teoria simplificada da posse-ihering

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DA POSSE 

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RUDOLF VON IHERING

TEORIA SIMPLIFICADA

DA POSSE

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Catalogação na Fonte da Biblioteca da Faculdade de Direito da UFMG eISBN Departamento Nacional do Livro

Ihering, Rudolf von, 1818-1892Teoria simplificada da posse / Rudolf von Ihering ;

tradutor Fernando Bragança. - Belo Horizonte : Ed. Líder, 2004.

64 p.

ISBN: 85-88466-21-X

1. Direitos reais 2. Posse (Direito) I. Bragan ça, Fernando ,trad. II. Título

CDU: 347.2

347.251

COORDENAÇÃODilson Machado de Lima

TRADUÇÃOFernando Bragança

CAPA E DIAGRAMAÇÃOEduardo Queiroz - Saitec Editoração (031) 3497-7355

REVISÃOSaitec Editoração

EDITORALivraria Líder e Editora Ltda.

Rua Paracatu, 277, Lj. 58 KAUF CENTER - Barro Preto

Belo Horizonte - MG - CEP 30.180.090

Tel./Fax: Editora (031) 3295-3690 / Livraria (031) 3337-5811

Copyright © Dilson Machado de Lima Júnior - 2004

Licença editorial para Livraria Líder e Editora Ltda.

Todos os direitos reservados.

IMPRESSÃO

SOGRAFE

Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios

ou formas, sem a expressa autorização da Editora.

Impresso no Brasil Printed in Brazil 

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Sumário

Capítulo I - A posse como objeto de um direito 7

Capítulo II - A posse como condição do nascimento

de um direito 13

Capítulo III - A posse como fundamento de um direito 15

Capítulo IV - Relações possessórias não protegidas 19

Capítulo V - A razão legislativa da proteção possessória 23

Capítulo VI - A posse é um direito 29

Capítulo VII - Lugar da posse no sistema jurídico 39

Capítulo VIII - Nascimento e extinção da posse (existência

concreta), condição da vontade 41

Capítulo IX - A apropriação corpórea da coisa 43

Capítulo X - A posse dos direitos 51

Capítulo XI - Transformação da posse no desenvolvimento

do direito moderno 57Capítulo XII - A literatura

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Capítulo I

A posse como objeto de um direito

Um dos sinais característicos pelo qual o jurista se distingue

de qualquer outro homem está na diferença radical que se estabelece entre as noções de posse e de propriedade. Na linguagem comum empregam-se com grande freqüência essas expressões como

equivalentes.Fala-se de retenção, de restituição de propriedade, quando,

na linguagem do jurista, se deveria falar de retenção ou de posse.Fala-se de grandes posses territoriais, de posses de fundos, e tc,etc., quando se trata da propriedade, e essa confusão encontra-setambém entre os romanos. Na linguagem da vida diária, serviam-seos romanos da palavra possessores para designar os proprietários

de imóveis. Pode-se inferir deste hábito de linguagem quão poucadiferença se lobriga entre a propriedade e a posse, quanto à sua

manifestação exterior na vida. E na realidade é assim mesmo.Em geral, o possuidor de uma coisa é ao mesmo tempo o seu

 proprietário. Ordinariamente o proprietário é o possuidor, e, enquanto subsistir tal relação normal, é inútil estabelecer-se uma distinção. Mas, desde o momento que a propriedade e a posse seseparam, o contraste produz-se imediatamente com tal evidênciaque não pode passar despercebido, nem sequer ao leigo. É evidente, até para o espírito mais simples, que a subtração violenta e clandestina de uma coisa móvel não faz perder a propriedade ao pro

 prietário, e ainda quando mesmo em toda a sua vida ele não tenhaouvido falar em possuidor nem em proprietário seria capaz de de-

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finir de fato as posições distintas de um e de outro, com uma exatidão tão perfeita que não lhe restaria senão aprender a linguagemdo jurista. Uma chama-se propriedade; a outra, posse.

Para negar-se a um o direito de guardar a coisa e para conceder-se a outro o direito de recuperá-la, o leigo julgou compreender que a relação dessas duas pessoas relativamente à coisa é inteiramente distinta, e não lhe seria difícil expressar a diferença com

 perfeita exatidão. De fato, dir-se-á, a coisa se acha em mais dealguém - eis aí a posse -, diria o jurista. O conflito será entre o não-

 proprietário que possui e o proprietário que não possui.O fato e o direito, tal é a antítese a que se reduz a distinção

entre a posse e a propriedade. A posse é o poder de fato e a propriedade, o poder de direito sobre a coisa. Ambas podem achar-se

com o proprietário, mas podem também separar-se, podendo acontecer isso de duas maneiras: ou o proprietário transfere a outrem tão-somente a posse, ficando com a propriedade; ou a posse lhe é arre

 batada contra sua vontade. No primeiro caso, a posse é justa(possessio justa), e o proprietário mesmo deve respeitá-la; no segundo, é injusta (possessio injusta), e o proprietário pode acabar com ela por uma ação judicial. Ora, uma vez dotado com essa faculdade, fica-lhe garantido o direito de possuir.

A posse não tem, em sua personalidade, como na do possuidor injusto, o caráter de uma relação de puro fato, mas o de umarelação jurídica. A posse do proprietário traz consigo o direito de

 possuir (jus possidendi).

 A importância prática que para ele apresenta esse direito éevidente. A utilização econômica da propriedade tem por condiçãoa posse. A propriedade sem a posse seria um tesouro sem chave

 para abri-lo, uma árvore frutífera sem a competente escada paracolher-lhes os frutos.

A utilização econômica da propriedade consiste, segundo anatureza das coisas, no uti,frui, consummere. O proprietário poderealizá-la por si mesmo (utilização immediata ou real), ou cedê-la,quer por dinheiro (arredamento, venda, troca), quer gratuitamente

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(empréstimo, doação), a outras pessoas (utilização mediata ou jurídica), sendo necessário classificar nesta segunda categoria aconcessão condicional do direito de vender, sob hipoteca. Todos

esses.atos têm por condição a posse. Quem não tem uma coisa não pode consumi-la, nem usá-la nem perceber seus frutos, e, se a con

clusão de convenções (obrigatórias) para a cessação do utijrui

ou da propriedade a outras pessoas não supõe a existência atual da

 posse, a realização dessas convenções, pela execução, a exige.Segundo o direito romano e consoante o direito comum atu

al, o que ficou dito é certo ainda com relação à transmissão da posse. De onde resulta que o proprietário privado da posse se acha paralisado quanto à realização econômica de sua propriedade. A posse, como tal, não tem nenhum valor econômico, e não o adquire

senão porque torna possível a utilização econômica (de fato ou dedireito) da coisa, ainda quando se tratasse somente da mera contemplação de um quadro. Se me entregassem um quadro em umacaixa fechada, a posse dele seria desprovida de valor para mim. A

 posse sem um proveito possível seria a coisa mais inútil do mundo.Seu valor consiste unicamente na função indicada: é um meio para

alcançar um fim.

Segue-se daí que tirar a posse é paralisar a propriedade, eque o direito a uma proteção jurídica contra o esbulho é um postulado absoluto da idéia de propriedade. A propriedade não podeexistir sem tal proteção, pelo que não é necessário procurar-se outrofundamento para a proteção possessória. E, pelo menos, o que seinfere da propriedade mesma.

Todavia, o direito romano deu ao direito possessório do pro prietário uma extensão infinitamente mais ampla do que a que sesupõe no caso indicado, em que não se nota senão a antítese da

 posse e da propriedade reduzidas à sua mais simples expressão. Odireito romano dá ao proprietário o meio de recuperar a posse detodo o indivíduo em cujas mãos acha a sua coisa, seja qual for omodo por que este adquirisse a posse. Esse meio, que antigamenteconsistia num ato solene de recorrer-se à força privada e que não

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conduzia a uma instância judiciária senão no caso de resistência,é a reivindicado, que encerra o sinal particular da noção romanada propriedade, comparada com o aspecto de que se reveste no

direito dos demais povos. Como em parte nenhuma acha-se aí aidéia que os romanos faziam da importância da posse e da pro priedade. Propriedade e direito à posse são sinônimos. Para fazer com que a posse lhe fosse restituída, o proprietário não tinhamais do que provar a propriedade em sua pessoa, por um dosmodos de aquisição legalmente prescritos, e a existência da posse na pessoa do réu.

A propriedade e a posse medem-se aqui sem mescla de nenhum outro elemento, e até poderia dizer-se que quase em toda a

 pureza de seu princípio. E eis aí o que distingue esta luta pela posse,da disputa já assinalada, onde se encontra, não obstante, na pessoado réu o elemento da injustiça subjetiva que falta aqui. Em razãodesse elemento, o autor da injustiça subsiste como tal, ainda quando deixe de possuir. Para que a ação seja admissível, não é precisoque o réu tenha, todavia, em suas mãos a coisa, porquanto a reivindicação, fundada unicamente no fato de que outro possui, supõe aexistência de posse na ocasião qUe se intenta.

As explicações que precedem não indicaram sequer a im portância jurídica particular que se dá à posse como tal, no direitoromano e em todas as legislações que dele se derivam. Temos atéaqui considerado a posse em sua relação com a propriedade, e por 

isso podemos reunir o exposto nas seguintes disposições:1. A posse é indispensável ao proprietário para a utilização

econômica de sua propriedade.2. Resulta disso que a noção de propriedade acarreta neces

sariamente o direito do proprietário à posse.3. Esse direito não poderia existir se o proprietário não esti

vesse protegido contra o esbulho injusto da posse. A proteção jurídica contra todos os atentados injustos à posse do proprietário,os quais consistem no esbulho ou na perturbação desta última forma, um postulado absoluto da organização da propriedade.

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4. A questão de saber se, pelo sistema do direito romano, a proteção do direito possessório do proprietário deve-se ampliar ainda contra terceiros possuidores é para o legislador uma questãoaberta que pode decidir e que certamente decidiu num ou noutrosentido.

Esse direito de reclamar a restituição da posse contra terceiros possuidores estendeu-o o direito romano, mais tarde, a outrosdireitos. Estendeu a reivindicatio (como utilis vindicatio ou in

rem actió) a outras pessoas distintas do proprietário. Tais são, em primeiro lugar, as pessoas a quem o proprietário mesmo, sem es poliar-se da sua propriedade, concedeu o direito de utilizar a coisa,

 já para proporcionar-lhe o gozo econômico de propriedadesedificadas ou de bens rurais {superfície, emphyteuse, ambas concedidas perpetuamente ou por longo prazo), já para garantir o pagamento de seus créditos (hipotecário com o direito de vender eventualmente a coisa, pignus hypotheca).

Colocando à parte essas pessoas, cuja posição jurídica o jurisconsulto caracteriza atribuindo-lhes um jus in re, a ação foiconcedida de modo mais restrito (como a actio publicand) aobonae fidei possessor  ou possuidor de boa-fé (proprietário

 putativo); isto é, aquele que sem ser verdadeiro proprietário tem,não obstante, motivos suficientes e razões bastantes para julgar-se

tal, porque adquiriu a coisa de um modo regular e próprio paraachar-lhe a propriedade, mas cujo efeito não se realizou em sua

 pessoa, em conseqüência de obstáculos particulares desconhecidos para ele. Inútil em um conflito com o proprietário ou com as

 pessoas que estão ao mesmo tempo assimiladas, a ação presta-lheo mesmo serviço que ao proprietário e às pessoas que se lhes assemelhem - devolve-lhe e põe em suas mãos a coisa perdida.

