teoria geral das obr e dos contratos 2012.2

196
ROTEIRO DE CURSO 201 . TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS AUTORES: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA E RAFAEL VIOLA PESQUISADOR: BRUNO GAZZANEO BELSITO

Upload: meghan-ellis

Post on 03-Feb-2016

392 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

livro, teoria geral das obrigações dos contratos,

TRANSCRIPT

Page 1: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

ROTEIRO DE CURSO201 .

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS

CONTRATOSAUTORES: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA E RAFAEL VIOLA

PESQUISADOR: BRUNO GAZZANEO BELSITO

Page 2: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

SumárioTeoria Geral das Obrigações e dos Contratos

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ........................................................................................................................................ 3

PROGRAMA DA DISCIPLINA: .................................................................................................................................. 6

AULA 1–APRESENTAÇÃO DO CURSO ......................................................................................................................... 7

PARTE I: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS ..................................................... 11

AULA 2–AUTONOMIA PRIVADA E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO .................................................................................. 12

AULA 3–CONTORNOS DA BOA-FÉ OBJETIVA ............................................................................................................. 18

AULA 4–RELATIVIDADE E SUA FLEXIBILIZAÇÃO ........................................................................................................ 26

PARTE II: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES ...................................................................................................................... 29

AULA 5–A RELAÇÃO OBRIGACIONAL ...................................................................................................................... 30

AULA 6–AS OBRIGAÇÕES NATURAIS E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM ............................................................................ 36

AULA 7–CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES DE DAR, FAZER E NÃO-FAZER ...................................................... 42

AULA 8–CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES INDIVISÍVEIS, SOLIDÁRIAS E ALTERNATIVAS .................................. 50

AULA 9–PAGAMENTO: LUGAR, TEMPO E PROVA ........................................................................................................ 65

AULA 10–FORMAS ESPECIAIS DE PAGAMENTO ......................................................................................................... 73

AULA 11–ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E PAGAMENTO INDEVIDO ............................................................................... 95

AULA 12–INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...................................................................................................... 103

AULA 13–CLÁUSULA PENAL E JUROS .................................................................................................................... 116

AULA 14–TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES ............................................................................................................ 122

PARTE III: TEORIA GERAL DOS CONTRATOS............................................................................................................ 129

AULA 15–ANTES DO CONTRATO: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E CONTRATO PRELIMINAR .................................... 130

AULA 16–FORMAÇÃO DOS CONTRATOS ................................................................................................................. 136

AULA 17–CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS ............................................................................................................ 141

AULA 24–INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS .......................................................................................................... 147

AULA 19–VÍCIOS REDIBITÓRIOS E EVICÇÃO ........................................................................................................... 154

AULA 20–REVISÃO DOS CONTRATOS .................................................................................................................... 166

AULA 21–EXTINÇÃO DOS CONTRATOS ................................................................................................................... 174

AULA 22–ASPECTOS DA CONTRATAÇÃO ELETRÔNICA ................................................................................................ 185

Page 3: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 3

MÉTODO DE AVALIAÇÃO

A avaliação de desempenho do aluno na disciplina Teoria Geral das Obri-gações e dos Contratos será realizada através do somatório de três notas, cor-respondentes às seguintes atividades: (i) uma prova escrita a ser realizada no meio do semestre; (ii) uma prova escrita a ser realizada na última aula do curso; além de (iii) uma nota de participação.

Á primeira prova escrita será conferida nota de 0 (zero) a 10 (dez). A segunda prova escrita, por sua, vez, valerá 09 (nove) pontos. O último 01 (hum) ponto que completa a nota da segunda prova corresponde à nota de participação.

A nota de participação, por sua vez, é composta de duas avaliações. A primeira metade da nota de participação (0,5 ponto) corresponde à efetiva participação do aluno durante o curso. A outra metade da nota de partici-pação (0,5 ponto) se refere à(s) resposta(s) apresentada(s) pelo aluno à(s) pergunta(s) dirigida(s) ao mesmo em sala de aula sobre os textos de leitura obrigatória das respectivas aulas e/ou a sua participação na WikiDireito, seja inserindo ou alterando o conteúdo da respectiva matéria lecionada.

A média do aluno será obtida mediante a soma da nota obtida na primeira prova escrita com a nota obtida na segunda prova, adicionada à essa última a nota de participação, sendo o resultado posteriormente divido por dois.

Média Final = Primeira Prova (10,0) + Prova Escrita (9,0) + Participação (1,0)2

O aluno que obtiver nota inferior a 07 (sete) e superior ou igual a 04 (qua-tro) pontos, deverá fazer uma prova fi nal. O aluno que obtiver nota inferior a 04 (quatro) pontos estará automaticamente reprovado na disciplina.

Para os alunos que fi zerem a Prova Final, a média de aprovação a ser al-cançada é 06 (seis) pontos, a qual será obtida conforme fórmula constante no Manual do Aluno / Manual do Professor.

PROVA ESCRITA:

O aluno deverá realizar duas provas escritas durante o semestre. As provas deverão ser marcadas previamente pelo professor, preferencialmente no ho-rário de aula. A data e horário da prova serão divulgados com antecedência para os alunos.

A primeira prova escrita será realizada, em princípio, no período compre-endido entre as aulas nº 09 a 10. A segunda prova escrita será realizada, de preferência, imediatamente depois da última aula. Na segunda prova escrita versará sobre toda a matéria lecionada na disciplina.

Page 4: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 4

Para ambas as provas o aluno poderá consultar a legislação pertinente para elaborar as suas respostas. Salvo alguma necessidade especial, a Constituição Federal e o Código Civil, com sua legislação complementar, deverão ser su-fi cientes para que o aluno possa realizar a prova. Salvo orientação distinta por parte do professor, não será permitida a consulta à legislação comenta-da durante a prova. A mesma proibição vale para os códigos anotados cujas anotações transcendam a simples remissão a outros dispositivos legais, como ocorre na obra “Código Civil e Legislação em Vigor”, elaborado por Th eo-tonio Negrão.

As provas escritas serão compostas de pelo menos duas questões, sendo requerido ao aluno que demonstre domínio sobre os conceitos estruturais da disciplina e facilidade para aplicá-los a situações reais ou hipotéticas, quando confrontado com um caso concreto.

NOTA DE PARTICIPAÇÃO:

A nota de participação se divide em duas avaliações distintas, conforme já mencionado. A primeira avaliação que compõe a nota total de 01 (hum) ponto é a efetiva participação do aluno na disciplina.

A “efetiva participação” aqui avaliada não corresponde à quantidade de in-tervenções feitas pelo aluno em sala de aula, mas sim à qualidade de eventuais intervenções, o interesse demonstrado pela matéria, o questionamento dos conhecimentos apresentados pelo professor, e a presença constante em sala de aula. Esses são os principais fatores que determinam essa primeira metade da nota de participação.

O aluno que atender integralmente a esses requisitos terá 0,5 ponto na nota de participação.

A segunda metade da nota de participação consiste na participação do alu-no na WikiDireito e/ou na(s) resposta(s) apresentada(s) pelo aluno quando indagado pelo professor sobre o texto de leitura obrigatória para a aula. Toda aula terá pelo menos um texto de leitura obrigatória. É certo que os sentidos são traiçoeiros, já dizia Descartes, mas o texto de leitura obrigatória é exata-mente tudo isso que o nome indica: a sua leitura é obrigatória.

Dessa forma, o professor poderá perguntar para o aluno durante a aula alguma questão relacionada ao texto. O professor deverá considerar que o aluno leu o texto, uma vez que a sua leitura está indicada no material didá-tico. Essa medida visa a solucionar o recurso por vezes utilizado de apenas ler o texto correspondente à certa aula depois da mesma ser lecionada pelo professor. Pode parecer para o aluno que assim procedendo ele terá uma com-preensão melhor do texto. Todavia, no método participativo, um aluno que não leu o texto pertinente à aula é um aluno que poderá ter difi culdades em

Page 5: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 5

participar efetivamente, seja perguntando, seja simplesmente compreenden-do o conteúdo da aula.

Adicionalmente, é importante lembrar que a aula lecionada pelo professor representa a leitura feita pelo mesmo do texto recomendado. Ainda que a leitura do professor esteja apoiada em estudos mais aprofundados, nada im-pede que o aluno, ao tomar contato com o texto antes da aula, perceba outros pontos, tenha outras dúvidas ou perplexidades que o próprio professor não teve quando tomou contato com o texto. O intercâmbio de experiências de leitura é uma das características mais importantes dessa disciplina, pois au-xilia o professor a identifi car e suprimir as eventuais difi culdades de leitura encontradas pelos alunos. Sendo assim, o aluno que não lê o texto antes da realização da aula fi ca – voluntariamente – alijado dessa particularidade do estudo jurídico. E, em nota de teor mais prático, ainda corre o risco de perder meio ponto na avaliação.

O professor é livre para adotar o método que lhe parecer mais conveniente para a realização dessa avaliação: ou pré-seleciona de três a cinco alunos na aula anterior para responderem sobre o texto obrigatório para a próxima aula, ou simplesmente escolhe os alunos de forma aleatória na própria aula.

A título de sugestão, pode o professor vincular o grupo de alunos que poderá ser chamado em uma determinada aula à formação dos GEDs (grupos de estudo dirigido) da turma. Sendo assim, poderá o professor avisar, desde o primeiro dia, quais alunos poderão vir a ser indagados sobre quais textos previamente indicados.

A vantagem desse modelo consiste em conferir ao aluno alguma margem de previsibilidade sobre em quais aulas ele poderá ser chamado a responder questões sobre o texto de leitura obrigatória. Ao mesmo tempo, vincular a possibilidade de argüição com a formação dos GEDs poderá facilitar a discussão dos textos dentro dos grupos.

Ao desempenho do aluno na(s) resposta(s) da(s) questão(ões) formuladas e/ou sua participação na WikiDireito, será conferido até 0,5 ponto, compon-do assim até 01 (hum) ponto na nota de participação. Essa nota de partici-pação complementa o grau obtido na segunda prova, conforme visto no item anterior. O somatório das notas obtidas na segunda prova e na participação pode alcançar o total de 10 (dez) pontos

Page 6: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 6

PROGRAMA DA DISCIPLINA:

Aula 1: Apresentação do curso

Parte I: Princípios Fundamentais do Direito das Obrigações e dos ContratosAula 2: Autonomia Privada e Função Social do ContratoAula 3: Contornos da Boa-fé ObjetivaAula 4: Relatividade e sua Flexibilização

Parte II: Teoria Geral das ObrigaçõesAula 5: A Relação ObrigacionalAula 6: As Obrigações Naturais e as Obrigações Propter RemAula 7: Classifi cação das Obrigações: Obrigações de Dar, Fazer e Não-FazerAula 8: Classifi cação das Obrigações: Obrigações Indivisíveis, Solidárias e AlternativasAula 9: Pagamento: Lugar, Tempo e ProvaAula 10: Formas Especiais de PagamentoAula 11: Enriquecimento sem Causa e Pagamento IndevidoAula 12: Inadimplemento das ObrigaçõesAula 13: Cláusula Penal e JurosAula 14: Transmissão das Obrigações

Parte III: Teoria Geral dos ContratosAula 15: Antes do Contrato: Responsabilidade pré-contratual e Contrato PreliminarAula 16: Formação do ContratoAula 17: Classifi cação dos ContratosAula 18: Interpretação dos ContratosAula 19: Vícios Redibitórios e EvicçãoAula 20: Revisão dos ContratosAula 21: Extinção dos ContratosAula 22: Aspectos da Contratação Eletrônica

Page 7: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 7

AULA 1–APRESENTAÇÃO DO CURSO

1. ROTEIRO DE AULA:

O título da presente disciplina (“Teoria Geral das Obrigações e dos Con-tratos”) requer algumas explicações introdutórias, pois ele pode vir a encer-rar dois grandes equívocos. O primeiro se refere à ênfase dada à expressão “Teoria Geral”. Essa disciplina, antes de mais nada – antes mesmo de fazer referência aos contratos e às obrigações – se apresenta como uma teoria geral. Pode parecer paradoxal que uma disciplina inserida em curso de bacharelado que prima pela permamente atualização, como é o curso oferecido pela Esco-la de Direito da Fundação Getúlio Vargas, opte por oferecer aos seus alunos um curso sobre teoria geral de determinado assunto, e ainda mais sobre Di-reito Civil, campo do conhecimento jurídico que cada vez mais se afasta das grandes “teorias gerais”.

Pode-se dizer que o Direito Civil vivencia hoje o ocaso das teorias gerais justamente pela velocidade com que os seus institutos têm se transformado para atender às mais diversas e complexas demandas sociais. O fenômeno do Direito Civil Constitucional, estudado na disciplina anterior (“Direito das Pessoas e dos Bens”) ilustra com precisão esse cenário. As constantes exigências da vida prática tomaram de assalto a construção de teorias gerais para diversos setores do Direito Civil. Mais notadamente, a dinâmica dos direitos da personalidade repercute essa realidade, sendo hoje praticamente impossível, ou pelo menos bastante artifi cial, criar-se uma teoria geral dos direitos da personalidade. Essa, se por um acaso existe, apenas se faz presente para fi ns didáticos.

Então, deve-se analisar com cautela a denominação da disciplina aqui apresentada: quando se fala em teoria geral o que se busca oferecer ao aluno é a oportunidade de conhecer as linhas mestras que guiaram a doutrina, a jurisprudência e o legislador na construção da matéria sob análise. Assim, o estudo do direito das obrigações deve enfrentar todo o arcabouço instru-mental erigido desde o período de apogeu do Direito Romano para tutelar as relações jurídicas entre credores e devedores; mas essa mesma disciplina não estaria completa se ela não rompesse com a ahistoricidade que prepondera nos manuais sobre os temas e introduzisse diversos dilemas que a prática hoje coloca para a solução de relações que envolvem créditos e débitos.

Esse desprendimento do curso da história para a construção de um re-positório de técnicas é ainda mais afastado quando se trata do direito dos contratos. Nesse particular, a convivência entre princípios clássicos e aqueles princípios que compõem a faceta mais moderna da “nova teoria contratual”

Page 8: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 8

representa o escopo das aulas destinadas ao estudo das relações contratuais: buscar o domínio da teoria geral, para que se possa, então, aplicá-la aos casos concretos, sabendo identifi car os pontos em que a jurisprudência vem lidan-do com casos difíceis, em que os princípios da teoria contratual são chamados a atuar.

Mas não é apenas a expressão “Teoria Geral” que merece uma explicação mais detalhada no título da presente disciplina. A referência a obrigações e contratos no seu título também merece uma menção.

A disciplina aqui apresentada é composta por três módulos: (i) princípios fundamentais das obrigações e dos contratos; (ii) teoria geral das obrigações; e (iii) teoria geral dos contratos. Optou-se por separar o estudo dos chamados princípios contratuais e inseri-los logo no início do curso para informar ao aluno sobre a sua relevância e sobre como a palicação desses princípios, nomi-nalmente contratuais, possuem refl exos também na dinâmica das obrigações. A aplicação do princípio da boa-fé objetiva deixa claro como a separação aqui entre o estudo das obrigações e o estudo dos contratos poderia trazer difi cul-dades desnecessárias, já tal princípio é fundamental para a compreensão de ambos os campos do estudo civilístico.

Por fi m, cumpre destacar que essa é a segunda disciplina na qual alunos to-marão contato com o Direito Civil. Todo o conteúdo lecionado na disciplina anterior, Direito das Pessoas e dos Bens, contudo, aplica-se de forma direta e imediata às mais diversas situações com as quais o estudante vai se deparar ao longo do semestre. A busca por uma defi nição do princípio da dignidade da pessoa humana, o lugar dos chamados direitos da personalidade, a dinâmica das pessoas jurídicas e a relevância das transformações sofridas na análise dos bens, sobretudo no que se refere ao “bem de família” e as controvérsias sobre a sua amplitude, estão presentes nesta disciplina.

Essa ligação com as disciplinas anteriores é ainda mais explícita com res-peito à atividade complementar obrigatória “Relações Jurídicas”, que pre-viamente ensinou aos alunos os conceitos fundamentais sobre os negócios jurídicos, além de detalhar o funcionamento dos institutos da prescrição e da decadência. A noção sobre os planos, vícios, interpretação e casos de nulida-de/anulação dos negócios jurídicos será imprescindível para a melhor com-preensão do presente curso.

O caso gerador narrado abaixo, por exemplo, ilustra essa conexão necessá-ria entre as duas primeiras disciplinas de Direito Civil lecionadas no curso de graduação. A lide em questão foi baseada em caso julgado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça. Com base nas lições apreendidas no semestre passado, e com a intuição natural do bom profi ssional jurídico para descobrir onde estão os pontos controvertidos de um caso concreto e, principalmente, para buscar a sua solução, leia a seguinte questão:

Page 9: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 9

2. CASO GERADOR:

Três famílias de baixa renda viviam juntas, há mais de dez anos, em uma casa de madeira construída em terreno de sua propriedade na sua periferia de Porto Alegre. Com a expansão dos limites da cidade, uma empresa construtora procurou as três famílias com interesse de construir no local um edifício de apartamentos. Em troca pela cessão do terreno, as famílias receberiam dois apartamentos do edifício a ser construído. O contrato foi devidamente celebrado entre as partes, formalizado em cartório, tendo ainda sido oferecida em garantia do cumpri-mento do acordo, por parte da construtora, o imóvel onde residia a família do proprietário da empresa.

As três famílias passaram a residir, de forma precária, na casa de amigos e co-nhecidos. Os anos foram se passando e o edifício jamais foi construído. Após cinco anos de espera, as três famílias ingressaram em juízo pleiteando que o imóvel dado em garantia fosse levado a leilão para pagamento do valor relativo ao terreno, acrescido de eventuais atualizações e indenização por dano moral decorrente do inadimplemento da construtora.

Nos autos do referido processo, o advogado da construtora alegou que o imóvel dado em garantia não poderia ser objeto de execução, pois estaria protegido pelo regime do “bem de família” (Lei n° 8.009/90).

Com base no caso acima responda:

(i) Quais princípios da teoria geral das obrigações e dos contratos estão envolvidos na questão? Existe algum confl ito entre os mesmos?

(ii) No caso narrado, como você decidiria o processo? Justifi que a sua de-cisão com argumentos jurídicos e com base na legislação pertinente.

Page 10: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 10

O caso acima foi baseado na seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. BOA-FÉ.

Três famílias de baixa renda viviam juntas em uma pequena casa de madeira construída em terreno de sua propriedade. Sucede que aceitaram permutá-lo por dois apartamentos a serem edificados por uma empresa construtora, que deu em garantia do negócio (formalizado em cartório) o imóvel em que morava a família do proprietário da firma, sabidamente protegido pela Lei n. 8.099/1990. Desalojados, esperaram em vão pela construção e, por onze anos, pelejaram em juízo, até que, às vésperas da praça, houve a alegação de o imóvel dado em garantia ser bem de família. Isso posto, a Turma não conheceu do especial, ao acompanhar o entendimento do Min. Relator de que, nessa peculiar hipótese, a impenhorabilidade do bem de família há que ser tratada com temperamentos, cedendo frente ao princípio da boa-fé. O Min. Relator anotou, também, não se cuidar aqui do hipossuficiente que, impensadamente, dá seu bem impenhorável em garantia de negócio (hipótese albergada pela jurisprudência), mas sim de parte que tinha consciência do que estava fazendo. O Min. Carlos Alberto Menezes Direito, por sua vez, aduziu, em apertada suma, que, diante desse específico cenário, é possível entrever a renúncia à impenhorabilidade, renegada pelos Tribunais, mas incidente ao caso pela peculiaridade da hipótese, e ao final, está-se, justamente, a proteger o bem de família daqueles que foram lesados. Resp 554.622/RS, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 17/11/2005.

Page 11: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 11

PARTE I: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

Page 12: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 12

AULA 2–AUTONOMIA PRIVADA E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Autonomia Privada e Função Social do Contrato

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Martins-Costa, Judith. “Refl exões sobre o princípio da função social dos con-tratos”, in Revista Direito GV nº 01 (maio/2005); pp. 41/66.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Salomão Filho, Calixto. “Função social do contrato: primeiras anotações”, in Revista de Direito Mercantil nº 132; pp. 07/24. Bueno de Godoy, Cláudio Luiz. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 110/130.

1. ROTEIRO DE AULA:

Ao se iniciar o estudo da teoria e prática dos contratos, é fundamental ter-se em mente a transição pela qual atravessa esse específi co e importante campo do Direito Civil. Tradicionalmente vinculada à soberania da vontade individual (autonomia da vontade), insculpida nos preceitos que tutelam a liberdade contratual, a disciplina dos contratos atualmente vê-se permeada por uma série de interesses que ultrapassam a vontade do particular, gerando um debate sobre os limites da intervenção de dispositivos de ordem pública na regulação das relações contratuais.

Pode-se, em linhas gerais, dizer que os princípios tradicionais, que funda-mentaram a construção clássica da teoria dos contratos são os seguintes: (i) au-tonomia privada (ou da vontade); (ii) força obrigatória; e (iii) relatividade. Esses princípios encontram hoje diversas áreas de fl exibilização geradas pela ascensão de novos princípios contratuais, como (iv) a função social do contrato; (v) a boa-fé objetiva; e (vi) o equilibrio econômico-fi nanceiro da relação contratual.

Todos os seis princípios acima mencionados serão trabalhados nas aulas a seguir. Na presente aula será conferida atenção especial aos princípios da autonomia da vontade e da chamada função social do contrato.

Page 13: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 13

A autonomia privada pode ser entendida, segundo lição de Díez-Picaso e Gullón como “o poder de se auto-ditar a lei ou preceito, o poder de governar--se a si próprio.” Conforme complementam os mesmos autores:

“Poder-se-ia também defi ni-la como um poder de governo da própria esfera jurídica, e como essa é formada por relações jurídicas, que são a causa da reali-zação de interesses, a autonomia privada pode igualmente conceituar-se como o poder da pessoa de desregulamentar e ordenar as relações jurídicas nas quais é, ou há de ser, parte.”1

O estudo da autonomia privada assume, na seara contratual, a forma da tutela da liberdade contratual. Nesse particular é importante não confundir “liberdade de contratar” com “liberdade contratual”. A primeira relaciona-se com o momento formativo da relação contratual, isto é, com o grau de liber-dade envolvida na decisão sobre concluir ou não um contrato. Já a segunda diz respeito ao conteúdo do contrato.

Segundo Francesco Messineo, existem quatro signifi cados para liberdade contratual: (i) o fato de que nenhuma parte pode impor unilateralmente à outra o conteúdo do contrato, e que esse deve ser o resultado de livre debate entre as partes; (ii) liberdade de negociação, no sentido de que o objeto do contrato é livre, salvo bens indisponíveis e exceções previstas no ordenamen-to; (iii) o poder de derrogar as normas dispositivas ou supletivas; e (iv) o fato de que, em algumas matérias, é admitida a auto-disciplina, ou seja, a regula-ção estabelecida pelas partes interessadas.2

Os alicerces sobre os quais se funda a liberdade de contratar podem ser en-contrados nos princípios elaborados pela Escola do Direito Natural, respon-sável por conferir importância crescente à contratualidade, a partir do século XVI, sob a infl uência do conceito de autonomia da vontade desenvolvido pelo Humanismo. O primado da vontade individual é consolidado no século XVII, quando a própria existência da sociedade passa a ser fundamentada no contrato. Essa tendência é explicita por John Gilissen:

“A Idade Média não reconhecia o primado da vontade individual; esta não era respeitável senão nos limites da fé, da moral e do bem comum. Os interesses da comunidade familiar, religiosa ou econômica, ultrapassam os dos indivíduos que a compõem. (...) É à Escola Jusnaturalista que a autonomia da vontade deve a sua autoridade, o seu primado. Mas foi sobretudo o jurista holandês Hugo Grócio que desenvolveu a nova teoria: a vontade é soberana; o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural; pacta sunt servanda é um princípio que deve ser aplicado não apenas entre os indivíduos, mas mesmo entre as nações”.3

Após a consagração dos ideais da Revolução Francesa e a abolição dos pri-vilégios estamentais e corporativos, a promulgação do Código Napoleão em 1804 veio a positivar explicitamente o primado da autonomia da vontade,

1. Luis Diéz-Picaso e Antonio Gullón.

Sistema de derecho civil. Madrid: Edito-

rial Tecnos, S.A., 1994, v. 1, p. 371.

2. Francesco Messineo. Il contratto

in genere. Pádua: CEDAM, 1973, pp.

43 e 44.

3. John Gilissen. Introdução histórica ao

direito. 2a ed. Lisboa: Fundação Calous-

te Gulbenkian, 1995, pp. 738 e 739.

Page 14: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 14

na máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” (art. 1.134), a qual será traduzida na célebre frase de Fouillée: “quem diz contratual diz justo”.

A conseqüência imediata desse cenário é a crescente importância conferi-da pela doutrina contratualista do século XIX para a análise da manifestação da vontade e seus vícios. Com a primazia da autonomia da vontade, interpre-tar o contrato tornou-se um exercício de descobrimento das reais intenções das partes e das formas pelas quais elas foram verbalizadas. Trata-se de uma verdadeira “mística da vontade”.

As restrições à liberdade contratual começam a surgir com a mudança do cenário histórico, assegurando-se, inicialmente, maior igualdade de oportuni-dades no mercado, em termos da proibição de discriminação em razão de gê-nero, raça, etnia. Posteriormente, razões sociais passaram a determinar certas discriminações positivas, como o tratamento mais protetivo às partes contra-tualmente mais vulneráveis (tais como o consumidor, o idoso, o trabalhador).

Portanto, razões de justiça e equidade vieram a determinar a intervenção do Estado sobre as relações contratuais, em um movimento que fi cou conhecido como dirigismo contratual. Trata-se da inserção, no ordenamento jurídico, de uma série de normas cogentes, a delimitar os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que cláu-sulas serão consideradas intrinsecamente abusivas e, por conseguinte, nulas.

Segundo identifi ca Eros Roberto Grau:“A mudança de perspectiva sobre a compreensão da autonomia da vontade é,

portanto, profunda: deixa-se de considerar o indivíduo como senhor absoluto da sua vontade, para compreendê-lo como sujeito autorizado pelo ordenamento a praticar determinados atos, nos exatos limites da autorização concedida.”4

O mesmo diagnóstico dessa fase de transição é realizado por Gustavo Te-pedino ao afi rmar que:

“Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos, então, a presença do Poder Público interferindo nas relações contratuais, defi nindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, fi cavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem”.5

Todavia, a fl exibilização da autonomia da vontade a preceitos contidos na legislação não representa uma completa anulação desse princípio nas relações contratuais. Muito ao reverso, a autonomia da vontade, e, mais especifi ca-mente, a liberdade contratual, permanecem como princípio, e sua derivação respectivamente, a reger os vínculos contratuais, agora atrelada à função so-cial do contrato, consoante o disposto no art. 421:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

4. Eros Roberto Grau. “Um novo

paradigma dos contratos”. In Revista

Trimestral de Direito Civil. Rio de Janei-

ro: Padma, v. 5, jan/mar 2001, p. 78.

5. Gustavo Tepedino. Temas de Direito

Civil. 2a edição. Rio de Janeiro: Reno-

var, 2001, p. 204.

Page 15: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 15

Uma constatação de que a autonomia da vontade ainda desempenha papel de destaque na formação dos contratos pode ser encontrado no art. 425 do Código Civil, o qual determina que as partes poderão elaborar contratos atípicos, ou seja, contratos que não seguem os modelos de contrato tipifi cados na legislação:

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fi xadas neste Código.

A dinâmica existente entre autonomia da vontade e função social pode ser percebida em alguns exemplos retirados da prática dos contratos de locação. Nesse sentido, vale investigar os limites do direito de retomada do imóvel por parte do locador para uso próprio. A lei de locações (Lei nº 8245/91) prevê, no seu art. 52, §1º, que o locador, salvo se remunerar o locatário pelo fundo de comércio, não poderá exercer o mesmo ramo de atividade desempenhado então pelo locatário. É a redação do artigo:

“Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: (...)II–o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo

de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente.

§1º–Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do locatário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences”.

Ao interpretar o referido artigo, Fábio Ulhoa Coelho afi rma que, em tela, está-se diante de um confl ito entre o direito de inerência ao ponto do locatá-rio e o direito de propriedade do locador. Conforme expressa o autor:

“Quando o direito de propriedade do locador entra em confl ito com o direito de inerência a ponto do locatário, está em oposição uma simples oposição de interesses privados, individuais.”6

Complementa então o autor afi rmando que a restrição ao direito de reto-mada, constante do art. 52 seria inconstitucional, pois imporia restrições ao direito de propriedade.

Essa é justamente a espécie de situação em que a ampla autonomia da vontade cede espaço para mandamentos constantes da lei, impondo a pre-servação de determinados interesses. Ao afi rmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negócio desenvolvido pelo locatário, o legis-lador não confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nessa dire-ção, o artigo tutela não apenas a função social da propriedade, mas também a função social do contrato de locação, que se transforma em incentivo para que locatários desenvolvam cada vez melhores negócios, seguros de que não sofrerão a retomada do imóvel sob o argumento de uso próprio para que o locador venha a se aproveitar o trabalho realizado no ponto. 6. Fábio Ulhoa Coelho. Curso de Direito

Comercial, v. I. São Paulo, Saraiva,

4ªed., 2000; p. 103.

Page 16: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 16

Cláusulas de não restabelecimento, ou cláusulas de não concorrência, atu-almente desempenham importante papel na confi guração dos limites da au-tonomia da vontade nos contratos. A cláusula de não-concorrência pode ser decorrência natural da venda de um negócio, principalmente nos casos em que seja necessário assegurar ao comprador as condições necessárias para que este usufrua integralmente dos benefícios diretos e indiretos da aquisição. A referida cláusula, todavia, deve ser razoavelmente delimitada, no tempo, no espaço e no setor relevante.

O próprio código civil estabelece que, salvo estipulação em contrário, na aquisição de estabelecimentos empresariais o alienante não poderá concorrer com o comprador pelo prazo de cinco anos. Essa é a redação do art. 1147 do Código Civil:

Art. 1147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes á trans-ferência.”

Ainda na dinâmica dos estabelecimentos empresariais, e mais especifi ca-mente nos shopping centers, as cláusulas de não concorrência assumem a fei-ção de cláusulas de raio, sendo comum que no contrato de locação com a empresa que administra o shopping center conste uma cláusula que veda a abertura de estabelecimento idêntico ao que o lojista explora no shopping por uma certa distância especifi cada no contrato.

2. CASO GERADOR:

A administradora do Shopping Iguatemi, localizado na cidade de Porto Ale-gre, tem fi gurado na imprensa por conta de um litígio instaurado com a cadeia de farmácias Panvel. Segundo consta das notícias veiculadas, ela teria ingressado com ação de despejo contra a empresa que explora a farmácia Panvel localiza no shopping por conta da abertura de uma outra farmácia Panvel no shopping Bourbon Country, construído posteriormente e praticamente vizinho do terreno onde se localiza o shopping Iguatemi.

Alega a administradora do Shopping Iguatemi que a abertura de uma farmá-cia Panvel no shopping vizinho representaria violação da cláusula de raio esta-belecida no contrato de locação. Vale ressaltar que no shopping Bourbon Country também foram abertas lojas das redes O Boticário e McDonalds.

Se você fosse o juiz dessa ação judicial, como seria a sua decisão? Fun-damente.

Page 17: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 17

Page 18: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 18

AULA 3–CONTORNOS DA BOA-FÉ OBJETIVA

EMENTÁRIO DE TEMAS:

As três funções da boa-fé objetiva – Os deveres anexos de conduta – Proibição do comportamento contraditório

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Tepedino, Gustavo e Schreiber, Anderson. “A Boa-Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org.) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janei-ro: Renovar, 2005; pp. 29/44.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Negreiros, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 115/153.

Azevedo, Antonio Junqueira de. “Insufi ciências, defi ciências e desatuali-zação do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158.

1. ROTEIRO DE AULA:

A boa-fé tradicionalmente figura como elemento dos estudos jurí-dicos quando se deve investigar se o indivíduo possui ou não ciência sobre uma determinada condição, como, por exemplo, se o individuo conhece, ou não, um vício que macula a sua posse sobre determinado terreno. Essa perspectiva da boa-fé convencionou-se denominar boa-fé subjetiva.

Existe, todavia, uma outra forma de atuação da boa-fé no direito brasilei-ro, denominada boa-fé objetiva, a qual foge de qualquer ilação sobre um es-tado de espírito do agente para se fi xar em uma análise voltada para critérios estritamente objetivos.

Page 19: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 19

As três funções da boa-fé objetiva

É comum delimitar-se três funções típicas desempenhadas pela boa-fé ob-jetiva no direito brasileiro. Sendo assim, pode-se defi nir a função tríplice da boa-fé objetiva da seguinte forma:

A boa-fé objetiva desempenha inicialmente um papel de critério para a interpretação da declaração da vontade nos negócios jurídicos. Essa função é prevista no art. 113 do novo Código Civil:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Esse dispositivo ganha relevo ao indicar que a primeira função da boa-fé objetiva é dirigir a interpretação do juiz ou árbitro relativamente ao negócio celebrado, impedindo que o contrato seja interpretado de forma a atingir fi nalidade oposta àquela que se deveria licitamente esperar.

A boa-fé objetiva atua ainda como forma de valorar o abuso no exercício dos direitos subjetivos, conforme consta do art. 187 do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fi m econômico ou social, pela boa--fé ou pelos bons costumes.

E, por fi m, a boa-fé objetiva é, ainda, norma de conduta imposta aos con-tratantes, segundo o disposto no art. 422 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contra-to, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

A função desempenhada pela boa-fé objetiva a partir do dispositivo no art. 422 é, sem dúvida, a sua atuação mais comentada pela doutrina e da qual mais se vale a jurisprudência dos tribunais nacionais.

Os deveres anexos de conduta

O motivo pelo qual a terceira função da boa-fé objetiva recebeu tamanho destaque deriva justamente do seu próprio conteúdo: impor às partes contra-tantes deveres objetivos de conduta, que não necessariamente precisam cons-tar do instrumento contratual para que possam ser cobrados e cumpridos. Tratam-se dos chamados deveres secundários, ou anexos, aos quais todas as partes de um negócio devem manter estrita observância.

Essa caracterização da boa-fé objetiva como a disposição de deveres de conduta que as partes devem guardar difere frontalmente daquela concepção clássica de boa-fé subjetiva, ligada a um estado psicológico do agente.

Os deveres secundários impostos pelo art. 422 foram gradativamente sen-do construídos pela doutrina e pela jurisprudência, podendo-se mesmo falar

Page 20: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 20

em quatro deveres básicos: (i) dever de informação e esclarecimento; (ii) de-ver de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo.

Todavia, diversas derivações podem surgir desses quatro deveres básicos, como bem explicita Judith Martins-Costa, os deveres secundários podem abranger um vasto leque de condutas que deverão ser observadas pelas partes, como, por exemplo:

“a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor fi nanceiro de avisar a contrapar-te sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da decla-ração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fi ne, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não difi cultar o pagamento, por parte do devedor; f ) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetoni-camente o prédio, a fi m de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhe-cimento em razão do contrato ou de negociações preliminares.”7

A imposição desses deveres se reveste de papel fundamental para a orde-nação dos contratos na prática, uma vez que se busca, com a sua afi rmação, proteger um bem que se encontra na própria essência da contratação: a con-fi ança. Por esse motivo, o enquadramento legal da boa-fé objetiva sempre se mostrará atrelada à tutela da confi ança, sobretudo no que diz respeito à aplicação desse princípio aos casos de responsabilidade pré-contratual.

Mas a redação do art. 422 não está afastada de qualquer espécie de crítica. Muito ao reverso, Antonio Junqueira de Azevedo afi rma que a redação do art. 422 se mostra insufi ciente, defi ciente e desatualizada perante às exigências da prática contratual moderna. Segundo o autor, o artigo seria insufi ciente em sua redação pois não deixa claro se os seus dispositivos constituem norma cogente ou meramente dispositiva, além de não mencionar as fases pré e pós--contratuais para fi ns de responsabilização. O artigo seria ainda defi ciente 7. Judith Martins-Costa. A Boa-Fé no

Direito Privado. São Paulo: RT, 1999,

p. 439.

Page 21: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 21

por não prever de forma explícita quais são os chamados deveres anexos. E, por fi m, o dispositivo seria desatualizado pois confere poderes desmesurados ao juiz para interferir nas relações contratuais, abrindo possibilidade para se incrementar a sobrecarga de processos que impede o regular funcionamento do Poder Judiciário, além de não serem os juizes tradicionalmente prepara-dos para decidir casos nos quais fi gurem contratos de extrema especialidade técnica. Nesse sentido, menciona o autor, a época atual estaria passando do paradigma do juiz para o paradigma do árbitro.8

A proibição de comportamento contraditório

A proibição do comportamento contraditório representa uma das princi-pais contribuições dos estudos sobre boa-fé objetiva para a prática contratual. O instituto possui especial aplicação na fase de negociações que antecede a formação do contrato, coibindo as partes de frustrar expectativas legitima-mente criadas no pólo contrário das negociações.

A expressão nemo potest venire contra factum proprium consolida a idéia de que a ninguém é permitido agir contra a sua própria conduta prévia. Trata-se da reprovação social à adoção de comportamentos contraditórios com efeitos perniciosos a terceiros.

O fundamento do venire contra factum proprium, como visto, reside no princípio da boa-fé objetiva, especialmente na sua vertente voltada para a tutela da confi ança. A ausência de regulamentação no direito positivo não impede a aplicação do instituto, o qual vem sendo amplamente utilizado para casos de responsabilidade pré-contratual. A doutrina, contudo, tem adotado entendimento no sentido de que a proibição de comportamento contraditó-rio derivaria do preceito contido no art. 3o, I, da Constituição Federal, o qual consagra a solidariedade social.9

Os pressupostos para aplicação do venire contra factum proprium, de acor-do com Anderson Schreiber, são os seguintes: (i) um factum proprium,; (ii) a geração na outra parte de confi ança legítima no sentido de manutenção da conduta inicialmente adotada; (iii) um comportamento contraditório vio-lador desta confi ança; e (iv) dano ou ameaça concreta de dano derivado da contradição.10

A proibição de comportamento contraditório surge, portanto, em casos em que a conduta adotada por uma das partes gera legítimas expectativas na outra parte, as quais terminam por serem quebradas. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu favoravelmente a agricultores uma ação com base na quebra das expectativas geradas por uma empresa especializada na fabricação de extratos de tomates, uma vez que a empresa tinha por hábito entregar-lhes sempre as sementes para plan-tio, e comprar o resultado da posterior colheita. No ano em que a empresa

8. Antonio Junqueira de.Azevedo. “Insu-

fi ciências, defi ciências e desatualização

do Projeto de Código Civil na questão

da boa-fé objetiva nos contratos”, in

Estudos e Pareceres de Direito Privado.

São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158

9. Anderson Schreiber. A proibição de

comportamento contraditório – tutela

da Confi ança e Venire contra factum

proprium. Rio de janeiro: Renovar,

2005; p. 101.

10. Anderson Schreiber. Ob. cit.; p. 124.

Page 22: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 22

entregou as sementes e não comprou a colheita, os agricultores alegaram ter sofrido prejuízos pela quebra de expectativas geradas pela empresa. Segundo consta do acórdão em questão:

“Tanto basta para demonstrar que a ré, após incentivar os produtores a plantar safra de tomate – instando-os a realizar despesas e envidar esforços para plantio, ao mesmo tempo em que perdiam a oportunidade de fazer o cultivo de outro produto – simplesmente desistiu da industrialização do tomate, atendendo aos seus exclusivos in-teresses, no que agiu dentro do seu poder decisório. Deve, no entanto, indenizar aque-les que lealmente confi aram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo.”11

A aplicação da vedação ao comportamento contraditório surge na com-plementação do voto vencedor, ao afi rmar que, no caso, “confi aram eles leal-mente na palavra dada, na repetição do que acontecera em anos anteriores.”

2. CASO GERADOR:12

A Newcell Telecom S/A (“Newcell”) é uma companhia aberta, com ações nego-ciadas em bolsa de valores, que atua no setor de telecomunicações, especifi camente na prestação de serviços de telefonia móvel (SMP), Regiões I e II. Até muito re-centemente, 50% de suas ações ordinárias pertenciam à acionista Macroservice Ltd. (“Macroservice”), 40% à Celular do Brasil Ltda. (“Celular do Brasil”) e os 10% restantes ao público investidor. A recente mudança no seu quadro acionário deu-se em razão da alienação das ações ordinárias de propriedade da Celular do Brasil (“Ações”), operação esta que permitiu a entrada da Trama Telecom S/A (“Trama”) – orginariamente prestadora da mesma modalidade de serviço apenas na Região III. A operação é hoje alvo de uma disputa judicial, iniciada pela Ce-lular do Brasil, conforme os fatos a seguir relatados.

Desde julho de 1999, por força de um acordo de acionistas celebrado entre a Celular do Brasil e a Macroservice (“Acordo de Acionistas”), a transferência das ações ordinárias de emissão da Newcell estava sujeita a procedimento prévio, que incluía a realização de um leilão informal e a outorga de direito de preferência entre os acionistas acima designados. Assim, dispunha o Acordo de Acionistas que o acionista remanescente teria o direito de preferência, podendo adquirir a parti-cipação do acionista alienante desde que o fi zesse nos mesmos termos e condições constantes da oferta de um terceiro.

Em janeiro de 2004, desejando alienar a participação de 40% que detinha no capital votante da Newcell, a Celular do Brasil deu início à tentativa de obter a melhor oferta possível pelas suas ações.

Entre os analistas que acompanhavam as diligências que antecederam ao leilão promovido pela Celular do Brasil, não havia dúvida: todas as apostas convergiam para a Trama, cujos planos de expansão eram notórios. Mediante a aquisição de

11. TJRS, Ap. 591028295; j. em

06/06/91.

12. Caso gerador extraído da Apostila

“Princípios Contratuais”, elaborada

por Teresa Negreiros para os cursos

de educação continuada da Escola de

Direito da Fundação Getúlio Vargas no

Rio de Janeiro.

Page 23: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 23

40% das ações ordinárias de emissão da Newcell, poderia a Trama aproveitar-se das consideráveis sinergias em jogo para se tornar a maior potência no mercado de telefonia celular do Brasil, operando simultaneamente nas Regiões I, II e III. Ou seja, a Trama era a maior interessada na aquisição das Ações, e por isso estimava--se que sairia vencedora do leilão.

Não se sabia, porém, que, naquele mesmo mês de janeiro de 2004, enquanto a Celular do Brasil organizava o leilão – disponibilizando aos potenciais inte-ressados informações sobre a Newcell –, Trama e Macroservice assinavam, secre-tamente, uma carta de intenções (“Carta de Intenções”), que dispunha sobre o comportamento de ambas com relação ao iminente leilão.

O objetivo da Trama e da Macroservice, ao assinarem a Carta de Intenções, era permitir que, ao fi nal, e fosse quem fosse o vencedor do leilão, ambas – Trama e Macroservice – formassem o bloco de controle da companhia, possuindo, cada uma, 45% do capital votante da Newcell. Assim, caso fosse a Trama a vencedora do leilão, a Macroservice obrigava-se a não exercer o direito de preferência e a lhe vender 5% da sua participação. Caso, pelo contrário, a Trama não fosse a vencedora, poderia esta, a seu exclusivo critério, e mediante a entrega dos recursos necessários, obrigar a Macroservice a exercer o direito de preferência e, ato contí-nuo, lhe transferir as Ações, mais os 5% relativos à sua própria participação ori-ginal. Nestes termos, a Macroservice adquiriria as ações com base no seu direito de preferência mas com recursos provenientes da Trama, sendo esta a destinatária fi nal das Ações.

E foi o que de fato aconteceu.Realizado o leilão, contrariamente às estimativas do mercado, a oferta apre-

sentada pela Trama não foi nada agressiva, vindo a mesma a perder o certame para outra licitante, a Trim Telecom S/A (“Trim”), companhia de origem alemã recém constituída no Brasil.

Foi assim celebrado entre a Trim e a Celular do Brasil, em fevereiro de 2004, contrato de compra e venda de ações, no valor de US$ 400 milhões – contrato este sujeito à condição suspensiva do não-exercício do direito de preferência pela Macroservice. A mencionada compra e venda extinguiu-se com o exercício do direito de preferência pela Macroservice, que, tal como previsto na Carta de In-tenções, transferiu ato contínuo as Ações assim adquiridas à Trama, mais 5% de sua participação original, de modo a que ambas se tornassem co-controladoras em absoluta igualdade de condições. Tudo conforme havia sido estabelecido na Carta de Intenções, então tornada pública.

A operação motivou uma expressiva alta das ações de emissão das sociedades envolvidas. Em particular, o representante dos acionistas preferenciais da Newcell fez questão de divulgar ao mercado a sua satisfação diante das novas perspectivas que se abriam para a companhia.

A Celular do Brasil, contudo, sentindo-se prejudicada, acaba de ingressar em juízo com uma ação civil de reparação de danos em face da Macroservice,

Page 24: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 24

pleiteando o ressarcimento de lucros cessantes, no montante de US$ 50 milhões, alegando, em resumo, que a execução da Carta de Intenções entre a Trama e a Macroservice, com o imediato repasse das Ações, violou o acordo de acionistas que até então vigorara entre ela e a Macroservice.

Como se resolve o caso acima? Quantos e quais princípios da nova teoria con-tratual você consegue identifi car para o deslinde da questão?

3. QUESTÕES DE CONCURSO:

20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase

3. Estabeleça a distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva, dan-do exemplos de situações caracterizadoras de cada uma dessas mo-dalidades de boa-fé.

21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase

3. Um náufrago, perdido em alto-mar, em uma balsa, em situação desesperadora, a quase míngua de víveres e água, contrata o seu resgate com um comandante de navio de transporte de combus-tível que passava providencialmente no local nessa ocasião, sob a promessa de transferir-lhe a propriedade de vultoso apartamento, metade de seu patrimônio. O comandante assim o faz, mesmo sa-bendo da proibição peremptória de estranhos a bordo por parte da companhia proprietária do navio, que terá que pagar pesada multa contratual pessoal pelo descumprimento de tal regra e do fato que o resgate, efetuado em condições arriscadas, atrasará a viagem em pelo menos um dia, acarretando diversos prejuízos a seu encargo.

Chegando são e salvo ao porto, o náufrago posteriormente recusa--se a cumprir o pactuado no resgate, sob o argumento de que o contrato efetuado em tais condições não é válido e que conseqüen-temente também não é devida ao comandante do navio qualquer indenização pelos gastos incorridos com o resgate. Estabeleça se o comandante do navio terá êxito judicial em uma eventual ação con-tra o náufrago objetivando o cumprimento do contrato e o ressarci-mento dos gastos efetuados.

5– Disserte sobre o instituto da responsabilidade civil pós-contratual, após cumpridas todas as prestações principais da avença, e estabe-leça a validade ou não desta no ordenamento brasileiro a partir da aprovação do Novo Código Civil.

Page 25: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 25

6– João e Pedro celebram a compra e venda de um fundo de comér-cio por R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) descrevendo condi-cionalmente no instrumento contratual que a aquisição teve por motivo determinante a perspectiva de boa e numerosa freguesia, garantida e apontada pelo vendedor Pedro no próprio contrato.

Decorridos seis meses, não se caracteriza tal perspectiva. João in-tenta agora anular o negócio. Estabeleça qual o fundamento de tal pretensão e discorra sobre se terá êxito judicial ou não a pretensão de João.

128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

23. Sobre a boa-fé objetiva, é INCORRETO afi rmar:(a) implica o dever de conduta probo e íntegro entre as partes contra-

tantes.(b) signifi ca a ignorância de vício que macula o negócio jurídico.(c) implica a observância de deveres anexos ao contrato, tais como in-

formação e segurança.(d) aplica-se aos contratos do Código Civil e do Código de Defesa do

Consumidor.

Gabarito: 23 (b).

Page 26: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 26

AULA 4–RELATIVIDADE E SUA FLEXIBILIZAÇÃO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Flexibilização do princípio da relatividade

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Negreiros, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 229/259.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Azevedo, Antonio Junqueira de. “Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabili-dade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contra-tual”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 137/147.

Correia, A. Ferrer. “Da responsabilidade do terceiro que coopera com o deve-dor na violação de um pacto de preferência”, in Estudo de Direito Civil, Comercial e Criminal. Coimbra: Almedina, 1985; pp. 33/52.

1. ATIVIDADE EM SALA:

O contrato é um fenômeno social, econômico e jurídico. Sendo assim, imaginar que a celebração de um contrato apenas interessa às partes contra-tantes, seria desconsiderar os verdadeiros impactos que um contrato pode ter na própria sociedade. Terceiros não apenas afetam o cumprimento de um contrato, como também podem ser afetados pelos termos que regem uma relação contratual.

Dessa forma, surgem duas situações bem distintas: (i) o credor que vê a prestação do contrato ser inadimplida por conta da atuação de um terceiro, estranho ao pactuado na relação contratual; e (ii) um terceiro que passa a sofrer algum prejuizo em sua situação jurídica por conta de um inadimple-mento em contrato do qual o mesmo não faz parte.

Page 27: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 27

A extensão desse transbordamento dos efeitos de uma relação contratual para atingir pessoas não previamente constantes da avença é o objeto de dis-cussão da presente aula. A partir da leitura da reportagem abaixo, buscar-se-á compreender nessa aula a conturbada relação entre os contratos e os terceiros.

Tendo em vista que a agência África não fazia parte do contrato entre o cantor Zeca Pagodinho e a cervejaria Schincariol, poderia a referida agência ser acionada judicialmente? Qual seria o fundamento dessa ação? E como enquadrar juridicamente o comportamento do cantor?

Page 28: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 28

A proposta da aula é dividir os alunos em dois grupos, um defendendo a posição da agência Fischer América, e outro defendendo a posição da agência de publicidade África. O caso da troca de anunciantes pelo cantor Zeca Pagodinho é interessante para que os alunos compreendam uma série de derivações não apenas do princípio da relatividade (“o contrato apenas tem efeito entre as partes contratantes”), como também do princípio da boa-fé objetiva.

