astor antonio diehl - ideias de futuro no passado e cultura historiografica da mudanca

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Objetiva-se apresentar e discutir os parâmetros da historiografia contemporânea a partir das mudanças ocorridas durante os últimos anos. Mostrar como a partir dessas mudanças ocorrem alterações nos sentidos e significados do conhecimento histórico, especialmente quanto aos usos da memória no contexto do tempo presente, tanto no campo social como no cultural. Tais aspectos são apresentados no debate teórico, visando à compreensão e importância do estudo das teorias da História na composição das noções como ‘idéias de futuro no passado’ e ‘cultura da mudança’. Idéias de futuro no passado e cultura historiográfica da mudança Future ideas in the past and historigraphical culture of change Resumo The aim of this investigation is to show and discuss the parameters of contemporary historiography from the changes occurred in the last years. Besides that, it shows how, from these changes, alterations occur in senses and meanings of historic knowledge, mainly regarding the use of memory in the context of present time, both in social and cultural field. Such aspects are shown in theoretical debate, seeking the comprehension and importance of studying the theories of History in the composition of notions like “future ideas in the past” and “culture of change”. Abstract Astor Antônio Diehl Professor do departamento de história Universidade de Passo Fundo [email protected] Rua Mal Rondon, 262 - Vila Carmem Passo Fundo-RS 99027-270 Palavras-chave Cultura historiográfica; Conhecimento histórico; Cultura da mudança. Keyword Historiographical culture; Historical knowledge; Culture of change. 45 Enviado em: 12/06/2008 Aprovado em: 17/07/2008

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  • Objetiva-se apresentar e discutir os parmetros da historiografia contempornea apartir das mudanas ocorridas durante os ltimos anos. Mostrar como a partir dessasmudanas ocorrem alteraes nos sentidos e significados do conhecimento histrico,especialmente quanto aos usos da memria no contexto do tempo presente, tantono campo social como no cultural. Tais aspectos so apresentados no debate terico,visando compreenso e importncia do estudo das teorias da Histria nacomposio das noes como idias de futuro no passado e cultura da mudana.

    Idias de futuro no passado e cultura historiogrfica da mudana

    Future ideas in the past and historigraphical culture of change

    Resumo

    The aim of this investigation is to show and discuss the parameters of contemporaryhistoriography from the changes occurred in the last years. Besides that, it showshow, from these changes, alterations occur in senses and meanings of historicknowledge, mainly regarding the use of memory in the context of present time, bothin social and cultural field. Such aspects are shown in theoretical debate, seeking thecomprehension and importance of studying the theories of History in the compositionof notions like future ideas in the past and culture of change.

    Abstract

    Astor Antnio DiehlProfessor do departamento de histriaUniversidade de Passo [email protected] Mal Rondon, 262 - Vila CarmemPasso Fundo-RS99027-270

    Palavras-chaveCultura historiogrfica; Conhecimento histrico; Cultura da mudana.

    KeywordHistoriographical culture; Historical knowledge; Culture of change.

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    Enviado em: 12/06/2008Aprovado em: 17/07/2008

  • Tenho muito medo de um movimento intelectualse transformar num slogan, pois h sempre operigo de autocomplacncia intelectual, ou seja,de se acreditar que se est no nico caminhocorreto, verdadeiro.

    Carlo Ginzburg

    A cultura em torno do pensamento histrico a partir dos anos 1980 e,especialmente, dos anos de 1990 teria perdido, em tese, sua capacidade deexplicao estrutural dos movimentos sociais e dos processos que propunhama civilizao.

    As histrias narradas perderam, tambm, muito de seu sentido originalglorioso e herico. Sua energia e pedagogia explicativa inicial dos grandes feitosmodernizadores cedem lugar conscincia de viver numa poca multicultural ede interesses pluriorientados.

    Parece-me que o passado dos feitos gloriosos e positivados atravs dasconcepes vindas desde o esclarecimento j no mais consegue iluminar ostrilhos por onde a locomotiva da histria com sua carga preciosa e esclarecedoratrazida do passado pudesse passar rumo ao futuro.

    A conscincia dessa perda irreparvel, promovida pela mudanaparadigmtica nas formas de produo do conhecimento gerou, ao que tudoindica o afastamento das histrias e das representaes estruturais de cartereminentemente materialistas. Em seu lugar crescem as histrias culturais. Jno so mais os modelos conceituais tericos aqueles capazes de dar conta daambio explicativa, mas a memria agora passa a assumir importncia.

    A reconstituio das memrias coletivas e individuais permitiu odesdobramento metodolgico para uma infinidade de possveis escalas e leiturasdo passado. Esse exatamente o ponto de insero de estratgiashermenuticas na compreenso do passado e, conseqentemente, do exercciopara romper com a exclusividade da verdade cientfica (VATTIMO 1996;HUTCHEON 1991).

    Como no mais possvel contar com as luzes de uma verdade e exclusivacincia, do progresso e do projeto legitimado pela linearidade temporal, a nfaserecai sobre as runas, os restos e as lembranas que sobraram dos processosde modernizao, os quais rondam como fantasmas sobre nossas cabeas.

    Em termos de representaes histricas, ns assistimos formao deverdadeiras tendncias historiogrficas, cada qual se apegando em um tipo deresto ou rastro para, a partir dele, dimensionar os sentidos de uma disciplinaautnoma para reconstituir o passado.

    A projeo modernizadora nos tempos passados colocou para a memriaum papel menos importante, sobre o qual, alm disso, pesava a terrveldesconfiana quanto sua capacidade heurstica, apesar de toda cultura histricaocidental estar completamente assentada sobre essa mesma memria.

    Essa desconfiana em relao memria passada parece-me que est

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  • sendo superada. Alis, o que sobrou dos tempos hericos somente a suaprpria memria. Porm, a sua reabilitao como fonte de informaes econhecimentos parece ser uma tnica mais importante da cultura historiogrficaatual (DIEHL 2007).

    A atualidade do tema memria vincula-se tambm falncia da ao edas leituras entrpicas, promovidas por pensadores modernos, que remetiamo imaginrio social ao projeto de segurana e de um mundo presente quaseperfeito no futuro. Nesse caso, a certeza cientfica e as filosofias especulativasda histria do futuro cegaram as possibilidades de existir a contingncia nahistria.

    Evidentemente que essa reorientao no feita de forma indolor. Huma espcie de desespero frente quilo que a memria possa nos revelar. Emsuas mltiplas leituras possveis, a memria revela os escombros, as runas eos processos de desintegrao, tornando-se ela um testemunho do passado,no qual o progresso rompera com as estruturas tradicionais.1 O passado passaa ser percebido como um imenso espao temporal, constitudo de coisasdesconhecidas, porm disponveis para um processo de reconstituio inventiva.

    Frente diversidade reveladora da memria social, escrita e oral, ohistoriador j no consegue mais ter a certeza absoluta sobre o reconstituir eo significar o passado. O historiador passa a ter insegurana epistemolgica,disciplinar e, assim, bate s portas das demais cincias humanas com a moestendida, na qual lemos um pedido de ajuda.

    Primeiro, foi a interdisciplinaridade, depois veio a multi e a trans e agora ametadisciplinaridade (SCHNITMAN 1996). Est claro que tal refinamento darede metodolgica de aproximao das disciplinas servir para captar no maisos processos modernizadores, mas, sobretudo, as runas, resultantes doprocesso de ao do tempo.

    O historiador, que antes varria a sala, deixando-a brilhante, livre de culpase ressentimentos, se deu conta que todos aqueles restos varridos formavamum entulho de representaes simblicas no meio da sala, porm debaixo dotapete. Nosso esforo para higienizar o ambiente tornando o passado emHistria -, condenou-nos a cair sobre a prpria armadilha na sala.

    Nosso olhar fixo e alienante no futuro nos transformou em uma autoridadecom conhecimentos esclarecedores para visualizar perspectivas de futuro paraa sociedade. Porm, bastou uma dobra no tapete para que nos debrussemossobre as runas, varridas para baixo do tapete.