Todas essas relações referem-se à propriedade, da qual os jure in re são ramificações e a bonae fidei possessio um reflexo.Em todas elas se reproduz a idéia fundamental da propriedade - o

direito à restituição da coisa achada em mãos de outrem, a volta da

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 posse ao possuidor legal, a invocação do jus possidendi contraquem não o tem.

A importância da posse consiste em ser ela o conteúdo do

 jus possidendi. A posse é o conteúdo ou o objeto de um direito.Se ela não tivesse outra importância, ofereceria escasso interessesob o ponto de vista do lucro, porque todas as coisas - por exem

 plo, andar de pé ou de carro, beber água, prestar serviços - podem ser objeto de um direito.

Em vista disso, uma definição da posse não seria mais necessária para o jurista do que a de todos esses outros atos; porém,desde já pode-se assegurar que a coisa não é tão fácil nem tãosimples como à primeira vista parece.

A posse, com efeito, deve ser considerada sob dois outros

 pontos de vista. Em primeiro lugar, é a condição do nascimento decertos direitos, e, não obstante, concede por si mesma a proteção possessória (jus possessionis em oposição ao jus possidendi); elaé, por conseguinte, a base de um direito.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo II

A posse como condição do

nascimento de um direito

Uma vez adquirida, a persistência da propriedade desliga-se

da posse. O proprietário conserva sua propriedade ainda mesmodepois de haver perdido a posse. Ora, sendo a princípio a propriedade independente da posse, não se compreende a razão por que,

 podendo ela continuar sem posse, não poderá igualmente nascer sem posse, e o motivo por que uma simples convenção sem entrega da posse não será bastante para transferir a propriedade.

 Não obstante, o direito romano exige para esse fim o ato datradição, e, apesar de suas numerosas derrogações, esta se manteve até nossos dias.

A idéia que a inspirou salta aos olhos. Para nascer, a propriedade deve-se manifestar em toda sua realidade; ora essa realidade

é precisamente a posse, a qual é indispensável para a realização dofim da propriedade. A propriedade não aparece sem posse senãona aquisição a título de herança ou legado.

A posse entre vivos é indispensável para se chegar à propriedade.

A aquisição da propriedade das coisas sem dono (pccupatió)

tem também por condição a apropriação da posse, e acontece omesmo com a aquisição da propriedade dos frutos por parte docolono ifmctus perceptio).

Em todos esses casos, a posse tem importância somente comoum ponto de transição momentânea para a propriedade. Se

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sobrevêm sua perda logo após, ela não implica o menor ataque à propriedade uma vez estabelecida. O que há é que não é só a pos

se que engendra aqui a propriedade; é preciso também que concorram outras condições exigidas pelo direito.Se a posse não tem, nesses casos, senão o valor de um pon

to de transição momentânea para a propriedade, e se não se aconsidera senão como um ato, há outro modo de aquisição da propriedade em que ela toma o aspecto de um estado de transição

de uma situação duradoura. Referimo-nos à usucapião. Contudonão é bastante aqui a simples posse como tal; é preciso que concorram certas condições (que formam no conjunto a conditio

usucapiendí), as mesmas a que se refere a proteção jurídica dobonaefideipossessor contra terceiros, de que falamos há pouco.

A prescrição revela novamente a estreita correlação que existe entre a posse e a propriedade. A posse oferece-se, mais uma vez,nesse caso, como o caminho que conduz à propriedade; apenas ocaminho é mais longo por faltar as condições que concorrem nooutro caso.

 Na teoria da posse, a doutrina não trata dos casos em que a posse aparece como condição da aquisição da propriedade. Deixa-os, com razão, na teoria da propriedade. Com efeito, a posse é tão-somente aqui uma das múltiplas condições de que depende o nascimento do direito e que não deviam ser tratados neste lugar, senão no

caso de não haver outra ocasião de se falar no assunto. Esta ocasiãooferece-a o direito romano, por quanto nele a posse recebeu o as pecto e o valor de uma instituição jurídica independente.

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Capítulo III

 A posse como fundamento

de um direito

O possuidor, como tal, é protegido contra todo o ataque (perturbação ou esbulho) à sua relação possessória. Basta isso paracaracterizar o lugar que a posse ocupa no direito, como instituiçãoindependente.

A idéia fundamental de toda a teoria possessória do jus

 possessionis, isto é, o direito que tem todo o possuidor é de prevalecer-se de sua relação possessória até que se encontre alguém que

o despoje pela prova de seu jus possidendi. Pergunta-se, admirado, o que determinou aos romanos conceder a proteção jurídica aesse puro fato que nada pode alegar em seu favor. A questão deumuito o que fazer aos nossos juristas, e as opiniões são muito discordes. A resposta não se pode achar senão na forma que o direi

to romano deu a esta proteção possessória. Resumi-la-ei em seguida, a largos traços.

O conhecimento exato da forma particular dada ao interdito

 possessório no processo romano não apresenta interesse para as pessoas estranhas ao direito. Bastará dizer que era uma ordem(interdictum) emanada do pretor à instância de uma parte e dirigida

a outra, ordem que não tinha força contra esta última senão quandoconcorriam as condições a que ela se achava subordinada.

Em todas as ordens pretoriais desse gênero, o magistradoque as ditava não tratava de investigar se essas condições eram

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 justas ou não. Era isso objeto de ulterior instrução pelo juiz, e quenão se verificava senão no caso de não se haver dado cumprimento

à ordem. A ordem não era, pois, absoluta; era ordenada sob areserva de que as condições a que se subordinava deviam ser estabelecidas. Essa forma, empregada pelo pretor para um grandenúmero de relações, tinha uma relação muito especial na posse.Tais eram os interdicta possessória, que os romanos classificavamem três espécies. Para obrigar o réu a obedecer imediatamentesem processo ulterior, cominavam-se-lhe penas severas, dado ocaso que sucumbisse, podendo-se afirmar que, sempre que o direito do autor fosse incontestável, a ordem lograria seu fim. De ordinário, não se chegava a um processo ulterior senão quando a relação possessória era duvidosa; e nesse caso, se o autor sucumbisse,

a pena recaía sobre ele. Podia, pois, custar caro intentar ou sustentar levianamente uma questão possessória.

Mas, perguntará o indivíduo estranho ao direito, como poderia haver discussão acerca de qual dos dois possuía, se a experiência de posse prova-se à primeira vista? Aqui se apresenta a teoria possessória particular do direito romano, que exige uma qualificação especial para que a posse participe da proteção jurídica, eque, em sua conseqüência, distinga duas espécies de posse - a

 posse juridicamente protegida e a posse juridicamente desprovida de proteção. Na nossa linguagem atual, a primeira chama-se

 posse jurídica - civil (os romanos chamavam-na simplesmente possessio, ou possidere ad interdictae, em oposição ao possidere

ad usucapionem, do bonae fideipossessor). A segunda recebe onome de posse natural ou detenção-posse. Os romanos servem-se, neste caso, de várias expressões que não têm interesse para as

 pessoas estranhas ao direito, e entre as quais me limitarei a citar  possessio naturalis e detentio, por haver nelas a origem das ex pressões modernas.

A posse viciosa (vitiosa possessio) ocupava o lugar intermédio entre essas duas posses; expressava a relação do possuidor injusto (possessor injustus) para com o justo (justus). Aquele

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

que se achava nessa relação como possuidor anterior - e citareicomo exemplo principal o caso do esbulho violento (de vi) - encontrava plena proteção contra todas as demais pessoas e tomava,

com relação a estas, a posição do possuidor, porém ao possuidor  justo negava-se-lhe a proteção jurídica, pouco importa se a ação possessória fosse intentada por ele ou pelo adversário - ele nãotinha, perante este, posição distinta da do detentor.

O vício de posse (vitium possessionis) tinha apenas umaimportância relativa. O seu influxo para com as demais pessoasrestringia seus efeitos à relação existente entre o possuidor justo e o

injusto. O primeiro tinha para com o segundo de fazer justiça por suas próprias mãos, do mesmo modo que com relação ao detentor que possuísse em seu nome (veja-se capítulo IV), podia, por suaautoridade própria, recobrar a posse, sempre que não fosse à mãoarmada (vis armata em oposição à violência permitida: vis simplex

ou quotidiana). Tropeçava-se com uma resistência, reclamava-selogo a autorização da justiça, que lhe era concedida por uma dastrês espécies de interditos possessórios, a saber: pelos interdicta

retinendaepossessionis, cuja idéia fundamental era de que o ver-

dadeiro possuidor tem o direito de se fazer justiça por si mesmo, eque reclamava a proteção da autoridade ao opor-se-lhe resistência

(vimfieri veto). Muito longe de proibir o uso da violência em matéria possessória, como se sustentou, continham eles, pelo contrário, a autorização oficial de servir-se dela. Enlaçam-se estreitamen

te com a antiga idéia romana de que o possuidor legal pode fazer valer o seu direito por sua própria autonomia, e que não deve reclamar o auxílio da autoridade senão quando ela se espedace contra uma resistência, pelo que o adversário que a opõe é castigadocom uma pena.

O nosso ponto de vista moderno de que todo indivíduo que

tem um direito contra outrem deve antes de tudo seguir os caminhos do direito era completamente desconhecido dos romanos da

época antiga. A abstração feita de certas relações particulares, queem razão do seu caráter duvidoso deviam ser submetidas à decisão

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do juiz, e nas quais a demanda de um juiz indicava-se especialmente como particularidade do processo que se devia seguir (leges

actio per judieis postulationem), o romano estava convencido da

legitimidade da justiça privada. Evidencia-se disso que, das trêsformas mais importantes do processo antigo, o cumprimento doato de justiça privada nas formas prescritas pela lei era a condição

 prévia da introdução da instância judicial. Essas mesmas formastiraram daí os seus nomes (leges actio per vindicationem, per 

manus injectionem, per pignoris capionem).

A proteção possessória relaciona-se igualmente com esta antiga idéia romana. Não é proibido, nem mesmo ao possuidor natural,ao detentor, manter-se em posse usando da violência, salvo uma restrição relativa, que mais adiante mencionarei, a propósito da detenção, a saber: que não se poderia agir por esse modo para com aquelede quem se tinha a posse. Não há nisto senão uma conseqüência do

 princípio completamente geral de que a violência pode ser repelida

com a violência (vim vi repeliere licet), em sua aplicação especialcom a relação possessória. E preciso, porém, distinguir com cuidadoo emprego da violência com o fim de defender por si mesmo a posse

 para manter a relação existente, dç emprego da violência com o fimde fazer-se justiça, como, por exemplo, com o fim de recuperar a

 posse perdida de fato. Este último é o privilégio do possuidor jurídi

co (civil). Somente ele pode vencer pelo caminho do direito destinado a garanti-lo. Se o possuidor natural o intenta, ver-se-á repelido. É

 preciso que em seu lugar haja aquele por quem ele possui. Do mesmo modo, o injusto possessor é repelido quando age contra o justus

 possessor, porque, sob o ponto de vista de suas relações recíprocas,não é ao primeiro, mas ao último, que corresponde o direito de justiça privada.