No que tange à possibilidade de se ingressar com ação contra a agência África, que não fazia parte do contrato entre o cantor e a cervejaria Schincariol, veja-se a decisão do TJSP:

Na decisão conjunta dos Agravos de Instrumento 346.328.4/5 e 346.344.4/8, em 31 de março de 2004, Relatada pelo Desembargador Roberto Mortari, a 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão que proibira a Brahma de veicular qualquer campanha publicitária estrelada por Zeca Pagodinho enquanto vigorasse a cláusula de exclusividade que este havia assumido perante a Schincariol: “ainda que a AMBEV não tenha sido signatária do contrato entre Zeca Pagodinho e Schincariol, sua conduta, ao deixar de observar o pacto de exclusividade nele contido, é potencialmente apta a gerar dano indenizável, o que, se de um lado deverá ser alvo de regular contraditório na ação principal a ser proposta, lhe confere, ao menos por ora, status para figurar no pólo passivo da demanda”.

Page 29: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 29

PARTE II: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

Page 30: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 30

AULA 5–A RELAÇÃO OBRIGACIONAL

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Noção geral de obrigação – Distinções entre direito das obrigações e direitos reais – Estrutura da relação obrigacional – Fontes das obrigações

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Calixto, Marcelo Junqueira. “Refl exões em torno do conceito de obrigação, seus elementos e suas fontes”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 1/15; 25/28.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 16/37.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 492/495.

1. ROTEIRO DE AULA:

Noção Geral de Obrigação

Numa lição clássica contida nas Institutas de Justiniano, pode-se encontrar a noção de que obrigação é um vínculo jurídico que nos obriga a pagar alguma coisa. Apesar de aparentemente simplória, essa antiga lição remete com bastan-te propriedade à idéia essencial que circunda o direito das obrigações – a idéia de relação jurídica entre duas ou mais pessoas, sejam elas naturais ou jurídicas.

Tendo em vista a natureza intuitiva do conceito, o legislador preferiu não defi ni-lo no atual Código Civil. Na doutrina, Caio Mário defi ne obrigação como o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável.13

Já Washington de Barros Monteiro, de forma menos sucinta, enuncia que obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre

13. Caio Mario da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro,

Editora Forense, 2003; p. 7.

Page 31: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 31

devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, po-sitiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adim-plemento através do seu patrimônio”. Nessa segunda defi nição é interessante observar a presença do elemento responsabilidade, uma vez que a sua pre-sença será fundamental quando dos efeitos decorrentes do descumprimen-to da obrigação.

Outro elemento que merece destaque é o caráter de transitoriedade, ine-rente às obrigações. A obrigação é, em verdade, uma relação jurídica que nasce tendo por fi m a sua própria extinção, ou ainda melhor, a sua realização. É justamente a satisfação do credor, que ocorre com o regular adimplemento da obrigação, que enseja o fi m desta e, por conseguinte, o fi m do vínculo jurídico que une credor e devedor.

Na dinâmica obrigacional, os atores encontram-se subsumidos nas fi guras do credor e do devedor. A idéia de vinculação, que traduz o ponto principal do instituto, une duas ou mais pessoas que se encontrem envoltas numa relação de crédito e débito. O credor e o devedor correspondem aos dois lados da obrigação, aos pólos ativo e passivo respectivamente.

O vínculo aqui descrito é marcado pela pessoalidade. Essa característica remete ao fato de que numa relação obrigacional há um número deter-minado (ou ao menos determinável) de pessoas envolvidas. Os credores e devedores são conhecidos, ou ao menos conhecíveis. Ao credor não é dado cobrar sua dívida de um estranho à relação obrigacional, e o devedor, por sua vez, não se verá desembaraçado de sua obrigação se pagar a outro que não àquele a quem deve (ou que pelo menos tenha poder de receber repre-sentando o credor).

Outro ponto crucial para entender as obrigações é a delimitação do seu objeto. Este nada mais é do que uma atividade do devedor, em prol do credor e essa atividade recebe a designação de prestação. As formas que essa prestação pode assumir são bem diversas14 e ensejarão diferentes classifi ca-ções das obrigações.

A própria experiência cotidiana mostra que as obrigações estão sujeitas ao inadimplemento, sendo que este, em certos ramos da atividade econômica, é demasiadamente grande. Nesses casos, o direito resguarda o credor de ver a sua expectativa de satisfação inteiramente frustrada defi nindo que deverá o patrimônio do devedor responder, em última análise, pelo adimplemento.

É justamente a possibilidade de procurar no patrimônio do devedor a satisfação do crédito que faz com que essas vinculações jurídicas não sejam desacreditas. Contudo, nem sempre foi assim.

Na Antiguidade Clássica, por exemplo, o devedor respondia com o pró-prio corpo em face das obrigações assumidas, podendo ser submetido inclu-sive à situação de escravidão. Contudo, o direito tal qual hoje é concebido, embasado dentre outros princípios pelo da dignidade da pessoa humana,

14. Como será visto posteriormente, es-

sas prestações podem ser uma simples

entrega de um bem, uma conduta que

represente um agir (fazer), ou ainda

uma simples abstenção (não fazer).

Page 32: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 32

repele o uso da força física no intuito de compelir alguém a satisfazer uma obrigação assumida.

Embasando a idéia acima descrita, veja-se o exemplo acadêmico do pin-tor que assume a obrigação de pintar um quadro, mas depois se arrepende. Qual seria a solução para satisfazer quem o contratou? Não há como forçar o artista a pintar, pois é forte o embasamento constitucional no sentido de vedar o uso da força para consecução de tais intentos. No estudo da respon-sabilidade civil será observado que, nesse caso, a legislação reserva à parte prejudicada a possibilidade de recorrer ao judiciário demandando reparação por perdas e danos.

Outro elemento que deve ser destacado é o cunho pecuniário das obriga-ções, visto que o seu objeto sempre será um valor de natureza econômica. É certo que o direito pode até mesmo reservar, em certos momentos, uma especial consideração às obrigações de natureza exclusivamente moral, mas não sendo as mesmas dotadas de juridicidade, não podem ser inseridas no estudo das obrigações.

Igualmente não há que se pensar que as obrigações do direito de fa-mília–muitas vezes não propriamente pecuniárias – constituem forma de excepcionar a idéia de caráter econômico acima expressa. Cumpre apenas destacar que natureza jurídica dessa espécie de obrigações não convém ao tema ora abordado, devendo ser pormenorizadas no estudo do direito de família.

Contextualizando o direito das obrigações com a realidade das relações econômicas vivenciadas hoje, percebe-se que a sua pertinência se ressalta quando são analisadas as relações de consumo. Pode-se destacar como os principais fatores para essa situação os seguintes fatos: (i) a dinâmica do con-sumo é cada vez mais marcada pela publicidade, inclusive reconhecendo para esse artifício inegável teor contratual; e (ii) o fenômeno da massifi cação dos contratos, tendência hoje já consolidada e que ocorre quando os consumido-res simplesmente aderem a contratos já previamente redigidos (como no caso dos contratos bancários).

Certo é que em todas as atividades econômicas, da produção à distribui-ção de bens e serviços, imiscui-se o direito obrigacional.

Distinção entre direito das obrigações e direitos reais

Os direitos reais (ius in re) incidem diretamente sobre uma coisa ao passo que o direito obrigacional (jus ad rem), tem por objeto uma determinada pres-tação. Ambos têm, como se pode antever, um caráter patrimonial inerente.

No quadro esquemático a seguir pode-se visualizar algumas das principais distinções:

Page 33: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 33

DIREITOS REAIS DIREITOS OBRIGACIONAIS

Quanto ao objeto

Os direitos reais recaem so-bre uma coisa, geralmente um objeto corpóreo, apesar de serem admissíveis direitos reais em relação a bens ima-teriais.

O direito obrigacional recai essencialmente sobre rela-ções humanas.

Quanto à oponibilidade

O direito real é um direito absoluto sendo oponível pe-rante todos (erga omnes).

O direito obrigacional é re-lativo na medida em que a prestação só pode ser exigi-da do devedor da relação.

No que consiste o direito

Direito ao uso, gozo e fruição de bens.

Direito a uma ou mais pres-tações efetuadas por uma pessoa.

Extensão no tempo

Caráter de permanência.Caráter essencialmente tran-sitório, fadado à extinção.

Existência ou não de direito de seqüela

O direito real é absoluto, oponível contra todos e por conta disso, seu titular pos-sui o direito de seqüela, isto é, de perseguir o exercício do direito perante qualquer um que esteja de posse da coisa.

O direito de seqüela não exis-te no direito obrigacional. O credor não pode individu-alizar bens no patrimônio do devedor para garantir o regular adimplemento da obrigação. A garantia repre-sentada pelo patrimônio do devedor se manifesta de for-ma abstrata.

Enumerabilidade dos direitos

São numerus clausus, isto é, são somente aqueles assim enunciados pela lei.

Apresentam-se como um número indeterminado. Isso se deve ao fato de que as relações obrigacionais são infi nitas e dotadas de grande variabilidade.

Estrutura da Relação Obrigacional

A noção geral de obrigação foi examinada no tópico anterior. Trata-se do expediente jurídico mediante o qual surge o vínculo entre dois sujeitos–um ativo e ou outro passivo. Ao sujeito passivo compete cumprir a prestação a que está adstrito e agindo nesse sentido propiciará: (i) a sua liberação face ao credor; (ii) a extinção da própria obrigação onde está imerso.

Page 34: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 34

As relações obrigacionais não estão necessariamente fadadas ao sucesso, que se traduz com o cumprimento obrigação. O desejo do credor é que o devedor (sujeito passivo), satisfaça, de modo voluntário ou coativo, a presta-ção. Quando isso não se verifi ca, surge a possibilidade de se valer da sujeição do patrimônio do devedor. Contudo, devemos destacar que esta opção só vai aparecer em momento posterior, na execução coativa, com a intervenção do poder do Estado. Aqui observamos de forma clara os dois elementos essen-ciais da obrigação: o débito (debitum, Schuld, em alemão) e a responsabilida-de (obligatio, Haftung).

Na estrutura da obrigação, crucial é a existência de dois sujeitos. Um é o sujeito ativo, ou credor. É ativo no sentido de que titulariza o crédito. No pólo oposto está o sujeito passivo, ou devedor, obrigado ao exercício de uma determinada prestação – pela qual pode vir a responder pelo seu patrimônio no caso de inadimplemento (haftung).

A noção de determinabilidade também é outro traço das obrigações. Os sujeitos devem ser determináveis, embora possam não ser, desde o início, determinados. Não é necessário que desde a origem da obrigação haja indi-viduação precisa do credor e do devedor, mas não obstante, no momento da realização da obrigação os sujeitos devem ser conhecidos.

Um exemplo de indeterminação de sujeito na formação do vínculo obri-gacional ocorre na promessa de recompensa. Na promessa, o devedor é certo (quem fez a oferta), mas o credor é indeterminado, vindo a constitui-se aque-le que adimplir com os requisitos especifi cados.

Outro exemplo, dessa vez de indeterminação no pólo passivo, é o caso do adquirente de imóvel hipotecado que responde pelo pagamento da dívida – embora não tenha sido o devedor originário.

O objeto da relação obrigacional é a prestação–que constitui uma ativi-dade, uma conduta do devedor. É fundamentalmente um dar, um fazer ou um não fazer algo. A prestação é, portanto, a atividade do devedor em prol do credor, que se constitui no objeto imediato da obrigação. Há também um objeto mediato, que nada mais é do que um objeto material ou imaterial sobre o qual incide a prestação. Dessa forma, quando se refere ao objeto da presta-ção, está sendo enfocado o objeto imediato; quando se menciona o objeto da obrigação, a referência será o objeto mediato.

Por exemplo, na obrigação de pintar um quadro (obrigação de fazer), a prestação, ou objeto imediato, é o ato de pintar. O objeto mediato nada mais será do que a própria tela que consubstancia a ação realizada.

A prestação deve ser possível, lícita e determinável, sendo essas qualifi ca-ções incidentes seja em relação à prestação em si, objeto imediato, seja em relação ao objeto que corporifi ca a relação obrigacional, objeto mediato. A dinâmica segue a mesma observada por ocasião do estudo dos negócios jurí-dicos (art. 166, II, Código Civil).

Page 35: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 35

Tradicionalmente, sempre foi muito debatida a necessidade de que as obrigações manifestassem conteúdo patrimonial, apesar da legislação civilista expressamente não determinar essa característica. Mais coerente parece man-ter o foco, não na patrimonialidade, mas sim no real interesse do credor no cumprimento da obrigação, o qual pode não necessariamente estar direcio-nado à obtenção de alguma vantagem econômica.

Certas obrigações apresentam difi culdade de mensuração do caráter eco-nômico das prestações. Nesse sentido pode ser destacada a seguinte hipótese de alguém que doa imóvel para a Municipalidade, mas estabelece que ali de-verá ser instalado um parque público, com o encargo de que o mesmo tome o nome do doador. Quem exerce tal liberalidade não aufere vantagem pecu-niária, mas não se pode dizer que o caráter de obrigação está desnaturado.

Fontes das Obrigações

Fontes das obrigações são todos os atos jurídicos através dos quais nas-cem as obrigações. Essa matéria é essencialmente marcada pela construção da doutrina e dessa forma, há grande variação de entendimentos acerca de que elementos constituem fontes das obrigações.

No Direito Romano, as fontes das obrigações eram identifi cadas como sen-do compostas pelos seguintes elementos: os contratos, os quase contratos, os delitos e os quase-delitos. O código francês, por sua vez, reproduziu essa enu-meração acrescentando o elemento lei. Essa classifi cação não foi reproduzida na atual sistemática do direito das obrigações no ordenamento jurídico pátrio.

No atual Código Civil, são fontes das obrigações o contrato, os atos uni-laterais e o ato ilícito. O enriquecimento sem causa e o abuso de direito tam-bém são abordados, sendo equiparados aos atos ilícitos.

Os contratos e as manifestações unilaterais de vontade são fontes das obriga-ções nas quais pode-se observar claramente a vontade humana como fonte direta.

O ato ilícito provém de situações onde estão presentes ações ou omissões marcadas pela culpa, seja culpa em sentido estrito, seja uma conduta dolo-sa. Deve-se observar a previsão no art. 186 do Código Civil ao dispor que: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, co-mete ato ilícito.

Por fi m, destaque-se o grande dissenso acerca da consideração da lei como fonte das obrigações. Em breve análise, pode-se dizer que todas as obrigações se balizam pela lei, não podendo confrontá-la, mas não necessariamente as obrigações surgiriam diretamente dela.

A necessidade da prática de certos atos que surge por força da lei não é sufi ciente para classifi cá-la como fonte, mesmo porque, em regra, esses atos são deveres jurídicos e não propriamente obrigações.

Page 36: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 36

AULA 6–AS OBRIGAÇÕES NATURAIS E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Obrigações civis – Obrigações naturais – Obrigações propter rem – ônus reais e obrigações propter rem.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 105/111.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Araújo, Bárbara Almeida de. “As obrigações propter rem”, in Gustavo Tepe-dino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 99/120.

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 285/304..

1. ROTEIRO DE AULA:

Obrigações Civis

Como visto nas seções anteriores, a obrigação desdobra-se numa perspec-tiva dupla: por um lado o débito, caracterizado pela necessidade de realizar uma determinada prestação. Por outro, existe a garantia, que corresponde à prerrogativa do credor de se valer dos meios legais no intuito de compe-lir o devedor a pagar. As obrigações dotadas desses elementos constitutivos, são chamadas de perfeitas ou obrigações civis. Contrapõem-se às obrigações naturais – que, grosso modo, podem-se denominar de incompletas. Diferem ainda das obrigações propter rem, que congregam elementos ora de direitos reais ora de obrigações civis.

Page 37: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 37

Obrigações Naturais

O estudo das obrigações naturais é dotado de certos particularismos. Segundo a visão de alguns autores, elas se colocam num caminho interme-diário entre o domínio moral e o campo jurídico. Não são de modo algum exclusivamente morais, pois fato inconteste é que o direito as confere não só efeitos, como também certa proteção jurídica – ainda que incompleta.

De premente importância é verifi car que a juridicidade da obrigação na-tural somente se manifesta no momento de seu cumprimento. Antes que esse ocorra, a obrigação natural, não sendo dotada de coercibilidade, encontra-se em estado de latência. A exemplo dos deveres morais, não pode ninguém demandar o seu cumprimento. Paradoxalmente, é no adimplemento da obri-gação – que corresponde concomitantemente ao momento de extinção–que surge a sua face jurídica.

Como já mencionado, as obrigações naturais são obrigações incompletas na medida em que apresentam como particularidade, o fato dos devedores não poderem ser judicialmente compelidos a pagar. Não obstante, se forem cumpridas espontaneamente, será tido por válido o pagamento, que não po-derá ser repetido (há retenção do pagamento, soluti retentio).

Não há que se equiparar obrigação natural com obrigação moral, que sen-do mero dever de consciência, não obtém tutela jurídica.

A distinção da obrigação natural em relação à obrigação civil está na não existência de coercibilidade por parte da primeira. Contudo, se o devedor, de forma livre e consciente, cumpre uma obrigação natural, o pagamento considera-se legal. O pagamento era devido, mas de cumprimento não coer-cível. Não há aqui que se falar em mover o Poder Judiciário para reaver o que houver sido pago porque esse pagamento era de fato devido.

A legislação não aborda em profundidade o tema das obrigações naturais, competindo à doutrina o estudo das suas características.

No estudo do tema, surge de partida uma indagação: é repetível, isto é, pode o devedor pedir de volta a quantia que tiver entregue, quando tal pagamento houver se operado com erro no que tange a coercibilidade dessa obrigação?

Em outras palavras: o devedor, se soubesse da não coercibilidade caracte-rística das obrigações naturais não teria pago; o fez por pensar que tratava-se de obrigação civil, que além de ser juridicamente exigível, encontra no pa-trimônio do devedor a garantia do seu cumprimento. Tendo cometido esse equívoco, pode repetir?

A espontaneidade ou não do pagamento nesse caso é irrelevante. A obri-gação natural é exigível, embora não dotada de coatividade. Dessa forma, se o devedor a adimplir, esse pagamento é válido, não havendo o que se falar em repetição.

A lei não minudencia os casos em que nos deparamos com obrigações na-turais, estando os mesmos esparsos na legislação. Grosso modo, podemos citar

Page 38: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 38

três casos onde se pode encontrar obrigações naturais: dívida prescrita, dívida de jogo e juros não estipulados.

Dívida Prescrita. Talvez seja a mais eloqüente das hipóteses de obrigação natural, sendo circunstância que se desenvolve desde os trabalhos do Direi-to Romano. Evitando dúvidas, o legislador manifesta expressamente o seu entendimento no art. 882 do CC, no qual opera equiparação entre dívida prescrita e obrigação natural:

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

Dívida de Jogo. Segundo dispõe o art. 883 do Código Civil, não terá di-reito a repetir aquele que deu alguma coisa para obter fi m ilícito ou não permitido pela legislação.

Percebe-se aqui a expressa aplicação do princípio de que a ninguém é dado benefi ciar-se da própria torpeza. Nesse sentido, a hipótese mais elu-cidativa é sem dúvida a de dívida de jogo. Não pode o devedor, nesse caso, ser obrigado ao pagamento, mas, uma vez o tendo efetuado, não pode o solvens recobrar o que voluntariamente foi pago, excepcionando-se no caso de dolo, ou se o prejudicado for menor ou interdito. Nesse sentido, o art. 814 do Código Civil:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

§ 1o Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva re-conhecimento, novação ou fi ança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.

§ 2o O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.

§ 3o Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o ven-cedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares.

De acordo com a redação do caput do art. 814, pouco importa que o jogo seja lícito ou ilícito, pois em qualquer uma das hipóteses se estará diante de uma obrigação natural. Contudo, há que se ressalvar que a existência de jogos que são regulamentados ou autorizados pelo próprio Estado. É o caso das loterias ofi ciais, o jogo semanal da loto e da loteria esportiva, as apostas de turfe, entre outros. Assim, pode-se verifi car a existência tanto de jogos proibidos, tolerados e autorizados.

Os jogos autorizados são aqueles caracterizados pela regulamentação ofi -cial, e não são abarcados pelo disposto no art. 814 caput. Se o próprio Estado regula a atividade, cria uma obrigação civil com toda a sua exigibilidade.

Page 39: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 39

Juros não estipulados. Sob a égide do antigo código, a obrigação de pagar juros não convencionados era inexigível, e quando realizada, poderia ser reti-da. O atual código de 2002, em seu artigo 591, alterou a regra:

Art. 591. Destinando-se o mútuo a fi ns econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

Sendo assim, somente nos empréstimos sem fi ns econômicos o pagamen-to voluntário de juros não convencionados constituirá obrigação natural.

Obrigações propter rem

A distinção entre direitos reais e obrigacionais é um expediente que serve muito mais para fi ns teóricos do que para aplicação pratica dos profi ssionais jurídicos. Todavia, cumpre observar que essas diferentes modalidades de di-reitos constantemente se relacionam. Não são universos de todo apartados e, nesse sentido, pode-se perceber situações onde o proprietário torna-se sujeito de obrigações somente por ser proprietário.

Um exemplo de obrigação propter rem é a necessidade de arcar com as despesas condominiais de imóveis, conforme dispositivo constante do artigo art. 1315 do Código Civil.15 A obrigação se vincula àquele que detém a pro-priedade e não permanece com o mesmo no caso, por exemplo, de alienação do bem. O novo proprietário é quem arcará com as cotas vincendas, inclusive com aquelas que mesmo vencidas ainda não foram pagas.

Qualquer outro indivíduo que o suceda nessa posição de proprietário ou possuidor igualmente assumirá tal obrigação. Não obstante, o proprietário poderá liberar-se da obrigação no momento em que abdicar da condição de proprietário.

Analisando a etimologia da expressão propter rem percebe-se o conteúdo dessa obrigação: propter, como preposição signifi ca “em razão de”, “em vista de”. Trata-se, pois, de uma obrigação relacionada com a coisa (rem), uma obrigação que surge em vista dessa.

A obrigação propter rem contraria a espécie regular de obrigações. Nas obrigações civis, os sucessores a título particular não substituem em regra o sucedido em seu passivo. Já nas obrigações propter rem, o sucessor a título singular assume automaticamente as obrigações do sucedido, ainda que não saiba de sua existência. É o caso do adquirente de imóvel que deve arcar com todas as taxas condominiais em mora.

Ônus reais e obrigações propter rem

De forma sucinta, pode-se afi rmar que o ônus real é um gravame que recai sobre determinada coisa, restringindo o direito de um titular de um direito

15. Art. 1315 do Código Civil: O

condômino é obrigado, na proporção de

sua parte, a concorrer para as despesas

de conservação ou divisão da coisa, e a

suportar os ônus a que estiver sujeita.

Parágrafo único. Presumem-se iguais as

partes ideais dos condôminos.

Page 40: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 40

real. Diferentemente do dever, no ônus não há a fi gura da coatividade, po-dendo a parte interessada praticar o ato ou não, e nesse caso, sujeita-se a parte às suas conseqüências.

Outras diferenças podem ser apontadas, dentre podem ser destacadas as seguintes:

Ônus reais Obrigações propter rem

A responsabilidade pelo ônus real é li-mitada ao bem onerado, ao valor deste.

Na obrigação propter rem, o obrigado res-ponde com seu patrimônio, sem limite.

O ônus desaparece caso seja superado o seu objeto.

Os efeitos da obrigação real podem permanecer, ainda que desaparecida a coisa.

O ônus gera sempre uma prestação po-sitiva.

Já a obrigação propter rem pode surgir com uma prestação negativa.

2. QUESTÃO DE CONCURSO:

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)

40. João Carlos, proprietário de um apartamento, não efetua o pa-gamento das prestações condominiais há pelo menos 3 (três) anos, o que já foi inclusive objeto de discussão em algumas Assembléias. No entanto, antes que o condomínio praticasse qualquer ato relativo à cobrança das prestações em atraso, João alienou o imóvel a Maria Santos, sendo a escritura devidamente registrada no Registro Geral de Imóveis, para os devidos efeitos legais. Sabendo-se que, após um mês no apartamento, Maria foi citada em ação de cobrança proposta pelo condomínio, pode-se afi rmar que:

(a) a cobrança em face de Maria não é legítima, apesar de se confi gurar obrigação propter rem, pois todos os condôminos tinham ciência dos débitos antes da negociação do imóvel;

(b) a inércia do condomínio enquanto João estava no imóvel operou a remissão da dívida;

Page 41: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 41

(c) a prestação condominial é uma obrigação propter rem, sendo legíti-ma a cobrança

(d) João pode efetuar o pagamento extrajudicial, e entrar com ação de regresso contra Maria;

(e) Maria não terá que pagar, pois o Código Civil de 2002 alterou a natureza da obrigação condominial, tornando-a obrigação intuitu personae.

Gabarito: 40 (c)

Page 42: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 42

AULA 7–CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES DE DAR, FAZER E NÃO-FAZER

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Classifi cação das obrigações quanto ao objeto–Obrigação de dar e restituir coisa certa–Responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa na obrigação de dar coisa certa–Obrigações de fazer e não fazer

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Birenbaum, Gustavo. “Classifi cação: Obrigações de dar, fazer e não fazer”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitu-cional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 121/146.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 112/133.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 491/523.

1. ROTEIRO DE AULA:

Classificação das obrigações quanto ao objeto

Talvez a mais usual classifi cação das obrigações seja aquela que a divide em obrigações de dar, fazer e não fazer. Trata-se de uma classifi cação que tem em foco o objeto da relação obrigacional (prestação) para determinar o enqua-dramento de cada obrigação analisada.

Na terminologia romana clássica, a prestação podia consistir num dare, num facere ou ainda num praestare. O facere, que hoje equivaleria à obrigação de fazer, englobava em seu conceito o que atualmente se defi ne como obri-gação de não fazer.

A obrigação de dar indica o dever de transferir ao credor alguma coisa ou alguma quantia. A obrigação de fazer é aquela na qual o devedor se incumbe

Page 43: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 43

de praticar determinado ato, sendo essa ação a prestação. O objeto da obriga-ção é a própria prestação, ou seja, a realização de uma atividade. Por fi m, na obrigação de não fazer, deve o devedor se abster da prática de um determi-nado ato. Essa é uma conduta omissiva, ou seja, uma abstenção de praticar determinado ato.

As obrigações de dar e fazer são obrigações positivas, ao passo que as obri-gações de não fazer, marcadas pela necessidade de abstenção, são as obriga-ções negativas.

Obrigação de dar e restituir coisa certa

A noção contida na obrigação de dar pode parecer bastante simples, pois consiste, em linhas gerais, na entrega de uma coisa. Contudo, há certos ca-racteres que devem ser ressaltados, em especial, a distinção existente entre o nosso sistema jurídico e outras opções legislativas estrangeiras.

De acordo com a opção legislativa vigente, a obrigação de dar não importa na transferência efetiva da coisa, mas apenas num comprometimento de sua entrega. Isso refl ete uma reminiscência do Direito Romano onde a obrigação de dar refl etia apenas um crédito e não um direito real.

É importante compreender que a obrigação de dar gera apenas um direito à coisa e não exatamente um direito real. No nosso sistema jurídico, para que se aperfeiçoe a propriedade quando derivada de uma obrigação, mister se faz a transcrição do título no Registro de Imóveis (quando se tratar de bem imó-vel), ou a tradição16 da coisa (quando o bem objeto da prestação for móvel).

No entanto, como lembra Silvio Venosa, as constantes reformas pelas quais passou o sistema de direito processual pátrio constituíram um verda-deiro elenco de medidas constritivas para o adimplemento coercitivo de obri-gações, como medidas cautelares, antecipações de tutela, multas diárias ou periódicas, aproximando muito os efeitos de direito obrigacional aos efeitos de direito real.17

Em sistemas estrangeiros, como o italiano e o francês, a obrigação de dar cria por si só um direito real, isto é, importa na transferência da propriedade.

Como já pode ser constatado, o verbo “dar” deve ser entendido como o ato de entregar. Dar coisa certa é, portanto, entregar uma coisa determinada, perfeitamente caracterizada e individuada, diferente de todas as demais da mesma espécie. Esse entendimento foi expressamente enunciado no art. 313 do atual Código Civil:

Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devi-da, ainda que mais valiosa.

Tendo em vista esse enunciado, verifi camos que o credor não é obrigado a receber prestação outra que não a que lhe é devida. O fato dessa prestação, do

16. O vocábulo tradição aqui é usado em

sentido técnico-jurídico representando

o ato de entregar a coisa, ato esse

que segundo nosso sistema jurídico,

transfere a propriedade de um bem

móvel.

17. Silvio Venosa. Direito Civil, v. 2. São

Paulo: Atlas, 2004; p. 83.

Page 44: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 44

bem oferecido ou do ato que se intenta realizar, ser ainda mais valioso, nada infl ui nessa faculdade do credor. Ainda que não estivesse expressamente previs-to, esse princípio, segundo regras gerais do direito, seria plenamente aplicável.

A obrigação de restituir se processa de forma semelhante, diferenciando-se pelo fato de que o credor receberá aquilo que já lhe pertence.

O princípio da acessoriedade é plenamente aplicável às obrigações de dar coisa certa (art. 233 CC) e deve ser entendido em conformidade com o artigo 237:

Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.

Art. 237. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação.

Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pen-dentes.

Nesse particular, a preocupação da lei abrange também os acessórios de natureza incorpórea. Trata-se do exemplo no qual o alienante de uma deter-minada coisa responde pela evicção da mesma.

Responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa na obrigação de dar coisa certa

No estudo da responsabilidade pelas hipóteses de perda ou deterioração da coisa, de grande relevância é precisar-se o momento da tradição da mesma.

Perda é o desaparecimento completo da coisa para fi ns jurídicos. É o caso da destruição por incêndio ou a ocorrência de furto. Em suma, qualquer hipótese na qual se verifi ca a indisponibilidade completa do objeto na sua acepção patrimonial.

O elemento mais importante no estudo da responsabilidade é a aferição da existência ou não de culpa por parte do devedor. Em todas as hipóteses em que o mesmo agir de alguma forma que implique em culpa de sua parte surgirá a necessidade de indenização por perdas e danos.

A perda da coisa antes da tradição está regulada no art. 234 do Código Civil, o qual assim dispõe:

Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do deve-dor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fi ca resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.

Se o bem se perde antes do momento aprazado para a entrega, como no exemplo do cavalo que morre no pasto quando vitimado por um raio, há o

Page 45: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 45

fi m da obrigação sem qualquer forma de ônus para as partes. Logicamente, se o bem destruído já tiver sido pago, ou tiver havido qualquer forma de adian-tamento de valor, o mesmo deverá ser devolvido com a atualização monetá-ria. Isso é corolário lógico do princípio que veda o enriquecimento ilícito.

A parte fi nal do art. 234 menciona que resultando a perda por culpa do devedor, responderá o mesmo pelo equivalente, mais perdas e danos. Nesse caso, deve-se ressaltar o disposto no art. 402 do CC.18

Voltando ao exemplo acima suscitado, se ao invés de vitimado por um raio o cavalo viesse a perecer por culpa do devedor, surgiria a necessidade do culpado pagar o valor do animal acrescido de eventuais perdas e danos. Essas perdas e danos abarcariam o montante de prejuízo decorrente do não recebimento de bem por parte do credor. Esse prejuízo não pode enveredar pelo campo da abstração, mas, pelo contrário, deve ater-se ao prejuízo que pode efetivamente ser comprovado. Nesse sentido, poderia o credor alegar prejuízo pela impossibilidade de utilizar o animal na função de reprodutor, na apresentação em exposições, ou na revenda do mesmo.

Obrigação de dar coisa incerta

A obrigação de dar coisa incerta implica na entrega de quantidade de certo gênero, e não na de uma coisa individualizada. O art. 243 do Código Civil, sobre o tema, esclarece que:

Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade.

Incerteza aqui não implica em indeterminação, mas sim, como alude o art. 243, numa determinação feita de modo genérico. Como exemplo de en-trega de coisa incerta, pode-se citar: a entrega de duzentos quilos de ouro, ou ainda de trezentos livros de direito civil, de mesmo título, do mesmo autor e da mesma edição.

A obrigação de dar coisa incerta se caracteriza pela existência de um mo-mento que antecede à entrega da coisa, momento esse denominado concen-tração. Ele corresponde à escolha da coisa que vai de ser entregue, e a partir dele a obrigação será regida pelas regras da obrigação de dar coisa certa. Dessa forma podemos observar a transformação da obrigação de dar coisa incerta, de caráter marcadamente genérico, em obrigação de dar coisa certa, que é uma obrigação específi ca.

A obrigação de dar coisa incerta é, em tese, mais favorável ao devedor, uma vez que a obrigação corresponde a da entrega de uma coisa ou um conjunto delas tendo em vista o seu gênero. O objeto das obrigações de dar coisa in-certa é constituído por coisas fungíveis.

Por outro lado, nas obrigações de dar coisa incerta, a responsabilidade quanto ao perecimento da coisa também será maior para o devedor: Enquan-

18. O art. 402, que trata das perdas e

danos, possui a seguinte redação: Art.

402. Salvo as exceções expressamente

previstas em lei, as perdas e danos

devidas ao credor abrangem, além do

que ele efetivamente perdeu, o que

razoavelmente deixou de lucrar.

Page 46: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 46

to na obrigação de dar coisa certa, a perda da coisa sem culpa do devedor de-riva na resolução da obrigação, na obrigação de dar coisa incerta a prestação ainda será devida. A razão disso é a aplicação da regra genus nunquam perit (o gênero nunca perece antes da escolha). Essa regra é destacada no art. 246 do Código Civil:

Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito.

Em relação à escolha, ou seja, o momento de concentração da obrigação, o art. 245 dispõe que:

Art. 245. Cientifi cado da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente.

Em síntese: a obrigação de dar coisa incerta perdura até o momento de es-colha. Até esse momento, a obrigação tinha em vista o gênero e a quantidade da coisa objeto da prestação. Depois da escolha, esse objeto é individuado, especifi cado. A obrigação transmuda-se para uma obrigação de dar coisa certa e, como tal, deve ser pautada pelas regras da seção antecedente.

Ressalte-se que essa escolha da obrigação obedece a determinados critérios constantes dos artigos 244 e 245 do Código Civil. A faculdade de realizar a escolha deverá ser decidida pela convenção entre as partes, mas no silêncio destas, competirá ao devedor.

As obrigações de dar coisa incerta têm por objeto coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade. Pode ocorrer, no entanto, que sendo essas coisas de existência restrita, toda a espécie dentro da qual a obrigação esteja inserida venha a se extinguir. Nesse caso, não obstante a falta de previsão legal, a dou-trina converge no sentido de dissolução da obrigação sem que o devedor seja responsabilizado por perdas e danos.

Obrigações de fazer e não fazer

A obrigação de fazer importa numa atividade do devedor. O conteúdo dessa obrigação é uma atividade, seja ela eminentemente física ou intelectual. Da mesma forma que a obrigação de dar, trata-se de uma obrigação positiva.

Essa obrigação de fazer pode ser contraída tendo em vista a fi gura do deve-dor, não se admitindo que outro a realize. Isso se daria, por exemplo, quando o devedor fosse um artista famoso e estivesse obrigado a pintar um quadro. Não prestaria o quadro de qualquer pessoa, mas sim o daquele artista que congrega características a ele inerentes.

Essa regra redunda da dicção do art. 247 do Código Civil, que determina:Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar

a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.

Page 47: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 47

Essas são as obrigações de fazer de natureza infungível, também conheci-das como intuitu personae. De acordo com elas, a obrigação é assumida tendo em vista a fi gura do devedor e este não pode ser substituído. Essa impossibi-lidade deriva tanto da natureza da obrigação, como no exemplo do pintor do quadro, como da livre convenção das partes, quando mesmo havendo outras pessoas que poderiam executar a mesma tarefa, acertam os contratantes no sentido da impossibilidade de substituição do devedor.

Na ausência de convenção, compete analisar o caso concreto para se veri-fi car a existência ou não desse caráter intuitu personae.

Em havendo impossibilidade da execução por terceiro de obrigação fungí-vel, o art. 249 enuncia a seguinte regra:

Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indeni-zação cabível.

Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de au-torização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

A distinção entre as obrigações de dar e de fazer pode se mostrar, certas vezes, de difícil apreciação. O critério mais usual é verifi car se esse dar é ou não conseqüência direta da obrigação de fazer.

Se o devedor deve previamente confeccionar o bem para então entregá-lo, está-se diante de uma obrigação de fazer. Se por outro lado, o ato de constru-ção, anterior a entrega do bem, não fi ca a cargo do devedor, trata-se de uma obrigação de dar.

A questão da coatividade no caso de inadimplemento não deixa de ser ou-tro fator diferenciador. As obrigações de dar autorizam, em regra, a execução coativa, ao passo que o mesmo não ocorre nas obrigações de fazer. Por conta de uma série de valores encampados pelo ordenamento, os indivíduos não podem ser compelidos a executar atividades contrariamente a sua vontade. Não pode o Estado intervir diretamente compelindo o devedor a prestar, podendo valer-se somente de meios indiretos, como cominação de multa ou a condenação do devedor a arcar com perdas e danos.

As obrigações de fazer podem então ser descumpridas atentando-se a três situações distintas:

(i) Quando a prestação se torna impossível, por culpa do devedor;(ii) Quando a prestação se torna impossível, sem culpa do devedor; e(iii) Quando o devedor se recusa ao cumprimento da obrigação.

A dinâmica de cumprimento da obrigação assume novos contornos com as recentes alterações no código de processo civil, em especial as modifi cações que surgiram nos arts 273 e 461 do CPC, e que colocam à disposição do juiz uma série de instrumentos voltados à execução especí-

Page 48: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 48

fi ca da obrigação assumida, como a cominação de multa diária em virtude do descumprimento.

As obrigações de não fazer são obrigações negativas. Segundo essas obriga-ções, o devedor se compromete a manter uma abstenção.

O devedor se compromete a não praticar determinada atividade que, sob condições normais, não encontraria qualquer restrição. Vale destacar que a necessidade de licitude, inerente a todos os negócios jurídicos, assume aqui uma dimensão particular: a obrigação de não fazer não pode atentar contra a liberdade individual. Dessa maneira, ilícita é a obrigação de não contrair ma-trimônio, de não gerar descendentes, de não professar determinada religião.

Como exemplos de obrigações de não fazer podemos destacar a obrigação do vizinho em não usar aparelhos sonoros em volume alto, de não bloquear servidão a imóvel, de não sublocar, de não revelar segredo industrial, en-tre outros. Um exemplo bem interessante é a cláusula de raio que consiste na estipulação entre vendedor e comprador, mediante a qual o alienante se compromete a não abrir negócio do mesmo ramo nas proximidades. Essa matéria será analisada na aula sobre o princípio da autonomia da vontade nos contratos.

Vale ressaltar que é justamente a abstenção da prática de uma atividade, a qual de outra forma seria plenamente admissível, que representa o cumpri-mento dessa modalidade de obrigação. O devedor cumpre a obrigação a todo momento, sempre que pode executar a ação especifi cada, mas não faz.

O art. 250 determina uma hipótese de extinção desse tipo de obrigação, defi nindo que:

Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.

Na hipótese aqui destacada o devedor dá ensejo à prática do ato pela im-possibilidade de abster-se da conduta. Não há culpa na prática desse ato. Por outro lado, se a situação é diversa, e o devedor culposamente enseja a execução da ação a qual devia abster-se, deverá arcar com perdas e danos face ao credor.

2. QUESTÃO DE CONCURSO:

Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005)–prova azul

30. Quando se impossibilita a abstenção do fato, sem culpa do devedor, a obrigação extingue-se. Tal hipótese ocorre nos casos de obrigação:

(a) de não fazer;(b) de fazer;

Page 49: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 49

(c) de dar coisa incerta;(d) extintiva;(e) alternativa.

Gabarito: 30 (a)

Page 50: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 50

AULA 8–CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES INDIVISÍVEIS, SOLIDÁRIAS E ALTERNATIVAS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Obrigações Divisíveis e Indivisíveis–Pluralidade de Credores e Devedores–Indivisibilidade e Solidariedade–Solidariedade Ativa – Solidariedade Passiva–Obrigações Cumulativas e Alternativas–Concentração e cumprimento da obriga-ção alternativa–Obrigações Facultativas–Obrigações Principais e Acessórias

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 134/166.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Sampaio da Cruz, Gisela. “Obrigações alternativas e com faculdade alter-nativa. Obrigações de meio e de resultado”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Re-novar, 2005; pp. 147/168.

Zangerolame, Flavia Maria. “Obrigações divisíveis e indivisíveis e obrigações solidárias”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 181/210.

1. ROTEIRO DE AULA:

Obrigações Divisíveis e Indivisíveis

Nem sempre as obrigações se apresentam de forma singularizada. Nas cha-madas obrigações complexas, por exemplo, pode-se identifi car a pluralidade de credores ou de devedores, ou ainda a pluralidade de objetos da prestação.

Ao qualifi car as relações obrigacionais quanto à divisibilidade (divisíveis ou indivisíveis) deve-se ter em mente os seguintes critérios: (i) divisíveis são as obrigações passíveis de cumprimento fracionado; (ii) indivisíveis são as obrigações que só podem ser cumpridas em sua integralidade.

A noção de indivisibilidade se encontra na própria lei, expressa através do art. 258 do Código Civil:

Page 51: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 51

Art. 258. A obrigação é indivisível quando a prestação tem por objeto uma coisa ou um fato não suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem econô-mica, ou dada a razão determinante do negócio jurídico.

Logicamente, considerado sob o aspecto material, tudo pode ser fraciona-do. Contudo, na acepção jurídica, a obrigação é considerada divisível quando as partes fracionadas conservam as mesmas propriedades outrora encontradas no todo, notadamente o seu valor econômico. Em certa obrigação que foi dividida, o valor da soma de cada uma das frações deve ser semelhante ao valor do todo.

Imagine-se o seguinte exemplo: um cavalo é um bem indivisível e, por-tanto, a obrigação de entregar um determinado cavalo (obrigação de dar) também não pode ser fracionada; por outro lado, a obrigação de entregar du-zentas sacas de arroz pode ser perfeitamente dividida. Nesse segundo exem-plo, a entrega de cem sacas de cada vez não implicaria diminuição do valor econômico atribuível ao todo.

O exemplo do cavalo, suscitado acima, é um caso de indivisibilidade ma-terial. Decorre da própria natureza do objeto envolvido na prestação. Em outros casos, a indivisibilidade pode resultar de força da lei, sendo jurídica ou mesmo da convenção entre os contratantes, quando será convencional.

A indivisibilidade jurídica pode se manifestar da seguinte forma: do ponto de vista fático, todo imóvel é passível de fracionamento, mas a lei pode criar restrições de zoneamento proibindo que um imóvel seja dividido de forma a se alcançar metragem inferior a um determinado parâmetro.

Em outros casos, é a vontade das partes que pode tornar o objeto de uma prestação, que de início é perfeitamente divisível–como a obrigação de entre-gar uma tonelada de soja–em indivisível. Nesse caso, a vontade das partes se manifestou no sentido de que a obrigação só poderá ser cumprida por inteiro. Essa possibilidade é enunciada, inclusive, através da redação do art. 314 do Código Civil, sendo decorrência lógica da noção de que o credor não é obri-gado a receber de forma diversa do estipulado.

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

A par das considerações aqui já traçadas, inclusive a da enunciação expres-sa da lei acerca da noção de indivisibilidade, deve-se buscar auxílio nos artigos 87 e 88 do Código Civil para a defi nição precisa da idéia de indivisibilidade.

Art. 87. Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua subs-tância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam.

Art. 88. Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por deter-minação da lei ou por vontade das partes.

Page 52: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 52

O cerne do conceito de indivisibilidade reside na possibilidade ou impos-sibilidade de fracionamento do objeto da prestação. Adicionalmente, não basta só essa consideração quanto à viabilidade da divisão, mas se requer, igualmente, a visualização de uma pluralidade de sujeitos, pois do contrário não haverá sentido em se realizar essa distinção.

Pluralidade de Credores e Devedores

A pluralidade de devedores ou de credores é matéria tratada, inicialmente, no art. 257 do Código Civil, da seguinte forma:

Art. 257. Havendo mais de um devedor ou mais de um credor em obrigação divisível, esta presume-se dividida em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos os credores ou devedores.

Nesse dispositivo a lei opera a presunção de que a obrigação se divide quando se dá a pluralidade de agentes em um ou em ambos os pólos da re-lação. Quando, ao contrário, verifi ca-se a existência de um só credor e um só devedor, tem-se a necessidade de que a obrigação se realize de uma só vez, excetuando-se os casos em que as partes acordaram o pagamento fracionado.

Na pluralidade de devedores, quando a prestação for indivisível, isto é, quando não puder ser fracionada sob pena de se desnaturar o seu valor econô-mico, será manejada a solução prevista pelo art. 259, caput, do Código Civil:

Art. 259. Se, havendo dois ou mais devedores, a prestação não for divisível, cada um será obrigado pela dívida toda.

Parágrafo único. O devedor, que paga a dívida, sub-roga-se no direito do credor em relação aos outros coobrigados.

O parágrafo único dispõe sobre situação que será pormenorizada mais adiante, no estudo dos efeitos da sub-rogação. Por ora, vale destacar que sub--rogação, nesse caso, é um expediente jurídico mediante o qual o devedor que pagou assumirá a posição de credor em relação aos demais devedores. Conforme será examinado mais adiante, a sub-rogação constitui uma das modalidades especiais de pagamento.

Nesse caso de pluralidade no pólo passivo em obrigação cuja prestação é indivisível, embora cada um dos devedores deva apenas fração da obrigação, a sua liberação está condicionada à entrega do todo.

Na situação em que dois devedores comprometem-se a entregar um deter-minado veículo não é possível o fracionamento. Um deles entregará o veículo em sua totalidade, sub-rogando-se no direito de demandar do outro devedor o valor referente à parte desse devedor que não entregou diretamente o bem.

Os devedores podem tanto ser responsáveis pela prestação em par-tes iguais ou em qualquer outra proporção fi xada quando da pactuação

Page 53: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 53

do negócio jurídico. O negócio jurídico deve ser sempre examinado de modo a se identifi car que parte compete a cada indivíduo na partição da dívida. Igual raciocínio deve ser empregado na abordagem do art. 261 do Código Civil.

Adicionalmente, se ao contrário, a prestação indivisível for devida a uma pluralidade de credores, abrir-se-á a possibilidade de cada um deles deman-dar a integralidade da dívida. Nesse sentido, dispõem os arts. 260 e 261 do Código Civil:

Art. 260. Se a pluralidade for dos credores, poderá cada um destes exigir a dívida inteira; mas o devedor ou devedores se desobrigarão, pagando:

I–a todos conjuntamente;II–a um, dando este caução de ratifi cação dos outros credores.Art. 261. Se um só dos credores receber a prestação por inteiro, a cada um dos

outros assistirá o direito de exigir dele em dinheiro a parte que lhe caiba no total.

A obrigação é una e indivisível. O devedor paga por inteiro, dado que o fracionamento implicaria no perecimento da coisa. Pagará a um credor que igualmente se obriga a repassar aos outros o quinhão respectivo. Essa é a teleologia do art. 261. Aqui também deve se examinar o negócio jurídico para saber qual a parte que incumbe a cada credor, presumindo-se a partição eqüitativa no caso de omissão.

Outra hipótese peculiar é o caso de remissão da dívida por parte de um dos credores. Ela vem regulada pelo art. 262 CC:

Art. 262. Se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não fi cará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.

Parágrafo único. O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compensação ou confusão.

A remissão da dívida por parte de um credor signifi ca que o mesmo abriu mão do seu cumprimento. No entanto, quando a prestação é indivisível os demais credores não podem ser prejudicados. Nesse caso, a dívida deve ser paga aos credores não remitentes, mas estes, ao exigi-la, devem descontar a quota remitida.

A conversão de uma obrigação em perdas e danos implica na perda do seu caráter de indivisível:

Art. 263. Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em per-das e danos.

§ 1o Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, responderão todos por partes iguais.

§ 2o Se for de um só a culpa, fi carão exonerados os outros, respondendo só esse pelas perdas e danos.

Page 54: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 54

Se a indenização tiver sido motivada por culpa imputável a todos os de-vedores, responderão eles por partes iguais (§1º). Por outro lado, se a culpa for de um só, apenas este responderá por perdas e danos (§2º). Destaque-se, evidentemente, que pelo valor da prestação responderão todos.

Outro ponto que merece destaque é a questão da prescrição. Ela aproveita a todos os devedores, mesmo que seja reconhecida a apenas um deles; da mesma forma, sua suspensão ou interrupção aproveita ou prejudica a todos. Na mesma linha, certo é afi rmar que qualquer ato defeituoso em relação a uma das partes danifi ca o ato com relação aos demais integrantes da relação obrigacional.

Indivisibilidade e Solidariedade

Há necessidade de se esclarecer as principais distinções entre os institutos da indivisibilidade e da solidariedade, uma vez que existe, na prática, certa confusão sobre a sua identifi cação e efeitos:

OBRIGAÇÕES INDIVISÍVEIS OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS

Quanto à causa

A causa geralmente resulta da na-tureza da prestação. Pode, entre-tanto, resultar da convenção das partes.

A causa reside no próprio tí-tulo, no vínculo jurídico.

Quanto à parte devida

O demandado não é devedordo total, mas a natureza da pres-tação não admite o cumprimento fracionado.

O demandado é devedor do total.

Derivações da natureza

A indivisibilidade geralmente é objetiva na medida em que decor-re na natureza da prestação.

A regra é que a solidariedade seja subjetiva. É artifício jurí-dico para reforçar o vínculo e facilitar o adimplemento da obrigação.

É de origem material.É de origem técnica. Decorre da lei ou do título constituti-vo (art. 265).

Conversão em perdas e danos

Quando se converte em perdas e danos, desaparece a característica de indivisibilidade (art. 263).

Quando se converte em per-das e danos o atributo da soli-dariedade permanece.

Page 55: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 55

Obrigações Solidárias

A solidariedade é um expediente de ordem técnica que tem por esco-po reforçar o vínculo, facilitando o adimplemento da obrigação. Em linhas gerais implica na possibilidade de reclamar a totalidade da prestação. Ela pode estar em qualquer um dos pólos da obrigação e dessa forma, temos a solidariedade ativa–solidariedade de credores -, e a solidariedade passiva – solidariedade de devedores.

