiente. Não como secretário executivo. Secretárioexecutivo é uma função que ...Natália – Mas é uma coisa que tem horário de trabalho, né?M – Tem horário de trabalho. Tem compromissos de trabalho. Não vou dizer que tem horário. Porque ohorário, na minha casa, às vezes batem gente meia noite. (...) eu abro minhas portas e recebo a demanda eencaminho no dia seguinte. N – Entendi. E essa outra função que você disse, pela qual você é contratado na prefeitura?M – É uma função de... assessoria da Secretaria do Meio Ambiente. N – Entendi. E essa função você exerce em qual horário?M – Essa função eu exerço todo o tempo. N – Por exemplo, alguém vai fazer uma construção e vem te perguntar se pode, é esse tipo de trabalho?M – Isso, isso, isso, também. N – Ou alguém vem encaminhar uma denúncia, por exemplo?M – Isso também. Acompanhar a fiscalização, saber se eles estão fazendo as ações deles corretas, saber seeles estão é... tipo ... é... burlando. Essas coisas todas, eu faço todo um acompanhamento. N – e quando você faz isso, você vai junto com a fiscalização, por exemplo?M – Vou, vou junto com a fiscalização. Recebendo a demanda da comunidade.N – Todo tipo de fiscalização, estadual, municipal ...?M – Não, eu trabalho com o município. N – Isso inclui as diferentes secretarias?M – Qualquer secretaria. Mas represento o Meio Ambiente na região. N – Representa a Secretaria de Meio Ambiente?M – Sou assessor da Secretaria de Meio Ambiente. Mas trabalho com todas as secretarias. Não tem comoa Secretaria de Meio Ambiente negar as outras, não tem.” [Entrevista Matheus 2005]

151

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favor do atual secretário executivo, foram mencionados o seu envolvimento de longa

data com questões ambientais locais e a sua aproximação com a comunidade em virtude

desse “trabalho”. A condição de não remuneração do cargo de Secretário Executivo

favorece a escolha de funcionários da prefeitura, pois as atribuições do cargo demandam

bastante dedicação. Assim, mesmo sendo votado pela plenária, é pequena a margem de

escolha dos conselheiros. Desta forma, esta condição permite que o Secretário

Executivo seja percebido pela população, e até mesmo pelos próprios conselheiros

locais, como um entreposto da secretaria de meio ambiente146.

Os documentos produzidos pela Secretaria Executiva, no período 2005/2006,

particularmente as atas de reuniões plenárias, revelam um aprimoramento na

organização interna do CG. As atas, elaboradas a partir da gravação das reuniões,

tornaram-se muito mais detalhadas, além de passarem a ser assinadas pela maioria dos

conselheiros presentes. A Secretaria Executiva, no referido período, passou a realizar

um atendimento regular do público, recebendo queixas, denúncias, pedidos de

orientação e autorização para obras, fornecendo, inclusive, “plantas proletárias” de até

70 m2 para pequenos construtores. Toda a documentação referente à APA encontra-se

disponível para consulta na secretaria. A estruturação do trabalho da Secretaria

Executiva contribuiu para que este órgão pudesse ampliar seu poder de ação, passando a

intermediar a relação dos moradores com o CG.

– As Câmaras Técnicas

As câmaras técnicas, segundo o Regimento Interno do Conselho Gestor da APA,

são comissões formadas por membros da Plenária, ou seja, os conselheiros, o

Presidente, e seus respectivos suplentes, além de pessoas convidadas por sua capacidade

técnica, devendo conter, no mínimo, um representante do poder público e um

representante da sociedade civil. São criadas, segundo decisão da Plenária, com metas

específicas e prazo determinado, devendo produzir um parecer sobre o assunto tratado,

146 O poder do Conselho Gestor, em alguns momentos, no entanto, parece não ser exercido pela totalidadedo CG. Por exemplo, Matheus reclama da atuação de alguns conselheiros locais: “E é entendendo que oconselho não é, ali, o presidente, a secretaria executiva. O conselho é a reunião de todos os segmentos dasociedade civil mais o poder público. Isso que é o conselho da APA. São as representatividades quedeliberam sobre a questão da APA. [E você acha que pra alguns parece somente o quê?] O secretárioexecutivo. O secretário do meio ambiente, o presidente. Não é. Na verdade, o conselho, quem é? Éreunir... é essa... São aquelas mesmas pessoas que tão falando “pô, o conselho não faz nada”. Umapessoa, a própria, é do conselho e fala “Oh, você não faz...” e esquece que ele próprio é do conselho. Queele que representa o segmento.” Daí se depreende que, para os próprios conselheiros designados pararepresentar a sociedade civil local, o poder parecia estar sendo exercido pela secretaria do meio ambientee seu representante local, o secretário executivo.

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propondo diretrizes e “soluções conjuntas” para os problemas, a ser aprovado pela

plenária147.

Cidadãos comuns também podem fazer parte destas câmaras. As câmaras

técnicas foram introduzidas na pauta pelo presidente do CG, no início de 2003, como

um espaço para “participação”, também, dos moradores. No entanto, o caráter “técnico”

atribuído a estas comissões, afastava da “participação” as pessoas comuns, que não se

sentiam aptas a contribuir de forma “técnica”. Na prática, os “moradores” que tomavam

parte das câmaras técnicas eram ambientalistas locais que, por ora, não estavam

fazendo parte do CG. Ou, ainda, pessoas envolvidas, em diferentes graus, com o

ambientalismo local, por estarem trabalhando em atividades ou projetos tidos como

ambientais. Em alguns casos, integraram estas comissões, também, neo-rurais que se

interessavam em freqüentar associações locais ou se posicionar em alguma discussão

específica – como a respeito da área das cachoeiras, por exemplo. Algumas câmaras

técnicas obtiveram êxito, ou seja, conseguiram atingir as metas a que se propuseram, e

outras não. Para compreender seu desempenho, é preciso levar em consideração os

objetivos perseguidos e a composição destas comissões.

Na primeira reunião ordinária do exercício de 2003, foram criadas 4 câmaras

técnicas: Agricultura (proposta pelo representante da secretaria de agricultura), uso e

ocupação do solo (proposta pelo Presidente), Ecoturismo (proposta pela representante

da empresa municipal de turismo) e Diagnóstico de Ocupação das Faixas Marginais do

rio Lima (proposta pelo presidente). Na reunião seguinte, criou-se a quinta câmara:

Geração de emprego e renda. Em maio, foi criada a câmara técnica para gestão do portal

de entrada no distrito (construído pela prefeitura em 1999).

Nestes dois primeiros anos, as câmaras técnicas que mais parecem ter avançado

foram as de Uso e ocupação do Solo e de Diagnóstico das Faixas Marginais. A primeira

produziu uma proposta de lei de uso e ocupação do solo urbano específica para o

distrito, que foi aprovada pela Câmara Municipal ao final de 2004. A segunda

conseguiu produzir o referido diagnóstico. Ambas possuíam em comum objetivos de

estabelecer regras e restrições ao uso do espaço e dos recursos naturais. Foram

147 Em relação, especificamente, ao meio ambiente, a idéia da participação popular foi reforçada a partirda aprovação do Plano de Ação Global para o Desenvolvimento Sustentável, denominado Agenda 21, naConferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92). Este documentorelaciona os problemas “socioambientais” e suas soluções a ações locais, recomendando a participação ea cooperação entre os interessados e das autoridades locais como fundamentais às experiências dedesenvolvimento sustentável.

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constituídas por um representante local e por representantes da Prefeitura escolhidos por

sua competência técnica. No caso da CT que produziu a lei de uso e ocupação do solo,

era formada pelo representante da ONG ambientalista, Matheus, e por um urbanista e

um engenheiro da secretaria de obras. A CT de Diagnóstico da Faixa Marginal contou

com Mara, que não era conselheira e compôs a CT como representante da comunidade,

e com uma especialista em “gestão ambiental”, da secretaria de meio ambiente, e o

próprio secretário e presidente do CG. A partir de outubro de 2003, inclusive, estas duas

câmaras passaram a compartilhar informações e trabalhar juntas em algumas atividades,

produzindo cada uma os seus respectivos resultados.

A CT de Agricultura, embora não tenha produzido resultados a curto prazo, foi

um espaço de gestação do projeto demonstrativo de agrofloresta, que veio a se

concretizar em 2006. O então coordenador da CT e representante da secretaria

municipal de agricultura no Conselho Gestor veio a ser o responsável técnico pelo

projeto. O representante da associação da Nascente, Dalton, agrônomo, contribuiu para

a elaboração do projeto. A partir de 2005, como foi dito, ele próprio passou a

representar a secretaria de agricultura no CG. Os demais componentes da câmara,

representantes do “segmento religioso” e da associação de moradores, não parecem ter

interferido nos resultados desta câmara, por não possuírem formação técnica.

As CTs de Ecoturismo e Gestão do Portal não parecem ter contado com grande

empenho dos representantes do poder público (empresa municipal de turismo e Guarda

Municipal/secretaria de meio ambiente, respectivamente), que deveriam agregar sua

competência técnica. Assim, não chegaram a produzir resultados palpáveis. Ambas

foram formadas por um grande número de representantes locais.

No caso da CT de Ecoturismo, a presença dos representantes locais estava

diretamente associada à intenção de influenciar a gestão da região das cachoeiras – o

Vale das Águas. Compuseram esta CT o titular e o suplente da associação do Vale das

Águas, o representante da associação comercial, também proprietário de um sítio do

Vale das Águas, e Lena Albuquerque, na condição de “moradora”, ligada ao

proprietário do acesso às cachoeiras, Airton Rocha. De março a maio de 2004, diante da

crise desencadeada pelo “fechamento das cachoeiras” durante o Carnaval, por Airton

Rocha, o representante da ONG ambientalista local tomou parte nesta CT, com o

objetivo de elaborar um parecer favorável à manutenção do monitoramento das

cachoeiras pelo Grupo Germinal.

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No início de 2005, início do mandato do secretário de meio ambiente Pedro

Paulo como presidente do CG, foram criadas duas câmaras técnicas: uma para estudo da

lei de uso e ocupação do solo e outra, para estudo do Regimento Interno. Quanto à lei de

uso e ocupação do solo, foi manifestado tanto pelo Secretário Executivo, coordenador

da câmara técnica, quanto pelo presidente, que deveria ter sido apresentada à

comunidade antes do envio à Câmara Municipal, mas que isso não chegou a ocorrer.

Por isto, foi criada a câmara técnica. Suas conclusões foram trazidas à Plenária em

novembro de 2005, e o Presidente mencionou a existência de “erros grosseiros” na lei.

E leu a conclusão da câmara técnica: “1 – Confecção dos mapas do zoneamento

ambiental com as especificações das áreas, para aplicação em lugares públicos,

facilitando a compreensão pela comunidade; 2 – Fiscalização efetiva das Secretarias de

Obras e Meio Ambiente na aplicação da lei; 3 – Conscientização, com diversos

métodos, da população sobre as leis que regem a APA; que seriam campanhas

explicativas da legislação para que as pessoas possam estar entendendo o que elas

dizem; 4 – Proposta para estudo de legislação especifica para a Nascente; 5 –

Recadastramento dos imóveis construídos na área urbana.”

Quanto ao Regimento Interno, a mudança mais relevante referiu-se às reuniões

Plenárias, que passaram a ser divididas em duas partes: a primeira, consultiva, aberta à

“comunidade”; a segunda, deliberativa, restrita aos conselheiros. Ao final de 2006, a

questão da “participação da comunidade” nas reuniões do CG voltou a gerar

controvérsias, e foi prevista a criação de outra câmara técnica para uma nova revisão do

Regimento Interno ao início de 2007. Mas fica prevista uma “capacitação dos

conselheiros”, a ser realizada antes da criação da CT.

De uma maneira geral, as câmaras técnicas que conseguiram produzir resultados

imediatos foram fruto da associação dos representantes locais com técnicos da

Prefeitura, e tinham objetivos de normatização. As CTs que contaram com grande

número de representantes locais e pouco empenho dos técnicos do governo municipal

acabaram por reproduzir a tendência das reuniões plenárias do CG, de se tornarem palco

de disputas entre diferentes interesses locais.

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2 – A proibição da pista de motocross e seus desdobramentos

Ao final de 2003, presenciei a inauguração de um campo de futebol na fazenda

recém adquirida por Julio Bill na região da Vitória. O proprietário daquela fazenda era

engenheiro e empresário, proveniente da Região dos Lagos. Estavam presentes

moradores daquela região do distrito, e alguns moradores das regiões da Barra do Lima,

do São Pedro/Santa Rita e da Fortuna, e os respectivos times de futebol, que disputavam

um campeonato. Enquanto os times competiam, alguns dos presentes se revezavam em

voltas de motocicleta na pista de motocross situada no interior da fazenda. Estava

presente o então candidato a prefeito, apoiado pelo então prefeito e posteriormente

eleito seu sucessor, o que revelava ligações políticas do dono da fazenda com ele,

naquele momento. Ou seja, o fazendeiro/empresário/engenheiro Julio Bill, que

recentemente adquirira uma grande propriedade numa região do distrito do Lima, e

estava investindo naquela propriedade, parecia bem relacionado com o futuro prefeito.