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo IV

 Relações possessórias não protegidas

As coisas sobre as quais um direito de propriedade não é possível não podem ser objeto de posse no sentido jurídico, sendo preciso aplicar-se a mesma regra aos que não podem ser proprie

tários (em Roma, os escravos e os filhos-familias). Onde a propriedade não é possível, objetiva ou subjetivamente, a posse tam

bém não o é.

A posse e a propriedade não saem da mão: a falta de aptidãona pessoa ou na coisa quanto à propriedade implica a mesma falta

com relação à posse.A essa razão de exclusão da pena, que não tem hoje grande

importância, acrescenta-se outra infinitamente mais importante, queconservou todo o seu valor. Em certos casos em que o proprietáriotenha abandonado por meio de contrato, a coisa a outrem, com areserva de ser-lhe devolvida ulteriormente com ou sem condições

- casos que compreendo com o nome de relações de posse derivada -, o direito romano concede a posse a certos detentorestemporários (por exemplo, ao enfiteuta ou colono hereditário) enega-a a outros (por exemplo, ao colono e ao arrendatário ordinários). A negativa da posse, nestes casos, pode produzir-nos não

 pequena surpresa.

Aquele que se apoderou da posse de uma coisa, verbi gratia,

o ladrão, o bandido e o que se apoderou com violência da possede um imóvel, obtém a posse do direito, ao passo que aquele que aobteve de um modo justo não é protegido: é quanto a relação

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RUDOLF VON IHERING

 possessória, destituída de todo o direito, não somente para comterceiro, como também para com aquele com quem ele se obrigou

 por contrato a deixar-lhe a coisa durante o termo do arrendamento

ou aluguel. Se reclamá-la antes da expiração do arrendamento deverestituí-la, de outro modo faz-se réu de um esbulho que terá decustar-lhe caro. Não há duvida de que pode intentar imediatamentea ação do contrato e reclamar danos, porém deve restituir a coisaaté sem fazer oposição alguma. O arrendador tem contra ele o direito de se fazer justiça e, no caso necessário, de proceder contraele com o interdito possessório. Os juristas romanos dão comoexplicação disso que o colono possui pelo arrendador, em seu nome(aliene nominepossidere), e que ele não tem posse própria, massimplesmente o exercício da posse de um outro. Essa consideraçãoimpõe-se, no ponto de vista que se chama a construção jurídica,

 porém não explica de forma alguma o aspecto real das coisas. Parachegar-se a esse resultado, a teoria romanista seguiu o caminho dasdeduções lógicas. Para que haja posse, diz ela, é preciso que na pessoa do possuidor exista a mesma vontade que na do proprietário (animus domini). Essa vontade existe no proprietário real etambém no putativo e no pretenso proprietário, isto é, naquele que,depreciando a propriedade, apoderou-se da coisa alheia, tal comoo ladrão, o bandido e, com relação a imóveis, o dejiciens. Emcompensação, ela não existe naquele cuja posse deriva-se do pro

 prietário, e que pelo mesmo reconhece a propriedade de outro.

Com relação à posse, a vontade desempenha simplesmenteo papel de um representante que quer ter a coisa não para si, mas

 para o proprietário. Vê-se facilmente de que maneira se violentaaqui a noção da representação, porque, na realidade, o colono nãotem intenção de deter a coisa para o arrendador, mas para si. Aidéia da representação em matéria possessória não é exata senãoquando se recebe a coisa exclusivamente no interesse daquele que

deu, por exemplo, para guardá-la (depositum), para entregá-la aoutro (mandatum), nas relações entre amo e criado, enfim, segundo o nome que julgo deve-se lhe dar na posse por procurador.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

O que se nega nesses casos àquele que tem para a coisatoda a proteção possessória contra o dono da posse é um resul

tado invencível da dependência necessária do representante comrelação ao seu amo ou dono; o sistema contrário conceder-lhe-iauma independência que facilmente não se concilia com o fim darelação. Porém, nos casos em que a coisa é dada àquele que atem, por si mesmo - e que eu concebo com o nome de posseinteressada -, a idéia de uma representação é inexata. Referimo-nos aqui a uma disposição do direito romano que não se podededuzir por via de conseqüência jurídica, e que melhor se deve

 procurar justificar por motivos práticos. Acrescente-se a isso que,em uma porção de casos de posse interessada, o direito romanoconcede a posse em lugar da detenção que resultaria da teoria do

animus domini, e ter-se-á, desse modo, a prova de que não setomou o ponto de vista que lhe atribui a teoria. Realmente, asconsiderações de caráter prático foram as que influíram aqui parafazer com que a balança se inclinasse. Eu as expus de modo detido em meu livro sobre a Vontade na posse (Der Besitzwille,

Jena, 1889, n. XVI-XVII).

 Nas relações entre os arrendadores e arrendatários ou colonos, a falta de proteção possessória do detentor devia conservar no proprietário a possibilidade de repeli-la em qualquer tem

 po, e isso em atenção a um duplo interesse, em primeiro lugar,

 para poder se aproveitar qualquer venda que durante o arrendamento se apresentasse; em segundo, para poder livrar-se a todoo momento de um colono incapaz ou de um inquilino rixoso oudesagradável.

A falta de proteção possessória não priva, contudo, de todoo direito ao simples detentor. Além do direito de manter-se por sina posse, que não se lhe nega, o direito romano concede-lhe, ematenção aos atentados contra a sua posse (perturbação ou esbulho),varias ações; apenas não se trata de ações possessórias propriamente ditas. De onde se segue que estas têm uma natureza particular, que explicaremos depois.

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo V

A razão legislativa da proteção

 possessória

Se causa estranheza ou direito romano negar a proteção possessória ao colono ou ao inquilino, não causará menos estra

nheza reconhecê-la no possuidor injusto. Por que razão? Savigny,cuja opinião pode-se considerar hoje como dominante no domínio

cientifico, responde: no interesse da manutenção da paz e da ordem pública. Esta consideração de policia - chamamo-la assim -

 parece ser de uma evidência notória, porém não se harmoniza como aspecto de que se reveste a proteção possessória no direito romano. Segundo essa consideração, o possuidor natural e as pessoas incapazes de possuir deveriam ter igualmente um direito a ser 

 protegidas, porquanto é perfeitamente indiferente que seja em sua pessoa ou na do possuidor jurídico que se procura a defesa da paz

e da ordem pública. Também se diz que a posse se protege emvista da personalidade ou, antes, em atenção à vontade da pessoa.

Cometer um atentado ou ferir uma relação possessória na qual

se realizou e de certo modo incorporou a personalidade (ou a vontade) é atentar ou ferir esta personalidade mesma. Dirigir um atentadocontra a relação possessória é lesar a personalidade. O mesmo pode-se responder a esta consideração. Pode-se considerá-la perfeitamente exata sob o ponto de vista da filosofia do direito romano. Segundo ela, os detentores e os filhos-famílias poderiam também recla-

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RUDOLF VON IHERING

mar a proteção possessória, porque no fim de contas são tão pessoase tão capazes de vontade como o possuidor jurídico.

Somente de uma maneira pode-se explicar satisfatoriamente

o aspecto da proteção possessória do direito romano, e é dizendoque ela foi instituída com o fim de aliviar e facilitar a proteção da

 propriedade. Em vez da prova da propriedade, que o proprietáriodeve apresentar quando reclama a coisa em mãos de um terceiro(reivindicatio), ser-lhe-á bastante a prova da posse para com aquele que a arrebatou imediatamente.

Pode a posse, de acordo com o exposto, representar a pro priedade? Sim, porque é a propriedade em seu estado normal - a posse é a exterioridade, a visibilidade da propriedade. Estatisticamente, essa exterioridade coincide com a propriedade real dos

casos. Quase sempre o possuidor é ao mesmo tempo o proprietário, sendo muito diminutos os casos em que não o é.

Podemos, pois, designar o possuidor como proprietário

 presuntivo, e compreende-se perfeitamente, por um lado, a razão por que o direito romano declarou essa presunção de propriedade - esta a

 prima facie como diz o direito inglês - suficiente contra o réu somente

quando se trata de repelir os ataques à propriedade, e, por outro lado,tanto quanto a coisa se ache em mãos de um terceiro e o réu, tendo aseu favor a presunção da propriedade, exija que tal presunção não se

 possa destruir senão pela propriedade. A ação possessória mostra-nos a propriedade na defensiva e a reivindicação na ofensiva.

Exigir da defensiva a prova da propriedade seria proclamar que todo o indivíduo que não está em estado de demonstrar a prova de sua propriedade - o que é impossível em muitos casos, quiçána maioria, quando se trata de moveis - acha-se fora da lei; dessamaneira, qualquer pessoa poderia tirar-lhe a propriedade.

A proteção possessória aparece como um complemento

indispensável da propriedade. O direito de propriedade sem aação possessória seria a coisa mais imperfeita do mundo, ao passoque a falta da reivindicação apenas o afetaria, a não se considerar aquestão senão em seu aspecto prático.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

O nosso direito atual o pôs fora de uso em um grande número de casos. De fato, a organização da propriedade não se baseiatanto no direito da propriedade e na ação reivindicatória como na

segurança da posse, que, na verdade, não se baseia, por sua vez,menos na ação possessória do direito privado do que a pena dodireito criminal.

O ponto de vista que acabamos de expor, figurando-nos proteção possessória como uma facilidade para proteger a propriedade, exprime perfeitamente a idéia romana relativa à significação da

 posse. É o que se depreende da proposição acima enunciada -onde a propriedade é impossível a posse também o é -, proposição esta que de outro modo não teria sentido. Ela não se explicasenão pelo fato e que a posse considera-se como a exterioridade

da propriedade que o direito deve proteger.Onde não se pode conceber juridicamente a propriedade não

 pode haver questão acerca da presunção de propriedade, que constitui a base da proteção possessória. Não julgo necessário reproduzir aqui as demais razões que para fundamentar esta opinião ex

 pus com detida análise em outra obra (Grund dês Besitzchutzes -

O fundamento dos interdictos possessórios, 1896).1

Se para ser protegido como possuidor basta demonstrar sua

 posse, esta proteção aproveita tanto ao proprietário como ao não- proprietário. A proteção possessória, estabelecida para o proprietário, beneficia desse modo uma pessoa para quem não foi ela

instituída. Semelhante conseqüência é inevitável. O direito deveaceitá-la, sobretudo, para conseguir seu fim de facilitar a posse da

 propriedade. Para evitar essa conseqüência, seria preciso abrir mãoda questão de direito, devendo acontecer isso no processo

 possessório. O caráter essencial deste é que a questão de direitofique anulada para as partes.

1 Veja-se a nossa tradução dessa obra, anotad a e acrescent ada de um Apêndice. 2 ed.,Francisco Alves & Cte., edit. 1908. (Nota do tradutor).

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RUDOLF VON I HERING

 Nenhuma delas tem necessidade, para obter a facilidade da prova estabelecida em atenção ao proprietário, de alegar ou provar o seu direito; ainda mais, não se lhe dá ouvidos, se o alegarem.

Assim, o direito não pode objetar ao autor que ele é proprietárioou que tem um direito obrigacional sobre a coisa (excepciones

 petitorias), e o autor não pode suprir as lacunas da prova de sua posse pela alegação de seu direito de propriedade. É nesse sentido, porém, e somente nesse sentido, que os juristas dizem: a pro

 priedade e a posse nada têm de comum e por isso não podem deforma alguma ser confundidas.

