tese doutorado

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ANDRÉ BRUTTIN Contribuições da Psicologia Social do Trabalho e das Organizações para a Gestão de Pessoas em Fábricas Recuperadas: um estudo de caso na Metalcoop Doutorado em Psicologia Social SÃO PAULO 2012

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tese doutorado

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    ANDR BRUTTIN

    Contribuies da Psicologia Social do Trabalho e das Organizaes para a Gesto de Pessoas em Fbricas

    Recuperadas: um estudo de caso na Metalcoop

    Doutorado em Psicologia Social

    SO PAULO

    2012

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    ANDR BRUTTIN

    Contribuies da Psicologia Social do Trabalho e das Organizaes para a Gesto de Pessoas em Fbricas

    Recuperadas: um estudo de caso na Metalcoop

    Tese apresentada banca examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Social, sob orientao do Prof. Dr. Odair Furtado.

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Social

    2012

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Banca examinadora:

    ______________________________ Prof. Dr. Odair Furtado ______________________________ Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa ______________________________ Prof. Dr. Bernardo Svartman ______________________________ Prof. Dr. Marcelo Afonso Ribeiro ______________________________ Prof. Dra. Maria da Graa Gonalves

  • Dedico este trabalho...... Pai e me este trabalho dedicado

    a vocs. Se hoje estou encerrando mais um importante ciclo de minha vida acadmica porque vocs me ensinaram o valor dos estudos. Espero fazer o mesmo pelo Leo e Digo.

  • Dedico este trabalho......

    Patchu, Leo e Diego, este trabalho tambm dedicado a vocs, o sentido do meu projeto de vida.

  • Agradecimentos Agradeo especialmente ao meu orientador Odair Furtado. impressionante como a partir de econmicas e precisas orientaes eu posso ver o seu dedo em cada parte deste trabalho. Levo comigo alm de todo o aprendizado que um projeto como este permite, um modelo de orientao a seguir. Obrigado. Agradeo tambm aos colegas da Metalcoop que me receberam de forma to carinhosa e generosa. Sem a ajuda de vocs eu jamais teria conseguido concluir este projeto. Obrigado. Agradeo tambm aos colegas no NUTAS por importantes contribuies durante nossas discusses durante todos estes anos, alm de inenarrveis momentos em nossos encontros da ABRAPSO. Aos Professores Antonio da Costa Ciampa e Marcelo Afonso Ribeiro que contriburam muito para o resultado final deste trabalho a partir de seus comentrios durante a banca de qualificao. Tambm vejo o dedo de vocs claramente ao ler este trabalho. Obrigado. Aos colegas do Ncleo de trabalho da PUC-SP. Tenho muito orgulho de fazer parte deste grupo e certamente nossas discusses tem ligao direta com este doutorado. Aos colegas da Reciprhocal, em especial o Eduardo, que souberam com a j tradicional elegncia respeitar o meu tempo do doutorado assumindo papis que estariam destinados a mim na empresa. Patchu por me dar tanto apoio, tambm assumindo papis que estariam destinados a mim em casa. Pago esta dvida durante o seu doutorado. Ao Leo e ao Diego por tanto me inspirarem a querer ser algum melhor e pelos momentos de privao do pai. Comemorar o trmino dos meus finais de semana de estudos sinal de que eu j estava fazendo falta. Jessica pelas interminveis revises durante todo o trabalho. Ningum leu este trabalho mais do que voc. Obrigado. Vanessa pela reviso da ltima verso, que me permitiu dormir em paz. E ao Luciano, meu irmo, pelo abstract de ltima hora.

  • Resumo

    BRUTTIN, Andr. Contribuies da Psicologia Social do Trabalho e das Organizaes para a Gesto de Pessoas em Fbricas Recuperadas. Um Estudo de Caso na Metalcoop. Tese de doutorado. PUC-SP, 2012.

    Esta uma tese de psicologia social, dentro do campo da psicologia organizacional e do trabalho, que teve como foco principal desenvolver um sistema de gesto de pessoas com foco em promoo de sade do trabalhador em uma fbrica recuperada, a partir de uma atuao crtica do psiclogo inserido nas organizaes. Para tanto utilizei como referencial terico a psicologia social do trabalho e das organizaes e a psicologia de perspectiva scio-histrica e como referencial metodolgico a proposta do campo-tema. A pesquisa foi realizada em uma fbrica recuperada localizada em Salto, So Paulo, e teve como principais resultados a implementao de um sistema de gesto de pessoas que inverte a polaridade tradicional da organizao do trabalho, saindo do direcionador mais tradicional o capital e passando a ter no trabalhador o foco principal dos processos de trabalho. O programa com vistas a promoo de sade implementado na Metalcoop, foi escorado em cinco eixos principais. a) colocar o trabalho a servio do trabalhador, em que buscamos que as prticas e polticas de gesto tivessem o trabalhador como foco principal; b) fomentar o desenvolvimento humano atravs do trabalho, em que buscamos pensar aes de desenvolvimento a partir do trabalhador e no da organizao; c) trabalhar polticas de identidade e identidades polticas, em que buscamos projetos que pudessem viabilizar um novo personagem, o scio-trabalhador ao mesmo tempo em que fomentvamos os projetos pessoais de identidade dentro da organizao; d) Fomentar a participao do trabalhador no processo decisrio da organizao, em que buscamos ampliar os espaos de participao democrtica dentro da organizao ao mesmo tempo em que buscvamos desenvolver a viso crtica do trabalhador, para que aproveitasse melhor os espaos democrticos existentes; e) sade ocupacional, em que buscvamos fazer a gesto dos processos de trabalho evitando que fossem elementos geradores de adoecimento.

    Palavras chave: psicologia crtica; promoo de sade; psicologia social do trabalho e das organizaes ; fbricas recuperadas.

  • Abstract

    BRUTTIN, Andr. Contributions of Social Psychology of Work and Organizations for People Management in Recovered Factories. Case study at Metalcoop. Doctoral Thesis. PUC-SP, 2012.

    This is a social psychology thesis, in the work and organizational psychology area, which has as a main focus to develop a people management system focusing the promotion of health of workers in a recovered factory, based on the critical role of a psychologist inserted in it. For that I have used as a theoretical reference the social psychology of work and organizations and the psychology of sociohistorical perspective and as a methodological reference I have used the proposal of the theme field. The research was done in a recovered factory in Salto, state of So Paulo, Brazil, and had as the main result the implementation of a people management system which inverts the traditional polarity of work organization, leaving the most traditional that focus the capital behind to have the worker as the main focus in the work process. The program focusing the promotion of health implemented at Metalcoop, was based on five main axis. a) putting work to serve the worker, as we search that the management policies have the worker as the focus; b) promoting the human development through work, as we seek for developing actions from the workers point of view and not the organization; c) working policies of identity and identity policies searching projects capable of creating a new character, the partner-worker at the same time that we were promoting the identity personal projects within the organization; d) promoting the worker participation in the organizations decision-making process, aiming to widen the democratic participation in the organization at the same time as we were searching for the development of its critical vision in order to better use the already existing democratic spaces; e) occupational health, managing the work process to avoid those as elements to cause illness.

    Key-words: critical psychology; health promotion; social psychology of work and organizations; recovered factories.

  • Sumrio 1. Introduo ..................................................................................................01 1.1 .Trajetria at o presente momento ............................................................03 1.2 A pesquisa de doutorado ............................................................................07 1.3 Objetivos de pesquisa ................................................................................08 2. Fbricas Recuperadas...............................................................................12 2.1.Fbricas recuperadas, cooperativas e autogesto......................................13 2.2.A origem das fbricas recuperadas no Brasil..............................................15 2.3.O processo de formao e desenvolvimento das fbricas recuperadas ......................................................................................................19 2.4.O modelo de negcio das fbricas recuperadas.........................................21 2.5. O modelo de gesto das fbricas recuperadas .........................................25 2.6. A lgica industrial .......................................................................................30 2.7. A experincia das fbricas recuperadas na Amrica Latina.......................32 2.8. Desafios ....................................................................................................35 3. A Psicologia no Mundo do Trabalho ..................................................... 47 3.1. A primeira fase da psicologia no mundo do trabalho .................................48 3.2. A segunda fase da psicologia no mundo do trabalho.................................52 3.3. A terceira fase da psicologia no mundo do trabalho...................................55 3.4. Crticas a psicologia no mundo do trabalho................................................65 3.5. Uma quarta fase?.......................................................................................68 4. Psicologia Scio-Histrica. ......................................................................72 4.1. Pressupostos epistemolgicos ..................................................................73 4.2. Psicologia social crtica .............................................................................75 4.3. Historicidade ..............................................................................................78 4.4. Condio Humana .....................................................................................80 4.5. Dialtica .....................................................................................................82 4.6. Atividade ....................................................................................................87 4.7. Conscincia ...............................................................................................89 4.8. Identidade ..................................................................................................92 4.9. Emancipao .............................................................................................99 4.10. Sade na perspectiva scio-histrica.....................................................101 5. Mtodo.......................................................................................................104 5.1. O problema de pesquisa ..........................................................................105 5.2. O mtodo de pesquisa .............................................................................108 5.3. Breve caracterizao da Metalcoop..........................................................112 5.4. Descrio dos procedimentos de pesquisa .............................................115

  • 6. Diagnstico organizacional ..................................................................119 6.1 O trabalho a servio do trabalhador ........................................................121 6.2 Desenvolvimento humano atravs do trabalho .......................................136 6.3 Participao do trabalhador no processo decisrio.................................139 6.4 Identidades polticas e polticas de identidade ........................................150 6.5 Sade ocupacional ..................................................................................157 7. Plano de ao de gesto de pessoas com foco em promoo de

    sade .......................................................................................................161 7.1. O trabalho a servio de trabalhador .......................................................164 7.1.1 Gesto do clima organizacional ...........................................................165 7.1.2 Infraestrutura nos modelos da Adequao sociotcnica.......................169 7.1.3 Desenvolvimento Econmico ...............................................................169 7.1.4.Prticas e enriquecimento do cargo......................................................172 7.2. Desenvolvimento Humano atravs do trabalho ......................................174 7.3. Identidades polticas e polticas de identidade .......................................179 7.3.1. Identidade do scio-trabalhador...........................................................180 7.3.2. Projetos pessoais de identidade...........................................................183 7.4. Participao do trabalhador no processo decisrio.................................186 7.5. Sade ocupacional..................................................................................188 7.5.1. Segurana no trabalho..........................................................................189 7.5.2. PCMSO ................................................................................................189 7.5.3. Qualidade de vida no trabalho .............................................................190 8.Implementao do plano de gesto de pessoas com foco em promoo de sade ........................................................................................................192 8.1. O trabalho a servio do trabalhador.........................................................194 8.2. Identidades polticas e Polticas de identidade.........................................200 8.3. Participao do trabalhador nos processos decisrios.............................201 8.4. Desenvolvimento humano a partir do trabalho ........................................202 8.5. Sade ocupacional...................................................................................202 9. Consideraes finais................................................................................206 9.1. Gesto de pessoas e promoo de sade .............................................207 9.2. Um modelo para as fbricas recuperadas...............................................212 9.3. Apontamentos sobre uma psicologia crtica nas organizaes...............213 10. Referncias bibliogrficas.....................................................................219

  • 1

    Captulo I Introduo

  • 2

    1. Introduo

    O presente trabalho surgiu a partir das reflexes que venho alimentando nos

    ltimos quinze anos, desde que me formei como psiclogo na Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, PUC-SP, e que encontraram o foro adequado para estimul-las

    ainda mais, agora com mtodo, no NUTAS (Ncleo de Trabalho e Ao Social), ncleo

    do programa de ps-graduao em psicologia social da PUC-SP.