No entanto, as boas relações com o candidato a prefeito não foram suficientes para

impedir que a pista de motocross construída na propriedade de Julio Bill fosse

embargada pelo IBAMA, a partir de denúncia encaminhada pelo representante da ONG

ambientalista local – Grupo Germinal – no Conselho Gestor da APA.

No início de 2004, Julio Bill compareceu à reunião plenária do CG para explicar

seu projeto de construção de uma estrada. Segundo a ata daquela reunião, ele

“reconheceu que errou em não pedir autorização à [secretaria municipal de meio

ambiente] mas reclamou que a [secretaria municipal de meio ambiente] levou o seu caso

diretamente ao IBAMA sem seu conhecimento” (Ata de Reunião Ordinária do Conselho

Gestor da APA – Janeiro/2004).

Depois desta ocasião, Julio Bill só voltou a comparecer a uma reunião do CG em

2005. Ao final de 2004, no entanto, o seu caso foi comentado nas reuniões ordinárias do

CG de setembro e novembro. Em setembro, a representante da secretaria de meio

ambiente informou que Julio Bill havia entrado com pedido de autorização na secretaria

para um evento de motocross. Os membros do CG, então, reafirmaram seu repúdio

àquela construção: “A plenária ressaltou, que veta esta pista em Zona de Conservação

da Vida Silvestre, que não há contrapartida para tal empreendimento, que este assunto já

foi amplamente discutido, e registrado em ata anterior; que a Federação Brasileira de

Motociclismo inclusive proibe este tipo de atividade em unidade de conservação.”

156

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A partir do conflito em torno da pista de motocross, o fazendeiro Julio Bill

passou a reunir esforços no sentido de construir uma forma de oposição à atuação

política do CG da APA. Buscou apoio em meio a moradores da região onde está situada

sua propriedade e em outro córrego adjacente, o Alto da Vitória e a Fortuna, alguns dos

quais eram seus empregados ou prestadores de serviços eventuais. Conseguiu insuflar a

constituição de uma associação de moradores local, expressando necessidades de uma

das regiões mais carentes do distrito em termos de saneamento básico, vias de acesso e

serviços de uma maneira geral, e aglutinando parte dos órfãos da associação de

produtores e trabalhadores rurais, estabelecidos naquelas duas regiões148. Esta

associação pleiteou vaga no CG da APA ao início de 2005, e passou a integrá-lo ao final

deste mesmo ano.

Julio Bill buscou apoio, também, em meio a algumas lideranças da associação de

produtores e trabalhadores rurais, que expressara o descontentamento de uma grande

parte da população durante o processo de implementação da APA e constituição do CG

e, posteriormente, deixara de atuar149. Assim, com o apoio de parte dos integrantes

daquela associação, muitos dos quais moradores de outras regiões menos privilegiadas

do distrito, tais como São Pedro/Santa Rita, Fortuna, Seara , Julio Bill formou uma

chapa que venceu as eleições da associação comercial e agropastoril do distrito150, que,

até então, estava nas mãos de ambientalistas locais, com o apoio do fazendeiro da Barra

que transformara sua propriedade em RPPN. Como vimos, o processo eleitoral foi

contestado pela chapa derrotada. A chapa vencedora assumiu a associação, mas o seu

148 Dos 12 sócios fundadores da associação de moradores do Alto da Vitória e da Fortuna, 6 se declaram“produtores rurais”, 2 são “agricultoras”, um é engenheiro – o próprio Julio Bill, e uma universitária. Hátambém o casal que se encarregou da representação desta associação no CG, um músico e uma produtoraartística – Priscila Vale e José. Dentre os 12 sócios fundadores, 8 são do Alto da Vitória e 4 da Fortuna –2 produtores rurais e 2 agricultoras. Todos os produtores rurais e agricultores que integraram a diretoriadesta associação haviam sido membros da associação de produtores e trabalhadores rurais. O casal deneo-rurais que assumiu a representação desta associação no CG não havia tomado parte nas demaisassociações locais, tampouco nas discussões em torno da implementação da APA. Portanto, Julio Billuniu-se a pessoas que, até então, encontravam-se excluídas das negociações oficiais em torno de medidasambientais.149 Ver capítulo 4.150 Ao final de 2004, dei carona a um casal de lavradores idosos moradores da região da Fortuna.Reconhecendo-os das assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais, perguntei sobre aassociação, sobre cujas atividades eu não vinha ouvindo falar recentemente. O lavrador respondeu que aassociação continua, agora com o apoio de Julio Bill. Perguntei se era a mesma associação, que erapresidida, à época daquelas assembléias [2002], pelo senhor Edson Aguiar. Ele respondeu que sim, que osenhor Edson apoiava Julio Bill, e que aquela era a nossa associação, agora presidida por Julio Bill, e queas reuniões continuavam acontecendo e que eu estava convidada a comparecer. Juntando informações,concluí que o lavrador se referia às reuniões da associação comercial, interpretada como uma continuaçãodaquela outra, a de produtores e trabalhadores rurais.

157

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direito de indicar representantes para o CG da APA só foi reconhecido após decisão da

Procuradoria do Município em favor da diretoria eleita, ao final de 2006.

Em maio de 2005, Julio Bill compareceu à reunião plenária do CG, procurando

formalizar a sua condição de representante da associação comercial. Apresentou um

projeto de melhoria da estrada do Alto da Vitória, “doado à comunidade” através das

associações da Vitória e comercial, no qual está prevista a doação de parte do seu

terreno para viabilizar a passagem da estrada. Em seguida, o representante anterior da

associação comercial no CG tomou a palavra no sentido de informar que a antiga

diretoria não reconhece a diretoria eleita. O presidente do CG afirma ter recebido

documentos de ambas as partes, que seriam encaminhados à procuradoria do município.

Os membros do Conselho Gestor protelaram ao máximo a aceitação de Julio Bill

como representante da associação comercial e agropastoril, uma vez que esta mesma

diretoria já havia sido reconhecida por outros órgãos da própria Prefeitura, que destinara

verbas para que esta associação realizasse a festa do distrito.

2.1 – A festa

A associação comercial e agropastoril, presidida por Julio Bill, foi responsável

pela realização de uma polêmica festa em 2005, que trouxe pela primeira vez ao distrito

um rodeio. As representações sobre esta festa acionadas em conflituosas reuniões

plenárias do CG são reveladoras da construção e reconstrução de disputas numa

linguagem ambientalizada.

Uma vez por ano, a Prefeitura financia a realização de uma festa em cada distrito

serrano daquele município. No distrito do Lima, a “festa do Lima” é, anualmente, objeto

de disputas quanto a quais instituições locais serão encarregadas de gerir os recursos e

colaborar na organização da festa e como será o evento.

No ano de 2005, a associação comercial e agropastoril, naquele momento

presidida por Julio Bill, assumiu a organização da festa, em parceria com a Prefeitura. A

proposta desta associação foi escolhida em detrimento da proposta encaminhada pela

associação de moradores do Lima, que defendia um evento com pouca ou nenhuma

divulgação turística, focado na valorização da “cultura local” e destinado ao

entretenimento da própria comunidade. A proposta derrotada previa shows com bandas

de forró formadas por músicos residentes no distrito e espetáculos teatrais organizados

pelo casal de neo-rurais que então representava a associação de moradores no CG, Paulo

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e Lena Albuquerque. A proposta vencedora trouxe a realização de um rodeio, alvo de

críticas dos membros do CG e de diversos “neo-rurais”.

Na reunião ordinária do CG de julho de 2005, após a realização da festa, uma

série de queixas e críticas foi direcionada aos organizadores do evento, por parte dos

demais conselheiros e de moradores do centro comercial e residencial do distrito.

De uma maneira geral, a posição dos conselheiros representantes de

organizações locais foi a de manifestar respeito pela decisão da comunidade, que optara

pelo rodeio, sem deixar de mencionar o seu repúdio por um evento deste tipo, por

considerá-lo contrário aos princípios da proteção da natureza151. A postura do

presidente do CG, em nome da Prefeitura, foi a de garantir que o evento fosse realizado

de acordo com a legislação ambiental, eximindo-se da discussão sobre o mérito do

rodeio, atribuída à comunidade.

Os organizadores do evento – membros da associação comercial, agropastoril e

ecoturística – procuravam demonstrar o seu empenho em realizar o evento, apesar das

dificuldades com a estrada e com a infra-estrutura, e dos empecilhos cuja criação foi

atribuída à secretaria de meio ambiente e ao CG e interpretada como proposital, com o

objetivo de impedir ou atrapalhar a realização do evento. Eles colocavam-se como

vitoriosos, por terem conseguido realizar com sucesso um evento para o povo, apesar

dos obstáculos interpostos pelos ambientalistas locais e pela secretaria de meio

ambiente152.

151Jaime, representante da associação do Vale das Águas, faz questão de mencionar que o rodeio não é deseu agrado, devido a uma razão de caráter ambiental - os supostos maus tratos aos animais -, mas queenxerga a necessidade de conciliar a conservação ambiental com a vontade da população. Estaconciliação seria possível com a submissão das ações à legislação ambiental. Sua fala vai no sentido dedesqualificar a discussão como pouco prioritária, comparando-a com o objetivo maior de pensar medidaspara garantir a conservação dos atributos naturais da localidade para “o futuro”: “Jaime diz achar umapena e ser ridícula essa discussão, que não é a favor de certas práticas mas não pode ser contra tudo, se opovo quer esse tipo de coisa quem for fazer tem que se adequar a lei porque a APA é irreversível, gostemou não. Não gosta de rodeio pôr sic causa dos animais, mas que o povo daqui gosta e está na moda natelevisão, mas que não está aqui defendendo o rodeio. (...) Que existem várias propostas ótimas, que oLima é maravilhoso, mas que ficam falando em dinheiro, em quanto ganharam, mas não vêem que omaior ganho no futuro é ter um lugar como este. Que se deixe fazer o que o povo gosta, mas tudo dentroda lei. (...)” 152 Neste trecho, Julio Bill procura atribuir à denúncia de cunho ambiental um caráter de implicância esabotagem a um evento que o povo aprecia, mas que não é do agrado dos moradores de origem urbana. Ecoloca-se na posição de alguém que está se empenhando para viabilizar o que agrada a este povo, e elogiao sucesso dos fogos como uma vitória daqueles que contribuíram para que isto acontecesse, sem antesdeixar de fazer uma concessão à vontade da comunidade no tocante ao volume do som: “Mas que houvesabotagem, que o senhor Paulo Albuquerque [ex-representante da associação de moradores], quetrabalhou na festa, denunciou que estava havendo retirada de areia do rio. Que o rodeio vai acontecer emsetembro porque ele negociou e colocou dinheiro seu, que não é a prefeitura, e sim ele que irácomplementar o valor. Que a Sra. Luísa está certa, se a comunidade quiser pode se abaixar o som. Que osfogos foram maravilhosos. Houve uma grande agitação no plenário e foi pedida pela mesa que houvesseordem.”

159

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No trecho da ata da reunião do CG transcrito abaixo, a discussão gira em torno

de uma suposta denúncia, atribuída por Julio Bill ao representante da associação de

moradores, de que os organizadores do rodeio estariam retirando areia do rio para

viabilizar o evento. O secretário de meio ambiente e presidente do CG procura se ater ao

problema concreto da retirada de areia, sem se posicionar a respeito do rodeio em si,

decisão esta que caberia à comunidade. O representante da secretaria de interior, Edson

Aguiar, que fora presidente da associação que se opôs ao processo de implantação da

APA, transpõe a discussão da questão da retirada da areia para o mérito do rodeio. Ele

dá a entender que a acusação de retirada de areia do rio foi motivada, de fato, pelo

repúdio da maioria dos conselheiros ao rodeio, opondo-os ao povo. O presidente do CG

nega a denúncia de retirada de areia do rio e contra-ataca com a acusação de

proliferação de boatos em relação à secretaria de meio ambiente:

“Pedro Paulo [presidente do CG] diz que estava presente na hora da questão da

areia [preparação do espaço para o rodeio], que conversou com o secretário [de

interior], que a areia não foi retirada do rio e que ele se comprometeu a devolver a areia

para onde foi retirada. Diz que é preciso que haja um planejamento mais adequado

dessas festas, se é preciso oito caminhões de areia para se fazer um rodeio, tem que ser

previsto independente da discussão se é válido ou não, não vamos entrar nesse mérito,

isso tem que partir da comunidade, que escolhe o que quer. O senhor Edson Aguiar diz

que quem falou que foi tirada areia do rio é um mentiroso, que ela foi dada pela

proprietária da área. Que sabe que a maioria dos que estão presentes são contra o rodeio,

mas é o que mais o povo gosta, assim como de sertanejo e de fogos. Pedro Paulo

esclarece que não foi dito que foi retirada areia do rio. E que foi falado, lá no dia, que

quem atrasou o rodeio foi a Secretaria de Meio Ambiente. Tem gente que gosta de

produzir esse tipo de desinformação.”

