terapia comunitaria - espaço de transformar a dor

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FACULDADE IBGEN - INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTÃO DE NEGÓCIOS MBA em Gestão Pública- PMPA TERAPIA COMUNITÁRIA: ESPAÇO DE TRANSFORMAR A DOR EM COMPETÊNCIA – EXPERIÊNCIA DA ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL PORTO ALEGRE LOURDES SOUZA DE CARVALHO PORTO ALEGRE, RS Junho de 2008

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  • FACULDADE IBGEN - INSTITUTO BRASILEIRO DE GESTO DE NEGCIOS MBA em Gesto Pblica- PMPA

    TERAPIA COMUNITRIA: ESPAO DE TRANSFORMAR A DOR EM COMPETNCIA EXPERINCIA DA ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO

    FUNDAMENTAL PORTO ALEGRE

    LOURDES SOUZA DE CARVALHO

    PORTO ALEGRE, RS Junho de 2008

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    LOURDES SOUZA DE CARVALHO

    TERAPIA COMUNITRIA: ESPAO DE TRANSFORMAR A DOR EM COMPETNCIA EXPERINCIA DA ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO

    FUNDAMENTAL PORTO ALEGRE

    Trabalho de Concluso de Curso a ser apresentado no Curso de Ps-Graduao em MBA em Gesto Pblica, da Faculdade IBGEN, como requisito parcial obteno do ttulo de Especialista.

    Orientador Metodolgico: Professora Mestra Viviane Viebrantz Herchmann

    Porto Alegre, RS Junho de 2008

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    A mensagem essencial simples e poderosa: o drama da adolescncia pobre e excluda, no contexto cultural consumista, hedonista, individualista, mas ambivalente, racista e estigmatizante, marcado por desigualdades extremas, a histria sombria de uma persistente invisibilidade social. A violncia e o delito so interpelaes articuladas na linguagem destrutiva do medo. O alvo o reconhecimento pelo avesso, que restitui presena, lugar e sentido, ao preo da prpria vida. O ato delituoso, o gesto violento do jovem o efeito de um pacto fustico que garante sua sobrevivncia, por alguns anos, na terra devastada sua casa-pelo-avessso, seu exlio que o condena ao inferno da desesperana.

    Luis Eduardo Soares

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    RESUMO

    A Terapia comunitria consiste numa estratgia simples e profunda, para reconhecer em si os dramas de vida que o impede de ter vida plena. Trabalha a auto-estima, suscitando dinmicas de autoconhecimento, de troca, de partilha. Vai suscitando o resgate da conscincia do prprio direito, do prprio dever, ento, de cidado. Este trabalho tem o objetivo de conhecer os resultados da Terapia Comunitria realizada na escola Porto Alegre, na perspectiva dos usurios, adolescentes que vivem em situao de rua e que freqentam a escola e tm o medo, nervosismo, abandono, separao, depresso, alcoolismo e droga como base para os principais dramas comunitrios existentes no contexto de suas vidas.

    Nos ltimos anos a terapia comunitria foi inserida na escola com o intuito de construir espaos de fala e escuta, de apoio, da realidade de cooperao e partilha e, desenvolvimento da auto-estima. O estudo foi desenvolvido por mim, com a superviso da professora Malu Reis, atravs de entrevistas com os adolescentes matriculados na escola e usurios da Terapia Comunitria.

    Como instrumento de coletas de dados utilizei um questionrio que continha perguntas simples, mas que deixavam espao para que os alunos se expressassem livremente sobre o tema.

    PALAVRAS CHAVE: Escola aberta Porto Alegre. Terapia Comunitria. Adolescentes em situao de rua.

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    LISTA DE TABELAS, QUADROS, GRFICOS E FIGURAS

    Figura1. Foto de uma roda de Terapia Comunitria realizada no ptio da EPA

    Figura1. Foto de uma roda de Terapia Comunitria com os estudantes EPA

    Fonte: Fotos gentilmente cedidas por Malu Reis.

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    LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES

    TC- Terapia Comunitria US- Unidade de Sade SMS- Secretaria Municipal de Sade EMEF- Escola Municipal de Ensino Fundamental EPA- Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre SMED- Secretaria Municipal de Educao PAICA-Rua- Programa de Ateno Integral a Crianas e Adolescentes em situao de rua CAPS- Centro de Atendimento Psico-Social PMPA- Prefeitura Municipal de Porto Alegre Malu Reis- Maria Lcia Andrade Reis Rede URB-AL 10- programa horizontal de cooperao descentralizada da comisso europia de intercmbio entre cidades da unio europia e da Amrica latina, com 700 cidades envolvidas no mundo todo.

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    SUMRIO

    1 Introduo............................................................................................................8 2 Referencial terico.............................................................................................13

    2.1 Tecendo a Terapia Comunitria.........................................................14 2.2 Os alicerces da Terapia Comunitria.................................................18

    2.2.1 Pensamento sistmico........................................................18 2.2.2 Teoria da Comunicao......................................................21 2.2.3 Pedagogia de Paulo Freire.................................................23 2.2.4 Antropologia Cultural..........................................................25 2.2.5 Resilincia..........................................................................29

    2.3 Os caminhos da Terapia Comunitria..............................................33 3 Terapia Comunitria dentro da Escola Porto Alegre.........................................34

    3.1 Por que a Escola Porto Alegre?.......................................................34 3.2 Escola Porto Alegre .........................................................................35 3.3 Cenrio onde desenvolvida a atividade.........................................36

    3.3.1 Temticas que apareceram nas sesses...........................37 3.3.2 avaliao das atividades de TC..........................................38

    3.4 A TC dentro da Escola Porto Alegre.................................................38 4 Metodologia.........................................................................................................40 5 Concluses..........................................................................................................43 Bibliografia consultada ...........................................................................................46

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    1 INTRODUO A escolha deste tema Terapia Comunitria ou TC deve-se ao fato de

    que, ao longo da minha carreira profissional na rede pblica municipal, tive oportunidade de vivenciar diferentes tipos de processos de incluso social. Neste cenrio, vivi longos anos onde as tentativas de incluso sempre se davam de fora para dentro, sempre era oferecido algo que vinha de uma idia superior do que estava faltando, com a ao do "te dou e tu aceitas, te mando, e tu fazes, te digo e tu acolhes. Essa dinmica sempre me gerou muito desconforto.

    Conheci a Terapia Comunitria no ano de 2007, pela mo doce e firme da psicloga Lisiane Falleiro Vargas (SMS-Poa). Ela coordenava rodas formadas a partir de grupos na Unidade de Sade e esta formao lhes dava caractersticas peculiares. Essas rodas, onde eram desenvolvidas toda a dinmica e a sistemtica da Terapia Comunitria, eram formadas por pessoas com idades entre 6 e 80 anos.

    Um fator muito importante para a escolha deste tema foi o meu encontro com as professoras Mrcia Gil (atual diretora da EMEF Porto Alegre), minha colega de ps-graduao, colega de rede, e Maria Lcia de Andrade Reis, (diretora da EMEF Porto Alegre de 2001 a 2004 e atual coordenadora pedaggica da escola), referncia nacional em TC e grande conhecedora da alma humana, que me proporcionaram a abertura das portas de sua escola para observao do trabalho e a participao em um importante congresso sobre TC em setembro de 2007, onde pude conhecer pessoalmente o criador dessa metodologia, o psiquiatra e antroplogo Adalberto Barreto.

    Alm disso, o desafio proposto pelo professor Lus Fernando Moraes Marques durante a disciplina de Gesto de Projetos, no qual deveramos construir um projeto vivel que partisse de dados reais, que teve como tema a TC, foi um grande impulso em direo definio deste tema. Ele me encorajou a levar esse projeto adiante e transform-lo em um trabalho acadmico.

    Na TC, encontrei uma outra lgica do empoderamento. Encontrei o sujeito como autor, sendo capaz de transitar de maneira autnoma pelas diferentes prticas de educao, sade e polticas pblicas, sempre na lgica da reflexo e do amadurecimento, tendo em vista novos projetos de vida. A TC o

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    exerccio do protagonismo, a quebra de um antigo paradigma existente na escola, onde sempre se pergunta o que no sabemos. L, acaba sendo justamente o oposto: o que ns sabemos que valorizado.

    Esse projeto me tocou particularmente pela possibilidade de ver o potencial daqueles que sofrem e, fundamentalmente, pelo fato de que essa tecnologia social est sendo desenvolvida dentro de uma escola da rede pblica de Porto Alegre, arejando e humanizando esse cotidiano. Tambm me chamou a ateno o fato de que a preveno deve ser uma preocupao constante, uma tarefa de todos. As regras da Terapia Comunitria, que funcionam como em um jogo, fizeram despertar meu interesse. Os participantes tm que fazer silncio, falar da prpria experincia, colocando em voz ativa a primeira pessoa. Eles podem fazer perguntas a quem revela o sofrimento, mas no oferecem conselhos nem fazem discursos ou sermes, respeitando a histria de cada um.

    Minha participao neste trabalho teve como foco a integrao de Terapia Comunitria, com o funcionamento educacional da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA)/ Secretaria Municipal de Educao (SMED) Quero apresentar a TC a quem trabalha em educao e divulgar a experincia do projeto piloto da EPA, que oportuniza a esses adolescentes, em situao de desamparo, espaos onde possam ressignificar suas histrias de vida, mudando as lentes que lhes fazem sentirem-se excludos e sem perspectivas de soluo para seus problemas.

    Um dos meninos, em uma das sesses, ao compreender as caractersticas da Terapia Comunitria, definiu a terapia como um espao aberto onde todos do e recebem ajuda para crescer como pessoa.

    Uma terapia comunitria, onde quer que ela ocorra, compreende sempre um conjunto de relaes, num emaranhado de situaes que sempre extrapolam o mbito individual ou escolar. O que distingue, no entanto, a TC do funcionamento regular de instituies como um hospital ou de um grupo de vizinhana reunido numa casa, pessoas numa sala de espera, um grupo reunido no salo paroquial? O que distingue a TC das demais prticas de terapia de grupo?