    Desde os tempos de estudante de psicologia, eu nutria o desejo de atuar no

    campo da psicologia ligado ao trabalho, e de fato o que tem acontecido nestes

    ltimos quinze anos. Durante este tempo, sempre entendi que o psiclogo atuando

    dentro das organizaes poderia ser um grande aliado do trabalhador nas buscas por

    melhores condies de trabalho, por seu privilegiado espao de atuao para

    influenciar a agenda de prticas e polticas de gesto nas organizaes. Com o passar

    dos anos de prtica, fui percebendo que o campo da psicologia no mundo do trabalho

    se ampliou, trazendo possibilidades diversas de atuao para o psiclogo, tais como

    papis na articulao de polticas pblicas de gerao de renda e trabalho, em rgos

    de assistncia ao trabalhador ou de fiscalizao social. Mas o surgimento de novas

    possibilidades de atuao para o psiclogo do trabalho no significaram para mim, a

    falncia da possibilidade de atuao dentro das organizaes, pelo contrrio: continuo

    enxergando ali espao rico para a promoo de sade, a partir de uma postura crtica

    do psiclogo. Conforme fui conhecendo mais sobre outras possibilidades de atuao,

    fui ampliando a minha viso e papel dentro das organizaes, aumentando o meu

    repertrio e reforando a percepo de que os diversos campos de atuao do

    psiclogo no mundo do trabalho podem contribuir para a sade do trabalhador de

    formas diferentes e complementares. No entanto, ainda vejo uma psicologia no mundo

    do trabalho fragmentada, com colegas atuando em diferentes frentes sem a devida

    troca de experincias e referenciais. Este trabalho pretende debater a possibilidade de

    uma atuao crtica do psiclogo dentro da organizao, mais especificamente em

    uma empresa em que os trabalhadores assumiram a gesto do negcio, uma fbrica

    recuperada, e, a partir deste debate, estabelecer alguns parmetros para uma atuao

    mais integrada entre psiclogos que atuem no mundo do trabalho buscando contribuir

    com a promoo de sade do trabalhador.

  • 3

    1.1 . Trajetria at o presente trabalho

    Em um momento de consolidao de estudos e prticas como o doutorado,

    pareceu-me importante resgatar um pouco de minha trajetria profissional, que

    certamente acaba por influenciar este trabalho.

    Formei-me em 1996 na faculdade de psicologia da PUC-SP e, neste mesmo

    ano, comecei a atuar na rea de recursos humanos em uma empresa metalrgica de

    grande porte, na regio do ABC. L, tive as minhas primeiras experincias com a vida

    prtica do psiclogo que atua nas organizaes e, hoje, vejo que tive sorte em minha

    primeira experincia, pois encontrei uma equipe que realmente queria um psiclogo

    que pudesse contribuir para as melhorias nas condies de trabalho, sem descuidar,

    verdade, das necessidades da organizao ou da gesto. Durante esta poca, tive

    experincias de trabalho que ajudaram a marcar a maneira como eu vejo que o

    psiclogo pode contribuir com o trabalhador dentro das organizaes.

    Diversas questes ali vivenciadas acabaram por influenciar a minha atuao e

    a forma de enxergar a atuao do psiclogo nas organizaes. Aprendi que o

    psiclogo que realmente quer contribuir de forma assertiva deve investir em

    diagnsticos ao invs de trilhar o fcil caminho das prescries da moda. Aprendi que,

    estando dentro da organizao em funes com poder, o psiclogo pode influenciar

    positivamente a agenda de prticas e polticas de gesto, contribuindo para que elas

    contemplem a sade do trabalhador em seus objetivos. Pude vivenciar projetos que

    realmente faziam a diferena no desenvolvimento do trabalhador e tambm, j

    naquela poca, aprendi que o psiclogo atuando nas organizaes deveria

    estabelecer parcerias com colegas da psicologia do trabalho ou da sade do

    trabalhador em busca de referenciais ou experincias, ganhando assim mais repertrio

    para contribuir com o trabalhador. Tambm pude experimentar a dificuldade de

    trabalhar dentro de uma empresa que tem objetivos outros que no a promoo de

    sade do trabalhador, o que torna o trabalho do psiclogo muito mais difcil, tendo de

    enfrentar diferentes obstculos para se manter dentro de suas convices.

    Naqueles tempos, alguns trabalhos marcaram a minha formao, como a

    constituio de uma comisso de fbrica que estruturamos na empresa como forma de

    abrir um canal permanente de dilogo entre a organizao e os trabalhadores. Durante

    os cinco anos em que trabalhei junto a este grupo da comisso de fbrica, pude

    perceber o quanto aquela atividade era enriquecedora para os trabalhadores que se

    desenvolviam enormemente a partir daquelas discusses, uma vez que tinham que

    exercer funes muito diferentes do que a que estavam acostumados em seu dia a dia

    e, portanto, tinham de buscar os recursos necessrios para isto. Meu papel naquele

  • 4

    momento, alm de mediar as conversas entre a comisso e a empresa, consistia

    justamente em prover os recursos necessrios aos trabalhadores para que eles

    pudessem desempenhar tal papel a contento, como por exemplo ajud-los a entender

    a sua funo como representantes que deveriam trabalhar com as opinies do

    conjunto de colegas e no com as suas vises pessoais. Ou ainda o auxlio com

    relao a treinamentos especficos sobre o funcionamento da empresa, etc.

    Lembro-me ainda de outros projetos desenvolvidos naquele primeiro contato

    com a atuao do psiclogo nas organizaes. Com a inteno de aumentar a

    qualificao do quadro de funcionrios sem ter que provocar substituies,

    estruturamos dentro da empresa um programa de formao para o ensino mdio e

    fundamental que era oferecido para aqueles trabalhadores que se voluntariassem para

    o programa. Novamente a percepo de desenvolvimento que pude aferir junto aos

    participantes do programa era notria, no somente no que diz respeito a novos

    conhecimentos tcnicos, mas principalmente em relao estima e forma de se

    enxergar. Lembro-me at hoje da frase de um destes participantes: Andr, antes

    quando tocava a msica do Jornal Nacional em casa, eu saa da sala porque ficava

    com vergonha do meu filho me fazer perguntas que eu no saberia responder, agora

    quando toca a msica, eu sou o primeiro a chamar todo mundo para a sala para

    assistirmos juntos. Eu quero mais que ele pergunte. Eu mesmo fao perguntas.

    Neste momento, atuando como psiclogo no RH de uma empresa, tive meus

    primeiros contatos com a chamada psicologia do trabalho, quando fui incumbido de

    fazer um diagnstico que buscasse explicar os nossos nveis de acidente do trabalho,

    com vista a diminu-los. Lembro-me naquele momento de ir at a minha antiga

    faculdade, PUC-SP, atrs de material que pudesse me auxiliar no assunto. Encontrei-

    me com o Fabio Oliveira, hoje meu colega no ncleo de trabalho da faculdade, e ele

    me falou um pouco a respeito do trabalho que desenvolveu em sua dissertao de

    mestrado (1997), A construo social dos discursos sobre o acidente de trabalho1. O

    estudo mostrava o discurso de culpabilizao do trabalhador sobre os acidentes do

    trabalho, processo este que acaba por impedir que as aes mais profundas ligadas

    s condies inseguras que demandariam maiores investimentos da empresa fossem

    feitas e consequentemente que os acidentes diminussem. Recordo-me do trabalho

    que fizemos l na empresa a partir deste material, fazendo diretoria e trabalhadores

    enxergar as armadilhas presentes neste discurso at que conseguimos agir sobre,

    entre outras coisas, condies inseguras que nos levaram a derrubar alguns daqueles

    ndices. Neste projeto tive o meu primeiro exemplo de como uma atuao integrada

    1 A dissertao, A construo social dos discursos sobre o acidente de trabalho, foi apresentada em 1997

    na USP

  • 5

    entre diferentes campos da psicologia no mundo do trabalho pode ser contributiva

    para o trabalhador.

    Lembro-me tambm de histrias de dificuldades e frustrao quando via

    projetos que iriam beneficiar a todos sendo impedidos por falta de investimento ou

    outras prioridades. claro que nem tudo naquela poca foi fcil, mas a verdade que

    alguns destes projetos me marcaram no incio da carreira e me fizeram acreditar que

    de fato o psiclogo, apesar das dificuldades, poderia contribuir para o trabalhador

    atuando dentro das empresas. Bem sei que tal atuao no representaria uma ao

    revolucionria, mas certamente poderia trazer benefcios aos trabalhadores se

    adotada de forma crtica, principalmente se articulada com outros campos de atuao

    do psiclogo no mundo do trabalho.

    Ainda nesta poca, comecei a sentir a necessidade de ir buscar mais conceitos

    que pudessem me ajudar com os trabalhos que estava desenvolvendo na empresa, e

    como o papel que esperavam de mim l era muito mais analtico do que prescritivo,

    aps procurar por alguns cursos ligados a RH no encontrei nada que atendesse as

    minhas expectativas, uma vez que a maioria trazia prescries prontas e propunham

    uma atuao mais voltada ao administrador do que ao psiclogo. Parti ento para o

    mestrado com o objetivo de ali aprofundar a minha habilidade para pesquisar e ir mais

    a fundo no entendimento dos problemas que vivia no trabalho. Entrei no mestrado em

    psicologia social da PUC-SP e tive como orientador Peter Spink. Este perodo foi muito

    rico em minha formao, uma vez que pude conviver durante quatro anos (naquele

    tempo os prazos eram outros) com psiclogos que traziam conceitos novos para mim,

    ligados no psicologia organizacional, mas ao que chamavam de psicologia do

    trabalho. Eram colegas que em sua maioria, diferentemente de mim, estavam atuando

    fora das organizaes, em sindicatos, rgos de assistncia ao trabalhador,

    cooperativas, ONGs, mas eu via que muito do que era ali discutido enriquecia a minha

    atuao nas empresas. Ali eu comecei a pensar que o psiclogo no mundo do trabalho

    pode ter diferentes formas de atuao, mas que elas podem ser complementares se

    pensarmos nos benefcios para o trabalhador. No eram todos que pensavam assim,

    mas, para mim, ficou marcada esta posio.

    Durante o perodo de mestrado sai do meu primeiro emprego e fui montar a

    minha prpria consultoria, onde atuo at hoje, com a inteno de ampliar os trabalhos

    que fazamos na empresa anterior. Desde ento venho, como consultor, buscando

    formas de conseguir levar a psicologia para dentro das organizaes, realizando

    trabalhos que pudessem contribuir para a promoo de sade do trabalhador. Nestes

    momentos, como no incio da carreira, eu sempre me vi buscando referenciais dentro

    da psicologia que pudessem contribuir para a minha atuao e confesso que nesta

  • 6

    busca a aproximao entre as diferentes reas da psicologia no mundo do trabalho se

    mostrava como a mais adequada.

    Simultaneamente minha carreira como consultor, iniciei em 2004 a carreira

    como docente lecionando na faculdade de psicologia da PUC-SP e tambm no

    Mackenzie. Em minhas aulas buscava levar um pouco da experincia prtica que fui

    adquirindo ao longo dos anos, tentando mostrar como o psiclogo poderia contribuir

    para a sade do trabalhador nas organizaes. Encontrei novamente terreno frtil para

    discutir os limites e possibilidades de atuao crtica do psiclogo nas organizaes a

    partir das discusses com meus colegas que compem o ncleo de trabalho2, da

    faculdade de psicologia da PUC-SP.

    Ali tive a oportunidade de trocar experincias com colegas de diferentes

    perspectivas como a sade do trabalhador ou a psicologia social do trabalho, e que

    atuavam em campos distintos, como o sindicato, rgos de assistncia ao trabalhador,

    entidades de fiscalizao social, ONGs e cooperativas, alm do convvio com outros

    colegas que atuam em empresas. Durantes esses anos de convvio, o grupo tem

    discutido, dentre outros temas, sobre os limites e possibilidades de uma atuao

    integrada entre estes diferentes campos. Tais discusses me levaram a querer

    organiz-las melhor em forma de pesquisa, o que me levou ao programa de doutorado

    em psicologia social da PUC-SP.

    Ali pude ento consolidar a minha viso que a atuao do psiclogo no mundo

    do trabalho, pode ser articulada a partir de diferentes frentes, cada qual com seu papel

    tendo o trabalhador como objetivo final. Tive a oportunidade de organizar melhor as

    ideias que vinha tentando amadurecer de fazer uma psicologia organizacional crtica e

    que se integrasse com outras reas da psicologia do trabalho com vistas a buscar uma

    atuao sinrgica entre todos os profissionais da rea com a finalidade de contribuir

    para a promoo de sade do trabalhador. Depois de muitas discusses com os

    colegas, ocasies em que tencionvamos sobre as possibilidades ou no de atuao

    crtica do psiclogo nas organizaes, conheci o C., ento presidente da Metalcoop.

    Naquela ocasio ele foi ministrar uma palestra aos alunos do Ncleo falando de sua

    experincia com as chamadas fbricas recuperadas, especificamente a experincia da

    Metalcoop. Em seu relato ele contava do projeto e das enormes conquistas que

    tiveram at ento, mas tambm sinalizava para os grandes desafios que ainda tinham

    principalmente no que dizia respeito gesto de pessoas. Estava ali a oportunidade

    para conciliar os temas de interesse recente e propor uma atuao que fosse mais

    2 Atualmente fazem parte do Ncleo de trabalho na faculdade de psicologia da PUC-SP os seguintes

    professores. Andr Bruttin; Carmem Rittner; Elisa Zaneratto; Fabio de Oliveira; Jos Agnaldo Gomes;

    Julianna Flores; Maria Cristina Gattai; Odair Furtado e Renata Paparelli.

  • 7

    integrada e crtica, para quem sabe depois conseguir extrapolar este modelo para

    outros setores tambm. Estabeleci contato com o C. e rapidamente j estava fazendo

    as visitas iniciais Metalcoop que perduram at hoje, totalizando j cerca de 18 meses

    de convvio.

    1.2. A pesquisa do doutorado

    Assim cheguei a presente pesquisa que busca dar a sua contribuio para a

    psicologia social, dentro do campo da psicologia organizacional e do trabalho,

    mais especificamente para aqueles que buscam formas de gerir pessoas em fbricas

    recuperadas, e tem como referencial terico a psicologia scio-histrica.

    Recentemente (a partir da dcada de 90) temos visto no Brasil, e America latina,

    o crescimento de uma nova forma de articulao dos trabalhadores que pode resultar

    em um avano no que diz respeito a possibilidades concretas de novas formas de

    organizao do trabalho em que o trabalhador esteja em primeiro plano e no o

    capital, resultando assim em um progresso no que diz respeito busca pela

    emancipao. Tal forma de organizao tem sido referida na literatura acadmica

    como fbricas recuperadas e tem como principal caracterstica o fato de os

    trabalhadores (scio-trabalhadores) assumirem a gesto e o controle dos processos

    de produo de empreendimentos industriais que estavam em fase pr-falimentar.

    Tal movimento tem sido apontado como uma alternativa ao sistema capitalista

    de produo, ainda hegemnico, uma vez que tem nos ideais da autogesto os seus

    principais alicerces estruturais. No entanto, as recentes pesquisas sobre o tema de

    Santos, (2007) Azevedo, (2003) Juvenal, (2006) Gitahy e Azevedo, (2007) Costa,

    Tittoni, Barbieri e Maraschin, (2008) Novaes, (2007) tm demonstrado que ainda

    existem enormes desafios a serem equacionados, apesar das inegveis conquistas

    que a nova forma de organizao traz aos trabalhadores. O argumento o de que o

    modelo de gesto das fbricas recuperadas at o momento apresentou-se como um

    modelo que permitiu aos empreendimentos se organizarem enquanto negcio, mas

    que ainda no trouxe tantos ganhos para o trabalhador. Apesar dos avanos

    apresentados em relao a prticas de gesto eles ainda so tmidos se pensarmos

    nas possibilidades que o modelo permite. A principal explicao, Juvenal, (2006)

    Novaes, (2007) Azevedo, (2007) para tal realidade reside no fato das iniciativas de

    fbricas recuperadas terem tido motivaes mais pragmticas (defesa dos postos de

    trabalho) do que ideolgicas (construo de modelo de gesto que subverta a lgica

    capitalista).

    Quebrar a lgica capitalista do sistema de produo e conseguir avanar em

    prticas que permitam maior autonomia aos trabalhadores (buscando o sentido

  • 8

    emancipatrio) e ao que Juvenal (2006) chamou de desenvolvimento humano atravs

    do trabalho parece ser um dos grandes desafios que teremos nas fbricas

    recuperadas. Meu argumento o de que a psicologia social do trabalho e das

    organizaes pode dar importante contribuio para equacionar tal desafio, ajudando

    a construir um modelo de gesto nas fbricas recuperadas que contribua para a

    promoo de sade do trabalhador, a partir de uma atuao crtica.

    Para tanto o campo da psicologia organizacional e do trabalho tem que

    resolver seus prprios dilemas e desafios. Diferentes autores, como Ribeiro (2009);

    Furtado; (2005); (2009); Heloani; (2005) Spink; (1996) Veronese; (2003) Sampaio,

    (1998) tm apontado para a necessidade de repensarmos a atuao do psiclogo no

    mundo do trabalho, mais especificamente nas organizaes. Recentemente uma nova

    vertente de atuao vem sendo proposta por alguns autores, que buscam uma nova

    forma de pensar e agir no mundo do trabalho, seria a proposta de uma psicologia

    social do trabalho e das organizaes. A tese defendida neste trabalho a de que a

    proposta trazida por esta vertente, que busca na psicologia social subsdios para a

    atuao do psiclogo no mundo do trabalho, pode contribuir para avanar em relao

    a alguns dos dilemas por estes vivenciados abrindo caminho para construir uma

    proposta para que o sistema de gesto de pessoas nas fbricas recuperadas coloque

    o trabalhador em primeiro plano e no o capital.

    Tal viso permitiria psicologia desconstruir a falsa distino, conforme aponta

    Spink, (1996) entre a psicologia terica e a psicologia aplicada, integrando-as,

    permitindo que as aes do psiclogo no mundo do trabalho fossem mais articuladas

    em prol da sade do trabalhador, sem, no entanto, abandonar as especificidades

    inerentes a diferentes campos de atuao como as organizaes, sindicatos, polticas

    pblicas, rgos de assistncia ao trabalhador entre outros. A psicologia social do

    trabalho e das organizaes permitiria a construo de um arcabouo terico

    metodolgico a partir da psicologia social que propiciasse tal atuao do psiclogo em

    diferentes contextos.

    Neste trabalho convido a psicologia de perspectiva scio histrica para este

    debate, por acreditar que esta rene elementos tericos e metodolgicos que podem

    contribuir para a atuao do psiclogo inserido no mundo do trabalho e

    consequentemente para a discusso a cerca da implantao de um sistema de gesto

    nas fbricas recuperadas que tenha os trabalhadores como protagonistas.

  • 9

    1.3. Objetivos do trabalho

    Vemos em diversas situaes o trabalho como agente de adoecimento,

    causado por uma forma de organizao do trabalho que privilegia o capital em

    detrimento do trabalhador, impondo rotinas desumanas em busca do lucro. No entanto,

    tambm entendemos o trabalho como importante agente promotor de sade, capaz de

    dar acentuada contribuio para o desenvolvimento humano. Muitas das causas do

    trabalho gerador de adoecimento esto associadas lgica capitalista de produo de

    mais valia a partir da explorao do trabalhador. Buscamos a partir da experincia de

    uma fbrica recuperada, portanto, no capitalista, apesar de inserida em mercado

    capitalista, avanar em relao a experincias de gesto que coloquem o trabalho a

    servio da emancipao e da sade do trabalhador, viabilizando o que temos

    chamado de desenvolvimento humano atravs do trabalho.

    Objetivamos, ainda, contribuir com o movimento das fbricas recuperados, a

    partir de uma estratgia de fortalecer o movimento de dentro para fora, sabendo que j

    existem muitos colegas debatendo e pesquisando o caminho inverso. Para fazer frente

    ao capital e se consolidar como alternativa concreta, o movimento das fbricas

    recuperadas precisa crescer e se mostrar ao trabalhador como uma alternativa

    possvel e melhor do que a que ele encontra na iniciativa privada (ainda mais em um

    momento econmico de taxas baixssimas de desemprego no pas). Como veremos

    no decorrer deste trabalho tem sido comum nas fbricas recuperadas a utilizao de

    tcnicas e tecnologias emprestadas do modelo capitalista de produo e, portanto,

    inadequadas para os ideais do movimento, sendo este um dos principais problemas

    enfrentados nestes empreendimentos. nosso objetivo, portanto, produzir tecnologia

    adequada para a realidade das fbricas recuperadas construindo um sistema de

    gesto que coloque a sade do trabalhador em primeiro plano, contribuindo para que

    os projetos do grupo e tambm os projetos pessoais possam ser convergentes,

    contribuindo para tornar as fbricas recuperadas no apenas viveis em termos de

    negcios, mas tambm mais atraentes ao trabalhador no que diz respeito

    organizao do trabalho.

    Entendo ainda que a psicologia pode dar especial contribuio para este

    objetivo na medida em que tem o repertrio terico metodolgico para analisar e atuar

    sobre as relaes psicossociais que esto presentes neste cenrio. No entanto, para

    conseguir o objetivo de promover sade por meio do trabalho, so necessrios, alm

    do repertrio tcnico, viso crtica e poder de influncia sobre as prticas e polticas da

    organizao.

    Podemos ento dizer que o presente trabalho tem por objetivo.

  • 10

    a) Desenvolver um sistema de gesto de pessoas na Metalcoop capaz de

    colocar o trabalho a servio do trabalhador, contribuindo para a sua

    promoo de sade3 e buscando a sua emancipao4 atravs do trabalho.

    b) Como objetivo especfico buscamos ainda desenvolver um modelo de

    gesto pensado para a realidade das fbricas recuperadas e que

    eventualmente possa ser utilizado por outras organizaes com tais

    caractersticas contribuindo assim com o fortalecimento do movimento.

    c) Temos ainda a inteno, a partir do caso da Metalcoop, de estabelecer

    alguns parmetros para ajudar no direcionamento de uma psicologia crtica

    dentro das organizaes.

    Por fim preciso ainda dizer que, durante estes quatro anos de pesquisa,

    tenho buscado fazer o que o legado de Silvia Lane nos ensinou, uma psicologia social

    marcada pela Praxis, onde teoria e prtica se fundem em busca de uma sociedade

    melhor.

    Para fazer tal discusso a linha de raciocnio proposta neste trabalho a

    seguinte.

    No primeiro captulo, Fbricas Recuperadas, aps traar um panorama do

    movimento no Brasil, argumento que o modelo de gesto das fbricas recuperadas

    at o momento apresentou-se como um modelo que permitiu aos empreendimentos se

    organizarem enquanto negcio, mas que ainda no trouxe tantos ganhos para o

    trabalhador, principalmente se pensarmos em relao s possibilidades que um

    modelo como este oferece. O grande desafio seria ento construir um sistema de

    gesto que colocasse a sade do trabalhador em primeiro plano, buscando o

    desenvolvimento humano atravs do trabalho. Argumento que a psicologia social do

    trabalho e das organizaes pode ter importante contribuio neste desafio.

    A seguir, no captulo intitulado A psicologia no mundo do trabalho, apresento

    uma reconstituio histrica da evoluo do campo da psicologia organizacional e do

    trabalho, desde a sua origem como psicologia aplicada, passando pela fase em que

    incorpora as teorias das relaes humanas at a fase mais atual. Para fazer tal reviso

    apoio-me principalmente nos trabalhos de Zanelli (2003), Sampaio (1998), Malvezzi

    3 O conceito de sade ser mais amplamente discutido nos captulos 03 e 04 deste trabalho. No entanto,

    podemos adiantar que estaremos trabalhando com o conceito de sade conforme trabalhado na

    perspectiva da psicologia scio-histrica que entende sade como um processo e no algo estanque. E

    buscar a promoo da sade envolveria criar condies para o sujeito adotar postura ativa de fazer face s

    dificuldades do meio fsico, psquico e social, de atender sua existncia e, portanto, lutar contra elas. 4 O conceito de emancipao ser trabalhado em articulao com o conceito de identidade conforme

    proposto por Antonio da Costa Ciampa e identificado a partir do sintagma identidade-metamorfose-

    emancipao. No captulo 03 este conceito ser apresentado em maiores detalhes.

  • 11

    (2000), Ribeiro (2009), Veronese (2003). Fao ento a discusso em relao aos

    principais desafios e crticas rea a partir desta reviso histrica, para ento fazer

    uma proposta de caminho a ser seguido que parece se no equacionar todos os

    dilemas, avanar em relao a alguns deles. Tal proposta se apoia nas ideias da

    psicologia social do trabalho e das organizaes que busca na psicologia social

    subsdios para a atuao do psiclogo no mundo do trabalho. Argumento que a

    Psicologia Scio-Histrica tem elementos tericos e metodolgicos para ajudar a

    construir tal modelo.

    No terceiro captulo, A psicologia de perspectiva scio-histrica, a discusso

    que fao a de que a psicologia de perspectiva scio-histrica tem elementos tericos

    e metodolgicos que podem ajudar a psicologia organizacional e do trabalho a

    avanar em relao a um modelo de atuao que consiga contribuir para a promoo

    de sade do trabalhador. Fao esta discusso a partir da reviso de alguns dos

    principais conceitos presentes nesta perspectiva luz da realidade das fbricas

    recuperadas. O tema identidade ganha especial destaque nas discusses deste

    captulo medida que a partir deste conceito, conforme proposto por Antonio da

    Costa Ciampa, que trabalho tambm a proposta de emancipao.

    Na sequncia apresento a discusso sobre o mtodo utilizado na pesquisa, o

    campo-tema (Spink 2003). Aqui fao tambm a discusso mais aprofundada sobre o

    conceito de sade que vou utilizar no trabalho na Metalcoop. Como dito anteriormente

    o presente trabalho foi todo realizado na Metalcoop, indstria do setor de forjaria

    localizada na regio de Salto e que desde 2002 funciona como uma cooperativa, nos

    moldes do que a literatura acadmica vem tratando como fbrica recuperada. Foram

    cerca de 18 meses de encontros semanais na Metalcoop.

    Posteriormente apresento o captulo referente anlise dos dados em que

    busco analisar, a luz do conceito de promoo de sade nas organizaes

    apresentado no captulo anterior, como estava posicionado o sistema de gesto de

    pessoas na Metalcoop no momento inicial do meu projeto. A partir deste Diagnstico

    so identificados pontos que podem ser melhorados para que o objetivo de promoo

    de sade do trabalhador seja atingido.

    No captulo seguinte apresentado o plano de ao de gesto de pessoas com

    foco em promoo de sade elaborado a partir das necessidades identificadas no

    diagnstico, apresentado anteriormente.

    O prximo captulo descreve o processo de implantao do programa

    destacando os principais resultados obtidos at ento.

    Finalmente no ltimo captulo resgato os objetivos iniciais da pesquisa para

    fazer as consideraes finais sobre se os objetivos propostos foram atingidos ou no.

  • 12

    Captulo II

    Fbricas recuperadas

  • 13

    2. Fbricas recuperadas, cooperativas e autogesto

    No incio dos anos 90 surge no Brasil uma nova forma de organizao do

    trabalho, que coloca o trabalhador como figura central na gesto do processo

    produtivo e dos bens de produo, trata-se de experincias em empreendimentos em

    fase pr-falimentar que veem os seus antigos trabalhadores se organizarem para

    continuar a oper-lo, garantindo assim a permanncia de postos de trabalho, alm da

    possibilidade de colocarem o trabalhador como polo central da produo. Na literatura

    acadmica, tais experincias tm sido denominadas de fbricas recuperadas 5, mas

    tambm em muitos casos o conceito de fbricas recuperadas e cooperativas tem sido

    trabalhado por diversos autores de maneira muito prxima, em muitos momentos

    ficando difcil a diferenciao entre ambos. Juvenal, (2006) aponta para esta questo.

    Dimensionar o segmento de empresas recuperadas no Brasil uma tarefa bastante difcil. Essas empresas no contam com arcabouo jurdico especfico, como as sociedades laborais espanholas, e so constitudas, normalmente, sob a forma de cooperativas ou associaes de trabalhadores. As diferenas existentes nas cooperativas e associaes tradicionais que as tornam empresas recuperadas em regime de autogesto somente podem ser identificadas atravs do exame da estrutura organizacional de cada empresa. (Juvenal, 2006, p.120)

    Santos (2007) tambm retoma o tema, ao justificar o uso mais recente do

    termo fbricas recuperadas em detrimento de cooperativas para identificar

    empreendimentos industriais geridos pelos trabalhadores no formato de autogesto.

    A utilizao desta expresso fbrica recuperada muito recente no Brasil (at pouco tempo falava-se apenas em empresas autogestionrias). A expresso era mais comum no movimento argentino e comeou a ser utilizada com frequncia no Brasil por denotar com mais clareza o tipo de empreendimento a que se refere. (Santos, 2007, p.78)

    Neste trabalho, optamos por utilizar a nomenclatura de fbricas recuperadas,

    para podermos diferenci-las de cooperativas de pequeno porte que no atuem no

    setor industrial, uma vez que o interesse neste tema reside justamente no modelo de

    gesto adotado por trabalhadores que assumem fbricas de mdio e grande portes.

    5 Alguns autores utilizam o termo empresas recuperadas, com o mesmo sentido de fbricas

    recuperadas.

  • 14

    O fenmeno das fbricas recuperadas pode ser entendido como parte de um

    movimento ainda mais amplo, a economia solidria 6 que por sua vez pode ser

    entendida como um conjunto de iniciativas que busca uma forma alternativa de

    organizao do trabalho baseada nos preceitos de autogesto 7 como um ideal de

    sociedade igualitria. Seria uma busca por formas alternativas ao capitalismo de

    organizao social, procurando estabelecer parmetros humanistas, democrticos e

    socialistas da distribuio de renda.

    Dentro desta perspectiva, as fbricas recuperadas recolocam a autogesto

    como pressuposto de uma estratgia alternativa de luta ao buscarem colocar o

    trabalhador no centro do processo decisrio produtivo e priorizando-o em relao ao

    capital na distribuio dos excedentes econmicos gerados pelo seu trabalho. Parece-

    nos claro que as iniciativas adotadas nas fbricas recuperadas encontram muita

    uniformidade com outras prticas da economia Solidria, como a democracia na forma

    de gesto, a busca pela diminuio da desigualdade na distribuio de renda, a

    priorizao do trabalhador em detrimento do capital na forma de remunerao e a

    deteno do controle sobre os meios de produo.

    Majoritariamente, as experincias de empresas recuperadas em autogesto se reconhecem no conjunto mais amplo de iniciativas coletivas de trabalhadores na esfera econmica, constituindo um campo heterogneo que abriga diferentes prticas referenciadas no termo economia solidria. (Faria, M e Cunha, G, pg. 02, 2011)

    No entanto, apesar de podermos inserir o movimento das fbricas recuperadas

    como parte da economia solidria importante lembrarmos que tais empreendimentos

    guardam particularidades que devem ser estudadas e trabalhadas de forma isolada.

    Apesar de serem cooperativas, como entidade jurdica, as fbricas recuperadas

    6 Apesar da diversidade de conceitos, pode-se caracterizar a Economia Solidria como o

    conjunto de empreendimentos produtivos de iniciativa coletiva, com certo grau de democracia interna e que remuneram o trabalho de forma privilegiada em relao ao capital, seja no campo ou na cidade. (Nascimento, 2003, p.1). Para mais informaes a respeito do tema, ver Autogesto e economia solidria: O desafio das fbricas recuperadas no Brasil. Faria, M, e Cunha, G, 2011. 7

    Claudio nascimento, 2003, recupera a definio de autogesto trabalhada durante a conferncia nacional pelo socialismo autogestionrio, realizada em Lisboa, 1978, surgida como fruto das experincias das comisses de trabalhadores durante a experincia da revoluo dos cravos (1974) para nos lembrar de que as fbricas recuperadas fazem parte do ponto de vista ideolgico do iderio de autogesto. A autogesto a construo permanente de um modelo de socialismo, em que as diversas alavancas do poder, os centros de deciso, de gesto e controle, e os mecanismos produtivos sociais, polticos e ideolgicos, se encontram nas mos dos produtores-cidados, organizados livres e democraticamente, em formas associativas criadas pelos prprios produtores-cidados, com base no principio de que toda a organizao deve ser estruturada da base para a cpula e da periferia para o centro, nas quais se implante a vivncia da democracia direta, a livre eleio e revogao, em qualquer momento das decises, dos cargos e dos acordos. (Nascimento, 2003)

  • 15

    diferem da imensa maioria das cooperativas que fazem parte do movimento da

    economia Solidria pela quantidade de cooperados que agregam, pelo faturamento

    gerado 8, segmento de negcio e estrutura organizacional.

    Assim, ao mesmo tempo em que tem construdo sua identidade enquanto parte integrante da economia Solidria, as empresas recuperadas em sistemas de autogesto tambm vm se afirmando como segmento diferenciado, com caractersticas e demandas muito prprias. (Faria,M e Cunha,G, 2011, p.08)

    preciso ainda frisar que as fbricas recuperadas so um movimento

    relativamente novo na luta dos trabalhadores por melhores condies de trabalho, que

    vem a se somar s estratgias utilizadas anteriormente como sindicatos, comisso de

    fbrica e partidos polticos e como tal ainda tem muita oportunidade de

    desenvolvimento. O presente trabalho busca dar a sua contribuio para o movimento

    das fbricas recuperadas lanando um olhar para dentro delas, buscando contribuir

    para que as estratgias de gesto adotadas por estes empreendimentos realmente

    consigam materializar os ideais que buscam devolver ao trabalhador parte das

    condies que o capital expropriou.

    2.1. As origens das fbricas recuperadas no Brasil

    O perodo, dcada de 90, que marca os primeiros exemplos no Brasil de

    fbricas recuperadas funcionando em regime autogestionrio foi caracterizado por

    uma srie de fatores macro econmicos tais como; abertura do mercado, adoo de

    polticas econmicas com vis neoliberal, reestruturao produtiva, fechamento de

    fbricas, valorizao cambial, aumento da taxa de juros, barateamento dos produtos

    importados, que resultaram em um grande aumento do nmero de trabalhadores

    desempregados e a fragilizao das relaes de trabalho. Mais precisamente no setor

    industrial, onde se inserem as fbricas recuperadas autogeridas, estes ndices ficaram

    alarmantes.

    Segundo Juvenal, 2006, A anlise da evoluo do nmero de ocupados na indstria atravs da pesquisa de emprego e desemprego na regio metropolitana de so Paulo indica que a participao da indstria de transformao passou de 33% em 1989 , portanto, anteriormente abertura comercial para 19,6% em 1999, oscilando nesse patamar a partir de ento. (Juvenal, 2006, p.117)

    8

    As fbricas recuperadas apesar de representarem apenas 10% do total de cooperativas filiadas a UNISOL, so responsveis por 75% de toda a movimentao financeira ali gerada.

  • 16

    neste cenrio que surgem as primeiras experincias de empresas

    autogeridas no Brasil. Diversos autores, Santos (2007) Azevedo, (2003) Juvenal,

    (2006) Gitahy e Azevedo, (2007) Novaes, (2007) Costa, Tittoni, Barbieri e Maraschin

    (2008) entendem que as primeiras experincias neste sentido tiveram uma motivao

    muito mais pragmtica, a defesa do emprego, do que ideolgica. Tais autores

    enxergam na crise do emprego vivida na poca o principal impulsionador para que os

    trabalhadores buscassem novas formas de manter o seu trabalho. Neste caso, o

    carter ideolgico de se posicionar como alternativa ao sistema capitalista de

    produo ficava em segundo plano. A organizao autogestionria para recuperao

    de empresas menos marcada pela ideologia do que pelo pragmatismo (Juvenal,

    2006, p.127). No incio dos anos 90 os trabalhadores brasileiros viam seus postos de

    trabalho diminuir e as alternativas encontradas pelo sindicato ou governo eram

    insuficientes para mitigar os problemas decorrentes desta crise no emprego. Assumir a

    gesto de fbricas para evitar o seu fechamento e consequente extino de postos de

    trabalho foi alternativa encontrada naquele contexto por grupos de trabalhadores. A

    defesa dos empregos era um imperativo naquele momento.

    As cooperativas industriais autogestionrias emergem nesse cenrio como um conjunto de iniciativas dos trabalhadores de fbricas em processo de falncia, cujo objetivo foi tentar se reinserir no mercado atravs de formas associativas de produo. Esses empreendimentos resultam do esforo dos trabalhadores de reconquistar seus empregos, seja pela recolocao em funcionamento das empresas em que trabalhavam, seja pela criao de novas empresas. (Gitahy, Azevedo, 2007, p.4)

    No entanto, mesmo aqueles autores que concordam que as motivaes iniciais

    do movimento foram pragmticas no sentido de defesa do emprego, tambm apontam

    para os avanos da proposta do ponto de vista ideolgico.

    Mesmo sabendo que o objetivo primordial das fbricas recuperadas seja a defesa dos postos de trabalho, elas no so uma resposta automtica s condies macroeconmicas dos anos 1990, mas tambm resultado de um novo contexto, de um novo clima social e de uma crise estrutural do capital. Mais precisamente, trata-se de um novo fenmeno social ou num novo mtodo desenvolvido pela classe trabalhadora brasileira num contexto onde a luta sindical tradicional por carteira assinada no encontrava mais resultados. (Novaes, 2007b, p.4)

    Santos, (2007) outra autora que enxerga um grande avano ideolgico na

    composio das fbricas recuperadas, visualizando ali o embrio de uma nova forma

  • 17

    de organizao do trabalho, que permita colocar o trabalhador em primeiro plano, em

    detrimento do lucro a qualquer preo. Sobre isto a autora diz.

    Para que a vida humana deixe de ser degradada pela lgica capitalista e seus modelos de gesto do processo de trabalho, necessrio romper com os mesmos, colocando a produo em favor da emancipao do trabalhador e buscando construir uma sociedade com outros valores, capazes de contrapor a reproduo do capital e das relaes sociais estabelecidas Mais adiante a autora ainda diz. Essas fbricas recuperadas implicam outra proposta de organizao e gesto do processo de trabalho, diferente daquela estabelecida pelo sistema capitalista. Trata-se da autogesto baseada nos valores e princpios do cooperativismo que aponta para condies de democracia, equidade, igualdade e solidariedade. (Santos, 2007, p.83)

    Com mais ou menos apelo ideolgico, o fato que o grande estopim para as

    primeiras iniciativas de unio dos trabalhadores para assumir a gesto das fbricas foi

    mesmo a crescente ameaa de desemprego que naquele incio de anos 90 no

    parava de crescer e que as medidas adotadas at ento por governo, iniciativa privada

    e sindicatos no conseguiam estancar. A partir do insucesso de algumas polticas

    pblicas para diminuir a situao de desemprego no pas que j estavam em

    andamento ou que foram introduzidas na gesto Fernando Henrique Cardoso, como

    programas para recompor a capacidade competitiva do nosso parque industrial;

    Programa de tecnologia industrial bsica, Programa Brasileiro de Design, Programa

    Brasileiro de Qualidade, ou de programas para a requalificao dos trabalhadores,

    como o Planfor, Programa Nacional de Qualificao do trabalho, os trabalhadores

    passam a ter de enfrentar o problema do desemprego por outras vias e os

    trabalhadores industriais, tradicionalmente um segmento mais organizado, comeam

    ento a buscar as suas prprias alternativas.