A diferença do possessório e do petitorio repousa na aplicação rigorosa dessa regra (interdicta possessória e petitorium

 judicium). Naquele só se trata da questão de posse; neste, trata-

se exclusivamente da questão de direito, pelo que se depreende,falando a linguagem da prática, que a decisão do possessório não prejulga a do petitório, isto é, que a parte que foi vencida no primeiro pode ainda triunfar no segundo e vice-versa. Desta maneira, é possível que o não-proprietário triunfe no possessóriocontra o proprietário. A instituição feita para este torna-se sua

adversária. Mas não sucumbe, porque a reivindicação proporciona-lhe o modo de finalizar, em qualquer momento, a posse juridicamente protegida de seu adversário. Esses efeitos que excedemdo fim legal das instituições jurídicas não são incorreções que olegislador deve aceitar sem remédio. É como a chuva que rega

ao mesmo tempo os que a necessitam e os que não necessitamdela.

Semelhantes incorreções reproduzem-se em mais de uma instituição, sobretudo naquelas que têm por escopo facilitar a prova.Como exemplo citarei os títulos ao portador.

Introduzidos em favor do interessado, para facilitar-lhe a prova do seu direito, aproveitam também a quem deles se apoderoude modo injusto. Quando se trata de semelhante falsidade nas provas, tem-se de escolher entre deixar o que não tem direito seguir aolado do possuidor legal, ou, para excluir aquele, negar a este a

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

inapreciável vantagem que supõe o emprego de uma prova fácil.Os casos da primeira categoria são tão escassos, comparados comos da segunda, que não se os deve tomar em conta. A concessão,

 pois, da proteção possessória àqueles que não têm direito, quandoo fim legislativo não atende senão ao possuidor legal, aparece comouma conseqüência não desejada, porém inevitável.

A teoria reinante sobre a posse muda completamente de relação. Há o reverso e o anverso, e vice-versa.

Consoante essa teoria, a proteção possessória não foiintroduzida para o proprietário, mas para o possuidor como tal, oque implicava a necessidade de justificá-la sob esse ponto de vista.Ora, acabamos de ver quão pouco concordam as consideraçõesque efetivamente se fazem (ordem publica, personalidade, vonta

de) com o aspecto que o direito romano deu à proteção possessória,único ponto que agora nos importa. A proteção possessória dodireito romano não pode ser compreendida senão sob o ponto devista da propriedade e pondo-se-a em relação com a segurançanecessária da propriedade. A especiosa objeção que se formulou,tendo em vista que os juristas se previnem contra toda confusãoentre posse e propriedade, destrói-se atendendo-se a que ela nãose refere senão à reparação prática na aplicação judicial, que eumesmo acabo de justificar, e de modo algum à correlação das duasinstituições, de que nem sequer se ocupam. Eis aí uma questão aberta

 para a ciência: o desenvolvimento histórico da proteção possessória,assim como a organização dogmática da teoria possessória por partedos juristas romanos, basta para demonstrar com toda a clareza ecerteza desejáveis, a existência dessa relação legislativa entre a pro

 priedade e a pose.

O nosso exame da proteção possessória estabeleceu, pois, amesma relação íntima da posse com a propriedade que encontramos desde o princípio e que, finalmente, há de se encontrar ao seexaminar ulteriormente a questão da existência concreta da posse.

Resumindo o que ficou exposto, as proposições assentadasaté agora são as seguintes:

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RUDOLF VON IHERING

1. a posse constitui a condição de fato da utilização econômica da propriedade;

2. assim, o direito de possuir é um elemento indispensável 

da propriedade;3. a posse é a guarda avançada da propriedade;4. a proteção possessória apresenta-se como uma posição

defensiva do proprietário, com a qual pode ele repelir com maisfacilidade os ataques dirigidos contra a sua esfera jurídica;

5. nega-se, por conseguinte, onde quer que seja, que a pro priedade seja juridicamente excluída.

Em todas as partes, pois, reproduz-se a relação da possecom a propriedade.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo VI

A posse é um direito

 A questão de saber se a posse é um direito ou um fato éobjeto de uma controvérsia ainda não resolvida até agora pela ciência jurídica. A opinião dominante sustenta que é um direito e é

 preciso reconhecer que aparentemente toda a razão está de seulado. A posse nasce puramente do fato, sem pressupor um direito.Como, pois, há de ser ela um direito? O possuidor que não temoutra qualidade sucumbe na luta contra o proprietário reivindicante;o que prova que a posse não é mais que um puro fato que desaparece perante o direito. Isso não demonstra, na realidade, que a

 posse seja um direito, mas que constitui um direito de uma espécie particular, por sua natureza diferente dos demais.

Para se aplicar a uma relação jurídica uma distinção teórica de

caráter geral, é necessário, antes de tudo, determiná-la com precisão. Foi justamente o que não se fez, com relação à distinção do fato

e do direito por quase todos aqueles que trataram da questão. Um jurista notável, Buchel, escreveu uma vasta monografia sobre esseassunto, na qual não disse uma só palavra acerca dessa questão prévia tão decisiva. E, realmente, para quê? Essa distinção fundamentaldeve ser clara para todo jurisconsulto. Deveria sê-lo certamente, porém viu-se há pouco que não o é. A doutrina antiga não fez a mais

leve tentativa para fixar cientificamente a noção do direito num sentido subjetivo. O que se encontra nos tratados antigos não passa deuma paráfrase da expressão - direito como meio-termo de equivalentes - de que já falei em meu Espírito romano, tomo IV

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RUDOLF VON IHERING

A nova doutrina referiu-se à primeira, na solução dessa questão de há muito abandonada, mas, por uma fatalidade que persegue a posse, semelhante doutrina, que, segundo sua definição dodireito, deveria reconhecer-lhe a natureza de tal, negou-a.

Para julgar se a posse é um direito ou um fato, fundo-me nadefinição do direito que expus em outra parte. 2 Os direitos são osinteresses juridicamente protegidos. Esta definição tem sido objetode contradição. Se a reproduzo aqui, é não somente para expor ao

 público a quem esta obra se dirige, na contingência de formar-seuma idéia da natureza jurídica da posse, como também porque acredito que presentemente a minha noção do direito pode revestir-se

de um valor para o economista.As objeções que se produziram contra a minha definição são

infundadas. Não é exato que para definir o direito me sirva da noção mesma que trato de definir. Sem dúvida, a palavra direito apresenta-se na expressão "juridicamente protegidos", porém com umasignificação muito diferente. No primeiro caso, significa o direito nosentido subjetivo e no segundo, no sentido objetivo; estas duasnoções são fundamentalmente diferentes entre si. Ponha-se em lugar de juridicamente protegidos legalmente protegidos, e tudoficará bem. Se me vali da primeira expressão, é porque a lei é aúnica fonte do direito no sentido objetivo; é necessário recorrer-se

ao direito consuetudinário, que não pode ser compreendido na ex pressão legalmente protegidos.

Acreditou-se que se podia criticar o elemento do interesse

(que eu oponho como elemento substancial ao elemento formal 

da prestação do direito), dizendo que, conforme as circunstâncias,um direito pode não ter o menor interesse para o possuidor legal e,

não obstante, ser protegido como tal. Assim se raciocina, por exem plo, na crítica feita recentemente por Kuntze 3.

2 Op. cir.,LV,§§ 70e71

3 Zur Besitzlhere. Für und wider Rudolf von Jhering. Leipzig , 1890, p. 77 et seq

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Essa crítica funda-se em uma confusão entre o interesse con

creto e o interesse abstrato, confusão esta que não se me poderáatribuir, porque indiquei-lhe suficientemente a diferença.4 É preciso

ter-se lido muito por alto meu livro para atribuir-me uma opiniãocontra a qual eu mesmo estou tão prevenido.

Em minha definição, referia-me ao interesse abstrato, que édecisivo para o legislador no estabelecimento de todos os tipos jurídicos sem exceção. Eu disse expressamente que a medida desseinteresse varia segundo o horizonte dos interesses do povo e da época; que a opinião sobre a questão de saber se certos interesses sãodignos de proteção e dela necessitam modifica-se com a evolução

das apreciações do povo. Certos interesses aos quais, em uma fraseinteira da civilização, nega-se a proteção jurídica foram por ela admi

tidos com o progresso da civilização; outros a perderam.A questão de saber se em um caso particular existe o interes

se que o legislador julga digno de ser protegido e que, segundo ele,necessita sê-lo (interesse concreto) não tem importância alguma

em tese geral; a prova dos fatos aos quais a lei se refere ao nasci

mento do direito é bastante para que o autor deva consignar ointeresse que tem em fazer valer seu direito, sem que o réu sejaadmitido a prevalecer-se de falta desse interesse.

Um cego pode se prevalecer de uma servidão de vistas; ohomem completamente desprovido de todo sentimento de honra pode

intentar uma ação de injúrias; o comandante pode pedir a restriçãodo livro emprestado por certo tempo, ainda mesmo que o comodatáriotenha o maior interesse em conservá-lo por mais algum tempo e não

tenha aquele, por acaso, interesse algum em vê-lo.A célebre decisão de Ciro que, a despeito dos direitos de

 propriedade, fundava a questão dos mandatos adjudicando o maior ao mais elevado e o menor ao mais baixo, está em flagrante contradição com os princípios superiores mais incontestáveis do direito.

4 L.c, p. 343-345: importância do interesse em tese e em hipótese.

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RUDOLF VON IHERING

O direito é no seu lado concreto absolutamente independente

da questão de interesse.

 Não o é de outro modo senão em certos casos - nas obrigações interessadas, como eu as chamo, por exemplo, o mandato. Nesses casos é preciso a posse de um interesse concreto para dar 

ao juiz uma medida de avaliação, e, ainda com certas demandas deoutra espécie, este interesse pode-se acrescentar acessoriamente echegar, assim, a ser o objeto da prova. Alem disso, em alguns,casos nominativamente citados pela lei, a falta de interesse opõe-seao exercício de certas faculdades.

A noção da argúcia e da sutileza legal tem aí o seu fundamento; é o exercício sem interesse e com o fim único de prejudicar a outrem, de faculdades que, consideradas em si mesmas, são juridicamente fundadas. Somente ela é proibida onde a lei a proíbeexpressamente e, por mais paradoxal que pareça, é nisso que consiste a segurança da ordem jurídica. Esta seria sacrificada se, a

 princípio, a perseguição dos direitos, em juízo, dependesse da prova do interesse na pessoa do autor ou se, pelo contrário, somentese permitisse opor e provar a falta de interesse.

Partindo-se da definição de que "os direitos são os interesses juridicamente protegidos", não pode haver a menor dúvida deque é necessário reconhecer o caráter de direito à posse. Expusemos anteriormente o interesse que implica a posse: ela constitui a

condição da utilização econômica da coisa. Pouco nos importa queessa utilização se torna assim possível para o possuidor legal, como

 para o que não tem direito; em todo caso, a posse oferece interessecomo pura relação de fato - é a chave que abre o tesouro e é tãonecessária para o ladrão como para o proprietário.

A este elemento substancial de toda a noção jurídica, o direito acrescenta na posse um elemento formal - a proteção jurídica e

 por este modo concorrem todas as condições jurídicas de um direito. Se a posse como tal não fosse protegida, não constituiria, naverdade, senão uma relação de puro fato sobre a coisa; mas desde

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

o momento que é protegida, reveste do caráter de relação jurídi

ca, o que vale tanto como direito.