    Seguindo a definio do menino, a TC um espao aberto, isso , um lugar aberto a todos, indistintamente. O principal resultado em relao ao espao

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    aberto a diversidade e a inexistncia de um pr-julgamento em relao s pessoas que participam da terapia. Todos podem participar desse espao, formando um grupo heterogneo e, quanto mais heterogneo, o grupo rene melhores condies de realizao da Terapia Comunitria. O foco na pessoa o ponto de maior importncia na TC.

    Ao relatar sua dor, seu sofrimento ou sua alegria, o protagonista percebe sua singularidade no grupo e as marcas de sua identidade, reforando a auto-estima. Ao reconhecer sua competncia pessoal, apropria-se de sua forma de estar no mundo, passvel de modificar-se, modificando sua vida pessoal, e sua insero na comunidade no exerccio de seus direitos. Essa mudana pressupe escolha, opo e a busca do exerccio da autonomia. Trabalhar em grupo tambm uma caracterstica importante da TC porque, frente a um grupo de pessoas diferentes, mas tambm com problemas, cada um se reconhece, ao mesmo tempo, igual e diferente, nico e parte de um grupo.

    A partir de agosto de 2002, a Terapia Comunitria vem sendo utilizada como ferramenta teraputica em dois servios do Programa de Ateno Integral a Crianas e Adolescentes em Situao de Rua, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PAICA-Rua). Os temas emergentes so aqueles relacionados ao cotidiano de quem encontra, nas ruas da cidade, seu espao de sobrevivncia e moradia, quais sejam: a violncia sofrida e exercida, seja na famlia ou na rua; o desemprego; o desejo de largar as drogas; a vontade de mudar de vida; as relaes familiares; o preconceito e a discriminao. Como avanos, so destacados: a sistematicidade das sesses da Terapia Comunitria; aumento do nmero de participantes e da freqncia; maior articulao entre os dois servios (CAPS Casa Harmonia e EMEF Porto Alegre); qualificao do acompanhamento aos Planos Individuais dos adolescentes e jovens e realizao de Terapias Comunitrias nas ruas e nos mocs1, como estratgia de reaproximao com alguns adolescentes e jovens. 2

    1 moc, na linguagem das ruas, significa esconderijo, refgio, local de moradia e concentrao dos moradores de rua.

    Tambm conhecido como brete.

    2 Fonte: Lisiane Faleiro Vargas e Maria Lcia Andrade Reis In Terapia Comunitria: Retalhos do

    Cotidiano

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    A Terapia Comunitria a teia onde a vida se autocura de forma sistmica, criando assim uma parceria de sucesso entre sade e educao, produzindo riqueza humana.

    A escolha do tema Terapia Comunitria justifica-se por ser uma questo de sade pblica e estar diretamente relacionada com a gesto escolar, mas de uma forma inversa forma tradicional pois, na TC, o aluno visto de uma forma mais humanizada. Nesse processo, busca-se perceber e entender o ser humano como um ser capaz de ressignificar sua vida atravs da palavra.

    A Escola Porto Alegre o cenrio ideal para o desenvolvimento desse projeto de pesquisa por ser uma escola da rede municipal, por atender a crianas e adolescentes em situao de rua, por estar respondendo s polticas pblicas de educao bsica e, principalmente por no existir outra escola em na rede municipal trabalhando dentro dessa perspectiva. Esta escola, a partir dessa ao transversal, otimiza recursos e equilibra demandas cruciais e educao e sade, produzindo, assim, uma gesto pblica de qualidade. Este curso se caracterizou pelo estudo das polticas pblicas municipais, e por isso, percebo a validade deste estudo e da construo deste projeto.

    O projeto de TC na escola tem grande importncia, pois coloca a PMPA na vanguarda das polticas educacionais, associando educao com cuidados bsicos de sade. A TC funciona com um custo muito baixo e resultados eficazes, otimizando recursos pblicos ao trabalhar com educao e sade no mesmo espao.

    Neste trabalho, utilizo uma pesquisa realizada pela rede URB-AL 10 no ano de 2007 sobre as condies das regies de Porto Alegre, com foco na regio central, onde est localizado o meu objeto de pesquisa, como ndice qualificador desse projeto de pesquisa, alm de reafirmar a importncia e a validade da TC como um espao onde se transforma dor em competncia. A rede URB-AL 10 mostra a pobreza no apenas como privao de renda, mas como um fenmeno multidimensional de privao de capacitaes, o que transforma a TC em uma forma de devolver ao cidado e, no caso em tela, os alunos da EPA, o controle de suas vidas atravs da percepo de suas potencialidades e de suas competncias.

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    Como metodologia, utilizei uma pesquisa realizada por mim no perodo de dezembro de 2007 a abril de 2008, com o objetivo de aferir o grau de satisfao dos alunos que participam das rodas de TC. Foram entrevistados 20 dos 101 alunos matriculados na EPA, com idades entre 14 e 18 anos, dos quais 40 freqentam as sesses de TC. Como a rotatividade alta, em funo das caractersticas dessa populao, a freqncia na escola muito varivel. Nas sesses, h uma diversidade quanto ao nmero de freqentadores, que pode ser alto ou baixo, dependendo do dia.

    Foram aplicados questionrios de potencial de aproveitamento e eficcia, em forma de entrevista, com perguntas como: Quando se sente ofendido, magoado, humilhado, voc tem com quem compartilhar? Voc participa do grupo de Terapia Comunitria na EPA? Por qu? O que mudou na sua vida a partir da TC? Voc conseguiu resolver seus problemas durante a prtica da TC?. A partir dessas respostas, juntei dados que mostraram como os adolescentes vem a TC e como ela modificou suas vidas, melhorando sua sade mental e emocional.

    Procurei, ento, a partir de referenciais tericos, comprovar a validade e a viabilidade da TC com adolescentes em situao de rua e ambiente escolar na rede pblica municipal de Porto Alegre.

    Este trabalho tem como objetivo geral apresentar, relatar e divulgar a experincia do projeto piloto de Terapia Comunitria realizado com estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA) / Secretaria Municipal de Educao (SMED), que oportuniza a esses estudantes, adolescentes e jovens em situao de desamparo nas ruas, espaos onde eles possam ressignificar suas histrias de vida e como objetivos especficos apresentar a terapia comunitria, sua estrutura, base e objetivos e divulgar a experincia da EPA com TC entre adolescentes e os resultados que podem ser obtidos com essa prtica, que no tratada como uma questo de sade mental, e sim como ateno bsica.

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    2 REVISO DE LITERATURA

    O sistema que constitui a cada sesso de TC um sistema mvel, formado, geralmente, por pessoas que participam continuamente a cada sesso e por aqueles que o fazem ocasionalmente, podendo ou no regressar, muitas vezes comparecendo esporadicamente. As pessoas participantes de uma sesso de Terapia Comunitria no mantm necessariamente uma histria de vnculos e convivncia em outros contextos alm da prpria sesso. Muitas das vezes, o que tm em comum, simplesmente o fato de estudarem na mesma escola ou de viverem situaes semelhantes nas ruas. Para que os participantes de um espao comum possam ser considerados como formando um sistema, algo deve se passar entre eles que favorea conexes, caracterizadas como uma rede de trocas interativas que os coloquem em relao uns com os outros, num interjogo de ao e emoo. Tais aes e emoes so organizadas pelas redes de conversaes que contribuem tanto para construir o sistema como para dissolv-lo.

    A prtica da Terapia Comunitria tem como uma de suas decorrncias construir um grupo como um sistema, conforme organiza pessoas numa rede de conversaes qualificadas com um propsito de favorecer, alm do alivio do sofrimento, mudanas que ampliem as condies de uma existncia com mais dignidade, respeito e cidadania. Alis, se tomarmos o sofrimento como organizador de sistemas de significados, pessoas que sofrem de um mesmo mal, como a pobreza, a discriminao, o preconceito, os maus tratos, reconhecem no outro que sofre dos mesmos males, um semelhante. Sabemos que o sofrimento de uma pessoa to idiossincrtico que jamais poderia ser igual ao da outra, mas isto no impede que se instalem significados compartilhados, tecidos pelos laos das ressonncias em que a dor de um ativa o reconhecimento de dores semelhantes dos outros. Todos ns sabemos que reconhecer uma situao como sendo um problema o primeiro passo na busca de possibilidades de mudana.

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    A rede de conversaes que constituem a comunidade como sistema, no caso em terapia, organizada pelos significados construdos em torno do sofrimento humano. Apresentadas em narrativas sobre o vivido e numa atitude de legitimao, solidariedade, respeito e compaixo, prprias da Terapia Comunitria, constituem um contexto para que cada pessoa possa ser reconhecida como um ser humano legtimo, independente de sua origem e suas circunstncias.

    Na Terapia comunitria, a interveno, embora esteja composta pela pergunta, desenvolve-se na perspectiva da horizontalizao e assim sobrepe-se ao poder. Na medida em que a conversao horizontal e o terapeuta comunitrio um condutor, um maestro que conhece as notas, mas no diz qual musica ser tocada, permite ao prprio grupo construir seu saber, portanto, este saber fruto da vivncia, na fonte, a resilincia, que est ao lado do poder das instituies. A construo das subjetividades marca dos trabalhos sistmicos comunitrios, na medida em que o prprio individuo e a comunidade se fortalecem e buscam o salvamento da alienao social, tornando-se conscientes de si e do outro.

    Acredito que esta perspectiva de insero da terapia comunitria no mbito da sade pblica necessria, visto que as concepes de promoo da sade s so viveis entre os espaos arranjados, pontuais, em um dia, sem sistematizao luz da ateno primria.

    2.1 Conhecendo a Terapia Comunitria A Terapia Comunitria prope uma mudana em modelos reducionistas,

    centrados no unilateralismo, convidando todos para um olhar voltado para o horizonte, ao cuidado da sade comunitria, nos espaos pblicos, tanto individuais como familiares, estimulando o resgate da cidadania e o incentivo do processo de empoderamento. Dessa maneira, constituindo um espao com base na partilha das experincias, permite-nos (re)construir redes sociais de promoo da vida, valorizao da cultura e das competncias de cada indivduo.

