teoria historiografica e pratica pedagógica as correntes de pensamento que influenciaram o ensino...

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Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 703-728 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses Teoria historiográfica e prática pedagógica: as correntes de pensamento que influenciaram o ensino de história no Brasil Historiography theory and practice pedagogic: the chains of thought that influence the teaching of history in Brazil Crislane Barbosa Azevedo * Maria Inês Sucupira Stamatto ** RESUMO Este artigo explicita características de diferen- tes correntes de pensamento pedagógico e historiográfico, relacionando-as ao ensino de História. Infere-se que o conhecimento sobre docência em História altera-se a partir do quadro teórico-metodológico adotado. Assim, proporcionar a compreensão de diversas com- cepções de Educação e de História permitiria a re-significação de objetivos de aprendizagem a serem alcançados pelos alunos e de práticas didático-pedagógicas em sala de aula. Diante de problemas no ensino de História, acredita- se que o professor ao dominar diferentes com- cepções pedagógicas e históricas pode melhor definir e decidir sobre o tipo de conhecimento que trabalhará em sala de aula atendendo às especificidades de seu público escolar. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de História; historiografia; Teorias pedagógicas; Educação Básica; Processo ensino-aprendizagem. ABSTRACT This article explains features of different schools of thought educational and historiogra- phical, relating them to the teaching of history. It follows that knowledge about teaching history in changes from the theoretical and methodological framework adopted. Thus, providing an understanding of different conceptions of education and history would allow the redefinition of learning objectives to be achieved by the students and the didactic and pedagogical practices in the classroom. Faced with problems in teaching history, it is believed that the teacher to dominate different educational ideas and historical can better define and decide on the kind of knowledge that will work in the classroom given the specifics of your public school. KEYWORDS: Teaching History; Historiography; Pedagogical theories; Basic Education; Teaching-learning process. Questões como: o que e como ensinar História? Para que serve aprender História? Quais os objetivos do ensino de História e o papel do professor e do aluno no processo ensino-aprendizagem da disciplina? Quais as estratégias mais adequadas na condução de uma aprendizagem consistente em História? Como se caracteriza o processo de ensino-aprendizagem da História a partir de * Doutora em Educação e Professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) / Brasil. ** Doutora em História/Estudos das Sociedades Latino-Americanas pela Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III / França e Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) / Brasil.

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  • Antteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 703-728 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    Teoria historiogrfica e prtica pedaggica: as correntes de pensamento que influenciaram o ensino de histria no Brasil Historiography theory and practice pedagogic: the chains of thought that influence the teaching of history in Brazil

    Crislane Barbosa Azevedo Maria Ins Sucupira Stamatto

    RESUMO Este artigo explicita caractersticas de diferen-tes correntes de pensamento pedaggico e historiogrfico, relacionando-as ao ensino de Histria. Infere-se que o conhecimento sobre docncia em Histria altera-se a partir do quadro terico-metodolgico adotado. Assim, proporcionar a compreenso de diversas com-cepes de Educao e de Histria permitiria a re-significao de objetivos de aprendizagem a serem alcanados pelos alunos e de prticas didtico-pedaggicas em sala de aula. Diante de problemas no ensino de Histria, acredita-se que o professor ao dominar diferentes com-cepes pedaggicas e histricas pode melhor definir e decidir sobre o tipo de conhecimento que trabalhar em sala de aula atendendo s especificidades de seu pblico escolar. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Histria; historiografia; Teorias pedaggicas; Educao Bsica; Processo ensino-aprendizagem.

    ABSTRACT This article explains features of different schools of thought educational and historiogra-phical, relating them to the teaching of history. It follows that knowledge about teaching history in changes from the theoretical and methodological framework adopted. Thus, providing an understanding of different conceptions of education and history would allow the redefinition of learning objectives to be achieved by the students and the didactic and pedagogical practices in the classroom. Faced with problems in teaching history, it is believed that the teacher to dominate different educational ideas and historical can better define and decide on the kind of knowledge that will work in the classroom given the specifics of your public school. KEYWORDS: Teaching History; Historiography; Pedagogical theories; Basic Education; Teaching-learning process.

    Questes como: o que e como ensinar Histria? Para que serve aprender

    Histria? Quais os objetivos do ensino de Histria e o papel do professor e do

    aluno no processo ensino-aprendizagem da disciplina? Quais as estratgias mais

    adequadas na conduo de uma aprendizagem consistente em Histria? Como

    se caracteriza o processo de ensino-aprendizagem da Histria a partir de

    Doutora em Educao e Professora Adjunta do Departamento de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) / Brasil. Doutora em Histria/Estudos das Sociedades Latino-Americanas pela Universit de la Sorbonne Nouvelle Paris III / Frana e Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) / Brasil.

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    diferentes teorias? Quais as possibilidades de avaliao em histria

    considerando que uma determinada perspectiva de ensino-aprendizagem

    implica em certo tipo de avaliao? Essas e outras questes vm tona ao se

    pensar tanto a trajetria do ensino de Histria quanto as prticas pedaggicas

    nos dias atuais, em nosso pas.

    O ensino de Histria no Brasil, em sua gnese como disciplina obrigatria,

    a partir de 1838 (ensino secundrio) era ministrado em liceus e ateneus

    provinciais assim como por instituies privadas e era voltado para a formao

    dos setores de elite da sociedade. A Histria no sculo XIX integrava o currculo

    denominado de humanismo clssico caracterizado pelo estudo das lnguas,

    com destaque para o latim e considerava os textos da literatura clssica da

    Antiguidade como modelo e padro cultural.

    Em termos metodolgicos, ensino e aprendizagem eram tidos como

    processos separados, correspondendo o primeiro ao professor, identificado por

    prelees; e o segundo, ao aluno, marcado pela memorizao. Neste ensino

    tradicional de Histria, caracterizado por mtodos mneumnicos, por exerccios

    questes-resposta, a avaliao da aprendizagem era feita tambm de forma

    tradicional, atravs de questionrios, arguies orais e provas escritas realizadas

    no final do processo, avaliando, portanto, apenas o resultado final.

    Crticas a essa forma de conduo do ensino e da aprendizagem datam, no

    Brasil, do prprio sculo XIX, pautadas nas discusses sobre a chamada

    pedagogia moderna e os mtodos ativos. Em Histria, especificamente,

    podemos citar Jonathas Serrano, professor da Escola Normal do Rio de Janeiro,

    com suas reflexes sobre o ensino, marcadas tambm obviamente pelos

    referenciais terico-metodolgicos da Histria no perodo.

    Crticas e discusses atravessaram o sculo XX, mas o ensino de modo

    geral, e o de Histria especificamente, seguiu marcado pelo tradicional. Apesar

    das permanncias que lembravam o ensino do sculo anterior, marcado pela

    monumentalidade dos feitos atribudos a heris nacionais e um ensino

    tradicional sem espao para discusses, reflexes, promoo da autonomia do

    pensamento, no final da segunda metade do sculo XX novas discusses e

    mudanas nos pressupostos terico-metodolgicos da histria e da educao

    contriburam para a construo de propostas didticas e curriculares marcadas

    por diferentes concepes de ensino, aprendizagem e avaliao.

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    Assim que, com base em pesquisa historiogrfica, este artigo tem como

    objetivo explicitar caractersticas de diferentes abordagens pedaggicas e

    historiogrficas e caracterizar o ensino de Histria a partir destas bem como

    livros didticos da disciplina sob a influncia de diferentes correntes de

    pensamento. Pressupe-se que o conhecimento sobre o ensino de Histria a

    partir de variadas concepes tericas proporciona a compreenso dos

    significados e das possibilidades de objetivos a serem atingidos em sala de aula

    e assim melhoria do processo ensino-aprendizagem da Histria no Brasil.