A solidariedade não deriva da natureza das prestações, mas sim da vontade das partes ou da lei. Sendo assim, solidariedade não se presume. A sua carac-terização deriva do disposto no art. 264 do Código Civil:

Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.

Não se deve confundir solidariedade com certas situações em que dois ou mais agentes devem arcar integralmente com a prestação. São exemplos disso: a responsabilidade concomitante do condutor do veículo e de seu proprietá-rio que respondem pela totalidade da indenização; os coobrigados nos títulos de crédito; a possibilidade de demandar tanto do autor do incêndio como da seguradora.

Esses são exemplos das chamadas obrigações in solidum, que possuem como características gerais: (i) a independência dos liames que unem os deve-dores ao credor – o que implica independência no que toca à prescrição; (ii) o fato de interpelar um dos devedores não implica na constituição em mora dos outros; (iii) a remissão de dívida feita não aproveita aos outros devedores; (iv) nas obrigações in solidum, os valores devidos por cada devedor podem ser diferentes (caso da seguradora que está obrigada a suportar apenas até o limite do valor segurado).

Inegavelmente, a idéia mais relevante é independência entre os motivos constitutivos do vínculo (liames). Como corolário dessa constatação, pode-se identifi car as outras características.

Conforme o observado, nas obrigações solidárias destacam-se duas carac-terísticas preponderantes: (i) unidade de prestação; (ii) pluralidade e inde-pendência do vínculo.

A prestação é uma só, é a mesma para todos os devedores. No caso da solidariedade passiva (de devedores), todos, por força de convenção ou da lei, podem ser demandados pelo todo. Como devem apenas uma cota-parte, ao arcarem com a totalidade do débito, sub-rogam-se na posição do credor.

A mesma lógica segue a solidariedade ativa (de credores). Ela é também instituída legalmente ou mediante acordo, podendo qualquer dos credores receber o todo, devendo, posteriormente, distribuir aos demais credores o quinhão respectivo.

Page 56: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 56

Essas são as linhas gerais da solidariedade. A prestação é única, é a mesma para todos, embora o quantum realmente devido represente apenas uma fra-ção dessa prestação. A solidariedade, que deriva da lei ou da anuência entre as partes, só é possível na medida em que haja pluralidade de vínculos e in-dependência entre os mesmos.

A pluralidade de vínculos pode ter, como conseqüências, a oposição de elementos acidentais (condição, termo ou encargo) para apenas um ou al-guns dos devedores (art. 266 do Código Civil).

Ainda, outro efeito que se pode destacar é que se um dos vínculos for marcado pela invalidade, por conta da incapacidade de um dos credores, não há que se falar que os demais vínculos estejam maculados.

O art. 265 do Código Civil afi rma que:Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

Esse enunciado proclama o caráter de exceção das obrigações solidárias fi cando elas restritas às previsões da lei ou do pacto entre as partes. Não exis-tindo essa previsão, manifesta de forma expressa, há de prevalecer presunção de não existência da solidariedade.

Havendo dúvidas, a interpretação deve se dar a favor dos devedores, im-plicando logicamente na inexistência de solidariedade, visto que se trata de expediente benéfi co ao credor, na medida em que maximiza as possibilidades de recebimento da prestação.

A solidariedade não pode ser resultante da sentença. Não obstante a céle-bre frase, oriunda de brocardo latino, de que a sentença faz lei entre as partes, a mesma se limita a declarar o direito das partes não podendo instituir solida-riedade – que não esteja prevista em lei ou contrato. Nada obsta, entretanto, que surja uma obrigação in solidum.

No que toca ao ônus probatório, compete a quem alega a solidariedade provar a sua existência – excetuando-se os casos de solidariedade legal.

Solidariedade Ativa

É aquela em que se verifi ca a existência de mais de um credor, sendo facul-tado a cada um deles cobrar a dívida por inteiro. Do pondo de vista prático, a sua importância é reduzida, limitando-se a servir de mandato para o recebi-mento de crédito comum. Os exemplos são (i) a abertura de conta corrente bancária em nome de duas ou mais pessoas, com a faculdade de operarem separadamente, ou (ii) o aluguel de cofres de segurança, contanto que o mes-mo possa ser aberto por qualquer um dos titulares.

Apesar de menos comum, essa modalidade de obrigação representa algu-mas vantagens, pois os credores solidários podem exigir, individualmente, a totalidade da dívida (art. 267); e cada um dos devedores – havendo plura-

Page 57: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 57

lidade nesse pólo da relação jurídica – desincumbe-se ao pagar a qualquer dos credores.

Há uma clara facilitação no pagamento nesse expediente (art. 269). Esse mesmo dado, sob outra perspectiva, pode representar um inconveniente, na medida em o credor que recebe a prestação libera o devedor, dando-lhe qui-tação. Os outros credores terão agora que se entender com esse devedor que recebeu o pagamento. Essa matéria encontra-se regulada nos arts 267 a 274 do Código Civil.

Quando se está diante de uma situação de solidariedade ativa, a constitui-ção em mora feita por um dos co-credores aproveita a todos os demais.

Por outro lado, quando é o credor solidário constituído em mora, to-dos os demais credores serão atingidos pelos efeitos dela resultantes. O devedor se apresenta portando o pagamento, nas condições estabelecidas, e o oferece ao credor que se recusa a recebê-lo. Esse credor, ao ser cons-tituído em mora, estenderá aos demais a necessidade de arcar com juros, riscos de deterioração da coisa, bem como quaisquer outros efeitos pró-prios da mora.

De maneira semelhante ao que ocorre com a constituição em mora do de-vedor, a interrupção da prescrição feita por apenas um dos credores também benefi cia os outros. Essa é a regra do art. 204, § 1º do Código Civil:

Art. 204. A interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a interrupção operada contra o co-devedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados.

§ 1o A interrupção por um dos credores solidários aproveita aos outros; assim como a interrupção efetuada contra o devedor solidário envolve os demais e seus herdeiros.

A suspensão da prescrição, por sua vez, benefi ciará os demais credores solidários apenas no caso da obrigação ser indivisível. Essa regra encontra-se defi nida no art. 201 CC. Ainda, se um dos devedores renunciar à prescrição da obrigação em face de um dos credores, essa renúncia aproveitará a todos os demais.

No pagamento da obrigação solidária, pertinente é a regra do art. 268 CC, que defi ne que o devedor (ou devedores) no caso de solidariedade ativa, deve pagar àquele que primeiro lhe demandar. A faculdade de es-colher a quem realizar o pagamento perdura até que algum dos credores cobre a dívida.

Art. 268. Enquanto alguns dos credores solidários não demandarem o devedor comum, a qualquer daqueles poderá este pagar.

O art. 271 do Código Civil trata da conversão da obrigação em perdas e danos. Determina que a solidariedade subsista ainda que a obrigação seja convertida em perdas e danos, que é uma prestação essencialmente divisível.

Page 58: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 58

Art. 271. Convertendo-se a prestação em perdas e danos, subsiste, para todos os efeitos, a solidariedade.

Logicamente, o credor que recebe o pagamento de modo integral torna-se obrigado a prestar contas aos demais, repassando-os o valor que compete a cada um deles (art. 272 do Código Civil).

Solidariedade Passiva

Como visto, solidariedade passiva é aquela que obriga todos os devedores ao pagamento total da dívida. Apresenta uma importância bem mais con-siderável do que a solidariedade ativa, em especial devido ao seu caráter de reforço ao vínculo jurídico.

O risco de insatisfação do credor é reduzido de forma signifi cativa, visto que o inadimplemento ocorreria apenas na hipótese de todos os devedores tornarem-se insolventes.

O art. 277 do Código Civil trata do pagamento parcial e da remissão de dívida:

Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada.

Se o credor já obteve satisfação parcial da dívida, não há razão para exigir dos demais o cumprimento integral da mesma. Esse pagamento parcial foi condicionado à concordância do credor, que aceitou, defi nitiva ou momen-taneamente, receber apenas parte do que teria direito. Nesse caso, os demais devedores são apenas obrigados a pagar o saldo e não mais a obrigação em sua integralidade.

A remissão de dívida se processa da mesma forma, pois o perdão concedi-do a um dos devedores não desonera aos demais, que continuam vinculados pela obrigação. A diferença é que o montante agora devido será referente à exclusão ao valor inicial menos o quantum remitido.

Se um devedor solidário estabelece, sem a concordância dos demais, algu-ma nova obrigação desvantajosa, poderá apenas ele fi car por ela obrigado. O art. 278 dispõe expressamente acerca dessa vedação à oneração dos demais devedores sem o consentimento dos mesmos.

No que concerne à extinção da obrigação solidária, pode-se observar as seguintes situações: (i) na extinção da obrigação sem culpa dos devedores, a dívida será extinta para todos; (ii) quando algum dos devedores incorre em culpa, a regra do art. 279 determina a permanência para os demais do encargo de pagar o equivalente, sendo que as perdas e danos serão atribuição do culpado:

Page 59: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 59

Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidá-rios, subsiste para todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.

Da mesma forma, se a impossibilidade de realizar essa prestação foi ve-rifi cada quando o devedor já era moroso, ele responderá pelo risco, sendo essa dicção encontrada também no art. 399 do Código Civil. Nesse sentido, pertinente ainda é examinar a regra do art. 280 do CC:

Art. 280. Todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta somente contra um; mas o culpado responde aos outros pela obrigação acrescida.

Destaque-se ainda a questão das exceções. O art. 281 dispõe sobre a solu-ção adotada:

Art. 281. O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as comuns a todos; não lhe aproveitando as exceções pessoais a outro co--devedor.

Tudo o que for referente à obrigação demandada poderá ser alegado por qualquer um dos devedores. Será possível que qualquer dos devedores le-vante, por exemplo, a questão da inexistência ou invalidade da obrigação, alguma vedação da lei a que ela se opere, ou mesmo a prescrição da mesma. Essas são defesas referentes a obrigação em si, e não relacionadas com algum devedor especifi cadamente considerado. Dessa maneira, as exceções gerais podem ser alegadas por qualquer dos devedores.

As exceções que forem particulares, denominadas de pessoais, próprias a um só dos devedores, não poderão ser alegadas pelos demais.

Obrigações Cumulativas e Alternativas

Nas obrigações conjuntivas ou cumulativas, como é fácil aferir pelo seu nome, mais de uma prestação é devida de forma cumulada. O credor tem o poder de exigir o cumprimento de todas elas, na medida em que todas são devidas.

Deve-se destacar a inexistência de um regime legal particularizado às obri-gações de objeto conjunto. As mesmas devem ser regidas pelos princípios gerais que norteiam o direito das obrigações.

Para melhor compreender a dinâmica da obrigação em questão, cum-pre ter em mente que o objeto composto que ela prevê vem destacado pela partícula aditiva e. Dessa forma, um exemplo de obrigação conjunta é a de entregar um carro e uma casa. A prestação é conjunta, congregando aqui a obrigação de dar duas coisas.

Page 60: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 60

Por outro lado, nas obrigações alternativas (ou disjuntivas) ao devedor com-pete a entrega de uma das coisas objeto da obrigação. O objeto não é único, mas o devedor se desobriga entregando um deles.

Diferentemente das obrigações cumulativas, essa modalidade de obriga-ção é dotada de um regime especial que corresponde aos arts. 252 a 256 do Código Civil. O objeto da obrigação aqui é ligado pela partícula ou: devemos um carro ou uma casa. Apenas uma das obrigações é devida.

Concentração e cumprimento da obrigação alternativa

No cumprimento das obrigações alternativas, é importante notar que o objeto, que é inicialmente é múltiplo, se torna individualizado num momento posterior. Após esse momento da individualização, a obriga-ção, outrora alternativa, se processa de forma semelhante a uma obriga-ção simples.

Adicionalmente, existe a outra dúvida: a quem compete a escolha da obri-gação devida? Ordinariamente, a escolha compete ao devedor, estando esse entendimento consubstanciado no art. 252, caput, mas nada obsta que o acordo de vontades entre as partes pode reservar essa faculdade para o credor. Aliás, o art. 252 do Código Civil baliza as regras referentes ao pagamento de obrigações alternativas.

Art. 252. Nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou.

Caso se verifi que dúvida na defi nição de a quem compete a escolha da obrigação, a mesma deve ser solucionada no sentido de favorecer o devedor. Essa é a regra geral, e ainda nos casos de dúvida, deve-se benefi ciar o devedor.

OBRIGAÇÕES FACULTATIVAS

O ordenamento pátrio, seguindo o exemplo da maioria das legislações estrangeiras, não se ocupa das obrigações facultativas. A obrigação facultati-va tem por objeto apenas uma prestação principal, no entanto possibilita a liberação do devedor uma vez que ele efetue o pagamento de outra prestação prevista em caráter subsidiário.

Como exemplo pode-se ilustrar a seguinte situação: um comerciante acor-dou na entrega de vinte caixas de laticínios, mas o contrato lhe possibilita liberar-se da obrigação mediante a entrega de cinquenta quilos de café. A obrigação principal é aquela inicialmente acordada, a primeira, qual seja, a entrega das caixas de laticínios. A prestação subsidiária tem, contudo, o con-dão de desincumbir o devedor.

Page 61: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 61

Obrigações Principais e Acessórias

O artigo 92 do Código Civil enuncia a relação de acessoriedade entre os bens:

Art. 92. Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessó-rio, aquele cuja existência supõe a do principal.

Para o direito obrigacional, transporta-se essa noção relativa aos bens, havendo assim, obrigações que nascem e existem de per se, mostrando absoluta independência em relação a outras. Não obstante, há obrigações que se apresentam agregadas, em estado de vinculação a essas obrigações principais, sendo taxadas por isso de obrigações acessórias. Sua existência está ligada à própria existência das obrigações principais, ou seja, extin-guindo-se uma obrigação principal, perecem consequentemente aquelas que lhe gravitam.

Em síntese, principal é aquela obrigação dotada de existência autônoma, independendo de qualquer outra. Já as obrigações acessórias são aquelas que não tem existência em si, dependendo de outra a que adere ou cuja sorte depende.

A relação entre obrigações acessórias e principais pode tanto decorrer da vontade das partes como da lei. Não há necessidade de nascimento conco-mitante, podendo as obrigações acessórias serem constituídas superveniente-mente e ainda em instrumentos jurídicos distintos. As obrigações acessórias podem ser referentes ao objeto ou decorrentes de situações subjetivas, e ainda derivar da previsão legal ou da convenção entre as partes.

Como exemplos de obrigações acessórias pode-se mencionar os direitos de garantia como a fi ança, (garantia pessoal) e o penhor e a hipoteca (garantias reais). As obrigações principais subsistem com perfeição ainda que essas fi gu-ras sejam dissolvidas. Mas não existe razão numa fi ança ou numa garantia de qualquer outra natureza, se não houver uma obrigação principal que lhe dê sentido, portanto, as obrigações acessórias perecem quando da ausência de uma obrigação principal.

A relação de dependência estabelecida entre acessória e principal produz grande gama de efeitos jurídicos, sendo eles decorrência da regra geral acesso-rium sequitur principale.

Por fi m, temos que obrigações acessórias não se confundem com cláusula acessória. Nesse sentido, cumpre transcrever a lição de Caio Mário:

“Há, contudo, distinguir “cláusula acessória” de “obrigação acessória”, em que a primeira pressupõe um acréscimo, sem a criação de obrigação diversa. Assim, se num contrato preliminar de compra e venda as partes estipulam a sua irretratabilidade, inserem uma cláusula que é acessória, por não fazer parte da natureza da promessa aquela qualidade, mas não constitui uma obrigação acessória, porque não implica uma obligatio a mais, aderente ao contrato, à

Page 62: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 62

qual o devedor esteja sujeito. Ocorre uma qualifi cação da mesma obrigação do promitente-vendedor e do promitente comprador. A distinção aqui feita não é meramente acadêmica, pois que a toma, em outro sentido, Alfredo Colmo, para mostrar que as cláusulas acessórias quando ilícitas carreiam a nulidade do direi-to principal, o que não é verdade quanto às obrigações acessórias, cuja inefi cácia deixa incólume a principal.” 19

2. CASO GERADOR:

Bernardo, Eduardo e Ricardo são três criadores de cavalos no interior de São Paulo. Embora trabalhem separadamente, o intercâmbio de cavalos entre as suas respectivas fazendas é intenso, sendo comum que dois, ou até mesmo os três, façam negócios em conjunto.

No início do ano, Luís, experiente investidor em leilões de bovinos e ca-valos, procurou os três em busca de renovação do seu plantel de cavalos. Empolgado com a qualidade apresentada pelos cavalos dos três criadores, e buscando se assegurar de que receberia um bom cavalo ao fi nal do negócio, Luis resolve propor aos três criadores o seguinte contrato de compra e venda: pelo preço de R$ 60.000,00, Bernardo, Eduardo e Ricardo deveriam entregar a Luis, até o fi nal do ano, uma das crias do cavalo Itajara, campeão de diver-sos torneios, o qual era criado na fazenda de Bernardo, mas de propriedade dos três criadores.

Com base no caso acima, responda:

(i) Tendo algumas das crias de Itajara nascido com doença que não inviabiliza a vida cotidiana, mas veda as suas participações em cor-ridas e competições que exijam demais do animal, podem os cria-dores entregar uma dessas crias como cumprimento do pactuado? Justifi que com base na legislação pertinente.

(ii) E se todas as crias de Itajara tivessem nascido com a referida doen-ça? Poderia Luis simplesmente resolver a obrigação, desonerando assim os criadores?

(iii) E se apenas uma cria sobreviveu ao parto da égua reprodutora e justamente essa cria vem também a falecer por culpa de um empregado de Bernardo, que alimentou o animal com ração for-tifi cadora cuja validade havia expirado? Pode Luis ingressar judi-cialmente contra Ricardo para cobrar o equivalente ao valor do cavalo, pago no momento da contratação? E as eventuais perdas e danos?

19. Idem. Pg. 122

Page 63: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 63

3. QUE.STÕES DE CONCURSO:

25º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase

5. Sabe-se que na solidariedade passiva, a relação interna rege-se pelo princípio de que o devedor que paga a integralidade do débito tem direito de regresso contra os demais para haver, de cada qual, a parte que pagou além do que pessoalmente devia. Diante desta assertiva, explique o disposto no artigo 285 do Código Civil. Fundamente a resposta e apresente um exemplo concreto.

126º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

23. Antonio obrigou-se a entregar a Benedito, Carlos, Dario e Ernesto um touro reprodutor, avaliado em R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). Em-bora bem guardado e bem tratado em lugar apropriado, foi esse animal atingido por um raio, vindo a morrer. Nesse caso, a obrigação é:

(a) indivisível e tornou-se divisível, com o perecimento do objeto por culpa do devedor;

(b) tão somente indivisível, com ausência de culpa do devedor, ante o perecimento do objeto;

(c) solidária, devendo o valor de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) ser entregue a qualquer dos credores, em lugar do objeto perecido;

(d) indivisível e tornou-se divisível com o perecimento do objeto, sem culpa do devedor.

24. É correto afi rmar que(a) as dívidas de jogo ou de aposta obrigam a pagamento, quando co-

bradas pelo credor;(b) o fi ador, ainda que solidário, fi cará desobrigado se o credor conce-

der moratória ao devedor, sem o consentimento do mesmo fi ador;(c) não é admissível, na transação, a pena convencional (ou multa);(d) aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obri-

gado a reembolsar/restituir tão somente o que auferiu indevidamente.

123º Exame da Ordem – OAB/Sp – 1ª fase

22. “A” e “B” obrigaram-se a entregar a “C” e “D” um boi de raça, que fugiu por ter sido deixada aberta a porteira, por descuido de “X”, funcionário de “A” e “B”. Pode-se dizer que a obrigação é:

(a) indivisível, que se tornou divisível pela perda do objeto da presta-ção, com responsabilidade dos devedores “A” e “B”, pela culpa de “X”, seu funcionário;

Page 64: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 64

(b) solidária, com responsabilidade dos devedores “A” e “B”, por culpa de seu funcionário, ante a perda do objeto da obrigação;

(c) indivisível, tornando-se divisível com o perecimento do objeto, sem culpa dos devedores “A” e “B” e sem responsabilidade destes;

(d) simplesmente, divisível com o perecimento do objeto da prestação, res-pondendo objetivamente “A” e “B” pela culpa de seu empregado “X”.

121º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

28. “A”, “B” e “C” são devedores solidários de “D” pela quantia de R$ 60.000,00. “D” renuncia à solidariedade em favor de “A”. Com isso:

(a) “D” perde o direito de exigir de “A” prestação acima de sua parte no débito, isto é R$ 20.000,00. “B” e “C” responderão solidariamente por R$ 40.000,00, abatendo da dívida inicial de R$ 60.000,00 a quota de “A”. Assim os R$ 20.000,00 restantes só poderão ser recla-mados daquele que se benefi ciou com a renúncia da solidariedade;

(b) “D” pode cobrar de “A” uma prestação acima de R$ 20.000,00; “B” e “C” responderão solidariamente pelos R$ 60.000,00;

(c) “D” perde o direito de exigir de “A” prestação acima de sua parte no débito e “B” e “C” continuarão respondendo solidariamente pelos R$ 60.000,00;

(d) “A”, “B” e “C” passarão a responder, ante a renúncia da solidarieda-de, apenas por sua parte no débito, ou seja, cada um deverá pagar a “D” R$ 20.000,00.

120º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

29. É um dos efeitos jurídicos da solidariedade ativa, na relação entre co-credores e devedor:

(a) a interrupção da prescrição, requerida por um co-credor, estender--se-á a todos, prorrogando-se, assim, a existência da ação correspon-dente ao direito creditório;

(b) o credor que remitir a dívida responderá aos outros pela parte que lhes caiba;

(c) o pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitarão aos demais, senão até a concorrência da quantia paga ou relevada;

(d) o devedor culpado pelos juros de mora responderá aos outros pela obrigação acrescida.

Gabarito: 23 (d); 24 (b); 22 (a); 28 (a); 29 (a).

Page 65: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 65

AULA 9–PAGAMENTO: LUGAR, TEMPO E PROVA

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Pagamento. Extinção Normal das Obrigações – Natureza Jurídica do Paga-mento–O solvens–O Accipiens–Credor putativo–Pagamento feito ao inibido de receber–Objeto do pagamento e sua prova.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Aleixo, Celso Quintella. “Pagamento”, in Gustavo Tepedino (org) Obriga-ções: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 275/302.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 187/222.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 589/626.

1. ROTEIRO DE AULA:

Pagamento. Extinção Normal das Obrigações

As obrigações, como visto, têm caráter de efemeridade, pois são fadadas ao seu exaurimento, ou melhor, à sua realização. Nesse sentido, o pagamento é o meio normal de sua extinção. O desfecho natural da obrigação é o seu cumprimento.

A noção de pagamento pode se traduzir em mais de um conceito: em sentido estrito e mais comum, a prestação de dinheiro; em senso preciso, a entrega da res debita, qualquer que seja esta; e numa acepção mais geral, qual-quer forma de liberação do devedor, com ou sem prestação.20

Observa-se que o termo pagamento, em sentido geral, representa toda a forma de cumprimento da obrigação. Isso remete à velha noção de solutio que 20. Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro:

Forense: 2004; p. 167.

Page 66: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 66

era prevista no Direito Romano. No Código Civil, essa é a noção enunciada nos arts. 304 e seguintes.

Essa noção de pagamento deve ser transposta às obrigações de dar, fazer e não fazer. Paga-se na compra e venda, quando se entrega a coisa vendida. Paga-se na obrigação de fazer, quando se termina a obra ou atividade enco-mendada. Paga-se na obrigação de não fazer, quando o devedor se abstém de praticar o fato, por um tempo mais ou menos longo.

O pagamento pode assumir a forma de um negócio bilateral, e nesse senti-do, verifi ca-se a existência de obrigações recíprocas, havendo o dever de pagar para ambas as partes. É o examinado na compra e venda, onde simultanea-mente cabe ao devedor pagar pelo bem a quantia estipulada e ao vendedor entregar a coisa.

Conforme se observará mais adiante, há formas especiais de cumprimento das obrigações, muitas delas enveredando pela tutela jurisdicional.

Casos há, em que dada a impossibilidade de cumprir a obrigação, não existe por conseguinte a possibilidade de cumprir o pagamento. Isso pode ou não resultar de culpa do devedor. Se ocorrer sem culpa do mesmo, a obriga-ção segue o caminho da extinção; por outro lado, se o devedor concorre com culpa para a impossibilidade de pagar, deverá responder por perdas e danos. Aqui vale destacar que essa indenização pela inexecução da prestação não tem natureza de pagamento, embora o substitua.

Natureza Jurídica do Pagamento

Percebe-se que o pagamento pode assumir diversas feições sendo justa-mente por conta desse fato que surge a difi culdade na caracterização de sua natureza jurídica.

É complexo tentar instituir uma natureza única para o pagamento. Diver-gem os autores, havendo quem o qualifi que como fato jurídico, como outros que asseveram o seu teor negocial (negócio jurídico). Para essa última cor-rente, o fundamento principal reside no fato de que o pagamento não é um simples acontecimento, mas é também marcado por um forte elemento psí-quico – o animus solvendi -, sem o qual, seria confundido com uma simples liberalidade.21

Caio Mário da Silva Pereira se fi lia a corrente de que o pagamento seria negócio jurídico quando o direito de crédito versasse sobre uma prestação que tenha caráter negocial. Quando esse elemento fosse inexistente, estar-se--ia diante de mero fato jurídico.

A importância da defi nição da natureza jurídica do pagamento não é em verdade mera elucubração teórica. Considerar o pagamento como sen-do negócio jurídico, sob a perspectiva prática, signifi ca considerá-lo sob o enfoque de seus elementos constitutivos e requisitos de validade e efi cácia, 21. Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro:

Forense: 2004; p. 168.

Page 67: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 67

isto é, o exame será mais rigoroso, podendo o mesmo ser qualifi cado como inexistente, nulo ou anulável. Corporifi ca-se no negócio jurídico um rigor muito maior do que o observado caso o pagamento seja reputado como simples fato jurídico.

O solvens

Em regra, quem é obrigado a pagar é o devedor, mas isso não exclui a pos-sibilidade de que terceiros o façam.

No estudo do pagamento, este não deve ser visualizado somente sob a óti-ca de uma atuação por parte do devedor. Deve-se ter em mente que efetuar o pagamento em conformidade com as condições acordadas pelas partes é também um direito do devedor, na medida em que se não o faz, torna sua obrigação em regra ainda mais onerosa. E nesse sentido a lei inclusive dota o devedor de instrumentos legais que garantam o seu direito de adimplir a obrigação.

A previsão para que terceiros saldem a obrigação encontra-se no art. 304 do Código Civil. Excetuam-se, por força da lógica, as obrigações personalís-simas, isto é, aquelas obrigações onde a fi gurado devedor é primordial para o próprio cumprimento da obrigação:

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fi zer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste.

Um exemplo de interessado é o fi ador. Interessado poderia ser concebido aqui como um termo genérico que abarca aqueles que seriam de alguma for-ma atingidos pelos efeitos jurídicos que se desdobram dessa relação jurídica em curso. Se o devedor não paga, competirá ao fi ador, por força de contrato, fazê-lo. Do inadimplemento perpetrado pelo devedor podem sobrevir novos encargos, como juros, multas contratuais diversas, entre outros que torna-riam mais gravosa a obrigação. No intuito de preservar o seu patrimônio, o fi ador se antecipa e efetua o pagamento, minorando efeitos que se estende-riam sobre a sua própria órbita.

Nessa hipótese de terceiro interessado, não pode o credor recusar o recebi-mento da prestação. O parágrafo único do art. 304 acrescenta que o terceiro não interessado tem o mesmo direito de pagar, “se o fi zer em nome e por cota do devedor”.

O caso clássico levantado em obras doutrinárias é o do pai que paga dívi-da do fi lho. O interesse aqui extrapola o campo jurídico e enveredada pelo campo moral, altruístico. Não há necessidade de anuência nem do credor, nem do devedor.22

22. Conforme será examinado mais

adiante na fi gura da Consignação em

Pagamento, modalidade especial de

pagamento, onde o devedor, diante da

recusa do credor em receber o paga-

mento, deposita o mesmo em juízo, é

possível ao terceiro não interessado se

valer dessa forma de pagamento.

Page 68: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 68

Diferentemente dessa primeira hipótese, pode o terceiro não interessado pagar a obrigação fazendo-o não em nome do devedor, mas em seu próprio nome. Nesse caso, terá o direito de reembolsar-se do valor pago, mas não haverá sub-rogação nos direitos do credor.23

A vedação dessa sub-rogação decorre da proteção a que a lei confere ao devedor, quem inclusive pode ver a sua situação agravada pelo pagamento em tais condições. Esse adimplemento feito por terceiro não interessado pode ter fi ns especulativos, tornando mais onerosa a prestação do devedor, ou pode colocá-lo em situação de constrangimento moral.

Por outro lado, sendo o credor interessado quem paga o débito, haverá sub-rogação em todos os direitos de crédito, conforme o disposto no art. 346 do Código Civil:

Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:I–do credor que paga a dívida do devedor comum;II–do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como

do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;III–do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obriga-

do, no todo ou em parte.

Surge ainda outra hipótese: o devedor possui justo motivo para não pagar a dívida, mas não obstante, o terceiro interessado não só a paga, como ainda o faz em adiantamento, isto é, antes do vencimento da mesma.

Para exemplifi car a existência desse justo motivo, pode-se destacar as se-guintes situações: uma dívida prescrita; uma obrigação oriunda de negócio jurídico anulável; a possibilidade de alegar exceção do contrato não cumpri-do. O atual Código Civil prevê a solução dessa questão no art. 306:

Art. 306. O pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios para ilidir a ação.

Nesse sentido, deve-se ressaltar que o motivo da oposição levantada pelo devedor deve ser justa. O terceiro que paga a obrigação (terceiro solvens), deve ter conhecimento dessa oposição, e caso decida prosseguir com o pagamento, o fará assumindo o risco expresso nesse dispositivo, qual seja, o de nada rece-ber na hipótese do devedor possuir meios para elidir a ação contra o credor.

Outra situação é quando o terceiro paga sem que o devedor tome conhe-cimento, sendo que este tinha motivo justo para não fazê-lo. Se o terceiro pagou mal, só poderá buscar o reembolso do devedor até o montante em que este pagamento o aproveitou.

Seria o caso, por exemplo, do terceiro que salda dívida onde o devedor poderia alegar, sob parte da obrigação, exceção do contrato não cumprido. Nesse caso, o terceiro deve ser ressarcido com relação à parte que aproveitou

23. O termo sub-rogação já foi

examinado por ocasião das obrigações

solidárias e será novamente abordado

de forma mais completa adiante. Sub-

-rogar-se signifi ca assumir a posição na

relação jurídica, e dessa forma, no caso

em tela, a lei veda que o terceiro não

interessado que salda a obrigação do

devedor assuma juntamente com a po-

sição do credor todas as prerrogativas

que são conferidas. Por exemplo, se o

credor original possuir alguma garantia

real (p. ex. uma hipoteca), não será a

mesma conferida ao terceiro que arca

com a dívida.

Page 69: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 69

ao devedor, ou seja, em razão da parte da obrigação que seria realmente devi-da. Já quanto ao montante que pagou mal, deverá repetir do credor que, em tese, recebeu mais do que lhe era realmente devido.

O norte interpretativo nesses casos segue a idéia de que o pagamento feito por terceiro não pode agravar a situação do devedor sob nenhuma circunstância.

A lei não se ocupa da hipótese em que tanto credor como devedor se opõem ao pagamento feito por terceiro não interessado. Certo é que se deve entender pela impossibilidade do mesmo, visto que a ingerência desse tercei-ro na relação jurídica é plenamente indesejada.

O Accipiens

A regra geral em matéria da pessoa que recebe é a aquela constante do art. 308 do Código Civil. Ordinariamente, quem recebe o pagamento é o credor, mas situações podem ocorrer onde este esteja inibido de receber, quando o devedor poderá desincumbir-se pagando a quem não seja credor.

Muitas são as modalidades de pagamento e as formas pelas quais ele pode ser exercido. Muitos também são os conceitos jurídicos a ele conexos, de sorte que é impossível uma defi nição abstrata de quem pode receber (accipiens). Pode-se demonstrar essa difi culdade a partir dos seguintes exemplos:

(i) Numa compra e venda, que é negócio jurídico bilateral onde há co--respectividade no dever de prestar, ao comprador deve ser entregue o bem, e ao vendedor deve ser entregue o montante referente a essa transação;

(ii) Numa obrigação qualquer, o credor originário pode, no momento do pagamento, já ter sido substituído, como no caso da cessão de crédito ou da sucessão a título universal, quando o herdeiro assume a posição de accipiens;

(iii) nas obrigações solidárias, assim como nas indivisíveis, qualquer um dos credores pode receber a prestação; e

(iv) sendo a obrigação divisível e não solidária, o pagamento deve ser efe-tuado a cada um dos credores no montante que compete a cada um.

O art. 308 do Código Civil remete às hipóteses de representação, onde o representante atua em nome do representando, tendo entre outros poderes, a faculdade de receber, em nome deste, créditos a que faça jus.

Art. 308. O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratifi cado, ou tanto quanto reverter em seu proveito.

Page 70: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 70

Tratando-se de direito dispositivo, dois contraentes podem estabelecer ainda que o accipiens de uma obrigação seja um terceiro que não tenha to-mado parte na negociação, ou melhor, que nem mesmo saiba da existência da mesma.

Segundo regra do art. 308, o pagamento feito à pessoa não designada para recebê-lo pode ser posteriormente convalidado mediante ratifi cação do cre-dor ou de seu representante.

Outro dado relevante reside no fato de que para receber não é necessário que o indivíduo se apresente munido de instrumentos formalmente institu-ídos, como o mandato. É a situação de quem se apresenta munido do um instrumento de quitação emitido pelo credor (art. 311 do Código Civil).

Credor putativo

Pode ocorrer do devedor realizar pagamento à pessoa que tenha a aparên-cia de credor ou mesmo de pessoa autorizada. Esse é o caso do credor pu-tativo, cujo exemplo mais proeminente reside na fi gura do credor aparente. Em suma, trata-se da situação em que se efetua um pagamento a pessoa não legitimada a recebê-lo, mas que de acordo com o contexto parecia possuir tais poderes.

O Código Civil dispõe no art. 309 que:Art. 309. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda pro-

vado depois que não era credor.

Para que o pagamento seja reputado válido, não só se faz necessário que o accipiens tenha a aparência de credor, como também que o solvens esteja de boa-fé. O verdadeiro credor deverá retomar o pagamento do falso accipiens.

São três as situações em que o devedor pode se exonerar pagando a terceiro não intitulado:

(i) Ratifi cação pelo credor do pagamento recebido por outrem. Isto é, pago equivocadamente, mas ainda assim o credor, anuindo com o pagamento realizado, libera o devedor (art. 308);

(ii) Quando o pagamento, mesmo realizado a pessoa diversa, reverte em benefício do credor. Aqui incumbe o ônus da prova ao solvens. Ex.: Pagamento efetuado ao irmão do credor (R$1000,00) que somente lhe repassou 30% do valor (R$300,00). Deve o solvens provar o repasse dos R$300,00 reais ao credor, de modo a poder arcar apenas com os outros R$ 700,00 não recebidos por aquele. Logicamente, valendo-se dos meios judiciais apropriados, repetirá o indevidamente pago ao irmão do credor (art. 308);

(iii) A questão acima examinada referente ao credor putativo (art. 309).

Page 71: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 71

Pagamento feito ao inibido de receber

O pagamento efetuado a incapaz somente é válido se o mesmo não tinha conhecimento desse estado de incapacidade. A incapacidade inibe a prática de atos jurídicos pelo agente, conforme reforçado pelo art. 310 do Código Civil:

Art. 310. Não vale o pagamento cientemente feito ao credor incapaz de quitar, se o devedor não provar que em benefício dele efetivamente reverteu.

O art. 312 refl ete outra situação onde o credor é inibido a receber:Art. 312. Se o devedor pagar ao credor, apesar de intimado da penhora feita sobre

o crédito, ou da impugnação a ele oposta por terceiros, o pagamento não valerá contra estes, que poderão constranger o devedor a pagar de novo, fi cando-lhe ressalvado o regresso contra o credor.

Nesse caso, deve o solvens ter conhecimento da penhora ou da oposição de terceiro. Se ainda assim resolver pagar ao credor, estará assumindo o risco de que esse pagamento não seja reportado efi caz.

Objeto do pagamento e sua prova

O objeto do pagamento é a prestação acordada pelas partes. Uma vez paga, extinguir-se-á a obrigação. Conforme já examinado, não pode o credor ser obrigado a receber coisa diversa da estabelecida no acordo de vontades, ainda que fl agrantemente mais valiosa.

As perdas e danos, no caso de inadimplemento, são substituição de paga-mento e não pagamento. Da mesma fora, não são pagamento outras formas de extingui-la, tais como a transação, a dação, a sub-rogação, entre outras.

O pagamento em dinheiro somente pode ser efetuado em moeda corrente no país, proibindo-se o uso de moeda estrangeira.

Nas obrigações de fazer o pagamento se dá pela execução da atividade de-fi nida como objeto da prestação. O mesmo ocorre na obrigação de não fazer.

Prova é a demonstração material, palpável de um fato, ato ou negócio jurí-dico. Ela corporifi ca a existência desses elementos. É a manifestação concreta de um acontecimento.

A quitação é a prova desse pagamento e é direito daquele que paga dela se munir. O recibo é o instrumento da quitação. De acordo com o art. 319, o devedor pode reter o pagamento enquanto não lhe for dada a quitação. Os requisitos do recibo, por sua vez, encontram-se no art. 320.

Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pa-gamento, enquanto não lhe seja dada.

Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por

Page 72: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 72

este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante.

Recibo é o documento idôneo para comprovar o pagamento das obriga-ções de dar e fazer. Nas obrigações de não fazer, o ônus da prova é do credor, que deve evidenciar se foi praticado o ato ou os atos.

2. QUESTÕES DE CONCURSO:

128º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

24. Sobre o adimplemento das obrigações, é correto afi rmar:(a) o pagamento feito de boa-fé a quem aparentava ser credor, mas não

o era, é considerado válido;(b) pagamento reiteradamente aceito pelo credor em local diverso do

combinado não presume renúncia do credor relativamente ao pre-visto no contrato;

(c) a pessoa obrigada com o mesmo credor, por dois ou mais débitos líquidos e vencidos, deve pagar primeiramente o mais antigo;

(d) ocorre a compensação quando se confundem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor de uma obrigação.

126º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

25. Para que o pagamento possa ser um meio direto e efi caz de extinção da obrigação são necessários os seguintes requisitos, além da exis-tência de vínculo obrigacional:

(a) animus solvendi e pagamento somente ao credor em pessoa, sendo inválido o pagamento feito a representante legitimado;

(b) animus solvendi e entrega exata do objeto devido ou de coisa mais valiosa;

(c) satisfação exata da prestação devida e presença obrigatória da pessoa que efetua o pagamento, que deverá obrigatoriamente ser o devedor;

(d) animus solvendi e satisfação exata da prestação que constitui o obje-to da obrigação.

Gabarito: 24 (a); 25 (d).

Page 73: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 73

AULA 10–FORMAS ESPECIAIS DE PAGAMENTO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Pagamento por consignação – Pagamento com sub-rogação–Imputação de pagamento–Dação em Pagamento (datio in solutum) – Novação – Compensação – Transação–Compromisso – Confusão–Remissão

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Soares, Alice dos Santos. “Pagamento indireto ou especial”, in Gustavo Tepe-dino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 399/428.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 223/259.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 627/688.

1. ROTEIRO DE AULA:

Pagamento por consignação

A primeira modalidade especial de pagamento que merece tratamento em apartado é a consignação. Essa modalidade especial de extinção da obrigação centra-se no fato de que, não apenas o credor, mas também o devedor possui interesse em extinguir a obrigação. Caso não efetue o pagamento da forma devida, ou seja, no tempo, lugar e condições inicialmente estabelecidas, ob-servará o devedor uma maior oneração por conta da constituição em mora. Esse fator é decisivo no interesse do devedor em encerrar a relação obrigacio-nal através do seu regular pagamento.

Se a obrigação for de dar uma coisa, por exemplo, enquanto não se perfaz a tradição, com a regular entrega da coisa ao credor, o devedor é responsável pela guarda e conservação da mesma.

Page 74: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 74

A consignação extingue a obrigação com o depósito judicial da coisa devi-da, nos casos e formas legais. É a previsão do art. 334 do Código Civil:

Art. 334. Considera-se pagamento, e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais.

A consignação em pagamento é um meio coativo de extinção da obri-gação que pode ser utilizado pelo devedor nos casos em que o credor obsta de alguma forma o recebimento da prestação. Pode o devedor se valer dela, por exemplo, nas hipóteses de negativa do credor em receber, ou quando este estipula condições diversas das previstas no instrumento contratual.

A consignação em pagamento é uma faculdade à disposição do devedor. Não é imperativo que o devedor a realize, encontrando-se tão somente obri-gado a realizar a prestação da forma acordada com o credor.

O devedor está obrigado ao pagamento nas condições inicialmente pre-vistas, pois foi com foco nelas que anuiu com a obrigação. Pode ocorrer, contudo, que razões de ordem prática e de absoluta conveniência instiguem o devedor se valer dessa espécie de ação.

Um exemplo pode ser observado na consignação do valor de aluguel, quando o credor se nega a receber. Não recebendo o aluguel, em tese, o cre-dor abre espaço para a propositura de ação de despejo. Consignando-se valor, o devedor afastaria essa possibilidade.

A consignação não é um expediente jurídico que se presta somente ao depósito de dinheiro. Qualquer coisa que seja objeto da obrigação pode ser consignada. Nesse sentido, vale recorrer ao art. 341 do Código Civil:

Art. 341. Se a coisa devida for imóvel ou corpo certo que deva ser entregue no mesmo lugar onde está, poderá o devedor citar o credor para vir ou mandar recebê-la, sob pena de ser depositada.

Para as hipóteses de obrigações alternativas, é necessário, como visto, que a escolha seja procedida pelo credor. Se o credor retardar o cumprimento da obrigação, essa faculdade de escolha pode ser perdida, sendo a mesma feita pelo devedor e em seguida consignada, implicando na conseqüente extinção do vínculo. Trata-se do previsto no art. 342 do Código Civil:

Art. 342. Se a escolha da coisa indeterminada competir ao credor, será ele citado para esse fi m, sob cominação de perder o direito e de ser depositada a coisa que o de-vedor escolher; feita a escolha pelo devedor, proceder-se-á como no artigo antecedente.

A consignação é modalidade de pagamento, e dessa forma, o seu objeto deve ser certo. Obrigações ilíquidas, isto é, aquelas cujo valor ainda não foi apurado, não podem ser objeto de consignação. Somente após tornarem-se líquidas poderá ser realizada a consignação.

Page 75: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 75

As obrigações que são puramente de fazer e de não fazer não admitem consignação. A obrigação de não fazer, em qualquer situação, será sempre incompatível com a medida. A obrigação de fazer, por sua vez, sempre que implicar na entrega da coisa, poderá haver a consignação.

Da mesma forma, o imóvel pode ser consignado na medida em que o depósito das chaves simboliza a consignação do todo.

As cinco hipóteses de consignação estão enunciadas pelo art. 335 do Có-digo Civil:

Art. 335. A consignação tem lugar:I–se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar

quitação na devida forma;II–se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo e condição

devidos;III–se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou

residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;IV–se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do paga-

mento;V–se pender litígio sobre o objeto do pagamento.

Ao analisar cada inciso em particular, pode-se constatar o seguinte:No caso do art. 335, I, tem-se o caso da dívida portable, quando o devedor

é o portador do pagamento, devendo levá-lo até o credor. Aqui é necessário que se observe a existência ou não de justa causa no não recebimento por parte do credor. Não haverá justa causa em situações como aquela em que o credor tenta receber mais do que o que lhe é devido.

No entanto, não constitui essa falta de justa causa em não receber, ou em não dar quitação, uma condição necessária para que se proceda com a con-signação, na medida em que esse instrumento poderá ser utilizado também nos casos em que o credor está impossibilitado de receber.

No caso do art. 335, II, trata-se da chamada dívida quérable, isto é, quan-do compete ao credor ir receber a prestação. Nesse caso, o credor permanece inerte, não indo até o devedor e o mesmo, para por termo à obrigação, con-signa o valor devido.

Na hipótese do art. 335, III, vale destacar que inicialmente o credor nunca é desconhecido, mas, em certas situações, no correr da relação obrigacional, a indeterminação pode surgir, como no caso do credor que falece, abrindo-se a sucessão e desconhecendo-se os herdeiros.

No caso do art. 335, IV, o pagamento feito de forma incorreta, àquele ilegiti-mado para recebê-lo, implicará na não desoneração do devedor. Um dos exem-plos que poderiam ser aventados corresponde justamente ao credor que falece e cujo patrimônio é aberto a sucessão. Não se sabe quem assumirá a posição de credor e o pagamento, feito erroneamente, não propiciará a desoneração.

Page 76: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 76

Por fi m, no art. 335, V, haverá espaço para consignação se existir um li-tígio entre o credor e um terceiro, onde o terceiro reivindica o pagamento. O devedor não sabe a quem pagar e desonerar-se-á depositando a coisa em juízo. O art. 344 do Código Civil especifi ca essa situação:

Art. 344. O devedor de obrigação litigiosa exonerar-se-á mediante consignação, mas, se pagar a qualquer dos pretendidos credores, tendo conhecimento do litígio, assumirá o risco do pagamento.

A consignação congrega elementos tanto de direito material como tam-bém processual (arts. 890 a 900 do Código de Processo Civil), sendo um verdadeiro procedimento judicial.

O artigo 890 do CPC admite a consignação nas hipóteses de previsão legal, qual seja, aqueles previstos no Código Civil e em toda a legislação ex-travagante.

A possibilidade de consignação nasce com o vencimento da dívida, na me-dida em que o credor não pode ser obrigado a receber antes do prazo. O valor consignado deve encampar as correções devidas, pois do contrário, ocorreria injusto enriquecimento do consignante.

Informações referentes ao foro da consignação podem ser encontradas no art. 891 CPC e 337 do Código Civil:

Art. 891. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, tanto que se efetue o depósito, os  juros e os riscos, salvo se for julgada im-procedente.

Parágrafo único. Quando a coisa devida for corpo que deva ser entregue no lugar em que está, poderá o devedor requerer a consignação no foro em que ela se encontra.

Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessando, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e os riscos, salvo se for julgado im-procedente.

Uma vez que seja feito o depósito, a sentença que o tenha deferido apre-sentará efeitos retroativos (efeitos ex tunc). A responsabilidade do devedor termina nesse momento, mas a sua mora, no entanto, retroage à data de sua citação. Por outro lado, caso a decisão do julgamento tenha sido no sentido de improcedência do pedido ou extinção sem julgamento do mérito, o depó-sito efetuado será inefi caz, como se nunca houvesse se processado.

Com o depósito, cessam as obrigações de juros e riscos com a coisa. A correção monetária e juros, a partir daí, serão responsabilidade da instituição fi nanceira depositária dos valores. As despesas com a guarda e a conservação da coisa, uma vez que o pedido de consignação seja deferido, estarão a cargo do credor.

Nas hipóteses envolvendo prestações periódicas, vale conferir o disposto no art. 892 do Código de Processo Civil:

Page 77: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 77

Art. 892. Tratando-se de prestações periódicas, uma vez consignada a primeira, pode o devedor continuar a consignar, no mesmo processo e sem mais formalidades, as que se forem vencendo, desde que os depósitos sejam efetuados até 5 (cinco) dias, contados da data do vencimento.

O art. 896 do CPC, atentando aos elementos já enunciados pelo direito material, trata de alegações que podem ser apresentadas pelo réu na contes-tação à consignação.

Art. 896. Na contestação, o réu poderá alegar que:I–não houve recusa ou mora em receber a quantia ou coisa devida;II–foi justa a recusa;III–o depósito não se efetuou no prazo ou no lugar do pagamento;IV–o depósito não é integral.Parágrafo único. No caso do inciso IV, a alegação será admissível se o réu indicar

o montante que entende devido.

Pagamento com sub-rogação

A sub-rogação, que pode ser entendida através do vocábulo substituição, não é verdadeiramente uma forma de extinção da obrigação, mas sim de alte-ração da posição do credor da relação obrigacional. O instituto é tratado no Código Civil pelos arts. 346 e seguintes.

Nessa modalidade especial de pagamento, um terceiro efetua o pagamento no lugar do devedor original e, dessa forma, substitui o credor. O terceiro que paga torna-se credor em relação ao devedor, passando a dispor de todos os direitos, ações e garantias que tinha o credor substituído.

Ao devedor não importará prejuízo visto que deverá pagar exatamente aquilo que seria devido ao credor original. A dívida toda é conservada, não existindo extinção em nenhuma parte.

Uma das mais pertinentes considerações acerca da natureza da sub-rogação é a de que a mesma não é, em verdade, um meio de extinção da obrigação. A obrigação subsiste, sendo apenas alterado o titular do crédito.

Adicionalmente, a sub-rogação e a cessão de crédito são institutos que possuem certas similitudes, não podendo ser confundidas.

A sub-rogação centra-se no pagamento de uma dívida efetuada por ter-ceiro fi cando necessariamente vinculada aos termos dessa dívida. O valor devido àquele que se sub-roga será necessariamente coincidente com o valor inicialmente devido ao credor original.

A cessão de crédito, por sua vez, pode ter efeito especulativo, e pode ocor-rer mediante a transferência de numerário diversa do valor da dívida em si.

Na cessão de crédito é necessário que o devedor seja notifi cado de tal negócio jurídico (art. 290 CC). Na sub-rogação, por seu turno, essa comuni-cação não se faz obrigatória.

Page 78: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 78

A cessão de crédito possui a natureza de alienação de um direito, caráter esse inexistente na sub-rogação.

A sub-rogação pode se processar ainda que sem a anuência do credor. O mesmo não ocorre na cessão, onde mister se faz a manifestação de vontade do titular do crédito no sentido de negociá-lo.

