temas irbr- alunos

43
8/3/2019 Temas irbr- alunos http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 1/43 1983 Examinadores: Secretário Wamberto Hudson Ferreira Professora Dab Abi Chahine Squarisi Brasileiro, homem cordial? 1984 Examinadores Conselheira Heloisa Vilhena de Araujo Professora Stella Maria Bortoni “Durante os meus trinta e tantos anos de diplomacia algumas vezes vim ao Brasil, com licença. O mais do tempo vivi foi fora, em várias partes, e não foi pouco. Cuidei que não acabaria de me habituar novamente a esta vida de cá. Pois acabei. Certamente ainda me lembram coisas e pessoas de longe, diversões, paisagens, costumes, mas não morro de saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.” (Memorial de Aires, Machado de Assis) 1985 Examinadores Secretário Gerson Machado Pires Filho Professora Denise de Aragão Costa Martins “Não há monarca tão absoluto que possa reunir em suas mãos todas as forças da sociedade e vencer resistências, como pode fazê-lo a maioria... Um rei, aliás, tem apenas um poder material que age sobre ações e não poderia atingir vontades; mas a maioria está revestida de uma força ao mesmo tempo material e moral, que age sobre a vontade como sobre as ações, e que impede, ao mesmo tempo, o fato e a vontade de fazer... Grilhões e algozes são os instrumentos grosseiros que a tirania outrora utilizou; contudo, em nossos dias, a civilização aperfeiçoou até o próprio despotismo, que, no entanto, parecia não ter mais nada o que aprender. Os príncipes haviam, por assim dizer, materializado a violência; as repúblicas democráticas de nossos dias tornaram-se tão intelectual quanto a vontade humana que ela  pretende coagir. Sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para chegar à alma, fugindo aos golpes, alevava-se gloriosamente acima dele; mas nas repúblicas democráticas a tirania não procede do mesmo modo; ela deixa o corpo e vai direto à alma. O senhor não diz mais: - Pensa como eu, ou morrerás -; ele diz: - És livre de não pensar como eu; tua vida, teus bens, tudo preservarás; mas de hoje em diante serás um estranho entre nós...” (Aléxis de Tocqueville – A Democracia na América – 1835) 1986 Examinadores Secretário Gerson Machado Pires Filho Professora Enilde Leite de Jesus Faulstich Professora Stella Maris Bortini “É o Quixote um herói fracassado? Sim, se atentarmos apenas no desvario de suas aventuras e arremetidas contra alvos imaginários, e no fatal insucesso que, uma por uma, lhe encerrou

Upload: fernando-ferrone

Post on 06-Apr-2018

230 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 1/43

1983Examinadores:Secretário Wamberto Hudson FerreiraProfessora Dab Abi Chahine Squarisi

Brasileiro, homem cordial?

1984ExaminadoresConselheira Heloisa Vilhena de AraujoProfessora Stella Maria Bortoni

“Durante os meus trinta e tantos anos de diplomacia algumas vezes vim ao Brasil, comlicença. O mais do tempo vivi foi fora, em várias partes, e não foi pouco. Cuidei que nãoacabaria de me habituar novamente a esta vida de cá. Pois acabei. Certamente ainda melembram coisas e pessoas de longe, diversões, paisagens, costumes, mas não morro de

saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.”(Memorial de Aires, Machado de Assis)

1985ExaminadoresSecretário Gerson Machado Pires FilhoProfessora Denise de Aragão Costa Martins

“Não há monarca tão absoluto que possa reunir em suas mãos todas as forças da sociedade evencer resistências, como pode fazê-lo a maioria... Um rei, aliás, tem apenas um poder material que age sobre ações e não poderia atingir vontades; mas a maioria está revestida deuma força ao mesmo tempo material e moral, que age sobre a vontade como sobre as ações, eque impede, ao mesmo tempo, o fato e a vontade de fazer... Grilhões e algozes são osinstrumentos grosseiros que a tirania outrora utilizou; contudo, em nossos dias, a civilizaçãoaperfeiçoou até o próprio despotismo, que, no entanto, parecia não ter mais nada o queaprender. Os príncipes haviam, por assim dizer, materializado a violência; as repúblicasdemocráticas de nossos dias tornaram-se tão intelectual quanto a vontade humana que ela

 pretende coagir. Sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para chegar à alma, fugindoaos golpes, alevava-se gloriosamente acima dele; mas nas repúblicas democráticas a tiranianão procede do mesmo modo; ela deixa o corpo e vai direto à alma. O senhor não diz mais: -Pensa como eu, ou morrerás -; ele diz: - És livre de não pensar como eu; tua vida, teus bens,

tudo preservarás; mas de hoje em diante serás um estranho entre nós...”(Aléxis de Tocqueville – A Democracia na América – 1835)

1986ExaminadoresSecretário Gerson Machado Pires FilhoProfessora Enilde Leite de Jesus FaulstichProfessora Stella Maris Bortini

“É o Quixote um herói fracassado? Sim, se atentarmos apenas no desvario de suas aventuras earremetidas contra alvos imaginários, e no fatal insucesso que, uma por uma, lhe encerrou

Page 2: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 2/43

todas as ações. Mas quando passamos a última página do livro inimitável, compreendemosque a efusão do heroísmo não ficou perdida; que os atos malogrados do último cavaleiroforam recebidos a crédito, para compensação das injustiças e agravos que ele não soube ver,nem reparar; e finalmente que dele brota um ensinamento contrário ao ideal da eficiência, queé o da simples entrega de si mesmo, para operar pelo exemplo e pela germinação.