    Ensino de Histria e as diferentes abordagens pedaggicas

    A Pedagogia como cincia constituiu-se com a contribuio de vrios

    campos do conhecimento como a Psicologia, a Filosofia, a Biologia, Informtica,

    entre outros. Em decorrncia desse fato, utiliza-se, em muitas ocasies de

    nomenclatura de outras reas ou cria termos para contedos estudados por

    outras disciplinas. Tal situao acarreta, s vezes, confuses em relao, por

    exemplo, aos termos usados nas referncias das teorias pedaggicas.

    Para efeitos de anlise e caracterizao do ensino de Histria a partir de

    diferentes correntes de pensamento pedaggico, toma-se por base a

    classificao apresentada por Stamatto (2007) quando analisa livros didticos.

    A autora agrupa diferentes teorias pedaggicas em quatro conjuntos de

    perspectivas: Transmisso de contedos, Formao reflexiva, Construo

    ativa e Estratgia especfica. Dessa organizao, adotam-se as trs primeiras

    perspectivas, por consider-las principais para efeitos dos objetivos deste artigo.

    As abordagens pedaggicas agrupadas sob a denominao de

    Transmisso de contedos estabelecem como nfase para a aprendizagem a

    recuperao e memorizao de informaes. Ensinar significa transmitir

    conhecimentos em uma variedade de formas e meios, inclusive atravs de

    diferentes linguagens e novas tecnologias. Pode-se ainda considerar no grupo da

    Transmisso de contedos, as abordagens voltadas para procedimentos e

    atitudes, alm da apreenso conceitual. Assim, refere-se tanto a pedagogia

    chamada de Pedagogia Tradicional como a Pedagogia Tecnicista e a

    Pedagogia por Competncias. Para estas, aprende-se por meio de informaes

    sistematizadas, memorizando e repetindo exerccios, textos ou comportamentos

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    e procedimentos.

    Outras abordagens educacionais tambm utilizam-se de diferentes

    linguagens, tecnologias e mesmo memorizao. No entanto, para estas em

    questo, o processo de ensino-aprendizagem ocorre apenas quando de fato se

    transmite o conhecimento, j produzido e acumulado por outros, para o aluno,

    sendo que os contedos memorizados (Tradicional), os meios (Tecnicismo) ou

    as atitudes dos alunos e dos professores (Competncias) para isto so

    determinantes.

    Na disciplina Histria, tais pressupostos marcam um processo de ensino-

    aprendizagem onde o contedo histrico veiculado principalmente pelo texto-

    base ou pelo discurso do professor, tornando-se o objetivo principal do ensino a

    recuperao de informaes e a memorizao. O exerccio Responda, com

    variantes como: citar, preencher lacunas, escrever nomes, copiar informaes

    do texto, entre outras, torna-se o eixo central das atividades.

    Entre os referenciais da Psicologia, no Brasil, em meados do sculo XX,

    encontra-se o behaviorismo em que o professor gera o comportamento, refora

    os desejveis e ignora os indesejveis. O desenvolvimento ocorre por

    condicionamento e repetio. A aprendizagem consiste em uma reao a

    estmulos externos. No Brasil, tal perspectiva ficou conhecida como Tecnicismo,

    instalada via normatizao pelas reformas de 1968 e 1971 (Leis 5540/68 e

    5692/71). Sistematizado pelos governos militares respondia aos anseios do

    projeto de desenvolvimento e segurana nacional de vrios setores sociais

    daquele momento.

    Para o Tecnicismo o discurso do professor e o exerccio da cpia eram

    insuficientes para a aprendizagem, a causa de fracassos escolares estava no

    recurso mal escolhido e utilizado. Da deriva a importncia atribuda aos meios

    no ensino, a exemplo, das tecnologias e das diferentes linguagens. Aliada a esta

    concepo estava a valorizao da objetividade dos comportamentos

    observveis, em detrimento de qualquer subjetividade vinculada didtica, ou

    seja, exclua-se a reflexo e a crtica das disciplinas escolares. Para o ensino de

    Histria, as consequncias foram drsticas e a maior delas, foi a

    descaracterizao da disciplina na formao docente pela introduo das

    licenciaturas curtas e dos Estudos Sociais. As atividades escolares, em

    decorrncia disso, passavam a ser marcadas pela simplificao e segmentao,

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    enfatizando-se os exerccios do tipo de respostas objetivas. Nessa perspectiva,

    na avaliao escolar presta-se mais ateno aos resultados da aprendizagem do

    que as interaes que ocorrem no decorrer do processo ensino-aprendizagem.

    Jussara Hoffman (2000) ao apresentar alertas em relao avaliao de

    aprendizagens significativas no ensino de Cincias, Geografia e Histria,

    registra o perigo de um processo de avaliao descontextualizado ocorrido em

    geral a partir de uma metodologia de ensino tradicional onde s possvel

    avaliar uma suposta aprendizagem atravs de, por exemplo, exerccios e

    questionrios prontos e aplicados de forma padronizada em vrias turmas.

    A renovao nesse conjunto de abordagens pedaggicas tradicionais foi

    sinalizada por estudos do final do sculo XX que propem o trabalho com o

    conceito de competncia. Na rea de Histria, a nfase na ao do processo

    ensino-aprendizagem retorna ao docente e, com isso, igualmente a

    responsabilidade pelo sucesso ou fracasso escolar, desconsiderando-se

    diferentes variveis, como condies de infra-estrutura, de polticas salariais, de

    formao profissional, entre outras.

    O grupo terico denominado Formao reflexiva por sua vez pressupe a

    reflexo crtica e a conscientizao poltica como elementos imprescindveis

    para a aprendizagem e a formao do indivduo para uma sociedade

    multicultural. Como registra Stamatto (2007), facultativa e mesmo presente em

    outras abordagens, para o conjunto da Formao reflexiva compreende-se que

    sem reflexo crtica no possvel aprendizagem.

    Vrias so as teorias educacionais que elegeram como princpio fundador a

    reflexo crtica. Assim, aqui foram reunidas sob a denominao de Formao

    reflexiva desde aquelas identificadas com a Pedagogia Libertadora e a Crtico-

    social dos contedos, como as mais recentes Teorias do currculo, para as quais

    o currculo uma questo de identidade e poder (SILVA, 2004). Dessa forma,

    aprender um aspecto constitutivo da identidade de cada um e ensinar

    formar.

    No Brasil, as primeiras experincias, nessa orientao, datam do incio do

    sculo XX. Ideias da Pedagogia Libertria difundiram-se por escolas Modernas,

    do educador espanhol Francisco Ferrer Guardia (1859-1909), fundadas por

    anarquistas ou membros de sindicatos. Tais experincias fruto do movimento

    operrio foram logo fechadas pela represso.

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    Na dcada de 1950, outras experincias, nesse sentido, ocorreram atravs

    de movimento sociais e daqueles conhecidos como movimentos de cultura

    popular. Intensificaram-se na dcada de 1960, sendo a experincia mais

    conhecida a que originou a Pedagogia Libertadora de Paulo Freire. No ensino

    de Histria a contribuio desta foi evidente. A busca era pela formao de um

    pensar crtico, priorizando a formao poltica e no o acmulo de

    conhecimentos sistematizados no processo ensino-aprendizagem, visando

    formao cidad. As atividades deviam caracterizar-se pelos questionamentos e

    discusses que promovessem a participao dos alunos de forma

    transformadora da realidade e, por isso, deviam partir dos conhecimentos

    prvios dos estudantes.