Windscheid quis evitar a necessidade dessa conclusão dizen

do que a posse engendra muitas "conseqüências jurídicas", porémnão constitui um direito; ao contrário, seria preciso qualificar tam

 bém como direitos as convenções e os testamentos5. Ele confunde,neste caso, o fato gerador do direito com o seu efeito. Um fatonão é um direito; a aquisição da posse vale a esse respeito tantocomo a conclusão de um contrato ou a confecção de um testamento. Quando, porém, como nos três casos citados, a lei concede aum fato conseqüências jurídicas favoráveis para uma pessoa determinada, que coloca na situação de assegurá-las por meio de umaação, provoca precisamente a produção do conjunto das condi

ções legais que chamamos direito.Ao fato da conclusão do contrato a lei liga a conseqüência

 jurídica de que o credor pode reclamar do devedor a execuçãodo contrato; ao fato da confecção do testamento a lei liga a conse

qüência jurídica de que o herdeiro instituído pode reclamar deterceiros a restituição dos bens da sucessão, e dos devedores desta o pagamento de suas dividas; ao fato do nascimento da posse alei liga a conseqüência jurídica de que o possuidor pode exigir de

terceiros o respeito para a sua situação possessória. Nos dois primeiros casos, chamamos a conseqüência jurídica direito do credor ou de sucessão.

Que motivo há para negar-se o nome de direito ao terceiro?

Se nega-se o direito de posse somente porque redunda como conseqüência de um fato, é preciso também negar o direito do credor e o de sucessão, porque a relação entre o fato gerador do direito ea conseqüência jurídica é exatamente a mesma, e, com efeito, nãohá um só direito que não pressuponha um fato gerador de direito.Todos os direitos, sem exceção, aparecem como conseqüências

 jurídicas, isto é, como conseqüências juridicamente protegidas em

5 Pandekten, 1, § 150.

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RUDOLF VON IHERING

favor daqueles a quem devem eles aproveitar. Não tenho inconveniente em conceder a quem destruir esta definição o direito de dizer 

que a posse não é um direito - se ele renunciar-se a isso, é porqueadmite a natureza jurídica da posse. Não há duvida de que um fato pode também engendrar con

seqüências jurídicas que não constituam direitos, tais são os fatosde extinção (por exemplo, a derelictiio, a entrega, o pagamento) eos fatos modificados do direito (por exemplo, a mora, a culpa, odolo nas relações contractuais). Mas onde quer que os direitosengendrem conseqüências que a lei garante ao interessado por meio

de uma ação especial, exclusivamente destinada para esse fim, taisfatos classificamo-los (como geradores de direito) como direitos.

 Na maioria dos direitos, a confusão do fato gerador com o próprio direito é excluída pela diversidade mesma dos nomes que a

linguagem lhes dá; por exemplo, o contrato e o crédito, o testamento e o direito sucessório. Na linguagem dos romanos, porém, haviatambém expressões que tinham os dois significados; por exemplo,nexum, obligatio, e tal é precisamente o caso da posse. Do mesmo modo que ao nexum e à obligatio, como ato (fato gerador dedireito), ligava-se e referia-se o direito do credor (conseqüência

 jurídica), designado pelo mesmo nome, assim a posse como esta

do de fato liga-se e refere-se à posse como direito.

Os j uristas romanos tiveram plena consciência desse duplo

aspecto da posse. No primeiro caso, distinguem a posse comocausa facti, ou por meio de expressões análogas, por exemplo,corporis,facti est; no segundo, designam-na como jus possessionis,

 jura possessionis, sendo, portanto, difícil compreender como puderam ser empregadas expressões da primeira categoria para sustentar que a posse, no pensar dos juristas romanos, não é um direito. Essa asserção é desmentida pelo reconhecimento formal da possecomo direito, e há tão pouca contradição entre essas duas expressões que, muito ao contrário, tornam manifesto o exato reconhecimento, por parte dos juristas romanos, da natureza jurídica da posse. Na posse, a relação entre o fato gerador e o direito é tão par-

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

ticular que, afora um caso somente, que teremos ocasião de mencionar, não se a encontra em lugar nenhum.

Em todos os demais direitos - e podem-se citar como princi

 pais a propriedade e a obrigação -, o direito separa-se desde omomento em que nasceu o fato que o engendrou, por exemplo, datradição, da ocupação de contrato, do delito - o fato correspondeimediatamente ao passado e apenas persistem as suas conseqüências. Na posse, pelo contrário, a manutenção da relação de fato é acondição do direito à proteção - o possuidor não tem um direito

senão enquanto ou quando possui. Em outros termos, em todosos demais direitos o fato é a condição transitória do direito; na

 posse, é a condição permanente.

Daí nasce a diferença da prova. Nos primeiros, olha-se para

o passado; neste, para o presente; naqueles não se prova senão onascimento do direito a que a sua existência se refere como conseqüência necessária. É preciso provar-se neste a existência dodireito, e por isso não basta provar que a posse nasceu em tal ouqual momento, porque não se ficaria por isso autorizado a concluir que ela existe atualmente, mas é preciso provar-se que a posseexistia na mesma ocasião em que se cometeu o atentado.

É deste modo, como na posse, que o direito e o fato se com pletam - o direito nasce com o fato e desaparece com ele: um nãoexiste sem que exista o outro. Acontece o mesmo com o direito de

 personalidade que compartilhou a sorte do da posse, pelo que al

guns jurisconsultos quiseram tão equivocadamente, como fizeramcom a posse, negar-lhe o caráter de um direito. Assim como a

 posse acha-se unida à existência do estado de fato destinado a protegê-la, assim também o direito de personalidade está ligado àexistência da pessoa; nasce e morre com ela - neste caso, o fato eo direito também concordam-se completamente.

 Não se chegaria a desconhecer a natureza jurídica da posse

se não se achassem inconciliáveis com eles os dois fatos jurídicos

que se seguem. O primeiro é que mesmo o possuidor injusto é protegido. Como pode a injustiça gerar o direito? Haverá maior 

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RUDOLF VON IHERING

contradição! O esbulho violento é proibido e, não obstante, tem por conseqüência um direito! O mesmo fenômeno apresenta-se

também em matéria de propriedade. O especificador, isto é, aqueleque de uma matéria existente faz uma coisa nova, por exemplo, osapateiro que emprega o couro para fazer umas botas, o alfaiateque emprega pano para fazer um terno, faz-se o proprietário dessacoisa, ainda quando a matéria não lhe pertença. Do mesmo modo,segundo a teoria romana sobre o direito de caça, aquele que caçasse em terreno alheio contra a vontade do proprietário fazia-sedono do que havia caçado. Aqui também o simples fato engendra odireito. A lei não quis de modo algum dar aprovação a esse fato edeixar o campo livre ao não-proprietário para fazer toda espécie

de especificação e ao caçador para caçar em terreno alheio - suasdisposições correspondem à idéia de que os terceiros não tiveram

que sofrer pela injustiça do ato.

As conseqüências prejudiciais atingem exclusivamente as pessoas culpadas, o que se obtém por meio de uma ação pessoal proposta contra elas. A propriedade lhes é reconhecida não por elas mesmas, mas no interesse da segurança das transações sobrea propriedade. Eis aí uma das idéias mais fecundas do direito romano, que não obstante reproduz-se em uma porção de relações,em que a aquisição da propriedade na pessoa do adquirente pode

ser atacada sem que o vício que acarreta sua aquisição alcance a propriedade. Esta passa pura e intacta das mãos do adquirenteatual para a corrente das relações - o princípio doentio que a atacava em seu poder fica nele e toma a forma de uma ação pessoal.

Quem não tiver conhecimento desta idéia do direito romano

não poderá compreender o aspecto da propriedade romana, nema proteção possessória - surpreender-se-á também vendo que a

 propriedade concede-se ao proprietário injusto (exposto à açãode rescisão), como ao ver a proteção possessória concedida ao

 possuidor injusto. Mas deve-se ter presente que a propriedadeconcede-se àquele não em atenção ao mesmo, mas em atenção

aos terceiros que adquiriram a causa dele, e também que a prote-

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

ção possessória concede-se ao possuidor injusto, não por ele, masem atenção ao proprietário. O escopo almejado pela lei não po

deria ser alcançado se não fosse negada a propriedade ao adquirenteinjusto e a proteção possessória ao possuidor injusto.

A comparação com a propriedade proporciona-nos também

uma arma para repelir a segunda objeção feita contra a natureza jurídica da posse. A posse, diz-se, sucumbe na luta contra a pro priedade, isto é, na reivindicação; ela não pode, pois, constituir umdireito. Se a conclusão fosse justa, a propriedade não seria tampoucoum direito, porquanto mesmo nesse caso ela sucumbe, por sua vez,sob a ação pessoal de rescisão, e até há outro caso em que a pro

 priedade, como tal, pode extinguir-se diretamente pela declaraçãode outra pessoa, a saber - por uma reserva condicional de revogação (condição resolutário) adicionada à transmissão. A noção jurídica não sofre nada pela circunstância de que outra pessoa possa,em qualquer momento, ocasionar a sua resolução.

O credor hipotecário pode sempre pôr termo à propriedadedo devedor pela venda da coisa, e o devedor pode dar fim emqualquer momento ao direito do credor pagando a dívida. O mesmo acontece com a posse em sua relação com a propriedade.Quando a pessoa que tem o direito de revogação não faz uso dele,o proprietário, o credor hipotecário e o possuidor devem ser considerados como estando em seu pleno direito.

A circunstancia de que a posse, como tal, não dá o direito,mas tão-somente a possibilidade de fato, de usar a coisa não im

 plica o desconhecimento de sua natureza jurídica. Do exposto resulta tão-somente que ela é um direito muito pouco extenso; porémos mais ínfimos interesses podem revestir o aspecto de direito desde o momento em que não são da categoria daqueles aos quais a lei

nega a proteção jurídica.A questão do interesse jurídico da posse foi conferida por 

lei, até pô-la fora de toda a discussão, somente pelo fato de se lheter concedido proteção jurídica. Desse modo, a posse foi reconhe

cida como um interesse que reclama proteção e é digno de obtê-la;

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RUDOLF VON IHERING

e todo o interesse que a lei protege deve receber do jurista o nome

de direito, considerando-se como instituição jurídica o conjuntodos princípios que a ela se referem.

A posse, como relação da pessoa com a coisa, é um direito;como parte do sistema jurídico, é uma instituição de direito.

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo VIII

 Nascimento e extinção da posse

(existência concreta),

condição da vontade

A simples proximidade local (no espaço) da pessoa com relação à coisa não cria a posse; é preciso para isso a vontade

(animas) que estabelece um laço entre elas. A aquisição da posse,segundo a teoria dos juristas romanos, não pode ser procuradasenão mediante um ato especial da vontade da pessoa, dirigida

 para esse fim (ato de apreensão). Somente para as pessoas inca pazes de vontade (menores, loucos, etc.) é bastante o ato do tutor.O direito romano não conhecia a aquisição da possessio ipso jure,

nem mesmo no caso de sucessão. O herdeiro devia começar por adquirir a posse, ao passo que adquiria a propriedade pela só adição da herança.