Neste trecho, nenhum dos falantes põe em questão o pressuposto de que não se

pode retirar areia do rio. Ou seja, a necessidade de adotar atitudes compatíveis com o

que é definido como ambientalmente correto não é posta em dúvida, tampouco a

definição de que a retirada de areia do rio causa danos ao meio ambiente153.

153 Em outros momentos, surgiram críticas à inadequação do rodeio aos critérios da proteção da natureza,como quando um monitor do Grupo Germinal questiona os maus tratos aos animais. Julio Bill, como nocaso da areia retirada do rio, formula uma resposta que reafirma a adequação do rodeio às normas. Ouseja, não é posto em discussão o paradigma ambiental: “O Sr. Julio Bill diz que o som alto no rodeio étradição, e que é assim que acontece em todo o país. Os cavalos, como choveu e a estrada estava empéssimo estado, chegaram machucados e estressados e só aconteceu o rodeio no sábado, de formaimprovisada, devido ao número de pessoas que estavam esperando pelo evento. O Sr. Carlos Gustavo, do

160

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Num outro momento da mesma reunião, no entanto, Julio Bill chegou a

questionar o paradigma da preservação ambiental, e até mesmo a escolha do que seria

objeto da preservação e de quais as medidas mais adequadas para realizar esta

preservação. Suas colocações, neste momento, causaram desordem da plenária e foi

necessária a intervenção do presidente do CG para organizar a polêmica, como aparece

no trecho da ata transcrito abaixo:

“O Sr. Rafael, do Grupo Germinal, fala que além da altura do som, existe a

incompatibilidade do uso de fogos. Sr. Bianco, biólogo da [secretaria de meio ambiente]

diz que é uma agressão a fauna. Julio Bill ironiza dizendo que as aves estavam nos altos

dos morros dormindo. [presidente do CG] pede que o Sr. Julio Bill encerre a sua fala,

pois está incitando a plenária.”

Desta vez, Julio Bill chega a esboçar uma contestação do argumento de caráter

ambiental quanto ao uso de fogos, minimizando o seu efeito sobre a fauna, de forma

irônica. É interessante notar o aposto atribuído a Bianco pelo relator da ata – “biólogo”

da secretaria de meio ambiente. Em diversas outras atas, Bianco figura apenas como

“representante” desta secretaria. A referência à sua formação profissional parece querer

ressaltar o caráter “técnico” do argumento ambiental. A ironia do fazendeiro provoca

balbúrdia na reunião, pois ele chega perto de discordar do paradigma ambiental

raramente posto em discussão.

Ao final de sua fala, Julio Bill verbaliza um outro projeto para o distrito, que

incluiria medidas para trazer um outro tipo de turismo, “de classe média alta”, através

de eventos bastante diferentes daqueles que usualmente são pensados para a localidade

– shows de bandas de forró e reggae associados a cachoeiras e trilhas durante o dia. Ele

associa estas possíveis mudanças ao crescimento do Lima e ressalta sua vocação para

tanto. E coloca as restrições de ordem ambiental como algo que estaria “prendendo”,

“segurando”, “travando” este crescimento. Ou seja, ele apresenta um outro projeto para

a localidade, que talvez pudesse ser mais do agrado de uma grande parte da população

local que, no entanto, não parece ter tomado parte, até então, das discussões em torno da

implementação da unidade de conservação. No trecho abaixo, tornam-se claras as

divergências entre os ambientalistas locais e Julio Bill, expressando a opinião de outros

setores da população, em termos dos seus projetos para a localidade:

Grupo Germinal, interrompe, fazendo a observação que, mesmo estando os animais machucados eestressados, aconteceu o rodeio. O Sr. Julio Bill informa que os animais foram vistoriados peloveterinário que estava presente e liberados para atuação.”

161

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“Pedro Paulo [presidente do CG] diz ser esta uma discussão que precisa ser

aprofundada, frisa que isto aqui é do Conselho da APA do Lima e que o Sr. Julio Bill

que representa uma entidade de fato, porque de direito ainda não sabemos, está aqui

fazendo pronunciamentos contra o processo da APA dizendo que estamos segurando o

Lima. Esclarece ao Sr. Julio Bill, que está pleiteando vaga no Conselho, que este é um

fórum para se discutir a APA do Lima e que não pode ter aqui dentro posicionamentos

contrários a esse processo. Que ao final da reunião será colocado a questão do seu

ingresso. Nosso desafio aqui é igual a de qualquer lugar do País, o de como se adaptar a

legislação ambiental que existe e tem que ser cumprida, não adianta querer botar a

legislação de lado porque não bota. APA é uma unidade de conservação de uso

sustentável, não é de proteção integral, então é pensamento das pessoas que compõem o

Conselho Gestor que é preciso o desenvolvimento, ninguém quer parar o Lima nem

obstruir os processos.”

O presidente do CG reage, afirmando o imperativo do paradigma da conservação

ambiental e a consciência dos conselheiros a respeito da necessidade do

“desenvolvimento”, colocando em xeque a aceitação de Julio Bill como representante

da associação comercial e agropastoril no CG. Ou seja, posicionamentos críticos serão

aceitos até o limite de não colocarem em questão o paradigma da conservação

ambiental. Conseqüentemente, a discussão só é possível em torno das medidas

concretas adotadas para implementar a conservação, revestida de um caráter “técnico”.

Outro ponto a ser destacado, que permeia todo o processo de aplicação de

medidas ambientais no distrito do Lima, e, como tal, está presente nas discussões sobre

a festa, é o papel da “denúncia”. Mais especificamente, a denúncia de crime ambiental,

estimulada pelos criadores da APA, é percebida de forma bastante antipática pela

população. Assim, ao mesmo tempo em que pode ser usada como uma arma em

disputas locais, sejam elas de ordem pessoal ou coletiva, a acusação de ter realizado

uma denúncia faz com que o acusado de tê-la feito seja considerado um traidor.

No trecho abaixo, o representante da associação de moradores, Paulo

Albuquerque, que tentara adentrar as relações de poder locais com um discurso a favor

do “homem do campo”, procura livrar-se da acusação de ter atrapalhado o rodeio

através da realização de uma denúncia:

“O Sr. Paulo Albuquerque pede a palavra, para responder a acusação feita pelo

Sr. Julio Bill de que estaria sabotando o rodeio, denunciando a retirada de areia. Diz que

não denunciou nada porque não faz esse papel e que o motorista do trator conversou

162

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com ele e disse estar apreensivo quanto a que atitude tomar, porque poderia ser

responsabilizado pôr (sic) qualquer atitude lesiva ao meio ambiente, que chamou Pedro

Paulo [presidente do CG] não com a intenção de denunciar, mas sim de viabilizar o

evento. (...) Que o que fez foi tentar resolver o problema com o mínimo de impacto.

Pedro Paulo diz que orientaram como fazer corretamente e diz que denunciar agressão

ambiental é um dever de cidadania. E que em momento algum houve a intenção de

obstruir nada.”

O presidente do CG reitera a intenção de viabilizar o evento, ao invés de obstruí-

lo. E reafirma o postulado da conservação ambiental, colocando a “denúncia de

agressão ambiental” como “dever de cidadania”. Ou seja, o secretário procurou

desconstruir a interpretação daqueles que fazem denúncias como traidores.

Num outro momento, no entanto, a denúncia de crime ambiental é utilizada pelo

próprio Julio Bill, para defender-se. Isto ocorreu ao final da plenária, quando foi tratada

a inclusão de novas entidades no CG. A vaga da associação do Alto da Vitória estaria

assegurada. Já a cadeira da associação comercial ficaria “suspensa” “até que se faça

revisão do Conselho ou até que se resolva a questão [na procuradoria do município]”. O

presidente do CG, então, coloca na berlinda a aceitação de Julio Bill como representante

da associação comercial. Para isso, ressaltou um artigo do regimento que diz que:

“O representante tem que ter comprometimento com o meio ambiente, então

que suas posições ter que estar muito claras em relação à defesa ambiental e a defesa da

APA do Lima, que o ouviu fazer alguns comentários bastante preocupantes. Que este

fórum é para gerir a APA do Lima, então não tem cabimento ter uma associação aqui

representada pôr (sic) uma pessoa que é contra os princípios da APA. Que não adianta

querer vir para cá querendo destruir a APA ou coisa parecida. Julio Bill então diz que o

Bianco não poderia estar aqui porque abriu uma área grande e botou fogo, que do sítio

dele dá para ver e que tem o Dom José como testemunha. Bianco desmente.”

Deste modo, o presidente do CG, mais uma vez, reafirma o imperativo da

conservação ambiental no território do distrito, tratado como APA, como um limite para

as contestações de quaisquer setores da população. Diante disso, Julio Bill reage com

uma denúncia contra o representante da secretaria de meio ambiente e proprietário de

um sítio no Vale das Águas, que, pelo mesmo raciocínio, não poderia integrar o CG. Ou

seja, ele deixa de contestar o postulado ambiental para movimentar-se dentro das regras

estabelecidas por ele. Assim, utiliza a denúncia de crime ambiental para defender-se.

163

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Feita a “lavagem de roupa suja” da festa, o conflito entre moradores liderados

por Julio Bill e o CG da APA veio a se atualizar em casos de licenciamento de pequenos

empreendimentos locais – especialmente uma oficina mecânica e um lava a jato -,

paralisados pela fiscalização da secretaria de meio ambiente.

Depois da plenária que versou sobre o rodeio, presenciada por muitos

moradores, ganharam força, novamente, percepções da APA como cerceadora das

atividades da população local.

Na reunião do CG que se seguiu àquela sobre a festa do distrito, destaca-se o

posicionamento do presidente do CG no sentido de desconstruir uma possível imagem

negativa da APA para a população. Esta reunião, de setembro de 2005, teve como um

dos pontos de pauta o “Controle e exame dos processos de projetos do Lima em

tramitação na Prefeitura”. Na ocasião, o presidente do CG esclareceu que “nem todos os

processos estão sendo analisados aqui, alguns estão sendo enquadrados diretamente

dentro da legislação, para o Conselho só são encaminhados os processos polêmicos que

precisam ser discutidos. E não é porque é APA, mas todos os projetos de reforma ou

construção precisam ter autorização.”

Em seguida, os proprietários de um lava a jato e de uma oficina mecânica recém-

inaugurados, cujo funcionamento havia sido paralisado pela fiscalização da secretaria de

meio ambiente, pedem autorização para continuar suas atividades. Eles são orientados

quanto às medidas necessárias para se adequarem à legislação e recebem, por

unanimidade, autorização para continuar funcionando enquanto se enquadram nas

condições previstas, num prazo de sessenta dias. Julio Bill, como engenheiro, se dispõe

a elaborar os projetos para ambos os empreendimentos. O presidente do CG acrescenta

que “depois que estiver pronto vai lavar todos os carros inclusive os da Prefeitura, e que

quando a fiscalização pegar alguém lavando carro no meio da rua poderá dizer que não

e encaminhar ao lava a jato”, procurando demonstrar que basta que a população se

ajuste às regras para se beneficiar dentro da APA.

Até o presente momento, o distrito do Lima não é atendido por serviço de

telefonia móvel. No segundo semestre de 2005, duas operadoras iniciaram a instalação

de antenas na localidade, mas sofreram embargo da secretaria de meio ambiente. Sobre

isto, o presidente do CG informou: “não é por ser APA mas sim porque iniciaram a obra

sem abrir processo nenhum, atropelando a legislação, sem autorização da Prefeitura.

Não havia nenhuma outra possibilidade que não fosse o embargo da obra pois foi um

desafio a lei sem precedente, não sendo admissível que isso aconteça principalmente

164

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dentro de uma Área de Proteção Ambiental, onde existe restrições.” Uma das

operadoras, em junho de 2006, havia cumprido as exigências e estaria apta a se instalar,

enquanto que a outra permanecia irregular e paralisada.

Houve reclamações da população, que esperava dispor em breve da telefonia

móvel. E muitos demonstraram solidariedade ao proprietários dos terrenos onde seriam

instaladas as antenas, produtores rurais idosos que se beneficiariam com um vultoso

aluguel. Diante dos embargos e paralisações, que desagradaram parte da população, o

presidente do CG “faz um apelo a todos aqueles que compreendem a necessidade desse

fórum estar continuando, compreendem a necessidade da proteção ambiental que por

favor não estimulem a desinformação que o meio ambiente é restritivo, diz ser normal

isso acontecer, que colaborem porque é para o bem de todos e não para o bem de um

grupo ou outro.”