Cada vez que, em nossa própria vida, nos recusamos a uma salida, porque sabemos que onosso ato não terá força sobre as condições externas e assim não poderá remover osobstáculos opostos ao nosso intento, estamos agindo contra o espírito de D. Quixote.”(San Tiago Dantas – D. Quixote, um apólogo da alma ocidental, Cadernos da UnB, no. 3)

1987ExaminadoresSecretário Gerson Machado Pires FilhoProfessora Enilde Leite de Jesus FaulstichProfessora Stella Maris Bortini

“Nosso edifício, tanto externo como interno, está cheio de imperfeições; mas nada é inútil nanatureza, nem mesmo a inutilidade. Nada existe no universo que não desempenhe papeloportuno. Nosso ser é formado de qualidades doentias: a ambição, a inveja, a vingança, asuperstição, o desespero vivem em nós tão naturalmente que sua imagem se reflete tambémnos animais, inclusive a da crueldade, esse vício desnaturado (pois mesmo na compaixãosentimos intimamente não sei que agridoce volúpia de ver sofrerem nossos semelhantes; e as

 próprias crianças o sentem). E, se se arrancassem do homem as sementes dessas qualidadesdoentias, destruir-se-iam as condições fundamentais de sua vida. Assim como em todaadministração existem ofícios abjetos necessários, os vícios têm seu lugar indispensável nanossa estrutura, tal qual os venenos que conservam a nossa saúde. Embora desculpáveis, tantomais quanto necessários deixemo-los entregues aos cidadãos mais vigorosos e ousados, quelhes sacrificam a honra e a consciência, assim como os antigos sacrificavam sua vida pela

 pátria; nós, mais fracos, desempenhamos os papéis mais fáceis e menos arriscados. O bem público exige que se traia, que se minta e se massacre, abdiquemos dessa incumbência emfavor de outros mais obedientes e acomodatícios.”(Michel de Montaigne – Ensaios, livro III, capítulo 1)

 

1989

“Em todas as nações devemos ver e procurar antes de tudo aquilo em que elas nos possam ser úteis e defendermos, é claro, contra o que nos possa prejudicar e nos ameaçar,olhar a marcha dos eventos de olhos abertos e não escurecidos pelas lentes de deformaçãofornecidos por uma ótica intencional, qualquer que seja a procedência. O patriotismo deve

 preservar sua pureza e não degenerar em patacoadas de aparência (...). Sobre este ponto vouainda citar-me numa frase que versava esse tema, condenando o que chamei o nosso

 patriotismo de palavras ‘que doura tudo que é nosso e recorta na deformação sentimental doentusiasmo tudo que possuímos’ (...), ao qual opunha eu ‘o patriotismo que observa com rigor 

 para levantar sobre o que é mau a perspectiva do que é bom, para tirar do que é bom a  possibilidade do melhor’. Esse patriotismo (...), feito de inquietação e de zelo, deve ser 

sobretudo o dos diplomatas, que são a placa sensível do país exposta às impressões doexterior, suas antenas em contacto com as correntes elétricas do mundo.”

Page 3: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 3/43

Gilberto Amado, discurso de paraninfo proferido em 1955, por ocasião da formaturados novos diplomados do Instituto Rio Branco.

1990

Desenvolva o tema:“A articulação do Brasil, país em desenvolvimento, com um mundo que se transformavertiginosamente: desafios e problemas.”

1991

Comente o texto abaixo:”Escritor por acidente – eu habituei-me a andar terra-a-terra,abreviando o espírito à

contemplação dos fatos de ordem física adstritos às leis mais simples e gerais (...).“(...) ao contrário do que se acredita, no terreno maciço das indagações objetivas, ao

rés da existência, há uma crescente instabilidade. O poeta, o sonhador em, geral, quem quer 

que se afeiçoe a explicar a vida por um método exclusivamente dedutivo, é soberano no pequeno reino onde o entroniza a sua fantasia. Nós, não. O rumo para o ideal baralha-no-los o próprio crescer do domínio sobre a realidade, como se à hierarquia lógica dos conhecimentos positivos acompanhassem, justalinearmente, as nossas emoções sempre mais complexas emenos exprimíveis. Sobretudo menos exprimíveis. No submeter a fantasia ao plano geral danatureza, iludem-se os que nos supõem cada vez mais triunfantes e aptos a resumir tudo quevemos ao rigorismo impecável de algumas fórmulas incisivas e secas. Somos cada vez maisfrágeis e perturbados. No perpétuo desequilíbrio, entre o que imaginamos e o que existeverificamos atônitos que a idealização mais afogueada, apagam-no-la os novos quadros daexistência. Mesmo no recesso das mais indutivas noções, não é fácil saber, hoje, onde acaba oracionalismo e principia o misticismo – quando a própria matéria parece espiritualizar-se noradium, e o concreto desfecha no translúcido e no intáctil; ou entram, improvisamente, peloslaboratórios dos alquimistas... (...)

“Imaginai uns tristes poetas pelo avesso: arrebatamos também o sonho, mas ao invésde projetarmos a centelha criadora do gênio sobre o mundo que nos rodeia, é o resplendor deste mundo que nos invade e deslumbra.”

Euclides da Cunha (1866-1909). Discurso de recepção na Academia Brasileira deLetras, in Obras Completas, Rio de Janeiro, Cia. José Aguilar Editora, 1966, v. I, páginas 206e 207 (revista a acentuação pelo IRBr, à luz da reforma ortográfica de 1971).

1992 DIPLOMACIA E PROCESSO TECNOLÓGICO

A ubiqüidade do telefone, as viagens supersônicas, os satélites de comunicação, atransmissão sem fio de imagens, etc. têm facilitado enormemente o contato entre povos egovernos. Além disso, são cada vez mais comuns as reuniões de ministros do exterior, e

  presidentes e chefes de governo vêm desenvolvendo a prática de se encontrarem periodicamente.

 Na sua opinião, as alterações provocadas pelo progresso tecnológico indicam que adiplomacia tradicional, aquela das embaixadas e embaixadores sur place, está fadada aodesaparecimento?

1993

Page 4: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 4/43

Disserte sobre o texto abaixo.“Os historiadores raramente fazem justiça à tensão psicológica exercida sobre o

  político. O que eles têm à disposição são documentos escritos para uma variedade deempregos – segundo as regras atuais de publicidade, cada vez mais destinadas à elaboração de

relatórios – e nem sempre relevantes quanto ao momento da decisão. O que nenhumdocumento revela é o impacto acumulado de acidentes, circunstanciais impalpáveis, temores ehesitação”.