    O ensino de histria, em tal perspectiva, em dcadas posteriores,

    consolidou-se em prticas voltadas para temas geradores, normalmente

    partindo de situaes do presente para relacionar com situaes do passado,

    sem a preocupao de seguir os contedos tradicionalmente vistos na disciplina.

    Fato que acarretou crticas a tal abordagem, por considerar a falta de acesso aos

    saberes sistematizados um empecilho para a ao transformadora da sociedade.

    Insere-se tambm, nesse conjunto de abordagens, a Pedagogia Crtico-

    Social dos contedos. Sistematizada no Brasil a partir dos anos de 1970, tem

    como pressuposto principal a escola como a instituio responsvel pela

    socializao da cultura, visando democratizao dos conhecimentos

    sistematizados pela humanidade em seu processo histrico.

    O processo ensino-aprendizagem da Histria vinculado a esta abordagem,

    contempla os contedos tradicionalmente ensinados, mas busca apresentar

    propostas desafiadoras e questionadoras que desenvolvam a capacidade de

    raciocnio e de argumentao do aluno. Valoriza-se a ao, a reflexo e a tomada

    de conscincia. Crticas existiram sobre tal abordagem, em decorrncia do fato

    de que, em alguns casos, o que aconteceu foi a substituio de verdades

    consagradas por outras novas, voltando-se a antigas prticas didticas, tais

    como: questionrios, que apesar de crticos, mantinham a forma de perguntas e

    respostas.

    A renovao desse grupo da Formao reflexiva ocorreu no final do

    sculo XX por meio das chamadas Teorias crticas do currculo que visam

    educao para a participao em uma sociedade multicultural. O processo de

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    ensino-aprendizagem baseia-se em aes coletivas, partindo da realidade social

    dos alunos e do desenvolvimento de habilidades voltadas para a ampliao do

    pensamento crtico e participativo. Significa entender a aprendizagem como um

    processo educador, formador da personalidade do indivduo.

    Decorrente do exposto, para o processo ensino-aprendizagem da Histria,

    especificamente, aparece a preocupao com os sujeitos histricos, individual

    ou coletivo, cujas aes fazem histria. Os alunos so sujeitos e constroem a

    histria de seu grupo e sociedade. As prticas didticas buscam problematizar a

    relao passado-presente e, em geral, tomam a realidade do aluno como ponto

    de partida. Nos anos iniciais de escolarizao, por exemplo, a histria parte da

    histria de vida dos discentes, para ento resgatar a memria familiar, da

    comunidade ou municpio com possibilidades do aluno reconhecer os elementos

    que contriburam para a formao da sua identidade social.

    O conjunto denominado de Construo Ativa valoriza a participao

    ativa do aluno, a autonomia do professor, a criatividade e a variedade de

    procedimentos didticos para a aprendizagem de conhecimentos significativos,

    conforme Stamatto (2007). Pode-se perceber que sob tais caractersticas

    agrupa-se um conjunto denso de propostas pedaggicas, desde o

    Escolanovismo, o Construtivismo cognitivista, o Construtivismo Scio-

    histrico e o Cognitivismo por tratamento da informao. A caracterstica que

    as une a ideia bsica de que quem aprende o aluno e em decorrncia de uma

    ao. Esse fato explicaria a importncia atribuda aprendizagem pela Escola

    Nova. Contudo, a partir disso, as diferenas entre tais correntes de pensamento

    multiplicam-se. Mesmo a nomenclatura apresentada possui uma variedade de

    proposies didticas.

    O escolanovismo consistiu-se em oposio escola tradicional, durante a

    segunda metade do sculo XIX, nos pases europeus e norte-americanos. No

    Brasil, as primeiras ideias relacionadas a tal concepo circularam ainda no

    final do Imprio e incio da Repblica sob a denominao de mtodo intuitivo.

    Seus princpios foram incorporados s prticas pedaggicas. No ensino de

    Histria foi mais evidente no estabelecimento dos Estudos Sociais para os anos

    escolares iniciais. At hoje possvel encontrar pressupostos escolanovistas em

    programas, recursos e prticas didticas que priorizam o estudo das

    transformaes econmicas, dos meios de transporte e da ocupao territorial

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    em detrimento das aes dos homens em sociedade, especialmente para a

    primeira etapa do Ensino Fundamental.

    J na primeira metade do sculo XX, nos Estados Unidos e na Europa,

    apareceram as primeiras crticas Escola Nova, fruto dos estudos das estruturas

    cognitivas e dos processos de aprendizagem. Os estudos de Piaget (1896-1980),

    por exemplo, inauguram uma concepo pedaggica marcada pela mudana do

    foco da explicao epistemolgica da aprendizagem que se desloca da ao para

    os processos mentais que possibilitariam o conhecimento. Em relao ao

    ensino, forja-se o termo Construtivismo (Cognitivismo na Psicologia),

    empregado com mltiplos sentidos, mas significando originalmente a ao das

    estruturas mentais e biolgicas, em interao com o meio, na elaborao do

    conhecimento.

    Ao privilegiar o aprendizado e as suas condies sociais, Vigotsky (1896-

    1934) por sua vez fundamenta a abordagem Scio-histrica que considera o

    meio social decisivo para que se consiga internalizar este processo. Na educao,

    a teoria que relaciona os pressupostos scio-histricos e cognitivistas tem sido

    denominada de Scio-construtivista ou ainda Construtivismo-interacionista.

    O processo ensino-aprendizagem da Histria a partir de tal abordagem

    caracteriza-se pelos trabalhos com documentos fazendo o aluno a interpretar

    fatos histricos e elaborar explicaes. Nesse sentido, esta corrente de

    pensamento incorpora a ideia de que o saber produzido sobre o passado

    construdo a partir dos vestgios deixados pelos prprios homens. O ensino

    toma por base atividades voltadas para investigaes e pesquisas

    possibilitadoras de leituras e anlises de documentos.

    Por fim, outra abordagem deste grupo a Cognitivista por tratamento da

    informao, originria da interface com a computao. O conhecimento

    considerado como um processo de tratamento de informaes recolhidas. O

    professor trataria a informao para o aluno ao relacionar, organizar e

    esquematizar os conhecimentos para o discente (GAUTHIER e TARDIF, 1996).

    Diante dessa variedade de concepes, importante questionar: Qual o

    lugar do aluno no processo ensino-aprendizagem nestas diferentes abordagens

    apresentadas? Joannaert e Borght (2002: 204. Apud STAMATTO, 2007)

    apresentam uma explicao:

    para o senso comum, o aprendiz acumula conhecimentos: ele um acumulador de conhecimentos; para os behavioristas, o aprendiz

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    modifica de forma duradoura uma ou vrias condutas: ele um transformador de comportamentos; para os cognitivistas oriundos do tratamento da informao, o aprendiz recebe do exterior informaes que ele trata de forma ativa: ele um receptor ativo de informaes externas; para os construtivistas, o aprendiz constri seus conhecimentos em interao com o meio: ele um criador de conhecimentos.

    Em decorrncia da grande variedade de correntes de pensamento que

    influenciaram o ensino de Histria no Brasil, a exemplo das aqui explicitadas,

    muda-se no apenas o lugar do aluno no processo didtico modifica-se,

    igualmente, o lugar ocupado pelo professor. Este pode variar desde aquele

    caracterizado pela transferncia de informaes: sendo um reprodutor de

    contedos elaborados por outrem; passando pelo lugar daquele que ao

    problematizar os contedos histricos a partir da realidade de seu pblico

    escolar provoca reflexo em seus alunos: sendo um orientador crtico e

    reflexivo; at aquele lugar definido pela orientao de aes didticas que

    incorporam o instrumental bsico da produo do conhecimento histrico

    (fontes e mtodos): sendo, o professor, um orientador da aprendizagem e

    produtor de conhecimentos contextualizados, por exemplo. Esse fato aponta

    para a importncia do conhecimento tambm de diferentes teorias da histria e

    suas relaes com o ensino escolar.