O art. 346 do Código Civil determina as hipóteses de sub-rogação legal:Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:I–do credor que paga a dívida do devedor comum;II–do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como

do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;III–do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obriga-

do, no todo ou em parte.

O art. 346, III, trata da situação mais comum e mais útil para utilização da sub-rogação. Como exemplos pode-se mencionar:

(i) O fi ador que paga dívida do afi ançado e sub-roga-se nos direitos do credor;

(ii) O devedor solidário que paga toda a dívida e sub-roga-se e assume a posição de credor dos demais;

No primeiro exemplo, o fi ador, ao arcar com os valores referentes à dívida antes de ser acionado nesse sentido, preserva-se da necessidade de efetuar pagamento mais oneroso.

As duas formas de sub-rogação convencional são delimitadas pelo art. 347 do Código Civil:

Art. 347. A sub-rogação é convencional:I–quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere

todos os seus direitos;II–quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a

dívida, sob a condição expressa de fi car o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.

Trata-se de mero acordo de vontade entre o credor e o terceiro que arca com a dívida, sem que, contudo, recorra-se a maiores formalidades.

Na primeira hipótese, não há necessidade nem mesmo do conhecimento por parte do devedor, quiçá de sua anuência em relação à sub-rogação.

No segundo caso, o devedor passa a dever ao mutuante com todos os de-veres originários daquela obrigação.

Como examinado, no pagamento com sub-rogação, o credor original é satisfeito sem que isso importe em extinção da obrigação.

Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privi-légios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fi adores.

Page 79: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 79

A fi nalidade especulativa, conforme tratada na distinção em relação à ces-são de crédito, não pode existir. O sub-rogado não pode receber nada além do que receberia o credor originário.

Na sub-rogação convencional, as partes podem manifestar sua vontade no sentido de alteração dos valores, conforme se depreende do art. 350 do Código Civil:

Art. 350. Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.

No pagamento parcial, por sua vez, o credor originário tem preferência em face daquele que o sub-roga (art. 351 do Código Civil).

Imputação de pagamento

A imputação de pagamento pode ser observada quando da existência de vários débitos de um mesmo devedor em relação a um mesmo credor. Há pluralidade de dívidas, de forma que um pagamento efetuado pode vir a ex-tinguir uma ou mais de uma delas. Dessa forma, a imputação de pagamento é um expediente jurídico que confere certa lógica na defi nição de que relações obrigacionais devem ser reputadas como extintas.

Nesse sentido, é preciso que essas dívidas sejam da mesma natureza, líqui-das e já vencidas. É o que dispõe o art. 352 do Código Civil.

Art. 352. A pessoa obrigada por dois ou mais débitos da mesma natureza, a um só credor, tem o direito de indicar a qual deles oferece pagamento, se todos forem líquidos e vencidos.

A preferência na escolha da dívida a ser adimplida é do devedor. O art. 352 defi ne que compete ao obrigado fazer essa imputação. Na hipótese de silêncio por parte do devedor, não se manifestando este dentro do tempo certo, a escolha passa ao credor (art. 353). Quando nenhuma das partes se manifesta em tempo oportuno, a lei assume o papel de orientar a solução dos débitos, indicando qual deles deve ser tido como adimplido. Essa é a impu-tação legal, prevista no art. 355 do Código Civil.

Art. 353. Não tendo o devedor declarado em qual das dívidas líquidas e vencidas quer imputar o pagamento, se aceitar a quitação de uma delas, não terá direito a reclamar contra a imputação feita pelo credor, salvo provando haver ele cometido violência ou dolo.

Art. 355. Se o devedor não fi zer a indicação do art. 352, e a quitação for omissa quanto à imputação, esta se fará nas dívidas líquidas e vencidas em primeiro lugar. Se as dívidas forem todas líquidas e vencidas ao mesmo tempo, a imputação far-se-á na mais onerosa.

Page 80: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 80

Os requisitos da imputação de pagamento estão também no art. 352 do Código Civil. São eles: (i) pluralidade de débitos, sendo que os mesmos de-vem ser independentes entre si e não podendo o credor receber parcialmen-te24; (ii) a existência de um só credor e um só devedor; (iii) os débitos devem ser da mesma natureza, isto é, deve haver compatibilidade entre o objeto do pagamento; (iv) as dívidas devem ser líquidas25; (v) o pagamento ofertado pelo devedor deve ser sufi ciente para quitar ao menos uma das dívidas; e (vi) a dívida deve ser vencida.

Se o valor do pagamento exceder ao montante fi xado para a de menor valor, e não for sufi ciente para extinguir a obrigação mais onerosa, deve-se reputar como paga a dívida de menor valor, não sendo obrigado o credor a reter a diferença. Do contrário, seria ferido o princípio de que o credor não é obrigado a receber de forma diferente da estabelecida.

Não havendo acordo em contrário, a escolha na imputação é do de-vedor, devendo o mesmo ser tratado de forma mais benigna. Esse direito à realização da imputação não é absoluto, pois de acordo com o art. 354 do Código Civil, é necessário empregar o capital primeiramente nos juros vencidos. Imputar o dinheiro diretamente no capital não é uma opção válida para o devedor, a menos que tenha havido acordo entre as partes nesse sentido.

Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital.

Se o devedor pagar uma ou mais dívidas não destacando ao credor qual a imputação, o credor terá liberdade para dar quitação na que quiser. A im-portância dessa determinação reside no fato de que o credor, por força da lógica, dará quitação na dívida que lhe seja menos favorável. Estando, por exemplo, o devedor vinculado por duas dívidas–uma quirografária e outra com garantia real–é certo que o credor dará quitação na primeira, em virtude da ausência de garantia.

Se as duas partes forem omissas, a imputação será legal, observando-se os princípios que residem no código.

A imputação legal, como visto, obedece aos ditames do art. 355 do Código Civil. Na aferição da dívida mais onerosa, cabe a atuação do juiz no caso concreto, não obstante a doutrina apresente alguns indicativos. Por exemplo: a orientação geral da lei é a de privilegiar o devedor, e dessa forma, a preferência se manifesta na extinção de dívidas com garantia real ou fiança, preterindo para outro momento as simplesmente quiro-grafárias.

24. Até mesmo por conta do artigo que

veda ser o credor obrigado a receber de

forma diversa da estipulada.

25. Obrigação líquida, de acordo com ao

art. 1533 do código de 1916, é a obri-

gação certa quanto à sua existência, e

determinada, quanto ao seu objeto.

Page 81: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 81

Dação em Pagamento (datio in solutum)

Dação em pagamento é uma modalidade de extinção da obrigação em que a mesma poderá ser resolvida mediante a substituição de seu objeto. O devedor entrega prestação diversa da inicialmente estabelecida, ou seja, dá-se algo distinto em pagamento. Logicamente, atentando à noção de que o cre-dor não pode ser obrigado a receber prestação diversa da estabelecida, ainda que mais valiosa, a dação em pagamento só se opera com o consentimento do credor.

Trata-se de um acordo de natureza liberatória que representa, em síntese, a substituição do objeto inicial da obrigação. A dação em pagamento pode consistir na (i) substituição de dinheiro por coisa; (ii) de uma coisa por outra; (iii) de uma coisa por uma obrigação de fazer.

A dação em pagamento é negócio jurídico bilateral, oneroso e real. Real no sentido de que corrobora na entrega de uma coisa, excepcionando-se os casos em que a prestação seja de fazer ou não fazer, pura e simples.

Não há a necessidade de que o valor da prestação substituta seja igual ao da substituída. Deve haver tão somente a anuência do credor com o recebi-mento da coisa e com a conseqüente extinção da dívida.

A dação pode também ser parcial, como por exemplo, quando o devedor não possui capital sufi ciente para saldar a dívida e paga parte em dinheiro e parte em espécie.

O pagamento parcial também é possível. Nesse caso, o credor salda parte da dívida mediante dação em pagamento, e o restante da obrigação subsiste. Trata-se de campo amplo para o acordo de vontades entre as partes contra-tuais, imperando sempre a noção de que o credor não pode ser compelido a receber de forma que lhe seja desfavorável.

Para a aceitação da dação em pagamento, isto é, o recebimento de presta-ção diversa da devida, é necessário que o credor seja plenamente capaz. No caso deste ser incapaz, é necessária autorização judicial.

A dação em pagamento é usualmente confundida com a compra e venda. Nesse sentido, o artigo 357 do Código Civil defi ne o seguinte:

Art. 357. Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda.

De acordo com a redação do artigo, para que se observe a equiparação à compra e venda, importante é que tenha ocorrido a fi xação do preço da coisa que substitui a prestação original. Caso isso não seja verifi cável, não haverá, em consonância com a dicção legal, que se falar em equiparação à compra e venda.

Equiparação aqui não traduz a idéia de identidade, de igualdade absoluta de regras aplicáveis. Como observado, o artigo 337 tem incidência tanto quando o objeto da dação for coisa móvel quando for imóvel. Se houver per-

Page 82: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 82

da coisa por conta da evicção, deve-se observar a repristinação da obrigação originária. É o que costa do art. 359 do Código Civil:

Art. 359. Se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, restabelecer-se-á a obrigação primitiva, fi cando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros.

A evicção é aplicável à dação em pagamento da mesma forma que se apre-senta para a compra e venda. A situação seria equivalente à inexistência de quitação, mantendo-se a obrigação da mesma forma que foi contraída origi-nalmente.

Novação

A novação é uma modalidade de extinção das obrigações por meio da qual cria-se uma obrigação nova com o intento de extinguir uma obrigação antiga. O credor e o devedor, ou apenas o credor, extinguem a obrigação original e criam uma nova, que vinculará o devedor no lugar daquela. O surgimento da nova obrigação importa na necessária resolução da antiga.

A novação pode ser objetiva, quando se refere ao objeto da prestação. Tra-ta-se da hipótese do art. 360, I, do Código Civil. A novação subjetiva, por sua vez, é tratada nos incisos II e III, havendo, em tais casos, a substituição do devedor ou do credor.

Art. 360. Dá-se a novação:I–quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir

a anterior;II–quando novo devedor sucede ao antigo, fi cando este quite com o credor;III–quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo,

fi cando o devedor quite com este.

O instituto hoje não tem mais a mesma importância de que manifestava no direito romano, onde residem as suas raízes. Em grande parte se deve essa constatação ao advento de novas fi guras como a cessão de crédito, a assunção de dívida e a sub-rogação, que operacionalizam de forma mais racional gran-de parte das situações em que a novação poderia ser aplicada.

A novação não implica na satisfação do crédito, pois ele persiste, mas sob uma nova forma. A natureza extintiva é justifi cada, pois a obrigação primitiva desaparece, mas ainda assim não há que se falar em satisfação.

Outra consideração preliminar que se faz necessária é a anuência de ambas as partes, não se operando jamais a novação por força de lei.

No direito romano, a novação era um expediente técnico utilizado para solucionar o problema da intransmissibilidade das obrigações, fazendo com que a mesma obrigação, de certa forma, persistisse. No direito moderno, a

Page 83: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 83

novação tem o condão de criar uma obrigação inteiramente nova, inclusive admitindo-se a novação causal.

Novação causal é aquela que se opera pela mudança na causa debendi. Causa debendi, por sua vez, é a razão pela qual existe um determinado débito, como por exemplo, a existência de um empréstimo, ou a realização de uma compra e venda. Dessa forma, as novações modernas permitem o surgimento de uma obrigação plenamente nova.

Um exemplo do acima referido seria a novação de uma dívida de R$ 3.000 (três mil reais) por conta de uma compra e venda, a qual seria extinta me-diante o surgimento de um empréstimo de igual valor.

Como exemplo de uma novação meramente objetiva pode-se exemplifi car com aquela que se realiza na substituição da obrigação de dar 100 (cem) qui-los de açúcar por uma obrigação de entregar 300 (trezentos) quilos de feijão. Entregar o açúcar era a obrigação inicial, mas por conta do acordo entre as partes, o objeto da prestação foi alterado. O objeto, no caso, não só é a espé-cie de bem, como também a quantidade a ele referente.

Destaque-se que a alteração no prazo ou condição não implica em nova-ção da obrigação. Ainda, não implicam em novação o recebimento de parcela em atraso, a mudança do local de pagamento, a modifi cação simples do valor da dívida, o aumento ou diminuição de garantias, ou mesmo a substituição de um título representativo da dívida.

Apesar da lei não estabelecer maiores formalidades, a vontade de novar das partes deve se manifestar de forma expressa, clara e indubitável.

Como é perceptível, a novação se aproxima da dação em pagamento, es-tudada no tópico anterior. De todo modo, a distinção é clara: a dação em pagamento extingue a dívida, implicando na satisfação do credor, que por seu interesse, anuiu de forma desembaraçada em receber prestação diversa. A novação não implica nessa satisfação, pois o credor nada recebe.

A novação subjetiva pode ocorrer com a alteração tanto da fi gura do cre-dor como do devedor. A novação subjetiva passiva pode ocorrer por delegação ou expromissão.

(i) Delegação – Aqui se verifi ca o consentimento do devedor originá-rio. É a hipótese defi nida pelo art. 360, II, do Código Civil, caben-do ao devedor da obrigação inicial indicar o seu substituto. Dessa maneira, observa-se a novação por delegação quando um terceiro, que é o delegado, anui em tornar-se devedor perante o credor, que aqui é o delegatório, implicando assim na extinção da dívida primi-tiva. Destaque-se que na delegação (pura e simples) o credor aceita o novo devedor, mas sem renunciar às suas prerrogativas face ao antigo devedor. Trata-se da delegação imperfeita.

(ii) Expromissão–Da mesma forma que a delegação, também é novação subjetiva passiva. Trata-se, em verdade, de uma forma de expulsão

Page 84: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 84

do devedor originário, visto que um terceiro assume a dívida dele, com a concordância do credor, mas sem que seja necessária a anu-ência do devedor. É o que dispõe o art. 362 do Código Civil:

Art. 362. A novação por substituição do devedor pode ser efetuada independen-temente de consentimento deste.

O art. 360, III trata da novação no pólo ativo. Trata-se da substituição da fi gura do credor.

Os requisitos essenciais, conforme observado, são: (i) uma dívida anterior que se extingue; (ii) a criação de uma obrigação nova. Outros requisitos, no entanto, podem ser inferidos da própria dinâmica da novação, como: (iii) a validade da obrigação que se quer extinguir; (iv) o aliquid novi, ou seja, a al-teração em elementos substancias da obrigação; (v) o animus de novar; e (vi) legitimidade e capacidade para o ato de novar.

A obrigação natural pode ser novada. O pagamento feito tendo em vista uma obrigação natural não pode ser repetido, visto que ele é de fato devido e, por conta desse fato, chega-se a conclusão da possibilidade de sua novação. A nova obrigação, no entanto, será civil, e plena, contando com todos os elementos assecuratórios da sua exigibilidade.

De forma oposta, as obrigações nulas ou extintas não podem ser novadas. É inclusive entendimento expresso no art. 367 do Código Civil.

Art. 367. Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obrigações nulas ou extintas.

O ânimo de novar também é um elemento imprescindível. E a sua au-sência importa em mera confi rmação da primeira obrigação. Nesse sentido, menciona o art 361 do Código Civil:

Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação confi rma simplesmente a primeira.

Capacidade e legitimidade, como visto, também são requisitos daquele que procede com a novação. No que toca a legitimação, um exemplo é a no-vação feita de ascendente a descendente que necessita de do consentimento dos demais descendentes.

Caso essa nova obrigação seja inválida, continua em vigor a obrigação originária. É a mesma regra aplicada na dação em pagamento (art. 359 do Código Civil).

Afora a extinção da dívida primitiva, outros efeitos podem ser observados. Um deles é que com a criação de uma nova obrigação os acessórios e garantias insertos na dívida antiga são extintos.

Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário. Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o

Page 85: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 85

penhor, a hipoteca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação.

Na novação por delegação, isto é, onde há alteração no pólo passivo da obrigação, o credor assume novo devedor por sua conta e risco, exonerando o primitivo devedor. Se o novo obrigado for insolvente, não há que tentar buscar a satisfação do crédito face ao antigo, excetuando-se os casos em que se observa a atuação com má-fé.

Compensação

Compensação, no direito obrigacional, signifi ca um acerto de débito e crédito entre duas pessoas que detêm simultaneamente a condição recíproca de credor e devedor. A extinção dos débitos se opera até o montante em que se contrabalançam.

O conceito de compensação é fornecido pelo art. 368 do Código Civil:Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra,

as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.

O principal benefício é evitar-se uma dupla ação, facilitando-se o adim-plemento. A compensação, vale ressaltar, possui natureza de meio extintivo das obrigações.

No que toca à compensação, nosso sistema jurídico fi lia-se à tradição fran-cesa, determinando que a compensação se opera por força de lei, de forma independente da iniciativa dos interessados. O art. 368, já transcrito, é claro nesse sentido.

A compensação voluntária ocorre por intermédio do acordo entre as par-tes, e nesse sentido é inclusive possível compensar dívidas ilíquidas e não vencidas.

A compensação judicial, como o próprio nome já alude, é aquela que se processa em juízo, decorrendo dos princípios da compensação legal. Não é compensação legal, pois a dívida pode vir a angariar liquidez somente no correr do processo judicial.

A compensação de créditos possui requisitos de ordem tanto objetiva como subjetiva. Como requisitos de ordem objetiva pode-se mencionar: (i) a reciprocidade de créditos; (ii) a homogeneidade das prestações; (iii) a regular constituição e exigibilidade dos créditos.

A compensação somente extingue obrigações existentes entre as partes, excluindo-se as referentes a terceiros. Esse entendimento pode ser percebido na dicção do art. 376 do Código Civil:

Art. 376. Obrigando-se por terceiro uma pessoa, não pode compensar essa dívida com a que o credor dele lhe dever.

Page 86: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 86

A reciprocidade é afi rmada no art. 371 e traduz a idéia de que o devedor só pode compensar com o credor o que este lhe dever. Adicionalmente, esse dispositivo prevê uma exceção, qual seja, a possibilidade do fi ador se valer da compensação contra o credor do afi ançado.

Art. 371. O devedor somente pode compensar com o credor o que este lhe dever; mas o fi ador pode compensar sua dívida com a de seu credor ao afi ançado.

O art. 377 menciona a cessão de crédito. Nesse sentido, o devedor deve ser notifi cado da cessão de crédito. Caso não haja oposição à cessão feita por par-te do devedor, não poderá futuramente opor a compensação com o crédito que tinha em face do credor originário. Quando não tiver ocorrido qualquer comunicação sobre a cessão o devedor conserva esse direito de compensar o crédito, mas dessa vez face ao terceiro (cessionário). Logicamente, esse cessio-nário deverá reaver o que houver sido pago junto ao credor originário.

A obrigação natural, como visto, é inexigível, e, dessa forma, não pode ser compensada. Contudo, no tocante às obrigações prescritas, é importante atentar para um detalhe: se a prescrição se operou após a coexistência das dí-vidas, as mesmas devem ser reputadas compensadas, visto que a compensação se opera por força de lei. Trata-se de compensação pleno iure.

O art. 370 do Código Civil trata do requisito de que as prestações se-jam homogêneas. O objeto delas deve ser fungível. Dessa forma, reputam-se como compensáveis coisas da mesma natureza, e de qualidade semelhante. Por exemplo, não se pode compensar diferentes qualidades de café.

Art. 370. Embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis, objeto das duas prestações, não se compensarão, verifi cando-se que diferem na qualidade, quando especifi cada no contrato.

Os negócios jurídicos, como já examinado em aulas anteriores, se abre à análise nos planos da existência, validade e efi cácia. Se um dos créditos compensados for inexistente, nulo ou anulado, a dívida compensada deve ser revitalizada.

O art. 373 do Código Civil defi ne as hipóteses onde não pode ser obser-vada a compensação legal:

Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto:I–se provier de esbulho, furto ou roubo;II–se uma se originar de comodato, depósito ou alimentos;III–se uma for de coisa não suscetível de penhora.

O inciso I trata de casos de delito e, logicamente, a lei não pode transigir que eles se prestem à compensação; no inciso II, o comodato e o depósito são contratos que afastam a idéia de fungibilidade entre as prestações e os alimen-tos, por se destinarem à subsistência dos indivíduos (se fossem compensados

Page 87: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 87

poderiam colocar em risco a vida humana); no inciso III, a impenhorabilida-de redunda na incompensabilidade, tendo como exemplo o salário, que não pode ser compensado.

A compensação, como visto, produz os mesmo efeitos do pagamento. As obrigações são resolvidas e os credores (e devedores) recíprocos restam satis-feitos. A compensação legal dinamiza essa satisfação entre as partes.

Transação

A transação é uma forma de extinção da obrigação que tem por escopo impedir que as partes ingressem em juízo, ou uma vez já tendo recorrido ao judiciário, que coloquem fi m à lide.

O sentido da transação como forma de extinção das obrigações é determi-nado pelo art. 840 do Código Civil. O artigo, cumpre destacar, está presente na seção do código dedicada aos contratos:

Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.

Dessa forma, nesse instituto de natureza marcadamente contratual, cada uma das partes abre mão de parcela de seus interesses no intuito de impedir ou por fi m uma demanda judicial. A ocorrência de transação não signifi ca que alguma das partes abriu mão de seus direitos na totalidade, mas sempre será necessário que parte de suas pretensões sejam afastadas. A idéia de con-cessões mútuas deve prevalecer.

Dessa forma, os requisitos essenciais da transação são: (i) acordo de vontades; (ii) concessões mútuas; e (iii) extinção de obrigações litigiosas ou duvidosas.

A transação, como observado, é um negócio jurídico bilateral e de caráter contratual. Um dos indicativos desse enquadramento, além de ser tratado o instituto no campo próprio dos contratos, é a possibilidade de estabelecimen-to da pena convencional para a transação. Essa possibilidade decorre do art. 847 do Código Civil:

Art. 847. É admissível, na transação, a pena convencional.

A transação é indivisível, pois quando uma de suas cláusulas é nula, assim será todo o negócio (art. 848 CC). Em relação à interpretação da transação, a mesma deve ser restritiva (art. 843 CC).

Existe certa celeuma sobre ter a transação um caráter declaratório ou cons-titutivo. De acordo com o art. 843 do Código Civil, observa-se um caráter eminentemente declaratório encampado pela lei. Na maior parte das vezes certamente será esse o perfi l dominante. Contudo, por vezes, o caráter cons-titutivo se faz marcante, em especial quando a transação passa a congregar novos direitos além daqueles que são litigiosos.

Page 88: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 88

Poder-se-ia afi rmar então que, sendo a transação simples, seu efeito será declaratório.

A transação pode ser ainda judicial ou extrajudicial, dependendo se ocorre dentro ou fora do processo. O art. 842 destaca que:

Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.

A transação extrajudicial não necessita de maiores formalidades, impor-tando preponderantemente o seu conteúdo. Sendo extrajudicial, a homo-logação não é necessária, servindo essa apenas para suprimir certos trâmites processuais.

Por conta de sua natureza contratual, a desistência unilateral da transação não é admitida.

A transação não pode ter por objeto todos os direitos, somente aqueles patrimoniais de caráter privado. Essa é a regra do art. 841 do Código Civil. Direitos indisponíveis como os relativos ao estado e capacidade das pessoas, os direitos puros de família e os direitos personalíssimos não podem ser ob-jeto desse contrato.

Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação.

A transação pressupõe plena capacidade. Para que os incapazes possam transigir, da mesma forma que a alienação, é necessário que haja comple-mentação da vontade, providenciada pelo representante, bem como da au-torização judicial para a prática do ato. A legitimação, como já examinado, também é elemento necessário para que a vontade de realizar transação seja exercitada.

Em relação ao mandato, o mandatário deve ter poderes específi cos para transigir. A procuração do advogado deve prever isso.

Conforme já destacado no art. 847 do Código Civil, a cláusula penal pode ser inserida num contrato de transação. É uma cláusula de reforço ao cum-primento desse pacto entre as partes. O princípio da exceção do contrato não cumprido (art. 476 CC) tem plena aplicação, bem como as outras noções da teoria geral dos contratos.

As convenções referentes à transação operam efeito somente entre as par-tes. Essa regra da relatividade está no art. 844, caput, do Código Civil:

Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervie-rem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.

Page 89: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 89

Da mesma forma que a novação, anteriormente estudada, considerações especiais acerca da evicção devem ser traçadas. A lei demonstra essa preocu-pação no art. 845 do Código Civil:

Art. 845. Dada a evicção da coisa renunciada por um dos transigentes, ou por ele transferida à outra parte, não revive a obrigação extinta pela transação; mas ao evicto cabe o direito de reclamar perdas e danos.

Parágrafo único. Se um dos transigentes adquirir, depois da transação, novo di-reito sobre a coisa renunciada ou transferida, a transação feita não o inibirá de exercê-lo.

A perda do objeto não tem o condão de repristinar a dívida, isto é, fazer com que ela ressurja.

Deve-se, por fi m, destacar a idéia de que a transação deve ser sempre in-terpretada de modo restritivo. Esse entendimento é decorrência lógica da natureza do instituto que importa sempre na renúncia de algum direito. As renúncias não podem ser interpretadas ampliativamente.

Compromisso

O compromisso é um instrumento jurídico mediante o qual atribui-se a decisão de certos confl itos a árbitros. Pessoas plenamente capazes escolhem árbitros para solucionar suas avenças. Antes mesmo do surgimento de qual-quer confl ito, as partes prevêem quem o solucionará. Essa possibilidade en-contra assento legal na lei nº 9.307/96, a qual, em seu artigo 1º, destaca que:

Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para diri-mir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

O Código Civil de 2002 trata da matéria em apenas três artigos, relegando à lei especial e ao código processual um tratamento mais pormenorizado do tema.

O art. 851 do Código Civil se refere à cláusula compromissória nos con-tratos, permitindo a solução dos litígios em juízo arbitral. Ele dispõe:

Art. 851. É admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver lití-gios entre pessoas que podem contratar.

O art. 852 do Código Civil dispõe sobre os casos em que não é possível a utilização de compromisso:

Art. 852. É vedado compromisso para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial.

De acordo com a lei nº 9307/96, a sentença arbitral é considerada título executivo judicial.26 O árbitro é juiz de fato e de direito do confl ito que lhe é levado. Ainda, os atos executórios dessa decisão arbitral devem ser procedidos

26. O art. 584, III do CPC defi ne que: Art.

584. São títulos executivos judiciais:

(...) III–a sentença homologatória de

conciliação ou de transação, ainda

que verse matéria não posta em juízo;

(Redação dada pela Lei nº 10.358, de

27.12.2001).

Page 90: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 90

pelo poder público. Dessa forma, pode-se observar que mesmo no caso de compromisso, certos atos ainda carecerão da intervenção do poder judiciário.

A arbitragem é um instrumento negocial e tende a assumir papel cada vez mais relevante nesse contexto especializado. Como motivos que incentivam o seu uso, pode-se mencionar o sigilo e a celeridade. A celeridade é razão notó-ria, visto que foge da demanda sempre crescente do poder judiciário; o sigilo por sua vez, se dá na medida em que a regra geral dos processos tramitando no Poder Judiciário é a publicidade de seus respectivos atos.

Um detalhe a destacar é o fato de que as partes podem pactuar a utilização de um juízo tecnicamente mais especializado preparado para a solução desse litígio.

A atual lei supera os principais entraves que a arbitragem enfrentava an-teriormente: (i) não havia dispositivo legal possibilitando o uso da cláusula compromissória; e (ii) havia necessidade de homologação do laudo arbitral pelo poder judiciário.

O compromisso tem um caráter contratual evidente. Através dele, não só confl itos são extintos, mas outras obrigações são criadas. Pode árbitro criar, modifi car ou extinguir direitos das partes.

Mas como entender essa natureza contratual? Através do pacto compro-missório, as partes comprometem-se, num eventual litígio, a submeterem--se ao árbitro e não ao Poder Judiciário. É uma contratação feita de modo preliminar. Alguns autores denominam essa relação sujeita à arbitragem de contrato base. O art. 4º da lei de arbitragem, nesse sentido, defi ne:

Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

É interessante destacar que sob a égide do Código de 1916, a negativa de uma das partes em submeter-se à arbitragem implicava nos efeitos do inadimplemento contratual. A parte prejudicada poderia pleitear perdas e danos. A previsão de execução específi ca da avença não era ainda existente à época.

Confusão

Existe confusão quando se observa, numa determinada relação obriga-cional, a junção numa mesma pessoa das fi guras de credor e devedor. Há impossibilidade lógica de que a obrigação persista. O artigo 381 do Código Civil prevê que:

Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.

A confusão, segundo o art. 382, pode ser total ou parcial:

Page 91: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 91

Art. 382. A confusão pode verifi car-se a respeito de toda a dívida, ou só de parte dela.

Quando o estado de confusão acaba, a obrigação é restabelecida, congre-gando novamente todos os seus caracteres:

Art. 384. Cessando a confusão, para logo se restabelece, com todos os seus acessó-rios, a obrigação anterior.

A confusão pode se operar de diversas formas. Pode ocorrer por ato inter vivos ou causa mortis, nesse caso, quando o herdeiro assume o patrimônio do credor e vê extinto o seu débito. Destaque-se que enquanto não houver partilha dos bens envolvidos na sucessão, não há que se falar em confusão. Na confusão por ato inter vivos, o mesmo pode ainda ser gratuito ou oneroso; a título singular ou universal.

O art. 383 do Código Civil trata da hipótese de confusão em obrigações solidárias. De acordo com o dispositivo, os efeitos da confusão não se comu-nicam às demais fi guras abarcadas pela solidariedade.

Art. 383. A confusão operada na pessoa do credor ou devedor solidário só ex-tingue a obrigação até a concorrência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto ao mais a solidariedade.

Em breve apanhado, são seus requisitos: (i) numa só pessoa devem ser congregadas as qualidades de credor e de devedor; (ii) essa reunião de qua-lidades deve ser atinente a uma mesma relação obrigacional; e (iii) não deve haver patrimônios apartados.

Remissão

A remissão ocorre quando o credor libera do devedor do cumprimento da obrigação, no todo ou em parte, sem que tenha recebido o pagamento que lhe é devido.

Trata-se de uma modalidade de renúncia, e como já observado, renunciá-veis são os direitos disponíveis, reais, pessoais e intelectuais.

Sob uma perspectiva mais técnica, remissão e renúncia apresentam uma distinção: a remissão depende da anuência do devedor, que mesmo tendo sua dívida perdoada pelo credor, pode querer pagar, tendo em vista questões morais. A remissão é ato unilateral, mas somente se implementa com a con-cordância do obrigado. Na renúncia, essa necessidade de anuência por parte do devedor não está presente.

As partes podem livremente determinar parâmetros para essa remissão, dando-lhe uma feição contratual e, portanto, bilateral.

Remissão e doação são institutos diversos. A remissão depende da anuên-cia do devedor, apresentando um caráter sinalagmático. A doação, por sua vez, é uma liberalidade, qualidade nem sempre atribuível à remissão; Para o

Page 92: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 92

direito pouco importa o intuito com que a remissão é feita, não ocorrendo o mesmo para a doação.

É importante observar que a remissão pode ser expressa ou tácita. A sua for-ma tácita é especifi cada nos arts. 386 e 387 do Código Civil, ao disporem que:

Art. 386. A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular, prova desoneração do devedor e seus co-obrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor capaz de adquirir.

Art. 387. A restituição voluntária do objeto empenhado prova a renúncia do credor à garantia real, não a extinção da dívida.

Esses artigos contemplam uma presunção de que foi feita a remissão. Essa presunção não é absoluta, pois qualquer um dos atos acima referidos pode ser inquinado de algum vício de vontade.

Ao remir a dívida principal, o credor promove a conseqüente extinção das obrigações acessórias. A recíproca, conforme já examinado, não é verdadeira, por é perfeitamente possível a extinção da obrigação acessória sem que prin-cipal seja atingida.

Quando houver pluralidade de devedores, deve-se ter em mente que:Art. 388. A remissão concedida a um dos co-devedores extingue a dívida na parte

a ele correspondente; de modo que, ainda reservando o credor a solidariedade contra os outros, já lhes não pode cobrar o débito sem dedução da parte remitida.

No tocante à indivisibilidade, vale ainda destacar o art. 262 do Código Civil, o qual dispõe que “se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não fi cará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.” O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compensação ou confusão, conforme determinado pelo parágrafo único do mesmo artigo.

2. QUESTÕES DE CONCURSO:

24º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase

46–Alberto, na qualidade de credor, visando por fi m a uma obrigação pactuada com Ricardo, aceita receber do devedor (Ricardo) um ob-jeto diverso daquele estabelecido no instrumento obrigacional e, assim procedendo, realizou uma:

(a) Compra e venda;(b) Doação;(c) Novação subjetiva passiva;(d) Dação em pagamento.

Page 93: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 93

Concurso para o cargo Advogado do BNDES (2004)

45. As normas em vigor que disciplinam o instituto da novação, de acordo com a concepção moderna e rejeitando a concepção roma-na, têm merecido encômios da doutrina, que não dispensa elogios à sua excelência no ponto de vista técnico. Sobre esse instituto da relação obrigacional, é certo afi rmar-se que:

(a) a novação subjetiva se dá se as partes acordam na modifi cação da espécie obrigacional;

(b) a novação por substituição do devedor pode ser efetuada indepen-dente do consentimento deste;

(c) a novação, como o pagamento e a compensação, produz a imediata satisfação do crédito;

(d) se, nas obrigações indivisíveis, um dos credores novar a dívida, a obrigação se extingue para os outros;

(e) se o novo devedor for insolvente, terá sempre o credor, que o acei-tou, ação regressiva contra o primeiro.

Concurso para o cargo de Advogado Júnior da BR Distribuidora (2004)

39. As obrigações podem ser extintas por diversos meios. O mais usual é o pagamento, com o cumprimento voluntário. Há, todavia, ou-tras formas de extinção, sem pagamento. Entre elas, a que deste se aproxima, ocorrendo, da mesma maneira, a liberação direta é a:

(a) novação;(b) compensação;(c) remissão;(d) confusão;(e) transação.

120º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

27. “A” deve a “B”, R$ 8.000,00. “C”, amigo de “A”, sabendo do débi-to, pede ao credor que libere “A”, fi cando “C” como devedor. No caso está confi gurada a

(a) novação subjetiva ativa;(b) novação subjetiva passiva por delegação;(c) novação objetiva;(d) novação subjetiva passiva por expromissão.

28. A operação de mútua quitação entre credores recíprocos é:(a) confusão;(b) compensação;

Page 94: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 94

(c) imputação;(d) transação.

125º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

26. A novação ocorre quando:(a) o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida,

com o intuito de extinguir a obrigação;(b) um novo devedor sucede ao antigo, fi cando este último quite com

o credor;(c) se confundem em uma mesma pessoa as qualidades de credor e

devedor;(d) duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da ou-

tra, de dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis, extinguindo--se as obrigações, até onde puderem ser abatidas.

Gabarito: 24 (d); 45 (b); 39 (c); 27 (d); 28 (b); 26 (b)

Page 95: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 95

AULA 11–ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E PAGAMENTO INDEVIDO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Enriquecimento sem causa – Ação de in rem verso – Pagamento indevido – Delineamentos gerais da repetição

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Konder, Carlos Nelson. “Enriquecimento sem causa e pagamento indevido”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-consti-tucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 369/388.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. Rio de Janei-ro: Forense, 2004; pp. 285/304.

Bevilaqua, Clovis. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940; pp. 111/120.

1. ROTEIRO DE AULA:

Enriquecimento sem causa

O Código Civil trata do pagamento indevido nos artigos 876 a 883 e o enriquecimento sem causa nos artigos 884 a 886. A partir do enqua-dramento conferido pelo Código aos dois institutos, pode-se classifi cá-los como fontes unilaterais de obrigações. Ao contrário do que dispõe o Có-digo, a doutrina tende a qualifi car essas duas fi guras como fonte autônoma de obrigações.

No direito obrigacional usualmente ocorre o enriquecimento de uma par-te em detrimento de outra, enriquecimento esse que deve ser fundado numa justa causa. É o que ocorre, por exemplo, na doação.

A idéia que norteia o enriquecimento ilícito é justamente a de que esse in-cremento patrimonial se opera não fundado em justa causa, ou pelo menos, sem causa jurídica. É o exemplo daquele que paga dívida inexistente.

Page 96: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 96

Dessa forma, o enriquecimento sem causa é o aumento patrimonial sem base jurídica que o legitime. È fonte autônoma de obrigação da mesma forma que os atos unilaterais.

Interpretando a legislação vigente, pode-se concluir que o enriquecimento sem causa e o pagamento indevido constituem verdadeiras fontes de obriga-ções. O ato de realizar um pagamento importa na extinção da dívida, contu-do, o pagamento indevido opera de forma inversa, pois o mesmo não extin-gue a dívida e ainda cria para aquele que o recebe a obrigação de devolvê-lo. O solvens, isto é, aquele que efetuou o pagamento, torna-se titular de uma ação de repetição.

O princípio que veda o enriquecimento sem causa não pode ser confun-dido com a condenação em perdas e danos, na medida em que não se trata aqui do manejo da responsabilidade civil para resolver a patologia de eventu-ais relações. No tratamento do enriquecimento sem causa a noção de culpa é irrelevante.

Nesse sentido, pode-se notar a pluralidade de correntes sobre a natureza jurídica do pagamento indevido. As legislações estrangeiras igualmente per-fi lham distintos entendimentos. Em apanhado sucinto, pode-se dizer que a doutrina nacional segue a tradição francesa, que entende o enriquecimento sem causa como fonte autônoma de obrigação, isto é, um ato unilateral.

A noção geral de enriquecimento sem causa é enunciada pelo art. 884 do Código Civil, da seguinte forma:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obri-gado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.

Cumpre observar a relação de imediatidade perceptível quanto ao enri-quecimento de uma parte e o empobrecimento de outra. Há, inclusive, seg-mentos doutrinários que preferem a denominação empobrecimento ilícito.

A positivação do enriquecimento ilícito (ou “sem causa”) foi uma das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 para o campo do direito das obrigações. Não que a doutrina do enriquecimento ilícito não estivesse ama-durecida anteriormente, mas ela certamente ganha reforço com a atual pre-visão legal. Adicionalmente, esse tratamento expresso contribui para que situações marcadas pelo enriquecimento ilícito sejam levadas aos tribunais e debatidas não somente como aplicação de um princípio geral de Direito, enquadramento detido pelo enriquecimento sem causa anteriormente à sua atual positivação.

A restituição decorrente do enriquecimento sem causa obedece concomi-tantemente aos dois parâmetros acima referidos: por um lado, essa devolução

Page 97: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 97

não pode exceder o enriquecimento do agente recebedor; da mesma forma, ela não pode ultrapassar o empobrecimento sofrido pelo outro agente.

O valor da restituição será calculado na data em que a mesma ocorrer. Ainda que mais valiosa a coisa, o valor da restituição deve versar apenas sobre o quantum relativo ao enriquecimento do agente.

Essa obrigação de restituir alcança da mesma forma os benefícios alcan-çados, como os frutos. Se equivocadamente um apartamento foi dado em dação de forma a saldar uma dívida, os aluguéis são igualmente devidos com a restituição do imóvel.

Ação de in Rem Verso

A ação de in rem verso, ou seja, a ação de que se vale quem sofreu o em-pobrecimento sem causa jurídica, deve observar os seguintes requisitos: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) um empobrecimento correlativo; (iii) ausência de causa jurídica para sua ocorrência; e (iv) ausência de interesse pessoal do empobrecido.

O enriquecimento é o elemento central. No momento de exercício da ação, ele deve estar ainda presente. Se já não mais subsiste, essa ação carecerá de interesse processual. Outro dado importante é a aferição das circunstân-cias no caso concreto, que deve ser procedida pelo julgador, avaliando em que medida o enriquecimento efetivamente se processou.

O enriquecimento é a transferência de porção do patrimônio de alguém para a esfera jurídica de outrem sem que tenha havido o desejo dessa trans-missão, ou que esse mesmo desejo tenha se manifestado de forma equivocada. Pode se operar por intermédio de diversos institutos jurídicos, como a remis-são indesejada de uma dívida ou uma liberalidade feita à pessoa equivocada.

Nos casos de pagamento indevido, que é espécie de enriquecimento sem causa, além de alguém que enriqueça de forma indevida, é necessária a exis-tência de alguém que concomitantemente empobreça. Observa-se um nexo de causalidade entre essas duas ações, isto é, um fato jurígeno que redunda em vantagem para um e desvantagem para outro. Ainda, a vantagem aqui referida deve ser mensurável economicamente.

Conexo á idéia de enriquecimento é igualmente importante a falta de cau-sa. Causa é o ato jurídico que justifi ca a inclusão de um direito no patrimônio jurídico de alguém. O art. 885 do Código Civil defi ne:

Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifi que o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

Como visto, o enriquecimento sem causa redunda no surgimento de obri-gações sem que para isso concorra a vontade dos agentes. Uma vez efetuado, por exemplo, um pagamento indevido, surge aquele que o recebe a necessi-

Page 98: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 98

dade de devolvê-lo. Para o surgimento dessa obrigação não é necessária ema-nação do empobrecido.

A subsidiariedade da ação de in rem verso é determinada no art. 886 do Código Civil. Essa ação deve ser usada quando o cabimento de outras medi-das não for possível, como ações fundadas em cláusulas contratuais ou ações que busquem a anulação ou reconhecimento da nulidade de negócios jurídi-cos. Na ação que busca dirimir o enriquecimento sem causa, apenas o que foi indevidamente recebido pode ser pleiteado, não se podendo aduzir pedidos como perdas e danos e pagamento de cláusula contratual.

Pagamento Indevido

Pagamento indevido é modalidade peculiar de enriquecimento sem cau-sa e, dessa forma, segue os mesmos princípios gerais aplicados àquele27. Da mesma forma, a idéia que norteia o instituto é a de reequilíbrio patrimonial.

Já se observou em aulas anteriores a relevância do pagamento como forma natural de extinção das obrigações. Através do cumprimento da obrigação, seja ela de dar, fazer ou não fazer, ocorre a solução do vínculo que liga deve-dor e credor.

Nesse sentido, o instituto do pagamento é inicialmente tratado pelo art. 876 do Código Civil, o qual determina que:

Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fi ca obrigado a resti-tuir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.

De forma simples, têm-se que, por erro, alguém realiza pagamento referen-te à dívida inexistente (indébito objetivo) ou o faz, tendo em vista dívida de fato existente, mas em benefício de pessoa equivocada (indébito subjetivo).

Diante do equívoco surge a possibilidade de repetir, isto é, de reaver o que foi pago. A idéia inerente ao pagamento indevido é o erro, a noção equivoca-da de vinculação a uma obrigação que na realidade não existe. Trata-se de um requisito, pois se o solvens, mesmo sabendo da inexistência de débito, realiza o pagamento, não há que se pleitear repetição.

Do pagamento indevido surge uma obrigação que vincula o accipiens à devolução do indevidamente recebido. Essa obrigação tem causa na lei, no-tadamente no art. 876 do Código Civil, e não deixa de ser um fato curioso na medida em que um pagamento, meio natural de extinção de obrigações, é causa geradora de uma nova relação crédito/débito.

No que concerne aos requisitos do pagamento indevido, pode-se elencar os seguintes: (i) pagamento (aqui concebido no sentido amplo); (ii) ausência de causa jurídica; e (iii) erro, sendo aqui irrelevante a espontaneidade do pa-gamento para tornar obrigatória a restituição do mesmo.

27. Destaque-se que embora próximo

ao enriquecimento sem causa, o paga-

mento indevido, enquanto instituto,

conserva especifi cidades próprias,

como a ação de repetição, expediente

processual diverso da actio in rem

verso, modalidade genérica cabível nos

casos de enriquecimento ilícito.

Page 99: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 99

Em relação ao erro do solvens, é necessário atentar, preliminarmente, ao art. 877 do Código Civil, ao dispor que:

Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.

Conforme enuncia o dispositivo transcrito, no caso de pagamento inde-vido, há a necessidade de provar o erro. No entanto, tal artigo deve ser in-terpretado de modo restrito, como se referindo apenas ao pagamento sem causa jurídica. Não há que estender a imposição desse ônus probatório na confi guração do enriquecimento ilícito.28

Caio Mário destaca ainda, no tocante ao erro, que:“A repetição do indébito comporta ainda o erro quantitativo quando o devedor

paga mais do que deve; ou quando paga por inteiro a um dos co-credores, no caso de a obrigação não ser solidária e ser divisível, ou ainda quando por erro sobre a situação real, paga a dívida já extinta”.29

Da mesma forma, observa-se a existência de pagamento indevido quando se salda dívida condicional antes do implemento da condição suspensiva. Confor-me observado, antes do implemento do evento futuro e incerto, não há direito propriamente dito, mas tão somente expectativa de direito. Não há obrigação a ser solvida e, portanto, o pagamento erroneamente vinculado é repetível.

No entanto, o mesmo não ocorre com as obrigações sujeitas a termo ini-cial (suspensivo). No termo, o evento que implica a efi cácia da obrigação é futuro e certo. A obrigação já existe, apenas sua efi cácia é que se condiciona ao implemento do termo. O direito do credor de receber já existe e quando o prazo aproveitar ao devedor, este pode dele abrir mão, pagando antecipada-mente a obrigação. Não haverá, nesse caso, que se falar em repetição.30

Delineamentos gerais da repetição

Os efeitos do pagamento indevido, no que concerne à repetição, podem variar de acordo com a intenção do accipiens, na medida em que a conduta deste pode ser dar em consonância com a boa ou má-fé.

De modo sucinto, em havendo boa-fé, algumas peculiaridades da repeti-ção deverão ser observadas: (i) o accipiens deve restituir o recebido e os frutos estantes; (ii) a devolução deve ser dar, prioritariamente em espécie, mas na impossibilidade disso ocorrer, deve o accipiens restituir o valor estimado em dinheiro; (iii) o accipiens tem direito aos frutos percebidos e não é obrigado a devolver a estimação pecuniária daqueles que já consumiu; (iv) tem ele direito à restituição dos valores referentes às benfeitorias úteis e necessárias (e o conseqüente direito de retenção), bem como o de levantar as benfeitorias voluptuárias; e (v) o accipiens somente responde pela deterioração ou pereci-mento do objeto quando transigir com culpa.

28. O enriquecimento sem causa, como

visto, é gênero que compreende como

espécie o pagamento ilícito. A prova

do erro é exigência apenas quando se

intenta mostrar a ocorrência da espécie

em questão.

29. Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro:

Forense, 2004; p. 297.

30. Destaque-se que, se por outro

lado, o termo aprouver ao credor, esse

poderá enjeitar o recebimento da

prestação até o momento fi xado para o

cumprimento da obrigação.

Page 100: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 100

Por outro lado, a lei é bem mais severa com o accipiens de má-fé, determi-nando: (i) a restituição da coisa, bem como os frutos e acessões próprios a ela; (ii) o accipiens de má-fé pode somente pleitear o valor das benfeitorias neces-sárias, sem nem mesmo o direito de retenção; (iii) quando do perecimento ou dano à coisa deve responder pela estimação pecuniária da mesma, ainda que não tenha concorrido com culpa, excepcionando-se os casos em que o dano ocorreria independentemente do pagamento indevido.

Ainda na seara dos efeitos, aquele que recebe imóvel por conta de paga-mento indevido está incumbido a auxiliar o solvens na retifi cação do registro.

Se o accipiens, procedendo de boa-fé, alienar o imóvel antes da reivindica-ção, fi ca obrigado a restituir ao solvens o valor auferido na transação. Estando, entretanto, de má-fé, certa é a possibilidade do solvens exigir quantum inde-nizatório referente a perdas e danos.

Indistintamente, no caso de doação, aquele que pagou equivocadamente pode demandar o imóvel do benefi ciado.

A primeira das hipóteses de impossibilidade de repetição está inserta no art. 881:

Art. 881. Se o pagamento indevido tiver consistido no desempenho de obrigação de fazer ou para eximir-se da obrigação de não fazer, aquele que recebeu a prestação fi ca na obrigação de indenizar o que a cumpriu, na medida do lucro obtido.

A prestação se esgota no ato de sua execução, no fazer, ou ainda numa omissão, nesse caso, não fazer. A regra aqui é que o accipiens fi ca obrigado a indenizar na medida do benefício auferido.

Atentando aos artigos 882 e 883 do Código Civil, pode-se perceber três casos de exclusão do direito de repetição: (i) no pagamento de dívida já pres-crita; (ii) no pagamento de obrigação natural; e (iii) quando o pagamento objetiva fi m ilícito, imoral ou proibido por lei.

A razão de ser dessa tripartição de causas é adotar a metodologia exposta pelo Código, no entanto, como já foi destacado, as obrigações naturais com-portam as obrigações prescritas.

O art. 882 do Código Civil enuncia que a impossibilidade de repetição atinge tanto as dívidas prescritas como as obrigações juridicamente inexigí-veis (leia-se, naturais):

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

A prescrição atinge a pretensão, mas não o direito em si, e tendo isso em vista, o pagamento de dívida prescrita, bem como de qualquer outra obriga-ção natural (inexigível), não importa para o accipiens a necessidade de repeti-ção. São obrigações incompletas, uma vez que são caracterizadas apenas pela existência de débito, sem responsabilidade:

Page 101: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 101

Art. 883. Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fi m ilícito, imoral, ou proibido por lei.

Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de estabe-lecimento local de benefi cência, a critério do juiz.

A associação dos contratantes almejando fi m reprovado pela lei tem por efeito macular o direito de repetição. É uma aplicação do adágio de que a ninguém é dado se benefi ciar da própria torpeza. Se o solvens procede de modo torpe, dando algo e pretendo fi nalidade ilícita ou imoral, não tem ação de repetição.

Por fi m, outra hipótese de não repetição também é contemplada no art. 880 do Código Civil:

Art. 880. Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a pretensão ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas aquele que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fi ador.

Aqui a lei traça especial consideração com aquele que recebe de boa-fé pa-gamento, crendo ser este decorrente de dívida verdadeira, e por conta disso, deixa de manter o título e garantias referentes ao crédito que crê recebido. O art. 880 do Código determina uma proteção ao accipiens que procede nessas condições, sendo corolário da idéia de segurança das relações sociais e home-nagem à boa-fé.