    No entanto, no bastaria somente a conscincia daquilo que fora condenadono passado. O historiador precisou de outros instrumentos metodolgicos parapoder dar conta de novos sistemas de referncia e sentidos atribudos aos

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    1 Observa-se atualmente um reaquecimento dos estudos sobre o trgico, ver a ttulo de exemplificaoos artigos publicados recentemente na Revista Filosofia Poltica. Departamento de Filosofia, Cursode Ps-graduao em Filosofia, IFCH/UFRGS, III/1, 2001.

  • fragmentos, para ento reconstruir uma nova representao e, portanto, maissignificativa, para o passado.

    A histria encontraria na origem, na alegoria e na esttica seu modo derepresentao. Tais tendncias mostram a larga receptividade da obra de WalterBenjamim e de Michel Foucault na elaborao de leituras quanto ao progresso, tcnica, aproximao entre histria e literatura e s novas formas deapreender as relaes de poder (DIEHL 2002).

    Por outro lado, o tropeo no tapete da sala tambm possibilitou que osdestroos do passado irrompessem na cena contempornea. Entretanto, adiferena agora est no fato de no se poder usar mais aqueles modelos tericosde seleo, de classificao e de identidade sobre os restos, como se fazia nopassado, sem, pelo menos, relativiz-los.

    A heterogeneidade temporal, cultural e poltica impedem-nos de fazer tbuarasa do passado em termos de sentidos e significados (GUMBRECHT 1998). Aheterogeneidade tambm revela o espao cultural contemporneo saturado.No entanto, essa mesma heterogeneidade pode, por sua vez, incitar-nos paraduas orientaes diferentes e contraditrias: a reao e a criao.

    A situao do espao cultural pode gerar uma reao, entendida aqui comoum obstculo originalidade, inovao ou mesmo impossibilidade de produode novos conhecimentos (MOZER 1999, p.33-54). Tudo j teria sido dito, feitoe narrado. Restaria, ento, uma espcie de sada estratgica em direo aomundo primitivo, situado em algum momento antes da modernidade. Um desejode busca da comunidade, do pequeno, da experincia, do micro e, porque nodizer, de recolocar o sujeito tico-moral no centro do palco.

    A semiotizao atual retirou os sentidos de sua clandestinidade. E nesseaspecto, em termos dos micro-territrios de sociabilidades, vale a poltica doplano de reconstituio dos sentidos, l onde existem as privacidades e asintimidades. Estaramos encaminhando para uma cincia do texto em detrimentodaquela vinculada na relao demonstrativa e explicativa do homem-natureza?(SARTORI 2001). Assim, o contexto do tempo presente pode, perfeitamente,revelar as estratgias para a formao de desejos e significados no camposocial e cultural (DIEHL 2007).

    Essa nova tendncia mostra-nos que, em termos macro, a compreensodo cultural seria entendida apenas como a poltica do plano concludo e como asestratgias que, somente positivadas, reconheceriam o visvel a prioriestabelecido pelos conceitos.

    De uma ou outra forma, temos a orientao, na qual a situao do espaocultural pode mostrar que a saturao seja percebida com a condio sine quanon de produo de novos sentidos. Aquilo que aparecera debaixo do tapeteseria a matria-prima para a constituio do campo das significaes.

    O custo social da modernizao seria, agora, visto no mais como obstculo,mas como o recurso para sua reutilizao atravs dos esforos da metanarrativa,metafico ou intertextualidade (HUTCHEON 1991). Configura-se, portanto, um

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  • terreno frtil e promissor ao avano do debate das narrativas ps-modernas,numa espcie de modo de produo das subjetividades, atravs de uma espciede cincia do texto como referimos acima.

    Uma primeira orientao resultante aquela que parte da recombinaode temporalidades diferentes numa mesma narrativa, sendo esta no maisvista como uma deformao ou mesmo sinnimo de desordem, mas deconstituio de um sistema com uma lgica que trabalha com sentidos pr-constitudos e mltiplos. Pela dinmica interna do sistema e pelos seus enunciados,a narrativa e a esttica assumem um papel central. O contedo, propriamente,torna-se o campo da demonstrao sobre o qual se narra e se estetiza.

    As mltiplas recombinaes possveis no sistema levam a implodir asbilateralidades de posies. Quebram-se assim as oposies, tendo-se, poroutro lado, dificuldade em diferenciar produo de reproduo ou originalidadede resignificao. Por vezes, essa tendncia duramente criticada como sendomera reciclagem, pastiche ou mesmo canibalismo cultural, crtica com a qual deantemo no concordamos.

    Todo esse processo estaria levando ao esgotamento cultural, falta deoriginalidade e ausncia de crtica (SOKOL; BRICMONT 1999). Transportandoeste contexto ao ambiente atual na cultura historiogrfica brasileira, podemosentend-la como sendo de incessante crtica razo histrica (CUCHE 1999).Uma segunda orientao avana para alm desta perspectiva, mas no deixade se refugiar no anti-modernismo comunitrio, desta vez supostamenteidentificada na conotao poltica de vanguarda historiogrfica. Deixou-se deperseguir as explicaes racionais sobre as razes estruturais e conjunturaisde determinadas configuraes histricas em nome de possveis orientaesps-modernas, apresentadas com os mais diversos matizes tericos (SEMPRINI1999).

    A pergunta que podemos fazer aqui a seguinte: por que isso estariaocorrendo? Gostaria, ento, de levantar algumas suspeitas para a possvelcompreenso desse contexto.

    Primeiramente, vivemos num clima deixado pelas frustraes intelectuaise sociais, pois as revolues otimistas, aquelas que projetavam uma soluode redeno do homem no futuro, no aconteceram nos moldes teorizados.Esse fato uma das origens de certo pessimismo em relao ao futuro coletivoe prpria possibilidade de mudana social.

    Esse aspecto, por sua vez, gerou uma crise de critrios cientficos eracionais do establisment, sobre os quais tais paradigmas orientadores estavamassentados (LECHTE 2002). Convivemos, assim com a precariedade e com aausncia de transparncia terica no sentido de Habermas e, em alguns casos,com a demisso da prpria razo de seu posto alcanado na sua trajetriadesde o iluminismo.

    Em segundo lugar, o clima de fragmentao da ordem estabelecida.Essa fragmentao uma das conseqncias dos prprios processos de

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  • modernizao que explodem as tradies historiogrficas e culturais. Estafragmentao, em termos de teorias, no novidade, pois ela acompanha aprpria constituio da modernidade.

    Entretanto, essa situao no momento presente nos deixa numaatmosfera de insegurana, uma vez que os antigos critrios no cobrem nemconseguem capturar mais a realidade que pretendemos reconstituir e, almdisso, desconfiamos profundamente dos novos (SOUZA SANTOS 1999).

    Sem dvida, os processos de modernizao geram custos sociais eculturais, apresentados atravs da historiografia das representaesfragmentadas. Portanto, j que a sociedade e o coletivo estariam fragmentados(fracionados e muitas vezes hostis entre si), a tendncia bsica um retornoao indivduo e ao sentido da subjetividade. Assim, existe uma forte perspectivade individualizao do presente e do passado.

    Em termos historiogrficos isso se evidencia atravs de representaesdo passado na configurao do retorno das solues micro, das regionalidadese das territorialidades do desconhecido, e do imediato, orientadas, assim penso,nas pesquisas do psquico, do mstico, do religioso e das cotidianidades dasexperincias.

    Pois bem, os dois aspectos que apontamos acima gerariam alguns dilemas,diria estruturais, que avanam sobre nossas posturas acadmicas e profissionais.Ao nvel acadmico apresentam-se dois vetores: o afastamento do discurso daresponsabilidade acadmico-social em termos de mudanas estruturais e a crticaconformista da sociedade atravs das perspectivas acima descritas.

    J ao nvel dos resultados de pesquisas e temticas abordadas temos umretorno ao cotidiano, uma espcie de enclausuramento, de isolamento doindivduo ou de pequenos grupos - quase tribos - em si mesmos, formando asilhas do passado histrico. Existiria, ento, uma fuga orientada que vai da esferapblica para o privado, para as abordagens das solues especiais e imediatas(MAFFESOLI 1999), porm sempre levando em conta as possibilidades que taistendncias oferecem na produo de significados nas representaes sobre opassado.