    Para Barreto (2005), os encontros de terapia tecem redes de apoio e despertam possibilidades de mudanas, j que as pessoas da comunidade participam de uma mesma cultura e partilham entre si recursos de comunicao e

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    laos de identidade, apresentando afinidades em seus sofrimentos e a busca de solues para os mesmos.

    A Terapia Comunitria est baseada na discusso e realizao de um trabalho de sade mental preventiva, envolvendo todos os elementos culturais e sociais da comunidade; na nfase do trabalho em grupo e na criao gradual da conscincia social, suscitando aes teraputicas transformadoras, apoiadas nas competncias e na formao de uma teia de apoio.

    Promove, dessa maneira, aes que levam preveno das doenas psquicas, das inquietaes do cotidiano, das somatizaes, da violncia familiar e das situaes de crise intrafamiliar e intracomunitria, cada vez mais presentes em nossa sociedade.

    Grandesso (2005) considera a Terapia Comunitria uma prtica teraputica ps-moderna crtica, que reconhece as influncias do macro-contexto scio-econmico, poltico, cultural, tnico, de gnero e espiritual, manifestando no micro-contexto familiar e nas organizaes comunitrias, um contexto de acolhimento pela alteridade, onde se tem a viso da pessoa e da comunidade como competentes para a ao e para o agenciamento de escolhas.

    Ainda para Grandesso (2005), a Terapia Comunitria visa s aes bsicas de sade comunitria (preveno, mediao de crises e insero social) e um espao para ampliao da conscincia crtica sobre os dilemas existenciais, onde cada pessoa pode transformar a sua histria, o seu sofrimento. A mudana decorre da organizao do prprio sistema, nas trocas sociais interativas entre eu e o outro.

    Inserida na ateno bsica, a Terapia Comunitria objetiva tecer redes de ateno, cuidado, preveno e promoo de sade alm de ser um multiplicador no atendimento e encaminhamentos aos centros especializados das situaes graves de transtornos psquicos, estimulando o envolvimento multiprofissional da rede de ateno bsica em sade mental (CAMAROTTI et al, 2005).

    , portanto, uma estratgia teraputica, centrada na potencialidade do indivduo, proporcionando o equilbrio mental, fsico e espiritual, atravs de uma abordagem sistmica, aliada a suas crenas e valores culturais. Enfim, uma

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    proposta de cuidado no mais centrada no modelo medicalizado, mas na busca de uma aproximao real do saber popular e do saber cientifico.

    Como ferramenta de cuidado, a Terapia Comunitria associa-se aos princpios que norteiam sade integral e articula-se no acolhimento da prtica cotidiana na Unidade de Sade da Famlia. Mas, ainda uma prtica em construo e necessita ser avaliada continuamente, para ser aplicada em distintos locais e diferentes contextos scio-culturais.

    A Terapia Comunitria pode ser realizada em qualquer espao comunitrio e o seu desenvolvimento obedece s etapas, propostas por Barreto (2005): o acolhimento, a escolha do tema, a contextualizao, a problematizao e o encerramento.

    O acolhimento dirigido pelo co-terapeuta, que responsvel por acomodar, dar as boas vindas e deixar os participantes vontade, de preferncia em crculo, para que todos possam olhar para a pessoa que est falando. Os encontros de terapia desenvolvem-se em um clima de amizade e respeito, valorizando-se as experincias individuais e a contribuio de cada pessoa.

    Ainda nessa fase, so apresentados o objetivo da Terapia Comunitria e as regras para o seu desenvolvimento, como: fazer silncio para se garantir a fala de quem est-se colocando, respeitar a histria de cada pessoa, falar da prpria experincia, no dar conselhos e no fazer julgamentos. Qualquer participante pode interromper o encontro para sugerir uma msica, um provrbio, um ditado popular e, at mesmo, uma piada ou poesia que esteja dentro do contexto.

    A prxima fase a escolha do tema, realizada pelo terapeuta comunitrio que vai incentivar o grupo a falar sobre o que est fazendo-lhe sofrer, utilizando estmulos, como o provrbio de Adalberto Barreto Quando a boca cala, os rgos falam, quando a boca fala, os rgos saram. Esse o momento em que as pessoas falam de suas angstias, de suas preocupaes, dos seus sofrimentos do dia-a-dia.

    Aps a fala das pessoas, o terapeuta prope uma votao para se trabalhar um tema no encontro, pedindo-lhes para justificar o porqu da escolha. E segue o momento da contextualizao onde concedido espao de fala pessoa que teve sua preocupao escolhida.

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    Nessa fase, o grupo faz perguntas para obter mais informaes sobre o assunto para que se possa compreender o problema no seu contexto. As perguntas fazem com que as pessoas reflitam, coloquem dvidas nas certezas, pois entende-se que a convico aprisiona o homem. Faz parte da Terapia Comunitria tentar encontrar o que h de positivo em cada gesto ou atitude.

    A etapa seguinte a problematizao, onde a pessoa que exps seu problema fica em silncio e o terapeuta lana para o grupo o MOTE (pergunta-chave que vai permitir a reflexo coletiva capaz de trazer tona os elementos fundamentais que permitem a cada um rever os seus esquemas mentais e reconstruir a realidade).

    A problematizao parte da dimenso individual para a dimenso grupal, momento em que se transforma em terapia do grupo, tecendo aquilo que liga e solidariza os participantes.

    Quando o terapeuta percebe que a problematizao atingiu seu objetivo, conduz a terapia para a ltima etapa o encerramento que se d com rituais de agregao e conotao positiva.

    Nesse momento, todos ficam de p, formando um crculo, onde cada um se apia no outro e ficam em um balano (simbolizando a teia), momento em que h o reconhecimento, a valorizao e o agradecimento do esforo e da coragem de cada um. No se trata de se valorizar o sofrimento em si, mas de se reconhecer o que cada um traz de positivo para contribuir para a superao das dificuldades.

    Ainda nessa fase, o terapeuta sugere uma msica, permite que manifestaes de carter religioso estejam presentes e procura dar-lhes uma conotao positiva.

    Segundo Barreto, o co-terapeuta comunitrio verbaliza o que mais lhe tocou no tema escolhido e abre para o grupo verbalizar o que aprendeu com as histrias de vida ali contadas, possibilitando a valorizao da experincia das pessoas e faz com que os indivduos repensem seu sofrimento, de maneira ampla, ultrapassando os efeitos imediatos da dor e da tristeza, para dar um sentido mais profundo crise e poder melhor identificar as estratgias de enfrentamentos, reforando a auto-estima e a confiana em si.

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    2.2 Os alicerces da Terapia Comunitria A identidade da Terapia Comunitria, no desenvolvimento de suas fases,

    acima descritas, est fundamentada, segundo Barreto (2005), em cinco fundamentos tericos conceituais: pensamento sistmico, teoria da comunicao, pedagogia de Paulo Freire, antropologia cultural e resilincia. Procurarei abordar esses conceitos e idias para o entendimento da metodologia da Terapia Comunitria.

    2.2.1 Pensamento Sistmico A teoria Geral dos Sistemas foi desenvolvida, no fim da dcada de 1930,

    pelo bilogo Ludwig Von Bertalanffy, consistindo em uma organizao sistmica, ou seja, um conjunto integrado a partir de suas interaes em todas as manifestaes fsicas, orgnicas ou sociais.

    Capra (1982), ao refletir sobre as bases da existncia e da integrao das aes humanas, aponta a evoluo do pensamento ultrapassando o modelo cartesiano que dividia o todo em partes para entend-lo. Centrado na forma sistmica de pensar, entende que tudo se interconecta, j que somos todos uma parte da teia imensurvel e inseparvel das relaes constitudas por conexes.

    A teoria sistmica prope uma mudana do modelo linear do pensamento cientfico (padro causa-efeito) pelo modelo circular (padro interativo). Seguindo esse raciocnio, os acontecimentos que envolvem a vida cotidiana no so possveis de serem explicados pela referncia casual ou em funo de decises e aes individuais, mas em decorrncia da ao dos sistemas scio-culturais, em interao.

    Sendo assim, os problemas e os desafios do dia-a-dia devem ser percebidos como sistmicos, o que significa que esto interconectados e so interdependentes em seus contextos.

    Para Capra (1982, p.260), a concepo sistmica v o mundo em termos de relaes de integrao. Os sistemas so totalidades, cujas propriedades no podem ser reduzidas s unidades menores.

    Entendendo sistema como um todo organizado formado por elementos interdependentes, os sistemas abertos, a fim de permanecerem vivos, interagem

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    com o meio exterior e processam-se atravs de trocas de energia e/ou informaes atravs dos canais de comunicao. Uma mquina, uma bactria, um ser humano, as comunidades, so exemplos de sistemas abertos.

    De acordo com Capra (2000), a compreenso de sistemas passa a englobar tanto organismos vivos como organizaes sociais, significando um todo integrado cujas propriedades essenciais surgem das relaes entre suas partes. O pensar sistmico parte, ento, da compreenso de um fenmeno dentro do contexto de um todo maior.

    Sistema, conforme Barreto (2005, p.166), pode ser definido como um complexo de elementos em interaes interdependentes que organizam um todo e que tm funcionamento prprio. Da, definem-se os sistemas humanos como complexos, abertos a transformaes vindas da sua prpria histria e dos contextos de vida, numa teia de inter-relaes.

    A abordagem sistmica encara o universo como uma rede de sistemas onde esto integrados e buscam relaes com outros sistemas/ subsistemas/ supra-sistemas. E aponta o autor que cada sistema exerce auto-regulao visando manuteno do seu equilbrio. Essa auto-regulao implica a capacidade de mudar, como forma de adaptao a alteraes do meio exterior.

    Sobre isso, Barreto (2005, p.179) diz : Todo sistema tem a capacidade de proteger-se, de reequilibrar-se e de crescer em uma ao interna que chamamos de autoproteo, de auto-equilbrio e de desenvolvimento prprio. prprio do sistema lutar para manter sua organizao e autonomia.

    Qualquer problema est inserido num contexto complexo, de maneira que o campo de interveno na Terapia Comunitria baseado na abordagem sistmica entendida como uma maneira de abordar, de ver, de situar, de pensar um problema em relao ao seu contexto (BARRETO, 2005).