    Correntes de pensamento histrico e a histria ensinada

    Referncias s abordagens historiogrficas apontam imediatamente para

    trs correntes: o positivismo, o marxismo e a escola dos Annales. Como fruto

    destas, pode-se citar outros exemplos de possibilidades interpretativas como a

    historiografia social inglesa e a nova histria.

    Pensar sobre mudanas no ensino de Histria a partir de influncias

    historiogrficas leva ao recuo dcada de 1930, mais precisamente a 1931 com a

    Reforma Francisco Campos. Esta propunha a substituio da Histria

    Universal pela Histria da Civilizao, mudana que implicava o rompimento

    com uma viso tradicional, catlica do conhecimento histrico e a aproximao

    com uma viso laica, de fundamento positivista. At a referida reforma, a

    histria ensinada caracterizava-se como sendo fruto da construo de verdades

    indiscutveis e relatadas sem que fosse demonstrada a interveno do narrador.

    Alm disso, a histria, como disciplina obrigatria no currculo, era estruturada

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    como um processo contnuo e linear que determinava a vida no presente.

    Naquele momento, predominavam, ainda, os estudos literrios voltados para

    um ensino clssico e humanstico, e destinados formao de cidados

    proprietrios e escravistas, como registram os Parmetros Curriculares

    Nacionais (BRASIL, 1997).

    A influncia positivista ganhou espao na Repblica e o ensino de Histria

    recebeu sua influncia. De acordo com tal abordagem, concebe-se o

    conhecimento em uma perspectiva total, organizando todo o passado da

    humanidade num contnuo e harmonioso tempo linear. A histria tem por

    funo o levantamento cientfico dos fatos, deixando sociologia a sua

    interpretao. Os documentos, nesta perspectiva, tm uma funo: apresentar

    os fatos. O papel do pesquisador torna-se o de extrair das fontes o que elas tm.

    Por conseguinte, histria resta a funo nica da narrao. Os fatos histricos

    se encadeiam como que mecnica e necessariamente numa relao determinista

    de causas e consequncias.

    O ensino de Histria organizado a partir dessa perspectiva terica

    caracterizado por possuir uma periodizao que no estimula a busca autnoma

    e criativa do conhecimento histrico, pois impe uma sequncia preestabelecida

    de contedos. Dessa forma, no se favorece a liberdade na escolha dos assuntos

    a serem estudados. O ensino marcado pela narrativa construda sobre

    exemplos a serem apreendidos, admirados e seguidos atravs do estudo das

    aes realizadas pelos heris considerados construtores da nao, os

    governantes principalmente.

    De acordo com o pensamento positivista, o historiador deve ser imparcial

    inexistindo interdependncia entre ele e o seu objeto; a histria existe em si,

    objetivamente e se oferece atravs dos documentos; os fatos devem ser extrados

    dos documentos rigorosamente criticados interna e externamente e organizados

    em sequncia cronolgica. Toda reflexo terica nociva, pois introduz a

    especulao filosfica, fugindo da objetividade. A histria cientfica, portanto,

    seria produzida por um sujeito neutro que evitaria hipteses, no julgaria e no

    problematizaria o real. O passado seria reconstrudo minuciosamente, por uma

    descrio definitiva, construda a partir de documentos escritos e oficiais.1

    Um currculo de Histria organizado a partir do pensamento positivista, 1 Para maiores informaes, ver: Reis (1999); Gardiner (1984).

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    tambm chamado de tradicional, tem seus contedos ordenados de forma linear

    com privilgio da viso eurocntrica, que por sua vez no deixa espao para que

    o aluno se torne sujeito do processo de aprendizagem. H privilgio histria

    universal e a sua relao com a histria nacional. Por no contemplar espao

    reflexo de professores e alunos, desconsiderar os interesses dos diversos

    grupos sociais bem como os princpios de uma aprendizagem significativa est

    sendo, atualmente, bastante criticado. Em outros termos, uma abordagem

    curricular positivista no viabiliza a compreenso da realidade sociocultural da

    comunidade escolar posto que no h espao para as relaes entre presente e

    passado e os contedos histricos no tm meios para contextualizao.

    Machado (Apud. DIEHL, 1999), ao longo da sistematizao dos dados

    empricos fruto de entrevista feita a alunos, em uma pesquisa sobre currculo de

    Histria, percebeu que os alunos tinham dificuldades de percepo dos diversos

    tempos histricos, predominando, a priori, a imagem de um tempo passado e

    distante. Acredita-se ser isso resultado do modelo de abordagem adotado pelo

    currculo, o modelo tradicional de Histria baseado no referencial positivista.

    Parte-se da compreenso hoje de que o ensino-aprendizagem de Histria no

    pode resumir-se apresentao e memorizao de uma simples enumerao de

    datas. Estas so necessrias. No h ensino de histria sem cronologia.

    Contudo, a seleo e apresentao de datas devem ser feitas de maneira

    contextualizada, tendo em vista a necessidade de localizar o aluno no tempo, a

    partir de seu tempo e do passado, a fim de que haja compreenso histrica.

    Ao longo das dcadas de 1940 e 1950 assisti-se expanso das Faculdades

    de Filosofia Cincias e Letras promovendo a formao de professores de

    Histria para outros nveis alm do ensino primrio (cujos professores

    encontravam formao nas escolas normais), bem como a um aumento do

    debate sobre mtodos e objetivos do ensino de Histria. Tais debates foram

    materializados, por exemplo, em artigos publicados em Revistas de Histria,

    como demonstram pesquisadores do ensino de Histria (BITTENCOURT,

    2004; CAIMI, 2001) em seus estudos.

    importante ressaltar que a formao de professores de Histria

    ocorrendo nas faculdades afetou o ensino de Histria gradualmente. Um

    exemplo disso foi o que ocorreu com a historiografia marxista nos anos de 1960,

    que chegou a influenciar a produo de livros didticos para o ensino

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    secundrio no perodo e trazia uma proposta de ensino voltada para a formao

    do cidado poltico e crtico. Uma histria engajada que foi bruscamente freada

    em 1964.

    Certa vertente do marxismo traz crticas s outras concepes de histria

    por considerar que elas excluem ou consideram como coisa secundria a

    questo real da histria a base material. A chave da evoluo histrica para

    Karl Marx estava na maneira como os homens produziam e usavam os

    instrumentos para criar os seus meios de subsistncia. De forma simplificada,

    pode-se dizer que a histria na viso marxista apresenta as seguintes

    caractersticas: a base real ou efetiva da histria humana a vida material; as

    ideias dominantes numa sociedade so as ideias da classe dominante; o modo

    de produo independe da vontade individual dos agentes histricos e

    corresponde a uma certa fase do desenvolvimento scio-econmico; a chave da

    dinmica da histria est no conflito entre foras produtivas e relaes de

    produo; a histria caminha em direo sociedade sem classes ou

    comunista; o proletariado o principal agente da instaurao da sociedade

    comunista (agente revolucionrio) (GARDINER, 1984).

    O marxismo compreende trs aspectos principais: o materialismo

    dialtico, o materialismo histrico e a economia poltica. Dessa forma,

    pressupe a existncia de dois conceitos, a histria e a dialtica: o primeiro

    representa o terreno do real e o segundo significa o mtodo de apreenso do

    real. A partir dessa concepo, a histria a histria do trabalho humano

    (estruturas econmicas); feita pelos homens, pelas condies que lhe so

    dadas processo histrico. Os elementos determinantes para a anlise do

    processo histrico devem ser, ento, buscados nos modos de produo, que

    abrangem tanto as foras produtivas (estruturas e infra-estrutura) quanto os

    efeitos das ideologias dentro da vida social (superestrutura). Ainda, as lutas de

    classe representam o motor da histria.