No caso da instalação dos empreendimentos mencionados, portanto, houve uma

preocupação por parte do CG em minimizar o caráter restritivo das leis ambientais aos

olhos da população, e tentativas de desvincular estas restrições da APA, informando que

se trata de uma legislação aplicável a qualquer parte do território, não só em unidades de

conservação. E em demonstrar a viabilidade dos empreendimentos, desde que

atendendo a determinadas exigências, acrescentando que as atividades regularizadas

seriam beneficiadas. Todos estes posicionamentos foram pensados em resposta à

generalização dos comentários sobre os embargos, paralisações e autuações como

proibições às atividades da população e à ampliação da infra-estrutura no distrito que,

segundo alguns dos ambientalistas locais, eram insuflados pela mobilização liderada

por Julio Bill.

2.3 A fazenda agroecológica

O caso da Fazenda de São João, na qual começou a ser desenvolvido um projeto

de “agroecologia”, produtos “orgânicos” e “recuperação de áreas degradadas”, revela

outras dimensões de conflito - desde a competição entre diferentes projetos para o

espaço e os recursos até a disputa entre diferentes formas de compreensão e previsão

dos mecanismos e processos naturais, apoiadas em conhecimentos construídos de

maneira diversa, e tratadas no âmbito das reuniões do CG como questões “técnicas”.

O projeto da Fazenda São João foi apresentado ao CG ao final de 2005. O antigo

representante da secretaria de agricultura, Antônio Jardim, engenheiro agrônomo,

assumiu o projeto como responsável técnico, enquanto o secretário executivo do CG,

165

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Matheus, informou estar fazendo a “consultoria ambiental”. Antônio Jardim explicou

que “a primeira preocupação foi só atuar nas capoeiras ralas, com roçadas simples e

brandas respeitando todos os arbustos encontrados, para estar se implantando um

sistema agroflorestal, respeitando-se todas as APPs154, não utilizando nenhum tipo de

herbicida, nem adubação química, gerando trabalho para a comunidade. Transformar

essa propriedade numa unidade demonstrativa de manejo consciente.”

Nesta ocasião, Julio Bill perguntou como seria escoada a produção, e Antônio

Jardim respondeu que a estrada seria pensada posteriormente. Dois moradores

levantaram questões a respeito do pressuposto do agrônomo de que “a partir do

momento que se recompõe a cobertura vegetal se propicia a maior absorção da água da

chuva pelo solo e conseqüentemente se terá aumento de volume, vai ser abastecedora de

água e a partir do momento que se exclui qualquer agroquímico vai ser uma

conservadora da qualidade natural das águas do Lima”. Um deles, proprietário de um

camping próximo à fazenda, na região da Nascente, se preocupa com o volume de água

a ser gasto na produção. O outro, João Santana, residente nas proximidades da fazenda,

defende uma tese oposta à do agrônomo, de que “teria que se ter cuidado com o plantio

de muitas árvores pois poderia interferir no volume de água do rio”.

De acordo com a ata, a observação deste morador tornou o “clima polêmico” e

houve uma intervenção do presidente do CG para que “assuntos de natureza técnica

sejam discutidos posteriormente”. A posição defendida por João Santana surgiu com

freqüência nas entrevistas com produtores e trabalhadores rurais. Contrapondo-se a

medidas adotadas para reflorestar nascentes, com o objetivo de aumentar o volume dos

rios, a população de origem camponesa local acredita que as árvores plantadas “sugam”

a nascente e contribuem para secar os riachos. Este caso, surgido na reunião do CG,

revela diferentes formas de apreensão e previsão dos mecanismos naturais. O saber dos

ambientalistas, apoiado numa visão científica, construída sobre suposições da Biologia

e da Geografia, contrapõe-se ao saber dos agricultores, construído a partir da lida

quotidiana com os recursos da natureza. A contestação pública do saber dos

especialistas põe em jogo o paradigma ambiental sobre o qual se funda a implementação

da unidade de conservação. Por isso, a discussão é encerrada pelo presidente do CG

como inadequada para aquele momento.

154 Área de Preservação Permanente. Inclui as áreas de nascentes, matas ciliares e áreas com inclinaçãosuperior a 45º.

166

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A polêmica sobre a Fazenda São João ressurgiu nas reuniões do CG a partir de

junho de 2006. Primeiramente, foram trazidos à tona os problemas gerados pela

construção de uma estrada para escoar a produção da fazenda. A questão foi trazida à

baila em tom de provocação pelo “morador” João Santana, estabelecendo uma

comparação com o caso da estrada construída para instalação da antena da CLARO,

embargada pela secretaria de meio ambiente, ao contrário da estrada desta fazenda.

Três pessoas saem em defesa da impessoalidade da fiscalização, mostrando que a

diferença entre os dois casos é que a fazenda apresentou pedido de autorização e

projeto, enquanto que a operadora não. João Santana, ao estabelecer a comparação,

expressou publicamente a interpretação de muitos moradores a respeito das restrições

ambientais. Para ele, a fiscalização obedeceria a critérios pessoais e políticos. Por isso, o

projeto da fazenda São João, implementado por pessoas ligadas ao grupo que criara a

APA, estaria imune às proibições, enquanto que a instalação de antenas de celular, que

beneficiaria moradores de origem camponesa pelo aluguel de suas propriedades, não

gozaria destes privilégios.

Mais dois moradores criticam a construção da estrada da Fazenda São João. O

representante da associação de moradores da Nascente demanda uma ação emergencial,

uma vez que “mesmo antes da abertura da estrada um grande volume de água desce da

grota (...) e invade as casas e com os cortes feitos esse fato tende a se agravar.” Fica

decidido que será marcada uma reunião com o técnico responsável pela obra, Antônio

Jardim, e fiscalização no local, devendo o laudo da vistoria ser apresentado na próxima

reunião.

Na reunião seguinte, é feita a leitura de um documento encaminhado pela

associação da Nascente que manifesta preocupação “com deslizamentos de terra no

período das chuvas que poderá atingir as casas abaixo da estrada”. O representante desta

associação mostra fotos em DVD tiradas das casas alagadas devido a fortes chuvas.

Diante disto, o responsável pelo projeto desvela uma série de explicações a respeito de

como foi feita a obra obedecendo aos parâmetros ecológicos:

“Antônio Jardim, representante da Fazenda, diz que tem total conhecimento do

problema e respeita a preocupação da comunidade que mora abaixo da grota e já

passaram por momentos difíceis. A situação mostrada se deu antes do início do projeto.

O tamanho da estrada a princípio assusta, mas foi toda feita em curva de nível. Estando

em nível a água não escoa. Todas as estradas estão recebendo plantio de espécies

florestais de crescimento rápido e raiz pivotante que servem para fixar o solo. A

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principal medida que vai minimizar o problema é a aração feita em todo o alto do morro

que circunda a grota, feita com tração animal, respeitando as curvas de nível. Esse solo

era totalmente coberto por pastagens que não absorviam nem um por cento da água com

qualquer quantidade de chuva. Hoje, acredita, vai absorver oitenta por cento. Diz que

são essas ações que o tranqüilizam em relação as preocupações da comunidade. (...) Diz

que é um projeto aberto e que quem quiser pode ir visitar, e que é preciso entender o

conjunto das medidas que foram tomadas. Em qualquer pastagem com situação

semelhante quando chove vira uma cachoeira. Foi tirada a compactação do solo causada

por anos de pisoteio animal. O objetivo do projeto é justamente trazer progresso,

apresentar uma proposta de exploração econômica.” (Ata de Reunião Ordinária do

Conselho Gestor – Setembro/2006)

Alisson Mauta, representante da associação da Nascente, procura deixar claro

que não se trata de uma disputa política, mas do fato de que alguns moradores estariam

em situação de risco: “a preocupação da comunidade não é com a estrada nem com o

projeto, que são a favor do progresso, mas que não traga risco para as pessoas”. A

associação da Nascente se fortalecera recentemente com uma nova diretoria formada

por moradores de origem camponesa. Contribuiu para o seu fortalecimento a união em

torno dos problemas dos moradores afetados pela construção daquela estrada. Assim, o

presidente da associação procura enfatizar as pressões sobre os problemas locais.

Já Julio Bill intervém, de início, com uma discussão “técnica”, que resvala para

um tom de denúncia:

“Julio Bill diz que em reunião no ano passado perguntou ao engenheiro Antônio

Jardim como seria escoada a produção da fazenda e ele respondeu que em outro

momento isso seria visto. Pergunta qual o ângulo de inclinação do talude na subida da

estrada que beira a mata. Antônio Jardim diz que varia de acordo com a situação do

terreno, que tem quarenta e cinco, cinqüenta graus. Julio Bill diz que tem mais de

noventa. Antônio Jardim rebate dizendo que ficou com mais de noventa com o aterro

colocado em cima. Julio Bill diz ter fotografias que mostram o caos que fizeram naquela

estrada, árvores arrancadas para todo lado. Diz que não vai mostrar para evitar maiores

confusões e quem quiser ver que o procure mais tarde. Menciona o fato de estarem

fazendo uma grande plantação de cipó do Santo Daime e que isso não está sendo dito.

A intervenção de Julio Bill vai no sentido de reafirmar seu posicionamento de

falar em nome dos interesses da população e contra os projetos, oficiais ou não, dos

ambientalistas locais para o território do distrito. A crítica é feita tanto à adequação da

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construção da estrada aos critérios de engenharia e aos próprios critérios ambientais,

quanto à utilização do terreno para cultivar uma planta usada em cerimônias religiosas

que, se ocorrem no distrito, certamente são promovidas por moradores de origem

urbana, alguns deles atuantes no ambientalismo local. Ou seja, ele procura polarizar a

discussão e reforçar a clivagem entre a população e os implementadores da APA. Para

isto, utiliza o tom da denúncia, movimentando-se sob as regras do jogo introduzidas

pelos próprios ambientalistas e reconhecidas como válidas.

O representante da empresa municipal de agricultura, Dalton, rebate com elogios

à parte agronômica do projeto e com a denúncia de uma suposta invasão às instalações

da fazenda. Ou seja, a acusação de cultivo do dito cipó não foi respondida, o contra-

ataque consistiu também numa denúncia, de invasão da fazenda e danos às suas

instalações.

Na reunião seguinte, o representante da associação da Nascente encaminha um

laudo da defesa civil. “Alisson Mauta pede que os serviços apontados no laudo sejam

feitos com a maior brevidade possível, haja vista que os moradores em noites de chuva

têm deixado suas residências por medo que as enxurradas voltem a acontecer e relata

estar havendo problemas, pela movimentação de terra, em manancial que abastece

algumas casas próximas à fazenda.” O presidente do CG, Pedro Paulo, fica de enviar a

fiscalização ao local, mediante pedido formal de vistoria a ser entregue pela associação

da Nascente.

Em síntese, o conflito em torno da questão da Fazenda São João parece se

desenvolver em diferentes níveis. Em primeiro plano, encontram-se os moradores que

têm suas casas inundadas quando há chuva forte e que atribuem esta situação à

construção da estrada para escoar a produção da fazenda. Em contraponto, o

responsável técnico, antigo membro do CG, presta esclarecimentos “técnicos” e explica

como os procedimentos ecologicamente corretos adotados resolverão os problemas da

comunidade da Nascente. Enquanto isso, representantes do CG procuram demonstrar

preocupação com os moradores e eficiência no encaminhamento da fiscalização, mesmo

se tratando de um projeto no qual tomam parte membros e ex-membros do próprio CG,

ou seja, um projeto que, dentro das relações políticas vigentes, seria apadrinhado pelos

membros do CG.

Num outro nível, há uma politização do conflito, com Julio Bill “tomando as

dores” da população atingida e aproveitando para denunciar supostos erros de

engenharia e utilização da fazenda para objetivos não externados à população, como o

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cultivo de um cipó utilizado em cerimônias religiosas, ao qual são atribuídas

propriedades alucinógenas155. A resposta acontece sob a forma de denúncia de invasão

da fazenda, encaminhada pelo representante da empresa municipal de agricultura que

fora representante da associação da Nascente no mandato anterior do CG. E de elogios

ao projeto formulados por diferentes membros da plenária. Ou seja, há uma

preocupação em defender o projeto da Fazenda São João, pensado como modelo de uso

sustentável do espaço e dos recursos, e implementado por ex-membros do CG, que não

pode ser assumida pelo CG enquanto instituição, vide as colocações do presidente, mas

é expressa pelos membros da plenária mais próximos aos membros diretamente

envolvidos no projeto, sob a forma de colocações individuais. Era preciso defender o

projeto sem abalar a impessoalidade e imparcialidade do CG.

2.4 – As cachoeiras: quem vai reinar no paraíso?