Henry Kissinger, White House Years, Boston, Little, Brown and Company 1979

1995 (guia de 1996)

Leia os textos que se seguem.

O campus cai no samba

O samba entrou para a universidade e formou seu bloco entre a comissão dosacadêmicos e a ala da comunidade: sob o comando do sociólogo Sérgio Murilo, a Golfinhosda Guanabara – a primeira escola de samba mirim da Zona Sul – fincou estandarte no campusda Praia Vermelha da UFRJ e está iniciando um projeto de educação ambiental, cênica ecultural.

- Passei pela Flor do Amanhã e pelo Projeto Devenir tentando implantar esse trabalho.Que agora parece que vai levantar vôo. O samba é um valor muito forte entre as pessoas doRio e é o elo perfeito para a universidade se desenvolver em conjunto – opina Murilo, queatraiu o professor Joel Rufino dos Santos para ser o presidente de honra da escola.

Tocando o enredo “Oba! É carnaval!”, para o desfile do ano que vem, as mais de milcrianças da escola terão esta semana sua primeira participação no dia-a-dia da universidade:serão estrelas de um vídeo que alunos da Escola de Comunicação farão para o Festival doMinuto.

O Globo, julho de 1995

Educação em vista de um pensamento livre

 Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará, assim, umamáquina utilizável, mas não uma personalidade. É necessário que adquira um sentimento, umsenso prático daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo, do que é

moralmente correto. A não ser assim, ele se assemelhará, com seus conhecimentos profissionais, mais a um cão ensinado do que a uma criatura harmoniosamente desenvolvida.Deve aprender a compreender as motivações dos homens, suas quimeras e suas angústias paradeterminar com exatidão seu lugar (...) em relação a seus próximos e à comunidade.

Estas reflexões essenciais comunicadas á jovem geração graças aos contatos vivoscom os professores, de forma alguma se encontram escritas nos manuais. É assim que seexpressa e se forma de início toda a cultura. Quando aconselho com ardor “as humanidades”,quero recomendar essa cultura viva, e, não um saber fossilizado, sobretudo em história efilosofia.

Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a

suprimir os progressos nas ciências do futuro. É preciso, enfim, tendo em vista a realização deuma educação perfeita,desenvolver o espírito crítico na inteligência do jovem. Ora, a

Page 5: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 5/43

Page 6: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 6/43

Page 7: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 7/43

instrumentos variados, como o salário educação para o ensino primário e bolsas de estudos,administradas pelos sindicatos. Na Constituição de 1967 (art. 168, parág. 3º., III), esboçar-se-ia um esquema racional de financiamento da educação. O ensino dos 7 aos 14 anos seriaobrigatório e gratuito, na rede oficial. Nos graus superiores ao primário, substituir-se-ia osistema de gratuidade pela concessão de bolsas de estudo para os que, demonstrando efetivo

aproveitamento, provassem insuficiência de recursos. As bolsas seriam gratuitas no ensinosecundário, exigindo-se posterior reembolso no caso do ensino superior.Tudo ficou na intenção, por falta de regulamentação. A Constituição de 1988 passou,

demagogicamente, ao extremo oposto: gratuidade para todos, em todos os níveis do ensino público. Mas são escassas as escolas públicas secundárias, e 75% dos universitários têm quecursar faculdades privadas!...

Roberto Campos. A lanterna na popa: memórias.

Texto n. 2 – Um sistema dual: os integrados e os marginalizados

Recorrendo-se de novo à terminologia de Dahl, seria possível dizer que há hoje no

Brasil um “sistema dual”, caracterização que também se aplica ao sistema político de vários países latino-americanos. Dahl usa a expressão para descrever diferentes sistemas de poder,tais como os que existiram em Atenas, na Grécia Antiga, e no sul dos Estados Unidos até adécada de 1960. A peculiaridade do “sistema dual” é a de que, para os indivíduos que estãointegrados, existem mecanismos efetivos de participação e influência, ao passo que para osque ficam de fora há um regime de coerção e, em casos extremos de terror. Evidentemente,tais “sistemas” duais diferem muito entre si: um exemplo extremo é o atual regime da Áfricado Sul; outro, mais ameno, é o do período de Giolitti na Itália.

A atual ordem política brasileira pode ser comparada ao passado sistema italiano,especialmente no que se refere à extraordinária diferenciação regional de poder, existente nosdois casos. Também seria interessante comparar a sociedade brasileira à do Sul dos EstadosUnidos no período anterior à década de 1960, dado o papel da escravidão na história deambas. No entanto, o caso italiano é mais próximo, no sentido em que a dualidade do sistema

  baseia-se em critérios mais sociais do que raciais. Como afirmou o deputado UlyssesGuimarães no discurso citado, a miséria é uma forma de discriminação e “não há pior discriminação do que a miséria”.

Em que consiste esse “sistema dual brasileiro?” Para aqueles que estão dentro – isto é, para os grupos social e economicamente dominantes, assim como para outros segmentosorganizados da sociedade – há um regime político competitivo. Talvez seja avançar muitosupor que existe uma “poliarquia” para esses grupos, mas já estamos a caminho disso.Evidentemente, entre os que estão dentro contam-se segmentos organizados de trabalhadores,

assim como outros setores sociais e políticos que querem democratizar o sistema e eliminar adualidade, universalizando suas características democráticas. Para os que ficam de fora, paraos marginalizados que são muito pobres e incapazes de se organizar, resta apenas tornarem-seobjeto de manipulação política – em outras palavras, são tratados não como cidadãos mascomo “clientes”, na acepção romana do termo. E, quando necessário, o que ocorre comfreqüência, são submetidos à repressão policial. Eles são livres para participar das eleições e,na realidade, a maioria o faz. Não são marginalizados por nenhum tipo de restriçãoinstitucional, mas pelas próprias condições sociais, políticas e culturais em que vivem e queos transformam em massas amorfas.