    A funo da histria, de acordo com a abordagem marxista a

    compreenso cientfica da sociedade para depois transform-la (viso

    teleolgica de futuro), v a histria como finita; o povo tem um papel (classe

    trabalhadora) a cumprir na histria, cabendo-lhe acelerar a caminhada rumo ao

    fim inevitvel, o Estado socialista e, em seguida, a sociedade sem classes.

    Os fatos histricos so as transformaes do mundo pelo trabalho humano

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    (mono-causalidade/economia). O mtodo aplicado histria o materialismo

    histrico, uma teoria econmica da qual emergem conceitos, como: modo de

    produo, fora de trabalho e mais-valia. Consiste tambm em uma doutrina

    poltica qual esto ligadas as categorias de revoluo, luta de classe,

    proletariado, partido, Estado, ditadura do proletariado, sociedade sem classes,

    entre outras.

    Entre os principais alvos de discusso levantados em torno do marxismo,

    pode-se registrar trs: o determinismo economicista, o cientificismo e o

    voluntarismo. Este ltimo confere grande poder para a estrutura. A histria, a

    partir disso, caracteriza-se pela inexistncia de sujeito posto que o que se tem

    so explicaes com base em teoria ou ideia preconcebida. Assim, corre-se o

    risco de abrir espao para que relaes sociais ou sujeitos histricos sejam

    substitudos por categorias de anlise ou instituies, por exemplo.

    Aspectos da perspectiva terica marxista marcada pela anlise das

    caractersticas e conflitos sociais assim como pela explicao acerca das

    transformaes por que passam os homens em sociedade marcam tambm

    contedos e ensino escolar de Histria.

    A linearidade absoluta da histria positivista flexibilizada na perspectiva

    marxista, a partir da qual a histria entendida como cincia da totalidade do

    real na dinmica de suas aes, ao mesmo tempo articuladas e contraditrias.

    Dessa maneira que se espera que em meio a um processo ensino-

    aprendizagem de Histria, os envolvidos obtenham meios e instrumentos

    necessrios para a anlise e compreenso da realidade social como uma

    totalidade histrica complexa. H assim, possibilidade de percepo da histria

    como processo, o que permite que o aluno compreenda a humanidade em suas

    trajetrias e nestas perceba os mecanismos de diferenciao entre os grupos

    sociais.

    A identificao de diferenas sociais por meio de um estudo histrico

    possibilita uma valorizao dos homens como sujeitos construtores da histria.

    O aluno deve ser concebido e conceber-se como esse agente do processo

    histrico. A partir da abordagem marxista, o ensino caracteriza-se pelo respeito

    s diversas formas de manifestao social, entendidas como portadoras de

    significados, cdigos, princpios, identidade. Alm disso, necessrio identificar

    e compreender as relaes que os diferentes grupos sociais estabelecem entre si

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    em diferentes temporalidades. A compreenso histrica adquirida por meio do

    ensino escolar possvel atravs da conscincia da prxis, entendida como

    necessidade de interveno junto estrutura socioeconmica. Compreender que

    os homens, medida que transformando o mundo, transformam-se a si

    mesmos, pensar historicamente.

    No novo cenrio que se delineou na dcada de 1980, essas duas tendncias

    que tinham exercido forte influncia sobre a historiografia e tambm sobre a

    histria ensinada at ento a escola rankeana e o marxismo sofreram

    severos questionamentos. Essa crise paradigmtica caracterizou-se, entre outros

    aspectos, pela tentativa de deslocamento da macroistria para a microistria;

    pela transferncia do centro de interesses da pesquisa histrica das estruturas

    abrangentes (economia, sociedade, poltica) para a pesquisa das pessoas e de

    seu cotidiano.

    Mudanas paradigmticas ocorreram no perodo tambm no campo da

    pedagogia. A produo acadmica e escolar dos anos de 1980 e 1990 apontava

    para crticas sobre o ensino de Histria da poca. Tais crticas encontravam

    fundamentao nas mudanas ocorridas tanto no mbito da teoria da histria

    quanto da educao.

    Caimi (2001), ao analisar as propostas veiculadas na produo acadmica

    e escolar para o ensino de Histria nas duas ltimas dcadas, questiona se estas

    abandonaram as orientaes do paradigma moderno. De acordo com a

    pesquisadora no ocorria, no perodo, uma rejeio ao paradigma moderno nas

    orientaes terico-metodolgicas do ensino de histria. Havia, sim, uma crtica

    a determinados modelos histricos vinculados a esse paradigma. Parecia, enfim,

    que o modelo positivista era refutado em bloco e que o modelo marxista era

    rejeitado naquilo que se manifestava como uma leitura ortodoxa e mecanicista

    da teoria de Marx.

    A leitura, sistematizao e anlise realizada por Caimi (2001) de mais de

    cem ttulos da amostragem indicaram que, a despeito de todas as inovaes que

    o discurso acadmico e escolar vem propondo no ensino de histria,

    permanecem slidas as bases da disciplina como um instrumento para

    compreenso e transformao da realidade. Quer dizer, a histria, como

    disciplina escolar, no rejeita a funo social do conhecimento histrico,

    tampouco a noo de processo histrico ou a viso dialtica da realidade,

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    entendida como totalidade dinmica estabelecida em diferentes ritmos.

    Percebe-se que as orientaes terico-metodolgicas presentes na

    produo fundamentam-se em dois modelos que mantm algumas relaes de

    semelhana e complementaridade entre si: uma certa vertente do marxismo e o

    movimento dos Annales. Nota-se a partir disso, mudanas no ensino de Histria

    que comeam a se delinear mais claramente nos anos de 1980.

    A partir desses anos, em meio luta pela redemocratizao do Estado

    brasileiro, h muito sob regimes militares de governo, os profissionais da

    educao passam a se organizar de forma mais efetiva e com o objetivo de

    discutir e elaborar novas propostas para a educao no pas. Com o retorno do

    pas democracia e a promulgao da Constituio de 1988, abriam-se as

    discusses sobre a elaborao de uma nova Lei de Diretrizes e Bases para a

    educao e a publicao de Parmetros Curriculares Nacionais (PCN). O que se

    observa que tanto nas propostas curriculares de professores de Histria

    quanto no que finalmente foi publicado nos PCN, a histria ensinada aparecia

    com o objetivo de formao para a cidadania e para tanto, dentro da sociedade

    complexa e plural que se dirigia para a escola e da aproximao buscada entre

    escola e universidade, a Histria passava a ser entendida como instrumento

    para leitura e compreenso do mundo.

    Essa mudana de objetivos dentro da histria ensinada melhor

    compreendida quando se observam as transformaes sucedidas no mbito

    historiogrfico, ocorridas dentro do prprio contexto de discusses acerca da

    chamada crise de paradigmas da cincia. No incio do sculo XX, a teoria da

    relatividade, a teoria quntica e a teoria eltrica da matria romperam com o

    paradigma cientfico emprico-analtico, quebrando certezas e flexibilizando

    conceitos. No campo historiogrfico nascia na Frana uma nova forma de

    pesquisa histrica, que ficara reconhecida posteriormente como Escola dos

    Annales, sob a liderana de Lucien Febvre e Marc Bloch. O resultado de tais

    eventos para a histria visto na mudana da concepo de fontes e objetos.

    Flexibilizada tal concepo, amplia-se para os estudos histricos as

    possibilidades de investigao e integrando a esta a interpretao.