A disputa em torno do Vale das Águas, a região das cachoeiras, precede o

processo de implementação da APA. Como vimos, as primeiras pessoas da cidade que

chegaram ao distrito em busca de “natureza” encontraram sua expressão mais plena nas

cachoeiras do Vale das Águas. Logo a maior parte das propriedades foi mudando de

mãos e o solo foi sendo parcelado, para atender às demandas por natureza, das pessoas

vindas da cidade. Os lavradores que habitavam e produziam no vale foram buscando

novas propriedades, no distrito e em regiões próximas, para se estabelecerem como

meeiros, enquanto outros abandonavam suas lavouras e partiam à procura de empregos

e sub-empregos nas cidades. Alguns permaneceram, empregando-se nas propriedades

dos neo-rurais, freqüentemente como “jardineiros da natureza”156.

As cachoeiras continuaram atraindo pessoas da cidade, como visitantes

ocasionais – os turistas, e, aos poucos, foram se tornando um símbolo da natureza do

Lima. Na década de 90, como foi visto ao longo desta tese, começou a haver uma

mobilização cada vez mais sistemática em prol dos cuidados com as cachoeiras do Vale

das Águas, que deu origem a idéias e ações voltadas para a transformação do lugar em

área protegida. Como foi exposto, estas iniciativas contribuíram significativamente para

que todo o território do distrito viesse a ser transformado em Área de Proteção

Ambiental.

155 A planta não é ilegal, desde que utilizada em contexto religioso. Mas apresenta restrições. Porexemplo, para transportá-la, ou o chá feito a partir dela, é preciso autorização do IBAMA.156 Carneiro (2000).

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Com a APA estabelecida, as disputas em torno do Vale das Águas, com

diferentes interesses e projetos para o uso daquele espaço e de seus recursos, passaram a

ser expressas e atualizadas sob a forma de discussões no âmbito das reuniões do CG da

APA.

Primeiramente, é preciso ter em conta o manifesto interesse da ONG

ambientalista local – o Grupo Germinal - na destinação daquela área. A própria

formação desta instituição esteve profundamente imbricada no “trabalho”,

originalmente voluntário, de cuidado com as cachoeiras, que veio a ganhar aspectos

mais profissionais e passou a ser denominado “monitoramento das cachoeiras”.

Atualmente, os monitores das cachoeiras constituem-se na base de membros do Grupo

Germinal que moram no distrito do Lima. Há tanto neo-rurais quanto pessoas de origem

camponesa, predominando os jovens com até 25 anos. O trabalho dos monitores

consiste em orientar os freqüentadores das cachoeiras quanto ao destino do lixo e

quanto ao comportamento a ser adotado nos locais de banho (não remover plantas, não

utilizar cosméticos, etc.), e auxiliá-los em passagens perigosas, prestando o atendimento

de primeiros socorros quando necessário. Os monitores são orientados e coordenados

pelo diretor do Germinal, Matheus, que trata aquele trabalho como uma espécie de

missão pela preservação da área. Muitos monitores mostram-se orgulhosos de seu

trabalho e atuam como voluntários quando a Prefeitura não se compromete com seu

pagamento. E os próprios monitores se encarregam de defender os méritos deste

trabalho nos fóruns da APA, uma vez que se trata, também, de um emprego considerado

bastante aprazível.

Esta atividade funciona como uma vitrine da ONG, diante de turistas e

freqüentadores ocasionais do distrito. São comuns comentários positivos destes

visitantes a respeito da ONG, em função desta atividade. Foi esta ONG quem primeiro

formulou a proposta de transformação da região do Vale das Águas em “parque

natural”.

Estão em jogo, também, os interesses e projetos dos proprietários da região do

Vale das Águas. Destaca-se o peso do posicionamento do proprietário do terreno onde

se situam as principais trilhas de acesso aos locais de banho - Airton Rocha, que

adquiriu a propriedade ao final dos anos 80. Ao longo dos anos, com o aumento

crescente da visitação turística e o desenvolvimento do monitoramento das cachoeiras,

Airton Rocha adotou posicionamentos ora de aliança ora de rivalidade com a ong

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ambientalista local, tendo havido momentos tensos que chegaram a culminar, algumas

vezes, no fechamento do acesso às cachoeiras por parte deste proprietário.

Além destes dois interesses mais evidentes, há que se levar em conta a opinião

dos demais proprietários do Vale das Águas, alguns mais interessados na utilização da

área para o lazer, pois obtêm algum benefício com o turismo, outros mais interessados

na preservação da área, pois a utilizam para o seu próprio desfrute. Entram em cena,

também, interesses dos comerciantes do distrito, diretamente beneficiados pela

freqüência à localidade, em função da utilização daquelas cachoeiras para o lazer.

Autoridades municipais, Corpo de Bombeiros, Guarda Municipal e até o Batalhão

Florestal da PM são frequentemente acionados para arbitrar conflitos que concernem o

uso daquela área. Há, também, os interesses dos próprios freqüentadores, que pretendem

que a área possa ser utilizada para lazer sem impedimentos.

O tema das cachoeiras do Vale das Águas começou a figurar nas atas de

reuniões plenárias do CG no segundo semestre de 2003, quando houve cobranças, por

representantes da ONG ambientalista local, à secretaria de meio ambiente, solicitando o

pagamento, atrasado, dos monitores. Foram ocasiões em que diferentes atores se

manifestaram a respeito da questão, revelando posicionamentos que podem ser

interpretados em diferentes níveis.

A associação de moradores do Vale das Águas co-assinou um dos documentos

que reivindicavam a remuneração dos monitores: “O Sr. Jaime, representante da

[associação de moradores do Vale das Águas] disse que o Vale das Águas está muito

pior do que quando tinha monitoramento e que a área deve ser atendida à noite pois

ouviu gritos de pessoas no último eclipse, a passagem de moradores com moto e a

recente queimada próximo à Pedra do Caju, em que desconfia-se que foi realizada por

turistas”. Ou seja, em nome da preservação da região e da segurança dos próprios

moradores, Jaime se posiciona a favor do monitoramento realizado pelo Grupo

Germinal. Jaime integrava o grupo de ambientalistas locais que liderou a

implementação da APA. A manutenção deste comprometimento explica o apoio à

ONG.

Representantes do segmento religioso e da associação da Nascente apoiaram a

cobrança de pagamento dos monitores, enfatizando a importância da atividade. Ou seja,

manifestaram o seu apoio ao monitoramento do Grupo Germinal. Na fala da

representante da Igreja Católica, o monitoramento é valorizado como um emprego para

os jovens egressos da agricultura: “A Sra. Alcina [segmento religioso] disse que os

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moradores do Lima precisam desse emprego de monitores na cachoeira pois a

agricultura não está mais assegurando-os e que este trabalho se for correto, tanto na sua

forma de pagamento quanto na sua execução, estará sendo gerada uma nova fonte de

renda para os moradores.” Seu discurso expressa a base da aliança da Família Miranda

com os ambientalistas locais, visando compartilhar os benefícios da implementação de

projetos ambientais.

O representante da associação da Nascente, por sua vez, posicionou-se

valorizando o monitoramento, pela prevenção aos efeitos do turismo predatório, e

propôs a extensão do monitoramento à Cachoeira dos Gaturamas, na Nascente, que

começava a sentir estes efeitos. Sua fala foi no sentido de cativar o ambientalismo local

a estender os benefícios da implantação de projetos ambientais à região da Nascente,

através da associação.

Já o secretário executivo do CG, Bianco Schmidt, e os representantes da

associação de moradores do Lima, Paulo e Lena, questionaram a qualidade do

monitoramento. O casal Paulo e Lena, que, durante o ano de 2004, conquistou a

representação da associação de moradores no CG, procurava estabelecer uma distinção

entre a sua atitude e aquela dos demais conselheiros, coerentes com a maneira pela qual

vinham se posicionando em outras questões tratadas no CG. O secretário executivo, por

sua vez, ressentia-se das recentes críticas à sua atuação no cargo, lideradas pelo

representante do Grupo Germinal.

Seus argumentos foram contestados pelos próprios monitores presentes à

plenária. “Bianco [secretário executivo] disse que o grupo não está preparado e

capacitado para assumir a monitoria das trilhas. (...) A Sra. Lena [associação de

moradores] preocupa-se com a postura e apresentação dos monitores com o turista.” Em

resposta, Otílio, “morador do Lima e integrante do grupo de monitoramento das

cachoeiras, disse que no grupo haviam pessoas capacitadas e até mesmo os nativos do

Lima que trabalhavam no grupo e que não tinham muito estudo, realizavam bem o

trabalho e o que parou mesmo o grupo foi a falta de verba para pagamento dos

monitores.” Otílio, dirigindo-se a um público formado em sua maioria por neo-rurais,

trata a população de origem camponesa local como nativos, acionando categoria

utilizada pelos ambientalistas locais quando discutem entre si a implantação de medidas

ambientais, e pelos moradores de origem urbana de uma maneira geral. Como monitor

do Germinal, e nativo, ele encampa a visão dos neo-rurais de que a população local tem

pouca escolaridade, mas ressalta a capacidade dos nativos de trabalharem bem apesar

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desta diferença, assim como a qualidade do trabalho de monitoramento como um todo.

Alinhando-se ao posicionamento da ONG, atribui as dificuldades à parte que caberia à

secretaria de meio ambiente, ou seja, o pagamento do grupo de trabalho.

Ao final do ano, o proprietário do terreno estrategicamente mais importante do

Vale das Águas, sob o ponto de vista turístico, Airton Rocha, solicitou medidas

imediatas de construção de instalações sanitárias e monitoramento, caso contrário

fecharia o local, proibindo o turismo. No início do ano seguinte, foi firmada uma

parceria entre a secretaria de meio ambiente e a ong ambientalista local para realização

do monitoramento. Ou seja, a secretaria se comprometeu em remunerar os monitores.

No entanto, quanto à reivindicação por instalações sanitárias, permanecia um impasse.

A secretaria de meio ambiente recusava-se a realizar investimentos em propriedade

particular. Para obter as construções, foi sugerido a Airton Rocha que encaminhasse um

projeto em nome de uma instituição, que poderia ser, por exemplo, o Grupo Germinal

ou a associação de moradores do Vale das Águas. Ou seja, ele precisava associar-se aos

ambientalistas locais.

Quando foi anunciada a parceria entre a ONG e a secretaria de meio ambiente, o

representante da ONG solicitou cursos de capacitação para os monitores do grupo e

“lembrou a necessidade de futuramente se construir estruturas maiores, como banheiros,

etc.”. Com esta solicitação, fica demonstrada a preocupação dos membros da ONG com

a preservação do local, mesmo que o problema da remuneração dos monitores e

continuidade do “trabalho” tenha sido aparentemente solucionado. Ou seja, ao contrário

do que Airton Rocha freqüentemente sugeria em relação ao Germinal, acima do

interesse de trabalhar remuneradamente no monitoramento das cachoeiras, havia a

preocupação com o cuidado com a região.

Ao que parece, estas medidas não vieram a se concretizar e, em março de 2005,

problemas relacionados à área das cachoeiras voltaram a figurar entre os assuntos

tratados pelos conselheiros nas reuniões do CG. Depois de um carnaval de chuvas

torrenciais e queda de barreiras nas estradas serranas, o Corpo de Bombeiros emitiu um

laudo, sugerindo a interdição das cachoeiras pela Prefeitura, “até que se tenha condições

mínimas de segurança a seus freqüentadores”157,

157 No laudo, são especificadas diversas necessidades a serem atendidas: “1 – Guarda-Vidas; 2 –Monitoramento acima da cachoeira em caso de chuvas; 3 – Posto Médico (médico/enfermeiro); 4 –Viatura para transporte de acidentados; 5 – Maca para transporte de acidentados; 6 – Preservação do MeioAmbiente; 7 – Banheiros; 8 – Controle do número excessivo de banhistas; 9 – Estrutura com cabos deaço, acesso a pontos superiores e segurança do banhista; 10 – Proibição de armações de barracas asmargens do riacho, reservado aos campings.”

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Diante disso, o presidente do CG coloca que a secretaria de meio ambiente não

tem condições de proceder, sozinha, a interdição das cachoeiras. A postura do secretário

foi a de não encampar o fechamento das cachoeiras, como solicitava o proprietário

Airton Rocha, apoiado no laudo do Corpo de Bombeiros, sob o argumento de que tal

medida não seria de sua competência. Assim, ele se compromete a acionar as

“autoridades competentes” e a fazer a parte que lhe caberia: “precisamos nos preparar

para a Semana Santa, iremos tentar colocar aqui os salva-vidas, ver da viabilidade da

colocação de banheiros químicos, o apoio dos técnicos da [secretaria de meio ambiente]

para ajudar no monitoramento, e a guarda municipal no que diz respeito ao poder

público municipal assim de uma forma geral, pois sabemos que abusos acontecem.”

Entre a primeira e a última fala do presidente do CG, que deixam claro que a

secretaria não vai fechar o acesso às cachoeiras, como solicitava o proprietário e temiam

os comerciantes e os monitores da ONG, diversas pessoas se pronunciaram, em defesa

de diferentes interesses e idéias, declarados ou não.