    A viso sistmica aponta que as propriedades essenciais de um sistema so propriedades do todo, que surgem das interaes e das relaes entre as partes. Assim, a natureza do todo diferente da mera soma de suas partes. Os sistemas vivos so totalidades integradas cujas propriedades no podem ser reduzidas s partes menores (CAPRA, 2000).

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    Considerando-se que tudo est interligado e que cada parte influencia a outra, os problemas e as crises s podem ser entendidos quando percebidos como partes conectadas a uma rede complexa que relaciona as pessoas num todo que envolve corpo, mente e emoes e a sociedade (BARRETO, 2005).

    A Terapia Comunitria apia-se no pensamento sistmico como mecanismo de interveno na comunidade e no indivduo, utilizando a teia infinita de padres interconexos que permite ao grupo a reflexo dos problemas em todos os ngulos de um determinado contexto.

    A abordagem sistmica, na Terapia Comunitria, a comunidade e a famlia so vistas como sistemas que seguem os princpios da circularidade, causalidade circular, retroalimentao, totalidade e no-somatividade.

    A noo de totalidade, sem se perder de vista as vrias partes do conjunto a qual esto interligados, permite compreender os mecanismos de auto-regulao, proteo e crescimento dos sistemas sociais alm de vivenciar a noo de co-responsabilidade (BARRETO, 2005).

    A teoria Geral dos Sistemas totalizante j que os sistemas no podem ser entendidos pela anlise separada de cada uma das suas partes, ficando claro, ento, que a teoria est baseada na compreenso da interdependncia e na integrao dos fatores.

    Os membros de um sistema formam um circuito de interao, onde a retro-alimentao d-se pelo enfoque circular baseado na reciprocidade dos fatores envolvidos (CAPRA, 2000).

    Desse modo, as pessoas que vivenciam situaes-problema tornam-se co-responsveis e so estimuladas a refletir sobre o seu papel. Os acontecimentos passam a ser entendidos olhando-se o contexto e no como a soma de suas partes.

    Na causalidade circular, o sintoma no teria uma causa, mas uma funo com valor de comunicao. Assim, a incorporao da causalidade circular introduz, no sistema, um processo de alimentao que circula e onde tudo se relaciona, estabelecendo-se o compromisso pela mudana e pela transformao do todo sistmico (BARRETO, 2005).

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    As famlias, o indivduo, a comunidade, a partir do pensamento sistmico, passam a ser vistos como parte de um complexo em que cada membro influi e influenciado por outro. O ser humano, nessa perspectiva, no um ser isolado, mas, sim, membro ativo e reativo dos grupos sociais.

    Na Terapia Comunitria, atravs da abordagem sistmica, os contextos social e cultural so valorizados e interligados na compreenso da resoluo dos problemas familiares e comunitrios.

    O pensamento sistmico centrado nos processos e no nas estruturas apresenta, ento, a dimenso para se poder entender o princpio e o caminho para uma evoluo, delineando uma tnue aproximao do sistmico integrativo, que permite a busca do equilbrio nas sociedades modernas e a prtica de uma cincia com tecnologias mais humanizadas.

    2.2.2 A Teoria da Comunicao Antes de tudo, vamos definir comunicao como uma palavra que vem do

    latim (communicatione) e significa compartilhar elementos de comportamentos, num processo onde o indivduo suscita uma resposta num outro indivduo, isto , emite um estmulo favorecendo uma alterao/resposta no receptor. A comunicao um meio de transmisso de idias, emoo e valores, por meio de um sistema de smbolos produzidos (HOEBEL; FROST, 1995).

    A comunicao vem de um processo participativo dos indivduos ou grupos sociais nas experincias dos outros, usando elementos comuns. Assim, a teoria da comunicao pode ser percebida, de acordo com Barreto (2005), como um elemento de unio entre os indivduos, a famlia e a sociedade.

    Dessa maneira, comunicar significa participar, trocar informaes, tornar comuns aos outros, idias e estados de espritos. A comunicao pode ainda ser entendida como uma atividade educativa, j que h uma transmisso de ensinamentos, que moldam a disposio mental entre os que se comunicam.

    Como os homens tm necessidade de estar em constante relao com o mundo, com as informaes e notcias, usa-se, ento, a comunicao como mediadora na interao e na construo social.

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    Podemos entender a comunicao como um veculo de transmisso de cultura ou como fomentadora cultural de cada indivduo. Sobre isso Hoebel; Frost (1995) afirmam que sem a comunicao a cultura humana seria totalmente impossvel.

    Segundo Camarotti et al (2005) o referencial da teoria da comunicao surgiu com os estudos de Watzlawik, autor do livro Pragmtica da Comunicao Humana e com as idias do antroplogo Gregory Bateson que fundamentou o conceito de informao para as prticas relacionais e circulares.

    Assim, de acordo com Watzlawik (1967 apud BARRETO, 2005) os axiomas da comunicao, que interferem diretamente nos processos comportamentais, so:

    1. Todo comportamento comunicao; 2. Toda comunicao tem dois lados: o contedo e a relao; 3. Toda comunicao depende da pontuao; 4. Toda comunicao tem dois aspectos: a comunicao verbal e a no

    verbal; 5. Toda comunicao entre as pessoas feita da forma simtrica ou

    complementar. Nos encontros de terapia, estimula-se a fala das pessoas, sobre seus

    problemas, suas inquietaes, as perturbaes cotidianas ajudando o indivduo/grupo a expressar algo no dito, buscando uma compreenso dos sintomas, j que grande parte do sofrimento humano provm da falta ou da m comunicao.

    Compreendendo a queixa, o sofrimento, o sintoma como forma de comunicao, a Terapia Comunitria utiliza o ditado popular quando a boca cala os rgos falam, para significar que o sintoma est dizendo algo da alma, da vida. Entende-se que esses sintomas, as situaes de violncia, enfim, os problemas apresentados so expresses de conflitos das interaes com o meio, expressando, dessa maneira, um desequilbrio familiar e/ou social.

    Destaca-se o papel da comunicao como instrumento de transmisso de significados entre as pessoas, objetivando sua integrao na organizao social,

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    alm da transformao pessoal e coletiva. Devemos ficar alertas aos riscos e efeitos nocivos de uma comunicao usada de forma ambgua (BARRETO, 2005).

    Os pensamentos, as atitudes saem de toda convivncia humana por ligaes complexas, sendo necessrio um conjunto de cdigos compreensveis e um uso adequado da comunicao.

    Todo ato verbal ou no, individual ou grupal tem vrias possibilidades de significados e sentidos dentro da comunicao, que podem estar ligados ao comportamento e busca de cada ser humano pela conscincia de existir e pertencer, de ser confirmado como individuo e cidado (BARRETO, 2005).

    Sobre os atos no-verbais, Weil; Tompakow (1986) afirmam que a linguagem de nosso corpo expressa os nossos pensamentos, nossas emoes, nossas reaes instintivas, nossa personalidade.

    Camarotti et al (2005) afirmam que os homens, ao se comunicarem, ganham conscincia do seu prprio eu e passam a fazer parte viva de sua prpria realidade.

    Sendo assim, na Terapia Comunitria, atravs da comunicao, apropriamo-nos mutuamente das experincias do outro e ampliamos nossas possibilidades de resignificao e de transformao (BARRETO, 2005; CAMAROTTI et al, 2005).

    2.2.3 Pedagogia de Paulo Freire

    A pedagogia proposta pelo educador pernambucano Paulo Freire parte da crtica ao modelo tradicional de educao considerada, por ele, desumanizante, na medida em que ignora a experincia de vida dos educandos, bem como os contextos em que vivem.

    Essa educao tradicional fundamentada na relao vertical entre educador e educando impede o desenvolvimento da conscincia crtico-reflexiva, necessria insero dos educandos como sujeitos scio-histrico-culturais.

    Paulo Freire (2005) repreende a atitude dos educadores que se consideram sujeitos-narradores de saberes e que consideram o educando um mero objeto paciente-ouvinte. Nessa relao, o agente educador deposita e

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    enche os educandos de contedos desconectados da totalidade e de palavras sem ao, sem significao. Logo, nesse modelo no h criatividade, no h transformao e no h construo do saber.

    Essa prtica chamada por Freire (2005) de educao bancria, ou seja, onde o educador transfere seus valores e deposita seus conhecimentos nos educandos, desconhecendo sua realidade e o seu contexto, constitui-se numa ideologia de opresso, negando a educao e o conhecimento como processo de busca, favorecendo somente a alienao e a ignorncia.

    O que recomenda Freire (2005) uma ruptura dessa educao assistencialista, que se baseia nos homens como depsitos de contedos e aponta uma prtica de educao libertadora, onde se incentiva a conscincia crtica, a ao transformadora e admite-se educador-educando como sujeitos do processo, num crescimento constante e desvelamento da realidade.

    No mtodo proposto por Paulo Freire, o conhecimento no est separado do contexto de vida, mas centra-se no sujeito, permitindo a humanizao do processo educativo, a apropriao de conhecimentos e a transformao das relaes sociais. De acordo com Barreto (2005, p. XXV), o mtodo libertador de Paulo Freire um chamado coletivo para criar e recriar, fazer e refazer atravs da ao e reflexo. Descobrindo novos conhecimentos e novas formas de intervir na realidade, os indivduos tornam-se sujeitos da histria e no meros objetos.

    A educao, como prtica da liberdade, prxis, que implica ao e reflexo dos homens sobre o mundo para transform-lo. A liberdade que uma conquista e no uma doao exige uma permanente busca e abre caminhos para os homens aprenderem a escrever sua vida como autores e como testemunhas de sua histria (FREIRE, 2005).

    A pedagogia problematizadora d-se pela luta da libertao do homem que alcanando a conscincia de sua realidade, batalha pela transformao dessa situao, com base no dilogo, na colaborao, na unio e na organizao.

    Por meio da permanente ao transformadora da realidade, os homens criam as suas histrias e se fazem seres histrico-sociais. O dilogo crtico e reflexivo supe a ao e a luta pela libertao, fato que apresenta um carter iniludvel prtica.