Segundo a teoria reinante, esta vontade deve tentar possuir a coisa como ou à maneira de uma coisa própria (animus

domini). A falta de semelhante vontade é que, em certos casos,ao que parece, deve-se conceituar como posse não no sentido

 jurídico, mas no natural (detenção, mera posse).Essa doutrina é falsa - a verdadeira explicação da diferença

está não na natureza particular da vontade de possuir, a qual nãotende nunca à apreensão da coisa, mas na disposição legal que,conforme a diversidade da relação (causapossessionis), faz nascer ora a posse, ora a detenção ou a apreensão. A simples decla-

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ração da vontade não é suficiente, segundo o direito romano, paraadquirir a posse - é preciso também a manifestação real da vontade adipisciemur possessionem, diz um jurista romano, corpore

et animo, neque per se animo (simples declaração da vontade),neque per se corpore (mera proximidade no espaço). Assim os juristas romanos não admitem que tenhamos a posse das coisascaídas em nosso terreno ou que nele se acham depositadas, nemdas que se deixaram esquecidas em nossa casa, et c, etc. O artigo

 possuidor que as recolhe não comete, pois, um esbulho paraconosco.

Mas a vontade pode preceder à apropriação corpórea; por exemplo, na aquisição da posse da caça ou da pesca que cai emnossas armadilhas ou laços, anzóis ou redes, assim como nas coisas que pedimos e que durante nossa ausência foram depositadas

em nossa casa ou deixadas em nosso terreno; em outros casos há,segundo a terminologia moderna, aquisição da posse por custódia.

O mesmo acontece na aquisição da posse por meio de re presentante. Em todos esses casos não é preciso o ato apreensão pelo possuidor mesmo, porque a relação de fato existe e a vontadedo possuidor manifestou-se de antemão.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo IX

 A apropriação corpórea da coisa

Dá-se hoje o nome de corpus à relação exterior da pessoacom a coisa estabelecida pela apreensão. Os juristas romanos, pelo

contrário, não se serviam desta expressão senão para designar amanifestação da vontade no ato de apreensão. O corpus, segundoa teoria dominante, é o poder físico ou a supremacia de fato sobrea coisa. Tal é a noção fundamental pela teoria atual. Ela é absolutamente errônea, como se pode ver em minha obra já citada: O fun

damento da proteção possessória.

Se os romanos se deixassem guiar por ela, deveriam admitir a posse dos filhos-famílias, porque foi precisamente com relação aeles que se inventou a expressão técnica para se designar o poder,

 potestas, e deveriam também reconhecer no salteador a posse so bre o homem livre que aprisionou com o fim de obter o resgate, porque este se acha incontestavelmente em seu poder. Mas nadadisso fizeram, e eles bem o sabiam por que: não se pode ser proprietário de filhos, nem de pessoas livres, e onde não é possível a propriedade também não o é a posse. E por que razão? Porque a posse nãoé o poder físico, mas a exterioridade da propriedade.

Esse ponto de vista decisivo para os casos em que se é preciso repelir a posse não o é menos para aqueles em que se é preciso admiti-las.

Indague-se como o proprietário sói trabalhar em suas coisas,e se saberá quando é preciso admitir a posse e quando se deve

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RUDOLF VON IHERING

repeli-la. A aptidão do proprietário varia conforme a diversidadedas coisas. Por certas razões que não se precisa expor, ele tem emsua casa, e nela as conserva, a maior parte das coisas móveis -

estas coisas podem-se ocultar. Certas coisas, porém, não se podem guardar desse modo; o seu destino econômico exige que este- jam a descoberto - as ervas, o feno, a palha no campo, a madeiracortada no bosque, a turfa, o carvão junto da mina, as pedras na

 pedreira, os materiais de construção junto da obra, etc.A essa categoria pertencem também os animais domésticos

que andam soltos, o gado nos pastos e, entre os romanos, os escravos. Em todos esses casos não há poder físico sobre a coisa - asegurança do possuidor não se funda em achar-se na situação "deexcluir a ação das pessoas estranhas" (Savigny), mas em que a lei

 proíbe essa ação. Apóia-se não sobre um obstáculo/fo/co, massobre um obstáculo jurídico.

Essa diferença reproduz-se também nas coisas imóveis.

Umas acham-se defendidas por obstáculos mecânicos (muros,cancelas, estacadas, etc) , como as casas, jardins, solares paraedificação, e tc ; outras são abertas e livres, acessíveis à ação deterceiros, do mesmo modo que à do possuidor. Sustentar queexiste um poder físico sobre as coisas no possuidor é afirmar umaenormidade tão diametralmente oposta à idéia que, segundo alinguagem gramatical, se tem da expressão poder que até parece-me excusado refutá-la.

Por que razão a posse protege-se pelo direito? Não é certamente para dar ao possuidor a grande satisfação de ter o poder físico sobre uma coisa, mas para tornar possível o uso econômi

co dela em relação às suas necessidades. A partir daqui tudo seesclarece. Não se recolhem em sua casa os materiais de construção, et c, etc; não se depositam em pleno campo dinheiro, móveis, objetos preciosos e outras coisas mais. Cada qual sabe oque deve fazer dessas coisas, segundo sua diversidade, e é este

aspecto normal da relação do proprietário com a coisa que

constitui a posse.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Tal foi a noção que guiou os romanos - se bem que não atenham eles expressão em parte alguma, nem em suas regras so

 bre a aquisição e a extinção da posse, nem em suas decisões jurídicas. Para os que são estranhos ao direito, a exposição dessas regras e a prova de que elas são conformes com a noçãoindicada não teriam interesse algum, porém é necessário, nãoobstante, que eu demonstre em dois pontos a verdade e, ao mesmo tempo, o valor desta.

Antes de tudo, importa pôr às claras a vantagem que apresenta a noção que acabo de dar sobre o poder físico. Para certascoisas, o ponto de vista do poder físico é perfeitamente exato. Sãoaquelas que, para serem garantidas, devem ser guardadas, debaixode sua proteção, com chave, e para as quais semelhante modo econservação constituem o aspecto normal da relação. Estas coisassão as que se podem guardar e defender.

O Mas se esse ponto de vista é exato, não é por causa dascoisas mesmas, senão porque tal modo de detenção constitui para

O essas coisas aforma econômica obrigada de sua relação exterior 0 com a pessoa. O poder físico e a utilização econômica

correspondem-se inteiramente neste caso. Não é a esse aspectoda relação que se referiu originariamente a noção da posse, segundo se depreende da própria etimologia da palavra posse (possidere

de sedere). O aspecto visível da relação (corporalispossessio, ou

também naturalis possessio, na linguagem romana) foi o que serviu aqui, como nos demais, de ponto da partida para a linguagem.O progresso do pensamento jurídico despiu de modo crescente anoção da posse desse aspecto material, tirando do corporaliter ou

naturaliter possidere um civiliterpossidere com o mesmo sentido, porém sem cuidarem os jurisconsultos romanos de adaptar a

 fórmula doutrinal da noção da posse ao progresso de seu aspecto real. A doutrina romanista não deu mais um passo até hoje -limitou-se a conservar a noção material originária. Os seus esforços

 para conciliá-la com o desenvolvimento real da posse no direitomoderno assemelham-se à intenção de fazer entrar o corpo de um

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homem amadurecido nas roupas que usara quando criança; a rou pa rasgar-se-ia naturalmente por todos os lados.

Para não se ver isso, só há um meio: fechar os olhos. E foi o

que fez a teoria romanista, com tanto cuidado que, segundo ela, há poder físico sobre a coisa mesmo nos casos em que um homemcom os olhos bem abertos não poderia descobrir dela nem a maisleva aparência. O erro cometido por semelhante teoria podemosresumi-lo em breves palavras: deu um valor absoluto a um pontode vista que é de uma verdade relativa, isto é, limitada em certoscasos, e esqueceu-se de que esta verdade relativa não tem em simesma a sua razão de ser, mas que é derivada; isto é, que o pontode vista do poder físico não tem uma significação para a posse,

 justamente porque esse poder é exigido em certos casos para suautilização econômica. Tomando, finalmente, por base e encaminhando em sua faculdade a noção da posse para a existência de umanoção conforme com esse fim, entre a pessoa e a coisa, obteremosduas formas de relação possessória:

1. sobre as coisas que se podem guardar e defender- rela

ção de poder (físico) sobre a coisa;2. sobre as coisas livres ou abertas ~ não há relação de poder.

O outro ponto pelo qual eu quero mostrar às pessoas estranhas ao direito a exatidão e o valor de minha noção de posse é a

 possibilidade que ela oferece e que só ela pode oferecer a tercei

ros para reconhecerem se há realmente posse. Esse ponto passoucompletamente despercebido pela teoria romanista, e ele, se nãotem um grande interesse no direito privado, tem, contudo, uma im

 portância grandiosa em matéria criminal.Suponhamos dois objetos que se acham reunidos em um

mesmo lugar: pássaros seguros por um laço num bosque ou numsolar em construção, os materiais, e ao lado uma cigarreira comcigarros. O mais ínfimo dos homens sabe que será culpado de umfurto se tirar os pássaros ou alguns materiais, mas nada tem quetemer se tirar os cigarros. O homem honrado deixa em seu lugar os

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

 pássaros e os materiais e põe no bolso a cigarreira com o fim de procurar o dono ou, se não puder encontrá-lo, entregar o objeto à

 polícia.Qual a razão desse modo diferente de proceder? Com relação

à cigarreira, cada qual dirá: perdeu-se; deu-se isto contra a vontadedo proprietário - e torna-se a pô-lo em relação com a coisa, dizendo-lhe que foi encontrada. Com relação aos pássaros e aos materiais, sabe-se que a posição em que se acham tem sua causa em umadisposição tomada pelo proprietário. Essas coisas não poderão ser encontradas, porque não estão perdidas - seriam roubadas. Ofato de tirá-las consiste por si mesmo um ataque à propriedade e, por 

conseqüência, uma violação da lei penal. O fato de tirar a cigarreiracom os cigarros é, em si, juridicamente indiferente - a conduta ulterior de seu autor é que pode decidir se ele cometeu uma violação da lei, etal violação constitui, neste caso, uma retenção de objetos achados,

 porquanto o ataque à propriedade de outro resulta somente da apro priação subseqüente da coisa.

O homem estranho ao direito verifica, por si mesmo, que adiferença na apreciação jurídica desses dois casos resulta da diferença da relação possessória, e esta diferença deve ser evidentemente manifesta para que não passe completamente despercebida

nem mesmo pelo comum dos homens; de outra forma, a lei não poderia tomá-la como base de suas disposições. E, de fato, ela

salta aos olhos, porém é tão-somente porque a maioria das pessoas se deixa guiar nesta matéria por minha noção, cuja exatidão esimplicidade recebem por este modo a mais palmar demonstração.

Afirmando-se que a cigarreira se perdeu, diz-se: a relaçãonormal do proprietário com a coisa esta perturbada; há, portanto,uma situação anormal, e quero por minha parte fazer quanto emmim possa para que ela desapareça. Ao ver-se os pássaros e osmateriais diz-se: acham-se na posição desejada pelo proprietário -situação normal.

Ora, o que isso significa é que até o simples homem do povo

 julga a questão de posse conforme odestino econômico

da coisa,

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isto é, aplica a seu modo a minha noção da posse. Os pássaros presos no laço e a madeira perto da obra acham-se colocados na posição conforme com o seu destino econômico, mas a cigarreira,

não; é contra o seu destino econômico estar caída em pleno cam po. Isto é bastante ao homem do povo para proceder com correção, sem que tenha a menor idéia da noção jurídica da posse. O

 jurista ensina-lhe que ele a aplicou de fato: no primeiro caso havia posse; no segundo, não.

Faça-se agora a mesma experiência, partindo da hipótese do poder físico sobre a coisa. Não nos resta um critério possível. Comoreconhecer se há ou não poder físico? Se ele existe para os pássaros e para os materiais, é necessário afirmar-se o mesmo com relação às outras coisas. Suponhamos que um homem qualquer deseja

guiar-se, nessa hipótese, pela noção dominante. Eu quisera que senos dissesse o que ele faria. O jurista não ficaria menos perplexo,

 pois também não poderá saber como terá de proceder, se não começar por abandonar a sua noção da posse, tomando a nossa. Suaconduta real desmentirá a sua fórmula teórica segundo a qual a

 posse é uma relação de poder físico.Acrescentarei outro exemplo para comparar as duas noções

da posse. Nos povos montanheses, a madeira para o fogo que se cor

tou no bosque atira-se ao rio; mais abaixo prendem-na com repre

sas e carregam-na. Não se pode falar aqui de um poder físico do proprietário, e, não obstante, a posse continua. E por quê? Pelamesma razão dos materiais; a posição em que se acha a madeiraque flutua é imposta por considerações econômicas, e, neste caso,também todos sabem que não podem segui-la sem ser culpados de

furto. O rio, porém, recebe em sua correnteza outros objetos, comocadeiras, mesas etc. Neste outro caso também o homem do povosabe perfeitamente que pode retirar essas coisas d'água e pô-las a

 boa guarda sem por isso ser culpado de furto. O motivo da distinção é o mesmo dos outros casos já examinados.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Sob o ponto de vista econômico, a flutuação da madeira éum fato normal; a das cadeiras e mesas, anormal. No primeirocaso há posse; no segundo, não.

A posse reconhece-se, assim, exteriormente; os terceiros podem saber se a relação possessória é normal ou anormal. Qualquer pessoa pode apreciar por esse modo o valor à noção que euassentei acerca de uma das questões mais importantes da teoria

 possessória. A teoria reinante não nos presta auxílio algum; limita-se a ensinar ao possuidor se ele continua possuído, porém, nadanos diz como os terceiros devem reconhecer se ele possui ou não.

Tenho falado até agora da perturbação da relação normal da

 pessoa com a coisa, e julgo, todavia, necessário acrescentar umaadvertência. Segundo o direito romano, a perturbação normal não

faz perder a posse imediata, mas somente quando o possuidor aabandonou ou não, na contingência de restabelecer a relação perturbada com a coisa. Se a consegue, não se reputa perdida a posse. Como exemplo citarei o caso em que se perde uma coisa, emque se deixa um objeto por esquecimento em casa de outro, ou emque se extravie o seu rebanho. Deixa-se de fazer as necessidadesdiligenciais para recobrar-se a posse; o direito romano priva dela o

 possuidor tornando-a, assim, um abandono da posse, porquantonão demonstrou o verdadeiro interesse que caracteriza o possuidor 

(perda voluntária da posse).

Se as suas diligências não conseguem bom êxito, sua possedesaparece (perda da posse contra sua vontade). Acontece exatamente o mesmo com o esbulho da coisas imóveis. Se o possuidor restabelece imediatamente a antiga relação, considera-se a possecomo não perdida; se não, perde-se-a, salvo se houvesse nestecaso, segundo o direito romano moderno, esbulho violento.

Há uma fase particular na existência da relação possessória

 para a qual não dá a teoria reinante toda a importância que elamerece, porque os juristas romanos não a assinalam in terminis,

mas que se acha perfeitamente indicada de fato no direito romano. A posse é perturbada ou ameaçada. O interesse jurídico que

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apresenta essa situação consiste em que se dá aqui ao possuidor a

 possibilidade de defender seu direito; é uma situação crítica naexistência da posse, cuja continuação é, quiçá, incerta e dependede acontecimentos ulteriores.

Quanto às coisas móveis, esta situação basta perfeitamente para legitimar a intervenção de terceiros. Assim acontece no salvamento das coisas perdidas, ainda quando a posse estivesse perdidano sentido jurídico do termo e o proprietário não houvesse realizado nenhuma tentativa para resgatar a coisa. Essa situação crítica,isto é, a perturbação da ação possessória, basta, a meu ver, paraterceiros, porquanto, prestando eles o seu auxílio para restabelecê-la, não fazem senão colocar-se em lugar do proprietário ausente.Fazem por ele o que este mesmo teria feito, e não há em tal casoataque uma relação possessória existente.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo X

 A posse dos direitos

A consideração que determinou o direito romano a pôr àdisposição do proprietário, nos interditos possessórios, uma formamais fácil de proteção foi também o motivo de introduzir ao

intercditos quasipossessórios. Foram eles feitos para a servidão(servidão pessoal; ususfructus, e usus e certas servidões rurais daágua e de caminhos) e para a superfície. Aquele que se prevaleciade um direito semelhante com relação a um terceiro tinha no caso

de oposição, como na ação de propriedade, que produzir a provade seu direito, o que em ambos os casos exigia não somente a

 prova do ato de estabelecimento, como também a da propriedadedo autor.

O pretor dispensava-o dela quando já tendo exercido o seudireito sem oposição, era logo perturbado nele. A seu pedido, comefeito, o pretor dava-lhe um interdito que proibia o adversário decontinuar a perturbá-lo. O réu não era admitido a sustentar que oautor não tinha direito algum, como nos interditos possessórios pro

 priamente; a única objeção que podia fazer era que a posse eraviciada, isto é, que o réu exercera o direito clandestinamente, semele o saber (ciam), contra sua vontade declarada (vi) ou somentecom sua autorização, dada sob reserva de revogação (precario).

Ambas as partes tornavam-se livres; quando sucumbissemnesta ação, de disputar o direito, a decisão no possessório não

 prejudicava o petitório. O caráter da ação possessória comparadocom a ação petitoria era severamente observado, tanto com rela-

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ção à restrição do litígio na questão de posse como em relação àfalta de sua decisão sobre a questão de direito.

A proteção do direito concede-se também aqui a um estado

de puro fato. Nem todo estado de fato, porém, tem direito a essa proteção. Durante alguns anos, as minhas galinhas procuraram alimento no jardim do vizinho, ou os meus criados atiraram os restosde cozinha em seu terreno, e, não obstante, eu não tenho direito à

 proteção possessória, isto é, a manutenção provisória da situaçãoaté a decisão em juízo; pelo contrário, se eu não obedeço à proibição do vizinho, ele é que tem uma ação possessória para garantir os seus direitos. O contrário acontece quando, sem oposição desua parte, faço uso no caminho que passa por suas propriedadesou envio meus cavalos ao seu bebedouro. Qual a coisa de semelhante diferença? Ela reside na relação da posse com o direito. O

que se protege na posse não é o estado de fato como tal, mas umestado de fato que pode ter por base um direito e que, por conseguinte, pode ser considerado como o exercício ou a exterioridade

de um direito. Assim, os juristas designam muito exatamente esteestado júris possessio.

Em rigor, dever-se-ia colocar no mesmo lugar a posse do proprietário, porque ela contém igualmente o exercício, aexterioridade de um direito, da propriedade. Os juristas romanos,

 porém, designam-na como a expressão de posse, pura e simplesmente, ou quando querem distingui-la da júris ou quasi possessio,

 por meio da expressão corporis possessio, acontecendo o mesmocom as expressões modernas posse real e posse jurídica.

Assim como a propriedade deve ser possível para que se possa admitir a posse das coisas, assim também é preciso que umdireito o seja, para que se possa admitir a possessio júris. Ondeum jus, no sentido da teoria romana, não se admite em tese, oestado de fato não é protegido senão quando a propriedade é juridicamente impossível quanto à pessoa ou à coisa. À nossa regrageral já anunciada - onde não há propriedade não pode haver 

 posse - corresponde a regra: onde não há direito não pode ha-

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

ver posse de direito; ou antes, na linguagem processual: onde não

há petitório não pode haverpossessório. É por esse motivo quenos dois primeiros casos títulos se nega a proteção possessória.

Com efeito, esses atos não podem, segundo a teoria romana dasservidões, formar o objeto de uma servidão. Nos outros dois, em que se pode achar o objeto de uma

servidão, concede-se a proteção, mas somente àquele em cuja pessoa possam considerar-se tais atos como direitos, isto é, no proprietário do terreno, e não, por exemplo, em seus criados ou noestafeta do correio que passou muitos anos pelo caminho.

Se a execução material do atos fosse suficiente, dever-se-iaconceder-lhes a proteção jurídica tal como ao proprietário do imóvel, e se deveria negar a este se, em conseqüência de uma paralisia,não pudesse passar por esse caminho. Mas esses indivíduos nãofizeram mais do que passar, não exerceram um direito; em com

 pensação, ele exerceu o direito ainda que não tenha passado, porque o fizeram aqueles em seu lugar.

Pode-se, pois, considerar que a quase-posse implica uma pretensão de um direito. É indiferente que exista o direito, comona proteção possessória do proprietário; é bastante para a proteção possessória a possibilidade do direito e a exterioridade de seu

exercício. Se na posse dos direitos, assim como na das coisas, a proteção possessória aproveita ainda ao que não tem direito, istonão é mais do que uma conseqüência inevitável. Não seria possível

concedê-la ao possuidor legal, sem que dela participasse aqueleque não tem direito; a posse é um rigor estabelecido em favor do primeiro: o segundo não passa de um parasita que o direito não pode extirpar. A inteligência de toda a teoria possessória repousana seguinte proposição: a proteção possessória foi introduzida

em favor de quem tem direito; no possuidor trata-se de prote

 ger aquele que tem direito.

A posse dos direitos é de suma importância para a teoria possessória. Uma verdade que nem sempre se viu clara como motivo da posse das coisas, isto é, que a posse não é o poder físico

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sobre a coisa, mas o exercício, a exterioridade do direito, manifesta-se aqui com tal clareza que é impossível desconhecê-la. Os atosde exercícios isolados que o possuidor legal de uma servidão veri

fica nas propriedades de outrem de modo nenhum podem ser olhados como uma relação de poder. Nem os próprios partidários dateoria de poder físico o tentaram jamais. À mera circunstância deque o poder físico sobre o terreno serviente é reconhecido no pro

 prietário far-se-á imediatamente esta oposição: o poder não foiconferido por antecipação; não se pode dispor dele, e o possuidor do direito deve-se contentar com alguma coisa menos. Não se notou aqui que esse menos pode ser equivalente ao todo.

Quando uma pessoa concedeu a outra uma servidão de pasto em uma divisa, os atos que um e outro realizam são exatamente

os mesmos: ambos enviam seus gados ao pasto, e ninguém poderásaber, sem estar de antemão preparado, qual é o proprietário equal o que age em virtude do direito de servidão, e, não obstante, amesma relação constitui nele o poder físico sobre a coisa e no outro

o exercício de um direito sobre a coisa alheia. A arbitrariedade quese comete estabelecendo o ponto de vista do poder físico verifica-se, assim, claramente.

Uma noção genérica deve ser concebida de tal sorte queseja exata para todas as espécies que o gênero compreende; anoção de posse deve compreender a posse das coisas e a dosdireitos. A ciência romanista não cumpriu essa condição; debaldese procura nela uma noção genérica que abarque as duas espéciesde posse. Limita-se a justapô-las; a posse das coisas é o poder físico a dos direitos é exercício de um direito.

Indubitavelmente, a noção genérica desabrocha quando acomoda a transição da posse das coisas na dos direitos dizendo que,assim como a posse das coisas acarreta o exercício da propriedade, a posse dos direitos implica o exercício de um direito. Todavia,esse ponto de vista só lhe serve como uma espécie de ponte para

 passar de uma espécie a outra, quando precisamente aí se reconhecesse que do ponto de vista do exercício o direito contém a

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idéia fundamental de toda a teoria possessória, isto é, a idéia gené

rica da posse. Sob esse aspecto, a posse dos direitos é do maisalto valor científico; perante ela não lhe resta outro recurso senão ode transportar a noção do exercício, ou, na minha linguagem, daexterioridade do direito, que não se pode discutir, para a posse dascoisas, ou, antes, colocá-las uma ao lado da outra, como duas formações separadas, que não têm entre si de comum senão o nomede posse, sem ter laço intrínseco algum, ou, em outros termos, renunciar o estabelecimento de uma noção genérica.

Se o ponto de vista do poder fosse completamente exato para a posse das coisas, o que não é verdade, conforme já vimos,será necessário prescindir-se dele e substituí-lo por outro, tendo-

se em conta que ele não serve para explicar a posse dos direitos.Há somente um que tem esse mérito: é o da exterioridade do direitoa que me referi. A posse das coisas é a exterioridade da propriedade; a dos direitos é a exterioridade dos direitos sobre a coisa alheia.A esta vantagem de reunir as duas espécies de posse em uma mesma noção comum ajuntam-se outras, que não resultam da noçãodo poder físico, a saber:

• Primeira. O ponto de vista da exterioridade do direito criaum laço íntimo entre o fato e o direito; não se acha este junto daquele, do mesmo modo que no poder físico, como elemento estranho e sem relação, mas se apresenta como um elemento proporcionado pela noção do direito mesmo. A realidade, o gozo, o exercício do direito e a proteção que a lei concede a este estado decoisas acham a sua justificação na circunstância de que na maioria

dos casos coincidem com o direito.• Segunda. Se o estado de puro fato fosse protegido como

tal, deveria sê-lo também onde ele não pudesse ser consideradocomo o exercício de um direito. Já vimos que o direito romano,neste caso, nega a proteção possessória, e isso só se pode explicar 

 pela noção da exterioridade do direito.Em resumo, o direito romano protege, na posse, a

exterioridade do direito; criou esta proteção em favor daquele que

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tem o direito, mas para procurá-la tinha de permitir que participasse dela também aquele que não tivesse direito, favor este que somente tem um aspecto passageiro e que o possuidor legal pode

suportar facilmente, porque tem na ação originada no direito o meiode dar um fim, em qualquer tempo, à posse sem direito. Para aquele que não tem direito, a proteção possessória é somente provisória; para o outro, contra o qual ninguém pode ir pelo caminho dodireito para esbulhá-lo da posse, a proteção é definitiva.

A teoria possessória vigente desconheceu esse fim legislativo

da proteção possessória, e em sua construção da teoria da possetomou por ponto de partida não aquele que tem o direito, mas oque não o tem. Desta sorte, colocou-se num terreno no qual é im

 possível harmonizá-la com o aspecto da posse no direito romano.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo XI

Transformação da posse no

desenvolvimento do direito moderno

Esta transformação afeta uma dupla direção: a posse dascoisas e a dos direitos.

• A posse das coisas - A idéia romana da falta de proteçãodo detentor, no caso em que a coisa lhe fosse entregue em seu próprio interesse (detenção interessada), estava em contradiçãodemasiado palmar com o sentimento jurídico dos povos modernos,e quanto ao colono, até com o mesmo direito existente, para que adoutrina não se preocupasse com procurar um remédio. Encontrou-o no desenvolvimento consuetudinário insensível de dois meios

de direito: o summarissimum e a actio spolii.

O seu caráter comum era o de ser concedida até ao detentor.O primeiro supunha uma perturbação ou uma ameaça na posse de

uma coisa imóvel (até de um quarto numa casa) e tendia à manutenção do estado existente de coisas. O segundo supunha um esbulhoinjusto de quaisquer coisas, móveis ou imóveis, e a condenação doréu a restituí-los. O resto não oferece interesse às pessoas estranhasao direito. Basta-lhes notar que há neste caso uma ruptura completacom a teoria romana. Ninguém ignora que o romanismo ortodoxo prescindisse aqui de todos os seus anátemas. Realmente a sua conduta merece plena aprovação sob o ponto de vista prático.

Esse caminho foi seguido por várias legislações novas, entreas quais é preciso citar, em primeiro lugar, oLandrecht prussiano

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que, apreciando com exatidão a importância do elemento do interesse na questão da posse, reconhecida esta em todo o indivíduoque numa relação de posse derivada obtinha uma coisa em seu

 próprio interesse (relação possessória interessada) e, particularmente, ao colono e ao inquilino, não conservando a noção da posse senão para aquele a quem a coisa foi entregue em vista somente

do interesse do dominus possessionis (relação possessória por  procuração). O projeto do Código Civil alemão deu mais um passo, concedendo a ação possessória a todo detentor, o que, a meuver, não deve ser aprovado.

Outro tanto pode-se dizer da inovação, tão fora de propósito sob o ponto de vista da linguagem, como errônea de fato, pelaqual se admite, conforme a insustentável teoria romanista sobre o

animus domini, a distinção teórica entre posse (Besitz) e detenção (Inhabung).

• A posse dos direitos - Esta posse alcançou no desenvolvimento do direito moderno uma extensão extraordinária. Precederam-lhe nesse caminho o direito canónico e a jurisprudência dos tri

 bunais eclesiásticos, que aplicaram a posse a todos os direitosregalianos, dignidades, funções, benefícios e dízimos da Igreja, sendo o seu exemplo seguido pela legislação e jurisprudência dos tribunais seculares, a tal ponto que não há uma só relação de direito público ou privado que não fosse posta em relação com a idéia de posse,

desde o momento em que esta se podia aplicar de alguma maneira.A idéia diretriz era a seguinte: todo indivíduo que se acha no

gozo pacífico de um direito qualquer, ao qual corresponde um exer-

cício prolongado, e de qualquer espécie que seja o direito, mono pólio, privilégio, direito patrimonial ou da família, etc., etc, consistente em um estado de fato, em atos daquele que tem o direito, ouem prestações do obrigado, tais como o pagamento de rendas,

 prestações, e tc, e tc, deve ser protegido provisoriamente nessegozo quando lhe seja disputado, até que a não-existência do direitose justifique judicialmente.

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TEORIA SIMPLIFICADA DA POSSE

Correspondendo a esta idéia é que, mesmo no caso de oposição à validade do casamento ou da legitimidade de um filho, con

cedia-se uma ação para se proteger a quase-posse da qualidadede esposo ou de filho. Ainda mais, seguindo esse caminho, o direitoaos títulos de nobreza, e até o título de doutor, chegaram a ser objeto da quase-posse. No caso em que a autoridade administrativa proibia continuar ostentando esses títulos, o interessado tinha odireito de ir ajuízo, e o juiz protegia-o em sua quase-posse atédecisão definitiva.

O próprio funcionário era protegido contra o governo comrelação à retenção de soldos, pensões, proibição de receber emolumentos, até que se decidisse da parte de quem era o direito,e, nos tempos germânicos, as administrações territoriais em litígiosobre o exercício de seus direitos fiscais respectivos pleiteavam a

 proteção de sua quase-posse perante os tribunais do império. Asações por dívidas pessoais, em que a suspensão do pagamento dosinteresses pudesse ocasionar também o ponto de vista da proteção

da quase-posse, foram às únicas a que nunca se aplicou.A determinação exata da extensão que pode reclamar a idéia

da quase-posse em o nosso direito e no nosso processo, completamente modificados em todos os sentidos, é um problema a resolver.

 Não posso admitir que nenhum direito do futuro chegue a abandoná-la completamente; ela é boa demais para ele; a legislação não pode

tratar senão de traçar suas linhas exatas. Pouco nos importa que sequeira ou não servir-se nisso da palavraposse jurídica; o jurisconsultosaberá o que deve decidir e que termos deve empregar quando a lei

 protege provisoriamente um estado de fato, cuja legitimidade aindanão está demonstrada. Na realidade, haverá sempre posse de coisas

e de direitos; o nome pouco vale para o caso.

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TEORÍA SIMPLIFICADA DA POSSE

Capítulo XII

A literatura

Esta é riquíssima por aumentar-se constantemente; não passa um ano em que não se publiquem dissertações e livros acerca da

 posse. Para as pessoas estranhas ao direito, a citação das obras,

mesmo das mais importantes, não apresenta interesse algum. Limi-tar-me-ei a assinalar duas obras, cada uma das quais fez época aseu modo.

A primeira é a de Savigny, Tratado da posse, cuja primeiraedição publicou-se em 1803 e a segunda, em 1865. Esta última foi

 publicada depois da morte do autor por Ruddorff. Este livro abriunovos horizontes, influindo não somente na teoria da posse, corttotambém no desenvolvimento de toda a ciência romanista. E é tantomais de se notar o fato, porquanto era a primeira obra de um jovemde vinte e quatro anos. Por minha parte não posso conceder-lhemais do que a importância passageira de um brilhante meteoro.Sob o ponto de vista da história do assunto, terá sempre o méritode haver excitado e favorecido poderosamente a investigação científica no terreno da teoria possessória.

Quanto aos seus resultados reais para a ciência, considero-os muito medíocres. A meu ver, Savigny não fez justiça nem aodireito romano nem à importância prática da posse porque, de umlado, as suas idéias preconcebidas impediam-no de ter a imparcialidade necessária parra reconhecer exatamente o direito romano e

 porque, por outro lado, quando empreendeu seu trabalho estavadesprovido de toda noção relativa à prática, defeito que devia ser 

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duplamente pernicioso, sobretudo na teoria da posse, que não podeser compreendida sem a prática.

A obra de Savigny chegou a ser o pomo da discórdia da

 jurisprudência do nosso século; ela desencadeou um conflito sem precedentes. Nenhuma das idéias fundamentais que nela expõe ficou ao abrigo dos ataques, os quais tiveram um êxito tal com relação a algumas, que sucessivamente se reconheceram como insustentáveis. O futuro dirá, e as demais gozarão de outra sorte; eucreio que nem uma só triunfará.

A segunda obra é a de Bruns: O direito da posse na idade

média e em nossos tempos, 1848. E, a meu ver, a obra cientificamais preciosa de nossos tempos acerca da posse; ela é um verdadeiro modelo, porque resolveu o problema a que se havia imposto,

isto é, o desenvolvimento histórico da posse no mundo moderno,fazendo-o de tal modo que nada mais ficou por decidir-se. O pro blema está para sempre resolvido. A obra de Bruns conservará seuvalor para a ciência, enquanto a de Savigny não passará de merointeresse histórico.

• M o t a Prof. 'Jos>S;orópoii-

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