A representante do Grupo Germinal leu um documento, entregue pela ONG ao

Ministério Público, no qual solicitam “que se faça respeitar o direito de uso da área de

‘interesse público’ compreendida na região das cachoeiras do córrego da Pedra do Caju

e faz observações quanto às necessidades que o laudo aponta”. A postura oficialmente

defendida pela ONG, através de sua representante no CG, entra em conflito com a

intenção do proprietário Airton Rocha, de organizar o turismo naquela região como uma

área privada.

O Sr. Airton Rocha lê carta assinada também pelo co-proprietário de seu terreno

e endereçada ao presidente do CG. Segundo a ata, “pedem apoio para uma série de

medidas que os proprietários pretendem tomar, tendo em vista sempre a manutenção do

patrimônio ambiental e ecológico do Lima. Que a intenção quando compraram foi de

preservá-la e protegê-la e que com o aumento da freqüência está se tornando impossível

mantê-la livre da depredação. Diz que louvam o trabalho feito em parceria com a

Prefeitura mas que está insuficiente para conter a degradação. Que investiram em

cercas delimitando trilhas, e que é preciso dotar a área de condições sanitárias e de

segurança. Solicitam as autoridades competentes o apoio para fechamento, por prazo

indefinido, o acesso as cachoeiras através de sua propriedade. Que durante o

fechamento pretendem tomar medidas práticas que prevêem a construção e manutenção

de banheiros; demarcação definitiva de trilhas a serem utilizadas (com placas

indicativas); a formação de monitores para orientar os visitantes, que gerará cerca de

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vinte empregos diretos, além de dotar a área de infra-estrutura turística. Que após a

abertura será limitado a quatrocentas pessoas por dia, preservando-se sempre o livre

trânsito dos moradores. É intenção também passar a cobrar dos visitantes ingresso de

valor popular, cuja arrecadação será destinada a sustentar o projeto.”

Aqui, delineia-se claramente uma disputa pelo monitoramento das cachoeiras,

realizado há cerca de doze anos pela ONG ambientalista local, atualmente em parceria

com a secretaria de meio ambiente. A ONG se coloca contrária à interdição e pretende

que a área seja considerada como de “interesse público”, acionando neste sentido o

Ministério Público158. Desta maneira, estaria garantida a continuidade do trabalho de

monitoramento das cachoeiras, tratado como o carro chefe das ações da instituição. Já

os proprietários da área em questão, pela qual é feito o acesso aos locais de banho, se

propõem a administrar o local, implementando as melhorias apontadas como

necessárias, mediante cobrança do ingresso. Os proprietários do terreno de acesso às

cachoeiras não chegam a explicitar qualquer intenção de retirar a ONG do

monitoramento, mas expressam a sua intenção de gerir os recursos advindos da sua

exploração econômica, em nome da preservação dos atributos locais.

Como nas disputas analisadas anteriormente, a discussão resvala para a denúncia

de crime ambiental. Neste caso, tanto o Germinal quanto Airton Rocha procuram deixar

clara a sua preocupação com a preservação do meio ambiente na região do Vale das

Águas. Assim sendo, a acusação de corte de árvores para mudança de lugar da principal

trilha de acesso, levantada na plenária por um monitor do Germinal, em tom de

provocação:

“Arthur Pereira, monitor do Germinal, ressalta que se for interditada

definitivamente as cachoeiras o comércio do Lima acaba, que o proprietário fechou a

porteira de acesso às cachoeiras no carnaval, diz que o proprietário não é tão

preocupado assim em preservação pois fez o corte de diversas árvores quando mudou o

caminho de lugar. O fiscal, na época, Sr. Elton diz que constatou o fato, que houve

realmente o corte de árvores no local. Airton Rocha esclarece que aquela é a trilha

original, que foi feito um mutirão em todo o caminho da Pedra do Caju, que existe a lei

158 “A propalada retração do Estado com relação aos assuntos públicos vem acompanhada dessaperspectiva de consolidar a colaboração entre governo e população, (...). Para essa cooperação, a gestãopública vem criando esses poros, como exemplificam os conselhos municipais e os programas de saúdedo trabalhador; e também possui apêndices, na forma de instituições montadas com a pretensão daneutralidade técnica, como é o caso das universidade públicas e de agências específicas de ‘meioambiente’ – Ibama e Feema -, ou neutralidade jurídica, como é o caso do Ministério Público.” (LeiteLopes et alii 2004: 258)

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e a sua defesa foi apresentada à Secretaria de Meio Ambiente e está lá para ser julgada,

foi pedida uma perícia técnica para apurar a veracidade dos fatos”. Deste modo, Airton

se defende da acusação de agressão ambiental sem pôr em dúvida a importância da

preservação, atendo-se a questões tratadas como técnicas – ou seja, o desacordo quanto

à classificação do corte daquelas árvores como crime ambiental.

A acusação é respondida com outra denúncia, desta vez contra o Grupo

Germinal, acusado de incitar a agressão física à pessoa do senhor Airton Rocha, durante

o fechamento do acesso às cachoeiras por Airton durante o carnaval. Quem acionou esta

denúncia, durante a plenária do CG, foi Luísa Paiva, amiga pessoal de Airton e descrita

pela ata como “moradora”. Quanto à interdição das cachoeiras, ela coloca:

“A [secretaria de meio ambiente] teve uma atitude, a Germinal outra. E que

aconteceu um fato muito grave, nesse período de possível interdição ou de

esclarecimento, e que é claro que a comunidade tem que ser ouvida, mas não pode ser

manipulada, que é muito fácil chegar para o comerciante e dizer ‘você está ferrado, vão

fechar as cachoeiras’. Ficou perigoso. Diz que foi isso que o Germinal fez o carnaval

inteiro, pondo em risco a vida, principalmente, do Airton.”

Como no caso de Julio Bill, as divergências chegam ao nível da acusação de

ameaças de agressão física. Desta vez, no entanto, os integrantes da ONG ambientalista

não são vítimas, mas sim acusados de, no mínimo, disseminar boatos que puseram em

risco a sua segurança pessoal. O representante da ONG no CG, Rafael, nega as

acusações e admite ter mobilizado setores da comunidade interessados no

funcionamento das cachoeiras durante o feriado, essencialmente o comércio, para unir-

se à ONG num posicionamento contrário à interdição.

Diante de um impasse, com acusações de ambos os lados, o presidente do CG

coloca a possibilidade de transferir o monitoramento do Germinal a outras cachoeiras

do distrito, reafirmando a manutenção da “parceria” entre a ONG e a secretaria de meio

ambiente. Três diretores da ONG saem em defesa do monitoramento no Vale das

Águas. O representante da ONG no CG, Matheus, valoriza a possibilidade de

“expansão” do monitoramento a outras regiões e dispõe-se a continuar no Vale das

Águas, em “parceria” com a secretaria e com os proprietários. Leonardo Giovannini

sugere que o projeto dos proprietários seja “analisado coletivamente” e defende o

monitoramento como estratégia de controle do turismo. Gustavo Maccachero expressa

reconhecimento pelo direito dos proprietários de usufruir economicamente da região,

mas coloca que outros proprietários do Vale das Águas também têm o direito de

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reivindicar a preservação da área. Neste sentido, valoriza o monitoramento como de

“reconhecimento público” e atribui os acidentes, como o que motivou a vistoria do

Corpo de Bombeiros, à imprudência dos banhistas. Acrescenta que o laudo interdita o

banho, mas não o acesso às cachoeiras. Diante do impasse com o proprietário Airton

Rocha e da proposta de retirada do Vale das Águas encaminhada pelo presidente, a

postura do Germinal passa a ser a de propor uma “parceria” para a gestão da área. Deste

modo, as colocações dos membros da ONG já parecem mais flexíveis do que a postura

adotada no início da plenária, com base no documento encaminhado ao Ministério

Público, no qual a área é tratada como “de uso público”.

O proprietário Airton Rocha nega ter alguma vez recusado a “composição” com

a ong e coloca a sua intenção de, apenas, melhorar as condições de trabalho da

instituição. E não deixa de chamar a atenção para os incidentes apontados por Luisa.

Ou seja, diante da recusa da secretaria de meio ambiente de implementar a

interdição das cachoeiras e da reafirmação do convênio com o Germinal para o

monitoramento, ao mesmo tempo em que o direito de exploração econômica pelos

proprietários foi reconhecido, tanto Airton Rocha quanto o Germinal, naquele momento,

terminaram por aceitar uma “parceria”.

A plenária seguinte ocorreu em maio, dois feriados após a reunião anterior

(Semana Santa e Tiradentes). O tom do pronunciamento do presidente do CG e

secretário de meio ambiente foi de avaliação positiva em relação ao resultado das ações

implementadas nos feriados, não só para a área do Vale das Águas. Entre um feriado e

outro, houve uma reunião do secretário com a associação de moradores, na qual foram

pensadas mais ações emergenciais. O presidente se refere aos feriados de uma maneira

geral: “que foram feitas placas para as cachoeiras; (...) quanto a questão da interdição,

que não foi decretada e sim informada através de placas que as cachoeiras estavam

impróprias para banho, que havia perigo e que se alguém se aventurasse seria tentativa

de suicídio, resguardando assim o proprietário e o poder público de serem acusados por

omissão. Diz que o trabalho funcionou que entraram com a guarda municipal, com o

Corpo de Bombeiros, mobilizaram uma série de outras forças, de parceiros, que atuaram

em conjunto: o Batalhão Florestal esteve presente o tempo todo, o Corpo de Bombeiros

treinou Guardas-Vidas para atuarem nas cachoeiras, e estiveram presentes nos dois

feriados. O Portal funcionou com o apoio, fundamental, de voluntários da

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comunidade159 para ajudar o pessoal da [empresa municipal de turismo] no

cadastramento dos visitantes e na distribuição de folhetos. Que cada feriado agregamos

novas ações. Na Semana Santa o foco foram as cachoeiras e no feriado seguinte a

questão dos ambulantes e do ruído.”

A questão das cachoeiras só voltou a provocar discussões em reuniões do CG em

abril de 2006, depois de um feriado de Semana Santa em que monitores da ONG

ambientalista trabalharam voluntariamente nas cachoeiras, uma vez que o pagamento

pela Prefeitura estava suspenso. O proprietário Airton Rocha, mais uma vez, queixou-se

de que nada estava sendo feito desde a sua última solicitação de interdição, no início de

2005. Propôs novamente a interdição e pediu que fosse concedida licença para

construção de banheiros, requisitada há mais de um ano. O presidente do CG,

novamente, solicita projeto por escrito com propostas claras. Que poderia ser em nome

da associação do Vale das Águas, “pois fica difícil para o poder público injetar recursos

em propriedade privada”. Para ele, “soluções precisam ser apresentadas tipo entregar

toda faixa marginal da área das cachoeiras para a Prefeitura desapropriar e assumir

como Parque Municipal ou é uso particular mesmo que se quer como em vários lugares

do País. Cita a cidade de Bonito como exemplo, referência em ecoturismo no Brasil,

onde todas as propriedades são privadas e funcionam perfeitamente. Que vem

sinalizando no sentido de que os proprietários, não só do Vale das Águas, mas como das

demais cachoeiras organizem a visitação.” Ou seja, o secretário deixa bem claro que só

serão investidos recursos na região se a mesma passar para o controle do governo

municipal.

Quanto ao trabalho de monitoramento das cachoeiras, Carlos Gustavo, monitor

da ONG ambientalista, diz que os monitores trabalharam na semana santa “sem a

presença do poder público, apesar de estarem a quatro meses sem receber”, e pede apoio

da polícia ou da Guarda Municipal para dar mais segurança ao trabalho. O presidente do

CG, secretário de meio ambiente, “intervém dizendo que o melhor seria uma moção do

[CG da APA], destacando o trabalho heróico do Germinal, que sem o apoio do poder

público, conseguiram ordenar o fluxo de turistas e solicitando que remunere em dia o

159 Os voluntários foram alguns dos “monitores ambientais” formados no curso ministrado pela ONGambientalista local em agosto de 2004, em parceria com o IEF, no âmbito de um projeto de“recomposição de matas ciliares e nascentes” financiado pela medida compensatória de uma usinatermoelétrica. Dos 52 formandos, 15 foram selecionados para continuar trabalhando no projeto. Noentanto, logo depois, a ong declarou sua parte no projeto concluída, por divergências com o IEF quanto àimplementação do reflorestamento (como foi visto no capítulo 2). Luisa Paiva era a monitora formadaselecionada para coordenar o trabalho do grupo de monitores. Após o rompimento da ONG, alguns dosmonitores continuaram trabalhando, voluntariamente, sob a liderança de Luisa.

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serviço.” Assim, Pedro Paulo exime a secretaria da responsabilidade pelo atraso no

pagamento dos monitores, atribuindo-a para outras esferas da Prefeitura.