    Em tese, o momento seria dos cotidianos ntimos da vida, das experinciasmicro, a vez das bruxas, das feiticeiras, dos loucos, dos vadios, doshomossexuais, dos gestos significativos, porm individualizados, tais como aclandestinidade, o medo, o desejo, a angstia etc. A vez tambm seria daquiloque se denominaria de compensaes dos custos resultantes dos processos demodernizao (GIDDENS 1991) otimista-lineares, daquilo que historicamentefoi jogado na lata de lixo pela cincia formal.

    Essa tendncia parece sintomtica, especialmente quando insistimos emprocurar no passado aqueles gestos significativos que compensam a falta decritrios objetivos no presente, preenchendo assim a cmara de vcuo deixadapelas filosofias da histria. Radicalizando, poder-se-ia perguntar: romantizamos,idealizamos aspectos do passado num esforo para restabelecer a ordem e o

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  • paraso perdidos (LWY 1990).Essa ltima orientao, por certo, no ingnua e no estaria longe de

    justificar e legitimar o ressurgimento de mitos to caros do sculo XIX, taiscomo: da nao, do estado, do tnico, da personalidade, da geopoltica, dopoliticamente correto e da tradio cultural como elementos autnomos. Sejameles percebidos como os licores dos deuses ou como as culpas induzidas pelosdesejos. Isso traz de volta a estratgia das solues imediatas, localizadas ecarismticas. Nesse ponto, estamos novamente situados de frente com o temados processos de identificao e com a identidade como tal.

    Colocado isso, uma pergunta de via dupla continua a perturbar: essasnovas perspectivas efetivamente colocariam a histria como disciplina em xequeou estas novas tendncias em seus somatrios no estariam propiciando umavano em termos de compreenso do passado?

    Com essa aproximao temtica surgem alguns aspectos que talvezmerecessem ser, pelo menos, apontados:

    a) a analogia entre a reconstruo da biografia e a sua interpretaocrtica possibilita a reconstituio de estruturas simblicas em geral;

    b) a cincia produzida na Universidade no desempenha mais seu papelde motor no pensamento, por que esta funo j est ocupada pela poltica;

    c) a histria, como disciplina com plausibilidade cientfica[,] no teria afuno de propor identidades, pois a historiografia seria o resultado deracionalizaes metodolgicas e de constituio de identidades poderiam seformar e cumprir funes atravs do esttico, do passional e do afetivo.

    Nesse sentido, o lastro de contedos do passado, que alavanca apossibilidade de identificaes, passa a ser percebido tal como deveria ter sido.Em tese, podemos considerar que estaria ocorrendo a revanche doacontecimento em detrimento das histrias estruturais com teor analtico.

    Em outros termos, concordamos com Bachelard ao argumentar que talprocesso no de agora e que ele se caracterizaria pela luta entre espao xtempo (BACHELARD 1996). Essa perspectiva injeta no sentido do passadouma leitura de significado romntico de como queramos que fosse.

    Entretanto, ns j entendemos que esse passado nunca existiu a no serna imaginao criativa ou na afetividade. Porm, a outra leitura desse passado aquela que remete para o sentido metodolgico do como possvel de serreconstitudo. Para esta leitura, no tenho dvidas de que as estruturaspsicolgicas e o campo das subjetividades so uma base interessante e produtivapara a sua reconstituio.

    Fazendo-se uma reviso na historiografia brasileira contempornea,percebemos uma mudana estrutural na produo do conhecimento histrico.At os anos da dcada de 1980 temos paradigmas terico-metodolgicosotimistas, representados pelo positivismo, marxismo e em parte pela tradiode Max Weber com seus respectivos desdobramentos.

    Nesse sentido, produzia-se conhecimento numa viso de progresso material,

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  • quando o sentido coletivo e o aspecto institucional foram orientaes centrais;buscava-se conquistar a modernidade e pautava-se pela histria na perspectivamagistra vitae.

    Penso que, atualmente, as tendncias historiogrficas no buscam maislegitimar a redeno do homem no futuro como um projeto para alm denossa poca. H, em vez disso, um retorno ao passado (das ilhas) e aosindivduos, ressaltando-se os aspectos etno-antropolgicos de certa visocultural. H, por outro lado e tudo indica uma carncia de projetos estruturaissubjacentes que tenham implcita a perspectiva da mudana social naperspectiva vinda do esclarecimento.

    A cultura historiogrfica valoriza sobremaneira a configurao tico-literrio-ornamental da histria, parecendo que tambm a histria est na linha dos noditos, uma histria para massagear, anacronicamente, o ego pela compensaorelacional entre conscincia e culpa.

    Entretanto, no s esse lado que deve ser visto. As novas tendnciasda historiografia tambm nos mostraram, e fizeram ver, mesmo a contra gosto,o quanto a racionalidade moderna amputou do conhecimento os horizontesdas subjetividades e de tudo o que isso possa significar em termos dareconstituio do passado.

    O rompimento das relaes de sucesses temporais como modeloexplicativo catapultou, pelo muro dos fundos, a memria e a narrativa para ocentro do debate da histria cultural e das representaes. Parece-nos que ahistria como disciplina est passando por um tempo de provaes e ela estem busca de parcerias como, por exemplo, a psicanlise.

    Pois bem, tanto a histria, na sua grande mudana ocorrida no final dasegunda metade do sculo XIX, como a psicanlise so disciplinas que buscamcompreender o indivduo circunstanciado pela complexidade das relaes sociaise culturais.

    Com este pensamento est registrado que a conscincia se tornou umprofundo estado difcil de ser definido, sobre a qual so estabelecidas asorientaes temporais tanto individuais como coletivas. Nesse caso, a relaoentre histria e psicanlise pode gerar possibilidades de compreenso docomplexo debate historiogrfico atual em termos das suas representaessimblicas de identidade, do retorno ao indivduo e da prpria subjetividade. Emtese, o tempo presente o da memria/esquecimento/rememorizao dossentidos e significados culturais.

    A percepo desse exerccio no nos pode levar estratgia de varrerpara debaixo do tapete aquilo que no se enquadra em nossos modelosexplicativos a priori fixados no horizonte de nossas expectativas tericas, comopraticvamos at pouco. No podemos esquecer do simples fato que o horizonte inatingvel, servindo apenas como linha de referncia, a qual mudaconstantemente.

    Tambm no podemos nos deixar levar pela estratgia de avestruz: de

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  • enterrar a cabea, deixando de fora o volumoso corpo, pensando que dessaforma estaramos protegidos dos eventuais abalos nos parmetros deplausibilidade da cincia a priori estabelecidos pelas experincias empricas.

    Sem dvida, podemos propor um dilogo em torno dessas questes deforma programtica, estabelecendo relaes entre as experincias do passado,cada vez mais vigorosas pela historiografia, e as expectativas de futuro (RSEN2002, p. 305-321) naquilo que denominamos de cultura da mudana dentroda perspectiva do dilogo com as tradies e as idias de futuro no passado.

    Quanto ao presente, ele no presente, ele est presente, no s porqueo recusamos atravs da banalizao, mas tambm porque o passado est topresente que o invade e, por sua vez, absorvido pelo futuro, diluindo-o. Opassado faz o papel de presente e ele passa a ser entendido como meio deafirmar e de reabilitar processos de identificao ou, pelo menos, de cumprir afuno de que nos seja permitido (sobre)viver culturalmente no presente,reorientando o horizonte de expectativas.

    A histria como disciplina com plausibilidade argumentativa tem apossibilidade de compreender e explicar fenmenos econmicos, sociais e asrelaes de poder. Para tanto, torna-se necessrio e desejvel, como ponto departida, que a histria seja uma disciplina uma cincia da cultura -, orientadano cultural, no social e no psicanaltico. Porm, estamos ainda longe de constituirtal disciplina, com tais caractersticas.

    Entretanto, podemos reconstituir parte desse debate atravs dos rastrosdeixados pela da crise do historicismo, pela relao entre psicanlise e marxismo,ou ainda, pela recuperao e atualizao contextualizada das obras de Nietzsche,Freud, Weber, Benjamim, Marcuse, Fromm entre outros tantos.2

    Se todo esse interesse da questo ir trazer novos campos de pesquisa ediscusses terico-metodolgicas, permito-me dizer que ainda cedo e notenho uma resposta que me possa satisfazer. Entretanto, de uma coisa podemoster certeza, mesmo que de forma provisria: (re)trabalhar o passado sob asperspectivas de fundamentalismos historiogrficos no nos levar para almda crtica confortante e confortada pela estrutura acadmica. Podemos, pois,falar de atitude intradisciplinar e transdisciplinar, com o objetivo de abrir ocorao, desta vez no div, para uma introduo crtica da razo histrica nosentido das idias de futuro no passado.

