ironita policarpo machado - cultura historiografica e identidade -capitulo 2 - o termo história e...

23
'" BENINCÁ. Depoimento: instmmento de pesquisa biobibliográfica. 97 JANOTTI. Op.cit., p. 119. Recapitulando, podemos observar que, nas concepções de história, reafirma-se o princípio da indissociabilidade entre contexto social vivido/ capital cultural simbólico e as motivações para escrever (traduzindo-se nas articulações entre poder e cultura), que se materializa na busca de elemen- tos de identificação e diferenciação, guiada pela consciência histÓrica de elite cultural, visando à construção de identidade de coletividades e lu- gares pela escrita da história. A elaboração desse quadro sobre a natureza coletiva da criação (livros) pennite a inferência sobre a identificação do autor e seu lugar social. Trata-se de uma elite cultural por ser portadora de capital simbólico, que integra historiadores di/etantes - "não somos historiadores" -, os quais buscam registrar/narrar os fatos passados, usando para tal formas e felTa- mentas - procedimentos - definidos pelas suas "formações". Tais "ações são impeli das pela busca", consciente ou não, "dos elementos constitutivos de uma identidade coletiva que se articula dialeticamente com o campo abrangente das relações sociais."'J7 Essa premissa está subjacente quan- do anunciam que "numa linguagem acessível procuramos deixar a todos um pouco do que foi a vida de nossos antepassados e contribuição para identificação da região." Montado o quadro sobre a natureza coletiva da criação (livros), ou seja, da cultura historiogrâfica do centro-norte do Planalto rio-grandense publicada na década de 1980 a 1995, lançamos o desafio para o passo se- guinte: o estudo historiográfico do símbolo identitârio dessa elite cultu- ral por meio daquilo que denominamos de criação. 66 Ironito P. Machado "Não basta recolher fragmentos da história e arquivá-los. O mais imp011ante é proceder a análise estabelecendo as possí- veis e devidas relações. Com essa sábia intervenção, o arqui- vo morto da história tem vida eterna. "96 a e Sua episteme istoriográficos

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Page 1: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

'" BENINCÁ. Depoimento: instmmento de pesquisa biobibliográfica.97 JANOTTI. Op.cit., p. 119.

Recapitulando, podemos observar que, nas concepções de história,reafirma-se o princípio da indissociabilidade entre contexto social vivido/

capital cultural simbólico e as motivações para escrever (traduzindo-se nasarticulações entre poder e cultura), que se materializa na busca de elemen­tos de identificação e diferenciação, guiada pela consciência histÓrica deelite cultural, visando à construção de identidade de coletividades e lu­gares pela escrita da história.

A elaboração desse quadro sobre a natureza coletiva da criação(livros) pennite a inferência sobre a identificação do autor e seu lugar social.Trata-se de uma elite cultural por ser portadora de capital simbólico, queintegra historiadores di/etantes - "não somos historiadores" -, os quaisbuscam registrar/narrar os fatos passados, usando para tal formas e felTa­

mentas - procedimentos - definidos pelas suas "formações". Tais "açõessão impeli das pela busca", consciente ou não, "dos elementos constitutivos

de uma identidade coletiva que se articula dialeticamente com o campoabrangente das relações sociais."'J7 Essa premissa está subjacente quan­do anunciam que "numa linguagem acessível procuramos deixar a todos

um pouco do que foi a vida de nossos antepassados e contribuição paraidentificação da região."

Montado o quadro sobre a natureza coletiva da criação (livros), ouseja, da cultura historiogrâfica do centro-norte do Planalto rio-grandensepublicada na década de 1980 a 1995, lançamos o desafio para o passo se­guinte: o estudo historiográfico do símbolo identitârio dessa elite cultu­

ral por meio daquilo que denominamos de criação.

66Ironito P.Machado

"Não basta recolher fragmentos da história e arquivá-los. Omais imp011ante é proceder a análise estabelecendo as possí­veis e devidas relações. Com essa sábia intervenção, o arqui­vo morto da história tem vida eterna. "96

a e Sua epistemeistoriográficos

Page 2: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

Fazer história não é fácil. É uma

arte complexa, uma vez que o histo­riador, cientista que é, trabalha comuma matéria prima perecível e alea­tória, o fato humano que já passou. I

(...) Ora, o observador que obser­

va, o espírito que pensa e concebe,são indissociáveis duma cultura, e

portanto de uma sociedade (...p

No primeiro capítulo, já apontamos, no quadro sobre a naturezacoletiva da criação (livros), alguns indicativos das concepções de histó­ria e dos historiadores com base nas conceituações por eles expressas.

Tais concepções circunscrevem-se a duas perspectivas: a de história con­cebida como realizações humanas e a de história como escrita do passa­

do. Aqui, de forma especial, retomamos a questão tendo como locus doestudo historiográfico a história como escrita do passado, em outras pa­lavras, buscamos estudar como os historiadores em questão repOltam-se

ao passado em suas criações. Assim, em suas ações de ver-pensar opassado, quais seriam as suas concepções e perspectivas sobre a histó­ria como realização humana?

Portanto, falar da "feitura da história não é fácil". Nesse aspecto,

queremos, pmticularmente, abrir um parêntese para pensar o sentido dualdo conceito de história aqui apresentado. A história pensada como es­

aita do passado, objeto de nossas reflexões neste capítulo, pode serl'lllendida como a construção da pesquisa histórica, o ver e materializarIIlcmórias - matéria-prima perecível e aleatória-, a construção do co­nhecimento sobre o passado, entendendo-o como interação permanente

III,SPANHA, Benedito. ln: GEHM, Delma Rosendo. Passo Fundo através do tempo. PassoI'lIndo: Diário da Manhã, 1982. v. 2. Prefácio. p. 5.M(1J{IN, Edgar. O método: a natureza da natureza. Portngal: Publicações Europa ÁIIIl'rka.11)117. p.15.

Page 3: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

70 lronita P.Machado Cultura historiogrófica e identidade

71

entre consciência e materialidade. Assim, é possível identificar os pressupostosorientadores do "observador que observa, o espúito que pensa e concebe" (ateoria) - esse sentido denominamos de história/disciplina. Quanto ao fazer nopassado e/ou presente, pressupondo sujeitos e (re)articulações do próprio teci­do social, que configuram as temporalidades materiais e subjetivas, ou seja, aconstrução da realidade social, consideramos o vivido - história.

Frente a essas indicações e com a premissa de que "o observador queobserva, o espúito que pensa e concebe são indissociáveis duma cultura e, por­tanto, de uma sociedade", a qual desenha e é desenhada por uma temporalidade,podemos inferir que há diversas formas de ver-pensar uma realidade histórica.

É inegável que duas preocupações estiveram constantemente presen­tes no transcurso existencial do homem, pela sua tomada de consciência so­bre o que o cerca e sobre si mesmo: dominar a natureza e explicá-Ia. A primeiraé responsável pela estlUturação da vida social, enquanto a segunda faz emer­gir construções conceituais científicas, não desconsiderando o imbricamentoentre ambas para responder às indagações que o homem coloca diante da suaexistência social concreta.

Nesse sentido, a constituição, a ramificação, a especialização e as mu­danças do conhecimento científico estão diretamente ligadas à necessidade queo homem possui de conhecer o mundo para nele viver. Desse processo devivência e busca de conhecimento é que se elaboram elementos identitários.

Das ramificações e especializações do conhecimento cientifico, no aspectoparticular da vida e da organização social, situa-se a história-disciplina, que sepronuncia por meio de conceitos e categorias. Ela vem amparada em diferentesteorias filosóficas, que predominam/prevalecem por algum tempo, ou seja, en­quanto estiverem respondendo aos problemas oriundos do contexto vivido eligado a uma comunidade, condicionando, assim, a interpretação dos fenôme­nos sociais. Portanto, o ver-pensar é um processo dialético de construção deconceitos, que são, na verdade, o conjunto de decisões a serem tomadas a partirde uma visão de mundo do sujeito para obtenção do conhecimento.

Frente à problemática proposta, precisanlos mencionar alguns conceitosmediadores entre os paradigmas epistemológicos da história e o ver-pensar dohistOliador, considerados mais elucidativos para os objetivos interpretativos dopresente capítulo. Optamos pelo conceito paradigma, por um lado, parareferenciar "as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durantealgum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidadede praticantes de uma ciência"3 - conjunto de fOlll1ulaçõese regras (modelos)que traduzem valores crença-, entendendo-o como matriz geradora de teorias,

) KUHN, Thomas S. A. Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 23e 25.

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ou s~ja, modelos explicativos, abstratos, os quais, mesmo comp;u1ilhando amesma premissa epistêmica, podem diferenciar-se quanto à concepção lilosÓli­ca. Estabelece-se um conjunto de hipóteses e procedimentos diferenciados para

visualizar e pensar a realidade histórica, os quais, por sua vez, podem constituirtendências de acordo com o próprio movimento histórico de crítica interna.

Por outro lado, entendemos paradigma como projeto e modelo de socie­

dade. Na perspectiva do processo dinâmico de racionalização da sociedade, abre­se a possibilidade de contemplm' os projetos, conquistas e frustrações na buscada modernização e da modemidade.4 Entendemos que as duas perspectivas doconceito paradigma não são opostas, nem dissociadas, mas, sim, pmtes inte­

grantes de um mesmo movimento: o real vivido e sua explicação. Ambas seconstituem frente aos problemas específicos de uma temporalidade.

Nesse sentido, as categorias fundamentais ao estudo do objeto da

história disciplina - tempo, sujeito, fato, acontecimento- receberão trata­mento e abordagem de acordo com o paradigma ao qual o historiador es­

tiver epistemologicamente filiado e, por outro lado, com o qual estiversocialmente comprometido. Estando o historiador consciente ou não des­sas variáveis, sua formação e seu contexto vivido - problemáticas que o

presente lhe impõe, ele projetará seu ver-pensar sobre o passado, confi­gurando a especificidade do conhecimento histórico.

Isso nos conduz a interpretm' a cultura histOliográfica regional com basena natureza coletiva da criação (livros), identificando os autores e seu lugar

social. A respeito dos autores e seu lugm' social, discutidos no capítulo anterior,

recapitulamos dizendo que se tTata de uma elite cultural que, por um lado, éportadora de capital simbólico mediante posições ocupadas e reconhecidas nahierarquia social e, por outro, apresenta fOlmação acadêmica, em sua maioria,nas áreas das ciências sociais/humanas, não especificamente, pois, na habilita­

ção de história - pesquisa histórica, É essa uma elite movida a escrever por uma"vocação política" - daí a inferência historiador diletante.

Levando em conta as considerações até aqui expostas, pressupomos

que os historiadores tenham rompido com o doxa no nível interpretativo,pois, possuindo fOlmação na área de ciências sociais e estando inseridosnuma sociedade, conseqüentemente, estão filiados a um paradigma, que se

1 Aqui empregamos os conceitos modernização e nwdernidade para indicar as u'ansformações ob­jetivas da sociedade (ligadas ao econômico) e os elenlcntos que caracterizam as u"ansformaçõessubjetivas da sociedade. Nas palavras de Jameson: "A emergência de novos aspectos formais dacultura COln a emergência de um novo tipo de vida social e com uma nova ordelll econômica", Para

lal, enU'e outros, ver: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no m: São Paulo: Cia. dasLetras, 1988; SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pl'"modernidade. São Paulo: Cortez, 1991. KAPLAN, E. Ann (Org.) O mal-estar no l'ós-II/l){lemiSll'o:

tcoria, práticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. DIEHL, Astor Antônio. A matri~ do ('/lllllm /m/lilcira: do crescente progresso otimista à crise da razão histÓrica. Porto Alegre: I;.dipw.:rs, li)l) \,

idem. Vinho velho em pipa nova: o pós-moderno e o fim da histÓria. Passo Fundo: I'.dilll'L jljl) I

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Imigração,escravidão e

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judiciários

Religioso

Revoltas!

revoluef)C's

Folclore

Revoltas/

revouções

Folclore

(continua)

R.pvoluc)cs/

revoltas/ guerras

Evol. econfnnicae folclore

Evol. econÔmica

e revoluçÔes

- Revoluções

- Revollas/

revoluções/ guerras

-Descri<,:ões

gec)gráficas,

revoltas/revoluçÔes

- Colonização e

religião

- Coloniz,lção,

evoluçãosocioeconÔmica e

cultural

- Colonização,evolução

socioeconômica ecultural

- Colonização,

evoluçãosocloeconômica e

cultural

- Colonização,evolução

socioeconÔmica e

cultural

- Colonização,evolução

socioeconÔmica ecultur,,1

Evoluçao(:conÔllliG~ e cultural

- Religioso: MongesBarbudos e Igreja

Cal. Aposl. Romana

- Evoluçãosociocultural

- Coloniz~H~:ão,

evolução político­administrativa

Ocupação/evoluçãopolítico econÔmica,sociocultural do RS

e cons!il. Illunicipal.

co lon izaçã o/empres­a colonizadora Luci

Rosa ,,,-< Cia/ Alto­

Uruguai e evol.