Em agosto de 2006, com a presença do prefeito à reunião ordinária do CG, o

proprietário Airton Rocha encaminhou por escrito uma solicitação de interdição das

cachoeiras até final de novembro e licença para cobrança de ingresso após a reabertura,

com a devida infra-estrutura instalada, agradecendo pela licença concedida para

construção de banheiros. O presidente do CG reafirmou a parceria da secretaria com a

ONG ambientalista, solicitando inclusive aumento da remuneração, com a qual o

prefeito se comprometeu, e condicionou a solução para o monitoramento a uma parceria

dos proprietários com a ONG e com a empresa municipal de turismo, que deveriam

formar uma comissão para formular um projeto com propostas claras e consistentes160.

Estes acontecimentos não deixam dúvidas quanto ao interesse da secretaria de

meio ambiente na manutenção da parceria com o Grupo Germinal. Isto significava não

ceder aos apelos de Airton Rocha, pois o monitoramento do Vale das Águas era

percebido pelos membros do Germinal como vital para a sobrevivência da ONG. Esta

atividade constituía-se num fator essencial para a manutenção da base de apoio do

Germinal junto à população local, pelo seu poder de selecionar os monitores para um

emprego ambicionado por muitos jovens moradores. Contribuía, também, para o apego

da ong àquelas cachoeiras, o apreço pelo Vale das Águas, enquanto símbolo da natureza

do Lima. Para a secretaria de meio ambiente, a aliança com o Grupo Germinal e,

especialmente com o diretor Matheus, nomeado a partir de 2005 como Secretário

Executivo do CG, era essencial para a implementação da APA. Esta aliança se manteve

e se fortificou com o trabalho do Conselho Gestor, apesar do surgimento de conflitos

entre os próprios ambientalistas locais, passado o momento em que fora necessário

garantir a criação da UC. Pode-se afirmar, inclusive, que, a partir de 2005, sob o

mandato do novo presidente do CG e de Matheus como Secretário Executivo, foi esta

aliança que constituiu-se no motor da implementação de medidas ambientais, a despeito

do próprio Conselho Gestor da APA.

160 Estava presente também o Procurador do Município, que prestou esclarecimentos pontuais com relaçãoà competência das diferentes instituições (Batalhão Florestal, para tratar das invasões de propriedades;Polícia Federal ou Polícia Civil, para investigar crimes ambientais e uso de entorpecentes; Prefeitura eGuarda Municipal, para implementar ações conjuntas com as demais no sentido de minimizar as situaçõesque vêm ocorrendo) e quanto aos procedimentos para implantação de um projeto para a área (contratoentre o proprietário e a instituição que permita a exploração da atividade em sua propriedade; solicitaçãoda pessoa jurídica interessada em fazer a exploração econômica à Secretaria de Fazenda, que passarátambém pela Secretaria de Meio Ambiente e pela empresa municipal de turismo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das relações atualmente em vigor entre os interessados na utilização do

espaço e dos recursos do distrito do Lima revela que houve algumas alterações nos

critérios para a sua utilização. Estas alterações associam-se a mudanças nas relações

sociais a partir da inserção de um novo conjunto de moradores – os neo-rurais - na

disputa pela definição das regras de gestão do espaço e dos recursos e pelo acesso a

estes recursos.

Os moradores de origem camponesa se ressentem de mudanças nas relações sociais,

estabelecendo comparações com um passado anterior à chegada dos neo-rurais, quando

havia um controle da comunidade sobre quem circulava na localidade. Além deste

estranhamento, a convivência entre neo-rurais e a população de origem camponesa no

território do distrito do Lima está permeada de disputas em torno da utilização do

espaço e dos recursos materiais e simbólicos a ele associados.

O processo de criação da APA do Lima consolidou novas regras para a utilização do

espaço e dos recursos, fundadas não somente na premissa da preservação ambiental,

como também na sua apropriação pelo grupo que conduziu este processo. Assim, a

criação da APA consolidou, também, a inserção de neo-rurais que atuaram como

ambientalistas locais nas relações de poder e na disputa pelos recursos.

Os ambientalistas locais compartilhavam com os demais neo-rurais a valorização de

um estilo de vida em “contato direto com a natureza”, segundo o qual a “natureza”

assim valorizada era representada como selvagem e intocada. Desse modo, sua

apreensão da natureza do Lima ignorava a população local de origem camponesa, ou a

tratava como um obstáculo à preservação. Os nativos deveriam, assim, ser educados ou

submetidos às regras da preservação ambiental.

Muitos dos ambientalistas locais, além de preservar a natureza do Lima, aspiravam

criar meios materiais para a sua fixação na localidade através das atividades em prol da

preservação ambiental. Esta aspiração foi a base para a construção da aliança com o

governo municipal, através da secretaria municipal de meio ambiente, que viabilizou a

transformação do distrito do Lima em APA.

Esta aliança, que tinha como um de seus principais elementos a contratação de

moradores envolvidos com as atividades ambientais via uma cooperativa – sem direitos

trabalhistas e dependendo, portanto, de relações personalizadas para a sua manutenção -,

foi o que permitiu que a inserção dos ambientalistas locais nas relações de poder fosse

interpretada pela população local segundo os padrões vigentes. Além disso, o advento

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da APA foi acompanhado dos projetos ambientais. A participação da ONG

ambientalista Grupo Germinal em projetos tornou-a capaz de alavancar oportunidades

de trabalho para a população, geralmente distribuídas através de relações

personalizadas. As oportunidades de trabalho assim distribuídas pela ONG eram

interpretadas pela população como mais uma forma de acesso privilegiado a benefícios,

como tantas outras em vigor nas relações sociais locais.

A influência da aliança entre ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio

ambiente, sobre a formação do Conselho Gestor da APA, foi decisiva para que esta

unidade de conservação tivesse sua implementação tão agilizada, em comparação com

outras unidades de conservação brasileiras da mesma categoria. À frente de quatro

diferentes organizações da “sociedade civil” e afinados com os objetivos do órgão

criador da APA, os ambientalistas locais e os representantes municipais conseguiram

superar suas diferenças e atuar como um bloco único durante o tempo necessário para

garantir a instituição das principais regras de gestão da APA. Para isto, foram afastadas

do Conselho Gestor as organizações que poderiam questionar o processo em curso. As

iniciativas para a inclusão de representantes do povo do lugar foram no sentido de

despolitizar sua atuação, seja contemplando somente algumas de suas lideranças com

empregos na esfera municipal, seja atribuindo sua representação às Igrejas, de fraca

atuação política na localidade.

Por outro lado, a criação do aparato legal e institucional não é suficiente para

garantir a implementação de todas as regras criadas. Para que as novas regras sejam

implementadas, é preciso que atue a fiscalização. E é neste ponto que se situam os

limites das mudanças associadas ao advento da APA. A maneira pela qual ocorre a

fiscalização das novas regras para o uso do espaço e dos recursos naturais pode variar

segundo a posição social do usuário destes recursos. Os poucos grandes fazendeiros da

localidade figuram nos discursos dos moradores de origem camponesa como imunes à

fiscalização ambiental. Assim, o advento da APA é percebido de maneira diversa por

diferentes setores da população.

Os trabalhadores rurais que não possuem terra para produzir, que anteriormente se

estabeleciam como meeiros, passaram à condição de trabalhadores diaristas, contratados

por fazendeiros ou neo-rurais, uma vez que diminuíram sensivelmente os terrenos

cedidos em meação, devido ao medo das multas por queimadas ou roçadas. Eles

costumam atribuir estas mudanças à APA, ao governo ou ao IBAMA, de forma

impessoal. Os pequenos produtores diminuíram sensivelmente sua produção devido ao

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medo da fiscalização, mas atribuem esta imposição à gente de fora, responsável pela

criação da APA.

Os grandes proprietários que, no passado recente, constituíam-se numa elite política

que intermediava o acesso da população aos serviços e benefícios oriundos do poder

público, se ressentem da inserção dos neo-rurais na disputa pelos recursos e se queixam

da fiscalização ambiental sobre suas atividades. Ao mesmo tempo, muitos deles

conseguiram resolver este problema, substituindo as lavouras por pasto, deixando,

portanto, de ceder terras a lavradores em meação. Muitos deles, no entanto, mantiveram

as moradias dos antigos lavradores nas suas propriedades, renovando a dívida de

gratidão dos lavradores e suas famílias.

A mobilização para a formação da associação de produtores e trabalhadores rurais

do Lima surgiu, a principio, da iniciativa dos grandes proprietários aos quais

desagradava a fiscalização ambiental. Para constituir-se enquanto associação e

questionar o processo de criação da APA, todavia, eles precisaram se unir a neo-rurais,

que eram pessoas habilitadas não só a estudar os documentos como também a lidar com

a linguagem “técnica” e as metodologias participativas que vinham sendo utilizadas,

discutindo em pé de igualdade com os condutores da APA. Estes neo-rurais

diferenciavam-se dos ambientalistas locais pela militância contra as desigualdades

sociais, considerada prioritária sobre a preservação ambiental. Eles foram atraídos para

a associação por enxergar na mobilização popular arregimentada pelos “grandes”

proprietários uma possibilidade de reação da população pobre do distrito. A posição

deste neo-rurais na formação da diretoria desta associação foi o que permitiu que fosse

dada alguma voz e visibilidade aos setores mais pobres da população durante o processo

de criação da APA.

Em contraposição ao discurso pela preservação ambiental e em nome da

comunidade, esta associação elaborou o discurso em defesa do verdadeiro povo do

lugar, classificando os implementadores da APA como gente de fora. Este discurso deu

voz a ressentimentos tácitos e latentes da população de origem camponesa do distrito do

Lima. Por isso, foi capaz de mobilizar tantas pessoas para as assembléias desta

associação. A frágil aliança que sustentou a atuação desta associação, durante

praticamente um ano, apoiada no trabalho de poucas pessoas, não pôde perdurar. Mas o

curto período de atuação da associação de produtores e trabalhadores rurais do distrito

do Lima impediu que as medidas ambientais que vinham sendo implantadas na

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localidade ignorassem por completo a existência dos produtores e trabalhadores rurais

na localidade.

Após a reunião pública para formação do Conselho Gestor da APA, em março

de 2002, as primeiras medidas para promover a implantação da unidade de conservação

– elaboração do Regimento Interno do Conselho Gestor e do Plano de Manejo – Fase 1

(que contém o Zoneamento) – transcorreram num período de conflito entre os criadores

da APA e a associação de produtores e trabalhadores rurais, durante o qual prevaleceu a

aliança entre ambientalistas locais e a secretaria municipal de meio ambiente (órgão

criador da UC), permanecendo em suspenso as diferenciações entre os grupos que

compunham esta aliança .

Durante a maior parte do processo de confecção do Plano de Manejo, de março a

outubro de 2002, o CG ainda não havia sido criado oficialmente, pois faltava que fosse

homologado pelo prefeito. No entanto, era freqüentemente tratado pelos participantes

regulares das reuniões de elaboração do plano como já existente e operante. Esta pressa

em se auto-intitular como o conselho estava relacionada a duas circunstâncias. A

primeira delas era uma compreensão do conselho como uma autoridade máxima local,

uma instância pela qual toda e qualquer atividade realizada no distrito deveria ser

autorizada antes de acontecer. A segunda circunstância era a necessidade de conter a

atuação dos opositores do processo de implantação da APA. Tratar a elaboração do

Plano de Manejo como um trabalho do conselho permitia limitar a interferência de

outras lideranças locais que prejudicavam o andamento das tarefas previstas no projeto

de elaboração do plano – principalmente da associação de produtores e trabalhadores

rurais. Este tratamento, associado a uma exigência de rapidez nos trabalhos por parte da

secretaria de meio ambiente, fazia com que qualquer questionamento soasse como algo

que estava atrapalhando o andamento das atividades.

Assim sendo, a atuação do conselho, naquele período, foi a projeção dos planos

dos ambientalistas locais para a gestão do distrito do Lima, o que se refletiu na

construção do Plano de Manejo. No entanto, para passar do planejamento à ação, era

necessário contar com as autoridades do governo. Havia uma desconfiança dos

ambientalistas locais em relação à efetividade do poder atribuído ao Conselho Gestor

no discurso das autoridades municipais. Pois de nada adiantaria que decisões fossem

tomadas pelo CG, se não viessem a ser executadas pelos órgãos municipais. Embora a

relação entre ambientalistas locais e poder público fosse tensa, não era percebida dessa

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forma pela população. Aos olhos de muitos moradores, os ambientalistas locais

pareciam estar tirando proveito da aliança com o governo.

Além das críticas pontuais encaminhadas por diferentes moradores, durante o

processo de elaboração do Plano de Manejo, foram constantes os questionamentos de

membros da associação de produtores e trabalhadores rurais em relação à falta de

transparência e de participação popular na formulação do plano e na atuação do

conselho.

Quando era convocada uma reunião “aberta” e muitos moradores compareciam,

os questionamentos quanto à falta de participação popular, freqüentemente

encaminhados pelos membros da associação de produtores e trabalhadores rurais,

costumavam encontrar apoio no público presente à reunião. Quando as reuniões eram

restritas aos conselheiros, ou mesmo estendidas aos representantes de organizações que

não integravam o conselho, as críticas acabavam por ser enquadradas nas metodologias

de dissolução de conflitos, dentro da linguagem da “gestão participativa”.

Nas ocasiões em que estes questionamentos eram colocados, os ambientalistas

locais argumentavam tanto no sentido de desqualificar pessoalmente as lideranças que

falavam em nome daquela parcela da população, quanto no sentido de desqualificá-los

enquanto representantes legítimos dos produtores e trabalhadores rurais. Além disso,

eram desqualificados os trabalhadores e produtores rurais da localidade como um todo.

Os embates durante a elaboração do Plano de Manejo revelam a posição

conquistada pelos ambientalistas locais, aliados a setores da Prefeitura, com a criação

da APA. Além de poder de regulamentar toda sorte de atividades e de empreender

projetos, os criadores da APA passaram a dispor, principalmente, do poder de enunciar

o discurso oficial a respeito destas transformações. Em cada um dos pontos críticos

levantados ao longo do processo estudado, coube aos criadores da APA a atribuição de

decidir a respeito do encaminhamento tomado e, mais do que isso, de formular a

interpretação destas questões em documentos oficiais e nos discursos públicos.

O discurso construído pelos criadores da APA apoiava-se na associação entre

duas ordens de representações - a preservação ambiental, como de interesse planetário,

de toda a humanidade e das gerações futuras; e a preservação da natureza daquele

território específico, como um local escolhido para ser um paraíso natural.

As implicações do tratamento de questões ambientais como uma necessidade de

sobrevivência da espécie humana, com repercussões planetárias e para as gerações

futuras, são múltiplas. No caso estudado, este tratamento confere uma superioridade à

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argumentação daqueles que defendem a implantação de medidas tidas como ambientais

na localidade, uma vez que qualquer posicionamento contrário a estas medidas passa a

ser visto como contrário à preservação ambiental e aos interesses de todos. No entanto,

somente um pequeno grupo tem o poder de definir as situações identificadas como

problemas ambientais e a sua gravidade, bem como as medidas mais adequadas para

tratar destes problemas (desde que se adequando minimamente aos critérios mais gerais,

definidos por instituições externas ao local). Aqueles que se opõem, seja ao conjunto

das medidas ambientais, seja a alguma medida específica, ou algum aspecto dela, são

tratados ora como egoístas e mercenários, que só pensam nos seus lucros pessoais e não

se importam com problemas coletivos, ora como pessoas que desconhecem a

importância da preservação ambiental e precisam ser conscientizadas. Ou seja, é negada

a possibilidade de que o argumento do opositor esteja correto. Ele, de alguma forma,

deverá ser obrigado ou convencido pelo discurso dominante, aquele que defende a

implantação de medidas ambientais no distrito.

Ao mesmo tempo, as representações de vínculo com a localidade constituem-se

num dos pilares do discurso construído pelos ambientalistas locais com vistas a

interferir na gestão do espaço e dos recursos. Os laços pessoais e afetivos com a

localidade figuram nos discursos públicos de ambientalistas locais, sustentando tanto a

sua reivindicação de legitimidade como representantes da população, quanto a

atribuição a si próprios de conhecimento das características locais. O seu pertencimento

à comunidade é, também, um dos argumentos chave nos discursos governamentais e de

patrocinadores, que pretendem tratar a implementação de medidas ambientais como um

processo participativo.

Assim, no período em que foi construído o aparato legal e institucional no qual

se apóia a gestão do território e dos recursos da APA do Lima, as tomadas de decisão e

o poder de enunciar o discurso oficial a respeito da implantação da APA estavam nas

mãos de ambientalistas locais, apoiados em sua aliança com a secretaria municipal de

meio ambiente. Através de uma linguagem “técnica” (tanto em relação à natureza

quanto em relação à gerência participativa), somada à associação entre questões locais a

questões “globais”, os implementadores da APA do Lima conseguiram tornar vigente o

seu projeto para aquele território. O monopólio do discurso oficial a respeito da APA,

ostentado por ambientalistas locais e secretaria de meio ambiente, naquele período,

tornou possível a justificação e a legitimação de seu posicionamento em uma série de

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disputas locais, construindo o Conselho Gestor como uma nova instância de poder local,

apoiado nos instrumentos de manejo da APA

Passado o período do acirramento do conflito, com o CG já operando, foram

ressurgindo diferenciações entre os grupos liderados por ambientalistas locais, que

atuaram como um bloco único durante o processo de implementação da APA.

A estruturação do trabalho da Secretaria Executiva contribuiu para que este órgão

pudesse ampliar seu poder de ação, passando a intermediar a relação dos moradores

com o CG. A condição de não remuneração do cargo de Secretário Executivo favorece a

escolha de funcionários da prefeitura, pois as atribuições do cargo demandam bastante

dedicação. Assim, mesmo sendo votado pela plenária, é pequena a margem de escolha

dos conselheiros. Desta forma, esta condição permite que o Secretário Executivo seja

percebido pela população, e até mesmo pelos próprios conselheiros locais, como um

entreposto da secretaria de meio ambiente.

Com o passar do tempo, as reuniões do CG passaram a ser palco da expressão de

uma série de conflitos, alguns deles insuflados pelos efeitos da fiscalização, mas muitos

deles, apesar desta motivação última, traduzindo e ressignificando disputas pré-

existentes. O caso de Julio Bill mostra como remanescentes da associação de produtores

e trabalhadores rurais tentaram se reorganizar, unindo-se ao fazendeiro revoltado com a

atuação do CG, para manter o discurso em favor do povo do Lima. O caso do Vale das

Águas revela a importância da aliança entre a secretaria de meio ambiente e o Grupo

Germinal para a continuidade das medidas relacionadas à APA, passado o momento de

união de diversos grupos pela criação da UC.

Parece ter havido, de fato, um aumento do poder do Conselho Gestor sobre as

questões relativas à APA, concretizando-se os desejos dos ambientalistas locais de que

o conselho viesse a ter maior poder de deliberação que os secretários e até mesmo que o

prefeito. Ao mesmo tempo, a exigência da presença de diversos integrantes do governo

municipal no distrito, bimestralmente, colocou o distrito de Lima sob a atenção da

Prefeitura. As instituições municipais que integram o CG, mal ou bem, têm que prestar

contas das medidas pensadas para os problemas e que eles se comprometem a tomar.

Por outro lado, é um espaço para o aumento da visibilidade política de alguns

secretários e funcionários de empresas municipais.

O Conselho Gestor se tornou, também, uma instância de poder local, capaz de

interferir em toda sorte de atividades realizadas no território do distrito, que pudessem

ser interpretadas como causadoras de impacto ao meio ambiente. Desse modo, supõe-se,

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também, um crescimento do poder da secretaria de meio ambiente sobre outras esferas

do governo municipal, pelo menos no que tange às questões da APA. Pois o poder de

regular as ações de outros órgãos municipais no território da APA acabaria, então,

cabendo a ela.

Procurando relativizar o paradigma da prioridade da preservação ambiental

sobre outras questões, e observando o processo pelo qual são selecionadas as atividades

que serão tratadas como causadoras de impacto ambiental, poder-se-ia pensar que o

Conselho Gestor se tornou uma instância de poder local que viabiliza a ambientalização

de conflitos, com base na sua autoridade para escolher e priorizar os “problemas

ambientais” do distrito do Lima.

Considerando-se a vasta legislação aplicável àquele território, não só sob a

forma de APA, mas incluindo a área de uma RPPN, diversas áreas classificadas como

APPs, além da legislação urbanística municipal e diversas outras, poder-se-ia supor que

nenhum morador ou proprietário local está isento de incorrer em algum tipo de ação que

poderia ser interpretada como lesiva ao meio ambiente – de cortar o galho de uma

árvore a consertar um encanamento. Assim sendo, a escolha de quem será acusado e de

quais serão as atividades condenadas pode obedecer a critérios políticos.

Esta interpretação coincide, em muitos pontos, com as interpretações da

população em geral sobre o processo de implementação da APA, captadas em

entrevistas ou nas ruas, em conversas informais, na observação do quotidiano local.

Para muitos moradores, a APA significou o “empoderamento” de um determinado grupo

de pessoas, que se tornou capaz de interferir em toda sorte de atividades realizadas no

distrito do Lima, desde grandes empreendimentos até as ações consideradas mais

corriqueiras e quotidianas. Neste sentido, a denúncia de crime ambiental ter-se-ia

tornado uma arma em disputas pessoais e/ou políticas. E as reuniões plenárias do

Conselho Gestor, um palco para a encenação pública destas disputas.

Ao mesmo tempo, a autoridade do Conselho Gestor aparentemente repousa

sobre argumentações “técnicas”. Ou seja, posicionamentos críticos são aceitos até o

limite de não colocarem em questão o paradigma da conservação ambiental. É

permitido discutir o que será tratado como agressão ambiental, como questões técnicas,

mas não se pode pôr em dúvida o postulado da prioridade da preservação da natureza

acima de todos os interesses. Dessa forma, a competição entre diferentes projetos para o

espaço e os recursos e a disputa entre diferentes formas de compreensão e previsão dos

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mecanismos naturais, apoiadas em conhecimentos construídos de maneira diversa, são

tratadas no âmbito das reuniões do CG como questões “técnicas”.

Além disso, é possível inferir uma limitação do poder supostamente atribuído às

organizações da “sociedade civil” por membros do Conselho Gestor, pois as ações

seriam limitadas àquelas que obtêm apoio material do governo municipal. Outra

limitação ao desempenho destas instituições no âmbito do Conselho Gestor é a

suposição de que muitas de suas lideranças possam de fato prestar serviços regulares ou

ocasionais à Prefeitura, que funcionam como os demais empregos concedidos como

beneces políticas. Esta dependência em relação à esfera municipal imporia limites à

capacidade destas instituições em aprofundar questionamentos da população.

Por outro lado, não resta dúvida de que a implementação da “gestão

participativa” na APA e a formação do Conselho Gestor constituíram-se num forte

estímulo à organização de grupos de cidadãos em organizações e associações.

Se, no momento da criação da APA, as decisões primordiais que passaram a

reger o território dali para frente foram tomadas pelos ambientalistas locais junto com a

Prefeitura, com o tempo, no entanto, foi havendo um incremento da organização local e

surgiram grupos de associações locais – como nas regiões da Nascente e da Barra do

Lima. Ainda predominam as organizações encabeçadas por neo-rurais, dotados de

maior preparo para adentrar os fóruns da APA, mas já despontam outras possibilidades

de organização da população local. E, ainda assim, houve um estímulo para que neo-

rurais, favoráveis à preservação ambiental, saíssem de soluções individuais para

preservar a natureza (hortas orgânicas, preservação de matas ciliares em suas

propriedades, etc.) para organizações coletivas.

Não há, no entanto, uma organização que represente o interesse dos camponeses,

tampouco que expresse a totalidade de suas insatisfações. Ou o povo adere aos

fazendeiros, numa tradição de organização política vertical, ou vai se adequando às

regras ambientais e “comendo pelas bordas” os benefícios, empregando jovens em

projetos ambientais, recebendo mudas para reflorestamento, recebendo auxílio para suas

construções.

Sob um ponto de vista mais geral, vão, aos poucos, sendo estabelecidos critérios

para a preservação de determinados recursos naturais escolhidos como prioritários –

principalmente as águas – e vai sendo promovida uma lenta adequação das atividades da

população a estes critérios. Contudo, esta adequação está associada, freqüentemente, a

uma elitização do acesso aos recursos naturais e aos proventos do turismo, pois vão

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sendo excluídos os empreendedores mais pobres, que não têm condições de atender a

todas as exigências.

Finalmente, é preciso não perder de vista que categorias como “neo-rurais”,

“ambientalistas locais”, e tantas outras mencionadas ao longo deste trabalho, são usadas

para organizar a compreensão dos acontecimentos em curso no distrito do Lima, na

medida em que contribuem para clarificar o posicionamento e as motivações de diversas

pessoas que, em determinados momentos, acionam determinadas características em

comum para perseguir seus objetivos. Assim sendo, o conjunto de pessoas designado

por estas categorias não é estanque. O significado de cada um destes termos deve ser

analisado levando-se em conta o contexto específico em que são acionados e as

categorias em relação às quais são comparados. Enfim, estas categorias devem ser

tratadas como construções mentais, instrumentos que têm por finalidade lançar luz

sobre aspectos que se pretende destacar em meio a um emaranhado de múltiplos e

complexos pertencimentos e afiliações que estão em jogo quando são analisadas as

relações sociais.

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