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    Sobre a dialogicidade, como ferramenta da transformao e apropriao de conhecimentos, Freire (2005, p 90) afirma:

    A existncia humana no pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que homens transformam o mundo. Existir pronunciar o mundo, modific-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. No no silncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ao-reflexo.

    No mtodo libertador, o educador deve gostar de seu trabalho e identificar-se, ao desenvolv-lo, assim como na Terapia Comunitria, onde o terapeuta comunitrio deve ter uma viso contextual e uma conscincia de seu papel como ser scio-histrico que produz e promove mudanas.

    O terapeuta, apoiado nas competncias das pessoas, tem o papel de circular as informaes, suscitar a capacidade teraputica que emerge do prprio grupo. Na Terapia Comunitria, a valorizao das experincias individuais parte do problema e parte da soluo (BARRETO, 2005).

    Vemos, dessa forma, que, apoiada no processo educativo proposto por Paulo Freire, onde, medida que se ensina, tambm se aprende, a terapia torna-se uma ocasio para o terapeuta crescer com o grupo e fomentar a descoberta dos recursos individuais e comunitrios.

    2.2.4 Antropologia cultural

    A antropologia uma cincia que investiga as origens, o desenvolvimento e as semelhanas das sociedades humanas, bem como as diferenas entre elas. A palavra antropologia deriva-se de duas palavras gregas: anthropos que significa homem e logia que significa estudo. A antropologia, ento, busca conhecer a humanidade, compreender os problemas humanos e o modo de enfrent-los (HOEBEL; FROST, 1995).

    O objetivo da antropologia o estudo da humanidade como um todo. Nenhuma parte pode ser entendida plenamente se separada do todo, como

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    tambm, o todo no pode ser percebido com exatido sem o conhecimento profundo das partes (Morin, 1979).

    O ser humano nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. A antropologia constri seu saber mediante a reflexo do homem sobre o homem e sua sociedade, tornando o homem, no sculo XVIII, objeto de conhecimento e no mais a natureza. Desse modo, aquilo que tomvamos como natural em ns mesmos realmente cultural (LAPLANTINE, 1995).

    Ainda, segundo Laplantine (1995, p.22), a abordagem antropolgica provoca uma verdadeira revoluo epistemolgica que comea por uma revoluo do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a idia de que existe um centro do mundo, e, correlativamente, uma ampliao do saber e mutao de si mesmo (grifo meu).

    O pensamento antropolgico atual reconhece a variao cultural, ou seja, a capacidade dos seres humanos para elaborar lnguas, costumes, instituies e buscar a compreenso pluralizada da humanidade.

    Cada comunidade possui sua cultura distintiva. Quando comparados os comportamentos dos membros de dada comunidade, verificam-se diferenas, em muitos aspectos, dos membros de outras comunidades.

    Para se exemplificar o que se disse acima, ser citado o olhar antropolgico sobre o evento da gravidez, na ilha de Trobriand, no Sul do Pacifico, descrito por Hoebel; Frost (1995). Os trobriandos so socialmente organizados em cls matrilineares. A gravidez resulta na entrada, no corpo da mulher, do esprito (balom) de um antepassado morto, do cl matrilinear. Dessa crena decorrem dois postulados: o pai no est relacionado geneticamente com o filho e a pessoa pertence somente ao cl de sua me.

    Portanto, a antropologia cultural dedica-se ao estudo dos comportamentos dos grupos humanos, das origens das religies, dos costumes e convenes sociais, do desenvolvimento tcnico e dos relacionamentos familiares.

    De acordo com Hoebel; Frost, (1995), a antropologia cultural indispensvel para a Sade Pblica, j que busca mudar os mtodos para uma sociedade conseguir alimentos, modificar hbitos alimentares, prticas de

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    saneamento, com a finalidade de melhorar a sade e diminuir o sofrimento fsico e mental dos indivduos.

    A antropologia cultural, para Barreto (2005), ressalta os valores culturais como fatores importantes para a formao da identidade do indivduo e do grupo, compreendendo-a como uma rea que d subsdio para a construo das redes sociais que incluem aes intersetoriais, interinstitucionais, valorizao dos recursos locais, fortalecimento de vnculos e apoio dinmica familiar.

    Laplantine (1995, p.21) afirma: presos a uma nica cultura, somos no apenas cegos dos outros, mas mopes quando se trata da nossa. A experincia da alteridade nos faz enxergar aquilo que no conseguimos imaginar mediante nossa dificuldade em fixar nossa ateno no que habitual e crer que somos uma cultura possvel, entre tantas outras.

    A cultura manifesta-se nas estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas, constitutivas da prpria personalidade e no apenas na diversidade de comportamentos (alimentao, hbitos, vestimentas ... ). Dessa maneira, a cultura qual pertencemos realiza uma seleo enquanto as instituies sociais pretendem, inconscientemente, fazer com que os indivduos se conformem aos valores prprios de cada cultura (LAPLANTINE, 1995).

    H vrias maneiras para se definir o que cultura. Segundo Hoebel; Frost (1995), cultura o sistema integrado de padres aprendidos que caracterizam os membros de uma sociedade. A cultura o resultado da inveno social e transmitida e aprendida por meio da comunicao e no o resultado de herana biolgica.

    Cultura, de acordo com Laplantine (1995), o conjunto dos comportamentos, saberes caractersticos de um grupo humano, sendo essas atividades adquiridas atravs de um processo de aprendizagem e transmitidas ao conjunto de seus membros, atravs do ngulo dos processos de contato, difuso, interao e aculturao (adoo das normas de uma cultura por outra).

    J, para Morin (1979), cultura constitui-se num sistema generativo de alta complexidade que deve ser transmitido, ensinado, aprendido e reproduzido em cada novo indivduo, para poder autoperpetuar-se e perpetuar a complexidade social. O ser humano , sob essa tica, um ser biopsicossocial, que cria e est

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    inserido em uma cultura e seu comportamento influenciado por ela. Como afirma Morin (1979, p.93), o homem um ser cultural por natureza pelo fato de que um ser natural por cultura.

    A cultura, ainda segundo Morin (1979), indispensvel para produzir o homem, j que ela contm informao organizacional cada vez mais rica, mas o homem no se reduz apenas cultura. Percebe-se, ento, que nossas atividades biolgicas mais elementares, como o comer, o beber e ainda a morte e o sexo so embebidas de normas, valores, smbolos, mitos, ritos, ou seja, de tudo o que h de mais especificamente cultural.

    O ser humano possuidor de contradies compreendidas pelo aumento da desordem e da incerteza no seio de um sistema (seja ele social ou individual), mas o prprio sistema complexo, em crise, desencadeia a busca de solues novas. Portanto, o ser humano fonte de seus fracassos, ao mesmo tempo, de seus sucessos e suas invenes (MORIN, 1979).

    O pensamento de Maffesoli (1998) desmistifica o homem numa perspectiva de produto da vida cotidiana. Sobre esse pensamento maffesoliano, Landim et al (2003) acrescentam: A dinmica do cotidiano, a riqueza do conhecimento comum, da sabedoria popular, ultrapassam toda e qualquer construo que vise ao enquadramento, reduo ou simplificao da vida social.

    Para Morin (1979), o homem ento um ser de uma afetividade imensa e instvel, que sorri, chora, ama e se angustia; um ser gozador, exttico, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginrio, que se alimenta de iluses, que segrega o mito e a magia, um ser possudo pelos espritos e deuses; um ser subjetivo, cujas relaes com o mundo objetivo so incertas; um ser submetido ao erro, desordem, j que a verdade humana comporta o erro e a ordem humana comporta a desordem.

    Prosseguindo, o autor esclarece que, embora todos os homens sejam da mesma espcie homo sapiens, o prprio homem nega essa condio e passa a no reconhecer seu semelhante no estrangeiro ou monopolizando a natureza humana. A explorao do homem pelo homem uma das grandes invenes da sociedade histrica.

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    A instituio das divises radicais entre as foras de trabalho de execuo e de deciso repercute sobre a cultura de cada grupo socioprofissional, determinando diferenas na vida cotidiana. Apesar dessa dispora cultural, todos os seres humanos se exprimem fundamentalmente pelo sorriso, pelas lgrimas (MORIN, 1979).

    Nesse contexto, a Terapia Comunitria faz o resgate da cultura como o conjunto de realizaes de um povo, como base na maneira de pensar, discernir valores e opes para o cotidiano. Entender a cultura como o arcabouo da nossa identidade, assumir a prpria identidade cultural podem representar avano na incluso social e no sentimento de pertencimento.

    Inserida na comunidade, a Terapia Comunitria nos faz apreender o conceito de cultura como descrito por Dias (2002, p. 192): uma rede de smbolos e significados elaborados pelos seres humanos, abrangendo estruturas e significados pelos quais os indivduos do forma s suas experincias.

    A antropologia cultural, como eixo temtico na Terapia Comunitria, busca compreender os significados que os prprios indivduos atribuem a seu comportamento, sendo de grande interesse para a vida cotidiana, seus desafios, alegrias e hbitos.

    2.2.5 Resilincia

    De acordo com Ferreira (1999), resilincia uma palavra derivada do ingls (resilience) e utilizada na fsica como uma propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado devolvida, quando cessa a tenso causadora de uma deformao elstica. o caso do elstico e da vara de salto em altura, por exemplo.

    Nas cincias humanas, resilincia a capacidade de resistncia e perseverana que o ser humano tem em superar situaes adversas com o mnimo de disfuncionalidade, adaptando-se ou ajustando-se nova situao.

    Resilincia um conceito fundamental no paradigma da Terapia Comunitria e aponta como premissa, conforme Barreto (2005), a carncia gera competncia e o sofrimento gera capacitao. O termo tem sido entendido como

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    capacidade das pessoas aprenderem com a experincia de vida, armazenando conhecimento e possibilidades de soluo.

    A resilincia apresenta, ento, as seguintes caractersticas na Terapia Comunitria: valorizao da experincia pessoal e estimulao da capacidade de aprendizado das pessoas; interao entre o indivduo e seu ambiente; esprito construtivo e senso de humor como forma de transformar o trgico em ldico; valorizao da competncia dos indivduos e da comunidade (CAMAROTTI et al, 2005).

    Dessa forma, evidencia-se que a histria pessoal e familiar de cada indivduo funciona como fonte de conhecimento que confere segurana, competncia e um saber, j que as crises e as vitrias de cada um so a matria-prima do autoconhecimento e da auto-aceitao, alm de toda vivncia tornar-se fonte de conhecimento, quando articulada com outras fontes de saber (BARRETO, 2005).

    Sobre esse aspecto, Barreto (2005, p.106) diz: Na Terapia Comunitria seus participantes so verdadeiros especialistas do sofrimento, permitindo se tornarem especialistas na superao dos obstculos. Nesse contexto, a Terapia Comunitria representa um meio de identificar e suscitar as foras e as capacidades individuais, familiares e das comunidades, para que, atravs dos recursos disponveis, os indivduos possam encontrar as suas prprias solues e superar as dificuldades impostas pelo meio e pelas contradies da sociedade.

    As carncias, os obstculos e os sofrimentos superados transformam-se em sensibilidade e habilidades, gerando aes reparadoras de outros sofrimentos.

    Essa capacidade de superar as adversidades resilincia gera no indivduo e na comunidade estratgias de enfrentamentos que vo reforar a experincia individual e gerar o empoderamento1, ou seja, um poder para realizar aes, tomar decises e promover uma melhoria na qualidade de vida.

    Vasconcelos (2003, p. 20) entende o sentido de empoderamento como aumento do poder e autonomia pessoal e coletiva de indivduos e grupos sociais nas relaes interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relaes de opresso, dominao e discriminao social.

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    Empoderamento , ento, um processo contnuo que fortalece a autoconfiana dos grupos e do indivduo e os capacita para a articulao de seus interesses e para a participao na comunidade e que lhes facilita o acesso aos recursos disponveis e o controle sobre eles. Nesse sentido, o empoderamento est baseado na autonomia, no aumento de poder, na autodeterminao, na auto-organizao, assim como na participao e na co-responsabilidade das aes.

    Apesar de todo o avano tecnolgico na humanidade, a busca da felicidade e a luta por justia social ainda so intrnsecos ao ser humano, que demanda fora e capacidade para resistir as adversidades do cotidiano, sendo a resilincia o que o faz ter sade mental para enfrentar os desafios da vida.

    Quando no conseguimos fazer rupturas, ver solues alm da crise, tornamos-nos doentes. A mudana faz parte do processo vital, j que somos sistemas auto-organizveis e temos a capacidade de nos reestruturar depois das crises.

    Para nosso crescimento pessoal temos que reaprender constantemente e buscar foras (interior ou exterior) para a superao das inquietaes e dos desafios do dia-a-dia, mas, vtimas do modelo cultural herdado, h inmeras pessoas angustiadas, amedrontadas, desanimadas, sem rede de apoio, alienadas em momentos de conflitos, de decises difceis e de perdas.

    A auto-estima, a autoconfiana no so elementos estticos no gerenciamento de nossa vida, razo pela qual capacidade de resilincia oscila e exatamente nessa hora que devemos buscar foras, tecer redes de solidariedade para restaurar nosso equilbrio e empoderar-nos. A resilincia tem a ver com os vnculos na dinmica familiar e social.

    Quando simplesmente negamos as dores emocionais, podemos sentir dores fsicas e at adoecer o corpo (organismo). Como a matriz est nas emoes, quando falamos podemos alivi-las e curar nossas dores (dor fsica e dor da alma as perdas, lutos, vazio existencial, a falta de pertena, ausncia de crena, conflitos relacionais).

    Barreto (2005, p.104) afirma que [...] medida que as pessoas falam de seus sofrimentos e dizem o que tm feito para resolv-los, procura-se ressaltar as estratgias utilizadas por cada individuo. Descobre-se que onde houve um

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    sofrimento se construiu um conhecimento que permitiu sua superao. A socializao desse saber gera um movimento dinmico entre a leitura vertical de si mesmo e a leitura horizontal com o outro. Ao ouvir a experincia do outro, cada um se reporta a sua prpria, permitindo-lhe fazer descobertas, tomar conscincia e descobrir que cada pessoa tem sua trajetria e produz seu saber (grifo nosso).

    Temos visto que os recursos empregados pelas pessoas resilientes, na Terapia Comunitria, baseiam-se no dilogo reflexivo, no desenvolvimento da auto-estima, da autonomia, da criatividade, da f, alm de reforarem o vnculo com suas histrias pessoais.

    Nos encontros, o terapeuta comunitrio valoriza esses recursos nos indivduos, reconhecendo o esforo do processo resiliente e ainda buscando despertar a guia que se esconde em cada um deles como fala Boff (2003) em seu livro A guia e a galinha.

    A integrao e o aprofundamento terico da Terapia Comunitria, nos servios de sade tm demonstrado que a promoo da fala, a socializao das situaes de perda e sofrimento tm sido um veculo na sedimentao da resilincia, viabilizando a construo de redes solidrias e favorecendo a canalizao do sofrimento em uma instncia palpvel e identificvel, gerando uma referncia de alteridade grupal (CAMAROTTI, 2005).

    Considerando-se que toda comunidade constitui-se num sistema de inter-relaes, dispe de mecanismos reguladores de seus conflitos (auto-regulveis) atravs da Terapia Comunitria prope-se partilhar solues e mobilizar os recursos scio-culturais na resoluo dos problemas e na construo solidria da cidadania (BARRETO, 2005).

    Como afirma o autor, procurando problematizar o contexto, somos capazes de transformar o caos e superar a crise. Portanto, o nosso crescimento vem quando questionamos nossos modelos, deciframos os smbolos e os significados presentes na comunicao com os outros, identificamos os sinais, ao tentar entender nossas atitudes e, assim, despertar a reflexo e a descoberta dos valores pessoais.

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    2.3 Os caminhos da Terapia Comunitria A Terapia Comunitria surgiu no fim da dcada de 1980, na Favela de

    Pirambu - Fortaleza e foi criada por Adalberto Barreto, psiquiatra, antroplogo, telogo e professor da Universidade Federal do Cear.

    Tendo aproximadamente 20 anos, uma experincia que j vem ocorrendo em vrios municpios de distintos estados brasileiros, necessitando ser divulgada e reconhecida como uma prtica de cuidado sade que se fundamenta nos conceitos de promoo da sade e preveno do sofrimento psquico.

    Hoje a Terapia Comunitria est com 21 Plos Formadores e de Multiplicao, tendo sido formados cerca de 8500 terapeutas comunitrios. A Terapia Comunitria comea tambm a ser desenvolvida no exterior, com experincias na Frana, Sua, sendo conhecida, tambm, em pases, como o Mxico, e na Europa (ABRATECOM, 2005).

    A formao dos terapeutas comunitrios, inicialmente, foi vinculada pela Pastoral da Criana, rgo da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, sendo utilizada como instrumento de abordagem aos familiares de crianas carentes assistidos por aquela entidade. Atualmente, o MISMEC (Movimento Integrado de Sade Mental Comunitria) est ampliando-se para vrios estados brasileiros, com inmeros grupos de formao, promovidos por prefeituras, universidades e ONGs (ABRATECOM, 2005).

    A Terapia Comunitria, de acordo com Barreto (2005), constitui-se de um espao pblico aberto, de ajuda mtua numa abordagem grupal, onde se aborda tanto o individuo na sua singularidade como no seu contexto social, familiar e cultural. , portanto, um espao para se falar de preocupaes cotidianas.

    Atravs da escuta das histrias de vida de cada pessoa, todos se tornam co-responsveis pela superao dos desafios do dia-a-dia, despertando para a solidariedade, a partilha, valorizando-se a dinmica interna de cada indivduo e sua capacidade de transformao individual e coletiva, promovendo uma cultura de paz.

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    3 A TERAPIA COMUNITRIA DENTRO DA ESCOLA PORTO ALEGRE 3.1 Por que a Escola Porto Alegre?

    Segundo pesquisa realizada entre diversas parcerias institucionais com REDE URB-AL 10 para Porto Alegre , em apresentao dos Indicadores de Pobreza, mostro aqui com um pouco mais de detalhamento o desempenho relativo s regies de Porto Alegre. No decorrer do relatrio, fica evidenciado que existem heterogeneidades dentro da cidade, no que diz respeito ao fenmeno da pobreza e da extrema pobreza. Neste sentido, tem-se a seguir uma tabela que resume as informaes mais importantes relativas ao Indicador de Pobreza Extrema.

    Tabela 1 Classificao das Regies no Indicador de Pobreza Extrema

    Regies % de

    Pobres Extremos

    IPE mdio Rank IPE

    mdio

    Humait Navegantes Ilhas 36,0% 0,2039 8 Noroeste 38,4% 0,1938 11 Leste 30,1% 0,1976 9 Lomba do Pinheiro 30,9% 0,1752 15 Norte 27,7% 0,1839 13 Nordeste 44,8% 0,2668 4 Partenon 36,6% 0,1935 12 Restinga 45,4% 0,2669 3 Glria 25,0% 0,1627 16 Cruzeiro 30,9% 0,2056 7 Cristal 47,5% 0,2759 2 Centro-Sul 27,3% 0,1807 14 Extremo-Sul 30,3% 0,1964 10 Eixo-Baltazar 36,8% 0,2294 5 Sul 32,9% 0,2246 6 Centro 49,1% 0,3251 1 Porto Alegre 34,3% 0,2131 -

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    Percebo que 10 regies encontram-se em situao relativamente melhor do que a cidade como um todo. Tal fato sugere que as 6 regies com desempenho pior do que a mdia, acumulam um percentual elevado da amostra. A regio Centro, onde se localiza a Escola Porto Alegre, foi a que obteve pior desempenho, classificada como nmero 1 no ranking da pobreza extrema. Na regio Centro a proporo de entrevistados em situao de pobreza extrema de 49,1%, valor superior ao encontrado para a cidade de Porto Alegre (34,3%). Salienta-se que, dentre as 6 dimenses consideradas, a que teve pior desempenho nesta regio foi a Varivel Frio, que atingiu o valor de 0.47. J a dimenso com melhor desempenho foi a Varivel Esmola, com indicador de apenas 0.08. O grfico a seguir mostra mais detalhadamente a distribuio da amostra.