2. CASO GERADOR:

Numa manhã de sábado, João, dirigindo de forma desatenta, acidentalmente colidiu com um caminhão da transportadora Cacique Transportes Ltda que re-tornava à garagem da empresa, onde sofreria reparos no correr da semana.

Nenhum dos dois veículos envolvidos na colisão possuía seguro, fi cando a cargo dos proprietários acordar a reparação dos prejuízos.

João, assumindo prontamente a culpa, transferiu o montante de R$ 1.200 (hum mil e duzentos reais) para conta bancária de titularidade da transportado-ra, a fi m de dar início, o quanto antes, à reparação dos prejuízos.

Na tarde do mesmo sábado, o caminhão foi levado à assistência técnica, onde o valor do serviço foi fi xado em 800 reais. Agindo de fora diligente, os funcionários da ofi cina repararam o veículo ainda no mesmo dia.

Alguns dias depois, estranhando a não existência de nenhum contato por parte da direção da transportadora no que concerne à devolução do valor excedente, João decide ir até a sede da sociedade no intuito de reaver os R$ 400 (quatrocen-tos reais) não gastos nos reparos.

Page 102: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 102

Para sua surpresa, o diretor da empresa afi rma que não devolveria esse valor, por conta de lucros cessantes, transtornos, danos morais e toda sorte de inconve-nientes que sofreu por conta da não utilização de seu veículo.

Revoltado com a postura do diretor da empresa, João busca aconselhamento ju-rídico sobre como agir para reaver o valor não gasto pela empresa com os reparos. Como você aconselharia João no caso narrado acima?

Linha geral de resposta:

João agiu de forma proba, proporcionando a reparação ao dano que causou. A indenização devida a título de perdas e danos, sob o prisma material, enfoca o prejuízo efetivamente causado e o lucro cessante. No caso em tela, o prejuízo não excede a 800 reais, valor fixado para o reparo. Não há lucro cessante, pois o reparo do caminhão ocorreu prontamente, sem falar que o mesmo se destinava à garagem da Ltda, onde passaria por período de manutenção.

Qualquer quantia, afora a efetivamente comprovada, somente seria devida mediante expresso acordo entre as partes. Não pode o diretor da sociedade fixar o valor de danos morais de forma arbitrária. Deve para isso se valer do Poder Judiciário.

Nesse sentido, visando à repetição do indevidamente pago, pode João se valer da ação de in rem verso.

Page 103: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 103

AULA 12–INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Mora do devedor – Mora do credor–Purgação de mora – Perdas e Danos – Culpa do devedor – Caso fortuito e força maior–Considerações sobre a cláusula de não indenizar

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Savi, Sergio. “Inadimplemento das obrigações, Mora e Perdas e Danos”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitu-cional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 457/488.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 267/302.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 689/724.

1. ROTEIRO DE AULA:

Quando uma dívida deixa de ser paga, ocorre atraso, ou o pagamento é feito de forma equivocada, a lei confere ao credor mecanismos para fazer com que essa obrigação seja cumprida, ou no caso de impossibi-lidade, que esse credor insatisfeito encontre formas de minorar a sua insatisfação.

A crise no cumprimento da obrigação se manifesta juridicamente a partir do momento em que o pagamento se torna exigível e atentando a isso, exis-tem situações em que a própria lei antecipa o cumprimento da obrigação, como fi gura, por exemplo, no art. 333 CC.31

O inadimplemento da obrigação pode ser absoluto ou relativo. O critério que possibilita essa diferenciação, reside no parágrafo único do art. 395 do Código Civil, qual seja, a utilidade da prestação realizada fora das condições especifi cadas.

31. Art. 333. Ao credor assistirá o direito

de cobrar a dívida antes de vencido

o prazo estipulado no contrato ou

marcado neste Código:I–no caso de

falência do devedor, ou de concurso

de credores;

II–se os bens, hipotecados ou

empenhados, forem penhorados em

execução por outro credor;

III–se cessarem, ou se se tornarem

insufi cientes, as garantias do débito,

fi dejussórias, ou reais, e o devedor,

intimado, se negar a reforçá-las.

Parágrafo único. Nos casos deste artigo,

se houver, no débito, solidariedade

passiva, não se reputará vencido quan-

to aos outros devedores solventes.

Page 104: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 104

Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices ofi ciais regularmente esta-belecidos, e honorários de advogado.

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

No inadimplemento absoluto, a obrigação não foi cumprida em confor-midade com as condições defi nidas e não mais poderá sê-lo. Essa impossi-bilidade de cumprimento é tarefa para o julgador e varia de acordo com o caso concreto. Se o juiz considerar que ainda há utilidade para a o credor no cumprimento da obrigação, estará o devedor em mora.

Não é a mera aferição da possibilidade do cumprimento da obrigação que distingue o inadimplemento relativo (mora) do inadimplemento absoluto. O enfoque correto é o aspecto da utilidade para o credor, o qual somente pode ser determinado no caso concreto.

O inadimplemento relativo, ou mora, pode ser imputada tanto ao deve-dor como ao credor. Quando se trata de mora do devedor (solvendi), têm-se o retardamento culposo no cumprimento da obrigação, sendo, por outro lado, a mora do credor (accipiendi) a ocorrência de um fato jurídico que se aper-feiçoa independentemente do fato de ter o credor procedido culposamente.

A lei é expressa no sentido de que deve haver culpa no caso e mora solven-di, destacando-se os arts. 396 e 399 do Código Civil:

Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, em-bora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Não se trata somente de alusão ao critério temporal. A mora não se liga apenas ao retardamento, mas de forma geral, a irregularidades no adimple-mento de uma obrigação. Vale lembrar que lugar do pagamento e formali-dades defi nidas também são fatores a serem considerados para a constituição em mora (art. 394 do Código Civil).

Mora do devedor

Salvo exceções, é necessário para que haja mora do devedor que a dívida já esteja vencida. Nas obrigações líquidas e certas, com prazo previsto para o cumprimento, o simples advento dessa data importa na mora do devedor. Trata-se, nessa hipótese, de mora ex re, que decorre da própria coisa. É a regra dies interpellat pro homine, a qual destaca, como visto, que apenas o fato do

Page 105: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 105

devedor se deparar com dia do pagamento já o constitui em mora. No Códi-go Civil, essa regra se encontra no art. 397, caput.

Se, pelo contrário, a obrigação possuir prazo indeterminado, haverá a ne-cessidade de interpelação (ou notifi cação ou protesto) do devedor para que o mesmo seja constituído em mora. Trata-se, então, da mora ex persona, e o seu assentamento legal está no parágrafo único do art. 397:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

No caso de uma obrigação negativa, a mora se verifi ca a partir do dia de prática do ato, conforme expõe o art. 390 do Código Civil:

Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster.

Como já destacado, a mora do devedor possui dois elementos: um obje-tivo, que é a exigibilidade da obrigação, e outro subjetivo, que é a culpa do devedor. Se este não concorreu com culpa para o não cumprimento da obri-gação, não podem lhe ser imputados os efeitos da mora. Tendo isso em vista, o devedor, provando caso fortuito ou força maior, afasta a mora.

Afora esses elementos, necessária ainda é a constituição em mora. A mora ex re se opera com o simples advento do termo; a mora ex persona, por outro lado, requer que o credor constitua o credor em mora, o in-terpelando.

Em relação aos efeitos da mora, pode-se destacar os artigos 399 e 402 do CC:

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, em-bora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Aqui o devedor moroso arca com o ônus probatório de demonstrar que a solução desfavorável da obrigação independentemente da sua mora.

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devi-das ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

As perdas e danos, conforme demonstra o artigo, abrangem tanto mon-tante efetivamente perdido como aquilo que se deixou de perceber.

Page 106: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 106

Mora do credor

A mora do credor, como já destacado, independe de culpa. Estará, inva-riavelmente em mora o credor que não quiser ou não puder receber. A noção vem defi nida pelo art. 394 do Código Civil:

Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

O devedor deverá se valer dos instrumentos legais no intuito de caracteri-zar mora do credor e de desobrigar-se, sendo o mais relevante desses institu-tos a consignação judicial. A importância de desobrigar-se reside sobretudo no fato de que enquanto não efetua o pagamento, o devedor, em regra, assu-me os riscos pela guarda da coisa.

A aplicabilidade da consignação estáexpressa no art. 335, III, do Código Civil:

Art. 335. A consignação tem lugar:III–se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou

residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;

A recusa do credor no recebimento da prestação deve ser justifi cada para que ele não seja constituído em mora. Por exemplo, se a oferta for incomple-ta, se é ofertada antes do prazo para o recebimento, ou sob condições diversas das estabelecidas, haverá justa recusa do credor.

Destaque-se que a mora do credor e a mora do devedor não podem ser concomitantes. Apenas um dos dois será constituído em mora pelo juiz.

No que toca aos efeitos da mora do credor, temos a delineação dos contor-nos gerais no art. 400 do Código Civil:

Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.

Do acima exposto, pode-se depreender três efeitos:(i) A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade

pela conservação da coisa–Como destacado, há a necessidade de que o devedor não proceda com dolo, de modo a gerar prejuízo para o credor. Deve conservar sua atuação em consonância com os ditames da boa-fé, e nesse caso, se incorrer em gastos, devem estes ser pron-tamente ressarcidos pelo credor. Dessa forma, temos que é certa a necessidade de atuar com zelo na conservação da coisa sob pena de ser tachado como doloso seu comportamento.

Page 107: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 107

(ii) Obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la; De-corre do fato de que o devedor não tem mais responsabilidade sobre a coisa, não sendo razoável que assuma gastos, por exemplo, por conta de um comportamento desidioso do credor.

(iii) Sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor. Essa hipótese ocorre nos casos de oscilação do valor da coisa, quando o devedor se aproveitará do valor que lhe for mais conveniente.

Purgação de mora

Purgação de mora é o ato mediante o qual quem incorreu em mora, seja o credor ou o devedor, dirime seus efeitos.

A purgação de mora é possível nos inadimplementos relativos. Quando, de outra maneira, o inadimplemento for absoluto, ou seja, o pagamento não mais apresentar utilidade, a pendência se resolverá através de perdas e danos.

A purgação apresenta efeitos ex nunc. A partir da data em que se efetivou, não fi ca mais o agente sujeito aos ônus da mora, mas ainda assim, a oneração referente ao período em que fora constituído em mora se conserva perfeita.

A cessação da mora, por sua vez, extingue todos os seus efeitos, inclusive os pretéritos.

A purgação da mora ocorre nos termos do art. 401 do Código Civil, ou seja, quando o devedor oferece a prestação acrescida dos prejuízos até o momento decorrentes. Essa oferta deve ainda obedecer às condições an-teriormente acordadas pelas partes, como local do pagamento, bem como outros detalhes.

Art. 401. Purga-se a mora:I–por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos preju-

ízos decorrentes do dia da oferta;II–por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se

aos efeitos da mora até a mesma data.

Pertinente é saber até quando pode a mora ser purgada. Nesse sentido, percebe-se pluralidade de linhas doutrinárias, como por exemplo, a possibi-lidade de purgação até o momento de propositura da ação ou até a contes-tação. Há outras hipóteses, onde a lei cuida expressamente de determinar o momento limite para a purgação da mora, mas a doutrina ainda carece de um entendimento pacifi cado acerca desse tema.

Perdas e Danos

Conforme o examinado, quando o cumprimento da obrigação não é mais possível, ocorre o seu inadimplemento absoluto.

Page 108: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 108

A orientação que guia a reparação por perdas e danos começa a se delinear no art. 393 do Código Civil, o qual destaca que é crucial a existência de culpa:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifi ca-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Curioso notar que o novo diploma, no caput desse artigo 393, assume postura diferente da existente no código anterior, onde não era prevista a possibilidade de responsabilização, ainda no caso das excludentes de caso fortuito e força maior.

Arcar com perdas e danos implica, de forma sucinta, em indenizar preju-ízos tanto de natureza material como moral, perpetrados mediante um com-portamento ilícito.

A questão das perdas e danos será pormenorizada no estudo da respon-sabilidade civil. Por ora, cabe destacar os dispositivos no código civil refe-rentes à responsabilidade contratual e extracontratual (ou aquiliana). A pri-meira, possui previsão geral no art. 389, ao passo que a segunda encontra-se no art. 186.

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices ofi ciais regularmente estabeleci-dos, e honorários de advogado.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

A aferição do montante referente a perdas e danos é campo para atuação do magistrado, no caso concreto. Sob o aspecto material, elas se estendem desde o prejuízo efetivamente causado, até o que deixou de ser ganho – lucros cessantes. Essa é a dicção dos arts. 402 e 403 CC:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devi-das ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Na busca da apuração das perdas e danos deve-se ter em mente o efeti-vo prejuízo acarretado pelo inadimplemento. Devem-se afastar especulações meramente hipotéticas sobre as possibilidades de ganho.

Nem todos os danos redundam em prejuízo econômico claro e facilmente perceptível, afetando por vezes a integridade psíquica ou outros elementos abstratos, como a moral e a honra.

Page 109: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 109

Culpa do devedor

A responsabilidade contratual funda-se na culpa. Culpa em sentido am-pla, congregando tanto o deliberado propósito de não arcar com a obrigação, como a sua não realização em virtude de imprudência, imperícia ou negli-gência. Esses três últimos elementos são os mesmos destacados no campo do direito penal, por ocasião do art. 18 do Código Penal. O art. 392 do Código Civil, por seu turno, destaca:

Art. 392. Nos contratos benéfi cos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.

Da letra desse dispositivo pode-se observar a diferenciação operada pela lei. Dolo e culpa são elementos reconhecidos, mas a regra é que na teoria con-tratual, a culpa é examinada numa perspectiva ampla, não pormenorizando--se o propósito do agente quando da prática do ato ilícito.

Para os contratos benéfi cos – unilaterais, como a doação – a lei destaca a diferenciação entre dolo e culpa. Nesse mesmo exemplo, o doador somente pode responder por dolo, isto é, pelo consciente atuar no sentido de preju-dicar ao donatário, ao passo que esse poderá responder por culpa em sentido amplo (dolo ou culpa). Já em relação aos contratos bilaterais, segue-se a ne-cessidade de examinar a culpa no seu sentido amplo.

Mais uma vez, tem-se que afi rmar que a verifi cação da culpa e dos efeitos do inadimplemento é atribuição do julgador e são somente visualizáveis no julgamento da lide. Esse papel do juiz possui balizamentos encontrados na própria lei, mas essencialmente atende à avaliação pelo mesmo realizada às luz das circunstâncias do caso.

Destaque-se, nesse sentido, a prerrogativa que o Código Civil confere ao magistrado de diminuir eqüitativamente o valor da indenização no caso de desproporção entre culpa e extensão do dano:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o

dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Trata-se aqui de uma situação excepcional, na qual o juiz não é obrigado a se ater ao montante do prejuízo quando da fi xação do valor indenizatório. No entanto, a situação oposta, qual seja, a majoração do valor da indenização por conta de culpa proeminente, não é admitida, devendo-se tão somente se ater ao valor do prejuízo.

No que se refere ao inadimplemento do credor, a lei não traça considera-ções acerca da necessidade de culpa. No entanto, a recusa por sua parte em receber também implica em prejuízos que devem ser indenizados. Aqui são aplicados os artigos 400 e 401 do Código Civil, já examinados.

Page 110: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 110

Em relação ao ônus probatório, o Código Civil defi ne a seguinte partição: (i) ao credor compete provar tão somente o descumprimento do contrato, tratando-se, portanto, de prova objetiva; e (ii) ao devedor, por sua vez, para dirimir sua responsabilidade, incumbe provar que não agiu com culpa.

O credor deve apresentar prova da existência do contrato, que o mesmo foi descumprido e que esse descumprimento lhe implicou prejuízo.

A questão do ônus probatório assume perspectivas distintas em relação às obrigações de meio e de resultado. As obrigações de meio, como visto, são aquelas em que o obrigado se compromete não a um resultado, mas a executar uma tarefa, empregando nela sua habilidade, destreza e reputação. Dessa forma, a culpa desse executor eclodirá da aplicação de forma inde-vida dos meios necessários à realização da obrigação. O advogado afamado contratado para patrocinar o cliente em determinada avença não está obri-gado à vitória, mas se perde prazo processual e desse fato resulta prejuízo à parte que representa, não poderá alegar a imprevisibilidade do resultado como forma de excluir sua culpa. Essa é a linha de distinção com as obri-gações de resultado, quando a obrigação é descumprida na não consecução do resultado previsto.

Caso Fortuito e Força Maior

A exclusão da responsabilidade nas hipóteses de caso fortuito e força maior tem previsão no art. 393 do Código Civil:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifi ca-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Na diferenciação desses dois institutos, não há entendimento pacifi cado entre os autores, mas, em termos gerais, pode-se afi rmar o seguinte: força maior é um fato decorrente de situações que independem do agir huma-no, tendo como principais exemplos fenômenos da natureza como ciclones, terremotos, a queda de um raio, etc; caso fortuito, por sua vez, embora igualmente decorra de situação alheia à vontade da parte, decorre de fatos humanos, como uma greve ou um ato criminoso.

O Código Civil dispõe acerca desses institutos como situações invencí-veis, intransponíveis, que impedem o cumprimento da obrigação, excluindo a responsabilização do devedor.

O ônus de prová-los é do devedor faltoso e se opera concomitantemente sob duas perspectivas: (i) objetiva, que é a inevitabilidade do evento; (ii) subjetiva, que se manifesta na imprevisibilidade do evento. Essa perspectiva subjetiva redunda na idéia de culpa, pois se o devedor tinha condições de

Page 111: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 111

prever esse evento invencível ou mesmo de evitar que ele se aperfeiçoasse, deverá arcar com os prejuízos da outra parte.

Considerações sobre a cláusula de não indenizar

A princípio, nada impede que os contratantes prevejam cláusula de não indenizar, contudo, essa cláusula não pode ser oposta indistintamente.

A cláusula de não indenizar, como a própria nomenclatura já defi ne, é um artifício jurídico que pode aderir ao contrato prevendo que o dever de indenizar não exista. É a renúncia prévia ao direito de pedir reparação. A possibilidade dessa cláusula deriva do fato de estar-se diante de direito dispo-sitivo das partes.

Não obstante, o ordenamento prevê hipóteses onde a oposição dessas cláu-sulas é inválida, isto é, quando elas confrontam normas de ordem pública. Esse tema é amplamente discutido no Direito do Consumidor, em especial no que toca aos contratos de adesão, que diferentemente dos contratos pa-ritários, não possuem seus termos discutidos entre as partes. Nos contratos de adesão, a vontade contratual se manifesta simplesmente na adesão a um contrato pré-constituído, como é o exemplo dos contratos bancários. Como visto, a possibilidade da cláusula de não indenizar vem determinada pelo art. 393 do Código Civil.

Vale destacar que a existência dessa cláusula não autoriza o seu benefi ciário a agir de acordo com a conduta prevista, justamente para causar o dano e depois aproveitar a disposição expressa no contrato. Se o contratante, tendo em mente a sua isenção de indenizar, deliberadamente ocasiona o dano, fere os princípios de boa-fé contratual e dá ensejo a perdas e danos.

A matéria encontra um tratamento especial no Código de Defesa do Con-sumidor. A Lei nº 8.078/90 defi ne como abusiva qualquer cláusula que im-plique em desvantagem exagerada ou seja atentatória à boa-fé ou à equidade. Nesse sentido, o art. 51, IV, do CDC dispõe que “são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.”

2. QUESTÕES DE CONCURSO:

26º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase

44. Assinale a alternativa correta:(a) A nossa sistemática jurídica admite, em se tratando de arras confi r-

matórias, o direito expresso de arrependimento;

Page 112: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 112

(b) Realizada a pactuação de arras confi rmatórias e, em não se con-cretizando o contrato defi nitivo, a nossa legislação faculta à parte prejudicada pleitear eventuais perdas e danos excedentes ao valor das arras;

(c) Em se tratando de arras penitenciais, o exercício do direito de ar-rependimento pela parte que recebeu as arras, ocasionará apenas a devolução exata do valor recebido à título de arras;

(d) A nossa sistemática jurídica, seguindo Direito Romano e embasada no princípio da “pacta sunt servanda”, admite apenas as arras peni-tenciais.

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)

52. Analisando-se os princípios inerentes à teoria geral das obrigações, na hipótese de inadimplemento parcial de uma obrigação com data certa, a constituição em mora do devedor:

(a) depende de notifi cação publicada na Imprensa Ofi cial;(b) independe de qualquer espécie de notifi cação;(c) deve ser ultimada por notifi cação cartorária;(d) será possível somente pela via judicial, através de citação ou intima-

ção válida;(e) não será possível, pois a inércia das partes gera a prorrogação do

prazo por tempo indeterminado.

Gabarito: 44 (b); 52 (b).

Concurso para o cargo de Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (2004)

O prefeito de determinado município foi condenado pelo TCU ao paga-mento da quantia de R$ 128.000,00, atualizada monetariamente e acrescida de juros de 1% ao mês a contar de 15/1/2003, em decorrência da inexecução do objeto de um convênio celebrado com uma autarquia federal, que previa o repasse de dinheiro (R$ 128.000,00) para a construção de uma escola, com prazo de execução até 15/4/2003 e de prestação de contas até 15/5/2003. O referido prefeito interpôs recurso ao TCU, sob as seguintes alegações:

1.ª A empresa Alfa, contratada para executar a obra, e a prefeitura munici-pal deveriam ter sido condenadas solidariamente: a primeira, porque recebeu a integralidade dos recursos e não executou totalmente a obra; e a segunda, porque foi quem fi rmou o convênio.

2.ª Não poderia ter sido condenado a ressarcir o valor total do dinheiro recebido, visto que parte da verba foi aplicada na reforma, pela empresa Alfa, de escola diversa daquela prevista no convênio. A mudança do objeto con-

Page 113: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 113

veniado teria ocorrido em razão da precária situação do imóvel em que essa escola estava instalada, o que caracterizaria estado de necessidade.

3.ª No dia 15/8/2003, houve um incêndio no arquivo da prefeitura, que teria destruído toda a documentação relativa ao convênio, fato que caracteri-zaria caso fortuito ou de força maior a impedi-lo de apresentar tais documen-tos ao TCU. Para comprovar que a escola foi realmente reformada, apresenta declarações escritas, subscritas por pessoas da comunidade.

4.ª Está disposto a resolver o problema, mediante a construção, com re-cursos municipais, da escola de que trata o convênio.

5.ª Acrescenta que poderá assinar um documento dando a casa onde re-side em hipoteca para garantir a construção da escola, podendo, até mesmo, fazer constar do documento a proibição de venda do imóvel.

6.ª Os problemas na execução do convênio e na prestação de contas ocor-reram em razão de se tratar de prefeitura de município pequeno, cujos servi-dores não dominam os detalhes da legislação federal aplicável aos convênios da espécie.

7.ª A correção monetária e os juros moratórios não deveriam incidir a contar de 15/1/2003 (data da transferência dos recursos), mas sim a partir da data em que teria sido citado pelo TCU; além disso, não estando previstos no termo de convênio, os juros deveriam ser os estabelecidos no Código Civil, ou seja, 0,5 % ao mês.

8.ª A condenação pelo TCU estaria lhe causando grave dano moral, visto que o banco comercial em que mantinha conta particular enviou-lhe cor-respondência comunicando que não procederia à renovação do seu cheque especial, motivo pelo qual, na realidade, deveria é ser indenizado pela União.

O Relator do recurso em questão encaminhou os autos ao Ministério Pú-blico junto ao TCU (MP/TCU) para o seu pronunciamento. Ante a situação hipotética descrita ao lado, julgue os itens a seguir, considerando os argu-mentos que poderiam ser usados pelo representante do MP/TCU, ao prola-tar o seu parecer acerca da matéria.

Page 114: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 114

Gabarito oficial

148 A existência de responsáveis solidários não exime o prefeito de sua responsabilidade, uma vez que o Código Civil estabelece que, havendo solidariedade passiva, o credor tem direito de exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; ademais, considerando que tanto a empresa Alfa quanto a prefeitura municipal são pessoas jurídicas, a primeira de direito privado e a segunda de direito público, o TCU pode apurar a responsabilidade de ambas em processos distintos.

149 A alegação de caso fortuito ou caso de força maior não pode ser acolhida pelo TCU, pois o incêndio na prefeitura ocorreu após o vencimento do prazo para prestação de contas e o Código Civil determina expressamente que o devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, a menos que o responsável consiga provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

150 Segundo princípio jurídico que condena o enriquecimento sem causa, aquele que, sem justa causa, enriquecer à custa de outrem será obrigado a restituir o indevidamente auferido. Todavia, no caso em questão, esse princípio não aproveita ao responsável, visto que ele não logrou êxito em comprovar que parte do dinheiro foi usada na reforma da escola, não servindo para essa finalidade as declarações subscritas por pessoas da comunidade, uma vez que o Código Civil estabelece expressamente que as declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las.

151 O Código Civil determina que, se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Assim, na situação hipotética apresentada, para que a 4.ª alegação pudesse ser acolhida pelo TCU, seria necessário que o prefeito efetivamente construísse a escola prevista no convênio com a utilização de recursos próprios particulares, e não com recursos municipais.

Page 115: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 115

152 O argumento constante na 5.ª alegação não pode ser aceito porque, de acordo com o Código Civil, tratando-se de ato entre vivos, os direitos reais sobre imóveis só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis do respectivo título aquisitivo, ressalvados os casos expressos naquele Código, e também porque o mesmo Código Civil dispõe ser nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado.

153 No que concerne ao argumento constante na 6.ª alegação, este não pode ser aceito pelo TCU, visto que a ninguém é dado alegar em seu benefício o desconhecimento da lei. Exceção a esse princípio está prevista no Código Civil, que estabelece ser anulável ato ou negócio jurídico, quando o erro de direito for o motivo único ou principal da sua realização e o reconhecimento do erro jurídico não implicar recusa à aplicação da lei.

154 A 7.ª alegação não procede porque o Código Civil preceitua que, nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou; e adicionalmente porque, também consoante o Código Civil, quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

155 A situação descrita na 8.ª alegação pode configurar dano moral; contudo, o prefeito deve alegar esse dano em ação judicial própria, intentada contra o banco causador do dano, ação essa em que será necessário apresentar prova objetiva do abalo à sua honra e à sua reputação.

Page 116: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 116

AULA 13–CLÁUSULA PENAL E JUROS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Disciplina jurídica da Cláusula Penal–Cláusula Penal Compensatória e Cláusula penal moratória–Exigibilidade da Cláusula Penal–Cláusula Penal e Institutos Afi ns.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Florence, Tatiana Magalhães. “Aspectos pontuais da cláusula penal”, in Gus-tavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucio-nal. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 513/538.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 303/314.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 734/755.

1. ROTEIRO DE AULA:

Disciplina jurídica da Cláusula Penal

A cláusula penal é uma obrigação de natureza marcadamente acessória, e é por meio dela que se vincula a parte inadimplente ao pagamento de uma multa. Existem portanto duas fi nalidades principais do instituto: (i) a fi nali-dade de indenização prévia de perdas e danos, e (ii) a de penalizar do devedor moroso.

A legislação civilista não oferece conceituação do instituto. No Código de 2002, a previsão inserta nos arts. 408 a 416 do Código Civil traça a dinâmica relativa ao tema:

Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culpo-samente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.

Page 117: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 117

Como pode se observar pela letra do art. 408, as fi nalidades da cláusula penal, conforme enunciado, são reprimir o descumprimento total da obriga-ção ou o atraso no mesmo mediante a vinculação de uma multa.

Ao conceituar a natureza jurídica da cláusula penal afi rmou-se que a mes-ma tratava-se de uma obrigação acessória. De acordo com a regra geral, o acessório segue o principal, e nesses casos, a nulidade da obrigação principal, por exemplo, implicaria na necessária e conseqüente nulidade da obrigação acessória. A cláusula penal constitui exceção a essa regra.

O antigo Código de 1916, em seu art. 922, possuía uma regra que por conta da sua incorreção foi suprimida do atual diploma. O regramento ante-rior dizia que “a nulidade da obrigação importa a da cláusula penal.”

Há situações em que mesmo diante da nulidade do contrato, poderá ser verifi cada a continuação da cláusula penal. A cláusula penal pode ter sido pactuada justamente para os casos de ser tida como nula a obrigação princi-pal. Aqui, na realidade, a cláusula penal deixa de ser acessória, para torna-se obrigação autônoma.

Cláusula Penal Compensatória e Cláusula penal moratória

A cláusula penal pode abarcar: (i) a inexecução completa da obrigação (inadimplemento absoluto), (ii) o descumprimento de uma ou mais cláu-sulas do contrato ou (iii) ou a simples mora (inadimplemento parcial). O momento de estipulação pode coincidir com o da obrigação, ou ser feito em momento posterior, conforme redação do art. 409 CC:

Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.

Deve-se ter em mente que a cláusula penal compensatória constitui prefi -xação de perdas e danos. Dessa forma, basta que o credor prove o inadimple-mento imputável ao devedor para que seja devida multa pactuada. Verifi can-do-se os pressupostos de exigibilidade, deve a multa ser adimplida.

Por outro lado, na hipótese de não previsão de cláusula penal, compete ao credor a necessidade de provar a ocorrência de perdas e danos, bem como o valor a elas referente.

De acordo com o art. 410 do Código Civil, “quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.”

O credor pode pedir o valor da multa ou o cumprimento da obrigação. Jamais as duas prestações conjuntamente. O devedor, pagando a multa, se desincumbe por completo, visto que a cláusula penal constitui fi xação ante-cipada de indenização pelo descumprimento da obrigação.

Page 118: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 118

Hipótese diferente é a da multa moratória, que devido à sua natureza, sempre se mostra útil para o credor. A multa (cláusula penal moratória) fun-ciona intimidando o devedor ao cumprimento da obrigação devida dentro do prazo inicialmente fi xado. A pena aqui é a necessidade de pagar de forma mais onerosa.

A natureza compensatória, por outro lado, não está completamente diri-mida, visto que o credor, por força do efeito de intimidação operacionalizado pela multa moratória, recebe sua prestação tardiamente. Ainda assim, não é essa a natureza basilar dessa espécie de cláusula penal.

Resta claro que na multa compensatória a opção será do credor. Suas op-ções, por via de conseqüência são:

(i) Entendendo que os prejuízos resultantes do inadimplemento são maiores que o valor da multa, demandará perdas e danos;

(ii) Considerando, contudo, que a multa estipulada lhe cobre os preju-ízos, ou ainda, não querendo enveredar pelas questões probatórias das perdas e danos, optará pela cobrança da multa.

A questão da suplementação da indenização prevista na cláusula penal foi tratada pelo artigo 416 do Código Civil:

Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.

Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

Caso o credor conclua que o prejuízo é maior do que o valor previsto na multa, a possibilidade de cobrar o valor excedente deve vir prevista no con-trato. Há que se observar, contudo, a existência ou não de limitação ao valor dessa suplementação. Essa análise, todavia, envereda pelo campo da autono-mia contratual das partes. Em todo o caso, há de afi rmar que a demanda por valor indenizatório maior segue a regra geral das perdas e danos, competindo ao credor a prova da sua existência.

A cláusula penal moratória é instituída para o inadimplemento parcial da obrigação. Esse inadimplemento pode ser ou a simples mora (atraso no cum-primento), ou a violação de uma cláusula contratual. Deve-se destacar que não há óbice na cumulação da multa compensatória com a multa moratória. É o enunciado por força do art. 411 do CC:

Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em se-gurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.

Page 119: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 119

Ainda, no que toca ao Código de Defesa do Consumidor, é necessário atentar que o referido diploma fi xou o limite das multas de mora em 2% do valor da prestação nos contratos que envolvam outorga de crédito ou conces-são de fi nanciamento.32

De todo o exposto, inferem-se basicamente duas funções para a cláusula penal: (i) constitui um reforço para o cumprimento da obrigação, ou seja, uma forma de tentar garantir o seu adimplemento; (ii) fi xa antecipadamente as perdas e danos, evitando o complexo processo de apuração de prejuízos. Há, atentando-se à ambas as funções, maximização das possibilidades de cumprimento da obrigação.

Exigibilidade da Cláusula Penal

A exigibilidade não está condicionada à demonstração do prejuízo. Tanto como função punitiva, como de perdas e danos prefi xados, a exigibilidade está diretamente vinculada a fato imputável ao devedor (culpa ou dolo).

Seguindo a dinâmica estudada quando das obrigações indivisíveis, cumpre analisar o art. 415 do Código Civil. O cerne do dispositivo consiste no fato de impedir que a multa, dotada de intrínseco caráter punitivo, alcance aque-les que não lhe deram causa.

Art. 415. Quando a obrigação for divisível, só incorre na pena o devedor ou o herdeiro do devedor que a infringir, e proporcionalmente à sua parte na obrigação.

Relevante também é saber o momento a partir do qual é devida a multa moratória. Quando não houver prazo, a multa será exigível apenas após a constituição em mora do devedor. Nesse sentido, o art. 397 dispõe que:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

A lei defi ne um limite à fi xação do valor da cláusula penal que corresponde ao valor da obrigação principal. O excesso desse valor não é exigível, fora os casos de suplementação já examinados, e cuja possibilidade deve ser previa-mente acordada pelas partes. O art. 412 do Código Civil assevera que:

Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.

Se houver cumprimento parcial da obrigação, atentando para as parti-cularidades do caso concreto, pode o juiz reduzir o valor devido a título de cláusula penal. O entendimento corrente, contudo, segue a linha de que essa redução seria um direito do devedor, no sentido de que o mesmo já adimpliu

32. Art. 52. No fornecimento de produ-

tos ou serviços que envolva outorga de

crédito ou concessão de fi nanciamento

ao consumidor, o fornecedor deverá,

entre outros requisitos, informá-lo

prévia e adequadamente sobre:

(...)

§ 1° As multas de mora decorrentes do

inadimplemento de obrigação no seu

termo não poderão ser superiores a

dois por cento do valor da prestação.

§ 2º É assegurada ao consumidor a

liquidação antecipada do débito, total

ou parcialmente, mediante redução

proporcional dos juros e demais

acréscimos.

§ 3º (Vetado).

Page 120: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 120

parcialmente com o devido e não seria coerente onerá-lo em porção dema-siadamente maior.

O art. 413 dispõe sobre a possibilidade de redução eqüitativa da multa:Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obri-

gação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a fi nalidade do negócio.

Nessa redução deve o juiz considerar as condições peculiares do negócio jurídico sobre o qual a lide versa. O campo aqui é o da equidade e deve o magistrado atentar a elementos como a função social do contrato e à boa-fé objetiva.

Cláusula Penal e Institutos Afins

Devido a certas similitudes, há certos institutos jurídicos que poderiam ser confundidos com a cláusula penal. Nesse sentido:

1. Arras (ou sinal). Trata-se de princípio de pagamento num negócio jurídico. Nas arras há a entrega efetiva de alguma coisa, mas essa é decorrência do próprio cumprimento da prestação. É facultado o arrependimento daquele que deu arras. Para que a cláusula penal tome efeito, não há a necessidade de nenhuma prestação, mas tão somente da violação contratual, que pode ser total ou parcial;

2. Cláusula de Arrependimento ou multa penitencial. Também é cláu-sula acessória, e por conta dela, o devedor tem a faculdade de não cumprir a obrigação, pagando a quantia estipulada. Há aqui a auto-rização do arrependimento do obrigado, divergindo assim da cláu-sula penal, que reforça o vínculo na medida em que pune o devedor que não solve com a sua prestação.

3. Obrigação alternativa. O pagamento de perdas e danos não consti-tui alternativa para o devedor, que está obrigado a cumprir a obri-gação pactuada junto ao credor. Não há aqui o direito de escolha tal qual visualizamos nas obrigações alternativas;

4. Condição. Se, numa obrigação condicional, a prestação se tornar impossível por caso fortuito ou força maior, desaparece a exigibili-dade de multa. Ela não é objeto da obrigação e, portanto, não pode ser exigida.

2. CASO GERADOR:

Após muita insistência, Eduardo, 14 anos, ganhou recentemente, de presente dos pais, um microcomputador. Da mesma forma, sondou junto a eles a possibili-

Page 121: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 121

dade de contratar um serviço de internet rápida. Destacou o jovem a importância desse tipo de instrumento no mundo atual, os refl exos na sua educação, bem como o desfrute de toda a família das benesses da hiperconectividade gerava.

Surpreendeu-se Eduardo quando ouviu a negativa dos pais. Frustrado, mas ainda assim desejando usufruir de um serviço de internet rápida, dirigiu-se ao estande de uma famosa operadora, a qual funcionava num shopping próximo à sua residência.

Ignorando as vedações legais para que pudesse ele próprio, e sem representação, fi gurar como parte em um contrato, acordou a instalação e assinatura do referido serviço. Marcou a visita dos técnicos da operadora para dia em que os pais não estariam presentes, de modo que não viessem a descobrir.

No contrato, entretanto, vinha prevista cláusula penal determinando, no caso de descumprimento da obrigação por parte do assinante do serviço, o pagamento do valor de R$300,00.

Pouco após um mês de vigência do contrato, chega à residência de Eduardo fatura cobrando o valor da cláusula penal ajustada.

Qual a linha de defesa que pode ser deduzida pelos pais de Eduardo? Num eventual litígio em âmbito jurisdicional, qual seria a linha de argumentação da operadora?

Linha geral de resposta:

Os pais de Eduardo alegariam a invalidade da obrigação principal, ou seja, o contrato de prestação de serviços, acarretando também a invalidade das cláusulas acessórias. Vale conferir o entendimento de Serpa Lopes sobre a permanência das cláusulas penais como obrigações autônomas para discussão em sala.

3. Atividade em sala:

“O regime dos juros no Brasil”

Como os alunos estarão nesse semestre estudando os delineamentos da Ordem Econômica na disciplina Direito Constitucional Econômico (Direito Constitucional III), propõe-se que seja realizada uma discussão com a turma, e reunindo os professores de ambas as matérias, sobre algumas questões que interessam tanto ao Direito Público como ao Direito Privado, como a interpretação do art. 192, §3º da Constituição Federal, ou a possibilidade de capitalização de juros (art. 591 do Código Civil).

Cada professor poderá assumir um dos entedimentos relativos aos temas sugeridos e, assim, fomentar a discussão com a turma à luz da doutrina e da jurisprudência.

Page 122: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 122

AULA 14–TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Cessão de Crédito – Assunção de dívida – Cessão de posição contratual

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 167/186.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Bittar, Carlos Alberto. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 87/93.

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 566/589.

1. ROTEIRO DE AULA:

O atual Código Civil positivou a disciplina da cessão de crédito nos arts. 286 a 298 e a assunção de dívida nos artigos 299 a 303. A cessão de posição contratual, de forma semelhante ao que ocorrera com o Código Civil de 1916, não foi disciplinada pelo Código em vigor.

Cessão de Crédito

A cessão é um negócio jurídico de feição contratual, através do qual ocorre a alienação de bens imateriais, mais notadamente o crédito, que a par do seu valor nominal também possui valor de mercado.

Não se considera o consentimento do devedor para a realização desse negócio jurídico, uma vez que ele é, em regra, estranho ao eventual instru-mento de cessão. Caberá ao devedor responder apenas ao adquirente dos direitos de crédito.

A cessão, vale lembrar, não é forma de extinção das obrigações, visto que a mesma se conserva, alterando-se apenas o pólo ativo. Nesse negócio jurídico,

Page 123: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 123

existem as seguintes fi guras: o cedente (quem aliena o direito); o cessionário (adquirente); e o cedido (o devedor, ou o obrigado).

Através da cessão ocorre uma transferência do crédito, verifi cando-se, tão somente, uma alteração no pólo ativo da obrigação. O devedor da obrigação permanece o mesmo, encontrando-se obrigado face ao cessionário.

Veda-se a cessão de créditos que, por sua própria natureza, não podem ser alienados, ou quando a lei, ou mesmo a vontade das partes, se mani-festou no sentido da intransmissibilidade. Nesse sentido, o art. 286 do Código Civil:

Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

Na cessão de crédito pode-se observar também a idéia de que o acessório segue o principal, isto é, os créditos de natureza acessória são transferidos juntamente com o crédito em torno do qual gravitam. Como exemplos têm--se os direitos de garantia, juros, correção monetária, a cláusula penal, entre outros. Contudo, por ser campo de direito dispositivo, a livre convenção das partes pode afastar essa regra. O art. 287, nesse sentido, defi ne:

Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.

O Código nada alude nesse sentido, mas não há oposição à cessão par-cial do crédito, encontrando essa possibilidade, inclusive, assentamento na legislação estrangeira. Apenas parte do crédito pode ser transferido, e nesse caso, o cedido torna-se obrigado em relação a duas pessoas distintas, mas pelo mesmo valor. Nessa bipartição de crédito não há nenhuma preferência de recebimento por um ou por outro credor.

Destaque-se também a possibilidade da cessão ter fi m especulativo, po-dendo ser transferida por valor diverso daquele enunciado na relação credití-cia, embora o obrigado fi que logicamente vinculado apenas ao valor nominal da obrigação.

O devedor deve ser notifi cado da cessão, caso contrário, ao pagar ao cre-dor primitivo (cedente) estará se desobrigando. O art. 290 determina:

Art. 290. A cessão do crédito não tem efi cácia em relação ao devedor, senão quan-do a este notifi cada; mas por notifi cado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.

Não existe forma específi ca para notifi cação, mas é conveniente que seja por escrito, sobretudo, pois o art. 288 exige essa formalidade para que se es-tabeleça validade perante terceiros.

Page 124: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 124

Regra importante de proteção ao devedor reside no art. 291 CC. Ao de-vedor não pode ser imposto o ônus de descobrir quem é o último cessioná-rio, e, portanto, a quem deve pagar. Deve simplesmente pagar àquele que se apresenta com o título.

Ainda, a consideração da lei em relação ao devedor se manifesta de forma bem expressiva no art. 294:

Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente.

O crédito é transferido com todas as suas características e dessa maneira, as defesas também são abarcadas nessa transferência. Se o negócio jurídico foi inquinado em suas constituição por erro ou dolo, será anulável, e portanto, essa mesma anulabilidade poderá ser oposta em face do cessionário. Logica-mente, o cessionário, desde que de boa-fé, não é obrigado a conformar-se com o prejuízo, valendo-se dos instrumentos legais próprios na busca de res-sarcimento perante o cessionário.

Essas defesas do cedido face ao cessionário devem ser alegadas tão logo aquele tome conhecimento da cessão.

Os créditos, em geral, podem ser cedidos. Contudo, em certas ocasiões existem óbices à cessão, que podem ser por conta da natureza do crédito, pela convenção das partes ou pela própria lei, que veda a sua alienação. Essas exceções, como já destacado, estão no art. 286.

O cedente não é responsável pelo cumprimento da obrigação por parte do cedido, nem pela solvência do mesmo. Sua responsabilidade, contudo, não pode ser ilidida no que concerne à existência de crédito quando da realização da cessão – quando a mesma tiver se operado onerosamente (art. 295 do Código Civil).

A solvência do devedor será responsabilidade do cedente apenas nos casos em que este expressamente se manifestar nesse sentido. A lei destaca somente a responsabilidade em relação à existência do crédito ao tempo da cessão.

A transmissibilidade de créditos é campo bem aberto à livre disposição en-tre as partes, e certamente o cedente poderá, caso realmente deseje, conferir garantias extras ao cessionário, como a da solvência do devedor.

Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.

Ainda, mesmo quando da concessão dessa modalidade de garantia, a lei determina limitações, não podendo elas, nos termos do art. 297, ultrapassar o valor recebido pelo cedente mais juros e despesas referentes ao negócio.

Art. 297. O cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde por mais do que daquele recebeu, com os respectivos juros; mas tem de ressarcir-lhe as despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança.

Page 125: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 125

Na cessão feita a título gratuito, em regra, nem a responsabilidade quanto à existência do crédito é devida. A exceção existe, contudo, quando o cedente tiver procedido mediante dolo.

A cessão pode se operar a título gratuito ou oneroso e pode ocorrer em qualquer instância judicial. Destacam-se ainda as modalidades de cessão pro soluto e pro sol-vendo. Na cessão pro soluto o cedente se responsabiliza somente pela existência do crédito, mas não assume junto ao cessionário a responsabilidade pelo pagamento da obrigação. Diferentemente, na obrigação pro solvendo, essa garantia suplemen-tar é ofertada, responsabilizando-se do cedente pelo adimplemento da obrigação.

Assunção de dívida

Da mesma forma que existe substituição da parte ativa, pode ocorrer subs-tituição da parte passiva da obrigação. Nesse caso, verifi ca-se a fi gura do as-suntor, isto é, um terceiro que se obriga pela dívida.

A cessão de débito não pode ocorrer sem a anuência do devedor. Trata-se de corolário lógico da idéia já examinada de que o patrimônio do devedor é garantia do cumprimento da obrigação. No caso de inadimplemento, o credor pode movimentar o aparato jurisdicional no sentido de satisfação dos seus débitos, mas irá fazê-lo, logicamente, quando souber que lá encontrará montante sufi ciente para satisfazer o seu crédito.

O credor não está obrigado a aceitar outro devedor, ainda que ele possua melhores condições de pagara dívida ou seja detentor de patrimônio maior. É o preceito contido no art. 299 do atual código:

Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consenti-mento expresso do credor, fi cando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.

Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que con-sinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa.

A obrigação se mantém alterada, mas as garantias especiais, tais como a hipoteca e a fi ança, oferecidas pelo devedor original ao credor, em regra, não se estendem ao assuntor (art. 300 do Código Civil).

Essas garantias não subsistirão com ao advento da assunção, salvo na exis-tência de menção expressa nesse sentido.

Semelhante à cessão, a assunção também tem natureza contratual, sendo também negócio bilateral. A forma, não havendo previsão legal que a defi na, é livre. Adicionalmente, tanto as dívidas presentes como as futuras admitem cessão, bem como aquelas sujeitas à condição.

A assunção de dívida pode se processar de duas formas diversas: (i) por acordo entre o terceiro e o credor (expromissão); e (ii) por acordo entre tercei-ro e o devedor (delegação).

Page 126: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 126

Na expromissão, o terceiro, de forma espontânea, assume em face do credor a obrigação pela liquidação do débito. Nessa modalidade de assunção o devedor original pode ser liberado, mas pode também per-manecer concomitante vinculado com o terceiro que assume a dívida. Verifica-se assim, dois obrigados pela mesma dívida (assunção de débito imperfeita).

Na delegação, o primitivo devedor transfere a terceiro a sua posição, havendo a necessidade de concordância por parte do credor. Da mesma forma que ocorre com a modalidade anterior (expromissão), pode o de-vedor inicial continuar obrigado de forma concomitante com o terceiro que adere à relação obrigacional. Essa situação irá operar um reforço à obrigação.

Os meios de defesa que seriam oponíveis ao credor pelo primitivo devedor são transmitidos ao assuntor. No entanto, por força do art. 302, excluem-se as exceções pessoais, como a compensação, por exemplo. Ainda, sendo a transmissão anulada, a dívida se restabelece tal qual exis-tia anteriormente, excetuando-se, em regra, as garantias propiciadas por terceiros.

Cessão de posição contratual

O contrato constitui um bem jurídico possuindo valor intrínseco. A ela-boração de um contrato geralmente é uma atividade complexa, trabalhosa e envolvente de número considerável de indivíduos.

Na cessão de posição contratual, uma das partes, denominada cedente, contando com a anuência do outro contratante, o cedido, transmite sua posi-ção no contrato a um terceiro, denominado cessionário.

Na cessão de posição contratual, os direitos e deveres provenientes da po-sição de contratante são os objetos da cessão. Trata-se não da transferência de créditos ou débitos, mas de todo um complexo jurídico englobado pelo contrato, fora outros interesses que lhe sejam subjacentes. Um direito de cré-dito, por exemplo, sempre engloba mais do que o crédito em si, como outras eventuais vantagens, sejam elas patrimoniais ou morais.

Conforme examinado, na cessão de posição contratual, há a transferência de um complexo de relações jurídicas: débitos, créditos, deveres de absten-ção, entre outros. Nessa modalidade de negócio jurídico verifi ca-se a possi-bilidade de se operarem cessões de crédito e assunções de dívida. Esses são efeitos incidentais da cessão daquele complexo jurídico, mas não constituem a essência do mesmo.

Na dinâmica da cessão de posição contratual, a concordância do cedido, isto é, a parte que remanesce no contrato, é imprescindível para a formação desse negócio jurídico.

Page 127: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 127

2. CASO GERADOR:

Giovanni e Michel trabalham juntos num conceituado escritório de advo-cacia no Rio de janeiro. Giovanni, apesar de possuir uma boa renda mensal, cultiva hábitos de vida muito caros, o que invariavelmente o que deixa à volta com dívidas.

Em setembro passado, Giovanni conseguiu vitória em expressivo caso judicial no qual atuava como advogado, rendendo-lhe a título de honorários, o montante de 60.000 reais. Ocorre que a exeqüibilidade desse crédito não é imediata, es-tando o mesmo sujeito a um termo de 120 dias, prazo esse fi rmado a pedido do patrocinado, o Sr. Alcebíades.

Vendo sua situação fi nanceira agravar-se, Giovanni procura Michel e lhe pro-põe uma cessão parcial de crédito. Afi rma, de forma verbal, nessa ocasião, que o cliente é solvente.

O negócio jurídico possui os seguintes contornos: Michel tornar-se-ia titular de um crédito no montante de 30.000 reais. Para isso, desembolsaria a quantia de 25.000 reais. Nenhuma garantia acerca da solvabilidade do devedor é dada por Giovanni (cessão pro soluto).

Pouco tempo antes da data de pagamento do crédito, Giovanni recebe notifi -cação informando que o Sr. Alcebíades ingressou em juízo, pleiteando a anulação do contrato de prestação de serviços advocatícios.

Alcebíades alega que foi ludibriado por Giovanni, que não tinha idéia de que o litígio iria lhe custar tanto, e que caso o patrono da causa houvesse agido com boa-fé, informando-lhe dos custos envolvidos na demanda, jamais teria sequer litigado.

O processo de invalidação do aludido negócio corre de forma célere e, surpre-endentemente, vem a dar ganho de causa a Alcebíades.