Talvez seja mais exato dizer que também eles estão dentro, só que à margem. Aquiimpõem-se uma distinção muito complexa entre cidadãos e eleitores. Segundo Ulysses

Guimarães, “em um país com 30.401.000 de analfabetos (...) é preciso não esquecer que acidadania começa com a alfabetização”. Esta observação nos remete ao problema inicial da

Page 8: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 8/43

distância entre instituições que garantem a liberdade (política) e o que diz respeito à defesa da  justiça social. Não é que as eleições não tenham relevância nas decisões tomadas nos“sistemas duais”. A questão é que deles participam segmentos da população que têm pouca,ou mesmo nenhuma, possibilidade de exercer qualquer influência autônoma. A clássica fraseeleitoral – “a cada homem um voto” – pressupõe a autonomia do indivíduo para expressar sua

opinião. Todavia, no Brasil, como observou o cientista político Fábio Wanderley, somente 7,5milhões de pessoas pagam impostos, enquanto 75 milhões estão habilitados a votar. Istosignifica que a cidadania eleitoral “antecipou” de certo modo a cidadania política no sentidomais amplo. Para dizer de outro modo: existem milhões de cidadãos no sentido eleitoral que,na realidade, não passam de cidadãos de segunda classe.

Aqui começamos a nos distanciar do caso norte-americano, onde, a despeito dadesigualdade entre ricos e pobres, e pondo à parte a questão racial, sempre houve, pelo menosdesde a época de Tocqueville, uma forte tendência à “igualdade de condições” no sentido deefetiva igualdade dos cidadãos perante a lei. Isto de forma alguma é uma mera formalidadelegal, mas representa a capacidade política, cultural e social de cada cidadão para exercer osdireitos garantidos pelo sistema institucional. Em uma sociedade democrática, os indivíduos

  pertencem a diferentes classes, o que ocasiona desigualdades sociais, mas não existemcidadãos de segunda classe, pelo menos não na magnitude registrada no Brasil (e na maioriados países latino-americanos). Evidentemente, encontra-se situação semelhante em várias dasgrandes cidades dos Estados Unidos que receberam um grande número de migrantes negrossulinos nos últimos quarenta anos. Também nessas cidades os pobres constituem a grandemaioria da cidadania e do eleitorado. No entanto, não é esta a situação geral do país nem denenhuma de suas regiões.

Francisco Weffort. Qual democracia?

Texto no.3 – O Sanduíche Encantado

Era na Rua Alegre, na Aldeia Campista. Hoje, não existe mais a rua Alegre e quasenão existe mais a Aldeia Campista. Do ano, não estou bem certo. Ou 1921 ou 1923. Não, não.Vinte e dois: - foi o ano do Centenário. Agora me lembro: - 21. No ano seguinte, minhafamília foi morar na Tijuca, Rua Antônio dos Santos. Defronte, morava o juiz Eurico Cruz.Mas volto à Aldeia Campista. No fim da Rua Alegre, exatamente na esquina com Maxwell,estava a escola pública.

Lá, fiz todo o curso primário. Ou por outra: - não todo. Fui até o terceiro ano primário,só. Quando minha mãe me matriculou, eu estava absolutamente certo de que jamaisaprenderia a escrever. E foi lá, na escolinha pobre que tinha, se tanto, oitenta alunos, foi láque eu sofri o primeiro e definitivo trauma da minha infância. Tinha eu seis anos e, como já

escrevi, era pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez.Esse trauma profundo e irreversível foi um sanduíche. Exatamente um sanduíche.Minha família era pobre, muito pobre mesmo. Minha mãe, que foi uma das mulheres maislindas do seu tempo, tinha de ir para a cozinha e para o tanque. Uma tarde, passou lá por casauma amiga de minha mãe, amiga dos bons tempos do Recife. Entrou e, quando viu a nossamiséria, começou a chorar. Chorava a visita por um lado e minha mãe por outro. Até então eunão via a miséria como tal. E me considerava rico diante dos filhos da lavadeira.

(Chamava-se Dolores a amiga de minha mãe. Aí está: - Dolores.) Bem. Éramos tão pobres que eu nem sempre levava merenda para a escola. Mas no primeiro dia, e como era o primeiro dia, levei uma banana. Ninguém pode imaginar a ternura, a um só tempo agradecidae triste, com que eu a segurava. O fato de tê-la fez-me sentir um pequeno príncipe. O

importante na escola não foi a escola, nem a aula, nem a professora. Foi o recreio, foi amerenda, foi a banana.

Page 9: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 9/43

Tudo aconteceu na hora do recreio. Lá fui eu, com todos os outros para o pátio. Tenhoseis anos e vou comer uma banana. Aos seis anos, ninguém come uma banana com umafulminante voracidade. No meu tempo, as crianças primeiro a lambiam. Chupava-se a bananacomo, hoje, o chica-bom. Eu estou descascando, radiante, a banana. E, súbito, paro. Na minhafrente está um garoto, de cabelo à nazareno. Traz a merenda num papel amarrado com

  barbante, prateado ou dourado. Desfaz o nó sem pressa. Desembrulha. E lá estava,simplesmente, o sanduíche de ovo, o único sanduíche de ovo de todo o recreio.(Já contei este episódio umas dez vezes. Mas entendam: - reescrevê-lo dá-me uma

desesperada euforia.) O garoto está à minha frente e não tira os olhos de mim (por minha vez,também não tiro os olhos dele). Ali começou a vergonha, ali começou a humilhação da

 banana. Uma professora apareceu e, por um momento, até invejou aquele afrontoso pão comovo. Outros meninos, outras meninas olhavam também. Uma menina tinha uma lata pequenade biscoito. Mas latinha perdeu longe para o sanduíche. A professora passou outra vez. Umatristeza turvou o seu olhar. Tristeza e, mesmo, ressentimento por não estar comendo o pãocom ovo. Digo isso e não sei se estou tecendo uma cruel fantasia retrospectiva. E, nãocontente, o menino deixava escorrer a gema como uma baba amarela. Era, como já escrevi, otrauma. Digo trauma e não lhe ponho um T maiúsculo por um certo pudor estilístico.

Ora, depois disso, aconteceu o diabo. Dias, meses, anos já fluíram para a eternidade.Houve a guerra, Hiroxima. Mas a lesão da alma lá continua reservada, intata, indiferente aotempo e à bomba atômica. Escrevo isso e para de bater a máquina.

 Nelson Rodrigues. O Reacionário: memórias e confissões.

Elabore um resumo do Texto2, com extensão de 200 a 250 palavras (valor: 40 pontos).Desenvolva o tema que se segue, em dissertação de 450 a 600 palavras (valor: 60

 pontos): Democracia e desigualdade

1997 (guia de 1998)

Leia os textos que se seguem.Texto no. 1 – Yes, nós temos halloween

Em pleno Brasil lindo e trigueiro havia lojas na semana passada vendendo uniforme de bruxa

Agora sim. Agora vamos. Um importante passo no rumo da inserção do Brasil noPrimeiro Mundo foi dado nos últimos anos com o início da celebração, por aqui, da festaconhecida como holloween. Sim, já há halloween no Brasil. Em pleno Brasil lindo e trigueiro,

 para não dizer inzoneiro, este Brasil brasileiro, terra de vatapá, caruru e mungunzá, havia nasemana passada lojas vendendo roupas e chapéus de bruxa. Escolas promoviam festasalusivas à data. Casas noturnas anunciavam bailes comemorativos.

Crianças invadindo as casas e pedindo doces, senão fazendo malvadezas: “Me dê umtrato ou faço uma traquinagem!” Abóboras ocas, chapéus cônicos, vassouras voadoras. Dá

 para acreditar que isso esteja ocorrendo no Brasil, até nem tudo é perfeito, ainda no Brasil,trata-se daquele evento, na véspera do Dia das Bruxas. Pois agora já estamos quase iguais aosamericanos. Temos halloween.

O fenômeno por enquanto circunscreve-se às áreas chiques de São Paulo, Rio deJaneiro e outras cidades. O povão ainda não chegou lá. Na verdade, o povão sempre chegaatrasado. Em seu meio, ainda nem existe o hábito de colar adesivos com gracejos em inglês

no automóvel. Portanto, mesmo se fosse a Miami e comprasse um adesivo, não teria ondecolar.

Page 10: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 10/43

O halloween veio culminar uma série de avanços ultimamente experimentados pela boa sociedade brasileira. Já há lugares onde se pode pedir sorvete de vanilla, muito superior ao de baunilha. As redes de sorveteria La Basque e Babuska oferecem vanilla. Mesmo que a

 palavra seja de origem espanhola, foi incorporada pela língua inglesa, e os americanos autilizam. Vale dizer que, no La Basque e Babuska, toma-se sorvete em inglês, o que

impressiona muito mais o paladar. Também há lojas que anunciam Sales e oferecem produtoscom preços 10% off , ou 20% off , o que é muito vantajoso do que uma simples liquidação queofereça descontos equivalentes. E já se pode ligar para uma pizzaria que faça delivery, em vezde entrega, sem falar na inominável venda para viagem. Com a delivery, garantem-se rapideze segurança no percurso.

Em certas esquinas de shopping center, olha-se em volta e só se vê inglês. Mergulha-se então na magia dos Ws e Ys, na simpatia do S . Esse Brasil, sim, dá gosto. Ele fazia por merecer o halloween, que mesmo que fosse só uma palavra, sem significado, já nosconduziria a um mundo de encantamento, com sua formidável carga de  Ls e  Es duplos,enriquecido ainda por um W e um H como deve ser, não mudo e inútil, mas trabalhado desdeo fundo da garganta, sem medo de ser ouvido. O Brasil que dá gosto é aquele que não parece

Brasil. não. O Brasil que dá gosto é aquele que não só parece o Brasil, mas parece os EstadosUnidos. É a este que, como numa vassoura de bruxa, nos transporta o halloween.

Talvez o leitor tenha desconfiado de que se tentou fazer ironia, neste texto. Mas talveznão, dadas as deficiências do escriba. Então vai-se direto ao ponto: festejar o halloween, noBrasil, é coisa de basbaques. Assim como saborear “vanilla”, vender “off” e despachar “delivery”. É coisa de imitadores. Ainda que fosse para imitar o que a civilização americanatem de fundamental, como o respeito à lei e à ética do trabalho, vá lá. Mas não – é para imitar 

 pela rama, ciscando no que há de estéril e superficial. Ora, imitar, macaquear, querer igualar-se àquele que se considera superior pelas vãs artimanhas do como outros falsificam uísque.Antes, é uma das mais antigas e consistentes formas de ser tolo.

Roberto Pompeu de Toledo. Veja, 06/11/96.

Texto no. 2 – Entre PalavrasEntre coisas e palavras – principalmente entre palavras – circulamos. A maioria delas

não figura nos dicionários de há 30 anos, ou figura com outras acepções. A todo momentoimpõe-se tomar conhecimento de novas palavras e combinações de.

Você que me lê, preste atenção. Não deixe passar nenhuma palavra ou locução atual, pelo seu ouvido, sem registrá-la. Amanhã, pode precisar dela. E cuidado ao conversar comseu avô; talvez ele não entenda o que você diz.

O malote, o cassete, o “spray”, o fuscão, o copião, a Vemaguet, a chacrete, o linóleo, o“nylon”, o “nycron”, o ditafone, a Informática, a dublagem, o sinteco, o telex.... existiam em

1940? Ponha aí o computador, os anticoncepcionais, os mísseis, a motoneta, a Velo-solex, o biquíni, o módulo lunar, o antibiótico, o enfarte, a acupuntura, a biônica, o acrílico, o ta legal,o “apartheid”, o som “pop”, a arte “op”, as estruturas e infra-estrutura.

 Não esqueça também (seria imperdoável) o Terceiro Mundo, a descapitalização, odesenvolvimento, o unissex, o bandeirinha, o “mass média”, o Ibope, a renda “per capita”, amixagem.

De passagem, anote a reunião de cúpula, a minicopa, a conjuntura, o Porção, aReflexologia, a ioga, o iogurte, os alucinógenos, o morfema, o semantema, o estocástico, oergódigo e o markoviano.

Só? Não. Tem seu lugar ao sol a metalinguagem, o servomecanismo, as algias, a coca-

cola, o superego, a Futorologia, a homeostasia, a Adecif, a Transamazônica, a SUDENE, oINCRA, a UNESCO, o ISOP, a OEA e a ONU.

Page 11: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 11/43

Estão reclamando porque não citei a conotação, o conglomerado, a diagramação, oideologema, o idioleto; o Icm, a Ibm, o falou, as operações trianguelares, o “zoom” e aguitarra elétrica.

Mas por sua vez se esqueceram de lembrar chuchu-beleza, ecumenismo, tremendo barato, monema, parâmetro, gerontologia, genocídio, cronograma, PIB, política habitacional,

gol de letra, mercado fracionário de balcão.Olhe aí na fila – quem? Embreagem, defasagem, barra tensora, vela de ignição,engarrafamento, DETRAN, poliéster, parafernália, filhotes de bonificação, letra imobiliária,conservacionismo, “carnet” de girafa, poluição.

Mas há de haver espaço para setorial, tônica, mafagafe (José Cândido de Carvalhodescobriu um ninho deles, e diverte-nos com a descoberta, em delicioso livro), complexo decastração, inseminação artificial, “nalpam”, ovos de codorna,teste de Cooper,sesquicentenário, didascália, passarela, gelo-baiano.

E o vestibular para milhões? O cursinho e o cursilho? O mestrado? Ah, faltava aanálise sinótica do mapa meteorológico. A custódia de títulos nominativos. O transplante,variadíssimo e nem sempre letal. A implantação e os implementos industriais. O audiovisual e

seus flanelógrafos, para uso de aloglotas. A macrobiótica, pois não. E o “offset”.Fundos de investimento, e daí? Também os de incentivos fiscais. “Know-how”.

Barbeador elétrico de 90 microrranhuras. Fenolite. Baquelite. LP e compacto. Alimentossupergelados. Viagens pelo crediário. Circuito fechado de TV na Rodoviária. “Argh!” “Pow!”“Click!”

  Não havia nada disso no jornal do tempo de Venceslau Brás, ou mesmo deWashington Luís. Algumas dessas coisas começam a aparecer sob Getúlio Vargas. Hoje estãoali na esquina, para consumo geral. A enumeração caótica não é invenção crítica de LeoSpitzer. Está aí, na vida de todos os dias. Entre palavras e combinações de palavrascirculamos, vivemos, morremos, e palavras somos, finalmente, mas com que significado, quenão sabemos ao certo?

Carlos Drummond de Andrade. De notícias e não notícias faz-se a crônica.

Texto n. 3 – Português do Brasil versus português de Portugal: as querelas

(...) Vamos ler algumas opiniões sobre a questão de haver uma ou duas línguas portuguesas. Tais especulações são, em geral, carregadas de nacionalismo exacerbado, paraum ou para outro lado. Iniciemos pela de Câmara Junior:

“Como quer que seja, as discrepâncias de língua padrão entre Brasil e Portugal nãodevem ser explicadas por um suposto substrato tupi ou por uma suposta profunda influência

africana, como se tem feito às vezes. Resultam essencialmente de se achar a língua em doisterritórios nacionais distintos e separados.A partir do período clássico, em que o português se implantou no Brasil, cada país

teve a sua evolução lingüística, nem sempre coincidente uma com a outra, apesar das estreitasrelações de vida social e cultura. (...)

O problema do português popular e dialetal do Brasil é, naturalmente, outro. Nele podem ter atuado substratos indígenas, não necessariamente, tupi, e os falares africanos, naestrutura fonológica e gramatical. Também se verificaram, por outro lado, sobrevivências detraços portugueses arcaicos, que não se eliminaram de áreas isoladas ou laterais em relação àsgrandes correntes de comunicação da vida colonial. A imensa vastidão do território brasileiro

Page 12: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 12/43

e as modalidades de uma exploração intermitente e caprichosa já propiciavam, aliás, por sisós, uma complexa dialetação, que ainda está por se estudar cabalmente”.1 

A posição de Câmara Junior, poderíamos dizer, é objetiva e neutra: nela está presentea preocupação científica do lingüista que preconiza, fundamentalmente, a evolução natural

 para um e outro sistema, em territórios geográficos distintos. Tal não é a neutralidade

científica encontrada em Ribeiro (1933)2

. Nessas breves passagens do texto de Ribeiro,  Alíngua nacional , fica clara a posição apaixonada que o autor assume em relação à unidade

 brasílica do português americano. Vejamos:“Parece todavia incrível que a nossa independência ainda conserve essa algema nos

 pulsos, e que a personalidade de americanos pague tributo à submissão das palavras. (...)A nossa gramática não pode ser inteiramente a mesma dos portugueses. As

diferenciações regionais reclamam estilo e método diversos. (...)Trocar um vocábulo, uma inflexão nossa, por outra de Coimbra, é alterar o valor de

ambos a preço de uniformidades artificiosas e enganadoras. (...) Não podemos, sem mentira e sem mutilação perniciosa, sacrificar a consciência das

nossas próprias expressões.

Corrigi-las pode ser um abuso que afete e comprometa a sensibilidade imanente atodas elas.

Os nossos modos de dizer são diferentes e legítimos e, o que é melhor, são imediatos econservam, pois, o perfume do espírito que os dita”.3

Temos, assim, no testemunho de João Ribeiro, uma defesa da língua brasileiranacional como marca da independência do povo brasileiro: uma exaltação à alma a ao espírito

 brasileiros, libertos, via língua, das amarras que os prendiam ao reino português. Se éveemente e exacerbada a glorificação da língua brasileira nacional defendida por Ribeiro, nãomenos veemente e exacerbado é o depoimento de José Pedro Machado em O português do

 Brasil.4

Esse texto que ora leremos foi escrito como uma resposta indignada a um pronunciamento do poeta Cassiano Ricardo, lido a 30 de janeiro de 1941, frente à AcademiaBrasileira de Letras, intitulado “A Academia e a língua brasileira”, partes do qual aparecemtranscritas no livro de Machado e que retomaremos para melhor explicitar a posição“lusitana” do último. Em primeiro lugar, pois, as palavras de Cassiano Ricardo:

“A glória de Portugal nada tem a ver com a língua falada pelo povo brasileiro. Muitoao contrário, é na língua falada pelo brasileiro que melhor havemos de celebrar a glória dePortugal. (...)

Se os filólogos portugueses são os primeiros a reconhecer, com absoluta lealdade, quefalamos um dialecto do português e, portanto, uma língua que se destacou de sua origem

 peninsular, não poderemos nós ser mais realistas do que o rei, ou, no caso, do que os reis da

lingüística portuguesa. (...)Glorifiquemos, assim, as duas línguas e não somente a portuguesa, criando direitos eobrigações recíprocas.

 Não é possível anular o fenômeno lingüístico no Brasil; muito menos transigir numassunto que tanto interessa à formação nacional”.5

E, em seguida, o depoimento de Machado:

1 CÂMARA JUNIOR, J. Mattoso, 1976. História e estrutura da língua portuguesa. 2.ed., Rio de Janeiro, Padrão – Livraria Editora, p. 30-12 RIBEIRO, João. 1933. A língua nacional. Notas aproveitáveis.2.ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional.3 Op. cit., nota 2, p. 8-104 MACHADO, José Pedro. (s.d.) O português do Brasil. Coimbra, Coimbra Editora (colecção

Universitas).5 Op. cit., nota 4, p.22-3

Page 13: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 13/43

“Não foi pequeno o eco do discurso de Sr. Cassiano Ricardo. Os jornais publicaram-no integralmente e até o   Estado de São Paulo procedeu a um inquérito entre alguns

 publicistas e intelectuais brasileiros.Como tem sucedido várias vezes, também aqui as opiniões se dividiram: para um lado

os defensores do idioma brasileiro, para o outro os seus adversários.

Infelizmente não se lembraram de tomar aquela atitude (...) que, afinal, parece tãoevidente, tão lógica, que muito surpreende não ter sido a adoptada: em vez de se ouvirem pessoas, com certeza distintas nas suas especialidades, mas pouco versadas neste, por que nãose pediu a opinião dos filólogos? (...)

O facto de não considerar  língua brasileira, mas dialectos brasileiros, não quer dizer que eu ponha em dúvida a justiça da independência brasileira (o que seria estupidamenteabsurdo), nem tão-pouco ofender os brios patrióticos dos nossos irmãos de além-Atlântico.

Devemos, no entanto, afastar todos os sentimentos para alcançar um objecto que, semessa medida prévia, aparecerá diante dos nossos olhos rodeado de espessas névoas oudeturpado. (...)

Eu sou da opinião de Sílvio Elia: ‘A fuga para a Europa ou o recolhimento na taba do

índio são duas soluções cômodas, mas em desacordo com o ser nacional’”6

O texto de Machado fala por si mesmo. O posicionamento que o autor assume emtorno de uma política lusitana da língua portuguesa ecoa em cada passagem, embora ele

 procure enfatizar o poder decisório dos filólogos que poria fim a discursos, como o proferido pelo poeta. E é justamente em um breve comentário sobre Cassiano Ricardo, em nota derodapé,..., que Machado mais fortemente revela seu descaso pelos que apregoam a existênciade uma língua brasileira nacional individuada. Assim se expressa o autor nessa nota de pé de

 página:“Lembro que o nome do ilustre acadêmico não é, nem pode ser, desconhecido. Trata-

se de um poeta, cuja glória foi coroada com aquele admirável Martim Cererê, dedicado aoBrasil-menino. Nessas páginas, ao lado da simplicidade tão bela, aparece-nos um portuguêsrazoável.

Por isso, ocorre perguntar: Por que não emprega o delicado poeta nas suas obras uma

língua absolutamente diferente da minha? Além de justificar a existência do ‘dialectodignificado’, tornava-se coerente com o teor do discurso feito na Academia Brasileira”.

(Ênfase acrescida pelo autor.) Temos, pois, ...quatro diferentes posições sobre a questão dalíngua nacional.”

F.T. Tempos Lingüísticos: itinerário histórico da língua portuguesa.

Tema: Nacionalismo e globalização: o papel da cultura e a política do idioma

1998 (guia de 1999)Leia os textos que se seguem:

Texto 1 – Fazedores de desertos

É natural que todos os dias chegue do interior um telegrama alarmante denunciando orecrudescer do verão bravio que se aproxima. Sem mais o antigo ritmo, tão propício àsculturas, o clima de S. Paulo vai mudando.

 Não o conhecem mais os velhos sertanejos afeiçoados à passada harmonia de umanatureza exuberante, derivando na intercadência firme das estações, de modo a permitir-lhes

fáceis previsões sobre o tempo.6 Op. cit., nota 4, p. 23-8

Page 14: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 14/43

As suas regras ingênuas enfeixadas em alguns ditados que tinham, às vezes, rigorismode leis falham-lhes, hoje, em toda a linha: passam-lhes estéreis, as luas novas trovejadas;diluem-se-lhes como fumaradas secas as nuvens que ao entardecer abarreiram nos horizontes;varrem-lhes as ventanias súbitas a poeira líquida das neblinas que se adensam de manhã, pelotopo dos outeiros; e em plena primavera, agora, sob o alastramento das soalheiras fortes,  o

aspecto de suas plantações, esfolhadas e esfloradas, principia a ser desanimador, revelando,antes do estilo franco, esse período máximo à vida vegetativa que, nos países quentes, está nodesequilíbrio entre a evaporação intensa pelas folhas e a absorção escassa, e cada vez menor,

 pelas raízes. (...)Mas é natural o fenômeno. Nem é admissível que ante ele se surpreendam os nossos

lavradores, primeiras vítimas dessa anomalia climática.Porque há longos anos, com persistência que nos faltou para outros empreendimentos,

nós mesmos a criamos.Temos sido um agente geológico, nefasto, e um elemento de antagonismo

terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia.É o que nos revela a história.