    A perda do sentido utpico e a impossibilidade de uma cultura da mudanaa partir dos ideais do esclarecimento na historiografia contempornea lanaramparte dos historiadores sobre a tarefa de revisitar o passado com novas lentese perspectivas, muito diferentes daqueles estudos histricos tradicionais e nempoderia ser diferente.

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    2 Nesse caso existe uma atualidade expressa das obras de Georg Simmel e Norbert Elias, cujaspossibilidades esto implcitas quanto a noo de cultura na modernidade.

  • Nesse sentido, a representao de indivduos, de grupos sociais e defenmenos simblicos gerou uma luta encarniada entre significados culturaisinternos e externos.

    Entretanto, tais mudanas estruturais na produo do conhecimento sobreos mais diferentes aspectos, sejam disciplinares ou poltico-ideolgicos, geraramum segundo conjunto de dilemas, os quais podem ser observados na literaturahistoriogrfica. Os dilemas podem ser evidenciados pela experincia deaproximao da histria com outras disciplinas e por certas configuraescaractersticas do Sptzeit, conforme j apresentada anteriormente (MOZERop. Cit.).

    A histria escrita a forma de dramatizao do mundo externo a partir demotivaes internas, que fazem acionar indivduos e grupos para desempenhareme representarem determinados papis sociais e simblicos. Ou seja, que a relaodo psicanalista e do historiador muito prxima em termos do texto e quedessa relao se abre um caminho para a compreenso das idias de futuro nopassado.

    A cincia psicanaltica no dispensa certos conhecimentos de outrasdisciplinas, pois ela tambm no poderia se restringir a si mesma. Desde osanos de 1950, a psicanlise procurou abrir-se e modificar seu espao de trabalho.Esta flexibilidade serviu muitas vezes como obstculo, mas tambm isso fazparte do destino de qualquer disciplina que pretenda abrir seus horizontes.

    A pesquisa psicanaltica desde ento atraiu para si a antropologia e a crticaliterria. A cincia histrica ficou como uma espcie de prima pobre. Aantropologia trouxe para o psicanalista o controle da dramaticidade da vidahumana vivida e a crtica literria contribuiu com o discurso. Em ambos oscasos criaram-se situaes as quais no se diferenciam tanto em uma conversapsicanaltica.

    A histria, por sua vez, exige, alm disso, formas de intermediaesdidtico-pedaggicas. Por isso mesmo, nas formas de intermediaoencontramos temticas que seriam relevantes no sentido de suas funes sociaisda cultura, tais como: a cotidianidade, o racionalismo do ertico, os fenmenosreligiosos, os complexos sociais, o sofrimento e a violncia entre tantos outros,ainda pouco explorados nos livros didticos de histria (DIEHL 2006). De certaforma, isto explica o fato de tais temas ainda no terem sido trabalhados apartir da perspectiva psicanaltica.

    Porm, nos ltimos anos, mesmo que de forma tmida, alguns temaspassaram a compor a lista de pesquisas tambm para os historiadores, como avida privada, as estruturas simblicas, os (res)sentimentos, as metforas, asrelaes de poder, as perspectivas de futuro que se tinha no passado etc. perceptvel que est comeando a surgir um movimento historiogrfico, queaos poucos, com legitimidade, evoca a psicanlise.

    Nessa caminhada pode surgir uma relao produtiva entre a formaopsicanaltica de determinados historiadores e a necessidade de compreender

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  • um tempo, patologicamente, saturado de problemas e informaes com extremaatualidade: a atualidade do problema racial, do racismo, a questo dassexualidades, o feminismo, a relao entre biografia e histria das idias, asquestes da alienao, as transformaes nas relaes de trabalhos e seusdesdobramentos sobre as instituies disciplinares como a escola, a fbrica e afamlia.

    O momento importante dessa aproximao est no fato de que apsicanlise vive, em relao ao historiador da cultura, uma situao privilegiada,pois os seus questionamentos esto direcionados sobre as experincias deinsights do processo de rememorao. O conhecimento terico viria,exatamente, da possibilidade de extrapolar tais questes. A psicanlise poderiadiagnosticar os fatos levantados pelos historiadores.

    Alm disso, seria desejvel que as rgidas fronteiras entre as duas disciplinasfossem levantadas atravs do estabelecimento de nveis de controle sobre ainterpretao do texto.

    Pela estrutura atual das duas disciplinas, talvez isto fosse uma empreitadadifcil de ser atingida, mas uma tentativa atrativa, sobretudo se levarmos emconsiderao s mltiplas possibilidades que tal parceria poderia significar. Nessecaso, no suficiente apenas praticar uma disciplina aps a outra, mas a tarefaseria a de costurar os resultados de pesquisas, tomando por base a psicanlisecomo mtodo histrico.

    Amarrar a pesquisa histrica com a da psicanlise significa, em essncia,arrolar e expor o fundo metodolgico das disciplinas em relao com aexperincia de lidar com as fontes. Pois, o psicanalista tambm exerce suaprofisso no somente levando em conta uma postura intelectual de formaopara chegar aos resultados, mas, alm disso, e, sobretudo, quando faz a anlisea partir de suas reaes inconscientes sobre aquilo que expressa a pessoaanalisada, tencionada pelo dilogo.

    No apenas a recepo de informaes pelo psicanalista, mas as formasde intermediao que se estabelecem. nesse sentido que a intermediao oinstrumento importante da pesquisa psicanaltica, resultando da a qualidade dafonte informativa. Exatamente, a possibilidade de uma leitura interpretativacorreta das fontes depender, alm, claro, do largo conhecimento do analista,da qualidade heurstica com que estas fontes foram recolhidas. Tudo isso tambmdepender das contradies internas do analista, pois nenhum psicanalistaavana para alm daquilo que os seus prprios complexos permitem, j diziaFreud.

    Por seu lado, no caso da histria, a crtica contempornea realizada emrelao epistemologia racionalista e a crtica s grandes narrativaslegitimadoras1, a crtica aos processos de modernizao e, especialmente, a

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    3 Ver especialmente CHAUVEAU, A.; TTARD, Ph. (org.). Questes para a histria do presente.Bauru: Edusc, 1999 e BODEI, Remo. A histria tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001. Este

  • crtica idia de progresso, que assistimos brotar em todos os recantos dascincias humanas.

    Em seus duzentos anos de cultura historiogrfica da conscincia, a categoriaprogresso (NISBET 1985) se incrustou profundamente nas estruturas da psiqueocidental e, por que no, oriental, atuando na conscincia histrico-coletiva.

    Para verificarmos isso, na prtica, basta perguntar para uma criana ouat mesmo para adultos, confirmando a idia orientadora de que o futuro irsuperar sempre - o presente e o passado, em termos de chances de vida e depossibilidades de felicidade.

    Ora, se a perspectiva do futuro da redeno humana na perspectiva coletivase distanciou do horizonte individual, ento vem tona, como obstculo, apossibilidade de orientao a partir das temporalidades da prpria histria. Esseobstculo orientador ser percebido atravs do distanciamento entre o processode desenvolvimento e as narrativas legitimadoras.

    O progresso como modelo de pensamento um fator social, umconseqente fator mental dos princpios de conduta da vida e, ele precisa sercolocado, como assim sendo, na ordem do dia, caso a histria como disciplinade relevncia social deseje ocupar o espao da comunicao entre as experinciase o conhecimento histrico.4

    Por um lado, indiscutvel que, no debate atual, a categoria progresso(como ela se tornou fragmentria na compreenso da cultura) no consigamais ser concebida sem profundas fissuras (CUCHE 1999). Para isso mesmo,as experincias histricas so poderosas demais.

    A tendncia crise, as conseqncias catastrficas da concepotradicional, concebida como elo entre o desenvolvimento histrico e o mundomoderno (especialmente nos setores scio-econmicos a partir daindustrializao), j se tornou experincia coletiva comum.

    Cada um de ns que possui sensibilidade suficiente para perceber ascontradies estruturais entre o nosso mundo e o da gerao passada, leva emconsiderao os resultados prticos desse desenvolvimento, como podemosobservar na destruio ecolgica durante a explorao da natureza viaindustrializao e na desertificao dos impulsos inovadores dentro doracionalismo institucionalizado pela cincia na configurao da razo crtica.

    A cincia histrica no poder se excluir da onda crtica ao progresso dadestruio, se para o historiador a conscincia histrica apreendida da experinciado passado significar alguma coisa. A crise da noo de progresso linear e

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    questionamento j estava presente nas preocupaes de Walter Benjamin em LWY, Michael.Romantismo e messianismo. So Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1990, especialmente o Cap. 9 e 10;para a questo historiogrfica ver DIEHL, Astor Antnio. A matriz da cultura histrica brasileira.Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, Idem. A cultura historiogrfica nos anos 1980. Op. Cit..4 Este aspecto no privilgio do pensamento histrico, mas abrange os mais diversos debates nasmais diferentes reas do conhecimento. A abrangncia do debate pode ser acompanhada emSCHNITMAN, Dora Fried (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: ArtesMdicas, 1996.

  • cumulativo se faz na confrontao entre inteno e realizao, especialmentea partir de trs vetores bsicos:

    a) As pessoas do sculo XX viveram desde grandes tenses at guerrasmundiais, guerras locais, tendo como referencial um potente arsenal destruidorcientificamente produzido. Em contrapartida, assistimos a desreferenciao datecnocincia para eliminar problemas de fome, etc (GIDDENS 1991);

    b) O progresso moderno constitui, na forma mais decisiva, a sociedade dotrabalho, na qual vale o crescimento da produtividade na base da constanteautomatizao, gerando nas sociedades industrializadas a crise da prpriasociedade do trabalho;

    c) A crise da noo de progresso leva crise de identidade, que se fazvisvel em diferentes setores, como por exemplo: a crise de legitimidade desistemas polticos.

    Da crise de orientao e da prescrio dos elementos subjetivos pelarazo instrumental - que essa crtica do progresso representa na cultura polticae na cultura histrica atual -, resulta o sintoma das crescentes revoluesfrustradas, atingindo, em contrapartida, a concepo do progresso damaximizao de revolues otimistas crescentes, quando o ideal de progressofoi o estmulo central para o iluminismo em termos do esclarecimento.

    Esse direcionamento do iluminismo tardio tornou-se parte substancial dacultura histrica das sociedades modernas. A categoria progresso incluiria, ento,as experincias histricas em uma nica histria com tendncia a abraar todaa humanidade. Processo esse, que foi sendo relacionado com a teoria do fimda histria.

    Neste caso, a categoria progresso teria, par excelence, funo integrativa,mas ela oferece, ao mesmo tempo, para a histria da humanidade, umaincontrolvel dinmica da fragmentao (FONTANA 1998, p. 265-281). No finaldo sculo XVIII, com a fragmentao da ordem estabelecida e, no sculo XIX,com a fragmentao da cincia em cincias buscou-se no progresso o termocomum para a unidade universal. Mas, essa fragmentao da cincia, de ento,gerou solues disciplinares, normativas, pragmticas em diferentes nveistericos.

    Todos esses novos nveis e estruturas cientficas teriam algo em comum,pois, individualmente, buscam controlar o passado e projetar o futuro. Ou seja,elas pretendiam nos persuadir de que a redeno da humanidade estaria nofuturo. O tempo linear seria o avalista de garantia para que a posteridade noreservasse abismos e tragdias. Ou seja, a cincia e a razo estariamadministrando a reconstituio do passado na orientao do tempo linear,projetando no futuro. Sendo, nesse caso, o passado caracterizado comosinnimo de erro, de caos, o que oportunizaria a cincia que ela criasse saberessobre as experincias e certamente as superaria.5

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    5 CHARLOT, Mnica; MARX, Roland. Londres, 1851-1901: a era vitoriana ou o triunfo das desigualdades.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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    A idia de progresso tambm se constitui como uma perspectiva do agir.O progresso integra e dinamiza as experincias histricas em uma histria amplacoletiva, cujo sentido est orientado atravs de uma inferncia humana ativapara alterar as reaes de vivncias e aperfeioar a qualidade de vida.

    O progresso foi uma medida e a forma de pensamento de umaconscincia especfica. A experincia histrica no mais balizada pelo modelodo pensamento de uma grande coletnea de exemplos hericos para respaldarregras de aes, como aquelas que so apresentadas na expresso magistravitae.

    As experincias histricas originam, em contrapartida, formas genticas,criando significado sobre o passado. E elas foram entendidas como um processotemporal nico e acabado, quando o futuro iria se impor qualitativamente aopassado em termos de possibilidades de aes, porm, essas aes estosubmetidas s categorias como classe, elite, grupo e etc. Tal submissoconceitual caracterizou a morte do sujeito.

    A ao humana em cada presente era instigada a realizar tal direcionamentode mudana, na medida em que o tempo linear classificara o passado comosendo caos e desordem. A incumbncia da histria, neste processo, era dirigir-se a esse passado obscuro e nele procurar, atravs de seus mtodos positivose aplicados aos escombros da tradio, os documentos e as evidncias quepermitiriam a reconstruo do seu verdadeiro rosto.

    Assim, ao contrrio do restante da humanidade que olha e caminha paraadiante, diria para o futuro, no sentido iluminista projetado para alm de suapoca, a histria se desloca para o passado, procurando expurgar o caos, adesordem e o terror que pudesse ali ser encontrado e, dessa forma, legitimar oolhar do caminhar para o futuro.

    E essa ambigidade que parece assolar o imaginrio da crise. Pois, deum lado, a histria reconhecida como uma das atividades essenciais doimaginrio ocidental. Afinal de contas, a histria a disciplina do passado, datradio, extirpando o trgico que ali possa brotar (DELUMEAU 1989).

    A histria, por outro lado, s conseguiria alcanar esse objetivo, aliando-se completamente aos interesses que cercam o coletivo, esquecendo-se dofuturo para mergulhar na gigantesca teia da erudio que, de um ponto de vistaprtico (preocupado com o progresso), absolutamente gratuita.

    Tudo indica que a histria no esteve sozinha no esforo de empregar oseu potencial disciplinador a servio dessa concepo iluminista do tempo. Essanoo de tempo, como progresso, s foi possvel e teve validade porque a elaforam conectados discursos que continham condies de aumentar o seu poderde persuaso, aparando os pontos de incertezas que dela pudessem brotar. Parece que no foi somente o desprestgio da tradio e da memria quelevou separao de experincias e do horizonte de expectativas damodernidade. Pois, essa separao justificaria a criao de oportunidades parao florescimento do terror apenas no passado (POLLAK 1989).

  • O futuro, como projeto alm do tempo presente, deixou de lanar suasluzes, diminuindo drasticamente a capacidade de os homens se orientaremdentro e a partir dele. Assim, tambm, a legitimidade histrica passa a dependerde um tempo que avana, incessantemente, como se fosse uma flecha, semque se saiba rigorosamente qual a direo que ela est tomando. Portanto,no se sabe, como, quando e onde a flecha pode parar.

    O tempo linear, alm de produzir o esquecimento do passado, gera umaterrvel incerteza, ou seja, a mais completa imprevisibilidade em relao aofuturo. Imprevisibilidade que s poderia ser superada, se o mesmo papeldesempenhado pela histria como disciplina na retaguarda - na ponta de trsda linha -, fosse exercido pelas cincias fsicas e naturais na ponta da frente(SOARES, 1998).

    O progresso fora sempre o avano da cincia, da cincia moderna, dacincia que se movimenta e se transforma juntamente com o tempo, cujofundamento foi fornecido pelo modelo clssico, na tentativa de garantir que aposteridade no nos reserve abismos e tragdias, como j foi dito. Foramexatamente esses elementos que a histria como cincia tentaria eliminar dopassado atravs das grandes narrativas legitimadoras. Parece-me que a cinciahistrica fracassou nessa sua tarefa, pois o sculo XX um libelo nesse sentido.

    exatamente neste aspecto que aparece o elemento da atualidade ligadoao tempo e idia de progresso: a memria. A memria uma faculdade que,na concepo moderna de histria, precisa ser constantemente refrescada,pois, caso contrrio, ela perde sua fora e seu poder de evocao na medidaem que vai enfraquecendo.

    Ora, num primeiro momento, com esse possvel enfraquecimento, amemria passou a ser encarada com a mais absoluta desconfiana, definidacomo uma entidade que sofre uma espcie de corroso interna, corroso quevai desgastando-a com a passagem do tempo linear. E nessa conexo entrea memria e o tempo que precisamos evidenciar dentro dos propsitos darelao entre histria e psicanlise.

    A memria s comea a ser apontada como doente - sofrendo decorroso, amnsia -, quando associada a uma noo de tempo que se definecomo uma linha em movimento contnuo para frente, na direo do futuro.

    Esse processo implica no abandono do modelo clssico, o que faz comque os homens, grupos ou mesmo sociedades redirecionem literalmente osseus olhares e as suas esperanas, desviando-os do passado e concentrando-os no porvir. O que, entre vrias outras coisas, provoca um gradual, mascrescente enfraquecimento da memria com poder de documento, sendo, poucoa pouco, substituda pelo esquecimento, sem contraponto (DIEHL 2002).

    , justamente, o surgimento desta definio iluminista de tempo, assimiladoao progresso, convertido em linha que se desloca inelutavelmente numa nicadireo, que vai separar o espao de experincias (base da concepo clssicade histria) do horizonte de expectativas do homem moderno (horizonte que

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  • ir agora se fixar no futuro). Futuro que parece dispensar todo e qualquerensinamento veiculado pela tradio, relegando-a a absoluta obscuridade(KOSELLECK 1989).

    Tal processo de modernizao tende a transformar a tradio em umamontoado de runas, restos de uma caminhada que para sempre encontra oseu sentido na frente. Esse projeto, alm de desativar progressivamente amemria como fonte da crtica histrica, torna o passado um lugar sombrio emisterioso, quase esquecido.

    Em outras palavras, parece que h uma conexo entre o predomnio deuma noo de tempo iluminista, o rpido desperdcio da memria com aconverso do passado em matria de terror, especialmente se olharmos aliteratura do final do sculo XIX, da Era Vitoriana e da Belle poque.

    Essas conexes so importantes em funo do quadro que elas esboamna historiografia contempornea e na crtica da razo histrica, baseada numameta expectativa de futuro que assegura um objeto de ao, de melhoramentogradual das perspectivas de vida atravs da experincia histrica. De formaque, at h poucos anos, a histria se deixaria interpretar, tambm, como umaespcie de cincia do processo tecnolgico de dominao da natureza, queordenaria as possibilidades de ao para o futuro.

    Em sua expresso clssica, esse processo seria marcado no futuro comolibertao do homem de todos os obstculos que barram o desenvolvimentode sua humanizao e civilidade.

    Politicamente, o progresso fora entendido como democratizao, na medidaem que se apostou na crescente participao das minorias (l-se maiorias) nopoder, cuja no humanidade seria destruda em favor de um consenso legitimador;socialmente, o progresso como equalizao liberaria, via eliminao de obstculossociais, garantias individuais e na forma de tendncia ousar chances sociaisiguais; e culturalmente, o progresso perspectivaria um processo dedesencantamento, secularizao e racionalizao - no sentido dado por Weber- das petrificadas tradies em favor de formas de conscincia (DIGGENS 1999).Ou seja, ele vai apagando da memria individual e coletiva, aquilo que chamamosde amnsia.

    Em contrapartida, dessa crise da conscincia histrica da dimenso deprogresso surgem impressionantes potencialidades de ao do sujeito. Isso possvel de se compreender por si na medida em que sua prpria subjetividade,como processo temporal da libertao, caminharia para formas de autonomiados prprios princpios de conduta de vida.

    Essa forma iluminista de entender e incorporar a idia de progresso viasocializao, perdeu e perde sua fora de convencimento, mas ela no deixoude ser - apesar do bombardeio crtico - um fundamento da conscincia histrica.

    Uma discusso engajada a partir do tempo presente precisa transformaressa crise da conscincia do progresso em ponto de partida para seu prprioredimensionamento conceitual. Nesse sentido, a prpria idia de progresso nos

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  • oferece duas variveis, por vezes entendidas como contraditrias: a primeiradiz respeito a seu potencial destrutivo, corrosivo da memria tanto individual ecoletiva. E a segunda diz respeito ao potencial de emancipao nela contido.

    Neste redimensionamento, a pergunta pertinente a ser formulada aseguinte: se a idia de progresso tem, implcitas e explcitas, as potencialidadesde poder romper com o passado, no sentido da tradio e, ao mesmo tempo,propor a emancipao, como se explicaria o crescimento da tendnciahistoriogrfica que procura exatamente reviver aquela constelao de elementosque foram jogados na lata do lixo da histria? Ou seja, a historiografia no estse consolidando sobre elementos considerados irracionais e subjetivos? Nissotudo se encontra uma representao do passado que pode ser entendida comocrise das capacidades reais de superao dos processos de modernizao(HOBSBAWM; RANGER 1984). Ento, como isso poderia ser feito?

    No podemos esquecer do fato que nos ltimos anos, o progresso passoua ser visto como um monstro criado pela prpria cincia e acalentado pelasociedade. Aqui as relaes de atrito entre o princpio de progresso e experinciasnegativas, conseqentes do progresso, propiciam uma viso do passado umtanto confusa, uma vez que o foco central movido pelos historiadores sobreos perodos pr-modernos, tomando-se a, como contraponto nevrlgico, umaespcie de imaginrio popular.

    Essa nova perspectiva historiogrfica contempornea poder perderrapidamente sua plausibilidade, pois ela se configura de forma indireta, isto ,como relaes sociais anteriores modernidade. Essa crtica faz a expressomodernizao parecer com o sentido de alienao e o progresso ser, ento,apresentado como elemento ideolgico dissipador da prpria modernizao.

    A experincia de compreenso do passado atravs da crtica dos resultadosnegativos do progresso aumenta cada vez mais seu potencial. A categoriaprogresso perde plausibilidade e j no possvel perspectiv-la num horizontefuturo atravs da prtica cotidiana.

    Portanto, se a crtica pudesse inverter o crescimento econmico a partirdas formas como vem sendo operacionalizada (em um sistema econmico-estatstico do passado), ento, a atual explorao da natureza poderia sercompensado por um quadro equilibrado (entre homem e natureza) dos tempospr-modernos e de culturas de subsistncia.

    A ansiedade por projetos alternativos do mundo atual encontra muitorapidamente seu revestimento histrico nos custos da experincia histrica,numa espcie de neo-romantismo em que so idealizados determinadosaspectos compensadores - do futuro perdido.

    Pensamentos semelhantes convergem para a superao da modernizao,os quais encontraremos na prpria historiografia atual quando a questo centralse volta para a cultura popular nos tempos modernos na Europa. Uma tendnciainterpretativa nessa direo reflete, necessariamente, a crise da conscinciahistrica sobre o progresso em quadros histricos de busca de um mundo mais

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  • ou menos puro. Esse aspecto deixa transparecer a funo que a histria (comocincia) cumprira no processo de modernizao, que expusemos nos pargrafosanteriores.6

    Neste contexto residem os crticos que apontam na orientao de umreconhecimento dos saberes sobre o homem e sobre o social, em especial,sobre experincias de formas particulares de vida, dos universos singulares esignificativos, das suas especificidades e nas suas diferenas sincrnicas ediacrnicas. Ou seja, do espao das experincias que emergem os sentidos. Osentido e os interesses podem aqui se voltar para a agncia humana, para aao em sua dimenso virtual de autonomia.

    Em termos de historiografia[,] assume-se a tendncia de cunhar umaperspectiva do passado baseada em algo novo, porm situado historicamenteem experincias anteriores aos tempos modernos. J na Histria como disciplina,desde h muito tempo existe uma perspectiva, que se move contra a concepode progresso via modernizao; contra as perspectivas de histria da sociedade;contra categorias modernas como o trabalho, a sociedade, as relaes dedependncia, presentes como nunca em nossa sociedade. Esta tendncia perceptvel e discutida sob campos e abordagens como a histria do cotidiano,a demografia histrica e antropologia histrica e etc.

    Tais perspectivas giram em torno de uma (contra) histria crtica histriado progresso: a libertao aparece como processo de disciplina; os custos dosprocessos de modernizao so criteriosamente explicitados, vtimas doprogresso (por exemplo, mulheres e crianas) recebem voz historiogrfica dedenncia.

    Agora no se trata mais de desenvolvimentos temporais de longa duraodas relaes de produo, formao social, etc., mas, sim, de reconstruesdetalhadas de condies de vidas passadas e desenvolvimentos particulares,trazendo lembrana do historiador um antigo dilema metodolgico de enfoque:observar a floresta ou a rvore.

    Este olhar histrico-antropolgico de tendncia crtico-cultural (HUNT 1992)se deixa encaixar nas perspectivas assim chamadas ps-modernas. Ps-modernose tornou uma expresso dentre as tentativas para dar significado profundaruptura do presente e futuro com a tradio moderna. Isso significaria umaruptura entre a experincia de vida e o pensamento, baseados em orientaesdo progresso e de razo histrica.

    Fala-se em formas econmicas ps-industriais e de valores ps-materialistas que iriam marcar profundamente nossas sociedades no futuro. E,atravs delas, deveramos centralizar nossos esforos, obrigando-nos a umamanobra das caractersticas exploratrias da natureza e, especialmente, dasatitudes mentais que orientam o sistema econmico. Na cultura histrica essa

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    6 Este aspecto pode ser observado, por exemplo, na obra de Peter Burke quando escreve sobre acultura popular na poca moderna.

  • perspectiva de futuro discutida, portanto, como sintoma de crise das formastradicionais de conscincia histrica.

    Em outras palavras, isso significa abandonar a representao temporal detransformaes dos homens e do significado desse mundo em transformao,para assumirmos outros modos de pensar sobre experincias e sobre os sentidosdo tempo, rumo a uma narrativa salvacionista ou at mesmo mtica.

    Assim como nenhum caminho do pensamento histrico conseguereconstituir, isoladamente, a categoria de progresso dos modernos, tambmnenhuma forma de pensamento histrico consegue ser plausvel sem lev-laem considerao, se no pelo prprio desenvolvimento de experincias e decapacidades de conscincia.

    A crtica ao progresso legtima. Ela deveria, porm, ser enquadrada emuma nova concepo que no deixasse de levar em conta seus resultadoshistricos caractersticos, limpando-a, contudo, das categorias histricas queno conseguem mais capturar de forma plausvel esse processo. Ou seja, oprprio pensar histrico sobre o progresso precisa ser modernizado em termosmetodolgicos. O que significa isso?

    Em outras palavras, quero dizer que possvel evidenciar isso com umaargumentao abstrato-terica numa relao de racionalidade dos fins eracionalidade de sentido e de valor. A atual crtica do progresso no se propagaem tudo, o que est relacionado com a noo de progresso.

    A crtica se incendeia, sobretudo, sobre processos histricos, nos quais sefizeram presentes naquele progresso no sentido de um ilimitado desdobramentotcnico, instrumental e estratgico de fins previsveis em todos os setores dasexperincias.

    Esses progressos explodiam as culturas, as quais amarravam easseguravam o agir humano das sociedades pr-modernas em tradiesintransponveis como fontes de sentido. Max Weber caracterizou essatransposio de limites com a sua noo do desencantamento.

    Com isso, Weber apontou indiretamente para o fato de que com aintroduo, desenvolvimento e institucionalizao de sistemas racionais de fins,em todas as relaes sociais e de vivncia cotidiana, inclusive na cincia, sugeremde forma crescente um dficit das potencialidades de sentido e de impulsosinovadores. Alm do mais, ele descreveu claramente esse outro lado da medalha,ou seja, esse desencantamento do pensar tradicional histrico: decisesirracionais sobre os altos valores estariam colocadas contrariamente a umarealidade que parece significar a corrente catica dos acontecimentos.

    Essa sombra do sentido da racionalizao do processo modernizadorprovoca, ento, a procura de compensaes. Nesse caso, o progresso passariaa ser visto pelo nevoeiro das ideologias ou pelos experimentos irracionais,pseudo-religiosos ou mesmo impulsos fundamentais e carismticos. As cinciassobrepuseram esse vazio de sentido com a etiqueta da liberdade de valor, oumesmo pela argumentao intelectual do afastamento.

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    O que se percebe, analisando-se a historiografia atual, produzida emgrande parte nos departamentos de histria, um discurso acadmico assentadoem caractersticas, tais como: prope e apenas alcanaria uma crticaconformista; fomenta e amplia o retorno ao indivduo e as solues carismticase de excees. Numa perspectiva crtica, essas caractersticas assumidas pelahistoriografia contempornea denotam um potencial de encantamento doconhecimento.

    A superao da at agora vlida noo de progresso cientfico significacontrariamente, que a mais restritiva racionalidade dos fins do progresso devesseser diagnosticada para uma ampla qualidade da razo em termos de orientaohumana. Razo significa, aqui, devolver e operacionalizar novas possibilidadesde aes sob critrios de sentido e validade, que se unificariam na universidade,na liberdade e na dinmica temporal do trabalho, nas formas de poder e naespecificidade das culturas.

    Esses critrios no exprimem somente princpios de possibilidades da ao,mas os deixam abertos e atuais. Eles podem servir de elementos de discussessobre a racionalidade nas sociedades modernas ou no, portanto, as idiaseconmicas de superao das necessidades materiais, o reconhecimento socialdas potencialidades e chances, bem como a participao poltica cada vez maisampla no poder e propiciar o entendimento cultural sobre uma pluralidade deidentidades particulares. Mesmo porque, a especificidade s pode adquirir sentidono universal e vice-versa.

    Essas chances tambm podem quebrar a vontade maculada daracionalidade dos fins para com o poder. Os direitos humanos so exemplossignificativos. Eles nos mostram algo sobre as potencialidades da razo nasformas de vida contempornea. Porm, esses mesmos direitos humanos noconseguem brotar desta forma de racionalidade, apesar dos estmulos parauma ao prtica racional na orientao da vida.

    Mas a concepo tradicional de progresso est tambm limitada, umavez que, atravs dessa concepo acreditava-se que o processo histrico realprovocara uma substituio de perodos histricos na sua totalidade: o anteriorseria substitudo pelo posterior e assim por diante, de forma que no ficavanenhum espao para o sentido interno e externo dos tempos histricosdiferenciados.

    Essa limitao se deixaria superar se na categoria progresso estivessemembutidos elementos do pensar utpico. Mas, esses elementos foramexpurgados ao longo do processo do desenvolvimento da idia de progresso.

    A alteridade, entendida como qualidade central para a conscincia histricado passado em relao ao presente, se carrega com novo significado. Comisso, o futuro ganha novas dimenses em termos de possibilidades histricasno horizonte das expectativas, as quais no podero estar apenas presas desdeo incio aos pontos de vista de sua real realizao, mas sim s idias de futurono passado. Mas isso pode ser uma opo.

  • E no caso do conhecimento j estabelecido?Nesse aspecto, em especial, j no cabe mais aplicar uma crtica

    reducionista, pois entendemos que essa postura est se no superada, comseus dias contados. A historiografia no se realimenta apenas com a rotina dapesquisa, dos processos de trabalhos racionais, desencantamentos do passado,mas dos novos questionamentos ao passado, originados das (muitas vezes)incmodas experincias do presente.

    Aqui, o problema duplo: uma vez a cincia histrica se defronta consigomesma no sentido de funes e, outra vez, com as tendncias que a colocamem questo. Portanto, temos tambm um problema epistemolgico a serenfrentado. Esta auto-avaliao implica que a histria como disciplina precisariaexaminar quais foram os instrumentos que utilizou at agora para fornecerorientao temporal e que na atualidade so questionados de forma radical.Penso que s ento poder ficar evidenciado onde esto as deficincias deorientao do pensamento histrico, as quais levam a uma reao s suasconquistas no processo de estruturao cientfica ou que levam o prpriopensamento histrico a ser questionado como fator de orientao cultural navida prtica.

    A discusso que envolve a histrica hoje demonstra a importncia queesta continua tendo no contexto das cincias humanas. Em face da ressonnciae veemncia dessa discusso poderia parecer que a se encontrassem problemasrelacionados com a situao de sociedade em processo de modernizao. Adiscusso se localiza, portanto, a meu ver, ainda dentro dos parmetros econceitos da modernidade.

    Talvez entre as formas mais sublimes do conhecimento est aquela quepossibilita conectar passado-presente atravs de vestgios. Neste processo, ahistria pode revelar a condio humana naquilo que ela tem de mais fascinantee de mais temeroso. Nesta perspectiva, a noo experincia assume condioespecial nos estudos histricos.

    O momento parece ser exatamente de revigoramento cultural e deinsero hermenutica na compreenso do passado e, neste sentido, rompe-se com o exclusivismo de uma verdade cientfica. Fato que por si s j podegerar alguns problemas de repercusses terico-metodolgicos.

    Recentemente, Hans-Ulrich Wehler caracterizou o pensamento histrico,da virada do sculo a partir da nova histria cultural, como possuidor de umdficit terico-estrutural e como sendo uma tendncia carregada de abstinnciapoltica (WEHLER 2001). Em outras palavras, podemos dizer que estaramosvivendo uma ressaca historiogrfica. Enquanto isso, outros autores, comoFranois Dosse (DOSSE 2001), Jrn Rsen (RSEN 2001) ou Josep Fontana(FONTANA 1998), cada um a sua moda, esto buscando resignificar os sentidosdo conhecimento histrico l onde ele est sendo criticado como de contedoirracional.

    bem verdade que, em tese, podemos afirmar que estamos assistindo

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  • uma luta encarniada entre as noes de espao x tempo, a qual precisa semdvida de uma topoanlise diferenciada. O espao antropolgico est cada vezmais presente na experincia reconstituda em detrimento do tempo. E, nestecaso, a funo do espao a de reter o tempo comprimido ou mesmoimobilizado. Na afirmao de Gaston Bachelard, o teatro do passado a memria,onde o calendrio do tempo s poderia ser estabelecido em seu processoprodutor de imagens (BACHELARD 1996).

    Assim sendo, o espao garante para a noo experincia um locus especialno debate historiogrfico, numa espcie de revanche da experincia antropolgicasobre a estrutura e do local da cultura sobre a explicao. Est claro que adescrio densa, a la Geertz, da experincia enfatiza, de forma extraordinria,as formulaes discursivas no passado sem a dinmica do tempo, pormprojetadas na atualidade como uma espcie de cincia do texto.

    Esta rpida caracterizao da cultura historiogrfica tambm uma marcacultural contempornea, identificada aqui como modernidade tardia. certo quetais movimentos possuem ampla receptividade na disciplina e no pensamentohistricos e nem poderia ser diferente.

    Por outro lado, j entendemos que o conhecimento do passado comomeio de redeno do homem no futuro produziu monstros terrveis e nisso osculo XX exemplar. Talvez o passado s exista mesmo apenas comoexperincia, como imaginao e como afetividade a partir do presente, cujasleituras so aquelas que nos remetem para o fundamento metodolgico docomo possvel de ser reconstitudo o seu sentido clandestino.

    Tal perspectiva representa, como a entendemos, o momento ou tempode experincias que podem possibilitar o questionamento do presente pelopassado no sentido de reconstituirmos as idias de futuro no passado e,sobretudo, compreend-las como os argumentos para uma cultura da mudana.

    Nesta orientao, a histria como texto representativo das experinciashumanas somente se deixaria explicar e compreender a partir de trs funesespecficas. Vejam:

    a) histria como o processo de generalizaes de motivos, de aes e derepresentaes de perspectivas de futuro no sentido de orientaes dos objetivosindividuais e coletivos para o futuro agir;

    b) histria a soma de aes orientadas em modelos de explicao daexperincia, integrando os aspectos pertinentes multiplicidade, heterogeneidade da conduta de vida e s relaes sociais;

    c) histria a representao exemplar de critrios de regulamentao deexperincias que, por sua vez, sedimentam e estabilizam a construo demodelos legtimos e normativos da prxis social.

    Estas trs possibilidades, como potencialidades da experincia histrica,poderiam ser diferenciadas em um nmero extraordinrio de funes especficasda cultura propriamente dita, dentre as quais podemos destacar as de motivao,de orientao, de satisfao, de disciplinao, de recrutamento e estratificao,

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  • de legitimao, de integrao e, finalmente, de significao.Metodologicamente, estas funes envolvem um amplo espectro de leituras

    e intertextos das experincias. Pois bem, onde podemos perceber oenvolvimento da experincia? Podemos perceber seu envolvimento no apenasna materialidade da experincia, mas, sim, em estruturas de representao taiscomo: na lembrana, na memria, na tradio, no simblico, no imaginrio, nopsicolgico, no local da cultura e, no caso da historiografia, em textos comoresultados da racionalizao e estetizao das experincias.

    De outra forma, no desprezvel que a situao nos apresente que asaturao de perspectivas seja concebida como a condio maior de produode novos sentidos.7 Destarte, os custos da modernizao seletiva no seriammais percebidos como obstculos metodolgicos, mas sim como recursos,como matria-prima para sua (re)atualizao atravs dos esforos dametanarrativa, da metafico, ou ainda, da intertextualidade.

    Portanto, o tempo de experincias presentes, percebidas atravs das idiasde futuro no passado e envolvidas tanto pela esttica como pelas funes doconhecimento histrico, um campo frtil, mas traz consigo alguns desafios,tais como: a analogia entre a reconstruo da biografia e a interpretao crticaatravs dela de estruturas simblicas; a cincia no desempenharia mais seupapel de motor do pensamento, pois esta funo estaria ocupada pela poltica;a histria com plausibilidade cientfica no pode ter mais a funo de proporidentidades, pois a historiografia o resultado de racionalizaes metodolgicas;a histria, para poder dar conta desta busca de significaes sobre experincias,precisaria ampliar seu lastro de contedos.

    Tais desafios poderiam orientar as possibilidades de reconstituio dopassado, primeiramente, tal como deveria ter sido. Mas, esta perspectiva trazconsigo o sentido de uma leitura de significado romntico de como queramosque fosse.

    Entretanto, ns j compreendemos que esse passado nunca existiu nessaforma a no ser na afetividade mais subjetiva. Portanto, resta-nos a leitura dopassado que nos remete para o sentido metodolgico do como possvel deser reconstitudo. Para esse empreendimento precisamos estabelecer novasparcerias metodolgicas especialmente quando tratamos dos guardados damemria.

    Por outro lado, fica a conscincia de que aquilo que denominado deconhecimento histrico est situado entre o fascnio da esttica e o temor desuas respectivas funes no contexto de crise da razo, quando no de suademisso entre os critrios de plausibilidade: o fio da navalha.

    Dito de forma mais evidente, isto quer dizer da facilidade de cairmos na

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    7 Este aspecto implica em redimensionar apenas a percepo da racionalidade, mas, sobretudo, buscaruma compreenso mais ampla sobre a subjetividade. Ver SCHNITMAN, Dora Fried (org.). Novosparadigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1996.

  • vala do reducionismo. justamente esse o cordo umbilical entre a tradio e ainovao. Este cordo transmite os textos com o objetivo de consignarpossibilidades para o psicanaltico e para a subjetividade na reconstituio dopassado na perspectiva de potencializar os sentidos.

    Esta possibilidade pode ser assentada num trip, constituda pela crtica darazo histrica e seu redimensionamento, pelo estmulo argumentado para umacultura da mudana e, finalmente, pela reconstituio das idias de futuro quese tinha no passado. A segunda tarefa, digamos mais braal, diz respeito necessidade emprica de inventrios da produo historiogrfica brasileira atravsde centros de referncias e grupos de pesquisa.

    O passado est l na cadeira de balano nalgum lugar registrado na memriaem processo de esquecimento, seja ela individual ou coletiva e, nesse momentodo debate, a Histria como disciplina parece que se aproxima do div para umexerccio teraputico de sua prpria trajetria.

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