    A partir de ento, o ensino de histria passava por mudanas mais

    profundas, com o aparecimento de experincias que misturavam pressupostos

    de teorias diferentes. Percebe-se influncia do movimento historiogrfico

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    contemporneo no ensino escolar bsico, especialmente da historiografia social

    inglesa e da Nova histria francesa. Essa proposta busca as mltiplas

    experincias vividas pelos sujeitos histricos em diversos tempos e lugares. Suas

    razes remontam ao movimento dos Annales.

    Na trajetria do movimento dos Annales, so contempladas trs fases

    (BURKE, 1990). Na primeira, de 1920 a 1945, sob a orientao de Bloch e

    Febvre, privilegiou-se a histria econmica e social. A totalidade era obtida na

    histria econmica, opondo-se histria tradicional. A segunda fase, de 1945 a

    1968, dominada pela presena de Fernand Braudel, preteriu grande parte da

    histria social, privilegiando a histria econmica, opo que se justifica pela

    expanso econmica mundial no ps-Segunda Guerra (1939-1945), que

    promoveu intensa industrializao, urbanizao e consumo. A ltima fase

    corresponde ao perodo de 1968 at nossos dias, quando j no se observa mais

    o predomnio de determinados intelectuais e forte o aspecto

    interdisciplinar/multidisciplinar, em que diferentes perspectivas e autores

    encontram espao de atuao. A partir, principalmente, dos anos de 1970, o que

    se observa o surgimento de uma nova orientao marcada por uma

    fragmentao terica a partir das propostas de Le Goff, Le Roy Ladurie, Pierre

    Nora e outros. H um rompimento com a preocupao com a totalidade do

    social, da histria total, como postulava o projeto original dos Annales. Passa-se

    a pesquisas sobre novos e por vezes especficos temas: mulheres, crianas,

    famlias, entre outros.

    A histria, no Brasil, sofre no ensino a influncia dos Annales em sua 3

    etapa a Nova Histria no final do sculo XX, momento em que o novo

    pblico escolar, maior e mais diversificado a partir de 1970, passa a exigir da

    escola respostas para as suas inquietaes. A histria antes centrada nos feitos

    dos heris e dos administradores pblicos passa a partir de ento a ceder lugar

    para uma histria ensinada preocupada com a compreenso da realidade social

    e histrica.

    Sobre a influncia de tal movimento historiogrfico podem ser citadas trs

    de suas caractersticas e suas consequentes contribuies no ensino de Histria:

    perspectiva da histria global, noes de mltiplas temporalidades e a histria a

    partir de questes-problema.

    Tais mudanas, no Brasil, foram fruto de discusses e debates organizados

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    e sistematizados pela Associao Nacional dos Professores de Histria

    (ANPUH) e tambm pelo Ministrio da Educao pelo menos em uma dcada, a

    qual antecedeu a publicao dos PCN em 1997. Os Parmetros incorporaram

    grande parte das discusses acadmicas sobre o ensino de Histria como: o

    trabalho com noes e conceitos bsicos, uma perspectiva interdisciplinar e

    pluricultural de currculo, o ensino articulado com a pesquisa, o uso de fontes e

    diferentes linguagens no ensino da disciplina e o ensino a partir de eixos

    temticos.

    No sentido que atribui Fernand Braudel, a perspectiva da histria global

    no ensino da disciplina, apresenta-se bem delineado no ensino por eixos

    temticos. Este possibilita um estudo da histria a partir das experincias de

    vida dos alunos ao partir de uma problematizao da realidade social e histrica

    dos estudantes. O estudo da Histria atravs dos eixos-temticos permite que se

    transite das partes para o todo e vice-versa, em constante vai-e-vem no tempo e

    no espao, permitindo a compreenso da totalidade do social em suas

    contradies, mudanas e permanncias e, portanto, na sua historicidade.

    Trabalhar com o ensino tomando por base mltiplas temporalidades

    consiste em admitir em um mesmo tempo cronolgico, a existncia de

    diferenciados nveis de temporalidade. Tempos biolgico, psicolgico,

    cultural, entre outros, nos quais os homens realizam suas vidas, experimentam e

    fazem histria, podem ser considerados no estudo da Histria ensinada.

    Apreender esse flexvel movimento histrico nas formaes sociais ao longo do

    tempo um dos objetivos desafiantes que se impem aos professores de histria

    hoje.

    De acordo com a Nova histria, o fato histrico passa a ser percebido num

    tempo de curta durao, como um momento da conjuntura social; a sntese dos

    vrios momentos que forma a conjuntura, que tambm de curta durao e

    deve ser abordada nos vrios aspectos do poltico, do cultural, do social e do

    econmico.

    A histria a partir de questes-problema consiste em propor que, com base

    em situaes problematizadoras extradas da realidade social dos alunos,

    busque-se respostas no passado, em diferentes pocas e lugares, sempre

    orientados por dvidas e indagaes reais, do tempo presente. O intuito que o

    ensino de histria seja significativo para os alunos na sua experincia atual. No

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    se aceita, portanto, que se estude toda a histria numa perspectiva progressiva

    do passado para o presente conforme orientao positivista.

    Contribuio significativa da Nova histria, a proposio da histria-

    problema aparece como uma possibilidade de substituio histria-narrativa.

    Apresenta-se uma histria voltada para as grandes questes do presente. Est

    colocada a a funo social da histria: responder a, pelo menos, algumas das

    grandes interrogaes da nossa poca. Inserida em um contexto de crises

    paradigmticas, em que os homens buscam mais do que nunca, a sua

    identidade, a nova histria toma como um desafio responder a inquietaes do

    hoje. uma histria-problema que pretende iluminar o presente e ser uma

    forma de conscincia que permite ao aluno compreender o contexto atual e, ao

    mesmo tempo, quando esse detiver o conhecimento do presente, ter condies

    de entender outros perodos da histria.

    Em termos gerais, a produo acadmica acerca do ensino de Histria na

    Educao Bsica, tem sinalizado para perspectivas de mudanas no que se

    refere a tendncias e mesmo propostas de ensino. Em meio a tal produo

    possvel identificar a convivncia entre antigas e recentes influncias de prticas

    pedaggicas e correntes historiogrficas. O quadro abaixo apresenta alguns

    exemplos:

    Antigas prticas Recentes prticas

    Ensino marcado pela memorizao sobre o conhecimento produzido

    Ensino caracterizado pela produo do conhecimento

    Unidade como marca da histria da humanidade

    Histria humana marcada pela diversidade e contradio

    Promoo de uma cidadania poltica Promoo de cidadania social Cronologia Ensino temtico e datas

    contextualizadas Histria narrativa Histria problema Histria entendida como cincia do passado

    Histria compreendida como leitura do presente

    Histria-episdio, nfase nos fatos Histria-processo

    Sobre as discusses das polticas educacionais e currculos de histria, o

    que se observa que, nas discusses curriculares, h forte influncia de

    paradigmas educacionais crticos (SILVA, 2004) e, no mbito da historiografia,

    h um dilogo estreito com a Nova Histria e com a historiografia social inglesa.

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    Esses referenciais bem como uma perspectiva de abordagem tradicional so

    perceptveis nos manuais didticos que chegam escola de ensino bsico no

    Brasil. Os livros didticos absorvem, em maior ou menor medida, as mudanas

    que correm, por exemplo, no debate acadmico nacional, no mercado editorial,

    nos programas de ps-graduao.