1'01ítico-admin ist.mu-nicipal

Evolução político­administrativa

Evoluç:50 político­administrativa

Evolução fXlroquial

Evolução político­administrativa

73

Ocupaç:ão/evolução­político-econômicJ1­sociocultural cio RS

e constit. municipal.

Evolução polilico­administrativa

Evolução I'0lítico­aclministrilliva

Evolução político­administrativa

Evolução polític:o­administrativa

Evolução político­administrativa

Evol./caractcrização

geo-ecollÔmica

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IV

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Grupo 3 Histórias 2"regionais/municipais

( .ultura historiogrófica e identidade

I

Folclore

lronita P. Machado

- Local - casos

- Aspectos político­administrativos

municipal-estadual­Revoltas-revoluções

regionais e locais

- Origem domunidpio­

Lideranças político-administrativas do

municipiol1l57 a1995

- Evolução geográfica Evol. econÔmicae sociocultural

- Evolução geográfica Evol. econÔmicaguerras/ revoluções

- Evolução geográficaguerras/ revoluções

- Quadro natura I e

colem ização

- EvoluçãosocioeconÔmica e

cultural

Biografias:genealogia polflico­

municipal

Evolução político­administrativa

Genealogia familiar

Depoimentomoradores

constituição c/o IOCJI

Evolução político­administrativa

Evolução político­administrativa

Evolução político­administrativa

Evolução político­administrativa

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72

Grupo 1 - Históriasmunicipais

Quadro 10- Forma como os historiadores se reportam ao passado _temas contemplados.

faz presente em todas as ciências e projetos de sociedades, tornando,assim, possível sua identificação na construção da escrita da história.Portanto, a partir da identificação do paradigma a que os autores estãofiliados, julgamos pertinente e necessário situá-Io no atual debate históri­

co-historiográfico, bem como na problemática que foi colocada aos auto­

res pelo contexto vivido, donde advém a sua "vocação política" motivadorado ato de escrever.

Diante dessas questões introdutórias, ressaltamos que a problemá­tica em torno dos paradigmas historiográficos será mais bem elucidada àmedida que procedermos ao estudo historiográfico das obras dos histo­

riadores à luz dos elementos empíricos. Para tal, partimos da seguintequestão: como os historiadores se rep0l1am ao passado? Assim, o foco

de observação serão os temas contemplados, o tratamento dado ao tempohistórico, ao sujeito histórico, ao fato histórico e à mudança histórica, asua concepção dimensional do espaço, bem como os aspectos contem­plados na narrativa histórica. Tais observações estão sistematizadas nosquadros que integram esta parte do trabalho.

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74Ironito P. Machado

(,ulllillua)

Cultura histori<?gráfica e identidade75

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Colonização/empresa

colonizadora LuciRosa & Cia/ Alto­

Uruguai e ovo!.polítlco-adminisLmu­

nicipal

ColonizJção Alto­Uruguai/ Nova It,ília,

ovo!. político­administrativa

municipal

- Revoltas/

revoluçÜes/ guerras

Evolução paroquial I<evolt"s/revo-Iu-e quadro natural \~oeslguerras

Mesmo considerando que a própria denominação dos temas su/,en'as questões expostas, nossas referências vão além delas, pois, do colltr;írio, estaríamos negligenciando a interpretação, Portanto, salientamos queas perspectivas colocadas resultam da leitura sistemática e metódica detodas as narrativas históricas dos livros, nas quais buscamos identificar o

tratamento dado a algumas categorias fundamentais à pesquisa histórica,como a do método/trajetória teórico, as quais configuram a construção doconhecimento histórico. É dessa problemática que passamos a nos ocupar

daqui por diante,

27"

30"

Evolução polílico­aclminislrdlivd,

socioeconÔmicl ecultural do R5.

RevoluçãoFedera lista R5 ebatalhas locais

- Tradicionalislllo: 1<5

(> rnunic:ípio; MTGe CTCs

- Evolução políllco­partidária e

administrativa do R5

f\evoltas/revolll­

\:Ües/guerrílsMovimentos

tradiciolldlistas

I o"te: Obras analisadas.

( >I>s.. * A numeração dos livros segue a dJta de SUJ publicação e scrt-íusada ern outros quadros em"""tiIUiç"ão aos lílulos. Referência bibliográiica: ver no capítulo I.

Seguindo os agrupamentos temáticos apresentados no primeiro ca­pílulo, histórias municipais, histórias regionais e histórias regionais­1Ill1l1icipais,feitos com base no rec0l1e espacial e na abrangência temática,

pLTCl:bcmosque há uma perspectiva comum a todos. Nesse sentido, pelas{lllese apresentada no Quadro 10, apontamos três perspectivas presen­ll's IIOSgrupos temáticos, correspondentes à maioria das produções: à pri­meira denominamos de caráter genealógico do tema pelo fato de a pers­pcdiva temática caracterizar-se pela busca das origens e configuraçõesdo local, sejam elas territoriais, político-administrativas, socioculturais,"lllicas e ou econômicas; na segunda, caráter geral - demonstrativo do

lt'lIla, ohservando as colunas temas principais e temas secundários, per­,dlCIIIOS a incidência do aspecto político, que aparece como formador das

plOpril'dades demonstrativas gerais do conhecimento das pm1icularidades,011,';''ia. lodos os temas pIincipais ou secundários são demonstrados como"'II~;Ii1111,1,lSpelo detenninismo político; por último, o caráter evolucionista

do 1"llIa empregando evolucionista como adjetivo à história enquantopa:.:;ado vivido que se constituiu de um desenvolvimento progressivo e

hOllIO)',"lll'o/lIalllral-, pois os temas são nomeados e estruturados na pers­p,·,II\:I ,Il- CVOhh;;lo~progresso, como também se observa um certo

Il'Inll\l.'.I110oJ'iclIlalldo 110tempo questões incognoscíveis/místicas (folclore11.111111I11I,i1I::1I11'),

Page 6: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

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2. I Tempo histórico

o tempo, representando a polissemia da tríade passado-prl'sl'lIll" 111

turo, impõe-se como elemento intrínseco e diferenciador da disciplina Iti:;((,ria frente às demais, pois a matéria-plima do historiador, a mCl1uíriil, l; apn'

endida e pensada com base em uma temporalidade da qual não pOdCllIOSescapar, caso contrátio, cairemos numa aporia explicativa, existência abstratae incognoscível. Daí a necessidade primordial do tempo como categoria his­tótica. Ao estabelecê-lo - cronologia, duração, circularidade, linearidade -, o

historiador ditige-se ao passado, atribuindo à lústótia uma significação.O tempo histórico, confOlme demonstrado no Quadro 11, foi concebido

pelos histOliadores diletantes como um movimento contínuo, inintenupto, lmicoe, pottanto, linear. Essa unidade da concepção de tempo histórico pode ser ob­setvada em quatro perspectivas: a primeira, presente em 81,2% das nan'ativas his­tóricas, corresponde a uma concepção linear de longa duração efactual, pois opassado vivido é apresentado numa sucessão inintenupta, como sentido únicode acontecimentos cronologicamente datados e vislumbrados numa visão globale evolutiva; procura-se apreender todas a'l possibilidades demonstrativas da exis­tência progressiva do objeto em foco. Éperceptível pela fOlmacomo a narrativa éapresentada, ou seja, o tema evolui de um tempo passado bastante distante dopresente (em média, cinco a seis séculos/ sem recOlte temporal), chegando até adata de publicação do livro, como também pelas expressões usadas, "há muitosséculos e milênios", "o territótio nos albores", "desde o início da colonização atéos dias atuais", entre outra, Ilustramos essa concepção com algumas citações:5

"O território que compreende o atual município (. ..) desde osprimórdios do decobrimento do Brasil ,até a época de suacolonização, e, mesmo posteliormente, até sua emancipação, a23/03/1965, ficou subordinado as seguintes instituições( )Com o decorrer dos anos, as terras férteis do território ( )

começaram a ser visitadas (...)."6

"Vale a pena rastear as primeiras trilhas, esquadrinhar os pri­meiros impulsos avoengos. Para tal propomos remontar, emrápida síntese, a gênese do nosso Rio Grande - a ten'a e a gente -,manancial abundante das mais ricas inspirações."7

;; Considerando o número de nossas fontes (32 livros) c a pluralidade dos elementos a serem ob­

servados nas narrativas históricas, optanlOS pela apresentação em sua totalidade através de qlla

dros-sÍnteses. Entretanto, à medida que nossa problemática avança, torna-se illViávc1 a ilustl'êll,:ão

de nossas argüições com citações de todos os autores. Nesse sentido, esclarecemos que faremoscitações em número reduzido, procurando diversificar os títulos.

" FERR!, Gino. ROl1dinha. Passo Fundo: Berthier, 1988. p.16.

7 FONT, Juarez Miguel Ilha. Serra do Erechim. Erechim: CalTara. 1983. p. 26.

I

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Da mesma forma, a terceira perspectiva, correspondendo a uma úni­ca obra,14 apresenta-se como de longa duração e factual, diferenciando-se

da segunda porque, ao tematizar o folclore e o tradicionalismo gaúcho,

"Procuramos compreender a atuação humana dentro do siste­

ma econômico; a ferrovia e a Empresa Luce Rosa impulsiona­ram o povoamento; 12 ou, "agora a atual administração tentaatrair indústrias." 13

"Todavia, contrariamente ao que aconteceu a 33 anos, o pro­cesso de criação de novos municípios se efetua em clima bem

menos dramático(. ..) a fragmentação terá conseqüências sig­nificativas sob todos os aspectos."11

Seguindo a linearidade da evolução do município, em muitos mo­

mentos referenciada como conseqüência de um tempo da longa duraçãoeconômica, assim lemos:

Quanto à segunda perspectiva, que corresponde apenas a um livro,9

o tempo histórico é apresentado como de longa duração e linearidade,portanto, diferencia-se da primeira somente por não trazer os fatos histó­

ricos rigidamente datados e de forma linear, mas predomina a evoluçãogeoeconômica numa visão linear de longa duração. Essa perspectiva tem­poral podemos perceber nas seguintes afirmações:

"Embora nosso procedimento seja abordar setor por setor,importa sintetizar aqui características gerais destes trinta anosde município."lo

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79(.•ultura historiográfica e identidade

n:mete à formação étnica e sociocultural nacional, além de, numa pcrspl'C­tiva evolucionista, contextualizar a região e o tempo presente refercnciamlo

a herança/legado. É exemplo dessa assertiva:

"(...)origens do folclore brasileiro prendem-se, naturalmente a for­mação do povo. Três elementos básicos- o índio, o pOltuguês eo africano, aqui se misturam desde os Plimeiros tempos(. ..)"15

"Tradicionalismo é um estado da alma, uma forma de reviver as

coisas do passado com a preocupação de retirar elementos fun­damentais que possam ser utilizados para consolidar o indiví­duo na sociedade atual."16

Nessa perspectiva de longa duração, o que constatamos é a gênesee a evolução de hábitos, valores e crenças de um povo, sendo algunsacontecimentos referenciados de forma factual, nem sempre datados, ex­

pressos de diversas formas. Como exemplo:

"2' guerra mundial, com a vitóriada" democracias,apresentou a queck'lde Getúlio Vargas. Começou a geração coca-cola; de 1947e por lon­gos anos foram surgindo centros de tradições; 22/05/1898 um m~ordo exército de nome; em 24/04/1948 foi fundado o 35 Centro de Tra­

dições; com o passar dos anos, em Semana Farroupilha.''i7

Temos como quarta perspectiva da unidade temporal a linearidade

lactual, que corresponde a quatro obras.17 Essas apresentam os fatoscronologicamente arranjados e dizendo respeito à temporalidade datemática em foco, ou seja, o tempo de um acontecimcnto, de uma ou mais

biografias de vultos históricos, de memórias individuais, os quais, no con­junto, demonstram a formação de uma comunidade. O tema é apresentadode forma factual, mas com uma natureza interna linear. Essa perspectiva é

claramente percebida nestes fragmentos:

"É uma coletânea de biografia dos patronos das escolas (... ),

entes caros nossos, que aqui nasceram ou moraram( ...) mOlteos leva, mas deixaram vivas,( ...) as lembranças dos feitos quecontribuíram para o desenvolvimento."'8

lronita P. Machado

"Contemporaneamente à civilização indígena, as matas do an­

tigo Erechim ( que se estendiam desde Mato Português eCastelhano até os limites do Estado do Paraná) sofreram in­

clusões de "intmsos" oriundos de diferentes lugares. Foramos bandeirantes (...), nos albores do século XVII, os primeirosa adentrarem nestas florestas. O clima social voltou a se con­turbar, anunciando, dessa vez dimensões nacionais. Estamosem 1928."8

78

S BENINCÁ, Dirceu. Sel'erial1o de Almcida e sua história. Passo Fundo: Berthier. 1990. p.22 c 79.9 CASSOL, Erneslo (Coord.). História de Caurama. Passo Fundo: Bcrthier, 1988.10 Id.ibicl., p. 31.11 Id.ibid., r. 102." Id.ibicl., r. 25.I J IcI.ibicl., p. 10 I.