De quais recursos pode se valer Michel para não ver completamente frustrada a sua expectativa de crédito? Qual o valor poderia o mesmo pleitear?

Linha geral de resposta:

O cedente responde pela existência do crédito até o montante recebido na cessão, qual seja, o valor de 25.000 reais.

Page 128: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 128

3. QUESTÃO DE CONCURSO:

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)

58. Assinale a única afi rmativa correta sobre a cessão de créditos, segun-do o Código Civil.

(a) Na cessão de um crédito, abrangem-se todos os seus acessórios, não sendo possível dispor-se em contrário;

(b) Desde que haja a anuência do cedente, será possível ao cessionário de crédito hipotecário fazer averbar a cessão à margem da inscrição principal;

(c) Somente com o conhecimento da cessão pelo devedor pode o ces-sionário exercer os atos conservatórios do direito cedido;

(d) Com relação a terceiros, é efi caz a transmissão de um crédito, ainda que feita verbalmente;

(e) O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competi-rem, bem como as que, no momento em que veio a ter conheci-mento da cessão, tinha contra o cedente.

Gabarito: 58 (e).

Page 129: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 129

PARTE III: TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

Page 130: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 130

AULA 15–ANTES DO CONTRATO: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E CONTRATO PRELIMINAR

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Responsabilidade civil pré-contratual–Contrato Preliminar

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Azevedo, Antonio Junqueira de. “Responsabilidade Pré-Contratual no Códi-go de Defesa do Consumidor: Estudo comparativo com a responsabili-dade pré-contratual no direito comum”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 173/183.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lobo, Carlos Augusto da Silveira. “Contrato Preliminar”, in Gustavo Tepe-dino e Luiz Edson Fachin (org). O Direito e o Tempo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009; pp. 313/324.

1. ROTEIRO DE AULA:

Os negócios jurídicos, em geral, são precedidos por uma fase de entendi-mentos, de negociações, comumente denominada de “tratativas”. Nessa fase do contrato que ainda há de nascer as eventuais partes de uma futura relação contratual discutem como melhor compor os seus interesses para a formação do contrato. A negociação de um contrato é objeto de estudos que ultrapas-sam o universo estritamente jurídico e alcançam a seara das técnicas e estra-tégias de negociação, amplamente difundidas através de diversas publicações e cursos especializados.33

Pode ocorrer, todavia, que as negociações não cheguem ao estágio de for-mação do contrato. É natural que alguma eventualidade ocorra e que uma das partes tenha que abandonar as tratativas. Contudo, existem hipóteses em que a própria fase pré-contratual gera para as então futuras partes de um contrato uma vinculação capaz de gerar danos caso seja rompida de forma injustifi cada.

O rompimento injustifi cado de negociações é apenas uma das hipóteses da chamada responsabilidade pré-contratual. Note-se que nesse momento

33. Nesse sentido, vide, por todos,

Robert Mnookin. Beyond Winning:

Negotiating to Create Value in Deals

and Disputes. Cambridge: Harvard

University Press; 2000.

Page 131: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 131

ainda não existe contrato e que o vínculo existente entre as partes não se baseia na reciprocidade de obrigações devidamente contratadas, mas sim na tutela de um bem cada vez mais relevante para a prática contratual no direito brasileiro: a confi ança.

Responsabilidade pré-contratual

A responsabilidade pré-contratual, ou culpa in contrahendo, se distancia das duas espécies tradicionais de responsabilização uma vez que não pode ser enquadrada como responsabilidade contratual, pois que contrato ainda não existe, e nem mesmo fi gurar como responsabilidade extra-contratual pois existe um vínculo prévio entre as partes que a diferencia da situação peculiarmente encontrada na chamada responsabilidade aquiliana (extra--contratual).

Nesse terceiro gênero de responsabilização, portanto, pode-se encontrar uma interação voltada para a formação de um futuro contrato. Esse vínculo específi co caracteriza a responsabilidade pré-contratual. Esse vínculo impõe aos indivíduos o dever de não frustrar as expectativas legitimamente criadas pelos seus próprios atos. A partir desse entendimento surgirá a tutela da con-fi ança aplicada à proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium). Claramente esse vínculo existente entre as partes surge de um imperativo da boa-fé objetiva, princípio da moderna teoria contratual, já estudado em aulas anteriores. É, portanto, a tutela da confi ança o fundamen-to da responsabilidade pré-contratual.

Especifi camente no que diz respeito ao rompimento das tratativas, Re-gis Fichtner Pereira identifi ca quatro hipóteses características dessa forma de responsabilização: (i) quando ocorre a ruptura injustifi cada das tratativas; (ii) quando, no desenvolvimento das negociações, um dos interessados cause dano à pessoa ou ao patrimônio do outro; (iii) quando tenha ocorrido o esta-belecimento de contrato nulo ou anulável e um dos interessados conhecia, ou deveria conhecer, o vício no negócio jurídico; (iv) quando, mesmo instaurada a relação jurídica contratual, das negociações preliminares tenham surgido eventuais danos a serem indenizados. 34

Vale destacar que, mesmo sendo uma terceira forma de responsabilidade, apartada das tradicionais responsabilidades contratual e extra-contratual, a responsabilidade pré-contratual não prescinde da análise dos elementos co-mumente necessários para qualquer pleito de responsabilidade civil, ou seja, a conduta culposa de uma das partes da negociação, o dano causado e o nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente.

Sendo a responsabilidade pré-contratual uma derivação do princípio da boa-fé objetiva (tutela da confi ança) no direito brasileiro, torna-se imediata a conclusão de que as violações que geram esse tipo de responsabilidade são

34. Regis Fichtner Pereira. A Responsabi-

lidade Civil Pré-Contratual – Teoria geral

e responsabilidade pela ruptura das

negociações contratuais. Rio de Janeiro:

Renovar, 2001. p. 102.

Page 132: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 132

violações aos chamados deveres secundários (ou anexos), típicos da composi-ção do princípio da boa-fé objetiva.

Esses deveres acessórios são basicamente os quatro a seguir destacados: (i) dever de informação e esclarecimento; (ii) dever de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo.

O primeiro dever secundário (dever de informação e esclarecimento) tem por objetivo tornar as comunicações típicas da negociação claras e transpa-rantes, tudo de forma a evitar que a parte contrária venha a incidir em erro na manifestação de sua vontade.

O dever de cooperação e lealdade, por seu turno, impõe que as partes apenas permaneçam nas tratativas enquanto possuam um interesse sério e legítimo na formação de um futuro contrato, contando, ainda, com situação jurídica e econômica apta para o seu cumprimento.

O dever de proteção e cuidado comanda às partes a observância de todas as precauções possíveis e razoáveis para que a parte contrária não venha a ser lesionada nas tratativas e no futuro contrato.

O quarto e último dever secundário, ou seja, o dever de sigilo tem por escopo assegurar que as informações obtidas pelas partes durante as negocia-ções sejam mantidas, salvo disposição em contrário, e de forma razoável, em regime de estrita confi dencialidade, não sendo as mesmas utilizadas para fi ns outros que venham a ser estranhos à conclusão do contrato.

Contrato Preliminar

O contrato está celebrado e perfeito quando coincidem as vontades dos contratantes em um mesmo ponto e para a obtenção de certos efeitos35. No entanto, até o momento da convergência das manifestações de vontades dos contratantes, decorrem uma série de momentos e atos preparatórios e su-cessivos36 até se alcançar o perfeito consenso e formação do contrato com a aceitação da proposta.

É comum, todavia, que em razão do avanço das negociações, em que as partes acordem sobre objeto, que se ajuste um contrato em que se determina a celebração de outro contrato. A esse tipo contratual denomina-se contrato preliminar ou pactum de contrahendo. Por esse contrato as partes se obrigar a celebrar um futuro contrato chamado de contrato defi nitivo.

Esse contrato é usualmente utilizado quando não se mostra conveniente às partes celebrar o contrato de forma defi nitiva, seja pela necessidade de algum fato futuro (liberação da carta de crédito junto à uma instituição fi nanceira), seja porque o pagamento será realizado de modo parcelado.

Para CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA1 é “aquele [contrato] por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar mais tarde outro contrato, que será contrato principal”.

35. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário. Ins-

tituições de direito civil. Rio de Janeiro:

Forense, 2006.

36. GOMES, Orlando. Contratos. Rio de

Janeiro: Forense, 2007.

Page 133: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 133

ORLANDO GOMES2, por sua vez o defi ne como a “convenção pela qual as partes criam em favor de uma delas, ou de cada qual, a faculdade de exigir a imediata efi cácia de contrato que projetaram”.

Ainda no mesmo sentido, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO37 o defi ne como a “convenção provisória, contendo os requisitos do art. 104 do Código Civil e os elementos essenciais do contrato (res, pretium e consensum), tem por objeto concretizar um contrato futuro e defi nitivo, assegurando pelo começo de ajuste a possibilidade de ultimá-lo no tempo oportuno”.

Podemos distinguir o contrato preliminar do principal, então, pois o ob-jeto deste é uma prestação substancial, enquanto que o daquele é concluir outro contrato (obrigação de fazer).

Os requisitos do contrato preliminar são aqueles inerentes à qualquer ou-tro negócio jurídico, conforme preceitua o art. 104 do Código Civil: capaci-dade das partes, objeto, forma e declaração de vontade.

No que diz respeito à capacidade das partes, é preciso que além da capaci-dade gnérica para a prática dos atos da vida civil (art. 3º e 4º), os contraentes tenham a capacidade específi ca para a celebração do contrato futuro4, sob pena de inviabilizar a execução específi ca do contrato preliminar. Dessa for-ma, por exemplo, o leiloeiro jamais poderá prometer comprar os bens de cuja venda esteja encarregado (art. 497 do CC)

Quanto ao objeto, além da necessidade dele ser lícito, possível, determi-nado ou determinável, devem ser observadas as regras atinentes ao contrato principal. Sendo assim, na promessa de venda, por exemplo, é necessário que as partes acordem na coisa e no preço.

No que concerne à forma, é preciso tecer alguns comentários. Antes do advento do Código Civil de 2002, discutia-se muito a necessidade do ins-trumento público quando o contrato ao qual se reportava o pactum de con-trahendo assim o exigisse. Para alguns a forma do contrato preliminar deveria ser a mesma forma do defi nitivo, enquanto que para outros a forma era autô-noma em relação à do contrato a ser celebrado2.

O Código Civil, entretanto, pôs fi m à celeuma doutrinária e jurispru-dencial em seu art. 462. Determina o artigo que o contrato preliminar, ex-ceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado. O dispositivo clarifi ca a problemática explicitando que o pré--contrato não está sujeito à forma do contrato defi nitivo. Podemos concluir, portanto, que ainda que o contrato defi nitivo exija forma pública, será válido o pré-contrato celebrado mediante instrumento particular.

Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado

Cumpre ressaltar, por fi m, que em tema de contrato preliminar, prevalece o princípio da liberdade da forma (art. 107 c/c 462 do CC). Nesse sentido,

37. MONTEIRO, WASHINGTON DE

BARROS. Curso de direito civil. Direito

das obrigações 2ª parte. São Paulo:

Saraiva, 2007.

Page 134: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 134

parece existir contradição entre o artigo em análise e o parágrafo único do art. 463. Esse último dispositivo determina que o contrato preliminar deve ser levado ao registro competente.

Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no ar-tigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do defi nitivo, assinando prazo à outra para que o efetive.

Parágrafo único. O contrato preliminar deverá ser levado ao registro competente.

A interpretação dos dispositivos, todavia, não suscita maiores dúvidas. O registro do contrato preliminar só deverá ser observado quando as partes tiverem interesse em levá-lo ao conhecimento de terceiros, como determina o art. 221 do Código Civil. Nesse sentido, é o enunciado 30 da I Jornada de Direito Civil.

Enunciado 30 – A disposição do parágrafo único do art. 463 do novo Código Civil deve

ser interpretada como fator de efi cácia perante terceiros.

O art. 463 do Código Civil prevê que, realizado o contrato preliminar sem que dele conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes poderá exigir a celebração do contrato defi nitivo. Para tanto deverá assinar prazo ao outro contraente, que será aquele previsto no contrato ou, em sua ausência, prazo razoável para o cumprimento do pactuado.

Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do defi nitivo, assinando prazo à outra para que o efetive.

E caso haja recusa de uma das partes? Nessa hipotése poderá o contratan-te, mediante requerimento ao juiz, exigir o cumprimento forçado do contra-to preliminar. Em outras palavras o inadimplente é compelido a executar o contrato especifi camente2, determinando o juiz que o efeito do pré-contrato se produza, independentemente do seu consentimento. Ou seja, o juiz supri-rá a vontade da parte que descumpriu o pactum de contrahendo e a sentença judicial equivalerá ao próprio contrato que era a pestação ajustada no preli-minar1. Essa é a solução aventada pelo Código Civil no seu art. 464 e que está em perfeita consonância com o princípio da execução específi ca das obriga-ções e do moderno processo civil (art. 461, 461-A, 639 e 641 do CPC).

Art. 464. Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter defi nitivo ao contrato preli-minar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação.

Page 135: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 135

O dispositivo, no entanto admite uma exceção: quando, pela natureza da obrigação, for impossível conferir caráter defi nitivo ao contrato preliminar. O artigo em comento refere-se aos casos de obrigações personalíssimas ou in-tuitu personae em que o fato devido pelo devedor só poderá ser prestado pelo próprio. Nas hipóteses de obrigações infungíveis ou em que não haja mais interesse do credor na realização do contrato, a este só restará exigir perdas e danos, conforme informa o art. 465 do mesmo diploma legal.

Art. 465. Se o estipulante não der execução ao contrato preliminar, poderá a outra parte considerá-lo desfeito, e pedir perdas e danos.

Registre-se, por oportuno, que esta solução é subsidiária, pois que a tutela específi ca das obrigações é a que melhor alcança o interesse do credor.

2. QUESTÕES DE CONCURSO:

20º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase

4. Uma grande empresa privada abre um processo seletivo para pre-enchimento do cargo de Diretor de Relações Externas. Um candi-dato é selecionado. As partes acordam o salário, demais condições de contratação e é fi xada a data para a admissão. Intempestiva-mente, sem motivar, a empresa desiste da contratação. O candida-to ajuíza em face dela ação de danos materiais e morais. Discorra sobre a fundamentação jurídica dessa pretensão e sua possibilidade de êxito judicial.

22º Exame da Ordem – OAB/RJ – 2ª fase

5– Disserte sobre o instituto da responsabilidade civil pré-contratu-al, no rompimento abrupto das negociações durante as tratativas para a celebração de um contrato, e estabeleça a validade ou não desta no ordenamento brasileiro a partir da aprovação do Novo Código Civil.

Page 136: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 136

AULA 16–FORMAÇÃO DOS CONTRATOS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Momento da formação do contrato – Algumas peculiaridades da disciplina da oferta

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – vol. III – contratos. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 36/48.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 17ª ed., 1996; pp. 57/70.

Fischer, Breno. Dos Contratos por Correspondência. Rio de Janeiro: José Kon-fi no, 1956; pp. 77/164.

1. ROTEIRO DE AULA:

Um contrato se forma no momento em que as vontades declaradas tor-nam-se coincidentes. Trata-se do chamado acordo de vontades. Caso a lei não determine que a forma da manifestação do contrato seja expressa, a vontade poderá se manifestar também de forma tácita.

A declaração de vontade inicial para a formação do contrato chama-se proposta ou oferta. O seu emissor é denominado proponente ou policitante. A declaração que corresponde à parte contrária é denominada aceitação. O seu emissor é denominado aceitante ou oblato. Da integração entre proposta e aceitação nasce o vínculo contratual.

A oferta é a manifestação unilateral de vontade que uma das partes dirige a outra visando à celebração do contrato. Caracteriza-se por ser uma declaração receptícia de vontade, uma vez que é dirigida a outra parte para que a aceite.

É importante que a proposta seja séria, evitando-se o mero espírito de emulação, uma vez que ela, guardados determinados requisitos, vincula o emissor ao seu cumprimento.

Page 137: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 137

A aceitação, por sua vez, é a manifestação de vontade através da qual o destinatário de uma oferta declara sua aceitação aos termos da proposta, for-mando assim o contrato entre as partes.

Momento da formação do contrato

Existem diversas teorias que visam a delimitar um momento específi co para a formação do contrato entre partes que não estejam simultaneamente presentes para manifestar a sua vontade. Pode-se identifi car, pelo menos, dois grandes sistemas que apontam o momento de formação da relação contratu-al: o sistema da cognição e o sistema da declaração.

De acordo com o sistema da cognição, o contrato torna-se perfeito no momento em que o proponente tem efetivo conhecimento da aceitação da proposta. Nos contratos epistolares, isso faz com que o mesmo não se forme enquanto o proponente leia a mensagem que confi rma o aceite.

A principal vantagem desse sistema reside na restrição ao fato de que al-guém venha a ser vinculado a contrato sem o seu conhecimento. Todavia, as suas desvantagens parecem sobrepujar a referida vantagem, uma vez que se torna muito difi cultoso estabelecer um momento preciso para a formação do vínculo contratual. Adicionalmente, esse sistema confere poder desmesurado ao proponente, que pode postergar a ciência do aceite.38

O segundo sistema, denominado “da declaração”, por sua vez, se divide em três teorias: (i) teoria da declaração propriamente dita; (ii) teoria da expe-dição; e (iii) teoria da recepção.

A primeira teoria, também chamada de teoria da simples aceitação, consi-dera o contrato formado no instante em que o oblato declara a sua vontade no sentido de aceitar a proposta. Segundo essa teoria, independe a formação do contrato tanto da expedição do aceite como de seu conhecimento pelo proponente. Novamente existe difi culdade em precisar com exatidão o mo-mento de formação do contrato.

Cumpre ressaltar que a defi nição de um momento a partir do qual se considera o contrato formado é essencial para uma série de obrigações decor-rentes da relação contratual, como, por exemplo, o prazo para cumprimento de uma prestação.

O inconveniente dessa teoria é retratado de forma contundente por Or-lando Gomes ao afi rmar que o oblato “ao escrever a carta de aceitação, con-cluiria o contrato; destruindo-a, o desfaria; tudo isso sem que o proponente tivesse sequer a possibilidade de saber o que se passa.”39

A teoria da expedição, ao reverso, considera o contrato formado não quando o oblato aceita, mas sim quando a aceitação é expedida. A principal vantagem dessa teoria reside no fato de retirar do aceitante o desfazimento, a todo e qualquer momento, do contrato, sem qualquer conhecimento do

38. Orlando Gomes. Contratos. Rio de

Janeiro: Forense, 17ª ed., 1996; p. 68.

39. Orlando Gomes. Ob. cit.; p. 69.

Page 138: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 138

proponente. Essa foi a teoria adotada pelo Código Civil, no seu art. 434, res-tando como exceção a previsão do art. 433, que trata da retratação do aceite já expedido, a qual será regida pela terceira teoria desse sistema, a chamada teoria da recepção.

Segundo a teoria da recepção, a manifestação de vontade do aceitante apenas forma o contrato quando o proponente recebe o aceite, indepen-dentemente do seu conhecimento. Essa teoria vigora no direito brasileiro para fi ns de retratação, ou seja, o contrato não será formado se a retra-tação chegar ao proponente antes ou simultaneamente à aceitação. Aqui não importa o conhecimento de ambas as manifestações de vontade: bas-ta que a retratação seja recebida em conformidade com o artigo 433 do Código Civil.

Os mencionados dispositivos estão assim redigidos:Art. 433. Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao

proponente a retratação do aceitante.Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é

expedida, exceto:I–no caso do artigo antecedente;

A dinâmica entre teoria da expedição para o aceite e teoria da recepção para a retratação tem interesse especial para as contratações realizadas através de e-mail, uma vez que as manifestações de vontade são expressas de forma muito mais ágil, mas, por outro lado, fi cam suscetíveis, ao bom funciona-mento da rede informática e dos servidores de correio eletrônico. Essa pos-sibilidade será explorada na aula destinada à contratação realizada através de meios eletrônicos.

Algumas peculiaridades da disciplina da oferta

O Código Civil prevê no art. 427 que a “proposta do contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do ne-gócio ou das circunstâncias do caso”. Esse dispositivo será utilizado por parte da doutrina para dividir a fase pré-contratual em dois momentos: a “fase da oferta” e a “fase das negociações”, variando o seu regime de responsabilização por rompimento das tratativas.40

A proposta deixará de ser obrigatória, todavia, nas circunstâncias previstas no art. 428, quais sejam: (i) se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita; (ii) se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo sufi ciente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente; (iii) se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado; e (iv) se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente. 40. Judith Martins-Costa. A boa-fé no

Direito Privado. São Paulo: Revista dos

Tribunais; 2000; p. 510.

Page 139: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 139

O Código de Defesa do Consumidor tornou ainda mais abrangente os efeitos da oferta nas relações de consumo. Segundo prevê o art. 35 do CDC, o fornecedor de produtos ou serviços não poderá deixar de cumprir o cons-tante da oferta, seja ela formal, seja por simples publicidade ou apresentação do produto.

Dessa forma, a mera existência de oferta permite ao consumidor o direito de optar dentre as seguintes situações: (i) exigir o cumprimento forçado da obrigação, conforme foi ofertado; (ii) aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; (iii) rescindir o contrato, com direito à restituição de qualquer quantia antecipada, somada a perdas e danos.

Essa disciplina destacada da oferta nas relações de consumo será impor-tante para criticar o art. 26 do projeto de lei n 4906/2001, que trata do mo-mento da formação do contrato nas relações de consumo estabelecidas atra-vés da Internet. A transferência do momento da formação do contrato para o eventual envio de aviso de recebimento por parte do fornecedor tiraria do consumidor a oportunidade de exigir especifi camente a prestação avençada, conforme previsto no art. 35 do CDC. Bastaria ao fornecedor não enviar o aviso de recebimento do aceite que não haveria qualquer contrato formado.

Essas são hipóteses que conferem importância ao estudo do momento da formação das relações contratuais e fazem com o que o mesmo não seja um mero descortinar de teorias, mas que tenha grande relevância prática.

2. QUESTÕES DE CONCURSO:

27º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase

14. Se a proposta contiver prazo para a resposta e esta, embora expedi-da dentro do prazo, por circunstância imprevista, chegar tarde ao conhecimento do proponente, o contrato:

(a) Não se forma, mesmo que o policitante não dê conhecimento ao oblato de que não houve o aperfeiçoamento do contrato;

(b) Se forma, arcando o proponente com perdas e danos, caso não co-munique o ocorrido ao aceitante;

(c) Se forma, devido a teoria acolhida pelo Código Civil no artigo 434;(d) Se forma, arcando o responsável pelo atraso com perdas e danos.

Concurso para o cargo de Analista Processual do Ministério Público da União (2004)

59- Sob o ângulo de sua formação, o contrato com declarações interva-ladas é aquele em que:

Page 140: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 140

(a) deixa de ser obrigatória a proposta se, feita sem prazo a uma pessoa presente, não foi imediatamente aceita;

(b) a oferta não obriga o proponente que, depois de tê-la feito, se arre-pender desde que a retratação chegue à ciência do oblato antes da proposta ou ao mesmo tempo que ela;

(c) se estabelece prazo para a esfera da resposta a uma oferta feita;(d) na hipótese de ser o oblato ausente, o proponente deverá aguardar

um lapso de tempo sufi ciente para que a oferta chegue ao destina-tário, calculando-se o tempo conforme o meio de comunicação;

(e) a proposta é obrigatória ao policitante.

Gabarito: 14 (a); 59 (d).

Page 141: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 141

AULA 17–CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Contratos típicos ou nominados – Contratos atípicos ou inominados–Contratos mistos–Contratos bilaterais–Contratos unilaterais–Contratos consensuais–Con-tratos formais ou solenes–Contratos reais–Contratos onerosos–Contratos gratui-tos–Contratos comutativos–Contratos aleatórios–Contratos de execução imediata ou instantâneos–Contratos de duração ou de trato sucessivo–Contratos pessoais ou intuitu personae–Contratos impessoais–Contrato individuais e coletivos

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2009; pp. 83/108.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Rizzardo, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008; pp. 65/112.

1. ROTEIRO DE AULA:

A classifi cação decorre da necessidade de ordenação e clareza das idéias. Ela se dá por meio da organização, em categorias comuns, dos fenômenos que cos-tumam surgir de maneira esparsa e desordenada no cotidiano. Através da classi-fi cação é possível diferenciar e analisar as especifi cidades de cada tipo contratual.

Contratos típicos ou nominados.

Diz-se contratos típicos os que, além de possuírem nome próprio (nomen juris), que os distingue dos demais, contituem objeto de regulação específi ca. São, portanto, aqueles em que suas regras disciplinadoras são deduzidas de maneira precisa nos códigos ou nas leis (como, por exemplo, compra e venda, doação, leasing etc).

Contratos atípicos ou inominados.

São aqueles em que, em razão da liberdade de contratar, foram criados fora dos modelos traçados na lei. Com razão, a mente humana é fértil e capaz

Page 142: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 142

de elaborar os mais variados tipos negociais para alcançar os mais variados efeitos. Seria impossível ao legislador prever todos os tipos contratuais. A atipicidade signifi ca ausência de tratamento legislativo específi co.

O Código Civil, em seu art. 425, autoriza a criação de novos contratos, desde que submetidos os preceitos do referido diploma legal.

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fi xadas neste Código.

Contratos mistos.

Denominam-se mistos aqueles contratos nos quais se reúnem elementos de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei1. Resultam da combinação de vários tipos contratuais previstos em lei aliados a atipicidade.

Contratos bilaterais.

No que concerne à presente classifi cação, é necessário fazer algumas ob-servações acerca da concepção de bilateral. Isto se deve ao fato de que, em sua formação, todos os contratos são bilaterais. Com efeito, todo contrato é um negócio jurídico bilateral, pois implica em duas manifestações de von-tades. Portanto, falar em contrato bilateral no sentido subjetivo seria uma redundância.

Todavia, no que diz respeito aos efeitos, os contratos podem ser bilate-rais ou unilaterais. Bilateral é o contrato em que se criam obrigações para ambas as duas partes. A característica fundamental do contrato bilateral é o sinalaga, ou seja, a existência de prestações correlatas. Trata-se, em verdade, da correspectividade das prestações. Nesse tipo de contrato, uma prestação é a causa da outra. Deixando de existir uma, por conseguinte, deixa de existir a outra.

Doutrina, ainda, faz ressalva acerca de uma outra espécie contratual. Se-riam os contratos bilaterais imperfeitos. Nesses contratos, criam-se obrigações para uma só das partes, contudo, é possível que surjam obrigações para o outro contratante supervenientemente à celebração do contrato. A diferença reside no fato de que, enquanto nos contratos bilaterais as obrigações são recíprocas e existem desde a formação, nos bilaterais imperfeitos, a obrigação de um dos contratantes surge no curso da execução. Os contratos bilaterais imperfeitos se subordinam às regras dos contratos unilaterais.

Contratos unilaterais.

São aqueles em que, no momento da formação, geram obrigações para somente uma das partes.

Page 143: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 143

Contratos consensuais.

Chama-se consensual o contrato que se torna perfeito e acabado por efeito exclusivo da integração das duas vontades. Em outras palavras, formam-se exclusivamente pelo acordo de vontades. Essa, aliás, é a regra nos contratos, conforme preceitua o art. 107 do Código Civil: a liberdade das formas.

Contratos formais ou solenes.

São aqueles contratos em que não basta o mero acordo de vontades para sua formação, mas ao invés, depende de uma formalidade exigida em lei. Ou seja, só se aperfeiçoam quando o consentimento é expresso pela forma exigida em lei.

É preciso distinguir, entretanto, os contratos formais ad solemnitatem dos contratos formais ad probationem. Nos primeiros a formalidade é da própria essência do contrato e a sua inobservância implica, diretamente, na invalida-de do negócio jurídico, de acordo com o art. 104 do Código Civil. Exemplo de contrato formal ad solemnitatem é a fi ança (art. 819 do CC).

Art. 819. A fi ança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva

Já nos contratos formais ad probationem, a formalidade é exigida somente para a prova do contrato. O contrato não é formal, mas a formalidade é impos-ta como técnica probatória. Nesses, o contrato produz seus efeitos, embora só possa ser provado pela forma especifi cada em lei. Cumpre ressaltar que, ainda que não se tenha realizado o contrato pela forma especifi cada em lei, é possível a demonstração de sua existência por todos os meios de prova admitidos em direito no curso do processo, sob pena de cerceamento de defesa (art. 5º, LVI da CRFB/88 c/c art. 332 do CPC). Lembre-se que o art. 221, parágrafo único ad-mite que a prova do instrumento particular pode suprir-se por outras de caráter legal. Exemplo desse tipo de contrato é o depósito voluntário (art. 646 do CC).

Art. 646. O depósito voluntário provar-se-á por escrito.

Contratos reais.

São os contratos que se perfazem com a entrega da coisa. Em outras pala-vras, somente com a traditio se forma o contrato. São exemplos desse contra-to o mútuo, o depósito e o comodato.

Contratos onerosos.

São aqueles contratos em que cada uma das partes visa a obter vantagem. Nesses, ambas as partes obtém proveito, ao qual, corresponde um sacrifício. Diz-se, portanto, que os contratos onerosos são bilaterais.

Page 144: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 144

Contratos gratuitos.

Chamam-se gratuitos os contratos em que somente uma das partes obtém proveito. É o contrato em que um contratante aufere vantagens ao passo que o outro suporta o encargo.

A importância da distinção diz respeito às conseqüências práticas. Nos contratos gratuitos, a interpretação é sempre restritiva (art. 114 do Código Civil). São, ainda, tratados com maior rigor, pois podem implicar em fraude contra credores (art. 158 e 159 do Código Civil).

Em regra os contratos gratuitos são unilaterais, todavia, ORLANDO GOMES lembra uma hipótese de contrato unilateral oneroso: mútuo fene-ratício. Não obstante, existe doutrina que determina se tratar, em verdade, de um contrato bilateral.

Contratos comutativos.

Nesses contratos, a relação entre vantagem e sacrifício é equivalente. Em outras palvras, as prestações das partes são conhecidas previamente existindo, por conseguinte, um equilíbrio entre as prestações.

Contratos aleatórios.

Denominam-se aleatórios os contratos em que os contraentes não podem antever ambas as prestações com certeza absoluta. Há uma incerteza para as duas partes sobre se a vantagem esperada será proporcional ao sacrifício. Exis-te, portanto, um risco, uma álea. A vantagem dessa contratação é que, por envolver um risco, o valor a ser pago pelo contratante será menor. Importante é que haja absoluta incerteza quanto ao resultado fi nal da contratação e falta de equivalência entre as prestações.

O risco ou álea, pode dizer respeito ou a própria existência da coisa ou sobre sua quantidade. No primeiro caso o contratante assume o risco da coisa sequer vir a existir. Dessa forma, o preço será devido ainda que nada venha a existir. Trata-se da emptio spei, prevista no art. 458 do Código Civil. Exemplo clássico é da compra de uma colheita, ainda que nada seja colhido.

Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir.

Por outro lado, se o risco for somente da quantidade, estaremos falando da emptio rei speratae. Nesse caso, caso nada venha a existir, o preço será restituí-do à parte que assumiu o risco. No entanto, caso venha a existir alguma coisa, ainda que em quantidade inferior à esperada, o preço será devido. Invocando

Page 145: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 145

o exemplo da colheita, o adquirente assume o risco, somente, da quantida-de, mas alguma colheita terá que existir, sob pena de resolver-se o contrato retornando ao status quo ante, conforme dispõe o art. 459 do Código Civil.

Art. 459. Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adqui-rente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada.

Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restituirá o preço recebido.

O risco pode dizer respeito, ainda, a coisas existente, porém expostas ao risco de perecimento ou deterioração. Neste caso, se o adquirente assumiu o risco, o preço será devido, ainda que a coisa venha a se perder ou deteriorar, conforme preceitua o art. 460 do Código Civil. No entanto, o art. 461 do mesmo diploma legal afi rma que caso o alienante tenha agido com dolo (co-nhecia da consumação do risco), o contrato poderá ser anulado.

Art. 460. Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato.

Art. 461. A alienação aleatória a que se refere o artigo antecedente poderá ser anulada como dolosa pelo prejudicado, se provar que o outro contratante não ignora-va a consumação do risco, a que no contrato se considerava exposta a coisa.

Contratos de execução imediata ou instantâneos.

São os contratos em que a solução se efetua de uma só vez e por prestação única. Nesses, a prestação pode ser realizada num só instante.

Os contratos instantâneos podem, ainda, ser de execução diferida. Em tal hipótese, mantém-se a característica de instantâneo, mas a prestação há de ser cumprida em uma única prestação no futuro. A execução, portanto, é protra-ída para outro momento, geralmente, em razão de um termo.

Contratos de duração ou de trato sucessivo.

Denominam-se contratos de trato sucessivo aqueles contrato que tem que ser cumpridos durante certo tempo período de tempo, continuadamente. Nos contratos de duração, a prestação não pode ser executada de uma só vez, mas de modo contínuo ou períodico.

Eles se subdividem em contratos de execução periódica e de execução conti-nuada. Os primeiros executam-se mediante prestações periodicamente repe-tidas, ou seja, a cada novo período surge uma nova prestação (exemplo: luz, água, telefone). Já nos contratos de execução continuada, a prestação é única, mas interrupta (exemplo: locação, comodato)

Page 146: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 146

Contratos pessoais ou intuitu personae

São contratos celebrados levando-se em consideração a pessoa de um dos contratantes que é, para o outro, elemento determinante de sua celebração. São contratos que admitem o erro sobre a pessoa, pois o erro sobre a pessoa foi elemento determinante e, portanto, essencial para a celebração do contra-to, possibilitando a sua anulabilidade.

Contratos impessoais

Contratos nos quais é indiferente a pessoa com quem se contrata. Esta mo-dalidade é freqüente no tráfego jurídico de massas, especilamente no comércio em que mercadorias são expostas a um número indeterminado de pessoas.

Contrato individuais e coletivos

O primeiro é o contrato que se forma pelo consentimento das pessoas, cujas vontades são individualmente consideradas. No segundo, a declaração volitiva provém de uma coletividade, isto é, um agrupamento de indivíduos, ou uma categoria, forma o vínculo (exemplo: contrato de trabalho coletivo).

Page 147: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 147

AULA 24–INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Teorias sobre a interpretação dos contratos – Interpretação contratual no novo Código Civil

LEITURA OBRIGATÓRIA:

TEPEDINO, Gustavo. “Novos princípios contratuais e teoria da confi ança: a exegese da cláusula to the best knowlegde of the sellers”, in Temas de Direito Civil, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 241/275.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 17ª ed., 1996; pp. 198/210.

Bessone, Darcy. Do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960; p. 221/238.

1. ROTEIRO DE AULA:

A interpretação dos contratos possui uma disciplina própria, a qual busca conferir sentido às relações contratuais. No momento de criação do contra-to, ambas as partes emitem uma declaração volitiva, com poder criador de direitos e obrigações. Assim, a vontade contratual é uma entidade que se des-prende do mundo psíquico de cada parte contratante e termina por ganhar sentido sob o escrutínio alheio.

Não raramente, caso ocorra algum desentendimento sobre a forma de exe-cução do contrato, ou sobre um termo específi co do instrumento contratual, caberá a um terceiro (juiz ou árbitro) perquirir qual foi a vontade das partes manifestada no contrato. Surgem aqui as duas principais teorias de herme-nêutica contratual: (i) teoria da vontade; e (ii) teoria da declaração.

Teorias sobre a interpretação dos contratos

A interpretação do contrato geralmente torna-se o centro das atenções quando existe controvérsia sobre o real sentido de uma cláusula, ou mesmo

Page 148: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 148

do instrumento como um todo. Essa tarefa se mostra das mais árduas, dado que a interpretação dos contratos oferece difi culdades que a interpretação da lei desconhece. A análise do contrato, por exemplo, demanda algumas inves-tigações de natureza bastante subjetiva.

A interpretação do contrato será subjetiva quando se voltar para a vontade das partes, e objetiva quando analisar as cláusulas em si.

De acordo com a interpretação subjetiva, deve o intérprete buscar a inten-ção comum das partes. Aqui se objetiva resguardar a substância da real mani-festação das partes contratantes, cuja compreensão pode ter sido ocultada por um vício de redação ou qualquer formulação imperfeita do contrato.

A interpretação subjetiva do contrato privilegia a autonomia da vontade das partes. Todavia, deve-se notar que o contrato é pautado por novos prin-cípios, como a função social, que podem interferir na atividade de interpre-tação do contrato.

A interpretação objetiva, por sua vez, visa à análise das cláusulas contratu-ais através de regras pré-estabelecidas como a boa-fé; a conservação do con-trato, e a extrema ratio, por exemplo. A boa-fé impõe que se analise o contrato conforme exige a confi ança e a lealdade esperada entre as partes contratantes. A conservação do contrato visa à produção de efeitos mais ampla pelo contra-to. A extrema ratio, por fi m, é regra que determina a aplicação de presunções, quando o conteúdo de uma cláusula ou do contrato permanecer obscuro. Aqui estão contidas as normas de interpretação mais benéfi ca ao consumidor, por exemplo.

No Brasil, optando por solução distinta daquela adotada pelo Código Co-mercial, o Código Civil de 1916 não continha um capítulo autônomo para a interpretação dos contratos. Clóvis Bevilaqua entendia que a enumeração de regras de interpretação poderia tolher o ofício do juiz. O mesmo ocorre com o novo Código Civil.

Dessa forma, os artigos sobre interpretação dos contratos estão localizados na Parte Geral, no título dos Negócios Jurídicos (arts. 110/114) e na Parte Especial, no título dos Contratos em Geral (arts. 423 e 424).

Na França, o Código Civil estabeleceu diversas regras de interpretação, baseadas no trabalho de Pothier, que até hoje são referências para a herme-nêutica contratual. São elas:

1) O intérprete deve indagar mais a intenção comum das partes contraentes do que o sentido gramatical das palavras. 

2) Quando uma cláusula é suscetível de dois sentidos, deve entender-se favora-velmente àquele que gera a produção de efeitos; e não àquele que não geral qualquer efeito.

3) Quando em um contrato os termos são suscetíveis de dois sentidos, deve entender--se no sentido que mais convém à natureza do contrato.

4) Aquilo que em contrato é ambíguo interpreta-se conforme uso do país.

Page 149: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 149

5) Devem-se considerar implícitas em todos os contratos as cláusulas de uso.6) As cláusulas contratuais interpretam-se uma em relação às outras, sejam an-

tecendentes, sejam consequentes.7) Na dúvida, uma cláusula deve interpretar-se contra o estipulante e em favor do

promitente.8) As cláusulas contratuais, ainda quando genéricas, compreendem apenas aquilo

que foi objeto do contrato, e não as coisas de que os contratantes não cogitam.9) Compreendem-se na universidade todas as coisas particulares que a compõem,

mesmo quando das partes ao contratar não tenham tido conhecimento destas.10) O caso expresso para explicação da obrigação não deve considerar-se com o efeito

de restringir o vínculo, e sim que este abrange os casos não expressos.11) Uma cláusula expressa no plural decompõe-se muitas vezes em cláusulas singulares.12) O que está no fi m de uma frase ordinariamente se refere a toda a frase, e não

àquilo só que a precede imediatamente, contanto que este fi nal da frase concorde em gênero e número com a frase inteira.

13) Interpreta-se a cláusula contra aquele contratante, em razão de cuja má-fé, ou culpa, a obscuridade, ou ambigüidade ou outro vício se origina.

14) As expressões que se apresentam sem sentido nenhum devem ser rejeitadas como se não constassem do texto do contrato.

Na perspectiva civil-constitucional, é importante notar a que a eventual fl exibilização da autonomia da vontade também possui refl exos no campo da interpretação, já que a manifestação de vontade das partes não poderá ser ana-lisada de forma destacada de imperativos de ordem pública. Essa constatação rompe com os manuais clássicos sobre hermenêutica jurídica, estabelecendo deveres que as partes devem observar independentemente de suas vontades.

Essa tendência de análise já era percebida por Carlos Maximiliano, ao afi rmar que:

“Parece que o Direito das Obrigações é a derradeira cidadela do misoneísmo no campo jurídico; ali se acastelam os últimos adversários da organização democrática, no sentido mais amplo e literal da expressão. Entretanto, até ali a vontade individual vai cedendo terreno, embora a custo, à solidariedade, à utilidade social.”41

A ausência de um capítulo dedicado ao tema da interpretação dos contra-tos pode difi cultar uma visão geral sobre o tema, mas é certo que, tanto as normas constantes da parte sobre negócio jurídico, como aquelas previstas no capítulo dedicado aos contratos (e, mais especifi camente, aos contratos de adesão) ilustram bem essa passagem de uma hermenêutica voltada para a manifestação de vontade do indivíduo para uma série de condicionantes outras a serem conjugadas no trabalho do intérprete. Trata-se da derrocada da “mística da vontade” já referida.

41. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e

Aplicação do Direito. Rio: Forense, 19ª

ed., 2001; pp. 275/276.

Page 150: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 150

Interpretação contratual no novo Código Civil

São aplicáveis à interpretação contratual os artigos dedicados pelo Código Civil à interpretação dos negócios jurídicos. Como já se comentou breve-mente sobre esses dispositivos nas primeiras aulas do curso, cumpre agora apenas fazer menção à algumas particularidades importantes especialmente para a interpretação contratual.

O art. 111 trata dos efeitos do silêncio na interpretação das vontades ma-nifestadas pelas partes contratantes. O dispositivo assim está redigido:

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.

A importância desse dispositivo deriva do fato de que confere efeitos de anuência ao silêncio mantido por uma das partes contratantes. A prática con-tratual costuma a denominar tais situações de “silêncio eloqüente”.42

Todavia, só se reconhece a força criadora do silêncio quando as partes assim convencionaram, ou um comportamento anterior tenha gerado uma legítima expectativa (boa-fé objetiva). Não poderia todo e qualquer silêncio importar em anuência, a ponto de se tornarem banais as negociações e a troca de vontades declaradas para a formação de um contrato e para sua interpretação.

Assim, por exemplo, quando uma empresa envia mala-direta e faz cons-tar dos termos da oferta que o silêncio implicará em aceitação, não se pode considerar que o contrato tenha se formado, pois: (i) não há acerto entre as partes nesse sentido; e (ii) inexistiu comportamento anterior que gerasse uma legítima expectativa.

No capítulo específi co sobre contratos, o Código Civil dispõe, em dois artigos, sobre a interpretação dos contratos de adesão. Esses dois dispositi-vos são relevantes para que se compreenda que a interpretação dos contratos também está submetida à mudança pela qual atravessa a teoria contratual, com a consagração de novos princípios e com a fl exibilização da autonomia da vontade frente à interesses por vezes comandados pela função social do contrato ou pelas derivações da boa-fé objetiva.

O contrato de adesão é resultado do fenômeno da massifi cação das rela-ções contratuais. São características desse tipo de contratação: (i) estabele-cimento prévio das condições do contrato; (ii) necessidade de contratar em massa; (iii) existência de um desequilíbrio entre as partes contratantes com relação a aspectos econômicos, jurídicos ou técnicos; e (iv) multiplicidade de situações uniformes.

Justamente para proteger a parte que está em situação de inferioridade, dispõe o art. 423, de forma bastante assemelhada ao que ocorre no art. 47 do Código de Defesa do Consumidor, que a interpretação de cláusulas ambíguas ou contraditórias deverá ser feita de forma a privilegiar a linha de interpreta-

42. Embora, em termos literários, acha

discordância sobre a existência de

“silêncios eloqüentes”, pois, conforme

lembra José Saramago, o “silêncio

eloqüente não existe, os silêncios

eloqüentes são apenas palavras que

fi caram atravessadas na garganta,

palavras engasgadas que não puderam

escapar ao aperto da glote.” (O Homem

Duplicado. São Paulo: Companhia das

Letras, 2002; p. 68).

Page 151: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 151

ção que seja mais favorável à parte que adere ao contrato, sem possibilidade de negociação de seus termos:

Art. 423, do Código Civil. “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.”

Art. 47, do Código de Defesa do Consumidor. “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.”

Cláusulas ambíguas são aquelas que de sua interpretação gramatical pode--se extrair mais de um sentido. Cláusulas contraditórias, por sua vez, são aquelas cujo conteúdos são inconciliáveis.

Esse artigo do Código Civil termina por exercer uma função dúplice: por um lado, ele possui uma função preventiva, pois inibe a elaboração de cláusu-las abusivas, ou que estabeleçam vantagens excessivas; por outro, ele também desempenha uma função corretiva pois, uma vez a cláusula já inserida, a inter-pretação mais favorável ao aderente compensa a sua posição de inferioridade.

O Código Civil ainda dispõe que serão reputadas nulas as renúncias ante-cipadas a direitos nos contratos de adesão. Essa regra deriva do art. 424, que assim está redigido:

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renún-cia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

Evita-se através desse dispositivo a utilização de cláusulas-padrão como a não reparação pelos danos decorrentes de defeito da coisa ou pela má presta-ção dos serviços.

Os dois artigos que dispõe sobre contratos de adesão no Código Civil estão em consonância com o regramento do Código de Defesa do Consumi-dor, contribuindo para a afi rmação dos novos princípios da teoria do con-trato. Dessa forma, percebe-se que a interpretação do contrato, longe de ser apenas um exame da vontade manifestada das partes, vem se tornando gra-dativamente uma forma de instrumentalizar o comando de alguns princípios contratuais, como a boa-fé, a função social e o equilíbrio econômico.

2. CASO GERADOR:43

Frigaliment Importing Co. v. B.N.S. International Sales Corp.

A sociedade suíça Frigaliment Importing Co. celebrou com B.N.S. Inter-national Sales Corp., companhia norte-americana com sede em Nova Iorque, um contrato de compra e venda, por meio do qual a B.N.S. fi cava obrigada a transferir e entregar à Frigaliment Importing Co. determinada quantida-

43. Caso gerador extraído da Apostila

“Interpretação dos Contratos”, elabo-

rada por Anderson Schreiber e Rafael

Crisafulli para os cursos de educação

continuada da Escola de Direito da

Fundação Getúlio Vargas no Rio de

Janeiro.

Page 152: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 152

de de frango (chicken) congelado, atendendo a certas especifi cações de peso e qualidade44.

Ao receber a mercadoria, a companhia suíça verifi cou que parte dos frangos era de idade avançada e, portanto, imprópria para o uso comercial pretendi-do (alienação para consumo alimentar). Propôs, assim, ação judicial alegando inadimplemento contratual por parte da B.N.S., ao argumento de que o termo “frango” (chicken), no mercado especializado, refere-se ao animal abatido ainda jovem, próprio para a indústria alimentícia. A companhia norte-americana con-testou a ação, afi rmando que “frango” (chicken) é termo empregado normalmente para designar o galináceo masculino de qualquer idade, e que qualquer restrição ao signifi cado da palavra deveria ter sido especifi cada pela Frigaliment Importing Co. no momento de celebração do contrato.

O juiz Henry J. Friendly, responsável pelo julgamento da ação, assim iniciou o seu voto: “Th e issue is, what is chicken?” (“A questão é: o que é frango?”).

3. QUESTÕES DE CONCURSO:

21º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase

1– No que se refere a contrato fi rmado entre duas partes é CORRETO afi rmar:

(a) A vontade manifesta de uma das partes não subsiste se esta faz re-serva mental de não mais querer aquilo que manifestou;

(b) A reserva mental é indiferente à validade do negócio jurídico, exce-to quando o destinatário da manifestação de vontade efetuada com reserva mental tiver conhecimento da mesma;

(c) A reserva mental de uma das partes importa em erro concernente ao objeto da declaração de vontade;

(d) O negócio realizado com reserva mental de uma das partes é anulá-vel por não importar em um querer defi nitivo.

2– Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao silêncio nos contratos:

(a) O silêncio no sentido jurídico pode ser conceituado como aquela situação quando uma pessoa não manifestou sua vontade em rela-ção a um negócio jurídico, nem por uma ação especial necessária a este efeito (vontade expressa) nem por uma ação da qual se possa deduzir sua vontade (vontade tácita);

(b) Se alguém me apresenta um contrato e manifesta que tomará meu silêncio como aquiescência, eu não me obrigo, porque ninguém

44. O objeto do contrato era defi nido

da seguinte forma: “US Fresh Frozen

Chicken, Grade A, Government

Inspected, Eviscerated; 2½ – 3 lbs. and

1½ – 2 lbs. each; all chicken indivi-

dually wrapped in cryovac, packed in

secured fi ber cartons or wooden boxes,

suitable for export; 75,000 lbs. 2½-3

lbs: $33.00 and 25,000 lbs. 1½ – 2 lbs:

$36.50 (...)”.

Page 153: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 153

tem o direito, quando eu não consinto, de forçar-me a uma contra-dição positiva;

(c) O silêncio só produz efeitos jurídicos quando, devido às circunstân-cias ou condições de fato que o cercam, a falta de resposta à interpe-lação, ato ou fatos alheios, ou seja, a abstenção, a atitude omissiva e voluntária de quem silencia induz a outra parte, como a qualquer pessoa normal induziria, à crença legítima de haver o silente revela-do, desse modo, uma vontade seguramente identifi cada;

(d) O silêncio importará em anuência do contrato todas as vezes em que se estiver diante de contratos de adesão, houver prazo obri-gatório assinalado para manifestação da parte, sob pena de não o fazendo considerar a contraparte que houve aquiescência e a parte tiver tido ampla oportunidade de tome conhecimento de todos os termos e cláusulas do contrato.

Gabarito: 1 (b); 2 (d).

Page 154: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 154

AULA 19–VÍCIOS REDIBITÓRIOS E EVICÇÃO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Vícios Redibitórios–Evicção

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. III. Rio de Janei-ro: Forense, 2008; pp. 121/132.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Rizzardo, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008; pp. 167/188.

1. ROTEIRO DE AULA:

Vícios Redibitórios

Pode ocorrer que, nos contratos comutativos, a coisa transferida ao adqui-rente possua defeitos que a tornem inadequada ao fi m a que se destinam ou lhes diminuam sensivelmente o valor. Nestes casos, poderá o adquirente re-jeitar (enjeitar, são sinônimos) a coisa, sendo restituído pelo preço pago. Com efeito, o adquirente tem direito à utilidade da coisa45. Ainda nesse sentido, CAIO MÁRIO PEREIRA DA SILVA preleciona que na hipótese de transfe-rência de coisa de qualquer natureza, deve ser assegurado ao adquirente a sua posse útil, se não equivalente, rigorosa, ao menos relativa ao preço recebido.