    Livros didticos de Histria hoje a partir de diferentes correntes de pensamento

    Na leitura de livros didticos de Histria publicados atualmente no pas

    percebe-se o referencial terico-metodolgico adotado. Em uma tentativa de

    sntese e com exemplificaes pode-se afirmar que em uma perspectiva

    tradicional, originria da concepo positivista da histria, que trazendo para os

    dias atuais pode-se chamar de uma Histria Poltico-administrativa, o passado

    resgatado como uma verdade. O relato nos livros didticos linear. Batalhas e

    feitos hericos so frequentemente narrados e seus atores so do sexo

    masculino e de camadas superiores da sociedade econmica e poltica.

    A orientao positivista consiste em uma forma de organizao mais antiga

    dos livros didticos da disciplina Histria, datando do sculo XIX. Atualmente

    vem se atualizando com a insero de sugestes de atividades como leituras de

    documentos, imagens, com indicao de filmes, ainda, sem, no entanto,

    problematizao. A narrativa organiza-se a partir de muitas datas. s vezes

    quando imagens de personagens so apresentadas, o que se nota a presena de

    personagens polticos e militares da histria poltica.

    Uma outra perspectiva de abordagem que aparece em livros e

    consequentemente causa influncia no ensino a que se pode chamar de

    Histria scio-econmica. Esta pautada no aporte terico marxista de forma

    genrica apresenta uma priorizao dos processos scio-econmicos para a

    explicao histrica, eles so eleitos como motores da sociedade e condutores da

    narrativa histrica.

    Nos livros didticos no Brasil essa orientao terico-metodolgica comea

    a aparecer na dcada de 1950, primeiramente nos livros do ensino secundrio.

    Em alguns momentos torna o contedo trabalhado distante do cotidiano dos

    alunos. Por exemplo, a histria dos ciclos econmicos: pecuria, minerao,

    acar, caf, industrializao que se caracteriza por no viabilizar dilogos

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    com a vida prtica de crianas e adolescentes.

    Atualmente, percebe-se uma diminuio da quantidade das obras

    construdas a partir dessa corrente de pensamento. Alterando-se para os dias de

    hoje, tem sofrido a influncia da histria social inglesa passando nas obras

    didticas a estruturar os contedos a partir de problemas do cotidiano. Busca-se

    um tratamento problematizador para temas sociais e econmicos, dando-se

    nfase a conceitos como: conscientizao, cultura de classe, relaes de poder,

    valorizao de identidades, alteridade etc. Percebemos ainda elementos como

    classes e produo econmica, mas trabalhados de outra forma, voltando-se

    preocupao em desenvolver uma cidadania ativa nos alunos, com

    conscientizao poltica.

    A partir dessa vertente, as imagens no mostram apenas heris como na

    narrativa da Histria poltico-administrativa (de influncia positivista), pessoas

    comuns aparecem nas imagens representando sempre algum evento, um

    exemplo corrente nos livros so as imagens dos caras-pintadas. Outro exemplo

    o tratamento dado a um texto sobre trabalho, com atividade de leitura

    simultnea com imagens de temporalidades diferentes, tratando do tema

    problematizando-se a partir do hoje por meio de trabalhos de comparao.

    Sob a influncia da Nova histria, alguns manuais didticos so

    organizados priorizando uma abordagem mais antropolgica e geogrfica. Nos

    livros didticos essa influncia comea nos livros de Estudos Sociais. So

    frequentes os trabalhos com conceitos como: Diferenas e semelhanas,

    imaginrio, memria, representaes, prticas culturais, patrimnio, cotidiano,

    cultura material, diferentes culturas e a diversidade de fontes. Por exemplo,

    uma questo de exerccio que pergunta: Em sua opinio, que materiais podem

    ser utilizados para o conhecimento do passado? Essa questo leva os alunos a

    perceberem as fontes como algo que no apenas o oficial, ao ver que a cultura

    material de cada poca representativa do perodo podendo informar o

    estudioso sobre algo relativo ao seu contexto.

    Correntes de pensamento no ensino de Histria hoje: para que caminho apontam as discusses acadmicas e as propostas curriculares nacionais?

    Para muitos autores, nas atuais propostas curriculares as concepes de

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    contedos escolares e de aprendizagem centram-se na relao entre ensino e

    aprendizagem e no mais exclusivamente no ensino, como anteriormente.

    Ensino e aprendizagem so entendidos a partir de ento como indissociveis e

    os mtodos de ensino passam a ser associados a um processo que envolve

    cuidado nos critrios de seleo de contedos e encontram-se ligados

    avaliao. Uma concepo de mtodo de ensino articulada relao entre os

    conhecimentos prvios do aluno, o conhecimento cientfico e o escolar leva a

    mudanas nos mtodos de avaliao, que ao passar a considerar essas relaes

    de saberes, discute a reconsiderao sobre o significado do que erro e

    assume uma postura crtica e no punitiva ou classificatria, tanto do trabalho

    do aluno quanto das prprias aes do docente. Em outras palavras, tanto o

    ensino e a aprendizagem quanto a avaliao passam a ser entendidos como

    processo.

    Acerca do que e como ensinar Histria, Caimi (2001) mostra a existncia

    de tendncias organizadas em cinco grupos, possveis de serem encontrados na

    produo acadmica e escolar, entre 1980 e 1998, e ainda atuais, so elas: 1) a

    realidade social como objeto, objetivo e finalidade do estudo da histria; 2) a

    integrao entre ensino e pesquisa; 3) a formao e atuao do professor voltada

    para uma autonomia intelectual e compromisso poltico; 4) o tempo presente

    como ponto de partida, os eixos temticos e as mltiplas temporalidades; e 5) a

    pluralidade cultural. Todas essas tendncias foram consideradas nos PCN-

    Histria.

    De acordo com os PCN-Histria, para o aluno da 1 a 4 srie (hoje 1 ao

    5 ano) o ensino deve organizar-se a partir de eixos temticos, por meio de

    conceitos e a partir da histria local ou do lugar. Para os quatro ltimos anos do

    Ensino Fundamental, o ensino permanece organizado a partir de eixos

    temticos e com ateno incorporao de diferentes fontes e linguagens. Para

    o nvel mdio, o ensino de Histria mantm a proposta de organizao dos

    contedos por eixos temticos e da utilizao de fontes no ensino, atentando a

    para o ensino e a aprendizagem do processo de produo do conhecimento

    histrico, em prol da efetivao de uma autonomia intelectual do aluno. Os

    temas de ensino de Histria propostos pelos PCN so ainda articulados aos

    temas transversais: meio-ambiente, tica, pluralidade cultural, sade; educao

    sexual; trabalho e consumo.

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    Merece ateno uma observao sobre o ensino-aprendizagem em Histria

    nos anos iniciais da Educao Bsica de acordo com as atuais propostas

    curriculares. Recomenda-se que o professor ao ensinar Histria atente para o

    desenvolvimento de noes como espao, tempo, relao, histria, semelhana,

    diferena, mudana, sociedade etc. para que as crianas aprendam a se situar e

    situar os outros no mundo, a perceber as relaes existentes entre elas e as

    pessoas, e entre os diferentes objetos que as cercam. Busca-se atravs desse

    ensino, sistematizar o conhecimento do aluno na dimenso familiar, da histria

    da cidade e do cotidiano, pela explicitao de seus referenciais valorativos,

    culturais e sociais.

    Tem-se, dessa forma, o pressuposto da realidade social como ponto de

    partida e de chegada do ensino e da aprendizagem em Histria. Isso ocorre na

    medida em que se prope a valorizao das experincias individuais e coletivas

    dos alunos e a compreenso de suas relaes sociais e histricas como ponto de

    partida da formao da conscincia histrica.

    Ao ser a mudana uma das bases da histria, seus conceitos esto ligados a

    determinados contextos. O ensino e a aprendizagem de Histria no podem,

    portanto, prescindir de uma slida base conceitual. importante que o

    professor busque fazer com que o aluno compreenda conceitos e caractersticas

    de determinada sociedade em referida poca, mas, principalmente, que

    possibilite o estabelecimento de relaes entre os aspectos temporais entre as

    diversas culturas, ou seja, que historicize cada espao.

    Proena (s.d.) afirma, no entanto, que o domnio de conceitos pelos alunos

    depende de condies como: idade, nvel de desenvolvimento, meio social e

    cultural de origem etc., caractersticas a que o professor dever atentar em suas

    aulas ao abordar determinados conceitos em sala de aula, alm de est vigilante

    ao currculo e ao programa da disciplina. Afirma-se, porm, a viabilidade do

    processo ensino-aprendizagem em histria com base em conceitos,

    diferenciando-se obviamente a conduo do processo de acordo com as

    caractersticas do pblico escolar. Para o trabalho com determinados alunos, o

    ensino-aprendizagem conceitual requer fundamentalmente a vivncia de

    conceitos, mais do que a definio terminolgica. A aprendizagem conceitual

    pode preceder aprendizagem semntica. importante que os conceitos sejam

    vividos, praticados.

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    Para tanto, fundamental um planejamento orientado adequadamente em

    termos terico-metodolgicos. A adoo de uma tendncia pedaggica e

    historiogrfica ou de princpios metodolgicos de tendncias coerentes entre si

    importante para que se evite uma possvel dicotomia entre teoria e prtica. Para

    o processo de ensino-aprendizagem da Histria de acordo com as atuais

    discusses acadmicas e propostas curriculares nacionais tendo em vista um

    bom exerccio do ensino, so exemplo de prticas:

    - ensino que possibilite a construo em bases dialgicas; - acesso prtica de pesquisa de acordo com a progresso da aprendizagem dos alunos; - uso de diferentes linguagens; - conhecimento de teorias cognitivas e interacionistas capazes de explicar como se realiza a organizao da estrutura cognitiva dos alunos, para a compreenso e mesmo transformao do processo ensino-aprendizagem; - metodologias participativas; - histria local e regional com relaes com o geral, pelos caminhos da pesquisa, entendida como criao e no cpia de lio; - construo de conceitos, entre outras prticas.

    evidente, tanto na literatura dos ltimos 20 anos sobre o ensino de

    Histria quanto na proposta dos PCN, a admisso da relatividade do

    conhecimento histrico. Tal princpio no significa uma perda de significado ou

    referenciais. O que se busca uma prtica de ensino onde contedos sejam

    estudados de forma contextualizada.

    Para superar dificuldades no ensino-aprendizagem em Histria considera-

    se tambm importante o conhecimento sobre diferentes tendncias da histria e

    da educao, a fim de que se possa refletir sobre que tipo de aprendizagem e de

    conhecimento histrico se est enfatizando no currculo escolar.

    No atual contexto, em que o ensino de Histria se encontra, onde

    contedos e mtodos so pensados concomitantemente e tendo em vista um

    planejamento de atividades a partir dos quais os alunos possam problematizar,

    elaborar hipteses, refletir etc. faz-se necessrio que o professor tenha claros os

    princpios orientadores da avaliao da aprendizagem.

    Seguindo o pensamento de Proena (s.d.), afirma-se que para avaliar a

    progresso do aluno, s se pode fazer se o tiver avaliado no incio da unidade de

    ensino. No que se pode chamar de uma avaliao diagnstica busca-se

    identificar o estado em que o aluno se encontra em relao matria a ser

    trabalhada e para identificar suas possibilidades e deficincias. Obviamente a

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    avaliao deve ser realizada no decorrer das atividades da unidade. A chamada

    avaliao formativa pode ser considerada como a base principal do processo

    avaliativo, visto que nesse momento se deve recolher informaes e interpret-

    las, e adaptar as atividades pedaggicas de acordo com os indicadores obtidos

    nessa interpretao, em outras palavras, a avaliao formativa tem como

    finalidade a auto-correo do aluno e do professor. No final da unidade, o

    professor poder realizar uma avaliao sobre resultados finais. Essa avaliao,

    denominada de somativa, pode ser traduzida em uma classificao, posto que

    caracterizada por uma definio quantitativa.

    Em relao avaliao do processo, importante considerar que esta

    permite ao professor no s constatar e analisar a situao geral da classe e de

    cada aluno em relao aos objetivos trabalhados, mas tambm, como diz

    Penteado (1994), avaliar o prprio desempenho docente na operacionalizao

    do ensino, em relao a cada um dos objetivos desenvolvidos.

    Dificuldades de ensinar e aprender histria existem, o que no

    compromete e nem mesmo minimiza a importncia da Histria como disciplina

    na Educao Bsica, o seu carter formativo e informativo como base para a

    formao integral dos alunos materializa-se numa prtica docente preocupada

    com um ensino e uma aprendizagem contextualizada, articulada com a

    realidade social de seus agentes. As relaes entre teoria e prtica devem

    tambm ser uma constante no trabalho cotidiano em sala de aula, preocupao

    do profissional que deve acompanh-lo desde o momento inicial da sua

    formao, ainda no curso de graduao.

    O ensino de Histria atualmente sob a influncia das mais novas correntes

    de pensamento historiogrfico toma a realidade social como objeto, objetivo e

    finalidade do estudo da histria. A partir dos anos de 1980, v-se o

    fortalecimento da preocupao com a formao do cidado competente para

    exercer o pensamento crtico e participar da vida democrtica. Nessa nova

    perspectiva poltica, o ensino de histria vai redefinindo seu papel educativo e

    social. Nas teorias e nas polticas educacionais oficiais, discutir ensino implica

    discutir questes polticas e sociais do nosso pas. No discurso acadmico e

    escolar, aprender deixa de ser apenas acmulo de conhecimentos para se tornar

    interao com a vida humana.

    Deve-se, dessa forma, refletir em termos de qual tendncia da histria e da

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    educao possibilitaria um ensino de histria mais motivador, comprometido

    com as diversas classes e culturas e promotor de uma aprendizagem

    significativa. Essa uma questo frgil porque nenhum conhecimento ou teoria

    so absolutos. Assim, no se pode afirmar absolutamente que determinada

    tendncia da histria ou da educao melhor ou pior que outra.

    O que se pode fazer reunir princpios de diferentes teorias que sejam

    coerentes entre si, para um trabalho mais sistemtico e contextualizado dos

    conceitos e contedos histricos. Assim, pode-se desenvolver, por exemplo,

    como apontam pesquisadores do ensino de Histria, um dilogo terico entre

    uma tendncia marxista e a Nova histria, por exemplo. H inclusive estudiosos

    de outras temticas que no o ensino que acreditam na possibilidade de dilogo

    entre essas duas abordagens. Afirma Guy Bois (Apud. LE GOFF, 2005) que a

    ampliao dos horizontes da histria e a elaborao de novas ferramentas

    conceituais, longe de serem concebidas como uma mquina de guerra contra o

    marxismo, apiam-se nele, e mesmo participam de seu enriquecimento.

    Estabelece-se assim uma confluncia de grandes correntes. Em sntese e de

    forma mais ampla, o que se pode fazer buscar as categorias (tempo/espao), os

    conceitos e os princpios metodolgicos de cada tendncia que possibilitem

    superar ou amenizar atuais problemas do ensino.

    Enfim, importante que o professor perceba que as concepes

    pedaggicas ou histricas interferem no ensino de Histria. Objetivos de

    aprendizagem, metodologia, lugar do aluno e do professor no processo escolar e

    mesmo os contedos histricos selecionados podem ser diferentes se

    trabalhados a partir de diferentes abordagens tericas.

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    Colaborao recebida em 27/02/2010 e aprovada em 18/08/210.