    Diferentemente da populao historicamente excluda e marginalizada, que buscava conquistar seus direitos de cidadania, os trabalhadores industriais, desempregados e sem perspectivas concretas de reabsoro pelo sistema produtivo formal, constituam uma classe organizada e instruda. (Juvenal, 2006, p.116)

    E com a ajuda do sindicato e de entidades de apoio vo se organizando e

    formando as primeiras experincias do que hoje chamamos de fbricas recuperadas.

    De acordo com registros da Associao Nacional dos Trabalhadores em Autogesto

    (Anteag) a primeira experincia nacional de recuperao de empresas por

    trabalhadores surgiu em 1991, em Franca. Tal experincia, bem-sucedida,

  • 18

    disseminou-se no meio sindical, que encontrou ali uma alternativa para estancar e

    combater o desemprego crescente.

    Azevedo e Gitahy (2003) resgatam a importncia do movimento sindical para o

    processo de desenvolvimento das fbricas recuperadas e observam que uma das

    primeiras iniciativas do movimento sindical cutista a discutir o tema da autogesto foi o

    seminrio autogesto: a realizao de um sonho ocorrido em dezembro de 1994, no

    Rio grande do Sul. As autoras mencionam ainda que, em 1995, o terceiro congresso

    da confederao nacional dos metalrgicos inclui em sua pauta o tema da autogesto

    e, no ano seguinte, promovem seminrio nacional sobre o tema. Oda (2001) tambm

    nos ajuda a entender a importncia que o sindicato teve no processo de constituio

    das fbricas recuperadas ao relatar que, em 1996, o sindicato dos metalrgicos do

    ABC decide que scios-trabalhadores de cooperativas metalrgicas passariam a ser

    admitidos como scios do sindicato, o que fez com que definitivamente o tema

    ganhasse espao no sindicato. Ainda segundo as autoras, tambm em 1996, outro

    fato marca a relao entre sindicato e empresas autogeridas que a criao, pela

    CUT, do programa Integrar, que visa a desenvolver e planejar a formao profissional

    e resgatar as relaes entre sindicato e trabalhadores desempregados, tendo como

    um dos focos a reinsero dos trabalhadores a partir da experincia com empresas

    autogeridas.

    Em 2000 a CUT cria, atravs de resoluo, a Unio e solidariedade das

    Cooperativas do Estado de So Paulo (UNISOL cooperativas) e em 2002 A CUT

    decide pela criao da UNISOL Brasil (central de cooperativas e empreendimentos

    autogestionrios do Brasil) que representaria as cooperativas de produo e servios.

    Outra entidade que tem tido especial relevncia no cenrio de apoio e

    desenvolvimento do movimento de empresas autogestionrias no Brasil, a ANTEAG.

    (Associao Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogesto) Segundo

    Marques (2006, 52) a criao da ANTEAG, em 1994, foi um marco no apoio e

    articulao das primeiras experincias de empresas recuperadas surgidas na dcada

    de noventa, dando visibilidade ao problema e buscando solues para as empresas

    em processo de falncia.

    Segundo dados levantados por Juvenal (2006), em 2005, a Senaes (Secretaria

    Nacional de Economia Solidria) identificou 174 empresas recuperadas no Brasil.

    Ainda segundo o autor, 36% destas empresas surgiram entre 1990 e 2000, enquanto

    no quinqunio que vai de 2000 a 2005, o nmero aumentou para cinquenta casos,

    tendo como principal explicao para o aumento a divulgao de experincias de

    sucesso alm da maior estrutura de apoio ofertada por instituies, tais como UNISOL

    Brasil e a prpria Anteag.

  • 19

    2.2. O processo de formao e desenvolvimento das fbricas recuperadas

    Apesar das particularidades de cada empreendimento ocasionadas por diferenas

    no segmento de atuao, estilo de gesto dos antigos proprietrios, localizao, entre

    outras, a literatura tem mostrado que existem muitas caractersticas em comum entre

    as fbricas recuperadas, principalmente no que diz respeito ao seu ciclo de formao

    e desenvolvimento. Em trabalho de 2006, A diferena da igualdade: a dinmica da

    economia solidria em quatro cidades do MERCOSUL, Cruz, caracteriza o ciclo

    econmico e sociopoltico pelo qual passam de maneira geral as empresas

    recuperadas. So 12 fases de um ciclo que o autor explica da seguinte maneira.

    1) Atraso dos compromissos financeiros O que caracteriza esta etapa do ciclo

    comum a diversas fbricas recuperadas o atraso ou simplesmente o no

    cumprimento de compromissos financeiros tais como contribuies sociais

    trabalhistas, fisco, salrios, bancos e fornecedores. Tais atrasos repetidos so,

    geralmente, o sintoma que desencadeia o processo de organizao dos

    trabalhadores.

    2) Organizaes dos trabalhadores Diferentes tipos de iniciativas de

    organizao dos trabalhadores em prol de seus direitos sero empreendidas

    variando de acordo com a relao com o sindicato, do mercado de trabalho e

    do prprio histrico de mobilizao dos trabalhadores.

    3) Manobras legais e contbeis Neste momento comum, segundo o autor, as

    empresas buscarem manobras jurdicas tais como transferncia de capital,

    descapitalizao, etc. para tentar preservar o patrimnio dos proprietrios.

    4) Mobilizao para ocupao da empresa Ao longo deste processo os

    trabalhadores percebendo os seus direitos ameaados e a iminente perda de

    seus postos de trabalho, busca a mobilizao para ocupar a empresa e tomar

    para si a administrao da mesma ao mesmo tempo em que buscam a

    articulao com a sociedade atravs de sindicatos, rgos pblicos e imprensa.

    5) Luta judicial pela posse do capital fixo da empresa Com o apoio externo

    conseguido atravs do impacto miditico e das mobilizaes dentro da

    comunidade os trabalhadores iniciam luta judicial para tentar obter o controle

    da empresa.

  • 20

    6) Configurao jurdica A configurao jurdica que ir resultar na posse por

    parte dos trabalhadores do maquinrio, edifcios, estoques, etc. ir variar de

    acordo com a legislao vigente no pas.

    7) Perdas de trabalhadores Durante o processo muitos trabalhadores

    abandonam a organizao coletiva e por diversas razes como conflitos

    internos, desalento, obteno de emprego, interesse na indenizao, etc.

    buscam os seus prprios interesses particulares, desmobilizando em parte o

    movimento.

    8) Recolocar a fbrica em funcionamento Resolvida a questo jurdica os

    trabalhadores tem de correr atrs de contatos com fornecedores e clientes,

    organizar a gesto, obter crdito para remontar estoques e manuteno do

    maquinrio, substituio de trabalhadores que deixaram o movimento, para

    ento colocar novamente a fbrica em operao.

    9) Conflitos internos Geralmente neste incio, e em muitos casos, durante um

    longo perodo de tempo estabelecem-se uma srie de conflitos internos em

    decorrncia de discusses sobre a escolha de quem administrar a empresa,

    processo de tomada de deciso, nvel de autonomia, cdigo de conduta entre

    outros aspectos de gesto.

    10) Reconquista do mercado tambm neste incio de operao que as

    empresas devem passar pela dura misso de reconquistar o mercado que

    perdeu a confiana na capacidade de entrega da empresa durante o perodo

    de crise que culminou com a ocupao dos trabalhadores, alm de tambm ter

    de lutar contra a desconfiana de serem administrados pelos prprios

    trabalhadores.

    11) Auxlio tcnico O autor lembra ainda que os trabalhadores costumam neste

    momento se socorrer de auxlio tcnico em universidades, sindicatos,

    organizaes sem fins lucrativos, consultores conhecidos ou indicados para

    resolver questes de gesto que at ento no haviam sido sanadas.

    12) Institucionalidade Finalmente, a institucionalidade interna da empresa se

    estabiliza a partir de pactos sucessivos, que, ainda que temporrios, so

  • 21

    suficientes para permitir uma rotina produtiva caracterizada pelo controle

    coletivo das aes administrativas e pela existncia de espaos baseados na

    apropriao coletiva e efetiva da empresa pelo conjunto dos trabalhadores

    (Cruz, 2006, p. 193-195)

    2.3. O modelo de negcio das fbricas recuperadas

    Como vimos at aqui algumas caractersticas tm sido identificadas como

    comuns na estrutura das fbricas recuperadas, e de uma forma geral podemos

    tambm perceber que o seu modelo de negcio guarda alguns elementos comuns. O

    histrico de dificuldades financeiras e de relacionamento com o mercado que

    antecedeu a ocupao das empresas traz uma srie de consequncias para o negcio

    destas empresas que acabam por influir na sua maneira de operar.

    O fato das empresas oriundas de massa falida j estarem inseridas no mercado e esse conhecer a qualidade do produto oferecido por elas, muitas vezes pode se apresentar como um gargalo devido ao atraso do pagamento no caso dos fornecedores, ou o no cumprimento de prazos no caso dos clientes. O volume da produo tambm outro problema, pois normalmente as empresas autogeridas, devido s dvidas assumidas e falta de crdito, no conseguem bons prazos com os fornecedores, e a reduo do quadro de trabalhadores contribui para a queda na escala de produo. (Azevedo, 2003, p. 5)

    Tais caractersticas fazem com que o grande direcionador estratgico que

    permita competitividade s fbricas recuperadas seja a sua capacidade de

    flexibilizao e adaptao s necessidades do cliente fazendo com que estas

    empresas tendam a ter mais sucesso em segmentos customizados em que a

    produo no dependa de escala. No podemos afirmar que a organizao destas

    empresas aconteceu a partir de um intenso planejamento estratgico que culminou em

    uma organizao interna que as permitisse competir no mercado a partir de uma

    estrutura de gesto e produo flexvel, afinal a histria de organizao destas

    empresas feita muito mais atravs de aes emergentes que surgem para enfrentar

    novos desafios do que de forma planejada. No entanto, este parece ter sido o caminho

    que muitas delas trilharam para ganhar mercado e ao sofisticar a sua forma de gesto

    e produo para atender a esta necessidade de flexibilidade elas encontram o seu

    modelo de negcio. Neste cenrio o modelo de gesto que permite aos funcionrios

    interferir no processo de tomada de deciso acaba se revelando como importante

    vantagem competitiva.

  • 22

    Existem algumas variveis que as (fbricas recuperadas) diferenciam como a

    transparncia na gesto, maior participao e comprometimento do trabalhador,

    desenvolvimento de competncias em proveito da empresa, o aperfeioamento da

    qualidade, o estmulo criatividade dos cooperados na inovao de produtos e

    processos e a busca da eficincia atravs da cooperao. (Gitahy e Azevedo, 2007,

    p.20)

    A capacidade de seus trabalhadores de se adaptar a necessidade do cliente, a

    partir de processos flexveis de trabalho parece ser uma marca importante deste tipo

    de empreendimento que forjado em meio a uma srie de imprevistos e enormes

    adversidades, transformando ento estas adversidades em uma de suas foras no

    mercado.

    A competitividade de um empreendimento autogestionrio parece ser conferida pela capacidade de seus trabalhadores de ajustarem-se s necessidades do mercado. A produo de uma empresa recuperada, at mesmo por sua limitao de acesso ao capital, caracteriza-se basicamente, pelo baixo custo e pela flexibilidade. (Juvenal, 2006, p.122)

    Outra vantagem competitiva que tais empreendimentos utilizam como forma de

    ganhar mercado e abrir espao entre a concorrncia a sua capacidade de conseguir

    o comprometimento e o engajamento dos trabalhadores em relao aos objetivos

    organizacionais, que tambm so os seus objetivos, uma vez que todos participam

    como donos das empresas. Engajamento e comprometimento que ganham

    importncia em ambientes organizacionais em que a flexibilidade e customizao so

    os grandes direcionadores estratgicos.

    Tais empreendimentos encontram potencialmente no trabalho coletivo e na motivao dos trabalhadores que os compe, uma importante fonte de competitividade reconhecida no capitalismo contemporneo. Enquanto no fordismo a competitividade obtida atravs de economias de escala e de uma crescente diviso e alienao do trabalho associadas a linhas produtivas rgidas automatizadas ou no na nova base tcnica que est se configurando, uma importante fonte de eficincia a flexibilizao. (Tauile e Debaco, 2002 p. 2)

    A alta demanda por flexibilidade de um mercado com necessidades de

    customizao encontra na gil forma de organizao e desorganizao dos

    trabalhadores de fbricas recuperadas um fornecedor com caractersticas

    interessantes. As fbricas recuperadas no parecem normatizar as relaes com o

  • 23

    seu mercado consumidor no sentido de tentar fazer com que o mercado se adapte

    realidade da empresa, pelo contrrio, o que vemos uma enorme capacidade de

    reinveno contnua que tm estes empreendimentos, sendo capazes de alterar todo

    o seu ciclo de produo para entregar o que o mercado quer, ou em outras palavras,

    para entregar o que eles conseguiram vender.

    Quanto aos antigos mecanismos que controlavam a locomoo, tambm foram eles modificados. Hoje o espao continua a definir a funo, porm o trabalhador no est confinado a um s espao. Os trabalhadores possuem flexibilidade em sua movimentao pelo espao-funo, permanecendo em constante realocao no pr-planejada, mas sim, agenciada segundo as demandas contingenciais. (Costa, Luis, Tittoni, Jaqueline, 2008, p. 451)

    Outro ponto forte que as empresas autogeridas tm conseguido, e que se

    reverte em reduo de custos ou ganhos de produtividade, diz respeito aos ganhos de

    processo, uma vez que grande parte dos conhecimentos tcitos presentes na equipe

    remanescente se refere esfera da produo. As pesquisas recentes tem mostrado

    que quanto mais os trabalhadores das fbricas recuperadas participam do processo de

    deciso sobre os processos de trabalho, mais ganhos conseguem.

    Na esfera do produto e processo poucas mudanas significativas foram realizadas no incio dos empreendimentos, devido a vrios aspectos, dentre eles cabe citar a dependncia do cooperado ao antigo modelo de produo, a falta de capacitao tcnica/educacional, etc. Entretanto, na medida em que o processo de autogesto passou a ser incorporado pelos trabalhadores, algumas mudanas foram realizadas possibilitando ganho de produtividade. (Azevedo, 2003, p.27)

  • 24

    A tabela abaixo, 2.3.1. abaixo ilustra as principais estratgias de negcio

    destas organizaes.

    Fordismo Ps - fordismo

    - Competio por preos - Competies por inovaes

    - Trabalho como custo - Trabalho como recurso

    -Fragmentao das habilidades do

    trabalhador

    - Trabalhador com mltiplas habilidades

    -Separao do trabalho no ambiente

    intrafirma

    - Integrao do trabalho no ambiente

    intrafirma

    -Economias de escola - Economias de escopo

    Autogesto

    - Competio por preos

    - Trabalho como recurso

    - Trabalhador com mltiplas habilidades

    - Integrao do trabalho no ambiente intrafirma

    Fonte. Juvenal, 2006.

    Ao que nos parece, as fbricas recuperadas tm encontrado um modelo de

    negcio que se baseia na flexibilidade (flexibilidade para atender as necessidades do

    cliente em termos de prazos e produtos e tambm para modificar seus processos

    internos para atender tais demandas) como sua principal estratgia competitiva,

    modelo este que nasceu de forma emergente, e que aos poucos vai se aperfeioando.

    Assim, o modelo de autogesto que traz os trabalhadores para a arena principal no

    processo de tomada de deciso sobre os processos de produo se mostra bastante

    adequado do ponto de vista do negcio, que estimula tal flexibilidade tambm nos

    trabalhadores. bem verdade que tal exigncia de flexibilidade pode trazer efeitos

    negativos para o trabalhador, como nos apontam os autores abaixo mencionados:

    Suas identidades-funo, antes fortemente construdas em uma interioridade apropriada de si a partir de uma tecnologia de si (Foucalt, 1999), hoje se abriram para uma multideterminao fugaz, diretamente dependente das demandas de produo sempre momentneas. (Costa, Luis, Tittoni, Jaqueline, 2008, p.452)

  • 25

    A grande flexibilidade da empresa e sua capacidade de improviso,

    possibilitadas pelo engajamento dos profissionais, trazem ganhos para a empresa que

    se posiciona no mercado como fornecedor gil e verstil, mas tambm pode trazer

    dificuldades para a sade do trabalhador no que diz respeito ao excesso de improviso

    imposto a sua carga de trabalho. O que nos leva a crer que as fbricas recuperadas

    parecem estar encontrando um caminho para viabilizar o seu negcio, mas que ainda

    h espao para repensar as relaes de trabalho do ponto de vista da sade do

    trabalhador. Talvez este seja ainda um reflexo de um movimento que traz a semente

    da possibilidade de colocar o trabalhador em primeiro plano, mas que ainda carrega

    razes do sistema de produo de base capitalista, utilizando as tcnicas e tecnologias

    desenvolvidas neste contexto sem a devida reformulao das mesmas para atender

    agora aos objetivos do trabalhador e no do capital. O presente trabalho se insere

    exatamente neste ponto, buscando lanar o olhar da psicologia social do trabalho e

    das organizaes sobre o processo de gesto de pessoas nas fbricas recuperadas,

    buscando um formato pensado especificamente para o contexto das fbricas

    recuperadas que coloque o trabalho a servio da sade do trabalhador.

    2.4. O modelo de gesto nas fbricas recuperadas

    Vimos que o modelo de gesto das fbricas recuperadas que permite maior

    participao do trabalhador no processo decisrio e consegue maior engajamento

    deste para com os objetivos organizacionais tem sido um importante alicerce de

    competitividade destas empresas. A ideia aqui nos aprofundarmos um pouco mais

    nesta questo e entender se este modelo de gesto participativo trs ganhos para o

    trabalhador ou se o modelo apenas uma vantagem competitiva da empresa

    enquanto estratgia de negcio.

    Novaes (2007) d importante contribuio para esta discusso ao fazer

    interessante anlise comparando o modelo de gesto das empresas recuperadas,

    denominado de propostas autogestionrias com as propostas do modelo Japons,

    Toyotismo, que sugere maior participao dos funcionrios no modelo de deciso da

    empresa em relao aos modelos vigentes at ento, Fordismo e Taylorismo. O autor

    conclui que as estratgias gerencialistas (modelo japons) atacam os sintomas e no

    as causas da alienao, uma vez que os trabalhadores decidem apenas sobre o que

    menos importante, enquanto nas propostas autogestionrias prope-se que o

    trabalhador participe das decises essenciais da empresa, mesmo que na prtica haja

    ainda possibilidades de avano. A respeito das estratgias de gesto representativas

    do modelo japons, o autor diz: As propostas ensejadas pelo capital a partir dos anos

  • 26

    1960, que vo desde polticas de estmulo participao do trabalhador nas decises

    de assuntos marginais at a participao nos lucros e resultados, so, na verdade,

    uma pseudoparticipao, pois quem de fato participa e controla a produo nesta

    nova fase de acumulao o capital financeiro. (Novaes, 2007, p.37)

    Neste sentido, Novaes argumenta que o modelo autogestionrio das empresas

    recuperadas, significa avano no que diz respeito ao nvel decisrio em que a

    participao se efetiva. Enquanto no primeiro modelo a participao dos trabalhadores

    s ocorra em relao aos nveis mais baixos em que as decises de rotinas so

    tomadas, no segundo modelo o trabalhador tem a possibilidade de participar de

    decises de alto nvel, ou estratgicas, em que as decises mais importantes da

    empresa e que vo impact-la por um longo perodo so tomadas. Trata-se aqui de

    fazermos uma discusso sobre se o trabalhador tem a possibilidade de fazer o que

    Tragtenberg chamou de participao autntica definindo-a como aquela onde a

    maioria da populao, atravs de rgos livremente eleitos e articulados entre si, tem

    condies de dirigir o processo de trabalho e participar da deciso a respeito das

    finalidades da produo e outros aspectos da vida social que tenham significado

    (Tragtenberg, 1987, p.30). No modelo de gesto das fbricas recuperadas, mesmo

    que com possibilidades de melhorias, as assembleias cumprem este papel. Santos

    (2007) outra autora que defende que as iniciativas autogestionrias vistas nas

    fbricas recuperadas significam um modelo diferente do modelo Toyotista, pois trazem

    para o trabalhador o controle da produo e da gesto, permitindo que a produo

    seja colocada a favor da emancipao do trabalhador. A tabela a seguir, 2.4.1., ajuda

    a entender as diferenas entre o modelo de participao Toyotista e as empresas

    autogestionrias.

  • 27

    Tabela 2.4.1.

    Modelo flexvel Empresa autogestionria

    Grau

    de

    control

    e dos

    partici

    pantes

    Os CCQ so praticamente elementos

    de consulta. No tem poder de

    implantar solues e nem participam

    das discusses sobre tomada de

    deciso a respeito da sugesto.

    Internamente ao funcionamento do

    crculo, procura-se um consenso.

    Porm deve ser ressaltado que a

    procura do consenso no invalida a

    estrutura informal do poder; a opinio

    dos lderes ou detentores do poder

    tende a prevalecer.

    Vai alm da simples consulta:

    os setores tm poder para

    implantar as sugestes (ou ao

    menos, encaminhar as

    sugestes para a deciso do

    coletivo) e no cultivada a

    ideia de que prevalea a

    opinio do coordenador da

    reunio.

    Escop

    o de

    decis

    o

    limitado, pois os crculos no

    decidem e se refere praticamente a

    melhorias no processo de trabalho.

    Prmios, salrios, cargos no so

    discutidos, e muito menos polticas de

    investimentos ou estratgia da

    empresa.

    Os cooperados podem

    influenciar tanto nas questes

    relativas ao trabalho e a

    produo, quanto nas

    questes mais estratgicas da

    cooperativa.

    Forma

    de

    atua

    o

    O CCQ atua em nvel de local de

    trabalho, num nvel organizacional

    baixo. No h nenhuma influncia

    direta em nvel de diretoria ou holding

    Os cooperados podem

    influenciar nas decises do

    conselho de administrao

    Fonte: Tabela construda por Azevedo. A, 2003, a partir da experincia da Cooperfor (Oda

    2001) e Salermo (1985).

    Os defensores desta argumentao apontam para o fato de mesmo no tendo

    o movimento um carter ideolgico inicialmente, ele poder estar contribuindo para que

    as relaes de trabalho sejam reconfiguradas e a partir da experincia prtica nas

    fbricas autogeridas novas tecnologias e processos de trabalho podem surgir e

    modificar o sistema atual. No seria neste sentido um movimento revolucionrio, mas

    sim um movimento que conquistaria melhoras gradativas. o que Novaes chama de

    movimento defensivo e no ofensivo.

  • 28

    Se um grupo acredita que salvar postos de trabalho ou sobreviver no capitalismo no abala o sistema, outros afirmariam que mesmo sem explicitar uma bandeira que indicaria a necessidade de uma transio socialista, e, portanto, estando inconscientes sobre o que esto fazendo estes trabalhadores esto ajudando a construir o socialismo na America latina. Mais adiante ele diz: Mesmo que as iniciativas autogestionrias sejam oriundas das foras das circunstncias e no de um movimento de resistncia dos trabalhadores para com o modo de produo capitalista, h certa adeso dos trabalhadores com a nova proposta que implica outro comportamento e novas relaes de trabalho. (Novaes, 2007b, p.08)

    No entanto, no consenso dentro da literatura recente que o sistema de

    gesto das fbricas recuperadas tenha trazido avanos significativos no que diz

    respeito sade do trabalhador, talvez por ainda no conseguir aproveitar a

    oportunidade que a nova forma de gesto oferece por deficincias de formao como

    aponta o prprio Novaes (2007).

    Apesar de percebermos que h nas cooperativas maiores possibilidades de participao dos trabalhadores no processo decisrio, por um lado, os trabalhadores no detm o conhecimento tcnico necessrio para sugerir mudanas nos rumos das cooperativas. (Novaes, 2007b, p.15)

    Ou mesmo pelo tema sade do trabalhador no estar na pauta de prioridades

    do movimento, que ainda se preocupa muito mais com os aspectos relacionados ao

    negcio, ou seja, as decises se baseiam mais no quanto iro beneficiar a produo

    do que o quanto iro beneficiar os trabalhadores.

    A participao dos scios-trabalhadores na organizao da produo e do trabalho deve ser dirigida para o alcance da melhoria no desempenho das cooperativas, mas as questes como segurana no trabalho, ritmo e intensidade do trabalho, qualificao profissional, dentre outras, que dizem respeito s condies de trabalho no foram abordadas por eles. (Novaes, 2007b, p. 04)

    O que temos percebido que as fbricas recuperadas parecem estar

    encontrando um modelo de atuao que ainda est em construo. certo que a

    flexibilidade pauta o direcionamento estratgico destes empreendimentos e que a

    autogesto convergente com este modelo, criando as condies para que acontea.

    Vimos ainda que o modelo de atuao autogerido, ainda no o ideal em termos de

    participao do scio-trabalhador, mas que implica em avanos em relao ao modelo

  • 29

    de gesto participativa apregoado pelo toyotismo. Enfim, ao que parece o modelo de

    atuao das fbricas recuperadas tem encontrado na autogesto um estilo de gesto

    eficiente para o negcio, mas que ainda carece de aprimoramentos se o enfoque

    principal da anlise for a sade do trabalhador e do desenvolvimento humano atravs

    do trabalho e muito da dificuldade em avanar em melhorias neste sentido reside no

    fato da estrutura das fbricas recuperadas ainda operar num formato muito

    semelhante ao que operavam antes da ocupao.

    Embora os discursos dos agentes envolvidos neste processo apontem para uma radical mudana no processo de trabalho, importante sinalizar que h sim uma mudana nas relaes sociais (Santos, 2004, Holzmann, 2001, Anteag, 2001, 2004), mas o desenvolvimento das foras produtivas continua reproduzindo o processo capitalista. (Santos, 2007, p.95)

    Como vimos anteriormente s fbricas recuperadas foram se estruturando a

    partir da necessidade de defender os postos de trabalho que estavam ameaados

    pelas condies pr-falimentares das empresas de origem. Tais empresas vinham de

    uma cultura de trabalho tradicional, nos modelos taylorista e fordista que acabaram

    tendo grande influncia na cultura das fbricas recuperadas. Em uma situao gerada

    por crises agudas de empresas capitalistas, os trabalhadores que se envolvem na

    recuperao de empresas trazem uma forte cultura baseada em princpios fordistas.

    (Juvenal, 2006, p.126). Sendo assim no de se estranhar que ainda encontremos

    muitos aspectos que nos remetem a cultura capitalista de produo dentro destes

    empreendimentos, que ainda esto em fase de constituio e que ainda no tem a sua

    prpria identidade cultural enquanto organizao.

    Em sua tese de doutorado, 2010, realizada tambm na Metalcoop, Egeu

    Esteves mostra como tem sido difcil para os trabalhadores que atuam em fbricas

    recuperadas assumir uma nova identidade, no mais como empregados, mas agora

    como cooperados, ou como ele prprio diz agora como scios-trabalhadores. Segundo

    o autor a manuteno da identidade de empregado, de baixa autonomia e participao

    encontra na manuteno da forma de organizao do trabalho a sua principal

    justificativa. O argumento do autor o de que nas fbricas recuperadas pouco se fez

    para mudar a forma de trabalho em relao ao modelo vigente anteriormente, fordista-

    taylorista. Tal composio scio-tcnica inibe uma reconstruo da identidade, agora

    com um novo papel o de scio-trabalhador o que se configura como veremos adiante,

    em um dos grandes desafios que as fbricas recuperadas tm pela frente e tambm

    uma grande oportunidade para avanarmos em direo a formas de trabalho mais

    condizentes com a promoo de sade do trabalhador.

  • 30

    Entretanto, para os ex-trabalhadores de indstrias envolvidas em grave crise econmica ou financeira - ou ainda aquelas em processo falimentar- que foram recuperadas por eles mesmos sob a forma de cooperativas de produo, o desafio da construo da identidade de cooperador ou de scio-trabalhador detm outra face, mais pessoal que social, que a de uma real mudana identitria que acompanhe a mudana da condio laboral, de ex-empregado para cooperador. Tudo isso com um agravante, o de manter-se trabalhando com as mesmas pessoas, no mesmo lugar, com as mesmas mquinas, com mesmos processos produtivos e, quase sempre, com a mesma forma de organizao do trabalho. (Esteves, 2010, p. 14)

    2.5. A lgica industrial

    A lgica industrial muito marcada na forma de se relacionar nas fbricas

    recuperadas, lgica esta em que os trabalhadores, hoje scios, foram forjados e que

    durante anos valorizou aspectos de produtividade em detrimento do trabalhador.

    Mesmo neste momento em que o trabalhador pode colocar os processos de trabalho a

    servio de seu desenvolvimento o que vemos ainda so valores predominantes desta

    lgica de eficincia. Melhorias do processo so comemoradas se trazem ganhos de

    produtividade, nem tanto se trazem melhores condies de trabalho. O parque

    industrial com suas mquinas e processos ainda o grande motivo de orgulho (ou

    preocupao) destes trabalhadores que aprenderam a enxergar ali a grande

    locomotiva do sucesso empresarial. O olhar soft para as pessoas no predomina, em

    relao ao olhar hard para os indicadores de resultado. Qualidade do servio para

    atender as necessidades do cliente, melhoria de processos para otimizao dos

    processos, reduo de custos so indicadores presentes no dia a dia destes

    trabalhadores muito mais do que indicadores ligados s melhorias nas condies de

    trabalho:

    Os mecanismos disciplinares se foram, mas algo deles ficou nas pessoas em suas relaes. Os trabalhadores se apropriam do regime da fbrica em sua criao de si a fbrica passa a fazer parte deles, de sua carne, de seus gestos, de seus pensamentos. Isto se apresenta na X. de diversas maneiras. A admirao pela imagem da automao e pelo trabalho em linha de montagem. Ambas automao e linha cheia so manifestaes de admirao