Nas situações, ora em apreço, estaremos tratando dos chamados vícios re-dibitórios. Esses são defeitos ocultos que afetam a coisa transferida nos con-tratos comutativos, tornando-a inadequada ao fi m a que se destina ou dimi-nuindo-lhe, sensivelmente o valor.

É, segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “defeito oculto de que portadora a coisa objeto de contrato comutativo, que a torna imprópria ao uso a que se destina, ou lhe prejudica sensivelmente o valor1”.

Para ORLANDO GOMES podemos defi ní-los como os defeitos ocultos que desvalorizam a coisa ou fazem-na imprestável46. GUSTAVO TEPEDI-NO, HELOISA HELENA E MARIA CELINA BODIN DE MORAES47,

45. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário. Ins-

tituições de direito civil. Rio de Janeiro:

Forense, 2006.

46. GOMES, Orlando. Contratos. Rio de

Janeiro: Forense, 2007.

47. TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA,

Heloisa Helena e MORAES, Maria Celina

Bodin de. Código Civil interpretado con-

forme a Constituição da República – Vol.

II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Page 155: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 155

por sua vez, os conceituam como “os defeitos ocultos que afetam a coisa transferida nos contratos comutativos, tornando-a imprópria para o uso a que se destinava ou dimnuindo-lhe o valor, por tal forma que, se conhe-cesse o vício, o adquirente da coisa não teria realizado o contrato ou teria oferecido uma contraprestação maior. Este é, também, o entendimento de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO48. Dispõe o art. 442 do Có-digo Civil:

Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.

Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas.

É preciso deixar claro, desde já, que aos contratos submetidos às relações de consumo não se aplica a teoria dos vícios redibitórios. Com efeito, o Có-digo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) inovou a disciplina dos vícios nos arts. 26 e seguintes, garantindo uma maior proteção ao consumidor.

O fundamento dos vícios redibitórios causam certa perplexidade na dou-trina. Podemos citar três principais teorias para validá-los:

i) Teoria da Eqüidade49. Por essa teoria, o fundamento dos vícios re-dibitórios é o equilíbrio entre as prestações dos contratos comutati-vos. Dessa forma, o defeito na coisa determinando a sua impresta-bilidade ou o seu valor tem repercussão direta na contra-prestação.

ii) Teoria do Erro. De acordo com essa segunda teoria, considera-se a vontade do adquirente viciada por erro sobre uma das qualidades essenciais do objeto, pois caso ele soubesse do vício não terio reali-zado a contratação. Tal teoria, entretanto, peca uma vez que em se tratando de erro, a conseqüência jurídica seria a anulação do con-trato e não a redibição.

iii) Teoria do Risco. Por essa corrente, afi rma-se que o alienante respon-de pelos defeitos porque a lei determina que o risco deve ser por ele suportado. De fato, procede tal afi rmação. No entanto, conforme lembra ORLANDO GOMES, o “problema dos riscos consiste em saber quem sofre a perda com a inexecução fortuita da obrigação; assim sendo, falar de risco a propósito do vício redibitório é admitir que o alienante deve ser responsabilizado por defeitos da coisa por ele desconhecidos, voltando-se, assim, à idéia de garantia2”.

Apesar das teorias expostas, parece-nos que o correto fundamento dos ví-cios redibitórios reside no princípio da garantia, segundo o qual, o alienante, ao celebrar o contrato, compromete-se a garantir o perfeito estado da coi-sa, assegurando-lhe a incolumidade, as qualidades anunciadas e a adequação aos fi ns propostos4. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA afi rma que “temo

48. MONTEIRO, WASHINGTON DE

BARROS. Curso de direito civil. Direito

das obrigações 2ª parte. São Paulo:

Saraiva, 2007.

49. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito

Civil brasileiro, volume III: contratos e

atos unilaterais. 2ª ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2006.

Page 156: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 156

adquirente o direito de exigir do transmitente a efetivação do princípio da garantia1”. ORLANDO GOMES complementa: “trata-se, realmente, de ga-rantia de natureza especial2”.

Apesar dos vícios que afetam a coisa permitirem a possibilidade de rejeitá--la, nem todos os defeitos ou falhas possibilitarão ao adquirente responsabi-lizar o alienante. Segundo CARLOS ROBERTO GONÇALVES, defeitos “de somenos importância ou que possam ser removidos são insufi cientes para justifi car a invocação da garantia5”. Com efeito, para que se possa utilizar das conseqüências jurídicas da disciplina dos vícios redibitórios, é fundamental que o defeito apresente as seguintes características:

(i) Existência de um contrato comutativo. Conforme determina o art. 441 do Código Civil, vícios redibitórios só tem aplicação nos contratos comu-tativos e, jamais nos contratos aleatórios. Registre-se que o parágrafo único do citado dispositivo admite a aplicação do regime dos vícios às doações onerosas.

Perceba-se que a disciplina não é exclusiva dos contratos de compra e venda, mas de todos os contratos comutativos translativos de propriedade2. Dessa forma, andou bem o legislador ao situá-lo na teoria geral dos contratos.

Ponto de discussão é a possibilidade de utilização dos vícios redibitórios nas aquisições feitas em hasta pública. A razão de ser é porque o art. 1.106 do Código Civil de 1916 determinava que a disciplina não se aplicava à coisa vendida em hasta pública.

A ratio legis por trás da norma está ligada ao fato de que a exposição prévia da coisa possibilitaria minucioso exame, como ainda pelo fato de ser forçada, em processo judicial, em que se realiza por autoridade de justiça. Entretanto, tal dispositivo não foi reproduzido no Código Civil vigente.

Para CARLOS ROBERTO GONÇALVES, portanto, “poderá o adqui-rente lesado, em qualquer caso, mesmo no de venda feita compulsoria-mente por autoridade de justiça, propor tanto a ação redibitória quanto a quanti minoris, se a coisa arrematada contiver vício redibitório. Não prevalece mais, pois, a hipótese excepcionada no diploma anterior como exclusão de direito5”.

Não obstante, parece-nos mais correta a solução de CAIO MÁRIO PE-REIRA DA SILVA1 ao afi rmar que persiste a vedação3, pois a alienação é compulsória2. Mister ressaltar, que tal vedação não se aplica caso o alienante tenha escolhido livremente o leilão para a alienação1.

(ii) Defeito Oculto. Os defeitos devem ser irreconhecíveis ao momento da conclusão do negócio. Caso o vício seja aparente ou de fácil constatação, presume-se que o adquirente os levou em consideração e, ainda assim, quis recebê-la.

Registre-se, por oportuno, que o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) alterou a sistemática dos vícios nas relações consumeristas confe-

Page 157: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 157

rindo maior proteção ao consumidor, parte vulnerável na relação (v. Condu-midor, infra).

É preciso, ainda, que o defeito oculto seja desconhecido do adquirente, ou seja, no momento da conclusão do negócio o adquirente não pode ter conhecimento do vício. Caso o adquirente conheça do vício oculto, estará aceitando recebê-la naquela situação.

(iii) Grave. O vício tem que ser grave de tal maneira que diminua substan-cialmente o valor da coisa ou que lhe impeça de desempenhar a função a que se destina. Sem embargo, caso o defeito seja inexpressivo, exigir a redibição do contrato implica em exercício abusivo de um direito contratual, violando, por conseguinte, o princípio da da boa-fé objetiva em sua segunda função (art. 187 do Código Civil).

Aliás, em se tratando de defeito insignifi cante, a entrega da coisa pelo alie-nante implicaria no próprio adimplemento substancial. O adimplemento, nesse caso, é tão próximo do resultado fi nal que a sua principal conseqüência é a impossibilidade de resolução contratual50 (v. capítulo sobre pagamento).

A análise da gravidade do defeito está ligada a frustração da legítima ex-pectativa do adquirente, quer tornando a coisa inadequada ao fi m a que se destina, quer diminuindo-lhe sensivelmente o valor. Em verdade, a análise há de ser casuística, verifi cando no caso concreto de acordo com os termos do contrato e com a prática geral do comércio3.

(iv) Preexistente. Os defeitos devem preexistir à transferência do bem. De-vem ser preexistente à própria tradição do bem e não da celebração do con-trato. Com razão, o defeito superveniente não constitui vício, pois já está integrado ao patrimônio do adquirente. Impera o princípio RES PERIT DO-MINUS (a coisa perece para o dono).

Cabe lembrar que, mesmo a coisa perecendo após a tradição (entrega efe-tiva do bem), se esta ocorrer direta e imediatamente em razão do vício ante-rior à celebração do contrato, o alienante responderá. Trata-se de derrogaçào do princípio anteriormente mencionado, conforme preceitua o art. 444 do Código Civil.

Art. 444. A responsabilidade do alienante subsiste ainda que a coisa pereça em poder do alienatário, se perecer por vício oculto, já existente ao tempo da tradição.

O principal efeito oriundo dos vícios redibitórios é possibilitar ao adqui-rente os meios de não sofrer a perda. Tem em suas mãos as chamadas ações edilícias: a ação redibitória e a ação estimatória ou quanti minoris2.

Pode se utilizar de uma ou de outras. Trata-se, em verdade, de uma alter-nativa posta à sua disposição. No entanto, uma vez eleita a via, não poderá voltar atrás. Em outras palavras, uma vez feita a escolha, ela é irrevogável. É, nos dizeres de ORLANDO GOMES, “uma espécie de concentração do direito de acionar2”. 50. LOBO, Paulo Luis Netto. Teoria Geral

das Obrigações; Ob. Cit.; P. 74.

Page 158: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 158

A primeira ação, prevista no caput do art. 441 do Código Civil autoriza o adquirente a rejeitar a coisa, rescindindo o contrato e pleiteando a devolução do preço pago.

Contudo, pode acontecer que, não obstante o defeito, a coisa apresente ainda alguma utilidade para o adquirente, e este decida mantê-la em seu poder mediante uma redução da contraprestação. Nessa hipótese, o Código Civil autoriza a ação estimatória ou quanti minoris, pela qual o adquirente obterá o abatimento proporcional do preço pago.

Art. 442. Em vez de rejeitar a coisa, redibindo o contrato (art. 441), pode o adquirente reclamar abatimento no preço.

Por outro lado, pouco importa a ignorância do alienante para fi ns de res-ponsabilização pela garantia. Com efeito, pouco importa a sua conduta. Para caracterização dos vícios redibitórios, basta a existência de um vício oculto, desconhecido, preexistente e grave.

A importância da conduta do alienante é justifi cável apenas para a exten-são de sua responsabilidade. Explica-se: o alienante responderá pela redibição e, por conseguinte, restituirá o preço pago, mais despesas do contrato, ainda que desconheça o defeito que inquina a coisa. No entanto, se conhecia o vício e, portanto, atuou de má-fé, responderá, além da restituição do preço e des-pesas do contrato, pelos prejuízos que o adquirente venha a sofrer, conforme estipula o art. 443 do Código Civil.

Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que re-cebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato.

O direito do adquirente exigir a redibição ou o abatimento proporcional do preço está sujeito à um prazo decadencial variável, conforme a natureza do bem. Dessa forma, passado o lapso temporal, extingue-se o direito do ad-quirente de redibir ou exigir o abatimento proporcional.

O prazo para coisa móvel é de 30 dias e o de coisa imóvel é de 1 ano, ambos contados a partir da tradição (entrega efetiva). Lembre-se que, caso o bem já esteja na posse do adquirente no momento da celebração do contrato, os prazos serão reduzidos pela metade.

Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.

§ 1o Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.

Page 159: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 159

§ 2o Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais, aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a matéria.

Interessante notar, ainda, as normas dos parágrafos do art. 445 do Código Civil. O segundo parágrafo não suscita maiores dúvidas, remetendo o prazo de garantia por vícios aos animais para as leis especiais.

Perplexidade, entretanto, é gerada pelo parágrafo primeiro do referido dis-positivo. Dispõe que quando o vício, por sua natureza, só puder ser conheci-do mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis. O disposto suscita duas interpretações3:

(i) os prazos ali estabelecidos devem ser contados a partir do momento em que o vício for revelado

(ii) tais prazos são o limite do prazo para ajuizamento das ações edilícias

Parece-nos que o legislador não quis estabelecer um lapso temporal inde-fi nido para o exercício da garantia, como quer o primeiro entendimento1. Com efeito, em nossa sociedade massifi cada de consumo, todos os produtos são construídos com uma vida útil. Admitir um prazo indeterminado é gerar instabilidade e insegurança nas contratações, pois a qualquer momento pode-rá aparecer um defeito que, por sua natureza, só então pode ser descoberto3.

Parece-nos mais razoável, portanto, o segundo entendimento. Confor-me ensina GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA E MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “os prazos do § 1º do art. 445 se referem ao período no qual os defeitos hão de necessariamente ser revela-dos. (...) Assim, seria de 180 dias (móveis) ou de um ano (imóveis) o prazo para manifestação do defeito, iniciando-se a partir de então a contagem do prazo decadencial previsto no caput do art. 445 (30 dias, se móvel; 1 ano, se imóvel)3”.

Em outras palavras, em se tratando de vícios ocultos que só podem ser co-nhecidos posteriormente em razão de sua natureza, o prazo para que o vício se manifeste é de 210 (180 dias do §1º, mais 30 dias do caput do art. 445) dias para bens móveis e 2 anos para bens imóveis (1 ano do § 1º, mais 1 ano do caput do art. 445).

Enunciado 174 do CJF Art. 445: Em se tratando de vício oculto, o adquirente tem os prazos do caput do art. 445 para obter redibição ou abatimento de preço, desde que os vícios se revelem nos prazos estabelecidos no parágrafo primeiro, fl uindo, entretanto, a partir do conhecimento do defeito.

Por fi m, é lícito às partes estabelecer garantia convencional, conforme pre-ceitua o art. 446 do Código Civil. A estipulação de garantia convencional

Page 160: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 160

tem por efeito a suspensão dos prazos decadenciais. Todavia, a partir do co-nhecimento do defeito, o adquirente deverá comunicá-lo no prazo máximo de 30 dias sob pena de decair seu direito.

Evicção

Podemos dizer que a evicção é um parente próximo dos vícios redibitórios. Com efeito, enquanto os vícios redibitórios são uma garantia da coisa em relação aos defeitos materiais, a evicção é a garantia51 da coisa em relação aos defeitos de direito52. Enquanto nos vícios se garante a posse útil, na evicção se garante a posse pacífi ca53.

Podemos conceituar a evicção como a perda da coisa, mediante sentença judicial, que a atribui a outrem, por direito anterior ao contrato aquisitivo. É para ORLANDO GOMES1 dá-se evicção quando “o adquirente vem a perder a propriedade ou posse da coisa em virtude de sentença judicial que reconhece a outrem direito anterior sobre ela”.

Para CARLOS ROBERTO GONÇALVES, podemos defi ní-la como “a perda da coisa em virtude de sentença judicial, que atribui a outrem por cau-sa jurídica preexistente ao contrato54”.

O fundamento da evicção é o mesmo dos vícios redibitórios: princípio da garantia2. Aliás, como ressalta WASHINGTON DE BARROS MONTEI-RO55 que o “alienante é obrigado não só a entregar ao adquirente a coisa alienada, como também a garantir-lhe o uso e gozo.

A teoria da evicção aplica-se, inicialmente, aos contratos onerosos. Dessa forma, o alienante não responde nos contratos gratuitos. Nesses casos, toda-via, nada impede que as partes estipulem cláusula de responsabilidade por evicção3. Aplicam-se, ainda, às doações onerosas.

Outro ponto que merece destaque é a possibilidade ou não de aplicação do preceito aos contratos em que se transfere somente a posse e não a pro-priedade. Registre-se que o Código Civil, em seu art. 447, nada menciona.

Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.

A doutrina, no entanto, admite expressamente a sua utilização em contra-tos que transfi ram somente a posse. Nesse sentido, CAIO MÁRIO DA SIL-VA PEREIRA afi rma que o “Código Civil espaventou a dúvida, instituindo a garantia toda vez que, por contrato oneroso, se faça a transferência tanto do domínio quanto da posse ou do uso. Nesse sentido, também CARLOS ROBERTO GONÇALVES4 ao expor que tem direito à garantia “não só o proprietário, como o possuidor e o usuário”.

Aplica-se a evicção, ainda, ao contratos de cessão de crédito e de direitos obrigacionais em geral. Frise-se, entretanto, que, conforme visto anterior-

51. GOMES, Orlando. Contratos. Rio de

Janeiro: Forense, 2007.

52. PEREIRA DA SILVA, Caio Mário. Ins-

tituições de direito civil. Rio de Janeiro:

Forense, 2006.

53. TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA,

Heloisa Helena e MORAES, Maria Celina

Bodin de. Código Civil interpretado con-

forme a Constituição da República – Vol.

II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

54. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito

Civil brasileiro, volume III: contratos e

atos unilaterais. 2ª ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2006.

55. MONTEIRO, WASHINGTON DE

BARROS. Curso de direito civil. Direito

das obrigações 2ª parte. São Paulo:

Saraiva, 2007.

Page 161: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 161

mente, o cedente não responde pela solvência do devedor, mas tão somente pela existência do crédito (art. 295 e 296 do Código Civil).

Por fi m, no que concerne ao âmbito de sua aplicação, o art. 447 do Có-digo Civil admitiu expressamente a sua possibilidade quando se tratar de aquisição realizada em hasta pública. Trata-se de inovação legislativa. CAIO MÁRIO PEREIRA DA SILVA, entrementes, levanta grave questão: quem responde pela evicção?

Sem embargo, a responsabilidade pela evicção é do alienante que trans-fere domínio, posse ou uso. Todavia, na hasta pública, essa transferência é compulsória, através do Estado para favorecer um terceiro (autor da ação). A quem caberá indenizar o adquirente? Ao alienante ou ao terceiro favorecido? CAIO MÁRIO afi rma, então que “na primeira hipótese, as chances de o ad-quirente vir a obter sua indenização são diminutas, tendo em vista o provável estado de insolvência do proprietário que teve bem de sua propriedade levado a hasta pública. Na segunda hipótese, se estará transferindo a responsabilida-de pela evicção a quem nunca foi proprietário da coisa evencida2”.

São necessários alguns requisitos para que se confi gure a responsabilidade do alienante perante o evicto.

(i) Perda da Coisa. Deve ocorrer a privação do domínio, posse ou uso. Se o adquirente não sofre qualquer perda, não há que se falar em evicção. A perda, contudo, não precisa ser total.

Admite-se, por conseguinte, a evicção total ou parcial. Na primeira há completa privação do direito do adquirente. Na segunda, o evicto perde ape-nas parte, ou fração da coisa adquirida em virtude de contrato oneroso4.

Sendo a evicção parcial, mas considerável, permite-se a faculdade entre a rescisão do contrato ou o abatimento proporcional. Quando a perda não for considerável, não poderá o adquirente exigir a rescisão contratual (sob pena de violação à boa-fé objetiva em sua função limitadora do exercício abusivo do direito – art. 187 do CC). Somente caberá, nesses casos, a ação quanti minoris do art. 455 do Código Civil. Considerável é aquela perda em que o adquirente não realizaria o contrato se conhecesse a verdadeira situação. É necessário levar em conta não tanto a quantidade, mas a qualidade tendo em vista a fi nalidade da coisa.

Art. 455. Se parcial, mas considerável, for a evicção, poderá o evicto optar entre a rescisão do contrato e a restituição da parte do preço correspondente ao desfalque sofrido. Se não for considerável, caberá somente direito a indenização.

(ii) Sentença. somente a perda que se opera em virtude de sentença ju-dicial. Tal requisito, todavia, não é absoluto. Aliás, a jurisprudência admite amplamente que desde que o adquirente seja privado do bem por ato inequí-voco de autoridade administrativa, poderá exercer o direito de evicção. É o típico caso de veículo furtado apreendido pela autoridade policial.

Page 162: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 162

(iii) Anterioridade do Direito. Não basta a perda do direito, tampouco a sentença judicial. É imperioso que a perda se opere em razão de causa preexis-tente ao contrato aquisitivo. Somente é devida a responsabilidade decorrente da evicção no caso do direito do terceiro ser anterior ao contrato celebrado entre o evicto e o alienante. Com efeito, a partir

É o típico caso da venda de imóvel que já foi adquirido por usucapião (modo originário de aquisição de propriedade) antes de celebrado o con-trato. Se a causa for anterior ao contrato, caracterizar-se-á a evicção. Mas e se o prazo do usucapião tiver iniciado antes do contrato e terminado após a celebração do contrato? Nesse caso, não haverá qualquer responsabilidade do alienante, pois a possibilidade de interromper o prazo prescricional aquisitivo está nas mãos do adquirente2.

Situação interessante, lembrado por CAIO MÁRIO PEREIRA DA SIL-VA2, é aquela em que o prazo prescricional se completa tão próximo da ce-lebração do contrato que não há tempo hábil para prática de qualquer ato. Nessas hipóteses, o ilustre mestre admite a possibilidade de aplicação da dis-ciplina legal.

Registre-se, por fi m, que se o evicto sabia da existência do defeito de di-reito, não fará jus à qualquer indenização, conforme preceitua o art. 457 do Código Civil.

Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa.

Sem embargo, a partir o momento em que conhece do vício de duas uma não poderá reclamar do alienante as verbas pelas evicção. No primeiro caso (sa-bia que a coisa era alheia), atuou como cúmplice do apropriamento indevido. No segundo (conhecimento da litigiosidade), assumiu o risco de obter uma decisão desfavorável4, tornando-se, por conseguinte, um contrato aleatório.

Ocorrendo a perda judicial, através de sentença judicial, então, surgem os direitos da evicção. São eles, de acordo com o art. 450 do Código Civil, o direito de exigir que o alienante lhe restitua o preço pago, e mais as despesas com o contrato (despesas com certidões, registro em cartório, ITBI, ITD etc), honorários, custas judiciais e ainda indenize os frutos que tiver sido obrigado a restituir, bem como os demais prejuízos que da evicção direta-mente lhe resultar. Isso engloba, ainda, os lucros cessantes (art. 402 do CC) e os juros legais (art. 404 c/c art. 406 do CC).

Art. 450. Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral do preço ou das quantias que pagou:

I–à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir;II–à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente

resultarem da evicção;III–às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído.

Page 163: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 163

Parágrafo único. O preço, seja a evicção total ou parcial, será o do valor da coisa, na época em que se evenceu, e proporcional ao desfalque sofrido, no caso de evicção parcial.

O alienante responde, também, pela plus-valia, isto é, a diferença maior entre o preço de aquisição e o seu valor ao tempo em que se evenceu. O man-damento encontra-se no parágrafo único do art. 450 do referido diploma legal. Aliás, GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA E MARIA CELINA BODIN DE MORAES ensinam que em relação ao pará-grafo único do citado artigo, “em harmonia com o posicionamento jurispru-dencial (...), unifi cou o regime quer para a evicção parcial, quer para a evicção total. A plus-valia ou, alternativamente, a depreciação da coisa serão levadas em conta em ambos os casos, já que o preço a ser restituído terá como base, sempre, o valor da coisa à época da evicção3”.

Interpretando o mesmo dispositivo, CAIO MÁRIO PEREIRA DA SIL-VA, admitindo o pagamento da plus-valia pelo alienante, entende que se, “ao contrário de valorização, estiver depreciada, a aplicação pura e simples do disposto no art. 450 desautoriza levá-la em consideração2”. Tal dispositivo é reforçado pelo art. 451 que determina que subsiste a obrigaçào ainda que a coisa tenha se deteriorado, salvo dolo do adquirente, pois ninguém pode se valer da própria torpeza.

Art. 451. Subsiste para o alienante esta obrigação, ainda que a coisa alienada esteja deteriorada, exceto havendo dolo do adquirente.

O evicto também terá direito à indenização pelas benfeitorias neces-sárias ou úteis, em conformidade com o art. 453 do Código Civil. O dispositivo ressalta, no entanto, que o adquirente fará jus à indenização somente das benfeitoras não abonadas, ou seja, não indenizadas pelo ter-ceiro. Caso já tenha sido feita algum abono das benfeitorias pelo alienan-te, essas serão deduzidas no momento da restituição. Tais dispositivos estão de acordo com a vedação ao enriquecimento sem causa (art. 884 do CC). Ainda no que concerne às benfeitorias, dever-se-á observar o disposto no art. 1.219 do mesmo diploma legal, pois o evicto não deixa de ser possuidor de boa-fé.

Art. 453. As benfeitorias necessárias ou úteis, não abonadas ao que sofreu a evic-ção, serão pagas pelo alienante.

Art. 454. Se as benfeitorias abonadas ao que sofreu a evicção tiverem sido feitas pelo alienante, o valor delas será levado em conta na restituição devida

Por fi m, no que tange ao cálculo da indenização, caso o adquirente tenha sofrido vantagens com as deteriorações da coisa, o valor dessas vantagens deverá ser deduzido da indenização a ser paga ao adquirente. O fundamento

Page 164: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 164

por trás do artigo é, justamente, evitar o enriquecimento sem causa (compen-satio lucri cum damno).

Art. 452. Se o adquirente tiver auferido vantagens das deteriorações, e não tiver sido condenado a indenizá-las, o valor das vantagens será deduzido da quantia que lhe houver de dar o alienante.

As partes podem dispor sobre a extensão da evicção. Trata-se da liberdade contratual, expressão da autonomia da vontade3. Elas podem optar por re-forçar – como, por exemplo, instituição de uma fi ança ou uma hipoteca –, diminuir ou excluir o direito que resulta da evicção, com base no art. 448 do Código Civil.

Art. 448. Podem as partes, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a responsabilidade pela evicção.

É preciso lembrar que em se tratando de contrato de adesão, ou seja, aque-les em que apenas uma das partes estipula o conteúdo e os efeitos do con-trato, a supressão da garantia não parece ser possíve por força do art. 424 do Código Civil, que determina serem nulas as cláusulas que impliquem renún-cia antecipada de direitos do aderente resultantes da natureza do contrato.

Não obstante a exclusão, o adquirente sempre poderá exigir a restituição do valor pago, salvo se soube do risco e o tenha assumido. Conforme visto, a indenização pela evicção vai mais além do que a mera restituição do preço pago, dessa forma, mesmo que exista cláusula de supressão da garantia, o alienante responde pela restituição do preço pago, de acordo com o art. 449 do Código Civil.

Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu.

Para que a exoneração seja total (inclusive a restituição do valor pago) é preciso que haja cláusula expressa e que o adquirente, além de ter ciência do risco, o tenha assumido (art. 449 do CC).

Por fi m, para que seja possível o exercício da denunciação da lide, o art. 456 do Código Civil, traz a exigência de que o adquirente proceda à notifi -cação do alienante relativamente ao litígio travado com o evincente. Se não fi zer esta notifi cação não poderá exercer o direito que resulta da evicção.

Com efeito, conforme ensina ARNALDO RIZZARDO, da “sentença condenatória resulta, diretamente, a responsabilidade pela devolução do pre-ço56”. Dessa forma, o adquirente notifi cará o alienante do litígio na forma em que a lei processual determinar.

No caso em exame, verifi ca-se que o Código de Processo Civil determina uma espécie de intervenção de terceiros denominada denunciação da lide – 56. RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de

Janeiro: Forense, 2006.

Page 165: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 165

art. 70, I do CPC. Logo, caso o adquirente faça a denunciação da lide, não poderá exercer o direito resultante da evicção, conforme preceitua o art. 456 do Código Civil.

Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notifi cará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.

Parágrafo único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo ma-nifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de recursos.

Art. 70, CPC. A denunciação da lide é obrigatória:I – ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi

transferido à parte, a fi m de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta.

Por outro lado, o parágrafo único do art. 456 do CC determina que caso o alienante quede-se inerte, mesmo após notifi cado da denunciação da lide ante a procedência manifesta da ação, o adquirente poderá deixar de contes-tar ou recorrer. Trata-se de verdadeiro abrandamento da disciplina em relação ao Código Civil de 1916.

Por fi m, para concluir, importante lembrar as lições de MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES57 ao explicar que, ainda que o adquirente não notifi que o alienante atravé da denunciação da lide, o adquirente sempre terá, em face do alienante, ação de indenização pela inexecução contratual. Com efeito, enquanto na de indenização o fundamento é o inadimplemento contratual que sempre subsistirá, na evicção é a garantia que implica em conseqüências mais graves. CAIO MÁRIO PEREIRA DA SILVA2, no entanto, entende que não haverá nenhum direito se não for feita a denunciação da lide.

57. SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de

direito civil. Ob Cit.; p.152.

Page 166: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 166

AULA 20–REVISÃO DOS CONTRATOS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Teoria da Imprevisão e Teoria da Onerosidade Excessiva – Teoria da Quebra da Base do Negócio Jurídico.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Salles, Raquel Bellini de Oliveira, “O desequilíbrio da relação obrigacional e a revisão dos contratos no Código de Defesa do Consumidor: para um cotejo com o Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações – Es-tudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 303/332.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa He-lena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 610/612.

Fonseca, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Rio de Janeiro: Forense, 3ª ed., 1958; p. 197/246.

1. ROTEIRO DE AULA:

O estudo da revisão dos contratos confi rma uma constatação que perpas-sa todas as aulas deste curso: a necessidade de se reconhecer a convivência entre princípios tradicionais da teoria contratual e princípios erigidos mais recentemente pela jurisprudência e pela doutrina, recebendo posteriormente a devida consagração nos diplomas legais. Especifi camente no que se refere à revisão dos contratos, estão relacionados dois princípios da teoria contratual: o princípio da força obrigatória e o princípio do equilíbrio econômico fi nan-ceiro dos contratos.

A partir da concepção burguesa, resultante da vitória da Revolução Fran-cesa e da afi rmação do liberalismo econômico, a manifestação da vontade das partes contratantes, uma vez convergindo para a formação do contrato, vinculavam as pessoas ao estrito cumprimento do avençado, independente-

Page 167: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 167

mente de qualquer alteração das circunstâncias então presentes quando da celebração do termo contratual.

A força vinculante dos contratos, como já visto, operou um papel pri-mordial no estabelecimento do regime capitalista, fomentando a produção e a circulação de riquezas em bases sólidas. Conforme a lição de San Tiago Dantas, o direito contratual oitocentista “forneceu os meios simples e seguros de dar efi cácia jurídica a todas as combinações de interesses, aumentou, pela eliminação quase completa do formalismo, o coefi ciente de segurança das transações, abriu espaço á lei da oferta e da procura, levantando as restrições legais à liberdade de estipular”.58

O postulado da pacta sunt servanda simboliza o entendimento que restava predominante sobre a dinâmica contratual: o que foi contratado corresponde exatamente ao que deveria ser obrigatoriamente cumprido. Usualmente o princípio da força obrigatória dos contratos é mencionado através da expres-são “o contrato é lei entre as partes”.

Circunstâncias externas à relação contratual, contudo, tomaram de assalto o sinalagma estabelecido entre as partes contratantes, sobretudo a partir do desenvolvimento industrial, da crescente concentração de renda e das cons-tantes crises econômicas que se fi zeram sentir no início do século XX.

A vontade individual, livremente declarada no instrumento contratual, passava a gerar situações de extrema iniqüidade, sendo necessário operar-se uma revisão em seus termos, caso ainda houvesse qualquer interesse no cum-primento do avençado.

Observe-se que o equilíbrio demandado por tal cenário é bastante deli-cado: se por um lado é necessário rever os termos do contrato, a utilização desse expediente de forma abusiva, ou mesmo reiterada à exaustão, poderia engendrar a insegurança nas relações econômicas, atuando em detrimento da própria circulação de riquezas na sociedade.

Avulta-se nesse cenário o papel do magistrado, que atuará sobre a situação de desequilíbrio do contrato, adequando as obrigações às expectativas com-partilhadas pelas partes quando de sua celebração. È também nesse cenário que surgem as chamadas teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, devendo-se abordar as mesmas em face da sua recente – e polêmica–positiva-ção no código civil brasileiro.

A Teoria da Imprevisão e a Teoria da Onerosidade Excessiva

O debate sobre as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva surge no referido cenário de fl exibilização da força obrigatória dos contratos. As duas teorias apresentam requisitos distintos para efetivar a revisão dos termos do contrato e a sua confusão gera, por vezes, denominações trocadas por par-te de alguns diplomas legais. 58. San Tiago Dantas. Problemas de

Direito Positivo. Rio de Janeiro: Forense,

2ª ed., 2004; p. 3.

Page 168: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 168

Nesse sentido, é importante frisar que a teoria da imprevisão tem como seu signo distintivo a necessidade de que o fator que venha a alterar o equilí-brio contratual não pudesse ser previsto pelas partes quando da celebração do instrumento. A teoria da onerosidade excessiva, por seu turno, requer não a imprevisão, mas sim a ocorrência de um agravamento tal na situação de uma das partes que os termos da avenca precisem ser revistos. É claro que as duas teorias podem convergir, gerando uma necessidade de ambos os requisitos (imprevisão e onerosidade) para que se opere a revisão, mas esse encontro de requisitos deve constar explicitamente da legislação aplicável. Esse é justa-mente o caso da legislação brasileira.

O Código Civil brasileiro denomina como uma das causas de extinção do contrato a “onerosidade excessiva”. Conforme será analisado, o Código Civil, na verdade, requer muito mais do que a simples onerosidade para extinguir (ou mesmo rever) a relação contratual, arrolando como um dos seus requi-sitos também a necessária imprevisibilidade das circunstâncias que transfor-mam o sinalagma contratual.

Nessa direção, surge ainda um outro debate: o Código Civil parece con-ferir prioridade à extinção do contrato quando confrontado com os requisi-tos da “teoria da onerosidade excessiva”. O tema será melhor detalhado na próxima aula, mas vale desde já afi rmar que essa opção presente no Código Civil tem sido alvo de diversas críticas por parte da doutrina, sobretudo em prol do aproveitamento das relações contratuais e da valorização do adimple-mento quase integral das obrigações pertinentes ao contrato, evitando que o contrato seja extinto por todo e qualquer motivo. Aqui ganha espaço a teoria do adimplemento substancial.

Retornando ao objeto da presente aula, é importante lembrar que a “teoria da onerosidade excessiva” encontra-se prevista no Código Civil no art. 317, o qual dispõe sobre a sua atuação para fi ns de revisão do contrato (embora este-ja deslocado no capítulo sobre pagamento, ou seja, fora do título pertinente aos contratos) e nos artigos 478 a 480, os quais tratam da onerosidade como causa para extinção das relações contratuais.

A partir de uma análise do Código Civil, pode-se afi rmar que são quatro os requisitos que possibilitam a revisão de um contrato com base na “onerosidade excessiva”: (i) a existência de contratos de execução continuada ou diferida; (ii) a onerosidade excessiva; (iii) a presença de extrema vantagem para uma das partes; e (iv) a imprevisibilidade das causas geradoras da onerosidade.

O primeiro requisito aponta para a necessidade do contrato em foco se prolongar no tempo, dando ensejo à eventual alteração das circunstâncias presentes quando de sua pactuação. Nesse sentido, não pode aplicar a teoria da onerosidade excessiva em contratos de execução imediata ou instantânea.

A presença de onerosidade excessiva propriamente dita, o segundo requi-sito para aplicação da revisão dos termos contratuais, impõe a constatação de

Page 169: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 169

que a obrigação de uma das partes sobre um aumento considerável, desequi-librando o sinalagma contratado. A parte, quando contrata, não coloca em risco a integralidade de seu patrimônio. Ela imagina que, dentro das expecta-tivas concernentes àquele contrato, os riscos em se envolver na transação po-dem variar dentro uma perspectiva razoável. Uma vez que o cumprimento da obrigação passa a ameaçar mais do que razoavelmente esperado o patrimônio de uma das partes, cabe pleitear a revisão dos termos da avença.

Mas não basta que a execução do contrato se prolongue no tempo e que haja onerosidade excessiva sobre as obrigações de uma das partes, é necessá-rio ainda, conforme disposto no Código Civil, que uma das partes obtenha extrema vantagem com relação ao outro contratante.

Esse terceiro requisito sofre críticas por parte da doutrina uma vez que podem ocorrer situações em que uma das partes seja onerada sem que a outra tenha uma vantagem por conta desse evento. Embora usual, o prejuízo de uma das partes não deveria ser atrelado à existência de vantagem para a outra parte da avença.

Por fi m, as circunstâncias que geram as alterações no sinalagma contratual devem ser imprevisíveis para que se possa operar a revisão dos termos do con-trato. A doutrina elenca uma série de eventos que podem constituir fatores imprevisíveis para o cumprimento acordado das obrigações, como catástrofes súbitas, surtos de epidemias, revoluções, golpes de estado e etc.

Na prática, os tribunais têm buscado privilegiar o requisito da onerosidade excessiva em detrimento do requisito da imprevisibilidade, fazendo-se presu-mir a imprevisibilidade quando a onerosidade excessiva assume proporções tais que o desequilíbrio da relação contratual não pode mais ser restaurado sem a intervenção do Poder Judiciário. Trata-se de uma tentativa de objeti-vação da grande subjetividade que pode haver na investigação sobre a real imprevisibilidade de um dado evento.

Uma situação que ganhou destaque no estudo do tema foi a mudança abrupta na cotação do dólar ocorrida por conta das alterações levadas a cabo no Plano Real quando do segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em janeiro de 1999, diversos contratos de arrendamento mercantil, cuja atualização dependiam da moeda estrangeira, sofreram uma alta considerável, onerando as partes que buscavam adquirir determinado bem através desses contratos de leasing.

Os tribunais nacionais, em sua grande maioria, reconheceram o direito das partes contratantes em ter revistas as condições do contrato, buscando adequar a atualização das parcelas referentes ao contrato por outro indexador que não aquele vinculado à fl utuação da moeda estrangeira.

Nesse sentido, veja-se a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:“DIREITO DO CONSUMIDOR. LEASING. CONTRATO COM

CLÁUSULA DE CORREÇÃO ATRELADA À VARIAÇÃO DO DÓLAR

Page 170: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 170

AMERICANO. APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CON-SUMIDOR. REVISÃO DA CLÁUSULA QUE PREVÊ A VARIAÇÃO CAM-BIAL. ONEROSIDADE EXCESSIVA. DISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS DA VALORIZAÇÃO CAMBIAL ENTRE ARRENDANTES E ARRENDATÁ-RIOS. RECURSO PARCIALMENTE ACOLHIDO.

I – Segundo assentou a jurisprudência das Turmas que integram a Segunda Seção desta Corte, os contratos de leasing submetem-se ao Código de Defesa do Consumidor.

II – A cláusula que atrela a correção das prestações à variação cambial não pode ser considerada nula a priori, uma vez que a legislação específi ca permi-te que, nos casos em que a captação dos recursos da operação se dê no exte-rior, seja avençado o repasse dessa variação ao tomador do fi nanciamento. III – Consoante o art. 6º-V do Código de Defesa do Consumidor, sobrevindo, na execução do contrato, onerosidade excessiva para uma das partes, é possível a revisão da cláusula que gera o desajuste, a fi m de recompor o equilíbrio da equação contratual.

IV–No caso dos contratos de leasing atrelados à variação cambial, os arren-datários, pela própria conveniência e a despeito do risco inerente, escolheram a forma contratual que no momento da realização do negócio lhes garantia pres-tações mais baixas, posto que o custo fi nanceiro dos empréstimos em dólar era bem menor do que os custos em reais. A súbita alteração na política cambial, condensada na maxidesvalorização do real, ocorrida em janeiro de 1999, en-tretanto, criou a circunstância da onerosidade excessiva, a justifi car a revisão judicial da cláusula que a instituiu.

V–Contendo o contrato opção entre outro indexador e a variação cambial e tendo sido consignado que os recursos a serem utilizados tinham sido capta-dos no exterior, gerando para a arrendante a obrigação de pagamento em dólar, enseja-se a revisão da cláusula de variação cambial com base no art. 6º-V do Código de Defesa do Consumidor, para permitir a distribuição, entre arrendan-tes e arrendatários, dos ônus da modifi cação súbita da política cambial com a signifi cativa valorização do dólar americano.”59

Note-se que, de toda forma, o julgado acima, mesmo prestigiando a one-rosidade excessiva como principal argumento a gerar a necessidade de revisão contratual, também leva em consideração o fato da maxidesvalorização do real frente à moeda estrangeira ter sido “súbita”, o que aponta para a conver-gência das duas teorias, tanto no Código Civil como na aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

A teoria da quebra da base do negócio jurídico

A afi rmação da teoria da quebra da base do negócio jurídico, de origem germânica, representa uma tentativa de conferir critérios cada vez mais ob-jetivos para a revisão dos termos contratuais. Afastando-se de uma análise

59. STJ, Resp nº 437660 / SP, rel. Min.

Sálvio de Figueiredo Teixeira; j. em

08.04.2003.

Page 171: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 171

focada na vontade das partes contratantes, essa teoria privilegia o exame dos efeitos causados pela alteração das circunstâncias presentes no momento da contratação. Em outras palavras, o foco da teoria reside no desequilíbrio en-tre as prestações recíprocas estabelecidas no instrumento contratual.

Encontrando bastante aceitação na doutrina moderna, em grande parte devido ao crescimento do campo de atuação do princípio da boa-fé objetiva, a teoria da quebra da base do negócio jurídico franqueia ao juiz a revisão dos termos do contrato se o conjunto das circunstâncias essenciais para o sentido do cumprimento contratual são alteradas, independentemente de qualquer consideração sobre estados psicológicos das partes contratantes, ou seja, se as partes sabiam ou não do evento.

Segundo Larenz, um dos autores mais mencionados sobre o tema, a que-bra da base do negócio jurídico pode ocorrer por dois motivos: (i) a ocor-rência de desequilíbrio exagerado entre as prestações, de forma que não há mais sentido em se referir à “prestação e “contraprestação”; e (ii) o desapare-cimento da “fi nalidade objetiva do contrato”, mesmo ainda sendo possível o cumprimento da prestação por parte do devedor.60

A principal contribuição dessa teoria, além da tentativa de objetivação do debate, reside no fato de que é permitido ao juiz rever os termos do contrato, ou mesmo extinguí-lo, pelo fato de que o seu escopo tornou-se frustrado.

Diversas são as hipóteses de aplicação dessa teoria podem ser encontradas no direito brasileiro. A mudança objetiva nas circunstâncias existentes quando da celebração do contrato foi, por exemplo, o motivo para que o contrato fos-se revisto no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial nº 135151/RJ, em outubro de 1997, do qual se extrai o seguinte trecho:

“O fato superveniente da infl ação em índices imprevistos ao tempo da celebração do contrato, celebrado sem cláusula de correção monetária alterou substancialmente a base objetiva em que se fundava o negócio de promessa de compra e venda, com prestações a vencer a longo prazo, época em que já se fazia sentir o retorno galopante da infl ação. Esse fato, previsível ou não, determinou uma modifi cação objetiva das circunstâncias existentes ao tempo em que as partes manifestaram a sua vontade e elaboraram as cláusulas da avença, o que não pode ser desprezado para o exame da economia do contrato. Essa modifi cação que justifi cava a revisão do contrato deter-minou conseqüentemente que a atualização das prestações, vencidas a partir da data consignada no pedido inicial, deve ser calculada de modo a considerar, neste reajuste a infl ação verifi cada depois da data do contrato, porquanto a desvalorização da mo-eda já ocorria antes do vencimento da prestação diferida. ’’61

Vale destacar que a decisão acima se distancia de um entendimento, ma-joritário no início dos anos 90, no sentido de que as alterações sofridas nas relações contratuais por força do aumento infl acionário, conseqüência dos sucessivos planos econômicos utilizados pelo governo federal nos anos 80 e

60. Karl Larenz. Base del negocio jurídico

y cumplimiento de los contratos. Madri:

Editorial Revista de Derecho Privado;

p.41.

61. STJ, Recurso Especial nº 135151-RJ,

rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em

out/1997.

Page 172: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 172

90, não possibilitaria a revisão contratual. Nessa direção, tornou-se célebre o entendimento de que “plano econômico e aumento infl acionário não são imprevisíveis”.

Atualmente, embora a desvalorização de uma moeda possa ser tomada como uma circunstância de certa forma previsível, a intensidade de sua valo-rização ou desvalorização poderá dar ensejo ao pleito de revisão, ou mesmo de extinção do contrato. Esse posicionamento parte de bases mais objetivas para avaliar a possibilidade de interferência do Poder Judiciário na dinâmica das relações contratuais.

2. CASO GERADOR:62

Engerato Serviços de Engenharia Ltda. era uma sociedade empresária de porte modesto que estava começando a se lançar no mercado. Diante da abertura de uma Licitação pela empresa pública Enerminas, a empreiteira viu sua grande chance de despontar em meio às outras empresas concorrentes.

Escolhida pela referida empresa pública, a Engerato celebrou um contrato de implementação do canteiro de obras da vila dos funcionários que trabalhariam na edifi cação de uma grande usina hidrelétrica. Convencionou-se o prazo de 2 anos para a execução e conclusão da empreitada, estabelecendo um sistema de ajuste peri-ódico dos preços conforme sua variação no mercado durante o decorrer do contrato.

Todavia, a Enerminas não agiu da maneira esperada e, por sua culpa, a obra estendeu-se por 5 anos, ao invés dos 2 contratualmente ajustados.

Tornando-se completamente inoperante o sistema de reajuste de preços estipu-lados para os dois anos convencionados, a Engerato contraiu uma série de dívidas e entrou em uma grave crise fi nanceira. Sujeitou-se a vários processos e requeri-mentos de falência. Formulou, então, pedido de revisão de contrato que, depois de negado pela dona da obra, veio a ser acolhido em recurso administrativo, pelo Ministério das Minas e Energia.

Aproveitando-se da situação da Engerato, que era de total afl ição fi nanceira e de iminência de ter a sua falência decretada, a Enerminas ofereceu-lhe como sa-ída imediata do impasse a suplementação de preço que cobriria apenas os valores dos títulos protestados e dos créditos que instruíram os pedidos de falência. Nada mais do que isso se dispunha a pagar.

Para evitar a quebra iminente, a empreiteira aceitou a ínfi ma oferta e deu a total quitação exigida pela empresa pública, tendo recebido, na verdade, cerca de um décimo do prejuízo já então defi nitivamente apurado, isto é, do verdadeiro crédito existente entre as partes.

De acordo com os fatos anteriormente narrados, analise as seguintes questões:1. Seria válido o segundo acordo fi rmado entre a Enerminas e a Engerato?

Em caso negativo, quais seriam as causas da invalidação?

62. O presente caso gerador foi extraído

da Apostila “Revisão dos Contratos”,

elaborada por Pedro Oliveira da

Costa e Sergio Negri para os cursos

de educação continuada da Escola de

Direito da Fundação Getúlio Vargas, do

Rio de Janeiro.

Page 173: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 173

2. Poderia a Engerato instaurar algum tipo de ação de modo a desfazer o acordado com a Enerminas? Sob qual(is) fundamento(s)?

3. Existiria alguma forma de a Enerminas resolver a situação mantendo o negócio jurídico com a empreiteira?

4. Imagine que a Engerato estivesse passando por uma grave crise fi nan-ceira advinda de um contrato de risco com uma terceira empresa. O fato de não ter sido a Enerminas uma das responsáveis pela crise da empreiteira altera as condições sob as quais ocorreu o acordo fi rmado com a Engerato, totalmente prejudicial a esta?

3. QUESTÃO DE CONCURSO:

126º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

24. Relativamente à onerosidade excessiva, é correto afi rmar:(a) No Código de Defesa do Consumidor a onerosidade excessiva deve

sempre advir de evento extraordinário e imprevisível, que difi culta o adimplemento da obrigação de uma das partes;

(b) No Código de Defesa do Consumidor não há qualquer menção à resolução contratual por onerosidade excessiva;

(c) O Código Civil adotou a teoria da onerosidade excessiva tendo atrelado a esse conceito a teoria da imprevisão. Assim, havendo de-sequilíbrio no contrato, somente por acontecimento superveniente extraordinário ou imprevisível, poder se-á pleitear a resolução do contrato;

(d) A onerosidade excessiva, no Código Civil, independe da demons-tração de fato superveniente imprevisível ou extraordinário, bastan-do a demonstração do desequilíbrio contratual.

Gabarito: 24 (c).

Page 174: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 174

AULA 21–EXTINÇÃO DOS CONTRATOS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Extinção normal do contrato–Causas de extinção anteriores ou contemporâne-as ao vínculo contratual–Causas de extinção supervenientes à formação do vín-culo–Resolução por inexecução voluntária do contrato–Resolução por inexecução involuntária–Resolução por onerosidade excessiva–Resilição bilateral (distrato)–Resilição unilateral–Flexibilizando a opção pela resolução contratual–A Teoria do Adimplemento Substancial – Exceção de contrato não cumprido.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – vol. III – contratos. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 147/168.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Becker, Anelise. “A doutrina do adimplemento substancial no direito brasi-leiro e em perspectiva comparatista”. In Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 9, n. 1;

Bessone, Darcy. Do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960; p. 319/332.

1. ROTEIRO DE AULA:

Quando termina o contrato? O estudo da extinção da relação contratual é mais complexo do que simplesmente identifi car um momento a partir do qual as partes contratantes deixam de estar vinculadas pelos termos de um instrumento contratual. Com mais ênfase na moderna teoria contratual, eri-gida sob os princípios de funcionalidade e sociabilidade do contrato, a análise de sua extinção passa por diversas considerações sobre a oportunidade de se encerrar o contrato (como visto na aula anterior, optando-se, certas vezes, pela revisão em detrimento da extinção do vínculo) e sobre os impactos de-correntes de seu cessamento.

Fale-se em “extinção” do contrato, mas a doutrina prestigia uma série de outras expressões ao abordar o tema da presente aula, como “resolução”, “re-silição” ou “rescisão”. Nesse sentido, é importante, antes de tratar das hipó-

Page 175: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 175

teses de extinção do vínculo contratual, delimitar exatamente o sentido de cada um desses termos.