    Dentro da desigualdade social mostrada acima e dentro da perspectiva comunitria que se encontra a Terapia Comunitria, com suas possibilidades, com sua subjetividade, com seu modo de interferir na vida dos sujeitos,levando-os a ressignificar sua relao com a rua, e que se justifica a implantao deste projeto de TC na EPA.

    3.2 Escola Porto Alegre A Escola Porto Alegre foi criada em 1995 e faz parte da rede municipal de

    ensino fundamental - anos iniciais (EJA) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Ela tem como objetivo garantir escolarizao para crianas e adolescentes com histria de vida nas ruas centrais da cidade. uma escola que se caracteriza por ser um espao de acolhimento, socializao e construo de conhecimentos.

    O modo de ateno desenvolvido pela escola, que traz os objetivos bsicos do ensino na EPA, apresenta um plano de ao interligado com a construo de projetos de vida e procura capacitar seus alunos para a construo de uma vida melhor, longe das ruas.

    uma escola que, atravs da sua metodologia de trabalho, tem por objetivo principal a ressignificao do espao interno e externo destes jovens, que

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    vivem o desamparo das ruas, atravs de uma proposta de emancipao pessoal e social.

    Todo o trabalho da escola tem como perspectiva o fortalecimento dos projetos de vida de seus estudantes e, para tanto, estabelece um plano de ao que, em conjunto com o sujeito de sua interveno, contemple cuidados consigo e com o outro. Buscando dar conta desse desafio, a EPA contemplou em seu trabalho pedaggico uma questo que central para esse pblico: a sobrevivncia.

    Segundo Adalberto Barreto, se eu no me envolvo, eu no me desenvolvo e, baseado nisso, a EPA, atravs da Professora Malu Reis, implantou e desenvolve o projeto de TC como trabalho educativo de complemento curricular.

    Sua Metodologia tem como proposta de valor o Acolhimento e Acompanhamento, fundamentais para esta populao to desamparada socialmente. Tem ainda como princpios bsicos do seu trabalho conceitos como reduo de danos, responsabilizao e reparao de danos.

    3.3 Cenrio onde desenvolvida a atividade

    O Grupo constitudo por adolescentes e jovens que possuem escolaridade acima daquela oferecida pela EPA e/ou jovens que estejam passando pelo processo de transio entre a adolescncia e juventude.

    A incluso da Terapia Comunitria para esse Grupo, com uma das atividades sistemticas, dentro da agenda semanal, teve como objetivo oportunizar espaos para reflexo do processo de amadurecimento, tendo em vista novos projetos de vida.

    Foram oferecidas no perodo de maro a julho de 2006 12 sesses, tendo a participao de 13 jovens e 02 adultos, com uma freqncia mdia de oito participantes em cada sesso. No perodo de agosto a novembro foram 11 sesses, tendo a participao de 10 jovens e 02 adultos, com uma freqncia mdia de 5 participantes em cada sesso.3

    3 Retirado da revista Palavras da EPA, produzida por professores e alunos da escola.

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    Observando a roda de TC, percebi que a Terapia Comunitria, primeira vista, parece um grupo de ajuda no estilo dos Alcolicos Annimos. Em uma grande roda, as pessoas contam seus problemas enquanto o terapeuta faz uma lista das queixas. O grupo ento vota o tema do dia. A partir da, quem viveu a dor revela como se livrou dela. Adaptaes de msicas populares animam as sesses. No ritmo de ''Peixe Vivo'', cantam: Como pode um indivduo viver sempre em agonia?/Como poderei viver?/Sem a minha, sem a tua, sem a nossa terapia?

    3.3.1 Temticas que apareceram nas sesses 1 semestre: Uso de drogas vontade de largar drogas questes relacionadas sade (pessoal ou familiar) religiosidade identidade (como eu sou e como me vem) entrar no mundo adulto perdas e ganhos em estar nos espaos protegidos escolhas relao com famlia violncia (sofrida e exercida) traio frustrao cuidado controle / autocontrole responsabilidade compromisso escolha de caminhos. 2 semestre: Sexualidade, preconceito, diferenas de cultura, parceria, confiana, importncia do cuidado, marcas da EPA na vida dos adolescentes e jovens, ingresso no mundo adulto, conhecimento, emoes e histria de vida. No 1 semestre foram utilizadas algumas dinmicas para reintroduzir a Terapia Comunitria, uma vez que somente alguns adolescentes e jovens j conheciam a atividade. Mas, a partir da sistematicidade dos encontros, as falas foram fluindo e nas ltimas sesses vrios pautaram problemas, demonstrando a confiana e o vnculo necessrio para desabafar. Por solicitao dos adolescentes e jovens, no 2 semestre foram utilizadas algumas dinmicas na Terapia Comunitria com o objetivo de trabalhar algumas temticas 23 especficas (drogas, sentimentos e emoes, histria de vida). Uma dessas dinmicas, a que trabalhou a temtica da droga, oportunizou que os participantes pudessem expressar seu saber e confront-lo com o conhecimento cientfico. Cabe destacar uma fala de um dos jovens: Bah, a primeira vez que me perguntam algo que eu sei. Na escola sempre perguntam o que a gente no sabe.

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    3.3.2 Avaliao das atividades de TC Avaliando toda a trajetria dessa atividade durante o ano de 2006, pode-se constatar que este espao tem contribudo para a finalidade que foi pensada, uma vez que tem oportunizado a reflexo sobre a transio para o mundo adulto e suas implicaes. Alm disso, nas falas dos jovens isso fica bem demarcado, quando nas Assemblias da Turma e mesmo nas Gerais, apresentam propostas de sua ampliao e oferta para todo o coletivo da EPA.4

    3.4 A TC dentro da Escola Porto Alegre

    A Terapia Comunitria, segundo os adolescentes e jovens dessa escola, constitui-se num espao prazeroso para desabafar: bom a gente desabafar, sai aliviado fala de um adolescente sobre a Terapia. Tambm possibilita a (re)construo da fala enquanto possibilidade de (re)elaborao dos conflitos vivenciados: Saber conversar nas horas difceis fala de um jovem sobre o que aprendeu na Terapia. A Terapia Comunitria uma estratgia para a construo da cidadania , uma vez que oportuniza o desvelamento das relaes sociais, atravs do processo de emancipao e simbolizao por parte dos sujeitos envolvidos.

    Mas quem so esses adolescentes e jovens, Por que buscam a rua e o delito? Como constroem suas subjetividades, seus sonhos, seus medos, seus valores, enfim, seus projetos de vida? O que buscam e o que esperam da Terapia Comunitria? Como a TC pode contribuir para que eles alterem seu modo de vida?

    A interveno proposta nas sesses de Terapia Comunitria, tem como objetivo oportunizar novos e coletivos espaos protegidos, de elaborao de experincias vividas por adolescentes e jovens, em especial proporcionar uma maior reflexo das situaes que envolvem sua relao com a rua e o ato infracional, investindo na ressignificao de suas histrias de vida, atravs do dilogo entre eles e sua rede de afetos e apoios.

    4 Retirado da revista Palavras da EPA, produzida por professores e alunos da escola.

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    A Terapia Comunitria (Terapia= Origem grega - acolher, ser caloroso, servir, atender; Comum + unidade= pessoas, famlias que tm algo em comum: excluso, sofrimentos, busca de solues, apoio recproco) uma partilha de experincias de vida de forma horizontal e circular; a comunidade torna-se espao de acolhimento e de cuidado. Para esses meninos, fazer parte da TC essencial, porque, entre tantos problemas e desamparo nas ruas, entre tanta misria e discriminao, entre tantas situaes de envolvimento com drogas, furtos e outras infraes, eles encontrar l um espao onde so acolhidos, onde o que eles sabem valorizado, onde suas experincias to individuais, to singulares, se tornam coletivas.

    Ter um espao onde possam falar e expor suas angstias sem ser julgados e sem receber conselhos que vm de cima, h mais liberdade para que eles sejam eles mesmos e se sintam como parte importante em uma sociedade que os deixou do lado de fora do processo. Sentir o olhar de cada adolescente sobre mim, e sentir que h confiana presente nesse olhar uma das maiores recompensas por participar desse trabalho.

    Cada um deles tem, nesses momentos, uma chance de comear a reescrever a histria de suas vidas, de se afastar dos pequenos delitos e das drogas, de dar mais um passo em direo a um futuro melhor. A lgica da horizontalizao do poder, de sentir que sua palavra vale alguma coisa, faz com que esse grupo de meninos e meninas tenha coragem de enfrentar seus medos, suas angstias e dores, que, antes da TC, se transformavam em doena. A boca calava e o corpo falava, adoecendo muito a cada dia. Essa teia de autocura operou milagres nessas vidas que acreditavam no ter valor nenhum.

    A terapia me fez o que sou hoje, no um homem adulto mas sim um adolescente que sou, mais maduro dedicado a Malu com suas dinmicas e as famosas cartas mgicas da terapia a dinmica que encabula os guri e quando fizemos a dinmica sobre a palavra sobre sexo porque temos que falar sobre algumas partes do corpo intimo pra min no novidade porque eu conheo a Malu faz tempo desde a casa harmonia. Ai uma dica pra quem t comeando a participar da terapia bom desabafar abrir seu corao existe um regra na terapia que nem uma caixa de ba seus segredos ou algum problema no sai da sala

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    exceto quando voc quer falar sobre alguma coisa muito seria da voc fala com a total privacidade o que Malu pode vai ajudar.

    Na terapia temos caf ch para esquentar o corpo e a bolacha para adoar a vida. A vida no doce, mas o que vale a inteno. (LOG)

    Participo da Terapia porque gosto. bom porque ela ajuda as pessoas a pensar. Eu gosto das dinmicas. A Terapia no deixa a pessoa na rua. Ela me ajudou a pensar, no incomodar as pessoas, respeitar. A Terapia boa porque ajuda a unir as pessoas. D felicidade e paz. (PGB)

    4. METODOLOGIA Esta pesquisa foi realizada com 20 dos 101 alunos matriculados na EPA,

    com idades entre 14 e 18 anos, dos quais 40 freqentam as sesses de TC. Eles vivem em situao de rua e tm a TC como porta de sada para muitas das situaes vividas.

    O perodo de observao, prtica e entrevistas comeou em dezembro de 2007 e se estendeu at abril de 2008. Entrevistei cada adolescente de forma individual, buscando respostas que revelassem o grau de satisfao de cada um deles em relao s sesses de TC. Esta pesquisa foi realizada com os alunos que se propuseram a participar dela, sem obrigatoriedade. Muitos deles no se sentiram prontos para responder as perguntas.

    A organizao e anlise dos dados foram baseadas na observao dos adolescentes durante as rodas de TC, que deu embasamento realizao da entrevista. Em segundo momento, esse processo se compreendeu em etapas de codificao dos registros coletados a partir dos conceitos de promoo da sade mental e emocional como metodologia na educao, validando o modelo de participao em grupo e responsabilidade dos sujeitos envolvidos nessa terapia e embasada na pesquisa bibliogrfica.

    As perguntas do questionrio foram as seguintes:

    * Esta escola tem a caracterstica peculiar de funcionar durante 12 meses no ano, 10 horas por dia, com matrculas dirias.

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    1. Quando se sente ofendido, magoado, humilhado, voc tem com quem compartilhar?

    2. Voc participa do grupo de Terapia Comunitria na EPA? Por qu? 3. O que mudou na sua vida a partir da TC? 4.Voc conseguiu resolver seus problemas durante a prtica da TC? Entre os adolescentes que responderam primeira pergunta, 20

    responderam que tm com quem partilhar, sendo que 19 optam por usar o espao da TC para tal. O adolescente restante disse que opta por falar com os amigos da rua. W.S. afirmou que no se pode confiar em ningum na rua. L, ningum amigo de ningum. A. P. diz que s se sente bem para conversar na terapia, porque na terapia, ningum tem preconceito, mesmo eu sendo da ral.

    A segunda pergunta, Voc participa do grupo de Terapia Comunitria na EPA? teve resposta afirmativa em todos os casos, pois a pesquisa foi feita entre os freqentadores da terapia. O que me chamou a ateno foi o motivo da participao. Dois deles responderam que freqentam a terapia porque esto encontrando l apoio para se livrar do vcio nas drogas. Trs adolescentes buscam na TC pessoas em quem podem confiar, e acreditam no voto de silncio feito durante as rodas. Treze pessoas responderam que tm, l dentro, a chance de falar sem ser julgados, acreditam que o lugar bom para desabafar e para aprender a ouvir os outros. Os trs adolescentes restantes disseram que a terapia boa e ajuda a resolver os problemas. Na terapia, eu consigo resolver os problema(s) que eu tenho. As pessoas s ajudam, no colocam a gente pra baixo.

    As mudanas ocorridas na vida dos adolescentes foram muitas e muito significativas. Os depoimentos deles so muito interessantes e mostram como a palavra, a confiana, a tomada de posse sobre suas vidas definitiva para a mudana na maneira como eles se vm e na construo da auto-estima. L. R., de 14 anos disse que aprendeu a conversar nas horas difceis, ao invs de fugir para o mundo das drogas. W. F. diz que aprendeu que a amizade e o companheirismo so mais forte(s) para se sobreviver e ver como ser adulto difcil. O depoimento de E.S.S. mostra como a TC abre novos horizontes para quem a pratica: depois de comear a fazer terapia, eu vi que o cara tem que mudar. Tem sada, vrias.

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    Depende do cara estudar, trabalhar. L. V. disse que antes da Tc, s roubava e usava drogas. Agora, vendo como as coisas podem se diferentes, no est fazendo mais nada disso. Ela quer deixar algo de bom para o mundo: Quero me casar, ter 2 filhos. Criar eles bem.

    Sobre a resoluo de problemas atravs da TC, 17 adolescentes resolvem os problemas ou dizem que se sentem aptos a resolv-los apenas freqentando a TC. Os 3 adolescentes restantes disseram que muito difcil resolver os problemas e que precisam de ajuda alm da TC para se sentirem bem. C. S. P. diz que a terapia o ajuda a pensar, raciocinar, estudar, fazer amizades. J. C. S. diz que teve problemas com a famlia e os terapeutas o ajudaram a resolver. Eu acho isso muito bom. Eles se preocupam com a gente. P. R. diz que bom desabafar. A gente sai aliviado e parece que os problema (s) no so to grandes assim.

    Ao final de uma das entrevistas, E.N.C., de 17 anos, perguntou, como se fosse para si mesmo: como uma coisa to legal pode ter o nome de terapia?

    Observando as respostas e reaes dos adolescentes, consigo ver o que Freire chama de ruptura da educao assistencialista que, segundo ele, trata os homens como depsito de contedos . Essa prtica de educao libertadora, onde se incentiva a conscincia crtica, a ao transformadora e admite-se educador-educando como sujeitos do processo, num crescimento constante e desvelamento da realidade. Para ele, o conhecimento no est separado do contexto de vida, mas centra-se no sujeito, permitindo a humanizao do processo educativo, a apropriao de conhecimentos e a transformao das relaes sociais. Quando um adolescente diz que aprendeu a ser mais maduro, a enxergar o que o mundo cegou, como falou J. O. C. durante a entrevista, consigo ver essa educao libertadora tomando forma, essa conscincia crtica, esse crescimento acontecendo atravs da TC.

    Como diz Barreto, atravs da TC, esses adolescentes que resolveram deixar alguma coisa para o mundo, abandonar os pequenos delitos e as drogas, tornaram-se sujeitos da histria e no meros objetos.

    Freire (2005, p 90) afirma que a existncia humana no pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras

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    verdadeiras, com que homens transformam o mundo. V. F.S diz que aprendeu a ter coragem de dialogar mais com as pessoas. Ela sabe que suas palavras tm fora para modificar sua vida, seu espao e, talvez, o mundo. Freire diz que no no silncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ao-reflexo e D. O. S., sem conhec-lo, diz que a terapia a ajuda a pensar nas coisas de sua vida e a ouvir sua prpria voz, fazendo as coisas diferentes na prxima vez ela diz que se sente em paz depois da terapia, e que as coisas esto se ajeitando para ela.

    Para Barreto (2005), os encontros de terapia tecem redes de apoio e despertam possibilidades de mudanas, j que as pessoas da comunidade participam de uma mesma cultura e partilham entre si recursos de comunicao e laos de identidade, apresentando afinidades em seus sofrimentos e a busca de solues para os mesmos. P. S. C diz que aprendeu na Tc que no somos nada sozinhos. Somos um grupo e s vamos conseguir alguma coisa nos ajudando, entendendo o sofrimento dos outros e o da gente mesmo. Os resultados obtidos revelam que, na medida em que os adolescentes encontravam, na Terapia Comunitria, espao para falar sobre suas inquietaes, suscitavam habilidades e competncias, transformando seu sofrimento em fonte de saber produzida pela prpria experincia de vida.

    Finalizando a pesquisa, afirmo que a Terapia Comunitria como instrumento de apoio e complementao pedaggica de extrema importncia para trabalhar com educao e ateno bsica de sade. A Terapia Comunitria como tecnologia do cuidar apoiada na insero social e no empoderamento, representa uma ferramenta para se entender o adolescente em situao de rua como sujeito ativo de sua histria, alm de favorecer a criao de uma rede de apoio e meios de socializar as falas.

    5 CONCLUSES Aps apresentar, relatar e divulgar a experincia do projeto piloto de

    Terapia Comunitria realizado com estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre, sua estrutura, base e objetivos e divulgar a experincia da EPA com TC entre adolescentes e os resultados que podem ser obtidos com

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    essa prtica, concluo que esse espao de Gesto que est em consonncia com os quatro vetores que acompanham o trabalho da SMED desde 2005: desconstruo do racismo de estado, desnaturalizao de padres, exerccio da diferena e produo de singularidades.

    Essa escola tem caractersticas de territorialidade, identificando as potencialidades da comunidade local, trazendo novos modos de pensar e, principalmente, de agir, sendo um espao que privilegia a qualidade e o sentido da aprendizagem da vida.

    A insero de novas tecnologias de cuidado na ateno bsica possibilita a resoluo de grande parte dos problemas de sade da populao municipal, especialmente dos adolescentes que vivem nas ruas e que, dificilmente, buscam o sistema pblico de sade para tratar de seus problemas. A socializao das experincias da Terapia Comunitria e o conhecimento proveniente dos recursos dos prprios indivduos, somam-se na construo de um verdadeiro exerccio de liberdade, atravs da ampliao da conscincia de cada um deles em relao aos seus direitos.

    Alm disso, incentiva a aquisio de recursos para o desenvolvimento de aes educativas para o autocuidado, despertando o empoderamento e a resilincia individual e comunitria, articulando a circulao de informaes em um trabalho criado coletivamente, ao divulgar as falas e as estratgias de enfrentamento das inquietaes do dia-a-dia, para que outros adolescentes na mesma situao possam beneficiar-se.

    Concluo este trabalho com a satisfao de quem mexeu em um tema provocante, que desacomoda e que, por uma ao transversal, perpassa uma centena de aes de vrias secretarias do municpio de Porto Alegre. impossvel falar em vanguarda na educao pblica sem falar em Terapia Comunitria.

    Essa experincia fala de tecnologia social de ponta, educadora comprometida com seu pblico-alvo e gesto escolar competente, produzindo um resultado importante de incluso social, preconizando uma escola de relaes horizontais, onde fortalecido o esprito de cooperao da comunidade se unindo em favor de um projeto comum. o exerccio da pluralidade democrtica, no qual se respeita o pensamento daqueles que pensam diferente de ns.

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    Alguns dos fatores limitantes deste trabalho foram o pouco tempo de existncia desse tema como ao de mudana social e a falta de bibliografia especfica sobre o tema. Alm disso, a alta rotatividade entre os participantes da TC na escola, que no me permitiram estabelecer um vnculo maior com o grupo que me forneceu dados para a pesquisa.

    Enfim, com esta investigao, espero ter estimulado uma busca por maior conhecimento do assunto e ter contribudo para a divulgao e implantao da Terapia Comunitria como tecnologia do cuidar na ateno bsica de sade e na rede de educao.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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