'" PARIZZI, Marilda Kirst. Folclore: nossas raÍzes. Passo Fundo: Berlhier, 1983.

" PARIZZI (1988). Op. cit., p. 135.16 Id.ibid.

17 ANNES, Maria Xavier c Oliveira. JOhllll11Adam Schell e sua descendência. Passo Fundo: Diárioda Manhã, 1980: NASCIMENTO. Welci. Vultos da história de Passo Fundo. Passo Fundo:

Berthier, 1995: Idem, Maragatos e pica-paus, porque brigam tal1to. Passo Fundo: Berthier,1993.

PREFEITURA MUNICIPAL. Um 1'01'0 e suas histórias. SL: S.ed .. 1992.IS NASCIMENTO (1995). Or. dI. r.7.

Page 8: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

80lronita P.Machado Cultura historiogrófica e identidade

81

"A participação de pessoas que vivem nesta terra desde osidos de 1910 aos nossos dias, faculta ao leito a veracidade dos

fatos aqui registrados, pois nosso objetivo é de que esta obranão apague a memória do que esta colônia( ...) tem."19

Tentando sumariar o tratamento dado ao tempo, podemos infeIir que amade temporal longa duração - linearidade - cronologia afiança, em muitosmomentos, uma visão natural de tempo que ganha vida própria; que é espon­tânea e singular, independente das ações humanas/relações sociais. Todavia,em outras situações, ganha um colorido determinista de feitos políticos vistosna singularidade de gmpos ou indivíduos, formadora da unidade temporal con­cebida pelos histOliadores. Dessa forma, o tempo é percebido como realizaçõessociais, portanto especificidade humana, mas sob uma concepção unilateral.

2.2 Concepção dimensional de espaço

Em estreita relação com o tempo histórico encontramos o espaço,que é visto e pensado como um dos elementos referenciais da existência

humana de acordo com a matriz epistêmica do pensar histórico, a qual, porsua vez, sofre alterações no transcurso de sua historicidade.

Podemos identificar nas naITativas históricas que o tratamento dadoao espaço segue uma concepção teITitorial de base geográfica em três

perspectivas. Na primeira, presente em 28,1 % dos livros, o espaço geográ­fico é apresentado sob um sentimento de pertencimento e divinização,percebível quando lemos: "Nossa terra; população de nossa região; se­nhores da região; território máter; participação do município nas convoca­ções do país; é nesta bela natureza". Para situar outras expressões re­presentativas dessa perspectiva, seguem-se alguns fragmentos textuais:

"Majestade Abatida (...) outrora cobeIta pordensa e majestosafloresta de araucária, fonnava um santuáIio da natureza( ...)Assimaconteceu com Soledade, flor doscampos plantada no alto daSeITa do Botucaraí."20

"Procuramos, em capítulos CUltos e precisos, mostrar trezen­

tos anos de históIia. De SãoCarlos do Caapi, redução jesuíticafundada em nosso terIitório( ...)."21

I" PREFEITURA MUNICIPAL ( 1992). 01'. cit., p.3.

~o VERDI, Valdcmar Cirilo. So/edade das sesmarias dos monges barbudos e das pedras preciosas.Não-Mc-Toque: Gesa, 1987. p. 89 e 219.

'I VARGAS, Álvaro Rocha. Do Caapi ao Cara~illho 1I0ta sobre 300 aliaS de história (1631­I'UII. Passo Fundo: Diário da Manhã, 1980. p. 9.

"( ..,) gente ordeira e trabalhadora, gente que ama a sua terra(...) transformaram a 'Rainha da Mata' em 'Capital do TIigo."22

"O conjunto dos elementos naturais forma uma paisagem exu­berante e encantadora. As árvores aparecem nos vales rega­

dos pelos riachos de águas cristalinas (...)."23

A segunda perspectiva, o determinismo do meio geográfico sobreas ações humanas, presente em 9,3% dos livros, é encontrada textualmen­te expressa em algumas naITativas:

"O quadro natural constitui um fator detenninante da históIiahumana, Eis porque, na tentativa de melhor compreender aação do homem, faz-se imprescindível referenciar ao cenáriono qual ele se encontra radicado."24

Ou de forma não explícita:

"O povoador da província não teve escravos embora os tinhatrazido e sim companheiros de trabalho e luta. O meio nãopermitia que fosse diferente."25

A terceira perspectiva concentra maior número de livros, num totalde 65,6%, enfocando o espaço teITitorial com um sentimento de perda,reconhecimento e/ou de transformações, os dois primeiros ligados às

questões dos desmembramentos territoriais e das emancipações. Essaperspectiva, de certa fornla, já foi referenciada nas temáticas/evoluçãopolítico-administrativa e pelas alterações promovidas pela modernização.

Quanto ao sentimento de perda ou reconhecimento, encontramos: "Oprocesso de criação de novos municípios se efetua (...) a fragmenta­ção terá conseqüências significativas sob todos os aspectoS."26

"há pouco desmembradas do tenitório "máter" (...) Erechim.''27

"compreendia uma vasta região, hoje dividida em váIios muni­cípios (...) extensão de um verdadeiro Estado."28

NETTO, Antônio Ducatti. O Grallde Erechim e sua história. Porto Alegre: EST Grafosul, 1981.

1'.95." GELATTI, Roque. Casca olltem e hoje. Passo Fundo: Berthier, 1982. p. 13.'" BENINCÁ. 01'. cit., p. 11.

FONSECA, Pedro Ari Veríssimo. FormaçÜo do gaÚcho. Passo Fundo: Diário da Manhã, 1982.

1'.47.Ci, CASSOL, Ernesto. 01" ci!. p. 102." NETTO. 01'. cit., 1'.70.

28 VERDI. 01" cit., p.29.

Page 9: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

82Ironita P.Machado

"( ...) Passo Fundo transformou-se num dos grandes municí­pios brasileiros."29

(~ulturahistoriogrófica e identidade

2.3 Concepção de fato e sujeito histórico

83

"históIico, localização, aspectos visuais e localização geográ­fica do novo município, perfil da área emancipada."30

"obra consegue apresentar uma radiografia do município.""

No mesmo sentido, evidenciam-se estes fragmentos: "antigamente sóexistiam a mata e os animais,"32 "com toda tecnologia e ritmos que nos sãolançados o povo da região preserva;13" "por ser um dos municípios antigosdo Rio Grande do Sul; (...) conserva e tem presente suas praças, monumen­tos;34 emancipação é um marco de progresso do Município."3) Percebemosainda que o enfoque dado ao territólio, independentemente de sua escala _

região e ou local -, demonstra o reconhecimento, com isso, de transfOlmaçõeshavidas, seja na permanência, seja na mudança, negativas ou positivas.

O fato é que o espaço concebido pelo histoIiador, com base geográ­fica, consciente ou não de que a ação transformadora é geIida pelo sujeitohistórico também é visto-pensado numa relação de mudança fixada notempo, ou seja, num movimento do presente ao passado, percebido namodificação dos elementos naturais do meio geográfico, configurando etransformando territórios cronologicamente.

Essa problemática é mais bem compreendida quando buscamos ana­

lisar a narrativa histórica,36 onde ela aparece em sua totalidade. A própriaestruturação do livro assim o demonstra, bastando retomarmos à questãotemática e temporal: o tema é apresentado mais recuado do tempo presen­te, sem recorte, chegando até a data de publicação.

Além disso, considerando a aproximação entre tempo e espaço nopensamento histórico, contexto vivido e questões que se impõem aos his­

toriadores, podemos observar nas citações transcritas expressões quedemonstram o sentimento de transformação/mudança: passado _ "trans­formaram", "transformou-se"; presente - "é um marco", "hoje dividida","são lançadas", "preserva"; futuro - "terá."

" PARIZZI, Marilda Kirsl. Passo Fundo e el'olução. Passo Fundo: Berthier, 1990. p. 27.)0 COMISSÃO DE ESTUDOS MUNICIPAIS. Os IIOI'OS municípios do RGS. Porto Alegre: sleL

1988. p. 11.

" BERNARDI, Francisco. História de Marau: uma comuuidade laboriosa. Porto Alegre: Palotti,1992. p.l40.

;' PARIZZl(J990). Op. cit., p. 24." PARIZZI (1983). Op. cit., p. 25.

" NASCIMENTO, \Velei. Conheça Passo FUI/do Tehé. Passo Fundo: Berthier, 1992. p. 39.

", CAMPOS, Sônia Siqueira. Segredo: história e tradicioualismo. Porto Alegre: IGTF, 1990. p. 10.\(. As <.(ul'-stôes em torno das narrativas históricas serão problclnatizadas de forma especial no capoIV deste trahalho.

I

Discutidos os aspectos referentes às concepções de tempo e espa­,<o,lançamo-nos à problemática que envolve o objeto histórico. Conside­rando que o tempo é uma abstração, passível, portanto, de ser apreendidosomente em uma materialidade, que é o objeto da história disciplina, ou

seja, o fato humano que já passou, indagamos sobre o modo como o fatohistórico é visto-pensado pelos historiadores em questão.

Inicialmente, fazem-se necessárias duas considerações em relação ao sen­

tido da expressãofato histórico: primeiro, a raiz etimológica da palavrafato vemdo latim factum, de facere, significando fazer, portanto, algo que existe, queacontece; assim, é uma realidade objetiva e, quando vista no passado, trata-sede uma materialidade temporal, tomando-se objeto da disciplirta história; segun­do, o fato lústórico aplicado ao acontecimento não se restIinge somente a uma

realidade objetiva, a um fenômeno mateIial; antes de tudo, é um fenômeno dover-pensar exteriorizado por uma opinião, que, no caso da disciplina história,toma-se um de seus elementos irttrínsecos e diferenciadores frente às demais.

Nesse caso, ela é uma construção abstr'ata - categoIia histórica - realizada pelo

lústOliador, que vê e pensa segundo princípios teórico-metodológicos.Nesse sentido, na tentativa de responder à indagação exposta, ini­

ciamos com algumas ret1exões em torno da visão que os historiadoresdiletantes têm sobre que'm são os protagonistas do fato histórico, isto é,o sujeito histórico que faz. Para tal, orientamos nossa observação na iden­tificação de quem são os sujeitos históricos e qual é o seu papel no fazerhistórico sob três perspectivas: indivíduo, quem é nominado; coletivo, quegrupos sociais são referenciados, e gênero, que gênero é contemplado.

Constatamos que se fazem presentes nas narrativas lústóricas de to­dos os livros as três perspectivas, havendo entre elas poucas diferenciações.

2.3./ Quanto aos indivíduos nominados

Predominam, nas obras examinadas, quatro grupos de sujeitos, os quais, namaioria da vezes, são apresentadoscom atributosde heroísmo, grandes feitos,comopersonagens importantes dos feitos histÓricos,sendo eles líderes políticos, pio­neiros da colonização, participantes de movimentos militares e religiosos.

Na tentativa de ilustrar de fOlma didática, sintética, e abrangendo todas asnmrativas históricas - os 32 livros analisados -, elaboramos o quadro que segue, que

apresenta, verticalmente, os gmPÇlsde sujeitos nominados e, horizontalmente:• denominações/sinônimos dadas aos sujeitos;• expressões referenciais - aqui consideradas como todas as expres­

sões que designam adjetivos e ou ações;

Page 10: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

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Page 11: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

86lran ita P. Machado

Cultura historiográfica e identidade87

Como podemos observar no quadro, o primeiro gmpo de sujeitos his­tóricos - líderes políticos - e o segundo - pioneiros da colonização - sãonominados como posto militar e ou cargo pÚblico-administrativo, judiciá­rio, legislativo. As expressões referenciais denotam que são tidos comopersonagens aqueles que desempenham ações individuais consideradas

como heróicas, de poder de decisão política, de autOlidade. Essas funçõesreferenciais demonstram uma construção subjetiva que busca assegurar aossujeitos nominados o título de protagonistas do povoamento telTitorial, das

Oligens e desenvolvimentos político-administrativos, indo até a formaçãodos municípios. Em outras palavras, significa consolidar os feitores dos

acontecimentos históricos. É o que podemos ler nestes fragmentos:

"Outro personagem importante em nossa História(.oo) foiBernardes Pais de Proença.Todos os três chegados em 1827 elembrados como aqueles que tiveram a coragem de desbravaro território( ...) apesar de todos os perigos (... )."37

"A história de Erechim cometerá grave e imperdoável injustiçase não colocar sua administração em posição saliente e oCoronel Pedro Pinto de Souza no rol dos excelentes adminis­

tradores erechinhenses de todos os tempos. "38

"Citaremos, talvez com lapsos, o nome dos passo-fundensesque mais se destinguiram nesse mister: Dep. Federal Victor Isler,Dep. Federal Nicolau Araújo Vergueiro (...)."39

No terceiro grupo, participantes de l1Uivimentosmilitares, os sujeitos sãonominados eleacordo com o tipo de situação de que participaram - revoluções eguerras. Nesse caso, as expressões referenciais aproximam-se das dos dois pli­meiros gmpos, pois também são tidos como indivíduos que desempenharam açõesheróicas, porém há a tentativa de assegurar-Ihes o título de defensores da páuia,exemplos/modelos de dedicação e solidariedade. Aqui as funções referenciais

indicam a idéia de que esses defensores da páuia, por um lado, deram a vida pelagarantia da democracia - do progresso do país e, por outro, tiveram a nobre tarefa

de executores de justiça, justificando, assim, a participação em movimentos contra

a pátlia - levantar armas contra a páuia somente em casos de possíveis injustiçascometidas com a região. A título de exemplo apresentamos:

VARGAS (19RO). Op. cit., p. 39-40.FONT (19R3). Op. cit.. p. 17X.

'" GEHM (1982). Op. cit.. p. 23.

tJÂ

"(H') e se em dado momento histórico teve que levantar armascontra a mãe pátlia é porque se achou injustiçado(oo.) e nem

por isso deixou (...) de ser brasileiro."40

"A Revolução de 1930.Erechim acudiu ao chamado da Pátria, mandando forças sob ocomando do General (...)."41

"Se na Guerra dos Farrapos, Soledade não fulgurou no cená­rio, a não ser pela presença de um corpo de 100 bravos aolado do governo central, diversa foi a atuação nas guerrasexternas, contra Aguirre e Francisco Solano Lopes. (...) O pri­meiro corpo da Guarda Nacional que invadiria o Estado Orien­tal foi recrutado em Soledade (...) entregue ao Tn. Cel. João

FI'eitas Noronha que teve destacada atuação (00.)."42

No qumto grupo, os religiosos nominados e algumas instituições reli­

giosas, os personagens são denominados de acordo com a hierarquia eclesiás­tica, a ordem religiosa ou o movimento religioso. As expressões referenciais, decerta forma, assemelham-se às dos líderes políticos, denotando valoresenaltecedores, bravura, singularidade e destaque frente a outros indivíduos com

poder de decisão e autOlidade. Assim, a função referencial pode ser entendidacomo a tentativa de informar e assegurm' o papel primordial da igreja/religiosi­dade na formação dos povoados, das comunidades e dos municípios, ou seja,da civilização e do progresso. Nesse sentido, lemos:

"(H') os moradores foram se agrupando socialmente e cons­truindo as capelas, isto com a chegada dos capuchinhos (H')Dom "Antôniorreis dava a benção oficial do novo convento.No mesmo dia, Frei Gentil lançava a pedra fundamental para aconstrução de um hospital (...) Frei Gentil, sempre atento àsnecessidades da população; tanto espirituais quantomateriais(...), viu a necessidade de uma escola (...). Com efeito, no dia20 de março de 1938, iniciavam as atividades da escola (...)."43

"O desenvolvimento da colônia Nova Itália se dá à sombra da

igreja católica, isto é, a pmiir das direções por ela apontada."

'" 1'0NSECA (1982). Op. cit., p. 48 .•" NETTO (1981), Op. cit., p. 141." VEROl ([987). Op. cit., p. 27." BERNARDl (1992), Op. cit., p. 21 e 23.

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88Iranita P. Machada

t ·Cultura historiogrófica e identidade 8 9

Quadro 13 - Sujeitos históricos referenciados no coletivo nas obras em estudo

(I 111111111/."

5" vollll 1'.167"

~\ 24 e 259(! p. co "3.) e 432' 1'.223" ) vol 111p. 694" p. 23 10 29 e 103"1'.394' p. 8910" 4722" p. 18a26" p I' 924' I' 4710"

p. 1425" p. 2027' 18 p. 8820" p.p. 18 2426' p. 18

FIO. 92, 93 e955" vol.lIl 10.182

14' aol 6' 10.15­172/" 1'.24 e2622" 10.39 e11128" p. 12,13

e 178" p. 42-45

9') 1'.672' 1'.75

6" p. 2510" p. 21

13"1'.9624" 1'.1'1

25" 1'.38

Indicações e

citações

2.3.2 Quanto aos grupos sociais referenciados no coletivo

Os imigrantes, constituindo o pIimeiro grupo de sujeitos histÓricosreferenciados no coletivo, são apresentados com expressões que indicalll

qualidades e ações nobres, singulares, chegando quase à perfciçiio - nl'1II

Fonte: Obras analisadas.

Não negligenciamos o fato de que, em algumas nan-ativas históri­cas, há imigrantes nominados, mas, considerando que tal menção é redu­zida tanto em número de indivíduos quanto de nan-ativas históricas, pre­

dominam significativamente as referências coletivas.

. Empresacolon izadora:colaborou o

povo gallcho.Estancieiros

(fazendeiro)

Igrejas

. Companheiro

Elemento servil,espelho do senhorPoucos habitantes

de cor negrdSalientou-se nas

guerras

. Hostilidade

DesapareceramExtermínio

Fazendo

morticín ia.

Cavaleiro, pastor,tropeiroIsolamento

Assaltantes. TerrorHostis.ÁstutosValentes

Trucidaram

Agrediam. LutdSIraticidas

Civilização

hospedeira

Selvagens. Espíritocoletivo

. Pioneiro

Influência

Ordeiros

Trabalhadores

Ama a terra

CorajososIdealistas

Desbravadores

Boa vontade FéDotados de

grande Vontade.

Bagagem culturalÁud<icia. Custas

de sdcrifícios e de

Ilriv.lt,:CH>s.Bravos

Ilf'n')is.

I 'lltl'SS{)CSII'fl'H'IHi,!is

"( ...) a história da origem das 25 comunidades que fazem pmieda paróquia de Santo Antônio de Água Santa, cliada em 13 dejunho de 1943."45

"( ...) Dentro da cultura da época e da mentalidade dos coloni­

zadores estava latente a necessidade de uma liderança firme,que guiasse para o progresso. Surge, e com insistência o cla­mor por uma paróquia (...)."

Temos, então, os personagens importantes dos feitos históricos,que, por um lado, foram privilegiados com seus nomes e qualificativosadmiráveis - heróicos - nas narrativas históricas, de acordo com uma con­

cepção teórica sobre o sujeito histórico; por outro, indicam os agentes doprogresso ao ver-pensm- dos historiadores. Em continuidade, veremos que,apesar da diferença metodológica da abordagem, percebe-se um traçocomum entre os sujeitos históricos nominados e os referenciados na for­ma coletiva: o progresso.

"A igreja local e regional se conduz segundo as normasestabelecidas pela igreja romana. A propósito, vejamos sucinta­mente como se processaram os desmembramentos eclesiais (...)."-14

" /I1'~IINI ',\ 11'11)111 ()fI. l·i(. fi. 'i7.

\I'.J( 111 \. r )jUt" 1\1/1/'\- I' It;"'lir;1I dl' lI/l/l1 (,OIJ/lmidade. Passo Fundo: Grálica UPF, 1994. p.7, 22-23.

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"Antigamente só existia as matas e os animais selvagens. De­pois, surgiram os índios, seres astutos e valentes( ...) A regiãoera infestada por índios hostis, que atacavam as tropas (00.)."51

"( ...) foi também palco de lutas fratricidas, agravadas pela po­

sição dos índios coroados que passaram a agredir os coloni­zadores (...)."50

Essas inferências, entre outras, denotam uma função referencial de

IlIstificativa e compensação: por um lado, os índios são obstáculo à "ci­Iili/.ação", ao tempo linear, portanto ao progresso, justificando, assim, o:;,'11 cxtennínio; por outro, tomam-se figuras mitológicas, pois aparecem

(omo pertencentes à tradição cultural de um povo. Em outras palavras, os..!ementos de explicação da origem natural de um povo (sendo ela divina" mística) são compensados pelo passado de violência e extermínio emlroea de um presente do progresso. É isso que lemos nestes fragmentos:

"No Rio Grande do Sul, os índios guaranis conviviam pacifi­camente. Durante 150 anos essas tribos viviam dias felizes (00')

em breve de acabar pela vontade e imposição do homem bran­

co que aqui chegou (... )."~9

91I Illhll(1 historiogrófico e identidade

Genericamente, os índios são vistos nos acontecimentos históricose referendados nas narrativas históricas com uma característica que os

aproxima dos indivíduos que integram o terceiro grupo de sujeitos histó­ricos, o dos escravos, que é o caráter de submissão e inferioridade frenteao homem branco "civilizado", ainda que os últimos apareçam como figu­

ras ilustrativas - apêndices de uma história branca.Os escravos são referenciados pelo uso de expressões que indicam indi­

víduos subordinados e humildes frente ao seu senhor, ao mesmo tempoem que

se apresenta um perfil de patrão como solidário, companheiro e democrático.Essa ambivalência de expressões denota uma função referencial diferenciadorae ilustrativa, ou seja, pretende-se demonstrar que o trabalho servil na região,

quando existente, era diferente daquele das demais regiões brasileiras, caracte­rizando-se aqui por relações amigáveis e de companheirismo. Se os escravoseram trabalhadores e dóceis, isso oconia porque tinham um modelo a seguir,

vinculando-se a presença deles a situações que demonstram boas ações/reali­zações dos homens brancos. Para exemplificar, vejamos estes escritos:

90

"Deve-se dizer(.oo) que os pioneiros da colonização foram bra­vos heróis e venceram sacrifícios ingentes. Energias dedicadasao trabalho, ânsias insopitáveis de progresso."47

"( ...) a custa de enomles sacrifícios e de privações venci das

com a audácia e a fé do imigrante e de seus descendentes queaqui se estabeleceram, formando um pequeno núcleo(.oo) atin­gindo o interior que hoje forma o município de Rondinha."4s

Dessa forma, os indivíduos nominados representam os sujeitos his-

tóricos que protagonizaram a história via racionalização política, promo­vendo o progresso. No caso dos imigrantes, esse progresso foi promovi­do pela racionalização do trabalho. P0l1anto, mesmo tratados como ato­

res/personagens principais de uma história de progresso regional e local,os personagens são liderados, ou seja, fazem parte da maioria governada.

Já o segundo grupo de indivíduos abordados coletivamente é cons­tituído pelos índios, apresentados numa visão dicotonúzada: mál1ir versus

selvagem. A visão dicotomizada pela qual os índios são apresentados podeser percebida pelas expressões referenciais: ora como modelo de vivênciacoletiva, de espírito valente, hospedeiros que sofreram violências até seuextemúnio, ora tidos como "criaturas" dotadas de selvageria, hostilidade ebrutalidade, portanto seres sem racionalidade.

pIo de moral e de labOl~Portanto, a função referencial comunica que a açãocoletiva desses sujeitos históricos, os imigrantes, possibilitou a efetivaçãoda colonização e o desenvolvimento regional pelo seu trabalho, luta, fé e

perseverança, ou seja, são eles os grandes protagonistas do progressoeconômico, social, cultural; no passado, eles ergueram os alicerces dodesenvolvimento resultando naquilo que configura as regiões atualmente .Podemos verificar isso nos seguintes fragmentos textuais:

"( ...) valorizar ainda mais o trabalho corajoso, árduo e incan­

sável, impregnando de idealismo de nosso antepassados, cujasas iniciativas nos levaram à retlexão(. ..) à conclusão de que osvalores que n0l1earam suas ações, hoje, resistem fragilmentee há muito deixaram de ser a principal alavanca propulsora docrescimento de nosso pOVO."4Ô

Ironita P. Mochado

r--

"' OLIVEIRA, Adão Russi de. Monografia do I11lllzicípio de GetÚlio Vclrgas (193-1-198-1). Erechim:Centro de Pesquisa e Ensino Superior. 1984. p. 15.

• 7 BENINCÁ. 01'. ci!., p. 38 .• 8 FERIU. Op. ci!., p. 24.

'" NASCIMENTO, Welci. Terra. gente e tradição gaÚcha. Passo Fundo: Berthier. 1992. p. J 8 .." FASSINI. Lauro. SILVA, Odete de Lourdes. A. Colorado: seu povo. sua história. Colorado: Sanni .

1987. p. 14." PARIZZI ( 1990). Op. cil .. p. 24-25.

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2.3.3 O gênero contemplado

Quanto ao gênero contemplado, são duas as constatações: a pri­meira é a predominância do gênero masculino. Indubitavelmente, na visãoe pensar do historiador, os protagonistas dos fatos históricos foram os

" GEHM (1982). Op. cit., p. 69.

NASCIMENTO (1992). Op. cit., p. 18.'" FONSECA (1982). Op. cit., p. 47." NETTO (1981). Op. cit.. p. 92.

" BENINCÁ (1990). Op. cit., p. 31." GELATTI (1982). Op. cit., p. 38.58 FONSECA. Op. cit.. p. 47 c 48.

"O povoador da província não teve escravos embora os te­nha trazido e sim companheiros de trabalho e luta. "54

Também nessa perspectiva, de sujeitos históricos referenciados no

coletivo, encontramos em menor proporção instituições, igrejas, povos e es­tancieÍl"Os,a exemplo da empresa colonizadora Luce Rosa e Cia. Ltda., apre­sentada com expressões que indicam uma função referencial associativa, ou

seja, a ligação determinante da empresa com a colonização e, por conseguin­te, ao progresso. Nesse sentido, encontramos expresso textualmente que "omunicípio (...) tem um dever especial de gratidão para com essa empresa, quecolaborou (00')com rápida colonização e progresso;"55 ou "Luce - Rosa con­

ttibuiu notavelmente na obra colonizadora de nossa região."56Sob o mesmo viés do plimeiro exemplo, têm-se a Igreja e a escola:

"O trinômio Igreja, escola e sociedade servia como ponto de referência ede crescimento (00.);"57o povo (gaúcho) e estancieiro(s), "de varão ilustree trabalhar e a lutar e a conviver e a competir no serviço e na decisão com

o seu mais humilde peão (00')trouxe para cá a disciplina e o amor a pátt'ia";em outro parágrafo, "o caráter do rio-grandense se manifestou em todasua plenitude, e será orgulho de todas as gerações vindouras. "58

II

111'

I/li

I

93( (1111)1(1 historiogrófica e identidade

"(00') a venerada anciã Dona Joaquina, que segundo consta,era remanescente da GuelTa do Paraguai(oo.) travessa que hojeleva seu nome. "Travessa Dona Joaquina" entre as ruas(00.)"60

"Os homens trabalham de 'sol a sol' na roça, e as mulheres,

além de acompanharem seus maridos, pais ou irmãos nestetrabalho exercem todas as funções domésticas onde os afaze­

res, muitas vezes eram concluídos a noite."59

'" CAMPOS. Op. cit., p. 12.o" FERRI. Op. cit.. p. 33.," GEHM. Op. cit., p. 38.

"Junto a 'Guarda Republicana', ou Treme Terra, a mulher (00')também se fez presente oferecendo em 04 de maio de 1893,

quando de sua fundação, uma bandeira por elas confecciona­da."61

Até aqui, as questões abordadas em relação à visão dos histoliado­res sobre os sujeitos históricos - aqueles que fazem - representam umadas variáveis para identificar a concepção sobre fato histólico. Portanto,

preliminarmente, podemos concluir que os sujeitos históricos e suas açõesformam um tripé que, de certa forma, configura os fatos histólicos e a pró­

plia nalTativa histórica. Assim, em uma extremidade, encontram-se todosos indivíduos nominados e, junto desses, os imigrantes como agentes do

processo civilizatório e, conseqÜentemente, promotores do progresso.Em outra perspectiva, encontramos as minOlias (índios e negros), li­

deradas, governadas e que, estando sob o poder da maiOlia, tornam-se "ci­vilizadas": índio, sob a pressão da catequese, dos aldeamentos e da força;

escravo, pelo espílito democrático do seu senhor no qual tinha um modelo.Noutra extremidade, que também poderia ser percebida como a base das duasanteliores, encontramos a ação dos sujeitos históricos concebida isolada­mente do contexto histórico em que viveram e/ou dos movimentos dos quais

::ujeitos do sexo masculino, o que nos leva a pensar que fatos envolven­do sujeitos do sexo feminino não merecem ser registrados como históri­cos; a segunda é que, nas poucas narrativas - apenas cenas - em que o)'.i~nerofeminino é mencionado, esse aparece no coletivo e com expres­s()es referenciais que denotam submissão, fragilidade e falta de poder dedecisão ou como uma espécie de ilustração/apêndice, sempre ligada a umfato histórico de ordem política. Vejamos trechos ilustrativos do fato:

Ironito P. Mochodo

"Dizia-se em Passo Fundo que o escravo era o espelho do Se­nhor, e isto resume toda a moral da época, no que tange aoelemento servil."52

"O tradicional espÍlito de igualdade gaúcha liberta a raça ne­gra martirizada, antes mesmo da assinatura da Lei Áurea. ('00)interpretando o sentimento abolicionista da nação e especial­mente do Rio Grande do Sul,(oo.)a Câmara reunida em sessãosolene proclamava a liberdade de 300 cativos (... )."53

92

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BENINCÁ. Op. cit., p. 96.VARGAS. Op. cit., p. 63.

1I11111'adoresdas noções de processo - as forças propulsoras sob a perspee­11I111h-l'xteriOlidade/interiOlidade do movimento. Para tal, com a leitura siste­

1I1111Hadas narrativas históricas, podemos indicar que o princípio que faz a1I1111bdedo ver-pensar dos histOliadores sobre a relação entre os fatos histó­11<11';,U)1l10pode ser observado no Quadro 11, é o da "causalidade".

;\ relação entre os fatos históricos, de acordo com o princípio da cau­'illid:ide, em dado momento, no que tange à diretriz "explicativa" da histó­

1101,(. concebida pelos autores de duas perspectivas: uma em que os fatos11I.'.loricosse encadeiam como que mecânica e necessariamente numa rela­'.do dL'lenninista de causas e conseqüências naturais, em nível episódico;1101IIII[ra, os fatos têm uma causalidade determinada - monocausalidade ­

, .1I1.';aúnica; pelo econômico, mas que não constitui uma regra comum no1I.IIamento dado aos acontecimentos históricos.

Considerando a estrutura nan'ativa em sua totalidade, o primeiro grupo

" lormado pelos 32 livros analisados que apresentam o tema visto como11111resultado definido de causas e conseqüências, fazendo-se a decompo­

'.H,ao de seus elementos através da busca retrospectiva de fatos ou 1110­

111'0.1'no passado. Nesse sentido, a relação de causas e conseqüênciasI'lIlre os fatos pode ser identifica da sob a noção de processo/desenvolvi­1I11'lIto,com expressões textuais como: "nova etapa; assim nasceu e trans­IOlmaram vertiginosamente"; "apressaram sua evolução"; "alavanca propu 1­

':ol'a"; "fatos que marcaram os últimos dois decênios"; "esmorecer o entu­~,laSIl10pelo progresso"; "a revolução entravou o progresso"; "paralisou<'11111flagelo da guelTa"; "se aflorou e se manteve".

Salientamos, entretanto, também o caráter mecânico desse movimento

Ilís[órico,com expressões que ilustram a noção de exterioridade e interioridade:"Iodo movimento criado com a revolução repercutiu na política local"; "não é

IlItençãofazer análise das causas e conseqüências da Segunda Guerra Mundialapenas menção alguns acontecimentos de ordem local."62 Essas expressõesdCllotam a concepção do fato como de existência própria e particulm', semillkrências de relações internas, mas, sim, das externas, mediante acontecimen­

II)S que correspondem às generalizações - comuns a várias situações. Essasillrcrências podem ser observadas nos seguintes extratos:

"Os fatos que mm"Caram os dois últimos decênios do séculoXIX no 4° Distrito de Passo Fundo, foram (...) campanha pela

abolição da escravatura( ...), Revolução de 1893, divisão do 4°Distrito em seções, sendo a primeira denominada deCm·azinho."63

~

94lronita P.Mac"w I.)

pm1iciparam. Essas questões, diretamente ligadas à concepção de história

do historiador, denotam ce11a homogeneidade dos fatos históricos passa"dos e a idolatria aos feitos heróicos, ora pelo progresso da região, ora pelosfeitos em defesa do território e da unidade nacional/regional. Constrói-se,

dessa forma, uma imagem de democracia racial e étnica e, conseqüentemellte, de um Brasil/região hannônico, em que há convivência multirracial e "sem

conflitos". Essa questão poderia conduzir-nos a tematizm' a relação entreos fatos históricos e as mudanças históricas, exatamente o que pretende­mos desenvolver nas reflexões seguintes.

Feita a identificação de alguns elementos da concepção de históriados historiadores, sintetizamo-los: a perspectiva temática vista sob um

caráter genealógico, geral - demonstrativo e evolucionista, esta uma pers­pectiva temporal linear de longa duração; a configuração dos aconteci­

mentos históricos - realidade objetiva passada, exteriorizada pela opiniãodos historiadores/fatos históricos presentes nas nalTativas históricas; asações realizadas por personagens "importantes", vistos como agentes do"processo civilizatório", promotores do progresso pela ação sobre indiví­duos que entravam o desenvolvimento e que devem ser civilizados.

P0l1anto, já é possível, diante desses elementos, perceber certasnoções de processo histórico como:

.um sentido dado aos acontecimentos que define a relação entre osfatos e as situações, que põe a história em linha de evolução, en­cadeando origem/evolução em perspectiva geral, configurando aprópria forma à idéia de progresso, em estreita ligação com outranoção;

• a noção de desenvolvimento refletido em ritmos e relações entre

espaço e tempo - lento/rápido, atraso/avanço, continuidade/ruptu­ra, desigual/ combinado, marcando etapas, fases e transições;

• um caráter externo e interno dos fatos, supondo uma existênciaprópria ou particular, como unidades em si mesmas dotadas de vida

interior, com agentes que apenas se relacionam exteriormente pormotivos nacionalistas ou regionalistas.

2.4 Relação entre fatos e mudanças históricas

Passemos, então, a examinar como são tratados os fatos históricose a conseqüente relação entre eles e as formas como são concebidas as

mudanças históricas. Pretendemos identificar quais são os princípios

j

I '111111' IIII',!C ~I ioqrófica e identidade95

I

II

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,..-96

Ironito P.Machado Cultura historiogrófica e identidade97

"( ...) muitas dessas colônias se transformaram vertiginosamenteem povoados prósperos ou em municípios de origem colonialapressaram notávelmente a sua evolução sendo hoje centrode intenso labor agrícola e industrial."6~

"A Guerra dos Farrapos, em 1835 acabou a crescente povoa­ção. Morreram fal1111iasinteiras. Em 1845, veio a paz e, com elaa prosperidade."6s

Assim, indubitavelmente, os acontecimentos históricos são tratados

num encadeamento mecânico e linear de causas e conseqüências, numatentativa de demonstrar os atrasos e desenvolvimentos, predominando umavisão unilateral do tempo: "prosseguindo a História, em seu ritmo inexorável

deveriam surgir novos fatos;"66 "o século é grande e f0l1e."67 Transpareceriitidamente uma continuidade ininterrupta, marcando etapas edesconsiderando os movimentos de ruptura! transformação num contextomaior e conflituoso/plural, concebidos como tendo existência própria em simesmos e articulados pela sucessão dos grandes personagens e eventos.

Essa concepção sobre a relação entre os fatos históricos é seguidapela segunda perspectiva, pela qual os autores concebem a monocausalidade

econômica, restrita a dois livros,68 que se diferencia da primeira apenas noque se refere aos fatos econômicos, especificamente aos ligados à questãoagrária, retratado nas menções das rupturas/transfonnações contextualizadasnuma dimensão de maior amplitude. Porém, o princípio da mono causalidade

não é regra comum, considerando que a abordagem dada aos fatos políti­cos e culturais recebe explicações difusas e é apresentada numa linearidade

episódica. Para que possamos compreender melhor esse aspecto, vejamosfragmentos textuais da mesma nan'ativa histórica:

"Evolução demográfica

A partir da década de 1960, observa-se (... ) a diminuição dapopulação absoluta do município. Este fenômeno é comum atodos os pequenos municípios do país com base rural e refle­

te a política de centralização econômica e concentração dasriquezas (dentre as quais a concentração da terra) adotadapelos governos pós 1964, principalmente.

6. NETTO. op. cit., p. 70."5 PARIZZI (1990). Op. cit.,p.29.00 VARGAS. Op. cit., p. 23.67 FONSECA. Op. cit., p. 14.

08 CASSOL. Op. cil.; FASSINL Op. cit.

"Gaurama se emancipaTodos os acontecimentos fOlmaisda companha pró-emancipação deGaurama estão no Livro de Atas, Em 37 páginas contém 32 Atas deReuniões com anexos de manifestações políticas e propaganda. Sin­tetizamos em alguns tópicos."69

Com relação à narrativa histórica da qual foram extraídos os trechostranscritos, ainda destacamos que questões como ensino e religiã070 são

apresentadas seqüencialmente, numa abordagem descritiva, quantitativae isolada do eixo temático. Também aparecem temas abordados com forte

base geográfica, como, por exemplo, "uma caracterização geográfica doquadro natural que acolheu o homem antes e após a imigração, a partir de1908"; e encontram-se títulos como: "Distrito geoeducacional", "Aspectos

geológicos e geomorfológicos", "Hidrografia, condições climáticas"71 Te­mos aqui caracterizado um ecletismo de pressupostos e princípios teóri­co-metodológicos que também está presente em outra narrativa:

"Essa política agrícola internacional pode ser percebida atra­vés dos ciclos econômicos que dominaram principalmente ospaíses de terceiro mundo, sendo assim, Colorado não fugiudessa orientação política, comandada pelos poderes interna­cionais, tendo também seus ciclos econômicos."n

"( ...) os primeiros moradores ( ). entre estes bravos colonizado-res encontramos as famílias: ( ) desconhecidos entre nós, jamais

podem ser esquecidos (...) pela valoroza colaboração que presta­ram para o surgimento do município e seu desenvolvimento."73

Ou ainda,

"Durante esses 25 anos de vida política e administrativa deColorado contou com os seguintes prefeitos: (...)."74

Nesses fragmentos textuais é possível perceber o ecletismo presente nasnaITativas históricas. Os fatos históricos que dizem respeito a questões econô­

micas são apresentados/explicados numa perspectiva de monocausalidade, masque tende, inversamente, a abordagens de episódios políticos lineannente en­cadeados, nas quais o plincípio da causalidade apresenta-se de fOlma determi­nada pela ação restIita a alguns indivíduos de forma natural.

,," CASSOL. Op. cil., p. 60 e 61.70 Idem. Ver p.82 a 99.71 Idem. p. 17,27 e 18-23.70 Idem, p. 14.73 FASSINl; SILVA. Op. cit., p. 14.71 FASSINI; SILVA. Op. cit., p. 14.

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98 Ironita P. Mochodo

Cultura historiográFica e identidade99

Frente a essas reflexões, antes de nos ocupannos do ver-pensar so­bre as mudanças históricas, consideramos pertinente destacar que a noçãode processo/ desenvolvimento diz respeito, especificamente, ao arranjoseqüencial de episódios já dados e inquestionáveis num tempo linear. Osepisódios, muitas vezes isolados uns dos outros, mas organizados de formaa dar unidade ao tema e à própria forma da idéia de progresso sob o plincí­pio da causalidade, demonstram a evolução/mudanças deles próprios.

Assim, o processo histórico não é concebido como categoria histó­rica, significando uma estrutura dialética que busca o conhecimento dopassado em movimento, na qual as transformações são vistas como con­tradições múltiplas. Nesse sentido, o processo histórico, por nós concebi­do como possibilidade interpretativa, corresponde ao conjunto das trans­formações ocorridas na totalidade das constituições sociais; portanto, hámomentos de mudança das direções dos acontecimentos. Esses aconteci­mentos aparecem como alterações nas estruturas das sociedades, envol­vendo continuidades e rupturas, o que buscaremos elucidar melhor nasreflexões que seguem.

Ao tratar do ver-pensar dos historiadores, da forma como eles per­cebem as mudanças históricas, verificamos que predomina uma visão deordem natural. Em outras palavras, isso significa que a sociedade humanaregula-se independentemente da vontade e da ação humana, portanto nãopode ser transformada, de modo que os fatos históricos, que indicammudanças, são apresentados como dados e inquestionáveis; eles se res­tringem aos episódios descontextualizados da totalidade das formações edas relações sociais, sendo concebidos como possibilidade explicativa aalgum fator de desestruturação da evolução e do progresso.

Dessa forma, as mudanças históricas são vistas pelos autores como"leis naturais" que atuam sobre o movimento da realidade histólica rumo

ao futuro, sendo muitas vezes referenciadas como algo aleatório, inespe­rado, externo à vontade e à ação dos sujeitos histólicos. Aqui encontra­mos um certo ecletismo, pois, na mesma narrativa histórica, muitas mu­danças históricas são concebidas ora de fonna natural/causal indefinida!

difusa, ora por deterrninismo político e/ou econômico.Levando isso em consideração, destacamos que 93,7% das nan'ativas

apresentam as mudanças históricas numa ordem natural, entre as quais es­tão: um primeiro grupo, que, mesmo tendo o princípio da causalidade deforma difusa - sem uma definição específica, apresenta um celto determinismo

-, o qual totaliza 15,6% de narrativas/livros de causas e conseqüências po­líticas; um segundo grupo, formado por 6,2%, de causas e conseqüênciaseconômicas; as demais, totalizando 6,2%, diferenciam-se por conceberem as

mudanças históricas pelo deterrninismo/monocausalidade CCOlllllllico\'(1111 ••

resultado de relações sociais conflituosas, ao menos enquanto cllllIlCia\':1iIdos autores.75

Portanto, o que consideramos aqui como mudanças históricas COIlcebidas sob uma ordem natural, presente na quase totalidade das narra­tivas históricas/livros e sem distinção, pode ser exemplificado quando os

autores escrevem o seguinte:

"( ...) talvez no século XIII após a derrotada das missões e aretirada completa e quase desaparecimento do Guarani, come­çaram a infiltrarem-se pelo nOite do Estado, atravessando oUruguai( ... ). Sobre eles não mais se exerceu a influênciajesuítica e foram os mesmos que retardaram e criaram proble­mas à fixação do homem civilizado( ..,)."76

"Hoje em dia não mais propriedade no emprego dos termos'colônia alemã, colônia italiana' (...). A maioria dos velhos e

saudosos imigrantes já partiram. Não vieram outros iguais.Deixaram de existir condições para a continuação ou renova­

ção do antigo pioneirismo povoador e colonizador."77

"A disseminação qe tantas crenças de tantas crenças se deve,em grande parte, aos novos rumos que a Igreja vem adotandono Brasil e na América Latina. Muitos religiosos trocaram a

bíblia pelo Socialismo Marxista nessa sua ânsia de pregar a

justiça social, extremamente falha no Terceiro Mundo."78

Fazendo parte do conjunto referenciado, um Plimeiro grupo apresentao princípio da causalidade com certo deterrninismo de causas e conse­qüências políticas, essas ligadas a questões político-administrativas ou "re­voluções". Podemos identificá-Ias lendo comparativamente fragmentostextuais de uma mesma narrativa histótica, como no exemplo em seqüên­

cia. Nessa perspectiva, o autor ora apresenta o fato histórico que indica amudança - causas e conseqüências - sem referenciá-lo dentro de um con­texto conflituoso, ora indica explicitamente os motivos do conflito, o qual,

contudo, ganha vida próptia. Assim lemos:

Ver esses dados a partir do Quadro 2,76 VARGAS, Op, cit., p,n,77 FONT Op, cit., p, 22_

BERNARDES, Op, cit., 1', 39_

Page 18: Ironita Policarpo Machado - Cultura Historiografica e Identidade -Capitulo 2 - o termo história e sua episteme nos escritos historiográficos regionais

,..-100

Ironita P.Mochodo( 1.llllra historiográfica e identidade

101

"O intelior era extenso e difícil; a cidade começava a oferecer resis­

tência religiosa. Pequeno gmpo de novas denominações religiosascomeçaram a se introduzir.Um pequeno mas ativo glUpode maçom,seguindo uma linha ou ordem geral do Brasil da época, buscavam

desamxli.taro padre e dinIinuir a influência da Igrejajunto ao poVO.79

"Durante o período revolucionário militar (1964-1985) o gover­no brasileiro, usando definidos meios dificultou o máximo os

meios de comunicação da Igreja católica (00')porque eram vo­zes claras e firmes e cIiticas, de orientação e esclarecimentoao público as injustiças sociais praticadas pelo Brasil contra apopulação humilde ('00)."80

Essa perspectiva é seguida pelas narrativas históricas que apresen­tam fatos determinantes das mudanças históricas ligadas a questões eco­nômicas, seguindo o sentido próprio das transformações objetivas dasociedade ligadas ao processo de modernização, entretanto isso é feito deforma episódica e não processual. Nessas obras, também o ecletismo é

uma característica, podendo ser observado nos seguintes trechos:

"No tempo em que o Rio Grande do Sul não tinha solução de con­tinuidade em que as estâncias estavam em comum, existia um per­sonagem no cenário aberto (...)."81

"Durante os anos quarenta dois importantes fatos marcaram a his­tória brasileira: a participação dos pracinhas na 2' Guerra Mundial

e a redemocratização do país, com a queda de Getúlio Vargas.Com

isto, a imprensa se toma livre (u.) o país é tomado por uma gamainterminável de propagandas em tomo dos hábitos e costumes dosamericanos do norte (...)."82

Ainda nessa perspectiva, em outra obra, percebemos que subjaz ànarrativa a questão da modernização como fator de mudanças, contudosem contextualização e problematização numa perspectiva de processohistórico. Observemos como isso ocorre:

"Com toda tecnologia e ritmos que nos são lançados, o povoda região preserva seu tradicionalismo em seus galpões, suasresidências (u.).83O fim da 2' Guerra Mundial com a vitória das

" VERDI. Op. cit., p. 3380 Id. ibid. p. 48.

SI NASCIMENTO (1992). Op. cit., p. 22.82 Id. ibid., p. 40.

PARIZZI (983). Op. cit., p. 25.

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I

II

democracias apresentou a queda de Getúlio Vragas. Comec,;oua geração coca-cola e entusiasmo por tudo o que os EUA lan­çavam e a juventude passou a voltar as costas para as suasraízes culturais."84

Percebemos, pois, até aqui, uma certa preocupação em enfocm" asmudanças históricas. Nesse sentido, há referência às continuidades erupturas restritas ao micro, mas essas não são entendidas como altera­ções das estmturas sociais, de um movimento cont1ituoso em que se alte­ra a direção dos acontecimentos; ret1ete-se, dessa forma, a idéia de perma­nência na mudança.

Há, ainda, duas narrativas históricas que associam a idéia de cont1i­to e determinismo da estrutura econômica sobre os fatos históricos à vi­

são de mudança. Ilustrativo de uma delas, textualmente, encontramos:

"Dentro de todo o processo de formação histórica de um povo,

sempre há aqueles que estão satisfeitos com o modo como essaformação vem se processando, mas existem aqueles que nãoestão satisfeitos (00')Este descontentamento leva ao conflito

seja harmonioso (00')Muitas vezes organizam tropas e parte­se para o confronto armado."85

As atividades agrícolas estão diretamente ligadas com o uso e ex­ploração do solo. E nem sempre partem da vontade direta de quem a faz,mas de forma indireta são orientadas por lima política agrícola internaci­onal. 86

A respeito dessas nanativas, observamos que desaparece o herói,surgindo grupos, isto é, a escrita da história resulta da inserção do ho­mem no social, de modo que o acontecimento histórico é uma realizaçãodo homem pelo seu trabalho. Como exemplo, temos: "Esta fuga da popu­lação dos pequenos municípios predominantemente rurais decorre( ...) emfunção de sua descapitalização(u.) e pelo modelo econômico em geral, quesão excludente para o pequeno policultor de alimentos."87

As mudanças são, portanto, o resultado do trabalho humano dentrodas condições determinadas de seu tempo, de sua classe e de slla região/país. Subjacente a isso, destacamos o liSOde expressões como "confli­to", "confronto armado", "descapitalização", "excludente", "definir o fu­

turo", significando a representação do movimento da história e pressu-

s. Id. ibid., p. 48.85 Id. ibid .. p. 20.se FASSINI. Op. cit., p. 39.87 CASSOL. Op. cit., p. 81.

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"( ...) optamos por dividi-lo em períodos para facilitar a análi­se da interpretação sócio - política, econômica, cultural e reli­

giosa. Após a caracterização do quadro natural de ocupação,seguimos com a descrição ( observando preferentemente a li­

nha cronológica) dos períodos da pré-colonização, passandopela organização da colônia( ...) até alcançar o estágio de inde­pendência paroquial e municipal(.u)."88

No trecho, identificamos o aspecto político preponderando na for­

ma de desenvolvimento da narrativa histórica e como fio condutor, justifi­cando, de certa forma, a perspectiva temporal concebida pelos autorescomo linear. Essa questão, presente nas demais narrativas já menciona­das, conduz ao seu par, ou seja, aos movimentos revolucionários. Assim,

88 BENINCÁ. Op. cil.. p.lO.

pondo que a compreensão da realidade pelo viés econômico basta-se em

si mesma. Aqui, como nas outras perspectivas, refutam-se outras possibi­lidades interpretativas.

Ante essa situação, convém levar em conta o caráter singular des­sas narrativas no que diz respeito às mudanças históricas, pois possuemcomo característica predominante uma concepção de ordem natural. En­

tretanto, há um ecletismo de perspectivas e concepções sobre a realidade

histórica/acontecimentos presente nas representações do passado dosautores ao tratarem dos fatos históricos e das relações entre eles. E, final­mente, como podemos observar pelos dados apresentados no Quadro 2 enas próprias citações, o aspecto que prepondera nas abordagens comofio condutor é o político.

Em linhas gerais, já demonstramos a preponderância do aspectopolítico nas narrativas históricas. Porém, optamos por apresentar os as­pectos contemplados e as formas de apresentação, pois isso representaoutra forma de identificar' o ver-pensar dos historiadores, ou seja, os pres­supostos orientadores do ver e do conceber o passado.

A primeira, de certa forma já apresentada no Quadro 1, mostra-se como

o fio condutor das narrativas: a questão político-administrativa; a segunda,os movimentos revolucionátios, que são apresentados sob duas perspecti­vas: ora representam o elemento identitário entre o local e o regional/nacio­nal, pela participação de seus concidadãos - sentido positivo, ora são fatorde entrave ao desenvolvimento/progresso - sentido negativo.

Como exemplificação da preponderância do aspecto político sobreos demais e da própria concepção de história, na introdução de uma obra,lemos:

S9 NASCIMENTO. Op. cit., p. 36.90 VERDI. Op. cit., p. 84.'" PARIZZI (1990). Op. cit., p. 29.", CASSOL. Op. cil.; FAssrNI Op. cil.'» CASSOL. Op.cit

II

II

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103I I dtl 11' I 11l',loriowáfica e identidade

"A Guerra dos Farrapos, em L835 acabou a crescente povoa­

ção.( ...) morreram famílias inteiras. Em 1845, veio a paz e, comela a prosperidade."9!

Quanto aos demais aspectos, consideramos de forma sintética:• o aspecto econômico como fio condutor da temática presente em dois

livros,92todavia, em um deles, há um certo determinismo de princípios

metodológicos da geografia;93não há conceitos interpretativos, mas,sim, atrelamento ao político e ao espaço/tenitório com função positiva

e contemplativa dos resultados do desenvoLvimento. Os fatos históri­cos são apresentados linearmente, como realização de grandes homensaos quais se deve o reconhecimento pela sua parcela de responsabili­dade na feitura das bases econômicas dos municípios atuais. Por sua

vez, os feitos dos "grandes homens" são descritos minuciosamente, decerta forma com o fim de assegtmu'-Ihesum/lugar, um reconhecimento

no processo de desenvolvimento regional/nacionaL;ao contrário, o re­gistro dos fatos e sujeitos históricos com função negativa, quando con­templado, é visto como entrave ao desenvolvimento;

• o aspecto cultural é contemplado ora como elemento ilustrativo/mítico - hábitos, valores, crenças, aproximando-se da tradição/

folclore - principalmente quando se refere aos índios e imigran­tes, ora como restrito e dando destaque a determinado gruposocial-gaúcho, fallll1ias tradicionais do Locale ou regional; há mo-

, "111 a intenção de identificar a dicotomia - elemento de identificação eb.11 h;írie/entrave ao progresso - na forma de apresentação, observemos:

"( ...) Passo Fundo foi palco de muitas batalhas sangrentas. Asfamílias ficaram pobres e a economia também, porque fomos

palco de vátios combates como a Batalha do Pulador, a maissangrenta de toda a revolução."89

"Assim terminou o episódio, significativo e épico dentro docontexto local, Soledade, cidade do interior. Um grupo desoledadenses (u.) movidos por sentimentimentos de solidarie­dade e democracia, empenham sua palavras e suas vidas emdefesa das liberdades constitucionais. "90

ti

j.~

Ironita P.Machado102

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,.,-104

lronita P.Machado Cultura historiagráfica e identidadeI ()!)

mentos em que se identifica um entendimento de cultura comosinônimo de "civilização", entendida como povoamento, urbani­

zação, modernidade, homem branco, pois dá-se destaque aostemplos religiosos, prédios públicos, praças, monumentos, entreoutros, precedidos de títulos como aspectos culturais ou histó­ria cultural;

• o aspecto social, também subordinado ao político, aparece con­figurado pelo destaque dado às instituições religiosas, educa­

cionais, culturais - agremiações, clubes, academias -; à composi­ção étnica e constituição de grupos, de acordo com o credo reli­

gioso ou posses/trabalho, por outras palavras, pelas funçõesexerci das na realidade histórica passada.

Buscando "amarrar" as reflexões até aqui feitas, pensamos que épertinente considerar algumas questões sobre o ver-pensar dos histOlia­dores. Para isso, seguiremos dois tópicos, um abordando as formas como

os autores se reportaram ao passado, especificamente no que tange àconfiguração do conhecimento histórico, e outro, não dissociado do pri­meiro, buscando identificar o paradigma ao qual os autores estão filiadosa fim de situá-los no atual debate sobre a "crise paradigmática das ciên­cias".

2.5 Conhecimento histórico dos escritos

historiográficos e a questão paradigmática

Inicialmente, podemos sintetizar a forma como os autores reporta­ram-se ao passado, configurando as especificidades do conhecimento his­tórico, através de um tripé:

• o espaço geográfico: concebido de forma sublime e determinantedas ações dos sujeitos históricos; assim, o conhecimento histó­

rico com base tenitorial reflete o sentimento de apego ao lugarde origem e o caráter identitário da elite cultural constituída pe­los autores;

• os protagonistas do progresso: por um lado, denota a concep­ção de processo histórico como um movimento natural determi­

nado por perspectiva única, invariável e causal; por outro, o de­senvolvimento social é resultado da ação de homens e institui­

ções de qualidades ímpares, sublimes, num tempo linear de lon­ga duração, representando uma matIiz genealógica social de re­ferência identitália, pois são referendados os pioneiros da colo-

nização, igrejas, religiosos e ordens religiosas, illligrallll's. ('11111'outros, os quais, como já vimos no primeiro capítulo, dL'a11'I1I1Ii1forma, estão ligados aos autores pela origem familiar, f()l'llw~'a(),filiação institucional;

• as revoluções: compreendidas como conjunto de contingênciasfrente ao transcurso da história, resultado de condições parli·culares e momentâneas que entravam o progresso por determi­

nado período; concomitantemente, aparecem como elementoidentitário ao serem abordadas de forma enfática no que se refe­

re à pmticipação de indivíduos peltencentes ao local/regional emmovimentos revolucionários de caráter regional/nacional.

A forte presença do princípio progresso na visão de processo his­tórico nas narrativas históricas indica a filiação dos historiadores ao

paradigma modernoliluminista, por meio do qual se formularam idéias eregras universalmente reconhecidas para visualizar, compreender o mun­do. Essas idéias foram formuladas do século XVI ao século XVIII ­Renascimento/lluminismo - e operacionalizadas ao longo do século XIX

em correspondência à proposta de libertação do homem sob uma via deduas mãos: numa delas, indicava-se aos homens a possibilidade de cons­truírem racionalmente sua existência presente e projetarem o futuro,

potencializando a libertação da coerção dogmática católica e do mundocaótico do místico, propondo-se diretrizes/ideais de paz, auto-realização eliberdade individual e social; noutra, a potencialização do saber e da prá­

tica ela racionalização instrumental, na busca de um "bem viver confortá­vel", em direção à libertação das carências materiais, promovia o desen­volvimento das forças produtivas a serviço de um ideal de homem e desociedade. Assim, constituiu-se um projeto otimista de sociedade em nome

do progresso humano, via um saber que se propunha racional.O paradigma moderno abriu novas perspectivas ao saber humano

que se pretendia científico, favorecendo discussões de questões do pon­to de vista racional, iniciando, portanto, a elaboração de um conhecimen­

to pautado numa objetividade e realismo relacionados à análise/explica­ção dos fenômenos da natureza.

Foi nesse contexto que se constituíram as ciências naturais em subs­

tituição à teologia, que influenciou profundamente as ciências sociais e,conseqüentemente, a história. Assim, foi no contexto histórico dos séculosXVIII e XIX - da nascente sociedade industrial-, que se formulou a con­

cepção de ciência ainda hoje presente, expressivamente ligada à rigidez daneutralidade, imparcialidade e objetividade, princípios oriundos da física,

da química e da biologia, e, por outro lado, baseada no critério dL' rL'CO-

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iJ5 A respeito, ver capo IV, no que se refere à estrutura narrativa exclnplar e crítica.% Desse últÍlno, vemos textualmente e/ou nos depoimentos dos autores no capítulo 1, ao expressa··

rem o objetivo de pesquisarem e pnblicarem.'" CASSOL. Op. dI.; FASSINI. Op. dI.

sentes nas narrativas. Dessa forma, diante das indicações aprl'st'lIlada~;

ao longo deste capítulo, apontamos duas tendências historiognífieas orilllldas dessas conentes: com relação ao positivismo, presente em9.'\,7(Y" da~;

nanativas, há preponderância dos princípios da doutrina evolucionisla:

já, da conente marxista, os plincípios e conceitos identificados somam 6,'2%das nanativas, concebidas sobre a base do materialismo.95

Assim, no ver-pensar da grande maioria dos autores, identificamos

princípios da conente positivista de tendência evolucionista pela formacomo se reportam ao passado, pois, por um lado, concebem o tema numa

perspectiva genética, geral, demonstrativa e evolucionista, representandoo entendimento do estudo da realidade histórica sob a forma de fenôme­

nos naturais, repetitivos e sucessivos numa ordem temporal cronológicalinear de longa duração; encadeando os fatos singulares, predominante­mente políticos, sob um determinismo de causas e conseqüências, do queresultam ações de grandes protagonistas da história. Nesse caso, as açõesdos indivíduos são determinadas pelo meio natural. Por outro lado, mas

em decolTência do primeiro, as transformações/mudanças históricas ocor­rem de forma natural; por outras palavras, as sociedades evoluem de acor­

do com leis gerais, portanto, a história, como ciência, tem o compromisso,

por meio do estudo objetivo da realidade histórica passada, de encontrarleis que sejam capazes de conduzir ao progresso. Dessa forma, a produ­ção historiográfica ganha um estatuto de verdade/modelo, com caráterpragmático.96

A corrente marxista, que identificamos apenas em duas narrativas,97circunscreve-se à tendência materialista, pois os autores reportam-se ao

passado pelo viés econômico, reconstmindo-o pelo conjunto de ativida­des materiais das gerações, sucessivamente encadeadas num tempo linear

de longa duração; nesta conente, os homens, frente às condições natu­rais que lhes são dadas, transformam a natureza pelo trabalho, criando,assim, as condições e características da vida social. E, nesse sentido, arealidade histórica, concebida especificamente pelas atividades produtivas

e realizadas pelo trabalho coletivo, coloca sob sua tutela outras formasconstitutivas da vida. Em outras palavras, os aspectos culturais, políticose sociais são vistos/pensados num processo histórico natural e causal dedesenvolvimento à sombra da estmtura econômica.

101(,ultura historiográfico e identidade

nhecimento de universalidade-verdade, ligado a grandes promessas oti­mistas, essas muitas vezes dadas e constituídas pela próplia ciência.

Portanto, na ramificação do conhecimento científico encontra-se a his­tória, que, com base nesse paradigma e de sua própria histOlicidade, elaborouum corpo teólico explicativo/instrumental que busca garantir um caráter cien­

tífico. Esses saberes teóricos sofreram mudanças em decolTência de seu pró­prio movimento de crítica interna, do qual surgiram diversas tendências.

A respeito dessas últimas e seguindo nossa problemática, aponta­mos como corpo teórico inicial da disciplina histólia as COlTentespositivistae marxista, que, a partir do século XIX e até aproximadamente a década deI960, reforçaram os modelos macroistóricos e teorizantes, mesmo haven­

do divergências entre as duas. Essas COlTentesbuscavam sempre a expli­cação analítica e, por outro lado, eliminavam ou, pelo menos, pretendiamdelimitar o ilTacional e subjetivo. Configurou-se, assim, uma história ana­lítica, estrutural, explicativa, de pretensão global, na qual a dinâmica socialé compreendida por uma cOlTespondência a leis.

Quanto à Plimeira conente, a positivista, considera seu objeto de estudo

como fenômeno natural, de modo que a história, como ciência, tem a função deestabelecer as próprias leis históricas - leis da natureza humana; a segunda, a

marxista, diferenciando-se da antelior somente no que tange às leis que impul­sionam o processo histórico - natural, restringe-se às leis econômicas, com oque o conhecimento histólico deve ser fundamentado na economia política, daí

derivando as leis do desenvolvimento social de acordo com os modos de pro­dução. Porém, essas COITentesnão se esgotam em si mesmas na medida em queoutras se formularam ao longo do século XX, como também o conjunto de seusprincípios, categOliase conceitos passm'am,e passam ainda, por um revisionismofrente a novas problemáticas e desafios Oliundos da práxis existenciaJ.94

Entendemos, pois, que as reflexões não se esgotam aqui, contudo aabrangência de nosso problema exige limites. Julgamos necessário identi­ficar as tendências das correntes positivista e marxista orientadoras do ver­

pensar dos historiadores analisados ao se reportarem ao passado, o que,por sua vez, configura as especificidades do conhecimento histórico pre-

9-1 A respeito dessas tcmá(icas, ver: JAPIASSU. HeltOll. llltroduç{jo ao pensamento epistemológico.6. cd. Rio de Janeiro: J-<'rancisco Alves, 1991; Idem. Nascimento e morte das ciências humanas.2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992: CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas.

Rio de Janeiro: Campns. 1998; FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social.Banl1l: Ednsc, 1998; DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História.São Panlo: Ensaio, 1992: REIS, José CarIos. Noul'elle históire e tempo histórico. São Paulo:

Ática, 1994; RÜDIGER, Francisco Ricardo. Parudigmas do estl/do de história. Porto Alegre:IELllgec, 1991; ROUANET, Sérgio Paulo. As ra:ôes do iluminismo. São Paulo: Companhia dasLetras, 1987; COMTE, Augusto. Curso defilosofia positiva. (Coleção Os Pensadores, v. XXXIII)São Panlo: Abril Cultural, 1973; QUIROGA, Consuelo. Invasão positil'ista 110 111(1/:\,iSIlIO.SãoPaulo: Cortez, 1991.

106lronita P. Machado

~-

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pr-

Ironito P.Mochodo

Portanto, a cultura historiográfica regional em questão encontra-se num

preâmbulo de limite epistemológico e filosófico, pois sua filiação paradigmática

- paradigma modemo/iluminista - foi colocada em xeque frente ao resultado de

suas próprias proposições, especialmente pela crise das promessas de mo­

dernização, de emancipação, ou seja, da inconsistência das temias filosóficas

- pragmáticas/ideológicas globais/racionalização do social - frente ao desen­

volvimento socioistóIico (objetivos e subjetivos) da humanidade, de forma

acelerada a pm1ir da metade deste século aos dias atuais.

A par disso, a produção historiográfica, tal como aquela de que nos

ocupamos neste trabalho, apresenta a lógica do progresso, configurado

por narrativas que demonstram, de fonna evolutiva, sob leis gerais, pre­

missas do desenvolvimento humano numa linearidade de longa duração

LUmo à emancipação. Essa resulta da tarefa de indivíduos heróicos/imor­tais, de um Estado providencialista/organizador e de determinados gLU­

poso Entretanto, tais premissas tornam-se inconsistentes e limitadas com

seus princípios teóricos frente aos antigos e novos problemas.

Aqui colocamos a seguinte reflexão sobre o significado de identidade

nacional e regional: ao longo dos dois últimos séculos, essa tem se mostrado

como uma das fronteiras eficientes em apm1ar e desconsiderar gmpos humanos

e em constLUir um imaginário político de nação, pois as caracteristicas culturais

são demarcadas, temporal e espacialmente, de forma rigida. Diante disso, consi­

dermldo identidade como uma configuração histórica, isso implica repensar a

temática da identidade cultural e o significado de nação numa perspectiva de

alm'gamento e flexibilidade de fi'onteiras, pois, pelo viés da historiografia tradi­

cional, a tendência e a convicção recaem na produção de uma identidade pen­

sada a pm1ir de um gmpo restrito - singulaIidade cultural. Desse emerge um

imaginário político de nação no qual são esquecidas as m'bitrm'iedades, violên­

cias e pluralidades de ações e sujeitos em nome de uma unidade.

Circunstmlciando isso, vemos a problemática recair num debate entre

pm'adigmas e intraparadigmático, que se estabelece dentro do próprio paradigma

através de revisões teórico-metodológicas das COlTentes constituintes. É, por­

tanto, no bojo desses debates revisionistas que, segundo nossas colocações,

poderemos encontrar as possibilidades de renovação e (re)valorização da pro­

dução historiográfica regional, bem como repensm' configurações de identida­

de. Nessa direção, da renovação historiográfica, pIimeiramente, é necessário

contextualizar o atual debate em torno das renovações teóIico-metodológicas.

O embate teórico-metodológico atual, circunscrito à disciplina his­

tória e à produção historiográfica, configura-se pela oposição entre mate­

rialismo e idealismo, racionalismo e irracionalismo, objetivismo e

subjetivismo, ou seja, vincula-se à oposição entre os princípios/pilares das

109

( IJhlll"O histo.ri.ogrófica e identidade

correntes/tendências do paradigma modemo e nova,> tendências, as quais, pela

allsência de uma denominação ou definição mais adequada, vulgarizou-se como

lIova história- paradigma pós_moderno.98 Abrindo um parêntese, o termo pÓs­moderno foi concebido em estreita relação com pós-modernismo, enquanto in­

capacidade de reagir cÓticamente frente ao processo de mudança - o descréditonas "metanaJTativas" e "m0l1e dos centros" aplicado à históÓa disciplina diz

respeito à ausência de uma teoria "holística" do social -, da fragmentação teó­rico-metodológica, pelo niilismo intelectual contemporâneo, que tem se dissol­

vido num relativismo de interpretações hermenêuticas do social.99A tônica geral e o nascimento do embate estão ligados à terceira geração

uos Annales, década 1970, intensificando-se nas últimas duas décadas, consi­

uerando-se que há uma IUptura-fragmentação da proposta daquele movimen­

to,II)Ovisto que se substitui a históÓa total, a históIia-problema, as grandes ca­

tegoÓas, o tempo de longa duração por novos objetos e novOS problemas. Essa

nova perspectiva histólica, vulgarizada como Nova História, pode ser concebi­da como uma "ciência em constlUção" , pois não apresenta ainda um corpo teó­

lico definido; não possui uma temática central; busca novos conceitos; apre­

senta uma multiplicidade de enfoques e gêneros,lol entre esses, a microistólia,

muito mais como técnica do que como enfoque, a qual nos interessa enquanto

possibilidade de revisão e (re )valolização da histólia regional e busca de

plausibilidade científIca ao conhecimento histólico.

~ ~'>8 Para aprofundar a problemática em torno da crise do projeto de modernidade e dos dehates

intraparadigmáticos. entre outros. ver: BERMAN. Marshal. Tudo que é sólido desmancha no aJ:São Paulo: Cia. das Letras, 1988.: SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social

e o político na pós_modernidade. São Paulo: Cortez. 1997'. Idem. Introdução a uma ciência pós­moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989; ANDERSON. Perry. COT/Siderações sobre o manismoocidental. Campinas: Unicamp. 1992: Idem. A crise da crise do manismo: introdução a umdehate contemporãneo. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

"o CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS. Ronaldo (Org.). Domínios da história: ensaios de te-oria e metodOlogia. Rio de Janeiro: Campus. 1997. p. 1-23.

"O Escola dos Annales: o grupO dos Annales é considerado por alguns autores como outra corrente

do paradigma iluministalmoderno; os trahalhos foram iniciados na década de 1920 pelos histo­riadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch. fundadores da Rel'ista dos Al1Iwles e o gmpO a

ela filiado até 1969. período em que Braudel deixou a direção da revisla: considera-se que foi a

partir do final da década de 1960 e início da década de 1970 que se iniciou o processo defragmentação teórica. snrgindo uma nova orientação, que rompeu com oS vínculos originais daescola (Annales). Entre outros, ver em: CARDOSO: VAINFAS. Op. cit.: BURCKE, Peler. A Es-cola dos Annales. São Paulo: Ed. da Unesp. 1991.

101 Qnanto à diversidade de enfoques e gêneros, podemos destacar: redescoberta da história dasmentalidades (estudo do imaginário social e da psico-história); retorno do interesse pelo políti­

co. através do estudo da microfísica do poder: história do cotidiano (aproximação com a antropo­

logia e etnografia): retorno da narrativa; história social: história serial (estndo através de méto­dos quantitativos, a seriação de fotos pertencentes a conjuntos homogêneos, meclindo suasflutuaçfles na escala de sna própria lemporalidade); valorização das tradiçfles orais: microistóriaA esse respeito. novas tendências historiográficas, a partir da ruptura com a proposta original da

Escola dos Annales. ver: LE GOFF, Jaques (Coord.). A História Nova. São Paulo: Martins Fonnlcs.

1995.; Idem; NORA, Pierre. História: novOS objetos. Rio de Janeiro: F Alves. 1988.: Idem.História: noVOS problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988.

I

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r 110Ironita P.Machado

-C"ltura historiográfica e identidadeIII

Destacamos ainda que a microistória, como técnica diante do deba­

te sobre macroabordagens versus microabordagens, situa-se no campodisciplinar - processo de metodização da pesquisa - e na conciliação en­tre a estratégia analítica e a estratégia hermenêutica, como forn1a de afi'ou­

xar a tensão entre as duas abordagens oriundas de "paradigmas polares",as quais não seriam contraditórias, mas complementares: a primeira busca

a interpretação da visão estrutural e das circularidades conjunturais, que,por sua vez, apresentam as ações humanas condicionadas por essas; já asegunda, na prática da microistória como pesquisa, ressalta as singulari­dades, as peculiaridades individuais que trazem consigo os rastros deidentidade (valores, sentimentos).

A par disso, uma análise com redução de escala - microistória, pro­blemas e interpretações locais ou regionais - pode ganhar outro alcance

na medida em que procure inseri-los e debatê-los num quadro de maioramplitude. Por essa via, poderão ser contempladas questões até então

negligenciadas pela historiografia tradicional, ou seja, viabiliza-se, por umlado, uma parte do todo, que não a contempla inteiramente pelasmacroabordagens, sem ser sUPlimida por ele; por outro, a redução de es­cala - núcroistória - poderia problematizar alguns princípios e fundamen­

tos dos discursos constitutivos da própria historiografia nacional e, porconseguinte, identificar o modo como se manifestam num movimento maisrestrito, o regional.

Em síntese, algumas das mais imp0l1antes tendências da recente

"nova" história constituíram-se como resultado da condenação aos esque­mas tradicionais do método histórico e, na atualidade, trata-se de um mo­

vimento intelectual de crítica à racionalidade moderna, que busca incor­porar dimensões negligenciadas pela historiografia tradicional (filiada aoparadigma moderno, orientação teórica da conente positivista e marxista

materialista), como aquela de que nos ocupamos neste estudo. Para tal,faz-se necessário um revi sionismo metodológico tanto do aparato instru­mental quanto do conceitual, como também da própria posição do histo­

riador, sendo ele "um observador que observa", um "espírito que pensa econcebe" numa "sociedade". Nesse sentido, poderíamos perguntar: o his­toriador é um cientista? A história é ciência? De que ciência falamos?

Diante dessas questões, formulamos uma pergunta: se teoria e mé­

todo estão intimamente ligados, quais foram as orientações metodológicas,~egllidas pelos historiadores diletantes e quais são os linútes e possibili­dades diante do atual deslocamento paradigmático historiográfico? An',~po,~ta,genericamente e em parte, já foi dada ao concluirmos a iden­Ii li \'a\:ao dos pressupostos teóricos orientadores do ver-pensar dos au-

tores,el1tendendo que teoria e método não se dissocial\l: p\lll:inllt, :••.

o primeiro mostra-se limitado frente à crise de sua matl"ill'pisknli':i ,.filosófica - paradigma moderno - e pela não-incorporação de prinnpiw;das novas perspectivas historiográficas, conseqüentemente, o Sl'l',lIndo também está limitando a interpretação histórica. Para precisar a iden­

tificação da meta e do caminho seguidos pelos autores, e seguindo :imesma lógica de indissociabilidade - conceito/teoria/método/técnica - nopróximo capítulo daremos continuidade às reflexões aqui ilúciadas.