Pode-se dividir as formas de extinção de um contrato em três grupos: (i) a extinção pelo esgotamento de seu objeto, com o adimplemento das respecti-vas obrigações; (ii) a extinção, que não pela via normal, por causas anteriores ou contemporâneas ao nascimento do vínculo contratual; e (ii) a extinção, que não pela via normal, por causas supervenientes à sua formação. No se-gundo caso, o vício que irá fulminar o contrato remonta à sua formação. No último caso, o fator que irá extinguir a relação contratual surge apenas durante a vida do contrato.

Extinção normal do contrato

O contrato se encerra com o adimplemento de suas obrigações. A execu-ção do contrato é, portanto, a sua forma normal de extinção. Com ela libera--se o devedor, restando satisfeito o credor. A satisfação do credor será atestada através de um instrumento denominado quitação.

A quitação é a principal prova do cumprimento da obrigação por parte do devedor (documento escrito). Receber a quitação é um direito do devedor, de forma que ele poderá reter o pagamento se a mesma não lhe for entregue, ou o for de modo irregular, podendo consignar a quantia devida (arts. 319 e 335, I do CC). Conforme a redação dos mencionados dispositivos:

Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pa-gamento, enquanto não lhe seja dada

Art. 335. A consignação tem lugar:I–se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar

quitação na devida forma;

É essencial que a quitação disponha sobre a prestação específi ca, mas não pode o devedor deixar de recebê-la se o credor fi zer menção à outra dívida.

Os requisitos da quitação encontram-se no artigo 320 do Código Civil. São eles: (i) designar o valor e a espécie da dívida quitada; (ii) o nome do de-vedor, ou quem por este pagou; (iii) o tempo e o lugar do pagamento; e (iv) assinatura do credor ou de seu representante.

Ainda sobre o termo de quitação, vale lembrar que o mesmo não precisa conter a mesma forma pela qual o contrato foi celebrado. Essa permissão é bastante importante para contratos celebrados através de escritura pública, não sendo requerida tal formalidade para a entrega da quitação. Situação dis-tinta ocorrerá com o distrato, que deverá seguir a forma exigida em lei para o contrato, conforme visto adiante.

Mesmo sem todos os requisitos, vale a quitação se dos seus termos for possível depreender o pagamento da obrigação. Apesar de ser a prova mais

Page 176: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 176

contundente, o adimplemento poderá ser provado por outras formas, inclu-sive por prova testemunhal.

Causas de extinção anteriores ou contemporâneas ao vínculo contratual

No segundo grupo de formas de extinção do contrato, encontram-se aquelas derivadas de causas anteriores ou contemporâneas ao vínculo con-tratual, como a (i) nulidade; (ii) a condição resolutiva; e (iii) o direito de arrependimento.

A nulidade é a sanção por meio da qual a lei priva o contrato celebrado sem atenção aos seus requisitos de validade para produzir efeitos jurídicos. A nulidade absoluta (arts. 166, I a VII e 167 do CC) é a sanção voltada para quem viola preceito de ordem pública, operando de pleno direito. O contra-to não poderá ser confi rmado e não produz efeitos desde a sua formação (art. 169 do CC). Os mencionados artigos estão assim redigidos:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:I–celebrado por pessoa absolutamente incapaz;II–for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;III–o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;IV–não revestir a forma prescrita em lei;V–for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;VI–tiver por objetivo fraudar lei imperativa;VII–a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sançãoArt. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confi rmação, nem conva-

lesce pelo decurso do tempo.

Como já visto, a nulidade relativa (art. 171 do CC) atinge os contratos celebrados pelos relativamente incapazes ou por quem tenha prestado o seu consentimento por erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude contra credores. Esses contratos são apenas anuláveis, produzindo efeitos até a sua anulação. Eles poderão ainda, vale ressaltar, ser confi rmados, conforme dis-posto no art. 172 do Código Civil.

O tratamento da condição resolutiva, por sua vez, depende da diferen-ciação de duas modalidades: as condições resolutivas tácitas e as expressas. A condição resolutiva tácita (arts. 475 e 476 do CC) está subentendida em todos os contratos bilaterais sinalagmáticos. Caso uma parte não cumpra com as suas obrigações, pode a outra pedir a rescisão contratual – ou o seu cumprimento – somado às perdas e danos. O cumprimento de uma obriga-ção fundamenta a execução da outra, o que motiva a extinção do contrato.

O pronunciamento da rescisão do contrato deverá ser judicial (art. 474 do CC), não se rescindindo o contrato de pleno direito. Nada impede, to-davia, que as partes estipulem uma cláusula resolutiva expressa. Nesse caso,

Page 177: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 177

a extinção do contrato independe de decisão judicial (art. 474, 1ª parte, do CC), ocorrendo de pleno direito com a inexecução das obrigações de uma das partes.

O direito de arrependimento, por fi m, também é uma causa de extinção do contrato anterior ou contemporânea à sua formação. Os contratantes po-dem estipular que, dentro de um determinado prazo, as partes podem desistir do contrato. Comumente se estabelece uma multa pelo exercício desse direi-to, encerrando-se então o vínculo contratual.

O direito de arrependimento pode, contudo, decorrer da lei (art. 420 do CC, ou mesmo o art. 49 do CDC). O art. 49 do CDC prevê que o consu-midor tem até 7 (sete) dias para desistir do contrato, observadas as seguintes circunstâncias:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de refl exão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

Causas de extinção supervenientes à formação do vínculo

O estudo das causas de extinção supervenientes à formação do vínculo contratual traz à tona o debate sobre as diversas expressões utilizadas pela doutrina para se referir à extinção do contrato.

Dentro desse terceiro grupo, pode-se arrolar como causas de extinção do contrato as seguintes hipóteses: (i) resolução por inexecução voluntária do contrato; (ii) resolução por inexecução involuntária do contrato; (iii) resolu-ção por onerosidade excessiva; (iv) resilição bilateral ou distrato; e (v) resili-ção unilateral.

Para fi ns de uniformização da linguagem, resolução é a extinção do con-trato ligada ao inadimplemento contratual. Nesses casos, a inexecução pode ser voluntária ou involuntária. Conforme expressa Ruy Rosado de Aguiar Jr:

“Resolução é um modo de extinção dos contratos, decorrente do exercício do direi-to formativo do credor diante do incumprimento do devedor. Pode constar de cláu-sula contratual expressa (resolução convencional, art. 474 do Código Civil); mas, exista ou não previsão contratual, a regra do art. 475 do Código Civil incide sobre todos os contratos bilaterais, autorizando o credor pedir em juízo a resolução do con-trato descumprido (resolução legal)”63.

Resilição, por sua vez, é a extinção do contrato por vontade de uma ou todas as partes contratantes, podendo assim ser unilateral ou bilateral.

63. Aguiar Junior, Ruy Rosado de, Extin-

ção dos contratos por incumprimento

do devedor – resolução. 2a ed., Rio de

Janeiro, AIDE Editora, 2003, p. 12.

Page 178: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 178

Abaixo serão analisadas as quatro hipóteses em separado.

Resolução por inexecução voluntária do contrato

Nessa hipótese o contrato é extinto pela inexecução voluntária de suas obrigações por parte de um contratante.

Se o contrato for de execução continuada, a sua extinção não implica na devolução das parcelas já pagas. Todavia, no CDC (art. 53) é vedada a reten-ção pelo credor de todas as prestações pagas, quando o mesmo retomada a coisa alienada por conta da inexecução.

Resolução por inexecução involuntária

A inexecução provém aqui de fato alheio à vontade das partes. Como não há culpa, a parte faltosa não se submete ao pagamento de perdas e danos, e o liame contratual é encerrado sem a necessidade de declaração judicial. Caso o motivo da inexecução seja provisório, o contrato pode ser suspendido ao invés de rescindido.

Resolução por onerosidade excessiva

O princípio da autonomia da vontade, como visto, não é absoluto, so-frendo limitações por força do dirigismo contratual (supremacia do interes-se público nas relações privadas). Aqui, a ocorrência de fatos posteriores ao vínculo torna, de um lado, uma obrigação muito onerosa, e de outro, criam vantagem não justifi cada.

O Código Civil, como visto, utiliza tanto a “teoria da imprevisão” como a “teoria da onerosidade excessiva” nos dispositivos de revisão/extinção da relação contratual. Segundo o Código, a onerosidade excessiva, decorrente de evento imprevisível e extraordinário, que difi culta o adimplemento de obrigação, é motivo de resolução contratual, ou mesmo de sua revisão.

São requisitos para a resolução do contrato por onerosidade excessiva: (i) a vigência de um contrato de execução continuada; (ii) alteração radical das condições econômicas; (iii) onerosidade excessiva para uma das partes e be-nefício exagerado para a outra; e (iv) imprevisibilidade e extraordinariedade do evento.

Os dispositivos que regem a matéria no Código Civil têm a seguinte redação:Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de

uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a ou-tra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.       

Page 179: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 179

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modifi car eqüita-tivamente as condições do contrato.Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fi m de evitar a onerosidade excessiva.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fi m de evitar a onerosidade excessiva.

Como já visto, isolado na seção sobre “pagamento” do Código Civil, o art. 317, que também é aplicável à matéria, tem redação em certos pontos confl i-tante com o regime da resolução. O art. 317 trata da revisão do contrato por onerosidade excessiva, e assim está redigido:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Sobre a teoria da onerosidade excessiva (ainda que se valendo dos requisitos de imprevisão, conforme comandado pelo Código Civil), vale lembrar que a sua consagração no Código não representa a revogação, ou extinção da auto-nomia da vontade como princípio contratual, mas apenas a sua fl exibilização perante outros interesses que não apenas aqueles detidos pela parte que se aproveita de uma relação contratual. Conforme afi rmando por Arnoldo Wald:

“Dentro do nosso sistema, que é o da legalidade ocidental, as restrições à liberdade contratual não devem ser interpretadas como um declínio do direito, na expressão autorizada mas saudosista de Ripert”.

“A teoria da imprevisão não extingue a autonomia da vontade; consiste numa interpretação construtiva do conteúdo dessa vontade. À lei e ao juiz cabe a função de garantir os direitos individuais dentro dos limites em que podem ser exercidos no in-teresse superior da sociedade. E a teoria da imprevisão realiza a superior conciliação do interesse individual e da necessidade social, da justiça e da segurança, que são as fi nalidades precípuas do direito.”64

Com a introdução, nos arts. 478/480, de regras relativas à onerosidade excessiva, o novo Código Civil apenas passou a prever expressamente aquilo que já era defendido pela doutrina e vinha sendo aplicado pela jurisprudência em diversas ocasiões. Conforme bem explicita Silvio Rodrigues:

“A tendência inovadora da doutrina refl etiu-se, de maneira muito marcante, na tentativa de se estabelecer a imprevisão na legislação brasileira. Essa tendência é bastante antiga e se manifestou em todas as tentativas de reforma da legislação civil brasileira”65

64. Arnoldo Wald. Direito das Obriga-

ções. São Paulo, Malheiros, 2001, p.

261/262.

65. Silvio Rodrigues. Direito Civil, v. III.

São Paulo: Saraiva, 2003, p. 22.

Page 180: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 180

Novamente recorrendo à lição de Arnoldo Wald, pode-se destacar que:“Também em relação à teoria da imprevisão, o novo Código não chega a inovar

radicalmente, por já existir a revisão legalmente prevista em determinados contratos, como os de locação comercial, e ter sido a mesma generalizada pela jurisprudência no tocante ao contrato de empreitada, tanto no campo do direito privado como na área do direito administrativo. Houve, no caso, a transformação de uma norma, que já foi considerada excepcional, em verdadeiro princípio geral do direito, que, no fundo, defl ui da própria vedação ao enriquecimento sem causa.”66

De qualquer sorte, a inserção da resolução por onerosidade excessiva no novo Código Civil representa um avanço, consignando no corpo do diploma legal comando em tudo alinhado aos preceitos que informam a nova teoria contratual, fl exibilizando-se a força obrigatória dos contratos em homena-gem a outros princípios como o equilibrio econômico-fi nanceiro do contrato (visto na aula anterior) e a própria função social do contrato.

Resilição bilateral (distrato)

A resilição bilateral do contrato é a dissolução do vínculo contratual pela manifestação da vontade de ambas as partes contratantes. Também conhe-cido como distrato, trata-se de verdadeiro negócio jurídico que é celebrado pelas partes para o fi m de romper o vínculo contratual.

Distintamente do que ocorre com a quitação, o distrato deve seguir a forma exigida em lei para o contrato que se pretende extinguir. Se a forma é livre por lei, mas as partes recorreram à formalidade para celebrar o contrato porque assim quiseram, o distrato não obrigatoriamente precisa seguir essa forma. A formalidade que se exige do contrato é aquela prevista na legislação, caso a mesma requeira forma especial para celebração do contrato.

Resilição unilateral

Nessa última hipótese são enfocados os contratos que comportam a ex-tinção do vínculo pela simples manifestação de vontade de uma das partes contratantes, como no mandato. Nos contratos por prazo indeterminado, é natural que uma das partes decida encerrar o vínculo, concedendo à outra um aviso prévio.

São formas especiais de resilição unilateral: (i) a revogação, que ocorre quando a lei permite que a parte contratante, cumpridas algumas exigências, opere a resilição (como no mandato); e (ii) a renúncia, ato pelo qual um con-tratante notifi ca o outro que não mais pretende exercer um direito.

Os dispositivos sobre o contrato de mandato ilustram bem essas duas hi-póteses:

66. Arnoldo Wald. “O novo Código Civil e

o Solidarismo Contratual”, in Revista de

Direito Bancário, do Mercado de Capitais

e da Arbitragem nº 21, pp. 38/39.

Page 181: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 181

Art. 686. A revogação do mandato, notifi cada somente ao mandatário, não se pode opor aos terceiros que, ignorando-a, de boa-fé com ele trataram; mas fi cam sal-vas ao constituinte as ações que no caso lhe possam caber contra o procurador.

Art. 687. Tanto que for comunicada ao mandatário a nomeação de outro, para o mesmo negócio, considerar-se-á revogado o mandato anterior.

Art. 688. A renúncia do mandato será comunicada ao mandante, que, se for prejudicado pela sua inoportunidade, ou pela falta de tempo, a fi m de prover à substituição do procurador, será indenizado pelo mandatário, salvo se este provar que não podia continuar no mandato sem prejuízo considerável, e que não lhe era dado substabelecer.

Por fi m, vale ressaltar que a resilição unilateral não requer pronunciamen-to judicial.

Flexibilizando a opção pela resolução contratual–A Teoria do Adimplemento Subs-tancia:

No cerne de todo o debate sobre a valorização do vínculo contratual e a mudança da extinção do contrato como regra, e a sua revisão como exceção, encontra-se a chamada teoria do adimplemento substancial.

A mencionada teoria se originou na Inglaterra, no século XVIII, a partir do caso Boone v. Eyre. Ela parte da premissa de que todo contrato possui obrigações dependentes, que são interdependentes entre si – com perdão da ênfase, e independentes, ou seja, acessórias, cujo descumprimento geraria resultados diversos.

A lição de Anelise Becker esclarece a distinção, como foco no direito an-glo-saxão:

“A distinção é muito clara; se as estipulações recíprocas concernem à totalidade da consideration de parte a parte, são conditions mútuas e cada qual tem o efeito de suspender a outra. Ao contrário, se concernem somente a uma parte da consi-deration, a inexecução pode ser reparada por perdas e danos. Modernamente, tal distinção transformou-se na oposição entre conditions e warranties. As conditions são cláusulas essenciais, constituindo a própria substância do contrato, cujo cum-primento é imprescindível à manutenção do sinalagma. As warranties, por sua vez, correspondendo àquelas ‘obrigações independentes’, estão em uma segunda ordem de importância e seu descumprimento, portanto, não afeta o equilíbrio contratual (consideration)”67.

Uma vez violada uma condition, a extinção do contrato seria levada a cabo por quebra do equilíbrio contratual. A violação de uma warranty, por seu turno, ainda garante à parte prejudicada a possibilidade de pleitear o adim-plemento. É comum que esse pleito seja realizado com a adição de perdas e danos relacionados ao inicial descumprimento da obrigação.

67. Anelise Becker. “A doutrina do

adimplemento substancial no Direito

brasileiro e em perspectiva comparati-

vista”. In Revista da Faculdade de Direito

da UFRGS, vol. 9, n.1, p.62.

Page 182: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 182

Novamente com base no texto de Anelise Becker, pode-se afi rmar que:“A tendência atual da jurisprudência inglesa é no sentido de adotar como critério

geral, para fi ns de resolução do contrato, a própria base da distinção, que tem caráter estritamente objetivo. Trata-se de verifi car se o inadimplemento é ou não fundamen-tal (fundamental breach). Conseqüentemente, está-se dando maior poder de aprecia-ção para o julgador. Uma vez que o critério é objetivo, ele não mais estará vinculado tão estritamente às estipulações contratuais acerca do que seja ou não condition: verifi cará a relação de fato entre o adimplido e a totalidade da prestação [...]. Se o inadimplemento de um dos contratantes constituir uma fundamental breach, o outro poderá resolver o contrato, do mesmo modo como se se tratasse de um inadimplemento total. Do contrário, as conseqüências serão as de um adimplemento substancial”68.

Não há um conjunto de regras pré-defi nidas que determinem se um adim-plemento foi ou não substancial. Todavia, a elaboração dessa doutrina serve de suporte para o julgador fazer valer o princípio da boa-fé na prática contra-tual, privilegiando o cumprimento o mais próximo possível da integralidade das obrigações e evitando a extinção do contrato como regra para a solução dos confl itos gerados no relacionamento entre as partes.

Exceção de Contrato não Cumprido

O capítulo sobre a extinção do contrato no Código Civil menciona ain-da a exceção do contrato não cumprido. A referida exceção tem lugar em contratos de natureza bilateral, no qual as partes contratantes são reciproca-mente devedores e credoras. Aqui, as obrigações são interdependentes, isto é, a obrigação de uma das partes tem como causa a obrigação da outra parte e vice-versa.

Segundo dispõe o artigo 476 do Novo Código Civil: “Nos contratos bi-laterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.

Existe uma imprecisão técnica cometida no tratamento dado à exceptio non adimpleti contractus, incluída como causa determinante de extinção do contrato. Na verdade, ela constitui apenas uma oposição temporária do de-vedor à exigibilidade do cumprimento de sua obrigação enquanto não cum-prida a contraprestação do credor.

Sobre a exceptio, vale mencionar que a sua aplicação nos contratos admi-nistrativos sofre alguma limitação, por força de dispositivo especial constante da Lei nº 8666/93, assim redigido:

Art. 78.  Constituem motivo para rescisão do contrato:XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Adminis-

tração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem

68. Anelise Becker, ob. cit., p. 62.

Page 183: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 183

interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;

A operacionalização da exceptio em muito se relaciona com os ditames de boa-fé, estudados em aulas anteriores. Conforme expõe Caio Mário, trata-se de “instituto animado de um sopro de eqüidade”, o qual “deve à sua invo-cação presidir a regra da boa-fé, não podendo erigir-se em pretexto para o descumprimento do avençado. Assim é que, se ambas as prestações têm de ser realizadas sucessivamente, é claro que não cabe a invocação da exceptio por parte do que deve em primeiro lugar, pois que a do outro ainda não é devida; mas, ao que tem de prestar em segundo tempo, cabe o poder de invocá-la, se o primeiro deixou de cumprir. Sendo simultâneas, a sua interdependência funcional autoriza a recusa, sob alegação de falta de cumprimento pois que non servanti fi dem non est fi des servanda”.69

2. CASO GERADOR:70

Em agosto de 2004 começaram as obras para a construção do novo shopping de Leopoldina, cidade de Minas Gerais. Vários proprietários de lojas interessaram-se pela instalação de seus negócios no novo estabelecimento. E, dentre eles, José Agos-tino Avelar, dono da conhecida loja Ryplei, que comercializava roupas infanto--juvenil na cidade.

José, então, celebrou com a Construtora Garcia & Garcia Ltda, responsável pela construção do shopping, contrato de promessa de compra e venda, que tinha por objeto a aquisição de uma das lojas.

Passados oito meses, dentro da data prevista, a construção foi fi nalizada e as lojas vendidas ou locadas a eventuais interessados. Contudo, o estabelecimento que seria adquirido por José Agostino não saiu exatamente como ele queria. Ha-via uma coluna passando no centro da loja, o que diminuía em alguns centíme-tros o espaço acordado com a construtora.

O contrato preliminar já havia sido celebrado e, então, a Construtora reque-reu junto a José que este assinasse a avença principal para se efetuar, de fato, a compra da loja. Este, por sua vez, recusou-se a celebrar o acordo sob o argumento de que a Construtora não seguiu exatamente o estabelecido no contrato de pro-messa de compra e venda.

A partir dos fatos anteriormente narrados, analise as seguintes questões:

1) A celebração do contrato de promessa de compra e venda vincularia tanto José Agostino quanto a Construtora Garcia & Garcia Ltda à celebração do contrato principal de compra e venda? Por que?

69. Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil – vol. III – contratos.

11ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004;

pp. 160-161.

70. O presente caso gerador foi extraído

da Apostila “Extinção dos Contratos”,

elaborada por Pedro Oliveira da Costa

e Juliana Melhado para os cursos de

educação continuada da Escola de

Direito da Fundação Getúlio Vargas, do

Rio de Janeiro.

Page 184: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 184

2) A coluna erguida no centro da loja modifi caria a destinação que seria, a princípio, conferida ao estabelecimento? O fato de ter reduzido em alguns centímetros o espaço previsto para o estabelecimento modifi ca a situação em que fora estabelecido o contrato preliminar?

3) Caberia ação rescisória do contrato de compra e venda por parte de José Agostino Avelar? Sob qual (is) argumento (s)?

3. QUESTÕES DE CONCURSO:

25º Exame da Ordem – OAB/RJ – 1ª fase

42. Sobre a extinção dos contratos, assinale a opção correta:(a) No caso de resolução por onerosidade excessiva, os efeitos da sen-

tença que a decretar retroagirão à data da citação;(b) A cláusula resolutiva tácita independe de interpelação judicial, ope-

rando-se de pleno direito;(c) A exceção do contrato não cumprido cabe tanto nos contratos bila-

terais quanto nos unilaterais;(d) A resilição unilateral opera-se, em regra, mediante retenção da pres-

tação pela parte que não mais deseja o contrato.

123º Exame da Ordem – OAB/SP – 1ª fase

24. “A” comprou de “B” uma casa, por escritura pública, pelo preço de R$ 200.000,00, pagando R$ 20.000,00 de sinal. “A” obrigou-se a pagar o restante do preço, ou seja, R$ 180.000,00, com fi nan-ciamento da Caixa Econômica Estadual, a ser obtido no prazo de 3 meses. Acontece que, após ter sido pago o sinal, referida Caixa fechou sua Carteira de Financiamento, pelo período de um ano, o que impossibilitou o comprador “A” de completar o pagamento do preço. Esse fato, em si:

(a) acarreta a extinção do contrato por resolução;(b) acarreta a extinção do contrato por resilição unilateral;(c) acarreta a extinção do contrato por rescisão unilateral;(d) não acarreta a extinção do contrato.

Gabarito: 42 (a); 24 (a).

Page 185: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 185

AULA 22–ASPECTOS DA CONTRATAÇÃO ELETRÔNICA

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Forma dos documentos eletrônicos–Valor probante dos documentos eletrôni-cos–Algumas peculiaridades da contratação eletrônica.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Marques, Cláudia Lima. Confi ança no Comércio Eletrônico e a Proteção do Consumidor. São Paulo: RT, 2004; pp. 240/280.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Menke, Fabiano. Assinatura Eletrônica no Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2005; pp. 97/150.

Lorenzetti, Ricardo. Comércio Eletrônico. São Paulo: RT, 2004; pp. 126/147.De Lucca, Newton. Aspectos Jurídicos da Contratação Informática e Telemáti-

ca. São Paulo: Saraiva, 2003; pp. 109/128.

1. ROTEIRO DE AULA:

A disciplina dos contratos eletrônicos não se resume ao estudo das pecu-liaridades da contratação via Internet. O seu estudo mais aprofundado inclui, necessariamente, uma análise do enquadramento da documentação eletrô-nica no ordenamento jurídico nacional, para que, posteriormente, possa se analisar a contratação eletrônica em si.

Forma dos documentos eletrônicos

Em termos genéricos, pode-se conceituar “documento” como qualquer base de conhecimento, fi xada materialmente e disposta de modo que possa ser extraída cognição do que está registrado.71 No dizer clássico de Chioven-da, é “toda representação material destinada a reproduzir determinada mani-festação de pensamento, como uma voz fi xada duradouramente”.72

Desse conceito básico, é importante notar que, para a plena validade pro-batória do documento, é preciso que ele possua a capacidade de armazenar

71. Ivo Teixeira Gico Júnior. “O conceito

de documento eletrônico”, in Repertório

IOB de Jurisprudência nº 14 (jul/2000),

caderno 3; p. 305.

72. Giuseppe Chiovenda. Instituições de

Direito Processual, vol. III. Campinas,

Bookseller, 1998; p. 151.

Page 186: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 186

informações de forma que impeça ou permita detectar eliminação ou adulte-ração de conteúdo. Essas considerações levaram ao surgimento de conceitos derivados como o de “documento autêntico”, que designa o documento que permita a identifi cação de seu autor. As exigências relativas à detecção de al-teração no conteúdo ou o seu impedimento serão fundamentais para o reco-nhecimento do valor probatório do documento, como se verá mais à frente, mas não se relacionam necessariamente com a sua validade.

O documento eletrônico, por sua vez, é defi nido, nos termos do art. 2º, I, do Projeto de Lei 4.906/2001, como “a informação gerada, enviada, recebida, armazenada ou comunicada por meios eletrônicos, ópticos, opto-eletrônicos ou similares”. Em outras palavras, o documento eletrônico pode ser entendi-do como aquele que possui, como meio físico, um suporte eletrônico.73

O Código Civil adotou o princípio da liberdade de forma para a manifes-tação da vontade, no que concerne aos negócios jurídicos, conforme dispõe o art. 107, determinando que ela “não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”.

Tomando por base o conceito de documento, e a liberdade de formas para a manifestação da vontade, entende-se que a forma eletrônica é portanto perfeitamente válida no ordenamento jurídico brasileiro. Esse entendimento é ratifi cado pelo já mencionado Projeto de Lei nº 4906/2001, ao dispor em seu art. 3º que:

Art. 3º–“Não serão negados efeitos jurídicos, validade e efi cácia ao documento eletrônico, pelo simples fato de apresentar-se em forma eletrônica.”

Deve-se ter em mente que, se o contrato verbal é admitido no direito civil brasileiro, já nas disposições do Código Civil de 1916, não há motivo para se negar validade, em pleno século XXI, à forma de expressão da vontade que propicia um registro corpóreo, como o documento eletrônico.

A questão da validade do documento eletrônico está relacionada tão so-mente com a possibilidade de servir como uma “representação material de um fato”. Cumprido esse requisito, o documento será válido. Assim, a Lei Modelo da UNCITRAL – United Nation Commission on International Trade Law–para o comércio eletrônico prevê, em seu artigo 6º, que “quando a lei requer que a informação seja fornecida por escrito, esta exigência é alcançada se a informação contida na mensagem é acessível para ser utilizada em futuras referências”.74

Dessa forma, a mensagem eletrônica constitui um documento válido no ordenamento jurídico nacional, uma vez que ela opera como representação material de uma declaração, fornecendo-lhe o suporte no qual a sua existên-cia permanece registrada e passível de posterior consulta.

O questionamento juridicamente relevante sobre o documento eletrônico não reside, porém, em sua validade, mas sim em seu valor probatório, pois

73. Esse suporte poderá ser um

disquete, um Cd-rom, ou um DVD, por

exemplo (cf. Rodney de Castro Peixoto.

O Comércio Eletrônico e os Contratos.

Rio, Forense, 2001; p. 86).

74. O texto em português da Lei Mo-

delo da UNCITRAL pode ser encontrado

no endereço http://www.dct.mre.

gov.br/e-commerce/seminario_e-

-commerce_lei. htm (acessado em

30.05.2005).

Page 187: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 187

nesse caso será necessário averiguar o grau de segurança que pode disponibi-lizar o documento à informação nele contida.

Valor probante dos documentos eletrônicos

Assentada a premissa de que o documento eletrônico é válido no ordena-mento jurídico brasileiro, cumpre avançar para a discussão sobre o seu valor probatório, enfocando aqui especifi camente a mensagem eletrônica.

O Código Civil, no art. 212, consagra a liberdade de forma na produção de provas, excepcionando apenas os negócios para os quais se exige forma especial. Sendo assim, o fato jurídico pode ser provado mediante confi ssão, documento, testemunha, presunção ou perícia. O Código de Processo Civil, no seu art. 332, reforça esse princípio, ao dispor que:

“Art. 332 – Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especifi cados nesse Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou defesa.”

Todavia, para fazer prova, o documento deverá estar sujeito ao imple-mento de uma forma de proteção de sua autoria e conteúdo, pois somente assim, poderá ser afi rmado com certeza quem o produziu e a exatidão de seus termos. Essa é a complexidade que demanda uma análise mais cuidadosa no que se refere ao documento eletrônico.

De fato, a doutrina endossa o entendimento de que, se para a validade do documento basta a representação material de um fato, para o regime proba-tório o documento deverá superar algumas exigências. Segundo expõe César Santolim, o documento deverá apresentar as seguintes características:

“a) permita livremente a inserção dos dados ou a descrição dos fatos que se quer registrar; b) permita a identifi cação das partes intervenientes, de modo inequívoco, a partir de sinal ou sinais particulares; c) não possa ser adulterado sem deixar vestí-gios localizáveis, ao menos através de procedimentos técnicos sofi sticados, assim como ocorre com o suporte cartáceo.”75

Portanto, pode-se sintetizar as exigências para a produção de valor pro-batório por parte de um documento na possibilidade de indicação de sua autoria e integridade de conteúdo. São justamente essas duas exigências que, por não serem usualmente atendidas no envio de uma mensagem eletrônica, fazem surgir questionamentos sobre a sua efi cácia probatória.

A mensagem proveniente de correio eletrônico, não raramente, é enviada sem que sobre a mesma incida qualquer forma de proteção específi ca. O usuário, na maior parte das vezes, apenas escolhe o destinatário, elabora o conteúdo e envia a mensagem, sem que se tome qualquer precaução sobre o resguardo da autenticidade ou integridade do conteúdo.

75. César Viterbo Matos Santolim.

Formação e Efi cácia Probatória dos

Contratos por Computador. São Paulo,

Saraiva, 1995; p. 36.

Page 188: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 188

Conseqüentemente, a mensagem eletrônica ordinária, sem qualquer forma de proteção, enfrenta sérias restrições para ser admitida para que se faça prova sobre a sua autoria ou conteúdo. Isso ocorre porque a men-sagem eletrônica pode ser facilmente interceptada em seu caminho até o destinatário, tendo o seu trajeto interrompido em um dos diversos ser-vidores routers que garantem o seu encaminhamento na rede mundial de computadores.

Uma vez enviada a mensagem, até alcançar o seu destinatário, passa por diversos servidores, que são computadores destinados a dar prosseguimento ao tráfego de dados na Internet. Nessa trajetória, caso não exista qualquer proteção, a mensagem poderá ser interceptada, e ter o seu conteúdo alterado, o que compromete a sua utilização como prova em juízo. O correio eletrôni-co, tal qual hoje desenvolvido na rede mundial de computadores, é uma for-ma de comunicação que oferece um sensível grau de risco para a integridade da mensagem, caso ela não seja protegida.76

Por isso, deve-se buscar uma forma de proteção para a mensagem eletrô-nica que legitime a produção de valor probatório. Esse impasse foi resolvi-do pela legislação francesa, conforme exposto por André Bertrand e Th ierry Piette-Coudol, com a edição da Lei nº 2000-203, de 13 de maio de 2000, a qual, alterando o capítulo sobre prova escrita do Código Civil, estabeleceu a adaptação do regime probatório francês aos meios eletrônicos. Segundo os autores, a lei enuncia duas modalidades de documento escrito – aquele escrito em papel, e o realizado sob forma eletrônica –, não havendo qualquer espécie de hierarquia entre elas. Dessa forma, conforme dispõe o artigo 1316-1 do Código Civil:

“Art. 1316-1. L’écrit sous forme électronicque est admis en preuve au même titre que l’écrit sur support papier, sous réserve que puisse être dûment identifi ée la per-sonne dont il émane et qu’il soit établi et conservé dans des conditions de nature à en garantir l’integrité.”77

Novamente surgem como parâmetros para a segurança de um documen-to eletrônico, e a conseqüente possibilidade de produzir valor probatório, a garantia de autenticidade e integridade. Para efetuar essa proteção, a forma mais utilizada atualmente é a denominada assinatura eletrônica, que permite assegurar a autoria e a integridade de um documento eletrônico, através do emprego de criptografi a com sistema de chaves assimétricas.

O conceito de criptografi a pode ser apreendido a partir da própria etimo-logia da palavra, posto que o termo deriva de dois vocábulos gregos: kriptós, que signifi ca “escondido”, ou mesmo “dissimulado”, e grápho, que signifi ca “escrita”. Assim, torna-se já evidente que a criptografi a é uma forma de escrita que proporciona a transmissão de informações de modo que apenas os envol-vidos na atividade comunicativa possam ter acesso ao seu conteúdo.

76. Sobre a insegurança dos e-mails,

vide, dentre outros, Amaro Moraes e

Silva Neto, “O E-mail como Prova no

Direito Brasileiro”, in http://www1.jus.

com.br/doutrina/texto.asp?id=1785

(acessada em 30.05.2005).

77. André Bertrand e Thierry Piette-

-Coudol. Internet et le Droit. Paris, PUF,

2ª ed., 2000; p. 57

Page 189: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 189

Conforme exposto por Erica Barbagalo, a criptografi a é “uma metodologia em que se aplicam complexos procedimentos matemáticos que transformam determinada informação em um complexo de bits de modo a não permitir seja tal informação alterada ou conhecida por terceiros.”78

Em linhas gerais, a criptografi a opera a conversão de uma mensagem, através de uma chave digital, em uma informação de caráter ininteligível, somente podendo ser convertida novamente para a sua forma originária com a utilização da chave respectiva, que poderá ser a mesma previamente utili-zada, ou uma outra chave que lhe corresponda, de acordo com o sistema de criptografi a utilizado.

Em um sistema de criptografi a simétrica, tem-se apenas a utilização de uma mesma chave, tanto para criptografar a mensagem, como para retorná-la ao seu conteúdo original. Assim, a chave utilizada para converter a mensagem em um código ininteligível é enviada para quem o remetente deseja que tenha acesso ao seu conteúdo. Aplicando sobre a mensagem a chave que lhe foi en-viada, o destinatário poderá conhecer o seu teor, expresso de forma original e legível. Esse sistema é usualmente denominado de criptografi a simétrica, pois é a mesma chave que efetua as duas operações. Todavia, a proteção oferecida por esse procedimento é bastante relativa, pois existe o risco de interceptação da chave no seu envio do remetente para o destinatário.

Esse problema é minimizado quando se utiliza o sistema de criptografi a assimétrica. Esse sistema é baseado na existência de duas chaves, uma pública e uma privada, matematicamente correspondentes, possuindo tanto o reme-tente, como o destinatário, um par de chaves, contendo uma chave pública e uma privada, respectivamente. As chaves são, na verdade, dois códigos de computador que se relacionam de modo que uma desfaz o que a outra faz.

Existe, portanto, uma necessária relação entre as chaves pública e privada que compõe um par, conforme ressalta Augusto Tavares Rosa Marcacini:

“A criptografi a assimétrica, ao contrário da convencional, utiliza duas chaves: uma das chaves dizemos ser a chave privada, e a outra, a chave pública. Encriptando a mensagem com a chave pública, geramos uma mensagem cifrada que não pode ser decifrada com a própria chave pública que a gerou. Só com o uso da chave privada poderemos decifrar a mensagem que foi codifi cada com a chave pública. E o contrário também é verdadeiro: o que for encriptado com o uso da chave privada, só poderá ser decriptado com a chave pública.”79

A chave privada é de exclusivo conhecimento de seu titular, ao passo que a chave pública é acessível para terceiros, podendo ser livremente distribuída. Visando a assegurar a integridade do conteúdo da mensagem eletrônica, o re-metente a criptografa com a chave pública do destinatário, o qual, ao receber a mensagem, converte o texto para um teor legível mediante a utilização de sua chave particular. Nesse caso, como o destinatário é o único que possui o

78. Erica Brandini Barbagalo, Contratos

Eletrônicos. São Paulo, Saraiva, 2001; p.

42. Sobre a defi nição de criptografi a,

veja-se ainda a contribuição de Amaro

Moraes e Silva Neto, segundo o qual:

“A criptografi a (que certamente teve

seu nascedouro com a própria escrita)

é a ciência de se escrever cifradamente,

de modo que apenas os que detêm

a chave da cifragem possam ler a

mensagem em questão. É a possibili-

dade de se misturar letras. Em poucas

palavras: é transformar dados legíveis

em ilegíveis aos olhos indesejáveis.” (in

Privacidade na Internet, cit.; p. 112.)

79. Augusto Tavares Rosa Marcacini.

Direito e Informática – Uma abordagem

jurídica sobre criptografi a. Rio, Forense,

2002; p. 24.

Page 190: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 190

código de sua chave privada, somente ele poderá operar a conversão, garan-tindo a integridade do conteúdo da mensagem.

No que toca à preservação da autenticidade da mensagem, outro procedi-mento é adotado: o remetente criptografa a mensagem com a sua chave pri-vada e a envia para o destinatário. Esse, por sua vez, ao recebê-la, converterá o texto para o seu formato original mediante a utilização da chave pública do remetente. Como somente o remetente possui o código de sua chave privada, assegura-se a autenticidade da mensagem, pois apenas ele poderia tê-la crip-tografado com aquela chave.

A partir da combinação das duas possibilidades de se utilizar a criptografi a assimétrica, acima introduzidas, pode-se obter concomitantemente a integri-dade e a autenticidade no envio de mensagens eletrônicas.

De fato, para se obter o referido resultado, basta que: (i) o remetente cripto-grafe a mensagem utilizando a sua chave privada, (ii) criptografe o resultado da primeira operação com a chave pública do destinatário, (iii) e envie a mensagem para o destinatário, que ao recebê-la (iv) converterá a mensagem para forma legível utilizando a sua chave privada e (v) a chave pública do remetente, garan-tindo-se assim a integridade e a autenticidade da mensagem, respectivamente.

Com a utilização do sistema de criptografi a acima descrito, confere-se à mensagem de correio eletrônico a possibilidade de produzir amplo valor pro-batório, sobretudo com relação à sua autoria e integridade.

O ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar, em entrevista sobre o tema da insegurança das comunicações eletrônicas, afi r-mou que:

“O documento eletrônico tem que ser autêntico e para conseguir-se isso, usa-se a assinatura eletrônica, que não é uma subscrição, mas o modo de garantir que o docu-mento é proveniente do seu autor e que seu conteúdo está integro.”80

Adicionalmente, é usual que se providencie a certifi cação digital das cha-ves empregadas na criptografi a de um documento, como forma de se garantir a sua titularidade. Trata-se de procedimento bastante semelhante ao tradicio-nal reconhecimento de fi rma, operado para certifi car a identidade de quem apõe uma assinatura.

No Brasil, a Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, insti-tuiu o sistema de Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), que estabelece a presunção de que são verdadeiras as declarações constantes de documentos eletrônicos certifi cados por entidades credenciadas por tal sis-tema, e admite prova de autoria e integridade de outros documentos eletrô-nicos, desde que reconhecido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem seja oposto.

A Medida Provisória foi muito criticada por ter sido expedida sem atenção aos requisitos constitucionais de relevância e urgência, previstos no art. 62 80. In Jornal do Commercio, edição de

13.02.2001, p. B-8.

Page 191: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 191

da Constituição Federal.81 Adicionalmente, a sua redação, por vezes dúbia, gerou alguma controvérsia na doutrina, sobretudo com relação ao seu artigo 1º, que está assim redigido:

“Art. 1o – Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira–ICP--Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de docu-mentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certifi cados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.”

A principal crítica a esse artigo decorre da utilização da palavra “validade”, uma vez que, a sua utilização indica que a Medida Provisória dispõe não apenas sobre o valor probatório dos documentos eletrônicos, mas estabelece também novo requisito formal para a própria existência jurídica do docu-mento. Ainda sob a égide do Código Civil de 1916, vale transcrever a crítica de Marcos da Costa e Augusto Tavares Rosa Marcacini:

“A MP 2.200 pretende tratar da ‘validade jurídica de documentos em forma ele-trônica’. A redação deste artigo 1º, um tanto quanto ambígua, parece ter a intenção de que tal medida provisória não trate apenas da prova por documento eletrônico, mas da validade do próprio ato jurídico praticado em meio eletrônico.

(...) Do ângulo jurídico, isto se constitui em verdadeira aberração: nosso Código Civil, em vigor desde 1917, permite contratações verbais! Mas a nova medida provi-sória aponta para a exigência de forma especial, caso a contratação–mesmo a compra de um mero CD–se faça por meio eletrônico. Isto porque, reitere-se, confunde valor de prova com “validade jurídica”.82

Sobre a prova de documentos eletrônicos, cumpre, por fi m, destacar que a Lei nº 8.935/94, em seu art. 7º, III, prevê que aos tabeliães de notas compete “lavrar atas notariais”. Essas atas podem ser utilizadas para que o ofi cial porta-dor de fé pública presente em diligência ateste a verifi cação de determinados fatos, inclusive os observados em meios eletrônicos.

Em síntese, pode-se afi rmar que a mensagem proveniente de correio ele-trônico carece usualmente das formas de proteção disponíveis para que exerça pleno valor probatório. Essa circunstância é decorrente da natural fragilidade das comunicações eletrônicas no ambiente da Internet. Todavia, uma vez protegida a sua autenticidade e integridade, através de sistema como o da criptografi a assimétrica, poderá a mensagem fazer ampla prova em juízo.

Algumas peculiaridades da contratação eletrônica

Uma pluralidade de nomenclaturas para os contratos celebrados através da Internet surgiu com os estudos sobre os aspectos jurídicos do comércio ele-trônico: contratos telemáticos, contratos eletrônicos, contratos informáticos

81. Vide, dentre outros, Gilberto

Marques Bruno, “Considerações

sobre a criação da infra-estrutura de

chaves-públicas brasileira e seu comitê

gestor”, in http://www1.jus.com.br/

doutrina/texto.asp?id=2174 (acessada

em 30.05.2005), e Marcos da Costa

e Augusto Tavares Rosa Marcacini, “A

urgência e relevância em violentar a In-

ternet brasileira”, in http://www1.jus.

com.br/doutrina/texto.asp?id=2291

(acessada em 30.05.2005).

82. Marcos da Costa e Augusto

Tavares Rosa Marcacini. “O apagão

do comércio eletrônico no Brasil”, in

http://www1.jus.com.br/doutrina/

texto.asp?id=2284 (acessada em

30.05.2005).

Page 192: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 192

e etc. Nesse sentido, é importante desde logo delinear através do conceito o objeto de análise da presente aula, ou seja, a chamada contratação eletrônica.

Entende-se por “contratos de informática” aqueles instrumentos contratu-ais que possuem por objeto um bem ou serviço informático. Assim, a licença de um software em papel, bem como a licença de um software à qual o usuário adere na Internet com um clique no botão “aceito”, são contratos de informá-tica. Já os contratos eletrônicos, por sua vez, são aqueles celebrados através da utilização de meios eletrônicos, independentemente do seu objeto.

Uma das celeumas criadas sobre o tema da contratação eletrônica foi a sua submissão ao regime dos contratos entre ausentes. Atualmente, a maior parte da doutrina afi rma ser a contratação eletrônica uma forma de contrato entre ausentes. Esse entendimento está baseado na premissa de que a maioria das transações celebradas através do uso da rede mundial de computadores se dá: (i) através do acesso, por parte do aceitante, a página eletrônica disponível na Internet; ou (ii) através de sucessivas trocas de mensagens eletrônicas (e-mails).

Sendo assim, são plenamente aplicáveis aos contratos celebrados pela In-ternet o disposto nos artigos 433 e 434 do Código Civil, adequando-se a teoria da expedição para a formação dos contratos eletrônicos. Conforme consta dos mencionados artigos:

Art. 433 – Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante.

Art. 434 – Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, exceto:

I) no caso do artigo antecedente;

Cumpre notar, contudo, que o enquadramento dos contratos eletrôni-cos às regras dos mencionados dispositivos do Código Civil poderá ser al-terado, caso seja aprovado nas Casas Legislativas federais o projeto de lei nº 4906/2001. O artigo 26 do referido projeto de lei visa a alterar o regime de formação dos contratos eletrônicos, distinguindo-o daquele contemplado no Código Civil. Assim está redigido o citado artigo:

Art. 26 – Sem prejuízo das disposições do Código Civil, a manifestação de von-tade das partes contratantes, nos contratos celebrados por meio eletrônico, dar-se-á no momento em que:

I) o destinatário da oferta enviar documento eletrônico manifestando, de forma inequívoca, a sua aceitação das condições ofertadas; e

II) o ofertante transmitir resposta eletrônica transcrevendo as informações envia-das pelo destinatário e confi rmando seu recebimento.

Cumpre tecer uma crítica pontual à redação do mencionado art. 26, uma vez que o mesmo, em primeira leitura, parece favorecer o consumidor em suas relações contratuais celebradas através da Internet, pois determina que

Page 193: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 193

caberá ao fornecedor enviar ao consumidor aviso de recebimento indicando o recebimento do aceite por parte do consumidor. Todavia, o mesmo artigo vincula esse momento à formação do contrato. Esse detalhe mostra-se de todo pernicioso para o estabelecimento da confi ança no comércio eletrônico, uma vez que transfere para uma conduta do fornecedor o instante de forma-ção do contrato.

Essa medida, sem que se faça qualquer julgamento prévio sobre a idonei-dade do fornecedor, é prejudicial ao desenvolvimento do comércio eletrô-nico pois, na medida em que o aceite foi expedido, qualquer consumidor tem, em foro íntimo, a convicção de que o produto ou serviço foi adquirido (“foi comprado”). Depender de recebimento de qualquer tipo de aviso ou confi rmação, ao invés de trazer maior segurança às transações comerciais na Internet, terminará por permitir que bens e serviços não sejam prestados pois efetivamente, caso o fornecedor não se manifeste, não haverá contrato forma-do entre ambas as partes.

Como se sabe, a partir da formação do contrato, o consumidor é legitima-do para exigir o cumprimento da obrigação avençada, ou seja, a entrega do bem ou a prestação do serviço. O disposto no artigo 26 terminará por minar essa disposição aberta ao consumidor pelo Código de Defesa do Consumi-dor, restando ao mesmo apenas a solução do impasse em perdas e danos.

Outra peculiaridade da contratação através da Internet é o estabelecimento da lei e do lugar do contrato. Nesse sentido, cumpre lembrar que a Lei de In-trodução ao Código Civil Brasileiro determina, em seu artigo 9º, o seguinte:

Art. 9º–Para qualifi car e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem

§ 2º–A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.

Na prática, cláusulas de eleição de lei aplicável e o foro do contrato são comuns nas transações celebradas na Internet. Caso seja feita uma consulta ao website www.amazon.com, poderá ser notado que toda e qualquer aquisi-ção de produtos através do referido site, por exemplo, estará sujeita às leis do Estado de Washington, conforme cláusula abaixo reproduzida:

APPLICABLE LAWBy visiting Amazon.com, you agree that the laws of the state of Washington,

without regard to principles of confl ict of laws, will govern these Conditions of Use and any dispute of any sort that might arise between you and Amazon.com or its affi liates.

No direito interno pátrio, o projeto de lei nº 4906/2001 busca conferir maior segurança ao consumidor quando da contratação através da Internet. Segundo o seu art. 31, uma série de informações deverá ser disponibilizada

Page 194: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 194

pelos websites brasileiros aos seus consumidores, como forma de assegurar maior confi abilidade no meio para aquisição de bens e serviços. Consoante o referido artigo, as seguintes informações deverão ser disponibilizadas pelas empresas que operem websites destinados ao comércio eletrônico: (i) nome ou razão social do ofertante; (ii) número de inscrição do ofertante no res-pectivo cadastro geral do Ministério da Fazenda e, em se tratando de serviço sujeito a regime de profi ssão regulamentada, o número de inscrição no ór-gão fi scalizador ou regulamentador; (iii) domicílio ou sede do ofertante; (iv) identifi cação e sede do provedor de serviços de armazenamento de dados; (v) número do telefone e endereço eletrônico para contato com o ofertante; (vi) tratamento e armazenamento, pelo ofertante, do contrato ou das informa-ções fornecidas pelo destinatário da oferta; (vii) instruções para arquivamen-to do contrato eletrônico pelo aceitante, bem como para sua recuperação em caso de necessidade; (viii) sistemas de segurança empregados na operação.

Page 195: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

162FGV DIREITO RIO

DANILO DONEDABacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1995), Mestre em Di-

reito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998) e Doutor em Direito

pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004). Atualmente é professor

do mestrado da Faculdade de Direito de Campos, do bacharelado em Direito da

UniBrasil, e de diversos cursos de especialização. Foi pesquisador visitante na

Università degli Studi di Camerino e na Autorità Garante per la Protezione dei

Dati Personali, ambas na Itália. É consultor do Ministério da Ciência e Tecnologia/

UNESCO e membro da Comissão de Comércio Eletrônico do Ministério da Justiça.

Tem experiência na área de Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes

temas: direito civil, privacidade, bancos de dados, dados pessoais, direito da in-

formática e direitos da personalidade.

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

Page 196: Teoria Geral Das Obr e Dos Contratos 2012.2

163FGV DIREITO RIO

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES E DOS CONTRATOS

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

Evandro Menezes de CarvalhoVICE-DIRETOR DA GRADUAÇÃO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Rogério Barcelos AlvesCOORDENADOR DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Andre Pacheco MendesCOORDENADOR DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Marcelo Rangel LennertzCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – CLÍNICAS

Cláudia Pereira NunesCOORDENADORA DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – OFICINAS

Márcia BarrosoNÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – PLACEMENT

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Rodrigo ViannaCOORDENADOR DE COMUNICAÇÃO E PUBLICAÇÕES

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO