tese de doutorado lilian

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MARIA HELENA JAYME BORGES O ENSINO DO PIANO E O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA uma experiência inovadora

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MARIA HELENA JAYME BORGES

MARIA HELENA JAYME BORGES

O ENSINO DO PIANOE O DESENVOLVIMENTODA AUTONOMIA

uma experincia inovadoraMARIA HELENA JAYME BORGES

O ENSINO DO PIANOE O DESENVOLVIMENTO DAAUTONOMIA:Uma experincia inovadora

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar da Faculdade de Cincias e Letras da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Campus de Araraquara, para obteno do ttulo de Doutor em Educao (rea de concentrao: Educao Escolar).

ORIENTADORA: Prof. Dr. Durlei de Carvalho Cavicchia

ARARAQUARA2001MARIA HELENA JAYME BORGES

O ENSINO DO PIANO E ODESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA:Uma experincia inovadora

COMISSO JULGADORA

TESE PARA OBTENO DO TTULO DE DOUTOR

Presidente e Orientadora

2. Examinador

3. Examinador

4. Examinador

5. Examinador

Araraquara, dede 2001DADOS CURRICULARES

MARIA HELENA JAYME BORGES

NASCIMENTO:25/11/1954 GOINIA GO

FILIAO:Leyde JaymeMaria Terezinha Cando Jayme

FORMAO:Bacharel em Instrumento - PianoEscola de Msica e Artes Cnicas - Universidade Federal deGois.Ano de concluso: 1976

Curso de Especializao em Tcnica PiansticaEscola de Msica e Artes Cnicas - Universidade Federal deGois.Ano de concluso: 1981

Mestrado em Educao Escolar BrasileiraFaculdade de Educao - Universidade Federal de Gois.Ano de concluso: 1996

Doutorado em Educao EscolarFaculdade de Cincias e Letras - Universidade EstadualPaulista - UNESP - Campus Araraquara.Ano de ingresso: setembro/1997.

CARREIRA UNIVERSITRIA: Professora Assistente 3 da Escola de Msica e Artes Cnicas - Universidade Federal de GoisAno de ingresso: 1992

Aos meus pas, meu esposo e meus filhos

Pela compreenso e apoio, imprescindveis para que eu possa caminhar por outras paisagens, velejar em outros mares, voar cada vez mais alto.AGRADECIMENTOS

Profa Dr. Durlei de Carvalho Cavicchia, minha orientadora, exemplo de competncia, seriedade, dedicao e companheirismo. Essas qualidades, aliadas ao respeito s minhas idias, conscientizam-me do privilgio que tive em trabalharmos juntas um tema muitas vezes desvalorizado nesta sociedade no raro egocntrica e competitiva, fortemente voltada a interesses pessoais e subservincias: a autonomia. Prof. Llian Meire Silva Carneiro de Mendona, proprietria da escola pesquisada. Seu desprendimento viabilizou este trabalho.Aos alunos, sujeitos da pesquisa, s coadjuvantes e seus familiares, que to gentilmente me receberam, na escola ou em seus lares. fraterna acolhida da coordenao, professores e colegas do Programa de Ps-graduao em Educao Escolar da Faculdade de Cincias e Letras UNESP - Araraquara. O saber e as alegrias que juntos partilhamos deixaram saudades e superaram, em muito, o cansao e as dificuldades das viagens semanais Goinia/Araraquara.s Professoras Doutoras Cilene Chakur e Maria Suzana de Stefano Menin, membros da banca do Exame de Qualificao, pelos importantes comentrios e sugestes emitidos naquela ocasio. Gertz Rossi Credendio, supervisora da seo de Ps-Graduao da Faculdade de Cincias e Letras UNESP - Araraquara, pela gentileza com que sempre recebeu a mim ou os meus telefonemas de Goinia, e pela solicitude com que sempre atendeu minhas necessidades. Mara Landgraf Colucci, Diretora Tcnica da Biblioteca da Faculdade de Cincias e Letras UNESP Araraquara, pela reviso das referncias bibliogrficas.Aos familiares e amigos que torceram e vibraram por mim.SUMRIO

APRESENTAO8

PARTE 1- FUNDAMENTOS

CAP.1 O ensino do piano: origens, precursores, fundamentos tericos16

1.O ensino do piano no Brasil, em Gois, em Goinia172.Reflexes sobre os fundamentos tericos do ensino e daaprendizagem do piano38

CAP. 2 O desenvolvimento da autonomia: referenciais tericos70

O desenvolvimento da autonomia e a questo da moralidade72A marcha para o equilbrio na conquista da autonomia: os estgios do desenvolvimento lgico e do desenvolvimento moral de acordo com Piaget86Fatores que propiciam o desenvolvimento da autonomia90

PARTE II A PESQUISA

CAP. 3 - A escola Llian Centro de Msica, uma escola diferenteuma proposta inovadora para o ensino do piano98

1. O perfil da escola992. Localizao1013. Organizao e funcionamento104

CAP. 4 - O desenvolvimento da autonomia e o ensino do pianona escola Lilian Centro de Msica1081. Perspectiva metodolgica1092. Condies de realizao da pesquisa1103. Sujeitos:113 3.1 - Atores principais: professora e alunos113 3.2 - Atores coadjuvantes1224. Procedimentos de coleta e anlise dos dados124

PARTE III RESULTADOS

CAP.5 Apresentao e anlise dos dados1301. Resultados das observaes: o dia-dia da escola1311.1- O ambiente de ensino ou clima da escola 1311.2 - O Processo de ensino: metodologia, contedos e avaliao140

2.Resultados das entrevistas: os depoimentos dos alunos 1592.1 - O ambiente de ensino ou clima da escola1602.2 - O processo de ensino: metodologia, contedo e avaliao194

PARTE IV - CONCLUSO E CONSIDERAES FINAIS204

CAP.6 Concluso

O ensino do piano na escola Llian Centro de Msica: um caminho para a conquista da autonomia2062. Implicaes e sugestes para o ensino do piano na adolescncia209

CONSIDERAES FINAIS225REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS227ANEXO235RESUMO239ABSTRACT240APRESENTAO

Aprofundar questes relativas ao ensino do piano, esforar-me na elaborao de conhecimentos que podero servir de propostas ou solues para problemas que encontro em meu cotidiano de trabalho, fugir da simples reproduo do aprendido, e, dentro do possvel e necessrio, reinventar os mtodos aos quais fui submetida foram necessidades que passei a sentir ao ingressar como docente na Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois, UFG*.Acredito que minha inquietao e meu desejo de comprometimento com o conhecimento e com a pesquisa confirmam a idia de Pacheco (1995), quando diz que o pensamento e a ao do professor so influenciados e definidos por suas crenas, valores e expectativas pessoais.Meu envolvimento com este trabalho fruto no apenas de minha curiosidade, mas tambm da conscientizao do que seja a dimenso social da pesquisa e do pesquisador, o discernimento de que somente quando percebemos os diferentes aspectos da realidade pesquisada como partes de um processo maior, social, que conseguimos enriquecer nosso trabalho, apontar perspectivas, descobrir novos caminhos.Minha experincia como professora de piano tem revelado que os problemas por mim enfrentados, enquanto aluna, no so apenas meus, eles podem, ainda hoje, ser facilmente detectados na grande maioria dos alunos de piano, principalmente adolescentes. Refiro-me aos problemas da inibio para tocar em pblico, da falta de motivao para estudar piano e a questo da dificuldade de se estudar o instrumento de forma racional, inteligente, economizando tempo e evitando o desgaste desnecessrio.A ausncia desses fatores, aliada ao contexto histrico e social dos dias de hoje, nada favorveis ao estudo do piano, so, seguramente, os grandes responsveis pelo descaso ou desnimo com que uma grande parte

dos alunos, adolescentes principalmente, encara o estudo deste instrumento. Se no passado o piano foi to intensamente estudado a ponto de se falar em pianomania no pas, hoje encontra-se inserido em um contexto social e em uma realidade histrica muito adversos ao seu estudo.Esteve (1991, p. 95) afirma que ensinar hoje diferente do que era h vinte anos. As transformaes sociais, polticas e econmicas ocorridas na sociedade e no sistema educativo nas ltimas dcadas foram to intensas que seus pontos de contato com a realidade atual so muito tnues. Podemos dizer que a situao idntica em relao ao ensino do piano.A agitao da modernidade, o som digital e os sentimentos descartveis, entre outros fatores, fizeram do piano - um dos principais cmplices dos romnticos tempos de outrora - personagem praticamente sem cena, principalmente entre adolescentes. No passado seu ensino flua mais naturalmente porque, alm do piano ser sinal de cultura, de dinheiro, de refinamento e sensibilidade, principalmente femininas, os pais costumavam dar uma maior sustentao aos professores perante as dificuldades de estudo de seus filhos. Alm disso, pais e professores exerciam uma maior influncia moral sobre o jovem e contavam com uma maior obedincia aos comandos de estudo devido a uma autoridade que normalmente no era questionada.No contando mais com a contribuio dos fatores acima mencionados, agora correndo em sentido inverso, penso que o professor de piano precisa rever as tradies e atuar hoje, mais do que nunca, como um intelectual reflexivo, capaz de repensar as condies que tm impedido que os alunos assumam todo o seu potencial e de estabelecer um ambiente propcio ao desenvolvimento integral dos jovens instrumentistas, conferindo, tambm, sua atuao, a dimenso subjetiva do ensino que, segundo Pacheco (1995), engloba o afetivo, o emocional e o experencial.As adversidades supracitadas podem levar o aluno a um insatisfatrio nvel de estudo, baixo ndice de rendimento tcnico e, conseqentemente, inibio e frustrao, causadas pela impossibilidade de executar devidamente uma obra musical. Tudo isso pode transformar o ato de tocar, prazeroso por excelncia, em castigo ou tortura.Depois que essa situao se instala, geralmente o prximo passo a ser dado pelo aluno a desistncia do curso, pois ele se pergunta: por que vou sofrer por um estudo que me priva dos amigos, das facilidades do mundo, no valorizado pela sociedade, no traz lucro financeiro e no me retribui sequer com o prazer de tocar devidamente?Interessada em minorar no apenas a questo da evaso de alunos do curso de piano, mas, principalmente, o problema da inibio para tocar e falta de motivao para estudar, questiono-me se a metodologia de ensino tradicionalmente adotada nas escolas de msica .no estaria deixando de integrar melhor, alta racionalidade tcnica de sua atuao, a dimenso subjetiva do ensino.No estaria faltando estabelecer com o aluno uma inter-relao mais abrangente, um sistema de comunicao que o estimule a se autodirigir melhor, a construir e aprimorar estratgias prprias de estudo e aprendizagem, a no se deixar dominar pelas facilidades da tecnologia, do som digital, pelas benesses consumistas do capitalismo que o estimulam a estar em qualquer lugar, menos sentado estudando piano?No estaria faltando um ambiente mais propcio ao desenvolvimento da autonomia do aluno?Qual a razo da inibio de grande parte dos alunos para tocar em pblico?Muitas vezes possvel perceber que uma apresentao, ou qualquer exerccio prtico, por mais simples e informal que seja, vem geralmente acompanhado de angstia e preocupao do aluno quanto ao julgamento que ser atribudo sua performance por parte dos professores e colegas de platia. Alguns simplesmente se recusam a tocar, o que muito `pior.No estou absolutamente querendo dizer que a qualidade do que se toca no importante, apenas acredito que vrios e longos caminhos precisam ser percorridos at se chegar a ela. Um deles exatamente tocar bastante em pblico. No para um pblico que julga e comenta, mas para amigos de mesma jornada que ouvem com pacincia os tropeos, estimulam, corrigem, trocam idias, incentivam. E a me pergunto: os alunos tm encontrado, nas escolas de msica, um ambiente de companheirismo, tolerncia, reciprocidade e cooperao?Acredito que o ambiente que propicia a vivncia desses fatores capaz de estimular a vontade de estudar mais, de crescer, de fazer melhor, de querer mostrar para o amigo, professor ou no, que aquela pea, anteriormente executada de maneira insatisfatria, j tem uma memria mais segura, melhor domnio tcnico, interpretao mais precisa.O pblico da escola com certeza o pblico primeiro, exatamente por isso deve ser solidrio, crtico, cooperativo e acolhedor, s assim poder ajudar a escola a formar o verdadeiro pianista, o intrprete seguro e desinibido, capaz de oferecer a um pblico desconhecido e exigente uma performance maior, densa e de qualidade.Movida por valores, preferncias e interesses que orientam minhavida pessoal e profissional e interligando-os aos pressupostos e conhecimentos que possuo a respeito do ensino do piano, delimitei minha temtica e levantei como hiptese a seguinte proposio: o professor de piano pode enriquecer seu trabalho e equacionar o problema da falta de motivao do aluno para estudar se oferecer a ele um ambiente propcio ao desenvolvimento de sua autonomia.Dentro dessa perspectiva, a pesquisa tem, como conseqncia prtica, oferecer sugestes para uma metodologia, estratgias e tcnicas direcionadas ao ensino do piano, levando em conta o desenvolvimento da autonomia do aluno.Para atingir esse objetivo, era necessrio encontrar um objeto de estudo que oferecesse as condies necessrias investigao da hiptese acima mencionada e, assim sendo, escolhi como objeto de estudo o Llian Centro de Msica, uma escola de msica particular.Esta escolha deriva-se de uma constatao que tenho feito ao longo de minha experincia como docente. Tenho observado que alunos da Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG, oriundos do Lilian Centro de Msica, apresentam um grande potencial motivacional de estudo, segurana e desinibio para tocar em pblico.Segurana, motivao e desinibio para tocar em pblico, alguns dos principais objetivos almejados por aqueles que estudam piano, so, basicamente, frutos da aquisio de um bom rendimento e nvel tcnico, e este, por sua vez, s possvel de ser adquirido por meio de um estudo cotidiano, repetitivo, devotado, talvez asctico, mas sobretudo autnomo.Fazer com que o aluno se desvencilhe dos apelos do mundo e dedique horas de seu tempo ao tipo de estudo que o piano requer sempre foi um problema a ser vencido por qualquer professor de piano. Entretanto, o atual momento histrico, repleto de recursos tecnolgicos e fartamente abastecido de novos costumes transformaram-no em um verdadeiro desafio contra o qual o Llian Centro de Msica tem desenvolvido mecanismos e estratgias proveitosas, acredito eu.Mantive um contato estreito e pessoal com o problema que pretendia pesquisar por meio da observao participante. Fui o principal instrumento investigativo de uma situao que no sofreu qualquer manipulao intencional, os dados foram fornecidos pelo ambiente natural pesquisado.Interrogados a partir de uma estrutura bsica fornecida pelo quadro terico inicial, e de valores, idias e preferncias pessoais, esses dados foram confrontados com os que foram fornecidos pelas entrevistas ou associados a outros, frutos do conhecimento acumulado e de minhas reflexes e experincia de trabalho. A integrao, o equilbrio e a harmonia entre todos esses fatores permitiram que eu me mantivesse inserida na realidade pesquisada e, ao mesmo tempo, afastada o suficiente para que eu pudesse fazer inferncias, propor interpretaes, tentar descobrir novos significados, desenvolver novas idias (Ludke e Andr, 1986).A cena investigada foi focalizada de forma contextualizada. Entendo que a autonomia no pode ser estudada por meio de questionrios aplicados a grandes amostras ou de clculos de coeficientes de correlao, tpicos das anlises experimentais (Ludke e Andr, 1986, p. 9). Minha questo de estudo, como j disse, foi derivada de especulaes e observaes que foram se somando ao longo de minha experincia pessoal de trabalho. Creio que essas suposies iniciais s puderam ser enriquecidas, explicitadas, ou melhor focalizadas, porque procurei me manter consciente de que a realidade estudada pode ser vista sob diferentes prismas e que era necessrio mostrar ao leitor essa variedade de perspectivas a fim de que ele pudesse tirar suas prprias concluses.Com vistas a esse objetivo, mas buscando sempre manter a perspectiva de totalidade, procurei me inserir na realidade estudada, acompanhando, nas atividades, nos procedimentos e nas interaes cotidianas do Llian Centro de Msica o fluxo de acontecimentos e a multiplicidade de dimenses presentes no processo de desenvolvimento da autonomia no contexto daquela escola (Ludke e Andr, 1986).Observar as atitudes, os comportamentos dos participantes, a vivncia do cotidiano escolar permeado por um clima de entendimento, de companheirismo e, acima de tudo, de cooperao entre seus membros, foi essencial para atingir os objetivos propostos neste trabalho.As impresses registradas ao longo da observao participante estiveram permeadas por idias e valores que se identificam com minha pessoa, mas isso no impediu que o contedo final apresentado tivesse por objetivo precpuo manter o necessrio equilbrio, harmonia e integrao entre teoria, dados obtidos, inferncias e reflexes pessoais. Tentei, ao longo da pesquisa feita numa abordagem qualitativa -, sobrepor-me realidade pesquisada a fim de vislumbrar possveis solues e, assim, poder contar o meu caso.Otrabalho foi estruturado em 4 partes, distribudas em 6 captulos, sendo os dois primeiros dedicados aos fundamentos da investigao (Parte 1); o 3. e o 4. discusso da pesquisa (Parte II); O 5. aos resultados dos trabalhos (Parte III) e o 6. concluso e consideraes finais (Parte IV).O ensino do piano abordado no captulo 1 sob duas perspectivas: a pedaggica - onde apresento reflexes sobre os fundamentos tericos do ensino do piano -, e a histrica. A perspectiva histrica teve, como referncia, pesquisa documental cujos resultados esto discutidos, de forma mais completa, em meu livro A msica e o piano na sociedade goiana: 1805-1972 (Borges, 1998) - originalmente apresentado como dissertao de mestrado -, que serviu como ponto de partida para esta parte da tese. Ao escrev-la, tive por objetivo recuperar a histria do ensino do piano mediante o registro das origens e dos precursores dessa atividade cultural da maior relevncia no Brasil, em Gois e em Goinia - lugar onde foi realizada a pesquisa - e, desta forma, contextualizar o trabalho num quadro de referncias mais amplo.O desenvolvimento da autonomia, pesquisado em seus referenciais tericos, discutido no captulo 2 com o objetivo de apresentar, de forma resumida, os principais fundamentos tericos luz dos quais os dados puderam ser analisados e interpretados.No captulo 3 o leitor convidado a conhecer o contexto da pesquisa: o perfil, a localizao, a organizao e o funcionamento do Llian Centro de Msica, uma escola diferente, com uma proposta inovadora para o ensino do piano.A perspectiva metodolgica, o perfil dos sujeitos, os procedimentos de coleta e anlise dos dados e as condies de realizao da pesquisa so explicitados no captulo 4.Os captulos finais so dedicados apresentao, anlise dos dados e discusso dos resultados (cap. 5), terminando com algumas reflexes e consideraes, na tentativa de sistematizar as principais concluses do trabalho (cap. 6).

PARTE 1

FUNDAMENTOS

CAPTULO 1

O ENSINO DO PIANO1. ENSINO DO PIANO NO BRASIL, EM GOIS, EM GOINIA.

1.1 O piano no Brasil

A magia e o encantamento das potencialidades sonoras do piano fizeram dele um dos mais notveis instrumentos j inventados, com aceitao universal. No Brasil foi intensamente estudado desde o sculo passado. Isto porque, depois que a Corte aqui chegou, houve na colnia um refinamento de hbitos, e uma moa, para ser considerada da alta sociedade, tinha que estudar e ter um piano em sua casa, pois este era o instrumento preferido pela famlia real.Ficava sempre postado a um canto da sala como um trono, seduzindo as atenes dos que chegavam. Ali estava o smbolo de que a famlia era dada cultura e de que ascendera a um degrau superior na educao e nas finanas, uma vez que o piano, devido a seu custo, tamanho e dificuldade de remoo, se tornava acessvel apenas aos que tinham posses.Esse instrumento mereceu atenes que o tornaram um objeto venerado, com ilimitados encargos ou funes. Serviu tanto para possibilitar a expresso de sensibilidade artstica quanto para marcar ou evocar momentos ou situaes afetivas (Schlochauer, 1992). Foi sinal de cultura, de dinheiro, de vaidade, de sensibilidade, de pasmo caipira; foi agente teraputico e torturador. Mas, acima de tudo, foi o encantamento de inmeras geraes. Carlos Penteado Rezende, em Notas para uma histria do piano no Brasil, sintetiza, com maestria, a sua importncia:(...) por cima dele, muitas vezes, como num altar, um vaso de cristal ou porcelana chinesa descansava sobre finssimas rendas, sorrindo em flores e perfumes.. .E para completar o quadro, ocasies houve em que o piano novato, ao chegar pela primeira vez a uma vila ou cidade, se viu recebido com reverncias, como se fosse um bispo ou alta autoridade, com rojes, acompanhamento popular e at lavratura de um termo, tal qual sucedeu em Porto Feliz e Sorocaba (Rezende, 1970, p. 10).Aos poucos, muito lentamente, o piano foi deixando de ser ornamento exclusivo de sales aristocrticos, comeando tambm a penetrarem lares mais modestos; tornou-se querido e festejado em outras camadas sociais, animando festas, sob o olhar admirado das mucamas que o espanavam e poliam com devotado respeito.E os pianos foram chegando, mais e mais. Eram de autores diversos [autor, como se dizia, e no fabricante] John Broadwood, Stodart, Debain, Erard, Graff, Pleyel, Henri Herz; Kalk Brenner, Clementi, Collard & Collard, Schiedmayer, e depois Bechstein, Boesedorfer, Bluthner, Chickering, Steinway... Pianos de cauda, de meia cauda, pianos armrios ou de mesa, pianos de toda espcie, para todos os gostos. Pianos da Inglaterra, da Frana, da ustria, da Alemanha, de Portugal, dos Estados Unidos...Seriam uns de carregao, aptos a resistir aos punhos de aprendizes desastrados; outros de mdia qualidade, pianos de luxo, superiores em tudo, prprios para concertos ou para adornar sales aristocrticos (Rezende, 1970, p. 27).Quais circunstncias envolveram o aparecimento do piano no Brasil e em Gois? o caminho desse acontecimento, sonoro mas tambm social, que vamos percorrer agora, embasados, entre outros, nos estudos feitos pela pesquisadora Regina Beatriz Quariguasy Schlochauer (1992).Ao fazer uma retrospectiva histrica, Schlochauer (1992) conclui que no muito positiva a idia que se tem do Brasil colnia at a chegada da famlia real. Isto porque os que vieram povoar a Terra de Santa Cruz eram gente rude, cujo interesse imediato era a riquezas isto , cujo objetivo era retirar da terra tudo o que pudessem, sem preocupao com retribuies; ou ento eram degredados, gente que cumpria ou fugia de penas, ou de uma vida miservel na metrpole. Havia, entretanto, aqueles que vieram por razes de evangelizao, da a literatura e a msica, at 1808, se fazerem presentes mais especificamente nos autos dos jesutas, que tinham a finalidade de evangelizar.Segundo a autora, as narrativas de viagens fornecem uma imagem bastante clara da penria da vida social, cultural e domstica brasileira. As pousadas, estalagens ou penses, quando existiam eram miserveis e as viagens eram longas, feitas em estradas em pssimas condies; o morador via-se forado a abrigar o viajante que, a princpio, se ressentia das desconfianas e reservas de seu hospedeiro, at que depois se estabelecesse a confiana. O mobilirio das casas era espartano; os quadros, tapetes, enfeites, quando existiam, no eram valorizados.Pouqussimas pessoas sabiam ler e escrever e, em geral, a mulher brasileira desse perodo no tinha cultura. Desde cedo sua curiosidade natural era reprimida e esta foi uma triste caracterstica da educao feminina daquela poca.Esse quadro de penria no conseguiu, todavia, destruir o talento dos brasileiros para a msica. Na poca da transmigrao da famlia real, j existia havia dcadas, no Rio, a irmandade dos professores de msica sob a invocao de Santa Cecilia. Visitantes estrangeiros referem-se msica de boa qualidade ali tocada.D. Joo encontra no Rio de Janeiro, j desenvolvendo sua genialidade musical, o Pe. Jos Maurcio Nunes Garcia. Apesar de sua extrema pobreza e das dificuldades de toda ordem que enfrentava a colnia, estava Jos Maurcio a par do que havia de mais atual em msica na Europa; dava aulas em sua modesta escola e nas residncias das senhoras da sociedade. Trata-se de um pioneiro no ensino do piano no Brasil, exemplo claro de que o quadro de abandono e penria da colnia no conseguiu impedir que a msica aqui florescesse, graas ao talento musical do brasileiro.Em Minas, o ouro e o dinheiro propiciaram o surgimento de teatros e artistas assim como a formao de atores e msicos profissionais, muitos deles mulatos. A distncia, a dificuldade de transporte e de comunicao impediam que mulheres brancas viessem do litoral para Minas, o que desencadeou o crescimento cada vez maior da populao mulata, que tinha genuna inclinao para a msica e a ela se dedicava apaixonadamente como verdadeiros profissionais.Foi muito grande a penetrao que teve a msica erudita nos meios sociais de Minas, onde se interpretavam com freqncia obras de autores do maior renome no sculo XVIII: Haydn, Corelli, Vivaldi, Haendel e muitos outros. Era tambm grande o nmero de pessoas musicalmente envolvidas nas celebraes profanas e religiosas. Elas se agrupavam em torno de irmandades religiosas, verdadeiras corporaes de ofcio, nas quais o canto, a orquestra e, posteriormente, a banda, eram uma constante.Entre os instrumentos largamente executados, no s em Minas Gerais como tambm em outras partes do Brasil, estava o cravo, antecedente direto do piano.Segundo Schlochauer (1992), a entrada do piano no Brasil se deve a trs fatores: chegada da Corte em 1808; abertura dos portos s naes amigas; tratados firmados com a Inglaterra.Vimos com Carlos Penteado Rezende que os Bragana prezavam muito a msica, e, assim sendo, a presena da famlia real e de sua corte trouxe, alm do hbito de tocar piano, influncias extremamente benficas ao ambiente musical brasileiro. D. Joo trouxe ao Brasil a Real Capela, uma das melhores da Europa naquela poca, com dezenas de artistas estrangeiros, e at 1821, perodo em que este monarca aqui esteve, manteve uma capela suntuosa.A agenda da Capela Real era extremamente carregada devido a aos numerosos feriados e comemoraes religiosas, atos de Te Deum e missas em aes de graas por nascimentos, batizados, casamentos, viagens de membros da famlia real. Toda essa suntuosidade era um reflexo da presena da famlia real e dos estmulos oferecidos por D. Joo VI Capela Real, entre eles a vinda, em 1810, de Marcos Portugal, grande compositor a portugus.Marcos Portugal possua uma carreira de sucessos na pera europia, era compositor da poca, compunha ao gosto do pblico apaixonado pela pera e escrevia msicas para as ocasies especiais da Casa Real: Junto dele veio seu irmo, Simo Portugal, que era pianista de grande mrito e que teve muitos discpulos.Maior que o talento era a mesquinhez de carter de Marcos Portugal. Essa alma infeliz, bafejada pela inveja de se deparar, em terras to atrasadas, com a genialidade musical do brasileiro Jos Maurcio Nunes Garcia, muito prejudicou e azedou a vida do humilde padre atravs de intrigas e boicotes. Apesar de D. Joo VI ter sempre protegido Jos Maurcio e reconhecido seus mritos excepcionais, Marcos Portugal assenhorou-se do terreno e barrou o desabrochar da carreira desse grande compositor, msico e pianista brasileiro.Outro grande pianista acolhido por D. Joo VI foi o austraco Sigismund Neukomm, reconhecido discpulo de Haydn, que chegou ao Brasil na poca da Misso Artstica Francesa, em 1816. Um decreto o nomeou professor pblico de msica no Rio de Janeiro e o encarregou de prestar servios como compositor e executante. Foi professor do prncipe D. Pedro, da princesa D. Leopoldina, da infanta D. Isabel Maria e tambm do compositor Francisco Manuel da Silva, fundador do Conservatrio Nacional de Msica, atual Escola de Msica da UFRJ. certo que a famlia real trouxe para o Brasil o hbito de tocar piano, mas tal costume no teria tido sustentao se no houvesse instrumentos disponveis. Isto s foi possvel graas abertura dos portos s naes amigas, mediante documento assinado por D. Joo, em 23 de janeiro de 1808, em Salvador, antes de desembarcar no Rio de Janeiro. Aps a abertura dos portos, muito se fez no sentido de arejar a colnia, anteriormente enclausurada de corpo e alma.Os comerciantes estrangeiros comearam a trazer objetos e idias para o povo em geral. O comrcio livre permitiu o acesso no s a jornais e livros, como a roupas finas, utenslios domsticos mais sofisticados e mveis elegantes, entre eles o piano. Beleza, elegncia, sofisticao comeam a ser importados.Antes da abertura dos portos, tudo era diferente, pois o Brasil se limitava a ter comrcio com a metrpole. As atividades comerciais eram extremamente limitadas e controladas pelos rgos portugueses. A natural habilidade dos nativos e dos escravos para manufaturas, artesanatos, consertos foi controlada ou prejudicada. Alm das bvias dificuldades fsicas de intercmbio causadas pela distncia, pela precariedade de meios de comunicao, dentro do pas, as restries que buscavam o total e absoluto poder sobre a colnia eram impostas com mo de ferro. Os acordos diplomticos permitiram que os ingleses dominassem e explorassem o nosso mercado, abarrotando os portos nacionais com seus produtos, inclusive piano. Tudo era mandado para o Brasil, sem a menor preocupao relativa convenincia, utilidade ou necessidade do povo que iria adquirir as mercadorias. Havia na alfndega, por todos os lados, caixas e fardos de mercadorias abertos, contendo xales, lenos, bons, martelos, quadros, pianos. Estes ltimos no tinham utilidade ou funo social, pois a colnia era essencialmente agrcola, muitos de seus habitantes eram analfabetos e ignorantes, pouqussimos eram, ento, os ncleos urbanos. Mas como eram uma novidade europia, eram adquiridos sem maiores questionamentos.Novas perspectivas artsticas e didticas foram introduzidas no pas com a formao de uma Academia de Cincias, Artes e Ofcios que tinha por objetivo promover e difundir a instruo e o conhecimento e trabalhar para o progresso da agricultura, indstria e comrcio. Para organizar a escola foi contratada uma misso artstica, a conhecida Misso Artstica Francesa, que chegou ao Rio em 26 de maro de 1816, chefiada por Joaquim Lebreton, da classe de Belas Artes do Instituto de Frana. Alm dos artistas, vieram serralheiros, mestres ferreiros, gravadores, engenheiros mecnicos, e vrios outros.A misso foi importante para o pas, embora os planos iniciais tenham sido alterados, algumas promessas no cumpridas, e os objetivos iniciais se tenham adaptado s circunstncias, e, ainda, tenham falecido, logo aps a chegada da misso, duas pessoas importantssimas para o seu desempenho: o Conde da Barca e Joaquim Lebreton.Se de um lado a misso possibilitou o acesso a novas perspectivas artsticas, no se pode negar que ignorou os sentimentos nativistas e desprezou o artista brasileiro. Segundo a viso da poca, somente o afrancesamento salvaria o Brasil da ignorncia, da falta de cultura e possibilitaria o progresso.O pas passou, ento, a seguir os costumes de Paris. As pessoas iam s compras, faziam literatura, jornalismo e teatro em francs e as moas procuravam modelos de roupas francesas.Vale lembrar que, aps a queda de Napoleo, em 1815, aportam ao Brasil muitos estrangeiros: imigrantes franceses, ingleses, alemes, italianos, suos, poloneses e tambm lusos. Desses, muitos eram refugiados polticos, pessoas de mais cultura que os naturais da terra; outros eram imigrados polticos, que aqui chegaram em razo de suas nobres origens, e que no tinham outra possibilidade de ganhar a vida, a no ser dando aulas. No que estivessem treinados para tal atividade, mas, devido necessidade, passaram adiante seus conhecimentos de lnguas, literatura, matemtica, pintura, dana, msica.Segundo Schlochauer (1992), essas foram algumas das razes que fizeram com que o ensino de msica, de piano especificamente, fosse, logo aps a chegada de D. Joo, realizado de maneira informal, sem estrutura; os professores visavam ganhar algum dinheiro com o que havia feito parte de sua educao. Tais professores no se dirigiam a um certo pblico especfico, isto , a crianas, ou adultos. Ensinavam, simplesmente. As aulas no eram destinadas profissionalizao; a aprendizagem resultaria apenas em mais uma importante prenda social. Como naquela poca, devido cultura escravagista, as classes altas no valorizavam o sustento ganho com o prprio trabalho, para a burguesia, ensinar os filhos a tocar piano no significava ensinar-lhes um ofcio, um ganha-po.A grande popularizao do piano, no sentido de maior mercado, vem aps 1825, quando fabricantes austracos, ingleses e franceses, produzem instrumentos de menor tamanho e com um sistema mecnico com escapamento duplo, que os torna muito mais satisfatrios e mais fceis de tocar.A partir de 1830 h uma crescente profissionalizao dos professores, assim como aparecem as composies profissionais e a impresso de partituras, ao lado da importao e exposio de pianos para venda e aluguel.O acesso s obras europias existia, mas ainda no se compravam facilmente partituras nas lojas. O processo de disseminao dessas obras lento; pouqussima coisa publicada em portugus nestas primeiras dcadas, j que a lngua preferida era o francs.A manuteno dos pianos era feita, pelo menos no comeo do sculo, por tcnicos, na sua maioria estrangeiros, que atendiam a chamadas nas casas da cidade, dos arredores ou das fazendas, a que iam a cavalo, acompanhados de escravos a p, que carregavam suas ferramentas. Esperava-se que os afinadores fossem pianistas, bons o bastante para fazer um pequeno concerto aps as afinaes e reparos. O transporte dos pianos era feito por negros, que os carregavam na cabea (Schlochauer, 1992).Como podemos observar, aps a chegada da Corte ao Rio de Janeiro, muito lentamente vo-se modificando os hbitos. Nessas circunstncias que se delineiam as condies para a existncia de tantos pianos no Brasil, assim como de tantos professores. Os pianos foram chegando, tomando posio, ocupando seus lugares, como se destinados a uma batalha em prol da cultura (Rezende, 1970, p. 15). Pelas descries da poca, obtidas em livros, jornais e memrias, sente-se a importncia do piano no lazer e na educao.Embora no incio do sculo, o ensino de piano e msica tenha sido ministrado, na maioria das vazes, por imigrantes europeus, sem conhecimento mais especfico de msica, a partir de 1830 verifica-se uma mudana significativa nesse quadro com a criao de um curso especializado de msica no Colgio Pedro II e com a chegada, ao Rio de Janeiro, de verdadeiros msicos profissionais que se dedicavam ao ensino. Com estes mestres, havia a possibilidade de os alunos interessados terem conhecimento profundo de msica, pois eram professores de primeira linha. Alguns eram estrangeiros, outros brasileiros que, viajando pela Europa, absorviam uma mentalidade diferente segundo a qual a sobrevivncia do seu prprio trabalho era no s aceita como valorizada socialmente.Muito devemos ao trabalho desses pedagogos, brasileiros ou no. Sua influncia didtica e pianstica estendeu-se Brasil adentro, por meio de seus discpulos; muitos desses discpulos, oriundos de lugares mais atrasados, vinham at ao Rio ou a outro grande centro em busca de uma melhor cultura pianstica, transmitindo depois esse refinamento e esse gosto pelo piano para as novas geraes nas cidades mais afastadas.Propagadores e irradiadores de cultura foram tambm as Sociedades de Msica, que tinham como objetivo o progresso no apenas do piano, mas tambm da msica de modo geral. Se isto era o que acontecia na Corte, fcil imaginar como se multiplicavam essas influncias no interior do Brasil.O segundo reinado no Brasil foi uma poca que viu surgir, principalmente no Rio de Janeiro, a moda de concertos, recitais e msica de cmera, assim como de orquestras e conjuntos especializados em abrilhantar festas. Surgiram bibliotecas, livrarias circulantes particulares e sociedades de lazer, culturais, literrias, de teatros e de concertos, que ofereciam, muitas vezes, aulas de msica para seus associados.Esse perodo caracteriza-se pela expanso do universo social e intelectual das mulheres e dos estudantes, conseqncia da criao da imprensa, de teatros e escolas. A populao feminina foi a grande beneficiada, principalmente em sua cultura, pelas modificaes causadas pelos ideais liberais e republicanos; a urbanizao e os novos ares da Europa fizeram com que a oligarquia percebesse que no era mais possvel manter as mulheres no mesmo grau de ignorncia a que vinham sendo submetidas. Era preciso redefinir a educao feminina. Era necessrio educar as jovens, ensin-las a ler, escrever, conhecer um pouco do mundo, mas no profissionaliz-las, tir-las do seio da famlia. O objetivo era que recebessem uma educao que lhes proporcionasse um polimento sociocultural mas que no incentivasse qualquer desvio de conduta em relao aos costumes sociais ento vigentes. A oligarquia no via com bons olhos as novas idias de liberdade, igualdade e profissionalizao feminina.A extenso dos direitos, principalmente da mulher, assustava o poder dominante que desejava o moderno mas no queria a modernidade, a emancipao feminina, a sada da mulher para o trabalho externo e o conseqente abandono do lar; a contraditria oligarquia brasileira era a um s tempo modernizante e conservadora. Apesar das modificaes causadas pelos ideais liberais e republicanos, o grande projeto era o da preservao da ordem os valores defendidos pela oligarquia, seja pelos conservadores, monarquistas ou republicanos, eram os mesmos: patriarcalismo, moralidade extrema, religiosidade, hierarquizao, antifeminismo.Como educar ento as jovens sem corromp-las no contato com o nefasto e impositor mundo moderno? Esse delicado problema para as oligarquias encontrou respaldo na doutrina conservadora catlica, que pregava o conformismo e a resignao, e apontava o futuro sobrenatural como prmio final, depois de uma vida terrena cheia de sofrimentos e provaes. A soluo foi encontrada atravs de uma aliana entre a poderosa oligarquia e o conservador sistema educacional catlico.O objetivo final da proposta educacional catlica era formar jovens cultas, polidas, sociveis, mas, acima de tudo, crists, catlicas convictas, que difundissem na famlia e na sociedade os valores do catolicismo conservador. Com essa preocupao, o programa de ensino dos colgios catlicos contemplava mais as matrias que pudessem reforar a religiosidade, cultura e sociabilidade das alunas, do que as matrias voltadas para o conhecimento cientfico (Manoel, 1996).A msica foi um recurso didtico largamente utilizado pelo sistema educacional catlico a fim de proporcionar s jovens uma polidezsocial, e, tambm, como forma de adestrar o corpo e ensinar-lhe a executar movimentos e gestos conforme um conjunto de etiquetas que abrangiam desde o sentar-se elegantemente at a maneira correta de comer com garfo e faca.O piano tornou-se um- influente astro, personagem importantssimo dentro desse universo poltico e ideolgico, ele se integrava e se mostrava na medida e convenincia exatas para o pensamento dessa sociedade e do sistema educacional catlico, pois alm de proporcionar cultura, sociabilidade e polidez de gestos s jovens, ele as conservava dentro do lar, resguardadas, seja estudando ou dando aulas. Era a profisso ideal para a mulher, pois caso pretendesse trabalhar, poderia faz-lo dentro de casa, sem abandonar marido e filhos; alm disso, a posio da mulher, na hierarquia social, continuaria dependente da posio de seu marido, e no de sua prpria atividade profissional, exercida fora do lar.Nvoa (1991) afirma que a carreira docente era uma das nicas vias abertas profissionalizao da mulher e, dentro desse universo docente, pode-se dizer que o ensino do piano tambm contribuiu para que o salrio da mulher fosse visto como renda suplementar da famlia e tambm para a feminizao do trabalho docente, pois assim como acontecia com a carreira docente, dar aulas de piano, no sculo XIX, era uma das nicas formas de profissionalizao da mulher.Essa poltica de ensino permaneceu inalterada no Brasil por um longo perodo, e ela explica, em parte, as razes pelas quais o reinado do piano permaneceu inabalvel por vrias geraes, chegando a se falar em pianomania no pas.Diante do quadro de desenvolvimento e mudanas que aconteciam na capital da ex-colnia, e em outros grandes centros, fcil concluir que as tentativas de imitao no poderiam deixar de acontecer nos distantes sertes do interior do Brasil, vidos por um pouco de prazer e cultura. A imitao, portanto, dos hbitos franceses, das novidades da Europa, dos costumes das principais localidades brasileiras do litoral, supostamente mais ricas, mais poderosas, mais belas e mais cultas, se tornou uma constante, constituindo fator de desenvolvimento para o isolado e inculto serto brasileiro.O estudante ou o viajante, ao retomar a vida no interior, trazia influncias intelectuais civilizadoras, assim como as ltimas novidades em moda na corte. Entre essas novidades conduzidas por viajantes e tropeiros estava o piano:Tal qual os viajantes e os tropeiros, participaram os pianos das longas jornadas pelos sertes, causticados por sol, poeira e chuva. Dormiram em ranchos margem dos caminhos, ou abrigados sob toldos em clareiras de florestas. Atravessaram a vau riachos, ou tiveram de embarcar em balsas e canoas para transpor cursos caudalosos. Pelos caminhos do interior, iam provavelmente encarapitados em carros de bois, em bangs de carga, em andores ou padiolas, e at mesmo nos ombros fortes de negros, que em grupos iam ritmando seus passos com o auxlio de gritos e cantos (Rezende, 1970, p. 16).Segundo Belkiss S. Carneiro de Mendona (1980, p. 82), foi em carro de bois que o piano mais antigo da Capital de Gois ali teria chegado, em 1853, adquirido por Joo Fleury de Camargo para sua filha Mariana Augusta Gaudie Fleury, o que coincide com o apogeu do perodo imperial.Apesar de assentado em territrio distante e pobre, com imensas dificuldades de transporte e comunicao, no ficou Gois insensvel aos exemplos das cidades litorneas. A cultura tornou-se meta a ser atingida pelas novas geraes e algumas famlias no mediam esforos, trabalho e economias para terem seus filhos formados em cidades como Rio ou So Paulo, de onde os jovens voltavam cheios de novos ideais, trazendo nova filosofia, novas idias literrias, novos valores absorvidos na civilizao litornea.Foi assim que pelas estradas precrias que demandavam ao interior do pas, chegaram a Gois os porta-vozes do liberalismo e do republicanismo, correntes polticas disseminadas entre a elite brasileira, e aqui divulgadas pelos viajantes, estudantes, tropeiros, pelos livros, que continham pensamentos de vanguarda, pelos jornais da Provncia, cujas matrias eram, em parte, baseadas nos jornais do Rio e de So Paulo.O humor otimista fez com que as recepes em Gois se intensificassem. As senhoritas, em maior nmero, e os cavalheiros, em menor nmero, tocavam piano para abrilhantar esses saraus ou festas da mesma forma que acontecia no Rio de Janeiro onde, durante o segundo reinado, muito se copiou dos esplendores da Frana. Mais que nunca o Rio imita a Frana e Gois imita o Rio, mesmo que num eco amortecido e plido.A literatura do segundo reinado influenciou, nos goianos e goianas, o gosto pela leitura, pelos saraus, pelo piano. Vrios autores fazem continuadas referncias s suas personagens postadas junto ao piano, valsando ou conversando nos sales, dos quais esse instrumento nunca estava ausente. Os autores goianos tambm registram a presena do piano e da msica na vida e nos sales de Gois. Tais referncias so extremamente valiosas, pois comprovam que os caminhos, as determinantes, as circunstncias que influenciaram e fixaram a presena do piano em Gois foram realmente fruto de tentativas de imitar os costumes do Rio e de outras cidades litorneas. Foram, igualmente, fruto da necessidade de se viver aqui o inebriante lirismo e romantismo presentes nos sales e encontros familiares, to convincentemente narrados pelos grandes mestres da literatura brasileira e transmitidos atravs da leitura de seus romances. Os autores nos Informam, tambm, quem eram as pessoas de mais luzes, mais refinamento, mais sensibilidade, que faziam da msica e do piano grande lenitivo para a rida e montona vida no distante Gois.Nesse aspecto, vale citar o trabalho de Clia Coutinho Seixo de Brito (1982), que reverencia a memria e traa o perfil de trinta e duas mulheres que contriburam na formao e desenvolvimento cultural de Gois e para o enriquecimento de seu nvel social. Foram educadoras, poetisas, escritoras, pianistas, consideradas pela autora como marcos de referncia. So descritas como mulheres corajosas, dignas, amantes da literatura e da msica. Muitas faziam parte da melhor sociedade brasileira; eram freqentadoras dos sales cariocas, paulistas, mineiros, e tinham cultura europia; ataram suas vidas a Gois pelo matrimnio e, abandonando tudo, aqui passaram a viver, transmitindo a seus filhos a cultura e o gosto apurado das cidades mais desenvolvidas.Se existe hoje entre ns uma slida cultura musical e pianstica, tal fato se deve, em parte, sensibilidade dessas mulheres que difundiram e exercitaram, de gerao a gerao, a msica e o piano - principalmente por meio do ensino particular e em famlia - e, tambm, s Irms Dominicanas. Vindas da Frana, chegaram antiga capital em 1889 e fundaram o Colgio SantAnna. A partir de ento, crianas e jovens goianas receberam delas a dedicao de educadoras, que lhes ministravam no apenas instruo, mas tambm orientao moral e religiosa.O cenrio do livro de Clia Coutinho a cidade de Gois, e nele so retratados os costumes vividos pela sociedade vilaboense, que tinha na mais alta conta os valores morais e espirituais. Pelos relatos, percebemos o quanto era intensa a vida ltero-musical dos saraus, festas e bailes, com a alegre participao de poetas, poetisas, msicos e pianistas. Vila Boa inteira, praticamente, tocava piano.Nas outras cidades goianas tambm se tocava muito piano mas de uma forma por demais amadorstica, para no dizer rudimentar. Era costume tentar aprender piano sozinho: pegava-se um livro e praticava-se, tocando como bem aprouvesse tocar. O resultado que o pobre piano se via obrigado a gritar, submetido que era s socadas e punhadas violentas. E como apreciavam aquele som estridente e socado! Quanto mais alto e barulhento o intrprete tocasse, mais admirao por sua performance conseguia. importante ressaltar que isto no acontecia apenas nas outras cidades goianas. Na antiga capital tambm era muito comum tratar o piano dessa forma. Entretanto, certo que na capital muitas pessoas possuam sensibilidade e conhecimento, devotando ao piano a tcnica e execuo que lhe levassem perfeita sonoridade.

1.2O piano em Gois no sculo XX

O sculo XX no trouxe grandes modificaes ao motins vivendi das comunidades goianas. Vivia-se uma vida pacata, fortemente pautada por sentimentos de fraternidade e solidariedade; as cidades, distanciadas e isoladas dos grandes centros pela vastido das distncias, encontravam nos estudos, na arte e nas coisas do esprito inmeros adeptos, vidos de crescente polimento cultural. Sobretudo na antiga capital, a leitura dos livros importados a todos nivelava e a cultura era uma aspirao da coletividade.Vrios eram os executantes do piano e seu ensino continuava, na entrada do sculo, a ser ministrado pelas pessoas de maior cultura e pelas Irms Dominicanas. As aulas eram ministradas na residncia da professora, e oensino do piano, exclusivo e particular, tornou-se verdadeira instituio, a exemplo do que ainda acontecia na rea da instruo, pois o ensino em famlia foi modalidade rotineira, tambm, no sculo XX (Silva, 1975, p. 52).So bastante escassas, praticamente inexistentes, as informaes sobre a orientao pedaggica desses mestres. As informaes obtidas de antigas alunas das irms dominicanas e de familiares de Marianinha Fleury Curado indicam que devem ter sido usados os mtodos de Schmll Hanom e Czerny alm de variadas peas, que vinham atender o gosto e a emotividade pessoal de cada aluno.Como naquela poca no havia em Gois uma escola de msica estruturada, no havia um programa curricular a cumprir; o ensino do piano, a exemplo do que j havia ocorrido no Rio de Janeiro, era um ensino informal, ensinava-se simplesmente.A msica continuava a ser exercida prazerosamente, de modo especial o piano, que continuou a exercer o mesmo fascnio sobre as pessoas depois da mudana do sculo. Seu reinado permaneceu inalterado na antiga capital de Gois. Gois do Couto descreve, de forma lrica, as reaes da populao aos sons desse instrumento musical, sob as mos de hbeis pianistas da poca: maneira dos vagalumes, que abrem as suas cortinas de fosforescncia ao vir a escurido, tambm a pompa artstica dos vilaboenses aguardava essas horas amolentadoras para seus devaneios sentimentais. E os passeantes, alimentados e sem pressa, numa ronda indeterminada e indolente, parando aqui e ali, ruas afora, enlevavam-se ouvindo os sons dos pianos, que mos hbeis percutiam, interpretando trechos de msica clssica, na indisciplina personalssima dos gostos e das tendncias emotivas do momento em que viviam. A multiplicidade desse nobre instrumento fazia com que deixasse de ser novidade a profisso dos pianistas (Gois do Couto, 1958).

1.3A msica e o piano nas primeiras dcadas da nova capital

Em 1933, com o lanamento da pedra fundamental, concretiza-se o projeto de mudana da capital da Cidade de Gois para Goinia, cidade construda especialmente para esse fim.Por essa ocasio, j se encontravam instaladas em Campinas ou Campininha - lugarejo prximo ao local escolhido para a nova capital, hoje um bairro de Goinia - desde 1921, as irms da congregao das franciscanas da Ao Pastoral, procedentes da Alemanha. Aqui vieram para trabalhar nas misses em Gois, ao lado dos padres redentoristas, na catequese e na escola paroquial.Na tarde do dia 17 de outubro de 1921, toda a populao de Campininha, avaliada em trezentas pessoas, concentrou-se na Praa da Matriz, espera das irms, segundo relato do Sr. Licardino de Oliveira Ney, testemunha ocular do acontecimento. Pela manh do dia 18, o povo e os redentoristas as receberam com palmas e missa festiva (Menezes, 1981, p.80).No dia 9 de janeiro de 1922, deu-se a inaugurao do Colgio Santa Clara, que passou a atender s necessidades educacionais das estudantes da regio e de todo o Estado, tornando-se, tambm, pioneiro na educao musical dessa regio. Irm urea Cordeiro assim registra a contribuio musical do Santa Clara em Gois:No dia 23 de fevereiro de 1924, o Santa clara recebeu o seu primeiro piano, encomendado da Alemanha. Que surpresa para as alunas! Muitas delas nunca tinham ouvido e, menos ainda, visto um piano.Ampliando suas possibilidades no setor da msica, com oito pianos, dois harmnios, vrios bandolins, violinos, violes, acordeons, etc., o Santa clara deu ao Estado de Gois vrias alunas com tal preparo musical que so elas, hoje, organizadoras e dirigentes de corais, inclusive os das igrejas, das festinhas e dos programas artsticos. Vrias alunas iniciadas no Santa clara so hoje exmias pianistas.Tal foi a nfase que se deu formao musical no Santa clara que, em 1956, as irms cogitaram da fundao de um conservatrio no Estado de Gois. Aps um longo e exaustivo trabalho no Rio de Janeiro, em prol da fundao, chegaram concluso de que para o colgio, no era hora ainda, daquela iniciativa (Menezes, 1981, p. 1 82-4).

O Santa Clara sempre deu nfase no apenas msica, mas a tudo que pudesse influir na formao cultural de suas alunas. A arte dramtica, a pintura e a oratria eram cultivadas por meio do teatro, das exposies e dos grmios literrios, que incentivavam a criatividade e despertavam talentos.A msica era uma das matrias obrigatrias, em obedincia ao estatuto interno do colgio. As alunas eram alfabetizadas musicalmente nas aulas de teoria e solfejo e a parte prtica consistia no estudo de instrumentos como piano, harmnio, violo, bandolim, violino e acordeon. Estudavam tambm canto e as apresentaes do Coral do Santa Clara alcanaram pleno xito.Pode-se dizer que o Santa Clara foi a primeira escola de msica de Goinia, passando a atender s necessidades educacionais e artsticas de nosso Estado, logo que iniciou suas atividades. Grandes talentos encontraram ali o alicerce e as condies favorveis ao aprimoramento de seus dotes.A transferncia da capital trouxe, de maneira geral, muita alegria, pois Goinia veio trazer o progresso a Gois. Com a melhoria do sistema de comunicaes, foi quebrando-se, com euforia, o isolamento que havia confinado os goianos. Uma onda de otimismo, aliada ao moderno plano urbanstico da cidade, criou um clima favorvel s ousadias do progresso. Surgiram novos municpios e as condies sociais do povo tornaram-se um pouco melhores. E assim, depois de muita controvrsia poltica, firmava-se a nova capital do estado. Nossa realidade scio-cultural comea a tomar novo rumo, pois inicia-se, ento, a movimentao cultural da capital do Estado.Goinia recebeu seu primeiro piano no dia 10 de dezembro de1935, s llh3Omin. Era da conhecida marca Gaveau, de Paris, e foraadquirido, havia algum tempo, na casa Arthur Napoleo, no Rio de Janeiro. Erade propriedade do Secretrio Geral, Dr. Benjamim Vieira (Monteiro, 1938, p.497).O segundo piano a chegar a Goinia pertencia escritora Rosarita Fleury. A respeito de seu piano, ela faz o seguinte relato, revelador do fascnio que o piano exercia sobre a jovem populao goianiense:Foi ao procurar minorar a solido em que vivamos aqui em Goinia, que se instalou em mim uma idia, tornada, por fim, em obsesso. Desejava comprar um piano e, sem ele, achava difcil suportar as longas noites sem luz, tendo, por nica diverso, ver da janela, o piscar dos inmeros vaga-lumes de que eram fartos os campos de Goinia. Meu pai aprovou a idia, e, logo depois, entrava em nossa casa um lindo piano Albert Schmool trs pedais, muito afinado e todo brilhante, em sua tonalidade castanha. Foi comprado a prestaes, e, para pag-lo privei-me de roupas novas e outras coisas do agrado da mocidade.Apesar de nossa vontade, no foi possvel conseguir subir o piano pela escada estreita que era serventia da casa. No havia guindaste aqui em Goinia, por isso o piano (o segundo a entrar na nova capital), ficou no saguo de entrada da casa, ao lado da escada, e ali passou a ser minha sala preferida. Nessa casa ficamos at 1936. A noite, eu reunia os amigos. Eram noites agradveis, e o piano cumpriu, de forma brilhante, seu papel de transformar em sons melodiosos, a silenciosa escurido daquela Goinia que comeava a engatinhar (Teles, 1 986, p. 1 78).Os pianos, integrados na vida da nova capital, se transformaram em objetos obrigatrios, indispensveis, tanto na rotina domstica, quanto nos momentos solenes.Quanto ao seu ensino, as nicas professoras existentes, at 1940, eram as freiras do Colgio Santa Clara. As pessoas que se dedicaram ao instrumento, nos primeiros anos da nova capital, ou trouxeram seus conhecimentos musicais adquiridos na antiga capital, ou ento os aprimoraram com as referidas irms.A cidade principia a receber a influncia artstica e didtica de Maria Anglica da Costa Brando, Nhanh do Couto, por volta de 1940, quando esta comea a desenvolver um movimento artstico na cidade, por meio de recitais e apresentaes no Automvel Clube, no Palcio do Governo e no Liceu; e, tambm, ao instalar uma escola de msica em Goinia - com uma metodologia diferente da que era costumeiramente aplicada na cidade, onde ensinava teoria, canto e piano. Ficou famosa pela preciso tcnica que exigia de seus alunos.Mas o seu principal objetivo era criar na nova capital um Conservatrio de Msica, uma escola que, alm de propiciar a todos o aprendizado de variados instrumentos, tivesse um ensino institucionalizado.Consciente de que no poderia, ela prpria, em funo de sua sade, ver concretizado esse sonho, preparou sua neta Belkiss Spencieri para buscar tal objetivo.Os planos de trabalho de Nhanh do Couto para o desenvolvimento da msica em Gois se concretizariam atravs da neta. Depois de obter, no Rio de Janeiro, o diploma oficial de msica, credencial necessria tarefa de abrir em Gois um conservatrio de msica, retornou a Goinia e comeou a traar os planos necessrios para que a cidade tivesse uma escola de msica de reconhecimento federal.O Conservatrio Goiano de Msica foi ento fundado por um grupo de cinco professores, liderados pela profa Belkiss 5. Carneiro de Mendona, em janeiro de 1956 e incorporado Universidade Federal de Gois em dezembro de 1960. Atravs dele, a msica teve seu lugar assegurado no dinmico processo de florescimento cultural acontecido em Gois durante os anos 60.Ao procurar conhecer as razes da Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG, pudemos comprovar a dignidade da sua histria. Dignidade que se traduz na capacidade de trabalho, competncia e tica profissional que sempre permeou o desempenho e as aes de seus fundadores: Belkiss Spencieri Carneiro de Mendona, Jean Douliez, Maria Lucy Veiga Teixeira, Maria Luza Pvoa da Cruz, Dalva Maria Pires Machado Bragana e demais professores (Borges, 1996).Os vrios documentos e registros pesquisados comprovam que, durante os mais difceis anos da existncia do Conservatrio, esse grupo de pioneiros jamais permitiu que as dificuldades o fizesse desistir do ideal de criar o ensino institucionalizado da msica em nosso Estado. Tomou tambm a si a responsabilidade de manter uma escola de msica - de qualidade -funcionando e trazendo desenvolvimento cultural para Gois.A preocupao com o elevado nvel de ensino jamais foi abandonada por aqueles que sucederam o grupo pioneiro. A Escola de Msica e artes Cnicas da UFG tem dado continuidade ao trabalho de seus fundadores mediante a formao de inmeras geraes de msicos e pianistas que, militando no ensino pblico ou particular, constituem uma cadeia de msicos que tm tomado a si a responsabilidade de difundir e ensinar msica em Gois.Goinia possui hoje inmeras escolas de msica particulares, sendo a grande maioria de propriedade de ex-alunas da Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG. Possui tambm, alm da Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG, trs escolas de msica de ensino pblico. Uma mantida pela Prefeitura, o Centro Livre de Artes, e duas pelo Estado: A Escola de Msica, que funciona no Centro Cultural Gustav Ritter - mantida pela Agncia Goiana de Cultura Pedro Ludovido Teixeira - e a Escola de Artes Veiga Valle, mantida pela Secretaria da Educao do Estado de Gois.Vale ressaltar que, em todas as escolas, pblicas ou particulares, o quadro de dirigentes e professores formado, praticamente na sua totalidade, por ex-alunos do Conservatrio ou da Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG.Dentre as escolas de msica particulares, uma das que possuem maior destaque na cidade o Lilian Centro de Msica - objeto de estudo deste trabalho - cuja proprietria e diretora, Profa Lilian Silva Carneiro de Mendona, ex-aluna do antigo Conservatrio de Msica da UFG.Acredito que o pioneirismo de Nhanh do Couto - guardadas as devidas propores e diferenas - se perpetua, de certa forma, na pessoa da Profa Llian, nora de sua neta Belkiss. Nhanh foi uma ardorosa mudancista. Totalmente favorvel criao de Goinia, no se curvava s crticas de pessoas que, apegadas s tradies de Gois, eram contrrias mudana da capital; convicta de que o mtodo de soletrao era um mal que precisava serabolido, adotou nas escolas que lecionava o mtodo de silabao inovador para aquela poca - e lutou por um ensino de msica diferente do que era feito naquele Gois de antanho.O esprito mudancista da Profa Lilian levou-a a idealizar, para sua escola, uma metodologia diferente e uma proposta de ensino pautada em mudanas no ensino de msica rgido, austero, tradicional. Convicta de que o nosso momento histrico exige a insero da msica em um universo interdisciplinar, prazeroso e solidrio, no teve dvidas em adotar em sua escola uma proposta diferente e inovadora e com ela segue confiante, indiferente s criticas que recebe por parte dos mais apegados s tradies do ensino de msica em Gois, principalmente do ensino de piano.

2.REFLEXES SOBRE OS FUNDAMENTOS TERICOS DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM DO PIANO

Ao fazer uma anlise crtica da metodologia tradicionalmente empregada pelas escolas de msica no ensino do piano, percebo que, em funo do alto grau de realce atribudo racionalidade tcnica, ao professor como tcnico-especialista, quase que inteiramente voltado soluo dos problemas da tcnica pianstica, essas escolas mergulham suas razes na concepo tecnolgica da atividade profissional.As crianas, depois de iniciadas na msica, fazem a escolha de um instrumento. Caso a preferncia recaia sobre o piano, iniciam o estudo de obras representativas do repertrio nacional e estrangeiro de cada perodo histrico. Essas obras so includas em um programa anual a ser seguido -organizado por dificuldade progressiva -, nelas trabalhando a tcnica e a interpretao pianstica.As aulas de piano so sempre individuais. Em um primeiro momento, indicada ao aluno uma metodologia de estudo, ou seja, as modalidades prticas de trabalho: melhor maneira de resolver e executar os problemas tcnicos da obra em estudo, melhor maneira de memorizar, durao do perodo de prtica, freqncia desses perodos, etc.Depois de adquirido o domnio tcnico, o saber como fazer, o aluno comea, ainda sob orientao, a construir a interpretao da obra.Esse mtodo pedaggico-musical, adotado, por exemplo, pela Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo antigo Conservatrio e pela atual Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG, no se filia a uma escola especfica. As tcnicas e maneiras de execuo adotadas so fruto de vrias pesquisas, desenvolvidas, ao longo do tempo, por estudiosos da tcnica e da execuo pianstica.No antigo Conservatrio de Msica da UFG, o currculo profissional baseava-se num corpo central de cincia comum e bsica e as atitudes profissionais do professor de piano estavam voltadas, basicamente, para a tcnica pianstica em si mesma, assim como acontece, ainda hoje, na Escola de Msica e Artes Cnicas da UFG.Naquele momento histrico, priorizar o alto nvel de contedo foi positivo. No havia por que temer os limites da racionalidade tcnica, o bom clima subjetivo que se respirava nos corredores da escola fazia com que eles no interferissem, pelo menos significativamente, no processo educativo dos alunos e tampouco no trabalho docente dos professores.Segundo Cavaco (1991, p. 176), a partir da organizao de um corpo docente nuclear, empenhado e dialogante, que consegue aglutinar grupos de professores para projetos comuns, pode gerar-se um ambiente de acolhimento e participao, que estimule a formao interveniente de todos, embora para alguns as condies do sistema ainda permaneam limitativas da qualidade de trabalho. Reinventam-se recursos a partir de outros olhares sobre a escola e o meio; reatualizam-se os saberes; diversificam-se atividades e papis, redimensionam-se, aprofundando-se as relaes; recria-se a profisso e sente-se que a sua imagem se pode tornar outra.A convivncia pautada por valores ticos e morais, o clima de idealismo e de busca de realizaes, aliados racionalidade tcnica, ao alto nvel de ensino, foram os principais responsveis pelo progresso e desenvolvimento do Conservatrio de Msica da UFG.Porm, como vivemos em uma sociedade complexa e mutvel, dotada de uma memria geradora de cultura que funciona como um cdigo social sujeito a mudanas devido evoluo, aos eventos sociais e interao simultnea de mltiplos fatores e condies (Nvoa, 1991, p. 109), tais como as caractersticas situacionais do contexto e a prpria histria da escola enquanto grupo social, a realidade histrica do ensino do piano hoje outra.O ensino do piano no Brasil est passando por um momento difcil e as razes desse problema podem ser as mesmas que atingem o ensino instrumental em nosso pas, de uma maneira geral. Segundo Kaplan (Kaplan, 1977), as causas da crise no ensino instrumental podem estar centradas basicamente em dois fatores:a) Fatores ambientais negativos: a profisso de msico corporativamente pouco organizada, mal remunerada e de pouco prestigio social, fatores responsveis pelo desestimulo familiar s vocaes musicais.b) Falhas educacionais: a compreenso das diferenas de orientao que se deve dar ao ensino musical deficiente e as principais caractersticas pedaggicas que esse tipo especfico de ensino apresenta, so, muitas vezes, negligenciadas por docentes e autoridades.A aprendizagem do piano de carter perceptivo-motor e, basicamente, um processo psicolgico; ela o resultado de perfeito funcionamento neuromuscular dos membros superiores, regidos pela mente (vontade) do individuo, com forte carga do elemento cognitivo, e se constitui em um dos mais complexos atos motores realizados pelo ser humano. E necessrio, ento, compreender e determinar, objetiva e cientificamente, os diferentes dados desta operao; preciso fugir mediocridade e ao ensino rotineiro, no se pode ensinar o instrumento baseando-se apenas na repetio mecnica (Kaplan, 1987).Certas crenas populares tambm tm prejudicado o ensino de msica no Brasil. Acredita-se muito, por exemplo, em vocao ou aptides inatas, e esse inatismo tem causado, tambm ao ensino de piano, muito prejuzo.A aquisio musical no estritamente um reflexo de habilidade inata, ela depende, tambm, de estmulo e influncia cultural. Portanto, se o artista guiar-se s pela sua intuio e generosa quantidade de talento, dificilmente ser capaz de desenvolver suas aptides artsticas e atingir o nvel musical exigido.Kaplan (1987) esclarece que no se trata de afirmar que todos os homens sejam iguais artisticamente, mas, por outro lado, no se pode desconsiderar que os dons artsticos guardam uma dependncia estreita do meio scio-cultural onde os alunos crescem e o tipo de orientao que recebem. Ele adverte que se os indivduos, desde a infncia, fossem incentivados a desenvolver suas potencialidades, e recebessem as condies necessrias para tal, todas as crianas normais poderiam ser consideradas bem dotadas (Kaplan, 1987, p. 12).O professor que procura adquirir conhecimentos objetivos da arte que ensina e que indica aos alunos os caminhos certos a serem trilhados para desenvolver suas qualidades exerce uma influncia positiva sobre o desenvolvimento intelectual e instrumental do aluno. Se no possui essa conscincia profissional, ou, se por incapacidade ou desinteresse, fracassa, o aluno transforma-se numa vitima. Suas qualidades naturais, ao invs de desabrocharem, se atrofiam e desaparecem. necessrio ento fundamentar o ensino do piano nos dados que nos podem fornecer outras cincias. Kaplan (1977) destaca, entre elas, a Psicologia da Educao. Considera que ela deve ser um dos pilares de sustentao do processo de ensino-aprendizagem do piano.Segundo Kaplan, tocar piano no ser nunca uma cincia e tampouco se pretende que o seja, mas possvel trabalhar em um campo de grande interesse terico e de enorme importncia prtica: a fronteira onde a Cincia se encontra e colabora com a Arte (Kaplan, 1977).

2.1A prtica reflexiva na atuao do professor de piano

A histria da humanidade vive hoje um perodo em que a Cincia e a Tecnologia alcanam um alto grau de desenvolvimento e este estudo cientfico deve ser colocado a servio dos melhores interesses do homem como, por exemplo, a servio da Educao.A epistemologia dominante em educao tem sido, segundo Schn (apud Angulo, 1988), a racionalidade tcnica, que significa a aplicao de uma teoria e uma prtica cientfica para a soluo de problemas instrumentais, O ensino caracteriza-se, luz deste modelo, como um processamento clnico de informao, comparando-se o professor a um mdico que diagnostica, prescreve e resolve problemas (Pacheco, 1995, p. 49).Os limites da racionalidade tcnica se tornam evidentes, segundo Prez Gmez (1997), porque, de um modo geral, na prtica educacional no existem problemas, mas sim situaes problemticas que se apresentam freqentemente como casos nicos. A forma como cada professor as enfrenta depende muito da sua individualidade psicolgica, cada pessoa tem um processo prprio e idiossincrtico de interpretar o mundo, de organizar os dados do meio. Neste aspecto, as crenas, os valores, expectativas, teorias implcitas, atitudes, so a tela de fundo do contexto em que os professores decidem perante situaes especficas, definindo tanto o seu pensamento quanto a sua ao (Pacheco, 1995, p. 54)Assim sendo, a riqueza dos processos de ensino e aprendizagem, caracterizados a partir de fenmenos prticos como complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade e conflito de valores, impede que possamos considerar a atividade profissional do professor como uma atividade exclusiva e prioritariamente tcnica. Melhor seria consider-la uma atividade reflexiva e artstica, na qual cabem algumas aplicaes concretas de carter tcnico (Prez Gmez, 1997, p. 100).Constata-se hoje que o ensino informativo, aliado ao ensino mais formativo e reflexivo, mais dirigido para aplicao em situaes reais de vida, provou ser mais eficiente que a simples comunicao de informao sistematizada e aplicao de teorias. As modernas correntes educacionais aplicam teorias da aprendizagem introduzidas pela Psicologia e voltam-se decididamente para o encontro homem-cultura-realidade (Kaplan, 1978).No campo do ensino de piano, o caminho no poderia ser diferente, a msica tambm precisa ter seu prprio espao ampliado. Devemos tentar perceber a sua ligao com o homem, com as cincias e com o contexto social em que vivemos, principalmente porque o objetivo principal das Artes o indivduo, em suas diferentes formas de expressar-se.As Artes cultivam as diferenas individuais, a valorizao da experincia de vida, a busca da autenticidade. A originalidade a condio primeira, mas o seu maior agente condicionador e sustentador a Arte antecedente, no h como produzirmos o novo sem nos apropriarmos do que j foi construdo historicamente; as relaes entre professor e aluno de msica situam-se, portanto, entre o conhecimento mais sistematizado de um e as possibilidades criadoras do outro.Acredito que o ensino do piano, neste momento histrico, requisita uma pedagogia que no seja um espao tcnico restrito, orientado por relaes formais, nem tampouco uma pedagogia centrada no professor ou no aluno.A pedagogia centrada no professor acaba por produzir, em nome da transmisso do conhecimento, ditadores, por um lado, e indivduos subservientes, anulados em sua capacidade criativa, por outro.Ao pretender enfrentar os desmandos autoritrios do modelo anterior, a pedagogia centrada no aluno confere a ele uma hegemonia prvia e lhe atribui qualidades que no tem, gerando, sob uma pedagogia no-diretiva, o autoritarismo do aluno, to nocivo quanto o do professor (Becker, 1 993c, p. 9-10).Penso que o processo ensino/aprendizagem do piano, exatamente por lidar com as emoes, com a criatividade e subjetividade, caracteriza-se como uma atividade que precisa encontrar um campo de perspectivas de interao e solidariedade, um locus de relaes interpessoais onde a qualidade dos vnculos afetivos que se estabelecem so decisivos na configurao dos resultados (Costa, 1995).Portanto, acredito que preciso buscar, tambm no campo do ensino msico-instrumental, uma pedagogia centrada na relao, um modelo pedaggico que resgate a importncia dos plos da relao pedaggica dialetizando-os, e negando, simultaneamente, o autoritarismo do professor e do aluno. O professor traz sua bagagem, o aluno tambm (Becker, 1 993c, p. 10).Esta pedagogia interativa e dialgica possvel a partir de uma prtica reflexiva, ou seja, a partir de professores que reflitam sobre a sua prpria prtica e que considerem a reflexo um instrumento de desenvolvimento do pensamento e da ao.A reflexo no uma forma individualista de trabalho mental, ela pressupe e prefigura relaes sociais. Assim como a msica, implica a imerso consciente do homem no mundo de sua experincia, um mundo carregado de conotaes, valores, intercmbios simblicos, correspondncias afetivas, interesses sociais e cenrios polticos (Prez Gmez, 1992, p. 102-103). Ela , na atualidade, o conceito mais utilizado como elemento estruturador de propostas sobre a formao de professores.Donald Schn, um dos maiores divulgadores do conceito de reflexo, muito contribuiu para popularizar as teorias sobre a epistemologia da prtica, cujas origens remontam a Tolstoi, John Dewey, Jean Piaget, Montessori, Pestalozzi, David Hawkins, entre outros. A importncia de sua contribuio reside no fato de ter destacado uma caracterstica fundamental do ensino, uma profisso em que a prpria prtica conduz necessariamente criao de um conhecimento especfico e ligado ao, que s pode ser adquirido atravs do contato com a prtica, pois trata-se de um conhecimento tcito, pessoal e no sistemtico (Marcelo Garcia, 1991, p. 60).Conhecimento tcito o conhecimento espontneo, intuitivo, experimental, conhecimento cotidiano elaborado tanto pelo professor como pelo aluno (Schn, 1997). A vida cotidiana de qualquer profissional prtico depende desse conhecimento tcito que ele mobiliza e elabora durante sua prpria ao.O profissional que tem sua formao alicerada em uma prtica reflexiva sabe que a reflexo sobre este conhecimento tcito, advindo de sua prtica pedaggica, lhe possibilitar traar diretrizes e procurar solues para problemas que encontra em seu dia-a-dia, contribuindo, assim, decisivamente, para sua autonomia profissional. Este processo chamado por Donald Schon de reflexo-na-ao.A reflexo-na-ao possibilita-lhe elaborar um diagnstico rpido da situao, desenhar estratgias de interveno e prever o curso futuro dos acontecimentos (Prez Gmez, 1997, p.102).Por outro lado, a reflexo-sobre-a-ao refere-se ao processo de pensamento que ocorre de maneira retrospectiva. O professor pensa sobre o que ocorreu em uma situao problemtica e sobre as reflexes-na-ao por ele produzidas, ou seja, o que observou, que significado lhe deu, que atitudes tomou. Refletir sobre a reflexo-na-ao uma ao, uma observao e uma descrio, que exige o uso de palavras (Schin, 1997, p. 83).A elaborao destas estratgias de ao depende, tambm, da familiaridade com que o professor se relaciona com o conhecimento tcito revelado pelo aluno. Para isto necessrio que o professor tenha a capacidade de individualizar, de prestar ateno a cada aluno, ir ao seu encontro e entender o seu processo idiossincrtico de conhecimento (Schon, 1997, p. 82).A principal caracterstica da prtica reflexiva , portanto, que o ensino concebe-se como uma atividade com dois caminhos: o professor e o aluno, inter-relacionados por um sistema de comunicao (Pacheco, 1995, p. 57).O profissional reflexivo converte-se num investigador na sala de aula e se afasta da racionalidade instrumental. Ele no depende das tcnicas, regras e receitas derivadas de teorias externas, prescries curriculares ou esquemas de manual escolar porque sua ao pedaggica centrada no aluno e acompanhada pelo ato de refletir sobre o ecossistema da sala de aula (Prez Gmez, 1997, p. 106). Isso lhe possibilita um melhor conhecimento pedaggico do contedo que ensina e compreenso do que seja fcil ou difcil em uma aprendizagem especfica.A escolha do material pedaggico, mediante o qual se processar a caminhada progressiva do aluno, extremamente importante, principalmente no caso do ensino do piano. Cabe ao professor habilidade de viso na seleo de obras na medida em que se tornem fonte no apenas de contedo terico e esttico, mas tambm de motivao.Esse interesse pelo aluno o leva no apenas a construir o seu conhecimento atravs de um processo de observao, compreenso, anlise e interpretao, mas, tambm, a usar esse conhecimento para tomar decises e para estabelecer, dentro da sala de aula, um ambiente interessante e propcio ao desenvolvimento afetivo, emocional e experiencial do aluno, elementos que fazem parte de um processo particular e idiossincrtico de ver o mundo (Pacheco, 1995).Deste modo, alm de estar, a todo momento, processando informaes e construindo seu saber docente, ele estar tambm conferindo, racionalidade de sua atuao, a dimenso subjetiva do ensino.O profissional reflexivo e crtico consegue diagnosticar os preconceitos de aprendizagem desenvolvidos pelos alunos e tenta solucionlos atravs da convergncia interdisciplinar de saberes e habilidades pedaggicas flexveis, ou seja, habilidades que se adaptam a contextos e situaes educacionais distintas (Sanchez, 1988).Penso que a prtica reflexiva e construtiva, que coincide com a proposta construtivista para a educao, a que melhor se adequa ao ensino do piano. As Artes cultivam as diferenas individuais, a valorizao da experincia existencial. Uma exigncia fundamental do processo pedaggico musical que ele parta do Ser-assim dos alunos, ou seja, enxergar cada aluno como um indivduo nico que, para melhor desenvolver suas potencialidades individuais, necessita do professor como orientador e mediador, aquele que promove o desenvolvimento social, emocional e cognitivo do aluno.O profissional que possui capacidades de autodesenvolvimento reflexivo consegue responder, satisfatoriamente, a essa exigncia fundamental do processo pedaggico musical, pois um dos objetivos da prtica reflexiva exatamente sensibilizar os professores para valores, tipos de vida e culturas diferentes das suas e a desenvolver o seu respeito pela diversidade humana (Zeichner, 1 997, p. 126).

2.2 A prtica reflexiva na aprendizagem do aluno

Talento importante em qualquer aluno de piano, mas, se esse talento no for alimentado e sustentado por uma tcnica pianstica forte e precisa, advinda de um estudo motivado, racional e inteligente, no conseguiremos expressar claramente aquilo que pretendemos. Ser impossvel bem interpretar uma obra musical, porque esta pressupe e exige, para sua perfeita interpretao, o saber fazer, o domnio essencial da tcnica pianstica.Tcnica pianstica, segundo Kaplan (1979, p. 20), a perfeita cordenao dos movimentos musculares no momento de executar uma pea musical. ela que permite ao pianista vencer os problemas de execuo encontrados nas obras que os mestres da literatura pianstica nos deixaram.Kaplan nos ensina que essa perfeita coordenao s possvel de ser obtida por meio do estudo do movimento, isto , da compreenso de quais fatores de ordem fsica e psicolgica permitem sua melhor realizao.Como o movimento voluntrio tem sua origem e controle no crebro e no sistema nervoso central e criado de acordo com o objetivo e controle consciente da vontade do indivduo que o realiza, Kaplan conclui que a tcnica pianstica , basicamente, um processo mental. Acrescenta ele que a essncia da aprendizagem da tcnica reside do ponto de vista da mecnica fisiolgica na dissociao muscular.Dissociao muscular a capacidade que todo ser humano normal possui de, voluntariamente, contrair, com a intensidade necessria, determinados msculos indispensveis para realizar uma determinada ao, deixando relaxados aqueles que momentaneamente no so necessrios e que podem perturbar ou impedir a ao dos primeiros (Kaplan, 1987, p. 36).Para o aluno de piano, vital a plena conscincia das diferentes sensaes, porque s assim ele poder verificar, principalmente no incio do estudo, a existncia de contraes musculares desnecessrias execuo da obra e se o grau de contrao dos msculOs utilizados correto no sentido de se obter o mximo de rendimento com um mnimo de esforo.Esse alto rendimento/pouco esforo possvel de ser adquirido se houver, desde o incio do estudo, a preocupao com a aquisio de movimentos corretos, que so mecanizados depois por meio da prtica da repetio racional, vigilante, consciente; no adianta nada, ou adianta muito pouco, ficar horas seguidas ao piano estudando distraidamente, No malhando a passagem que se resolve com segurana o problema, mas sim analisando o que se passa ali. A repetio s tem valor real e duradouro quando feita com carter seletivo, ou seja, com a inteno de selecionar a melhor maneira de executar uma passagem, e com esprito de crtica, a fim de descobrir onde e porque a execuo falhou. Deve tambm ser lenta para que se tenha tempo de observar e criticar; observar com o ouvido o efeito sonoro, com a vista os movimentos executados pelos dedos, mo e brao, e, se foi detectada alguma dificuldade, refletir sobre a causa do insucesso.O trecho repetido precisa ser restrito a poucos compassos porque a ateno s poder se concentrar num campo de observao limitado, caso contrrio se dispersar.Com o decorrer do tempo, a prtica da repetio atenta elimina os impulsos nervosos mal coordenados e vai aos poucos polindo o gesto at que ele se torne automtico.O gesto precisa se automatizar, tornar-se involuntrio, porque o movimento novo, muito consciente, no tem a mesma elegncia e segurana do gesto automotizado, realizado naturalmente (Kaplan, 1987).A partir desse automatismo, o aluno poder, ento, despreocuparse da ao muscular de cada dedo e concentrar-se na interpretao, na execuo da obra em sua totalidade.Como podemos perceber, o pianista necessita do hbito dirio e disciplinado de estudo para chegar a um resultado satisfatrio, ele precisa exercitar-se muitas horas para aperfeioar um gesto, melhorar um timbre de som emitido e assim tornar sua execuo mais bonita, mais agradvel, mais prxima da forma perpetuada pelo autor.Diversas outras variveis interferem no processo de aquisio da tcnica pianstica, mas foram omitidas porque fogem ao objetivo do trabalho. Esta explicao superficial e generalizada visa apenas mostrar a necessidade da reflexo no processo de aquisio da tcnica pianstica. Se os exerccios repetitivos forem executados de forma esvaziada e sem sentido, ou seja, se no forem precedidos e sustentados pela razo e pela reflexo, com certeza resultaro em esforos improdutivos, gastos inteis de tempo e energia e o conseqente cansao e falta de motivao para estudar. imprescindvel, portanto, que venham acompanhados de ateno e esprito crtico e tenham sempre um sentido de desafio, de pesquisa, de busca e de construo.Estas observaes levam a considerar que, para melhor atingir seus objetivos, o ensino e a aprendizagem do piano exigem uma prtica reflexiva - alternativa da escola tradicional e esta pode ser orientada por uma viso construtivista de educao, tal como sugerido nos trabalhos de Piaget.

2.2 A prtica reflexiva e a concepo construtivista piagetiana de educao no processo de compreenso e aquisio do conhecimento musical

O construtivismo na educao, segundo Fernando Becker (1993a), pode ser entendido como uma forma terica ampla, que rene vrias tendncias atuais do pensamento educacional, as quais tm em comum o pensamento de que a educao deve ser um processo de construo de conhecimento do qual participam, em condio de complementaridade, alunos, professores, problemas sociais e conhecimento j construdo.Tais tendncias surgiram devido insatisfao com um sistema educacional, sobre o qual a escola historicamente se constituiu, que faz dessa instituio um lugar de transmisso onde se repete, recita, ensina o que j est pronto, provocando assim aes de origem exgena, determinadas por estmulos programados.Essa forma de transmisso conseqncia de atitudes adotadas pelo professor devido a sua concepo epistemolgica acerca do conhecimento. Segundo Becker (1 993a), se a concepo de conhecimento do professor, a sua epistemologia, for empirista o conhecimento acontece por fora dos sentidos - ele acreditar que conceitos podem ser ensinados e que o seu entendimento poder ser uma cpia exata do entendimento incorporado pelo aluno. Ele ento ensinar a teoria e exigir que o aluno a memorize e a aplique prtica sem relacion-la sua realidade pessoal. A memorizao ocasionar um empobrecimento da teoria, pois impedir que algo novo seja vivenciado e construdo pelo aluno.Se a epistemologia do professor for apriorista - as condies de possibilidade do conhecimento so dadas na bagagem hereditria, de forma inata, predeterminada, para amadurecer mais tarde, em etapas previstas -, ele ir relativizar a experincia, absolutizando o sujeito (o aluno j traz em si o embrio da sabedoria) e subestimando o papel do professor. Sero tambm subestimados o conhecimento organizado e o forte poder de determinao que as estruturas sociais tm sobre o individuo.Caso o professor conceba o conhecimento sob uma perspectiva construtivista, procurar conhecer o aluno como um sujeito que age e interage em um meio cultural e que produz, mediante sua ao, transformaes no mundo objetivo (dimenso assimiladora), e em si mesmo, no mundo subjetivo (dimenso acomodadora).Uma viso construtivista da aprendizagem sugere uma abordagem do ensino que oportunize aos alunos experincias concretas, contextualmente significativas, nas quais eles possam buscar padres, levantar suas prprias perguntas e construir seus prprios modelos, conceitos e estratgias. A sala de aula, neste modelo, vista como uma minissociedade, uma comunidade de aprendizes engajados em atividade, discurso e reflexo. A hierarquia tradicional do professor como conhecedor autocrtico e do aluno como sujeito no-conhecedor, mantido sob controle, estudando para aprender o que o professor sabe, comea a dissipar-se, medida que os professores assumem o papel de facilitadores e os alunos a posse das idias. De fato, a autonomia, a reciprocidade mtua das relaes e a sua potencializao tornam-se metas desejadas (Fosnot, 1998, p. 10).Becker (1993a) acredita que o professor s conseguir romper com uma epistemologia empirista ou apriorista e chegar concepo do conhecimento sob uma perspectiva construtivista se ele parar e refletir sobre sua prtica, ou seja, se sua prtica for uma prtica reflexiva. Por fora dessa reflexo ele se dar conta que seu pensar limitado e que preciso ampliar, construir novos horizontes educacionais.Ao apropriar-se de sua prtica, ele constri ou reconstri as estruturas do seu pensar, ampliando sua capacidade, simultaneamente, em compreenso e em extenso. Essa construo possvel na medida em que ele tem a prtica, a ao prpria; e, tambm, na medida em que ele se apropria de teoria(s) suficientemente crtica(s) para dar conta das qualidades e dos limites de sua prtica. Essas duas condies so absolutamente indispensveis para o avano do conhecimento, para a ruptura com o senso comum na explicao do conhecimento. Deste ponto de vista, o conhecimento no dado nem nos objetos (empirismo) nem na bagagem hereditria (apriorismo). O conhecimento uma construo (Becker, 1 993a, p. 90).Chegamos, assim, sntese do pensamento construtivista piagetiano: a aprendizagem uma construo.O processo de conhecer tem sido alvo de reflexes e questionamentos ao longo da histria da humanidade. Advindas do campo filosfico, duas propostas epistemolgicas se propuseram a explic-lo: a empirista e a apriorista. Jean Piaget, bilogo de formao, estudioso dos caracis, retoma estas proposies e as problematiza. Questionando-se acerca de como passamos de um estgio de conhecimento menor para outro de conhecimento maior, traa sua trajetria de investigao, cuja base experimental era constituda de uma concepo do processo de conhecimento enquanto construo humana (MolI e Barbosa, 1998).Ele tomou a noo de adaptao do contexto biolgico, da variabilidade da adaptao do caracol, e a transformou na pedra angular de sua epistemologia gentica. A partir dessas observaes, passou a estudar a gnese das estruturas cognitivas. Ele acreditava que o ser humano era um organismo em desenvolvimento no apenas no sentido fsico, biolgico, mas tambm em um sentido cognitivo.Concluiu que no h nenhuma estrutura separada da construo e que o mecanismo que promove mudanas na cognio o da equilibrao - processo dinmico de auto-regulao - presente em qualquer processo de transformao e crescimento; ns s agimos e construmos conhecimento se estamos momentaneamente em desequilbrio.Assim sendo, o processo de conhecimento est restrito ao que o sujeito pode abstrair, retirar ou assimilar de algum acontecimento, objeto ou fato. Assimilamos o novo material de aprendizagem segundo os esquemas que j possumos de compreenso da realidade, ou seja, a abstrao est limitada pelos esquemas de assimilao disponveis no momento e os esquemas disponveis so snteses das experincias passadas.Muitas vezes, no nosso dia a dia, estamos em contato com diferentes situaes e fatos que no significam absolutamente nada para ns at que, de repente, adquirem um significado at ento desconhecido. O que permitiu essa mudana foi a nossa percepo de que o esquema de assimilao disponvel no momento era insuficiente. Ns, ento, modificamos este esquema para darmos conta dos desafios encontrados naquela realidade. Voltamo-nos para ns mesmos, produzindo transformaes nos esquemas que no funcionaram a contento.Esta transformao, esta construo de novos significados, aconteceu porque houve acomodao. Ela permitiu uma maior interconexo dos esquemas prvios e isto resultou num enriquecimento de conhecimento, um equilbrio cognitivo que foi obtido na medida em que houve trocas do organismo com o meio.Assimilar e acomodar so, portanto, aes transformadoras do prprio sujeito e elas so, tambm, correlativas, isto , na medida que acontecem no plano do objeto, acontecem simultaneamente no plano do sujeito.Como o conhecimento limitado (abstramos apenas algumas caractersticas do objeto, nunca a sua totalidade), novas dificuldades de assimilao da realidade iro acontecer, e ns, ento, modificaremos novamente os esquemas de ao e de conhecimento. Eles, ao modificarem-se, adquirem novas potencialidades, que sero fonte futura de atribuio de significados; ou seja, eles respondem, por acomodao, em novo patamar, e assim sucessivamente.Esta a razo pela qual o conhecimento tambm temporrio, progressivo, internamente construdo, social e culturalmente intermediado (Fosnot, 1998, p. 10).O construtivismo piagetiano acredita, ento, que o conhecimento s tem sentido enquanto uma teoria da ao, e no da representao. Ele produto de uma ao espontnea ou apenas desencadeada, mas nunca induzida, e acontece a partir de ae