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56 Terceiro ciclo de cinema na Paraíba: tradição e rupturas POR Pedro Nunes

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Terceiro ciclo de cinema na Paraíba: tradição e rupturas

POR Pedro Nunes

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“Fizemos cinema como respos-ta à realidade que a gente dispunha... Aprendemos a fazer cinema enquanto linguagem quando muitos cineastas pa-raibanos continuam a pensar que cine-ma é encenação de fazer filme. Fomos ladrões de cinema... Enfrentamos a ira dos cineastas locais. Fizemos um cine-ma muito leve.

O cinema é uma escrita muito sim-ples. Somos uma geração diferente. Cumulativamente somos um avanço a relação à geração passada. Não pode-mos encarar o mundo e a nossa produ-ção sob a ótica do que eles teorizaram. Temos que teorizar a nossa geração... Optamos por uma maneira libertária de pensar cinema... Os filmes que que-remos fazer são diferentes.”

Everaldo Vasconcelos

Pedro Nunes é cineasta e prof. Dr. do Programa de Pós-graduação em Comuni-cação (PPGC/UFPB) e do Departamento de Comunica-ção do CCTA/UFPB.

Tá na RuaHenrique Magalhães, 1981.

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No final dos anos 1970, ainda em plena vigência do regime militar brasileiro sob o comando do General Ernesto Geisel, a Paraíba vivenciou o surgimento de um terceiro ciclo de produção cinematográfica com características narrativas e modos de circulação distintos dos movimentos de cinema predecessores. Trata-se da reto-mada quantitativa e qualitativa em termos da produção de filmes que integram um surto audiovisual caracterizado como “Cinema independente” (NUNES,1988). Esse

surto de filmes revela marcas de ruptura simbólica quanto aos modos de produção, natureza da bitola, temática voltada para critica social e sexualidade e exibições dos filmes através de circuitos paralelos ou itinerantes.

A consolidação do então “novo” movimento de cinema na Paraíba brota no esteio referencial de uma forte tradição de cinema dos movimentos passados ancora-dos desde as experiências pioneiras de cinema na Paraíba, articulações cineclubistas, crítica cinematográfica e o ciclo de cinema documentário envolvendo a realização de filmes basilares para a cinematografia nacional, a exemplo de Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, e O País de São Saruê (1971), de Vladimir Carvalho, dentre outras iniciativas no campo do audiovisual. Ou seja, o terceiro ciclo de cinema na Paraíba é motivado e precedido historicamente por um conjunto de ações, fatos, aconteci-mentos e iniciativas que auxiliam direta e indiretamente nesse processo de retomada da produção cinematográfica na Paraíba com marcas expressas de artesanalidade

Vladimir Carvalhoem cena de

Cinema Paraibano – Vinte Anos

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da produção, originalidade, inventividade no campo das construções narrativas e transgressões temáticas.

Também é importante destacarmos que outros fatores interferiram de forma direta no processo de retomada da produção audiovisual em forma de movimento. Neste sentido, a Universidade Federal da Paraíba tem um papel de destaque com a criação do Curso de Comunicação Social (1977) e a implantação do Núcleo de Documentação Cinematográfica, que encampou um convênio de cooperação com o Cinema Di-reto. Outro aspecto importante é que em Campina Grande a então Universidade Regional do Nordeste com seu Curso de Comunicação Social (1974) também se destacou com várias iniciativas no campo do cinema centralizadas, principalmente por Machado Bittencourt, através da produtora Cinética Filmes.

A UFPB, amparada a essa forte tradição de cinema de base documental, in-corporou ao seu quadro institucional integrantes da segunda geração de cinema, como o diretor Linduarde Noronha, o fotógrafo Manuel Clemente, o crítico Pau-lo Melo, Jomard Muniz de Britto, Lindinalva Rubim, Pedro Santos, o montador Manfredo Caldas, Jurandir Moura e José Umbelino. Esses profissionais com atu-ações diversificadas no campo do cinema e do audiovisual, presentes no Curso de Comunicação Social, Coordenação de Extensão e Núcleo de Documentação Cinematográfica da Universidade Federal da Paraíba contribuíram, de forma decisiva, para a formação de uma terceira geração de cineastas na Paraíba que compreende o período de 1979 a 1983.

Podemos dizer que o terceiro ciclo de cinema na Paraíba apresentou uma feição extremamente heterogênea, integrando realizadores com destacada vivência pro-fissional que interagiram com cineastas principiantes. O traço distintivo do terceiro ciclo de cinema na Paraíba é então essa pluralidade de vozes que se agrupam em torno da reflexão sobre a natureza do cinema paraibano, processo de produção e circulação de filmes, tendo com predominância a utilização da bitola Super-8.

Nessa fase de retomada da produção audiovisual na Paraíba, o Brasil, através do poder político militar, ainda amargurava com as ações da censura imposta aos meios de comunicação, livros, filmes, peças teatrais, perseguições aos artistas e militan-tes, realização de torturas, repressão aos movimentos sociais e perseguição aos grupos sociais e indivíduos contrários ao regime militar e intensa repressão ao movimento es-tudantil. Concomitante aos atos de repressão e cerceamento da liberdade de expressão vigentes ao longo da década de 1970, Geisel sob crescente pressão política e protestos de segmentos da sociedade civil implementou o que denominou como um “processo de abertura política”, tendo como lema a “abertura lenta, gradual e segura”.

É então neste contexto sociopolítico que brota o terceiro ciclo de cinema paraibano com dinâmicas próprias de funcionamento, traços de ruptura temática no processo de codificação, bitola, temática voltada para crítica social e veiculação da mensagem através de circuitos não convencionais. São produções acabadas intencionalmente para ocupar “outro” circuito paralelo, adquirindo em seu conjunto uma dinâmica própria de funcionamento.

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Essas produções audiovisuais de caráter nitidamente regional situam-se num con-texto do surgimento de outras narrativas experimentais com linguagens provocati-vas: edições marginais, grafites, atividades teatrais, quadrinhos, pintura, imprensa alternativa... que quase sempre questionavam a moral estabelecida. No âmbito in-ternacional, eclodiram de maneira pluralista os movimentos denominados alternati-vos: ecológico, pacifista e antinuclear. É o aflorar explícito dos movimentos sociais e, consequentemente, o seu enfrentamento com o Estado.

O ciclo em questão apresenta marcas artesanais bem expressas, cujos filmes nascem basicamente no seio da Universidade, que contribuiu com empréstimos de equipamentos e liberação de filmes virgens, muito embora uma parcela mínima dos realizadores efetivasse trabalhos às suas expensas com total liberdade de criação na elaboração de propostas audiovisuais.

Cenários dos novos ciclos de cinema Super-8Torquato Neto, com seu espírito inventivo e dilacerador, conclamava o público leitor

de sua coluna Geléia Geral para debater/realizar produções em Super-8. Símbolo de uma geração que começa a desconfiar das posturas estéticas linearmente engajadas, o poeta da alegoria “suicida” vislumbrava na minibitola Super-8 a possibilidade de exercitação cria-tiva dizendo: “Qualquer filme é a projeção de um sonho reprimido. E eu quero que esse sonho seja liberado, seja livre sem nenhum limite. O cinema é feito por cineastas, filmakers e eu quero que ele seja feito por todo mundo. Super-8... oito crianças... Isso será cinema” (NETO, 1982, p. 26).

O fervor cultural dos anos 1960 (atuações do Centro Popular de Cultura – CPC/UNE, Movimento de Cultura Popular – MCP trabalhando as ideias de Paulo Freire, mo-vimentos sindicais e estudantis) era interrompido, eclodia numa outra esfera e com uma performance anárquica, o tropicalismo; que nas entrelinhas de sua irreverência, combatia a militância ortodoxa populista, lançando preocupações com a transformação individual. São os fenômenos culturais acompanhando o processo de mutação da vida social.

Com o recrudescimento político (Lei de Imprensa e Lei de Segurança Nacional) ser-vindo de suporte auxiliar para o “milagre econômico brasileiro” e a construção de um “Brasil Grande”, o Estado arquiteta seu ideário político de mutilação artística e passa a subvencionar a produção cultural de seu interesse.

Os produtores de cultura enfrentam uma situação paradoxal no sentido de aderir ou desvencilhar-se das exigências da “cultura oficial” com o selo forte e imperativo da censu-ra. A dinâmica da cultura brasileira é então afetada a partir de 1968, com um novo golpe de Estado. Nos anos 1960, conforme argumenta Heloisa Buarque de Holanda:

O cinema fora talvez a manifestação mais crítica e questionadora do papel do ar-tista dentro das relações de produção. Na década de setenta é o cinema que adere mais sintomaticamente às novas exigências da política cultural do Estado. Alguns dos princípios representantes do cinema novo lançam-se à produção cinematográfica em

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grande escala e, além da qualificação técnica justificam-se pela divulgação de conte-údos supostamente populares (HOLANDA, 1981, p. 92).

O Brasil regido pela doutrina de segurança nacional respira um clima tenso com a instauração dos Atos Institucionais, o cerco incisivo do Estado às manifestações políticas contrárias ao regime militar, atuações da censura sob a chancela oficial in-terferindo diretamente nas produções culturais. O impacto dessa nova ordem po-lítica gera situações de verdadeiro terror, mas ao mesmo tempo produz formas de resistência cujo delineamento se opera em contraponto à cultura oficial e ao próprio estado repressor da época.

Jornais como Pasquim, Opinião, Flor do Mal transgridem os sacramentos da grande imprensa evidenciando a não neutralidade dos fatos, a parcialidade, a questão da subjetividade e, sobretudo, com uma linguagem voltada para o questionamento de situações da realidade brasileira. Heloisa Buarque de Holanda observa o seguinte:

É exatamente num momento em que as alternativas fornecidas pela política cultural oficial são inúmeras que os setores jovens começarão a enfatizar a atuação em cir-cuitos alternativos ou marginais. No teatro aparecem os grupos ‘não empresariais’,... na música popular os grupos mambembes de rock, chorinho etc; no cinema surgem as pequenas produções, preferencialmente em super-8 e, em literatura a produção de livrinhos mimeografados... É importante notar que esses grupos passam a atuar di-retamente no modo de produção, ou melhor, na subversão das relações estabelecidas para a produção cultural (HOLANDA, 1981, p. 96).

É nesse movimentado cenário político-cultural de agudez política e crise econô-mica que surge a minibitola Super-8, favorecendo a eclosão de surtos regionais com a produção de filmes que provocam uma espécie de reorientação quanto ao fazer cinematográfico em diferentes regiões brasileiras.

Assim o Super-8 passa a cumprir um papel relevante na dinâmica cultural dos anos 1970 até meados de 1980, visto que as obras audiovisuais são frutos de peque-nas equipes de trabalho e se firmam enquanto produções de baixo orçamento. O Su-per-8 simplifica o processo de filmagem em relação às demais bitolas profissionais de cinema. Thomas Farkas assegura que: “A grande novidade consiste numa nova ideia de filmagem, colocando o cinema como atividade criativa nas mãos de qualquer pessoa... A filmagem passa a ser um simples ato de visão e observação sem passar por problemas técnicos” (FARKAS, 1972, p. 56-57).

Sabemos que o surgimento e aperfeiçoamento do sistema Super-8 enquanto bem de consumo foi resultado de estratégias econômicas com vistas a um maior fatura-mento e não simplesmente contribuir para o desenvolvimento de um novo meio de expressão artística. O Super-8 se caracterizou enquanto um instrumento que possi-bilitou que jovens realizadores pudessem fazer cinema de maneira mais desamarrada e com possibilidades de exercitação criativa.

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Enquanto um produto em oferta no mercado resultante do processo de miniatu-rização tecnológica, o Super-8 tornou-se acessível e menos dispendioso em relação à bitola semiprofissional 16 mm e à profissional 35 mm. Esse novo invento possibilitou uma reviravolta no modo de se produzir filmes apresentando-se enquanto um possí-vel instrumento de ação social. Como toda tendência nova, o Super-8 provocou re-ações polarizadas entre os jovens cineastas iniciantes adeptos da bitola e os cineastas com filmes em bitolas profissionais.

Vários movimentos foram deflagrados tendo por base o Super-8. É interessante observar que esses movimentos de produção audiovisual extrapolam o eixo Rio de Janeiro-São Paulo com o surgimento de produções descentralizadas em vários esta-dos brasileiros, além da formação de associações, cooperativas e cineclubes que se

empenharam de forma organizada no sentido de lutar pelo reconhecimento do cinema Super-8. As mostras de cinema e festivais nas várias regiões brasileiras adaptam-se às exigências próprias da nova bitola.

O preconceito alimentado por alguns críticos de cinema mais conservadores e cineastas profissionais formulados sem qualquer ponderação quanto às reais po-tencialidades do Super-8 foram frequentemente rebatidos como se pode perceber no artigo na revista Close Up:

Para desfastio de uns e desagrado de outros, lucro de alguns e até realização artís-tica dos demais, prossegue o movimento de super-8 mm, em experiências arrojadas, pirotécnicas, algumas originais arregimentando novos adeptos com suas mostras, ocupando espaços em jornais e formação espontânea de uma crítica especializada. O super-8 começa a ser reconhecido como cinema... ninguém pode recusar-se a ver na bitola um novo meio de expressão (CLOSE UP, 1977, p. 15).

Na Paraíba, em 1973 é que surgem as primeiras realizações em Super-8 por autores que de alguma forma já tinham passado pelo 16 mm ou mesmo pela crítica de cinema. Dentre os trabalhos da primeira fase Super-8 na Paraíba, des-tacam-se: A Última Chance (1973), de Paulo Mello, O Estranho Caso de Leila (1973), de Antonio Barreto Neto, Yoham e Lampiaço, de José Bezerra, A Greve e Absurdamente (1975/1976), de W.J. Solha, sendo o último em parceria com José Bezerra, e ain-

da A Guerra Secreta, de Antonio Barreto Neto e Sílvio Osias. São trabalhos pouco vei-culados e encontram-se em precárias condições de conservação, consequentemente, totalmente desconhecidos pelos realizadores contemporâneos.

Ainda, além de O Coqueiro (1977), de Alex Santos, os filmes mais conhecidos des-sa fase inicial de utilização do Super-8 na Paraíba são a trilogia de Archidy Pica-do: Desencontro, O Garoto e Elegia para um Homem só, que foram exibidos na Jornada Paraibana de Super-8 (1980).

Mas foi em Campina Grande onde se concentrou um permanente esforço para uma produção regular de cinema em 16 mm. A criação do curso de Comunicação Social em 1974 pela Universidade Regional do Nordeste possibilitou o aglutinamen-

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to de cineclubistas e profissionais da área, o que resultou em iniciativas concretas no campo da produção cinematográfica.

O conjunto dessas produções campinenses tem como líder o cineasta Machado Bitencourt, que chega a implantar uma empresa de produção, revelação e monta-gem - a Cinética Filmes Ltda. Machado é considerado um dos únicos profissionais sediados na Paraíba que conseguiu manter uma produção regular, pela preocupação que teve de instaurar uma infraestrutura pessoal, em que pode mediar o lado comer-cial de seu trabalho e, por outro lado, a feitura de projetos culturais não comerciais.

De 1975 a 1978 são concretizados cinco filmes 16 mm por Machado Bitencourt com temática diversificada, seguindo quase sempre um estilo linear: O Último Coronel (1975), Campina Grande, da Prensa do Algodão, da Prensa de Gutemberg (1975), Crônica de

Campina Grande (1976), o longa-metragem Maria Coragem (1977) e finalmente o curta Fiação primitiva do Nordeste (1978). Já em João Pessoa com o apoio da UFPB, Fernando Pereira elabora A Compadecida (1977) em 35 mm sem qualquer avanço do documen-tário no plano da linguagem cinematográfica.

No entanto, é só no ano de 1979 que de fato teremos a rearticulação do movimen-to de cinema seguido por um período de mais quatro anos com um fluxo contínuo de produções em Super-8 vinculadas aos movimentos de contestação.

O filme Gadanho (1979) sobre os catadores de lixo do Baixo Roger, dirigido por Pedro Nunes e João de Lima, é considerado o precursor desse novo surto de cinema com marcas poéticas diferenciais e transgressão quanto a sua abordagem temática.

GadanhoJoão de Lima e Pedro Nunes, 1979.

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Coincidentemente nesse mesmo ano ocorre a VIII Jornada Brasileira de Curta Me-tragem, transferida de Salvador para João Pessoa. É também nesse mesmo ano de 1979 que a Kodak declara oficialmente a falência do Super-8 projetando uma sobre-vida da bitola por em média cinco anos. Esse era o prenúncio para nova era do vídeo com um sistema de codificação distinto do cinema, assentado em base eletrônica.

Nessa fase de retomada da produção de cinema na Paraíba com a bitola Super-8, as experiências em 16 mm declinaram de forma sintomática, restringindo-se ao gru-po de Campina Grande e aos cineastas paraibanos residentes fora do estado.

Essa força do Super-8 em forma de movimento também presente em outros estados brasileiros pode ser identificada com a realização do longa-metragem em Super-8 Deu Prá Ti Anos 70, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, que recebeu o prêmio de melhor filme no Festival de Gramado em 1981. A obra provocou um im-pacto junto ao público e crítica especializada pela criatividade dada no tratamento da linguagem e do tema, acerca de um grupo de adolescentes que desperta para curtir a vida num período de repressão militar. Deu Prá Ti Anos 70 concorreu com vários outros filmes em 35 mm.

Na Paraíba, com a irrupção do terceiro ciclo de cinema quebra-se a visão de cinema grandiloquente com a aparição de táticas novas de intervenção cultural. A noção de cinema é radicalizada a partir do fazer cinematográfico associado ao processo simplificado de recursos técnicos. É a partir da “abertura” política que o movimento de cinema cresce com uma preocupação mais comprometida com os movimentos sociais que despontam da sua situação de clandestinidade. Nesse perío-do um total de 55 filmes são produzidos por autores, com apoio da UFPB, Cinética Filmes e outros apoiadores. Esses filmes abarcam temas ligados ao cotidiano dos setores oprimidos e promovem o questionamento do próprio momento político de crise econômica que atravessava o país.

Há visivelmente um aumento quantitativo e qualitativo da produção cinemato-gráfica com temáticas regionais que reinterpretam e reencenam as dinâmicas de realidades locais conflitantes.

Retrato verbal dinâmico do terceiro ciclo de cinema na Paraíba

O terceiro surto de cinema na Paraíba trouxe, de forma desordenada, o desejo de mudanças, a renovação no quadro cinematográfico, a necessidade de afirmação da pro-dução e a preocupação latente em criar narrativas audiovisuais enfocando os diversos aspectos da vida social. Percebe-se por parte dos jovens envolvidos no terceiro ciclo de cinema um aprendizado gradativo quanto ao manejo da linguagem e à crescente in-quietação com a ruptura temática e narrativa nos filmes.

Há também, conforme o andamento dessas realizações, uma repulsa às produções po-lidamente engajadas. A tematização dos filmes volta-se inicialmente para abordagem dos

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conflitos e contradições sociais aproximando nessa primeira fase do terceiro ciclo a uma tradição mais documental de cinema. Na sequência temos a existência de um conjunto de filmes com temáticas relacionadas à sexualidade que tendem à experimentação da ficção.

A quase totalidade desta produção cinematográfica do terceiro ciclo foi concluída por jovens cineastas estreantes que optaram por efetuar leituras bem singulares da realidade paraibana. Isso demonstrou efetivamente a renovação no quadro cinematográfico com a entrada em cena de novos protagonistas no processo de produção cinematográfica.

Conforme afirmamos, os grupos em atuação do terceiro ciclo do cinema não vi-venciaram uma luta política formal de esquerda. São filhos bastardos do regime mi-litar. Mas isto não quer dizer que não houve uma preocupação dos realizadores quanto ao resgate de problemas sociais e problemas quanto à censura de filmes e censura imposta às Mostras de Cinema.

Há sem dúvida, nos documentários/registros da fase inicial desse ciclo, um traço forte de crítica ao regime militar. Identificamos um engajamento mais libertário. Os movimentos sociais, greves, passeatas, acampamentos de posseiros ou mesmo as dispa-ridades urbanas, são elementos temáticos frequentemente abordados no conjunto dessa produção cinematográfica.

A intenção expressa é registrar a dinâmica de aspectos da realidade paraibana, vin-culando estas representações de práticas culturais à própria dinâmica da sociedade. Num segundo momento a orientação temática dos filmes volta-se para o tratamento da questão da sexualidade, homossexualidade, amor, solidão e o questionamento visceral das formas de poder que castram a liberdade do indivíduo na sociedade contempo-rânea. Essa característica de abordagem temática enfatiza as marcas de transgressão presentes nesse novo ciclo de cinema.

Além do caráter artesanal desta produção, constatou-se uma permanente preocu-pação entre os próprios cineastas com o intento de ativar a produção local. Se houve por um lado a necessidade patente de afirmação da produção, por outro, o surto em si é uma resposta a uma crise de produções locais.

Mesmo com a iniciativa dos integrantes do novo surto em imprimir impulso voltado para “o fazer” cinematográfico em si, o grosso dessa produção traz marcas profundas de precariedades financeiras. Apesar do relativo barateamento do material fílmico em Su-per-8, e da impossibilidade de se experimentar em 16 mm, há uma grande dificuldade de produção. Essa dificuldade gerava quase sempre impasses na finalização dos filmes da forma como foram originalmente concebidos, tendo como resultante verdadeiras improvisações. Reclamava-se constantemente o apoio da Universidade e dos órgãos es-tatais para que não houvesse um cessar no ritmo continuado da produção de filmes.

As condições de produção dos filmes estão dispostas da seguinte forma: filmes de produção do autor; filmes produzidos com apoio Institucional da Universi-dade (UFPB) – Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC/UFPB, Pro-grama Bolsa Arte MEC/UFPB, Núcleo de Pesquisa Popular – Nuppo/UFPB, Cursos de Comunicação Social e Educação Artística/UFPB e Campus II/UFPB/CG e URNe – Universidade Regional do Nordeste, CG (Curso de Comunicação Social URNe/

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CG), filmes com produção da Cinética Filmes CG e em menor grau filmes produzi-dos com apoio da Igreja através do SEDOP (Serviço de Documentação Popular).

Quadro Demonstrativo da Produção Cinematográfica

O quadro acima mostra as condições de produção encontradas ou criadas pelos realizadores de cinema integrantes do terceiro ciclo de cinema na Paraíba. Desse total, 12 filmes foram finalizados com recursos financeiros próprios ou com incentivo material de filmes e equipamentos, sem que houvesse uma interferência no processo de criação.

Jomard Muniz de Britto descreve as suas condições de produção destacando a facili-dade de se fazer Super-8 em termos econômicos:

É claro que muita gente tinha vontade de fazer 16 mm, 35 mm ou 3ª dimensão, mas não se tinha condições econômicas. Eu pude fazer vários filmes com recursos próprios com meu salário de professor, sem ajuda de Instituição. Consegui tirar do meu salário para produzir filmes, quer dizer, entrava na produção atores que nunca ganharam dinheiro comigo (BRITTO, 1985)1.

Poucos realizadores autofinanciam sua produção: Jomard Muniz de Britto com Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Paraíba Masculina Feminina Neutra (1982), Lauro Nascimento com Acalanto Bestiale (1981), Miserere Nobis (1982) e Ter-ceira Estação de uma via Dolorosa (1983), Alberto Júnior com Contrastes da Vida (1980), Pedro Nunes com Closes (1982) e Henrique Magalhães com Era Vermelho o seu Ba-tom, todos em Super-8; nesses filmes há claramente a preocupação de cada autor em trabalhar o cinema enquanto instrumento criativo. No caso de Jomard Muniz e Lauro Nascimento percebe-se uma preocupação no tratamento da imagem e uma maior fluência narrativa em termos de arranjos formais com a finalidade de se obter maior atenção do espectador.

ANO AUTOR CINÉTICA OUTROSUFPB

NUDOC AUTOR/BOLSA ARTE CAMPUS II

1979 1

1

3

3

4

12

1

3

4

1

1

2

2

2

2

2

8

1

1

1

2

5

8

8

8

24

1980

1981

1982

1983

TOTAL

PRODUÇÃO

1Entrevista com

Jomard Muniz de Britto concedida ao autor. Recife,

06/10/85.

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Observando o quadro constatamos que o maior quantitativo desses filmes foi pro-duzido com o apoio da Universidade Federal da Paraíba interessada em ampliar sua participação na comunidade, sobretudo no âmbito da extensão cultural, principal-mente através do Programa Bolsa Arte, Campus II e do Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC com 24 filmes finalizados.

Antes da implantação do NUDOC na UFPB em 1980, as primeiras realizações des-te terceiro ciclo de cinema foram montadas de forma rudimentar, sem auxílio de editor/moviola. Esses filmes são basicamente documentários: Gadanho (1979), de João de Lima e Pedro Nunes, Imagens de Declínio ou Beba Cola e Babe Cola (1980), de Torquato Lima e Bertrand Lira, Contrapontos (1980), de Pedro Nunes e Contrastes da Vida (1980), de Alberto Júnior. As propostas, através de seus realizadores, receberam o incentivo do programa Bolsa Arte da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da UFPB.

Com o convênio assinado entre a Associação Varan-Paris e a UFPB, este pa-norama de dificuldades alteraria de forma significativa favorecendo o incremento da produção cinematográfica local. A implantação da infraestrutura completa em Super-8 (câmeras, tripés, iluminação, gravador, gerador, editores, telas e projeto-res) atenuou parte das dificuldades habitualmente encontradas pelos realizadores. A Universidade através do NUDOC limitou-se a financiar apenas os exercícios/filmes dos integrantes matriculados no curso de Cinema Direto e apoiar projetos que dependiam do uso de equipamentos de gravação ou montagem. Em termos de produção do NUDOC, a maioria dessas realizações apresenta deficiências técni-cas de filmagem, montagem e som. Em seu conjunto são exercícios fílmicos inaca-bados, embora haja experiências que conseguem transpor o mero registro de ima-gens e falas. O rigor dessa produção se concentra muito mais na escolha temática sempre angulando um personagem real.

O Núcleo de Documentação Cinematográfica e o Cinema Direto

Tanto a criação de um núcleo de produção na Universidade (NUDOC), como a ins-talação do Atelier de Cinema no NUDOC, que direcionaria toda sua produção para o Super-8, ambas as iniciativas nascem nesse contexto de rearticulação de movimento de cinema na Paraíba ocorrido a partir da VIII Jornada de Cinema. Essas duas propostas receberam o aval dos integrantes da “geração sessenta” que projetavam criar as bases para uma estrutura profissional de cinema. Vale destacar que a presença da geração do terceiro ciclo do cinema nos debates e rumos do cinema paraibano só viria acontecer no início dos anos 1980.

O Núcleo de Documentação Cinematográfica desde a sua criação na gestão do Reitor da UFPB Lynaldo Cavalcanti, direcionou a formação de recursos humanos a partir do curso de Cinema Direto com filmes produzidos em Super-8. Se por um lado a iniciativa abria as portas para iniciantes incursionarem no aprendizado de técnicas

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introdutórias ao cinema, por outro entrava em choque com as diretrizes traçadas por Manfredo Caldas, Vladimir Carvalho, Jurandy Moura, Linduarte Noronha, Ipojuca Pontes, entre outros. Segundo parecer de Manfredo Caldas:

Uma coisa que eu também achei que foi uma distorção nesse movimento foi a entrada do Atelier de Cinema Direto. Fui contra porque ele atravessou por oportunismo de pessoas daqui, que deram mais ênfase a esse convênio em nível de experimentação do Super-8, que tudo bem poder fazer isso, mas teria que ser uma coisa paralela. Isso foi muito mal conduzido, não podia em detrimento de uma estrutura profissional que estava se criando, você dar ênfase a uma coisa experimental de mistificação da linguagem que é toda a teoria do Cinema Direto. Reservo-me no direito de achar que foi uma grande bobagem (CALDAS, 1987).

O projeto inicial de cooperação entre o Centro de Formação e Pesquisa em Ci-nema Direto - Associação Varan-Paris e a Universidade Federal da Paraíba, além da implantação de um sistema completo para produção em Super-8, previa a doação pelo governo francês de um moviola em 16 mm, um gravador profissional e um laboratório de ampliação de Super-8 para o 16 mm, cláusula essa não cumprida. A

Miserere Nobis

Lauro Nascimento, 1982.

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contrapartida dessa infraestrutura profissional foi uma condição apresentada para a efetivação do projeto, feita diretamente ao cineasta francês durante a VIII Jornada, por vários cineastas paraibanos:

Nós fizemos pessoalmente uma série de exigências ao Jean Rouch quando ele veio com uma proposta que tinha sido recusada em diversos estados do país. Mas era desprestígio pra ele voltar sem ter feito um convênio com qualquer Universidade brasileira. Então a que estava pintando ser mais fácil era a daqui. [...] Teria que vir um equipamento em 16 mm, não seria só Super-8, pra somar com o que a gente tinha conseguido, e isso ele concordou e não cumpriu (CALDAS, 1987).

Dos vários estágios realizados na França por alunos e professores indicados pelo NUDOC, apenas foi ministrado um curso em 16 mm para três alunos.

O NUDOC passa a atuar então com uma infraestrutura de espaço físico e ma-terial de consumo da UFPB e com material doado para implantação do Atelier de Cinema na Paraíba. Funciona como ponto central de discussão e encontro dessa nova geração que despontou a partir da realização dos estágios nesse Núcleo. No período funcionou concedendo empréstimo de equipamentos e de filmes para a comunidade, capacitando pessoal técnico além de produzir filmes na linha do Ci-nema Direto, registrando as atividades de pesquisa e extensão mais importantes da Universidade.

Além de Pedro Santos como coordenador, atuou também ao seu lado o cineas-ta Manfredo Caldas, que no período de sua permanência em João Pessoa passou a incentivar os novos realizadores no sentido de lutar não só por uma atuação profissional no campo de cinema, mas despertando a necessidade de organização política em torno da ABD/PB (Associação Brasileira de Documentaristas) criada em 1982 durante a realização do Festival de Arte na cidade de Areia-PB.

Documentação de aspectos da realidadeComo já afirmamos com o início da abertura política no país, novos ventos indicam

um reaquecimento da produção cinematográfica na Paraíba. O ressurgimento desta produção toma corpo de forma espontânea a partir de 1979 ainda sob a influência da tradição documental predominante nos anos 1960 e 1970. Assim as primeiras realiza-ções do novo ciclo são expressamente de linhagem documental trazendo à tona temá-ticas sociais que evidenciam as complexidades da realidade. Os problemas urbanos, o desemprego, os movimentos sociais e o homem frente aos diversos níveis de exploração são pontos preferidos para enfoque por vários cineastas.

O momento político torna-se favorável para elaboração de produtos culturais abordando a problemática social, sobretudo pela mobilização efervescente dos seto-res populares da sociedade. A retomada ou mesmo o ressurgimento da produção de cinema na Paraíba com características de combate surge num contexto de crescen-

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tes mobilizações, retorno do movimento estudantil, articulação dos movimentos de liberação e custo de vida.

Neste primeiro momento da retomada da produção fílmica temos um bloco de fil-mes que captam os conflitos presentes na grande cidade. São filmes realizados totalmen-te em espaço aberto tendo o próprio ambiente natural como cenário. Em cada um dos filmes, o realizador assume o papel de repórter que não aparece, investigando os fatos eleitos para enfoque.

Imagens do Declínio ou Beba Coca e Babe Cola (1981), de Bertrand Lira e Torquato Joel, é uma mistura de documentário e ficção que mostra a dura realidade das favelas e a presença das multinacionais no Brasil. É uma versão realista adicionada de alguns elementos de deboche... Já Gadanho (1979), de João de Lima e Pedro Nunes, é o pri-meiro filme deste novo ciclo, baixo orçamento e com ampla repercussão no estado. Segundo Henrique Magalhães:

Um dado importante foi a realização de Gadanho, pois a partir dele se rompeu com estagnação do cinema na Paraíba. A gente só tinha conhecimento do que foi produzi-do durante o movimento do cinema novo. Havia uma produção em Super-8, mas não era sistemática e alcançava um número muito limitado de pessoas. A partir de Gada-nho houve uma retomada do cinema na Paraíba porque se alcançou um público maior e muita gente se interessou em fazer Super-8 (MAGALHÃES, 1986, p. 8).2

O filme tem como cenário o lixão de João Pessoa localizando no Baixo Roger e presença dos catadores, seres humanos que disputam com os urubus a primazia do

Ciclo do CaranguejoVânia Perazzo,

1982.

2MAGALHÃES,

Henrique. Entrevista a

Bertrand Lira – Cadernos do

CCHLA , n. 8, p. 8.

71

lixo. O documentário consegue despertar um amplo interesse nas escolas públicas da rede estadual e nas escolas privadas pela força das imagens com pessoas que se perdem na fumaça do lixo.

Procurando ainda desnudar a dinâmica da engrenagem urbana, Con-tra-pontos (1981) e Registro, de Pedro Nunes, enfatizam as disparidades do es-paço urbano em João Pessoa e a primeira greve estudantil a partir de 1968 ocorrida na Paraíba, respectivamente.

Mas é o Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC que desponta com um maior número de realizações acabadas após a finalização de três estágios do curso de Cinema Direto.

As obras produzidas pelo NUDOC privilegiam também o univer-so cotidiano com a captação do som direto. Os filmes são verdadeiros registros brutos da realidade.

O Mestre de Obras (1981), de Newton Araújo Jr., retrata a vida e as dificuldades de um trabalhador da construção civil com sua residência ainda inacabada. Um dado expressivo no trabalho é uma música composta por Chico César especial-mente para o filme. Enfocando o homem e sua situação de miséria e criativida-de, Vânia Perazzo filma É Romão pra qui é Romão pra colá em 1981. Romão é um músico artesão que confecciona seu próprio instrumento de trabalho (berimbau) exibindo suas criações musicais em feiras livres do interior paraibano.

A reflexão em torno das condições de vida do ser humano é um traço muito marcante nos demais filmes produzidos pelo NUDOC. As Cegas (1982), de Maria Antonia, Bernadete (1983), de Maria Graça Lira e O Menor (1983), de João Galvíncio Jr., são filmes de crítica social explícita. Em todos os trabalhos as precariedades téc-nicas são bem visíveis. O primeiro destaca a convivência de três deficientes visuais pedintes na cidade de Campina Grande. Já Bernadete discorre acerca da vida de uma lavadeira, seus problemas e o sonho de um dia poder trabalhar em São Paulo. Em O Menor, o autor confronta depoimentos de representantes de órgãos oficiais com a fala de menores.

Na linhagem de sempre orientar suas produções para registro da realidade regio-nal, o NUDOC enfatiza o tema movimentos sociais urbanos nos seguintes filmes: A Greve (1982) direção coletiva, sobre o movimento paredista de professores, alunos e funcionários da UFPB, Quando um Bairro não se Cala (1983), de Marcus Vilar, sobre o trabalho do movimento de bairro desenvolvido pelo grupo Fala Jaguaribe que tem como meta trabalhar a educação através da arte junto à população.

Ainda no âmbito do NUDOC, Elisa Cabral elaborou vários filmes num pro-jeto que autodenominou “Cinema e Sociologia”. Ciclo do Caranguejo (1982) retrata a infraestrutura econômica da pesca do caranguejo, Visões do Man-gue (1982) a tentativa é abordar a visão de mundo e os mitos dos pescadores e Sobre a evolução das Sociedades (1983).

Mas dessa produção do NUDOC vale destacar do conjunto, duas películas reali-zadas em 1981 no primeiro estágio de Cinema Direto: Perequeté (1981), de Bertrand

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Lira, e Sagrada Família (1981), de Everaldo Vasconcelos. Em Perequeté, o autor docu-menta a vida, as fantasias e as dificuldades do artista paraibano Francisco Marto. Enquanto discorre acerca de seu esforço no campo do teatro, cinema e dança e do preconceito enfrentado pelos artistas, é mostrado cenas de diversos momentos de seu trabalho. Em a Sagrada Família a câmera apresenta-se constantemente inquieta e

aos poucos viola o espaço sagrado da família revelando seus conflitos neuróticos e o choque de gerações. Os dois filmes apresentam preocupações de linguagem quanto à fotografia, procedimentos de montagem, além de transgredirem a própria linha do Cinema Direto, notadamente em Sagrada Família. Dos filmes produzidos pelo NU-DOC nos três estágios do Curso de Cinema Direto, pode-se considerar como pro-postas mais amadurecidas com traços diferenciais em relação aos demais trabalhos ou exercícios fílmicos.

Outros filmes também conseguem transgredir a linha mestra do Cinema Direto pela abordagem temática se encaixando também dentro deste espírito de ruptura dos trabalhos anteriores. São eles: Música sem Preconceito (1983), de Alberto Júnior, que numa fusão de documentário e ficção com depoimentos de músicos e ensaios de gru-pos mostra a importância do rock para a juventude e a sua penetração na sociedade, Pedro Osmar em Carne e Osso (1982), de Otávio Cássio, enfoca a experiência de pesquisa musical criativa desenvolvida pelo músico Pedro Osmar juntamente com o grupo

Tá na RuaHenrique

Magalhães, 1981.

73

que faz parte do “Jaguaribe Carne”. Caminhando também na contramão e fugindo do enfoque sociológico, Henrique Magalhães realiza Canto do povo de um Lugar (1981). O filme é um cartão postal de João Pessoa com a música de Caetano Veloso e Tá na Rua (1981) um documentário que registra a passagem do grupo teatral Tá na rua em João Pessoa, liderado por Amin Hadad. A interação atores e espectadores é ponti-lhada tornando clara a quebra com o teatro tradicional. Finalmente, Sonho Destrela (1983) foge à concepção de abordagem sócioantropológica adotada pelo Cinema Direto. Segundo Bertrand Lira (1986, p. 11): “Sonho Destrela é a vida de um artista de interior sem perspectiva de profissionalização e nem acesso aos produtores de discos. A frustração de não ser famosa a deixa profundamente descrente. É o filme final do autor de peças teatrais Eliézer Rolim”.

Com esses trabalhos os respectivos autores mostraram que seria pos-sível utilizar os recursos do Cinema Direito e driblar as suas convenções muito mais direcionadas para a captação crua e com pouca interferência de aspectos da realidade social.

Há também um grupo de filmes feitos dentro e fora do NUDOC que se afastam da temática urbana e seguem para um levantamento de questões pertinentes à zona rural. Nos estágios do NUDOC, dois filmes seguem esta orientação: Emergência/Seca (1982), de Torquato Joel, relata a vida de um grupo de camponeses que vivem nas proximidades do açude de Orós-CE em pleno período de seca e Manipueira (1982), de Maria Aparecida, que mostra o processo artesanal de colheita da mandioca e a feitura da farinha de mandioca. O que eu conto do sertão é Isso (1979), 16 mm de José Umbelino e Romero Azevedo, realizado na cidade de Campina Grande, também se desloca da zona urbana para o campo e revela a miséria do sertão nordestino. Anos mais tarde, José Umbelino filmaria o documentário longa-metragem em 16 mm Lutas de Vida e Morte (1982) com a colaboração da Arquidiocese da Paraíba, onde discute questões referentes às Ligas Camponesas na Paraíba. Além desses trabalhos que dão preferência em sua abordagem à questão rural, duas outras películas produzidas fora do NUDOC, A luta do Povo de Capim de Cheiro (1982), direção coletiva com a participação de Pedro Nunes, Sedi Marques e do grupo de “Atuação no meio Rural do Centro de Educação – PRONASEC-UFPB” e Camucim Cinco Anos de Luta (1983), de José Barbosa, versam sobre os conflitos de terra na região de Capim de Cheiro e Camucin-PB.

Neste novo ciclo verifica-se que as produções em 16 mm são numericamente bem reduzidas. Dois trabalhos nesta bitola vêm lançar elementos de discussão em torno do fazer cinematográfico na Paraíba, da necessidade de uma infraestrutura básica para incremento da produção local e lançam também um painel da própria História de luta do cinema feito na Paraíba: Cinema Paraibano – Vinte Anos (1983), de Manfredo Caldas e fotografia de Valter Carvalho, e Cinema Inacabado (1981), de Machado Bittencourt e Alex Santos. Cinema Paraibano – Vinte Anos resgata em suas imagens e depoimentos a discussão do ciclo paraibano de filmes dos anos 1960 iniciado por Aruanda. Segundo Alex Viany:

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Esse documentário “Cinema Paraibano – Vinte Anos”, eu não sei se há ou se já foi feito um filme semelhante porque é um documentário sobre um ciclo, como parte dele. Na verdade, é uma coisa que procura falar de um ciclo, não somente com depoimento, mas com reflexão de linguagem, de propostas e está tudo muito inteiro. [...] Esse filme é vivo, é reprodutivo, está em reprodução. [...] Não é uma coisa de jeito nenhum reflexiva sobre um passado acabado, é sobre uma coisa viva e que vai ajudar não só na discussão, mas no trabalho mesmo (VIANNY, 1983).3

O outro filme que se enquadra nesta mesma abordagem é Cinema Inacabado, que procura questionar o porquê de tantos projetos fílmicos inconclusos na Paraíba. Na medida em que os depoimentos ocorrem são exibidos trechos dos filmes inacabados como: Libertação, de Carlos Aranha, Uma Aventura Capitalista, de Antonio Barreto Neto, Arribação, de Alex Santos, O Adro, de Pedro Santos e fotos de Contraponto sem Música, de Paulo Mello e Virginius da Gama e Mello e fotografia de Machado Bittencourt. Ainda no filme, temos a presença marcante do cineasta e fotógrafo João Córdula que depõe sobre a trajetória do Cinema Educativo na Paraíba, além de depoimentos do crítico Wills Leal e cineasta Linduarte Noronha que falam do ciclo espiritual do cinema, ou seja, dos filmes e roteiros que jamais foram concretizados. Para Machado Bittencourt, um dos diretores do filme, a obra:

Mostra o esforço dos inacabados enquanto explica porque esses filmes não foram concluídos na Paraíba. Além dessa abordagem, o filme abre espaço para depoimentos de Pedro Santos e Wills, esse último depondo sobre outro ciclo de cinema na Paraíba – o ciclo do cinema espiritual (CINÉTICA FILMES, s/d.).4

Machado Bittencourt junto a sua atividade comercial, a produtora Cinética Filmes em Campina Grande, elabora outros trabalhos de cunho cultural em 16 mm. Por sinal, é o único cineasta até então que consegue desenvolver uma produção regular nessa bitola. Em Teares de São Bento (1979), o autor destaca o fabrico de redes na pequena cidade de São Bento na Paraíba, sendo esta a principal atividade econômica local. Em 1980 finaliza dois curtas com alunos do curso de Comunicação Social da Universidade Regional do Nordeste – URNe: Com a palavra, a Mulher, o documentário retrata o papel da mulher, da liberdade, do casamento, da existência do romantismo; e Festas Juninas, que é o trabalho que mostra os costumes nordestinos nas festas de S. João e S. Pedro em Campina Grande. A Seca no Cariri (1983) e Miguel Guilherme (1983) são trabalhos seguintes do autor. O primeiro mostra o flagelo da seca no Nordeste, particularmente na região do Cariri, este está enquadrado no bloco de filmes que fogem da temática urbana; o segundo relata a vida do artista plástico Guilherme dos Santos, reconhecido por suas esculturas e pinturas nos tetos das igrejas.

Os filmes produzidos por Machado Bittencourt são pouco conhecidos pelo público. O projeto de divulgação maior foi dedicado a Cinema Inacabado e O Caso Carlota (1981), longa-metragem em ficção a partir de dados reais versando a questão da sexualidade.

3Depoimento

de Alex Vianny a Manfredo

Caldas no Rio de Janeiro. O filme

recebeu o prêmio Glauber Rocha e

prêmio de melhor documentário

na XII Jornada Brasileira de Curta

Metragem (1983 em Salvador-BA).

4Texto distribuído

pela Cinética Filmes de Campina

Grande – s/d.

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Experimentação da Ficção: A explosão temática da sexualidade

Após a etapa de filmes que se orientam para o estilo documental, pode-se destacar no elenco das realizações desse novo ciclo um bloco significativo de filmes que tratam a questão da sexualidade com inclinações para a ficção. A explicação para esta escolha está no fato de que sexualidade sempre foi um tema tabu, estando bem presente nas relações de dominação da sociedade patriarcal. A própria esquerda de um modo geral sempre con-siderou a sexualidade como um assunto de pauta não prioritário em suas discussões nos anos 1970. Os grupos homossexuais e, sobretudo os grupos feministas da época, procuram avançar na compreensão do tema, valorizando o prazer, lutando contra a discriminação, combatendo a visão de sexualidade unicamente para fins de reprodução.

Em João Pessoa, a conjuntura política do país contribuiu de certa forma para o aflora-mento de produções que investigaram a sexualidade. Para Henrique Magalhães:

A importância dessa fase é a contemporaneidade com o que o cinema respondeu à efervescência das mudanças políticas, sociais e existenciais do início dos anos 80. O cinema na mão de cineastas envolvidos diretamente com esta nova realidade, tor-nou-se um objeto de reflexão, militância e provocação, conseguindo com eficiência suas respostas, através do grande fluxo do público às exibições e gerando discussões em torno das ideias transmitidas (MAGALHÃES, 1987, p. 2).

Neste período, final dos anos 1960 e início dos anos 1980, surgem os grupos: Maria Mulher, cuja linha de atuação se orientou no sentido e refletir a opressão da mulher e grupo homossexual; Nós Também, que desde a sua criação em 1980 se emprenhou em direcionar sua força contra qualquer tipo de discriminação expres-sando-se principalmente pela livre opção da sexualidade através da arte. Isto é o que também confirma Bertrand Lira:

É também nesse contexto de abertura que surgem grupos de militância sexual, racial e partidária, entre outros, que antes, devido a conjuntura política, permaneciam sem se manifestarem. Em João Pessoa, é criado o ‘Nós Também’ um grupo de militantes homossexuais, que tinha como proposta original, a de militar através da arte (envelo-pes que continham fotos, poesia, arte-xerox etc.), pichando muros, fixando outdoors e até com a produção e realização de um filme: ‘Baltazar da Lomba’ ... Fruto de longas discussões entre os componentes do grupo, responsável pela sua produção, direção e realização, resultando num filme bem acabado (LIRA, 1986, p. 8-9).

Do conjunto de 13 filmes que manejam acerca da questão da sexualidade, o en-foque escolhido em 10 deles é a abordagem da homossexualidade5. São filmes que apresentam informações reveladoras sobre o assunto, fazendo uma leitura crítica dos

5Filmes sobre sexualidade: Esperando João, de Jomard Muniz de Britto, Acalanto Bestiale, Miserere Nobis e Terceira Estação de uma Via Dolorosa, de Lauro Nascimento, Closes, de Pedro Nunes, Cidade dos Homens e Paraíba Masculina Feminina Neutra, de J. M. de Britto, Baltazar da Lomba, do Grupo Nós Também, Era Vermelho seu Batom, de Henrique Magalhães, O caso Carlota, de Machado Bittencourt, Na Cama, de Romero Azevedo, Flagrante Delito, de Rômulo Azevedo, Perequeté, de Bertrand Lira.

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padrões morais e sociedade e suas crescentes formas de punição e controle. Quando confrontados aos filmes de cunho documental da primeira fase desse mesmo ciclo, esses filmes são considerados ousados e até pioneiros pela coragem dos realizadores de trazer à tona o debate sobre a prática sexual entre indivíduos do mesmo sexo, sem as caricaturas ou deboches presentes em grande parte da produção cultural volta-da para o mesmo tema. Além da inserção de elementos de experimentação; maior cuidado com a fotografia e montagem, a característica marcante nestas realizações é examinar os condicionamentos autoritários e as regras de comportamento ditadas pela escola, família, igreja, trabalho... refutando os valores retrógados que imperam na sociedade com relação à homossexualidade. Neste sentido esses filmes são extre-mamente ousados e transgressores principalmente pela forma como apresentam ou debatem os espectros da sexualidade humana.

Um dado novo observado nessa retomada da produção cinematográfica na Pa-raíba é, também, a experimentação da ficção. São filmes produzidos em sua maioria com recursos financeiros do próprio autor obtendo maior repercussão em relação aos trabalhos anteriores direcionados de forma mais acadêmica para o registro social da realidade paraibana.

Mesmo tendo em conta que parte dos realizadores tenha sofrido restrições de órgãos oficiais inviabilizando apoios de produção, negando espaços públicos para exibição de filmes ou isentando-se quanto ao apoio aos realizadores quanto às per-seguições da Polícia Federal, esses filmes obtêm uma grande aceitação do público6. A partir deles, o Cinema Independente na Paraíba amadurece enquanto proposta, passa a discutir a possibilidade de implantação de uma infraestrutura profissional. Em decorrência desse amadurecimento há, como já dissemos, uma atenção explícita dos realizadores quanto à escolha temática, além da inserção de elementos novos de linguagem, sem cair no didatismo linear dos filmes da primeira fase.

O enfoque temático da sexualidade inicia-se com dois filmes de ficção bem dis-tintos: Esperando João (1981), de Jomard Muniz de Britto e O Caso Carlota (1981), de Machado Bittencourt. Os dois, em nada se afinam; o primeiro, em Super-8 ironiza agilmente valores conservadores incrustados na província antecipando o filme de Tizuka Yamasaki – Paraíba Mulher Macho (1983) com grande sucesso no circuito co-mercial. No filme, Jomard Muniz de Britto utiliza três atores e três atrizes que vivem o papel de Anayde Beiriz, amante de João Dantas e responsável pelo assassinato de João Pessoa, governador da Paraíba na época. Anayde, no filme aparece na eterna espera de João Dantas e se transforma a cada vez que um mágico retira de sua car-tola revelações sobre a cidade.

Para Lauro Nascimento:

O mágico que habita a cidade é um VAMPIRO TRITURADOR que analisa e manipula dados escondidos entre-grades, entre-muralhas, entre-abertas verdades nas janelas mentiro-sas. [...] Trata-se muito mais de um acender de luzes da cidade em pleno dia para que se leia uma estória dentro da história que sequer igual e repetitiva (NASCIMENTO, 1981, p. 2).

6Henrique

Magalhães em entrevista

concedida ao autor observa que alguns filmes de produção do autor receberam

apoio do NUDOC quanto à utilização de equipamentos:

“Inclusive Baltazar da Lomba que

foi proibido pela Polícia Federal, mas

passou no NUPPO (Núcleo de Pesquisa

Popular) sob a responsabilidade

da UFPB”. Situando apenas um exemplo

também como contrapartida, os filmes de Jomard

Muniz de Britto não receberam o aval da UFPB, o realizador foi

diretamente pressionado pelos

agentes da Censura Federal tendo que

submetê-los ao crivo dos censores

locais para exibição pública. De igual

modo, Pedro Nunes com o filme Closes

foi obrigado a submeter o referido

filme à censura com a presença de

agentes policiais federais com armas

em punho.

77

O segundo filme, O Caso Carlota, possui uma narrativa extremamente conven-cional. Baseado em episódio ocorrido na cidade de Areia-PB em meados do século XIX. Carlota torna-se amante de Quincas Leal, político oposicionista do partido liberal, chocando a sociedade local por sua desenvoltura amorosa. Ofendida publi-camente por um integrante do partido conservador, Carlota planeja seu assassinato como vingança. Levada para prisão em Fernando de Noronha após cometer o as-sassinato, consegue indulto pelo envolvimento amoroso com o diretor do presídio. Recheado de cenas eróticas, o filme não consegue avançar para o aprofundamento do tema que se propõe investigar em forma de ficção.

Ainda em 1981, Perequeté, de Bertrand Lira, retrata o preconceito que sofre o ar-tista na província paraibana. Embora sendo um documentário, incluso na pri-meira fase, o autor mescla sua obra com elementos de ficção demonstrando a dis-criminação de segmentos da sociedade em relação aos indivíduos que exercem livremente a sua preferência sexual.

Já Henrique Magalhães, depois de concluir em parceria com Torquato Joel o filme Les Etoiles (1983) durante um estágio em Paris no Atelier de Cinema Direto da Universi-dade de Nanterre, elabora Era Vermelho seu Batom (1983). Em 15 minutos, o filme mostra o relacionamento de dois homens num acampamento de carnaval. No vale tudo da movimentação carnavalesca, um deles flagra o outro fantasiado de mulher. A relação se deteriora face a discriminação do parceiro. Segundo o próprio realizador, o filme Era Vermelho seu Batom traduz as inquietações de uma geração também preocupada com os conflitos existenciais como o amor e a solidão e com os grupos ligados a movimentos de libertação de minorias, no caso, homossexual” (MAGALHÃES, 1983)7.

O grupo de militância homossexual Nós Também realiza o curta de 18 minutos Baltazar da Lomba (1982) sobre a inquisição de um homossexual na Paraíba no período do império. No entendimento de Gabriel Bechara:

Baltazar da Lomba foi o primeiro produto de um grupo que abria mão de uma mili-tância política no sentido tradicional e achava por bem que a linguagem artística era a mais adequada para tratar da questão homoerótica. [...] A preocupação nesse filme é resgatar a história da perseguição, da intolerância em relação à homossexualidade na primeira década da existência da inquisição na Paraíba em 1595. A rebeldia a nível pessoal de Baltazar é uma rebeldia em relação a todo um modus vivendis que as elites portuguesas tentam implantar na Colônia. Eu diria mesmo que Baltazar é o início da irreverência brasileira de tantos outros perseguidos pelos autos inquisitoriais (BE-CHARA, 1987).8

Retratando ainda a mesma temática da homossexualidade, Closes (1982), de Pe-dro Nunes, consegue obter um grande impacto junto ao público, imprimindo uma dimensão mais séria para o Super-8. O filme se impõe frente à crítica local, que sempre agiu com reservas e ironias em relação ao Super-8, tornando a discussão da homossexualidade ainda mais ampla. Misto de documentário e ficção, Closes reúne

8Entrevista com Gabriel Bechara concedida ao autor. João Pessoa, 14/01/1987.

7MAGALHÃES, Henrique. Cinema e Província, João Pessoa, A União, 25/05/1983.

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em sua parte documental depoimentos diversificados sobre preferências pelo mesmo sexo. Os depoimentos chocam-se, complementam-se e se contradizem. Na parte de ficção, exibe a relação sexual entre dois rapazes onde um deles é obrigado a aban-donar a cidade devido às pressões de família, da imprensa e da sociedade. Segundo Jomard Muniz,

O grande rebuliço na província de João Pessoa foi realizado pelo filme Closes. Era a temática nova, a problemática nova em termos de sexualidade, pela beleza formal do filme tinha um encantamento visual muito grande. Isso foi um grande motivo para acender a chama dessa sexualidade recalcada noutros filmes (BRITTO, 1985).

Percebe-se nesta fase a existência de um grupo compacto de realizado-res intencionados em fazer filmes inovadores, não só em sua temática, mas tam-bém em exercitar o aprendizado da linguagem cinematográfica. Esta exercita-ção e ousadia temática estão bem mais presentes nesta fase de resgate da ficção. A maioria desses filmes com gestos explícitos de transgressão temática associada à ficção é de obras de produção de autor.

Apenas Perequeté dribla a orientação do estágio de Cinema Direto realizado no NUDOC/UFPB em 1981, abordando o tema da sexualidade, lançando elementos de ficção em sua obra.

Seguindo esta linha de se confeccionar trabalhos artísticos inventivos, dois auto-

Era Vermelho o seu Batom

Henrique Magalhães, 1983.

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res sobressaem-se do conjunto por atuarem exclusivamente no campo da ficção: Lauro Nascimento e Jomard Muniz de Britto.

Lauro Nascimento trabalha a sexualidade sob o prisma da religiosidade. O sagrado e o perverso fundem-se através da ótica barroca sensitiva do irrequieto artista plástico. Em Acalanto Bestiale (1981) e Miserere Nobis (1982) o autor faz uma fusão mística do imaculado e do profano, da pureza e da transgressão envoltos numa ambiência religiosa. De um lado a imaginação de um garoto que materiali-za Jesus e o ama docemente. De outro, um Jesus contemporâneo adota a filosofia “qualquer maneira de amar vale a pena”. Completando a trilogia ficcional, Segunda Estação de uma Via Dolorosa (1983) é a investida seguinte de Lauro Nascimento com a finalidade de mostrar o lado cru da prostituição masculina entre um intelectual e um michê adolescente que mantém relação sexual unicamente por dinheiro. O lado plástico, a cor, a luz, os cenários e o depuramento da imagem são aspectos importantes enfatizados na trilogia de Lauro Nascimento.

Já Jomard Muniz ocupa um lugar de destaque na história do cinema paraiba-no e do cinema pernambucano. Agitador cultural dos anos 1960 e grande guru e realizador da geração do terceiro ciclo de cinema dos anos 1980, imprimiu em toda sua obra de literatura e cinema uma visão crítica e anárquica da cultura brasileira. É autor de mais de 40 curtas em Super-8. Em sua trilogia paraibana de filmes sobre sexualidade Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Pa-raíba Masculina Feminina Neutra (1982), Jomard Muniz questiona os preconceitos enraizados no cotidiano da província. Cidade dos Homens mostra a forte presença masculina na cidade, nos bares, nas ruas, no trabalho, nas praças... na construção do controvertido Espaço Cultural da cidade de João Pessoa.

Mas o filme mais importante do conjunto de realizações de Jomard Muniz de Britto é Paraíba Masculina Feminina Neutra, o terceiro de sua trilogia e o único que consegue realmente radicalizar a linguagem cinematográfica. Esta afirmação é também endossada por Bertrand Lira: “Paraíba Masculina Feminina Neutra é sem dúvidas o mais criativo desse cineasta que vive em constante atividade experimen-tal no cinema. É com ‘Paraíba M.F.N.’ que Jomard demonstra maior intimidade com a linguagem cinematográfica” (LIRA, 1986, p. 8).

Nesta obra, o autor investe contra a moral cotidiana, recortando ironicamente a realidade e sempre colocando em xeque o discurso militante. O filme é construído a partir de um discurso fragmentário composto por elementos díspares e imaginários, tais como: um chicoteador que se rende aos pés de Maria Bonita, um professor con-servador e uma professora marxicóloga, gerando impacto no espectador pela agres-sividade das imagens e do discurso verbal. O filme, em três tempos (presente, passado e futuro) agrupa 12 personagens em constante metamorfose que percorrem favelas, becos e vielas de João Pessoa. É o único que consegue realmente lançar elementos novos em termos de provocações da linguagem cinematográfica e da sexualidade.

Três outros filmes de restrita divulgação podem ser citados no campo da ficção: Na Cama (1981), de Romero Azevedo, Faon (1983), de Gabriel Bechara e Flagrante

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Delito, de Rômulo Azevedo.A importância desse ciclo marcado pela ampla receptividade do público se ca-

racteriza pela busca de uma estética própria. Embora não tenha existido uma sub-versão no tocante ao avanço depurativo da linguagem, houve as iniciativas que se encaminharam neste sentido, e o que é muito importante, exercitou-se a ficção discorrendo sobre a homossexualidade.

A ruptura fundamental presente nessa produção é o enfoque temático em torno da se-xualidade e a passagem, sob forma de ensaios, para a elaboração da ficção. Isto representa um dado novo muito forte, pois a Paraíba sempre carregou desde décadas anteriores o tra-ço notadamente documental em sua filmografia. É o que confirma Henrique Magalhães.

A mudança proporcionada pelo uso do Super-8 como veículo dos novos experimenta-dores em cinema, deu-se pela preferência de se traduzir suas mensagens através da ficção, rompendo a tradição documental da Paraíba. [...] A opção pela ficção seria um sintoma desse novo tempo, na medida em que ela abre mais espaço para viagens e universos particulares e interiores do cineasta (MAGALHÃES, 1987, p. 2).

A escolha pela ficção é aqui entendida não unicamente enquanto produtos culturais com um roteiro criando imaginariamente novas situações, mas sim algo que se nutre e extrapola as próprias contradições da realidade cotidiana.

Os documentários Perequeté, de Bertrand Lira, e Sagrada Família, de Everaldo Vas-concelos, foram elaborados no sentido de documentar o dia a dia de um ator e de

Baltazar da Lomba

Direção coletiva, 1982.

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uma família respectivamente, findam por registrar e ficcionar criativamente recortes de realidades humanas específicas. Isto comprova a dificuldade de se conceituar o que é um filme documentário e o que é um filme de ficção. Há um embaralhamento de gêneros embutido em ambos os filmes. Essa mistura que funciona como recurso criati-vo. No caso específico de Sagrada Família, o filme não aborda aparentemente a questão da sexualidade visto que aparece oculta, de forma reprimida; o seu realizador explora as tensões psicológicas de sua família, conseguindo a partir da seleção de ângulos, to-madas e estruturação das imagens, uma situação limítrofe de ficção e documentário.

Enquadram-se também nesta perspectiva de misturas entre gêneros os filmes de Jomard Muniz, cujas obras adquirem vida própria ao tomar como pano de fundo alguns pontos e locais estratégicos da cidade João Pessoa. Ficção e realidade tam-bém se entremesclam com a presença de atores que se inserem performaticamen-te na realidade e se confundem com os transeuntes.

Ao reunir situações díspares como: cultura marginal e cultura oficial, travesti e policial machão, sempre reportadas ou extraídas de situações regionais, locais ou nacionais, Jomard Muniz dispara através de suas narrativas uma avalanche de informações que atuam como nocaute aos valores cristalizados da província. Percebe-se então na leitura de sua obra que documento e ficção se interpõem.

Enfim é interessante observar que alguns desses filmes que versam sobre a sexualidade conseguem mobilizar o público, chamar a atenção da imprensa e formadores de opinião por trazer temas polêmicos para o debate. A mobilização em torno desses filmes extrapola o estado da Paraíba a exemplo de Closes, que percorreu vários estados brasileiros e circulou pela América Latina. Nesse perí-odo foram construídas alternativas de exibição em forma de animação cultural. Essa iniciativa de circulação dos filmes se distinguia pela busca de canais parale-los junto às escolas, sindicatos, associações de bairro, periferias da zona urbana, zona rural e interior do Estado. É um cinema itinerante onde cada realizador ou integrante da comunidade encontrava fórmulas improvisadas para divulgação e exibição dos filmes, ao ar livre ou mesmo em recintos fechados. Alguns desses filmes também integraram as quatro Mostras de Cinema independente realizadas no contexto do terceiro ciclo de cinema e que possibilitaram o contato com reali-zadores e filmes de outros estados brasileiros.

Considerações FinaisO terceiro ciclo cinematográfico na Paraíba representou a oportunidade de arti-

culação espontânea de grupos de jovens principalmente junto à Universidade Federal da Paraíba, que mobilizaram para produzir cinema enxergando o seu potencial como expressão libertadora.

A marca deste novo surto ficou caracterizada pela utilização da minibitola Super-8, adotada por uma geração emergente que utilizou o cinema como ferramenta de traba-

82

lho ideal para expressão dos conflitos políticos-existenciais em um contexto histórico de renovação da cinematografia paraibana.

O resgate do Super-8 enquanto bitola apropriada para experimentação da lin-guagem e reflexão da realidade regional consistiu numa forma alternativa de gerar conhecimentos, atingindo proporções amplas.

A flexibilidade da minibitola ampliou o quantitativo de produções au-diovisuais possibilitando a entrada e a capacitação de um maior número de pessoas no processo de criação de filmes.

Apesar da relevância do terceiro ciclo de cinema, o uso regular da bitola pro-vocou reações preconceituosas por parte de jornalistas e cineastas da segunda ge-ração do cinema, que reclamava a montagem de uma infraestrutura profissional de cinema. Essa polêmica resultou em dois manifestos polêmicos de Pedro Nunes e Everaldo Vasconcelos, além dos frequentes posicionamentos publicados na im-prensa por integrantes do terceiro ciclo de cinema. Diante dessas questões Jomard Muniz argumenta o seguinte:

É ridículo essa coisa que tem na Paraíba de muita gente não considerar o Super-8 como cinema, isso é um preconceito absurdo. Os grandes cineastas do mundo usam Super-8, é a possibilidade de se fazer cinema experimental, tanto curta-metragem, como a bitola Super-8 ou vídeo, você tem um campo mais livre para experimentação (BRITTO, 1985).

Henrique Magalhães também reage às críticas formuladas contra o movimento:

Alguns críticos e intelectuais insistem na concepção de que o Super-8 não é cinema, fechando os olhos para o que está surgindo de novo no cenário cinematográfico parai-bano. Comparativamente, seria o caso de se dizer que o vídeo cassete não é televisão. Mas como, se em ambos os casos os recursos de linguagem são os mesmos? Apela-se então em invocar o argumento de que o Super-8 é um instrumento amador e que os que o manuseiam agem amadoristicamente diante das possibilidades do cinema de capta-ção de imagens paradas e transmissão de ideias em movimentos. Ora, conheço muitos filmes dessa nova safra made in Pb que valem muito mais do que centenas de filmes profissionais em 35 mm que inundam nossas salas de projeção e a cabeça de muitos. Este raciocínio de que estas produções superoitistas não têm valor recai no preconcei-to que têm as gerações mais velhas e alguns jovens retardatários de que a produção antiga é sempre de melhor valor e que qualquer nova produção é desacreditada talvez pelo simples argumento de que é novo. E desacreditar também que através do Super-8 alguns possam desenvolver linguagem (ou várias) tão original que se torne revolu-cionária. É pôr água fria na fervura. Se os meninos estão se achando cineastas porque estão fazendo Super-8 é porque eles são cineastas (me incluo nos meninos).O cinema que os meninos estão fazendo é duma realidade interior tão grande que pode até ser chamado de mal acabado, mas nunca pode deixar de ser chamado cinema.

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Querer que se faça cinema que se fez 23 anos atrás, é como querer que nossos músicos de hoje cantem como Vandré na época de “Caminhando”, e aí corre-se o grande risco de não ser contemporâneo e cair numa real banalidade, como o foi Simone cantando “Pra não dizer que não falei das flores”. (MAGALHÃES, 1983).

A Paraíba tem demonstrado ao longo da história uma vitalidade significativa vol-tada para o campo do cinema e do audiovisual. A ausência de uma sólida infraestru-tura sedimentada por recursos técnicos e financeiros é uma constante que perpassa os distintos ciclos da produção audiovisual no âmbito da Paraíba. A cada novo surto, os protagonistas do processo iniciam pela estaca zero. Tanto as produções do ciclo pioneiro liderado por Walfredo Rodrigues como as do ciclo Aruanda apresentam pre-cariedades de recursos técnicos e financeiros, equipe de trabalho sempre reduzida. O amadorismo e improvisação estiveram presentes nos três ciclos de cinema embora com traços bem distintos.

As falhas detectadas nessa produção do início dos anos 1980, como registro linear dos fatos, filmes inconclusos, impossibilidade de exercitação em 16 mm, são condi-cionantes da ausência de uma infraestrutura básica no Estado e da falta de preparo profissional no campo audiovisual.

Se por um lado houve um retrocesso em relação ao formato da bitola e a não cria-ção de uma infraestrutura profissional, por outro lado cabe afirmar que não existiu um recuo em termos de construções narrativas e busca de uma estética própria como marca distinta de uma geração.

A violentação desse surto se faz presente quanto à escolha temática que serviu como fator de provocação e debate, ensaio da ficção e, consequentemente, o rom-pimento com a tradição do filme documental na Paraíba, as condições precárias de produção e a inserção desses produtos culturais de cunho expressamente ar-tesanal junto aos movimentos populares e diversos setores da comunidade. Com uma bitola marginalizada, os realizadores lançam mão da potencialidade audiovi-sual do cinema e passam a utilizá-lo enquanto instrumento de ação social criando situações de participação efetiva do público.

Há nesse conjunto de filmes um valor histórico de construção de memórias mesmo em se tratando dos trabalhos que tiveram a preocupação de registro. Esses filmes são memórias compartilhadas e representam em sua extensão um grande documento visu-al polipartido de época. Revelam nuances subjetivas de um contexto de época em que atravessa o político, o econômico, o existencial e os gestos criativos de realizadores que trafegam de maneira conflitante entre tradição e os procedimentos de ruptura.

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REFERÊNCIAS

BECHARA, Gabriel. Entrevista concedida ao au-tor. João Pessoa, 14 jan. 1987. BRITTO, Jomard Muniz de. Entrevista concedida ao autor. Recife, 06 out. 1985.

CALDAS, Manfredo. Entrevista concedida ao au-tor. João Pessoa, mai. 1987.

FARKAS, Thomaz. Cinema Documentário: um mé-todo de trabalho. Tese de Doutorado, São Paulo: ECA/USP, 1972.

HOLLANDA, Heloísa B. Impressões de Viagem – CPC Vanguarda e Desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981.

LIRA, Bertrand. A Produção Cinematográfica Superoitista em João Pessoa e a Influência do Contexto Social / Econômico / Político e Cultural em sua Temática. Caderno de Textos, nº. 8, João Pessoa: CCHLA/UFPB, 1986, p. 5-12.

MAGALHÃES, Henrique. Cinema e Província. A União, João Pessoa, 25 mai. 1983.

MAGALHÃES, Henrique. Entrevista concedida à Bertrand Lira. Cadernos do CCHLA, n. 8, 1986, p. 8.

MAGALHÃES, Henrique. Entrevista concedida ao autor. João Pessoa, 1987.

NASCIMENTO, Lauro. João-Mar de Água e Fogo. II Mostra de Cinema Independente. João Pessoa, 1981, mimeo.

NETO, Torquato; SALOMÃO, Waly (Org.). Os Últi-mos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982.

NUNES, Pedro. Violentação do Ritual Cinemato-gráfico: Aspectos do cinema independente na Paraíba – 1979-1983. Dissertação de Mestrado, S. Bernardo do Campo: UMSP, 1988.

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ÍNDICE ÍNDICEAPRESENTAçÃO

FILMOGRAFIA

Tecnologia e estética: o Super-8 funda a estilística do direto no cinema paraibano nos anos 1980Bertrand Lira

Terceiro ciclo de cinema na Paraíba: tradição e rupturasPedro Nunes

Cinema engajado: a temática social como marco da produção paraibana dos anos 1960, 70 e 80Fernando Trevas Falcone

A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil: espontaneidade e ironia como resistência à modernização conservadora em tempos de ditaduraRubens Machado Jr.

A contribuição francesa do Cinema DiretoJoão de Lima Gomes

Cinema e as condições de produção da imagem em Super-8 na Paraíba: aproximações possíveis entre acervo imagético e memóriaLara Amorim

Jomard Muniz de Britto – um livre pensador a serviço do cinema e da culturaEntrevista com Jomard Muniz

Preservando o “cinema puro”Entrevista com Roberto Buzzini

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