Foi a princípio um mau ensinamento do aborígine. Na agricultura do selvagem erainstrumento preeminente o fogo. Entalhadas as árvores pelos cortantes dgis de diorito, eencoivarados os ramos, alastravam-lhes por cima as caitaras crepitantes e devastadoras.Inscreviam, depois, em cercas de troncos carbonizados a área em cinzas onde fora a matavicejante; e cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que,exaurida, aquela mancha de terra fosse abandonada em caapuera, jazendo dali por diante paratodo sempre estéril, porque as famílias vegetais, renovadas no terreno calcinado, eram semprede tipos arbustivos diversos das da selva primitiva. (...)

Veio depois o colonizador e copiou o processo. Agravou-o ainda com se aliar aosertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e de ouro.

Afogada nos recessos de uma flora que lhe abreviava as vistas e sombreava as tocaiasdo tapuia, dilacerou-a, golpeando-a de chamas, para desvendar os horizontes e destacar, bem

 perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam balizando arota das bandeiras.

Atacaram a terra nas explorações mineiras a céu aberto; esterilizaram- na com o lastrodas grupiaras; retalharam-na a pontaços de alvião; degradaram-na com as torrentes revoltas; edeixaram, ao cabo, aqui, ali, por toda a banda, para sempre áridas, avermelhando nos ermoscom o vivo colorido da argila revolvida, as catas vazias e tristonhas com o seu aspectosugestivo de grandes cidades em ruínas...

Ora, tais selvatiquezas atravessaram toda a nossa história.Mais violentas no Norte, onde se firmou o regímen pastoril nos sertões abusivamente

sesmados, e desbravados a fogo - incêndios que duravam meses derramando-se pelaschapadas em fora - ali contribuíram para que se estabelecessem, em grandes tratos, o regímendesértico e a fatalidade das secas.

O sul subtraiu-se em parte à faina destruidora, que o próprio governo da metrópole,em sucessivas cartas régias, procurou refrear, criando mesmo juizes conservadores das matasque impedissem a devastação.

o mesmo sistema de culturas largamente extensivas, porém, as lavouras parasitáriasarrancando todos os princípios vitais da terra sem lhes restituir um único, foram, pouco a

 pouco, remodelando-lhe as paragens mais férteis, transmudando-as e amaninhando-as. (...)As conseqüências repontam, naturais.A temperatura altera-se, agravada nesse expandir-se de áreas de insolação cada vez

maiores pelo poder absorvente dós nossos terrenos desnudados, cuja ardência se transmite por contacto aos ares, e determina dois resultados inevitáveis: a pressão que diminui tendendo

Page 15: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 15/43

 para um minimum capaz de perturbar o curso regular dos ventos, desorientando-os pelosquatro rumos do quadrante, e a umidade relativa que decresce, tornando cada vez mais

 problemáticas as precipitações aquosas.

De sorte que o sueste - regulador essencial do nosso clima - depois de transmontar a

Serra do Mar, onde precipita grande cópia de vapores, ao estirar-se pelo planalto, vaiencontrando atmosfera mais quente do que dantes, cujo efeito é aumentar-lhe a capacidadehigrométrica, diminuindo na mesma relação as probabilidades de chuvas.

São fatos positivos, irrefragáveis, e bastam para que se explique a alteração de umclima.

Mas apontemos um outro. Neste entrelaçamento de fatores climáticos, introduzimos um - artificial e de todo fora

das indagações meteorológicas normais - a queimada.É transitória, mas engravece os perigos.De feito, a irradiação noturna contrabate a insolação: a terra devolve aos céus o

excesso de calor acumulado; resfria; e o orvalho decorrente ilude de algum modo a carência

das chuvas.Ora, as queimadas impedem esse derivativo único.As colunas de fumo, rompentes de vários lugares, a um tempo, adensam-se no espaço

e interceptam a descarga do solo. Desaparece o sol e o termômetro permanece imóvel ou, de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo: a terra irradia com um sol obscuro, porque sesente uma impressão estranha de faúlhas invisíveis, mas toda a ardência reflui sobre elarecambiada pelo anteparo espesso da fumaça; e mal se respira do bochorno inaturável em quetoda a adustão golfada pelas soalheiras e pelos incêndios, se concentra numa hora única danoite. (...)

Hoje, Thomas Buckle não entenderia as páginas que escreveu sobre uma natureza queacreditou incomparável no estadear uma dissipação de força, wantoness of powe1; comesplendor sem par.

Porque o homem, a quem o romântico historiador negou um lugar no meio de tantasgrandezas, não as corrige, nem as domina nobremente, nem as encadeia num esforçoconsciente e sério.

Extingue-as. (Euc1ides da Cunha. O Estado de São Paulo, 21/10/1901)

Texto 2 – O alerta da históriaComo se acabou com mais de 90% da grande floresta do litoral brasileiro

Estréia neste verão, no sul da Bahia, uma ponte entre o passado e o futuro da MataAtlântica. Tem 110 metros, a distância de um gol a outro do Maracanã. Programa para dezsegundos, em campo aberto e velocidade olímpica. Mas ali a travessia, a passos regulados

 pelo balanço de uma ponte pênsil rangendo a 20 metros de altura, entre copas centenárias quemeio século atrás atapetavam inteiramente o município de Uma, o tempo tem outra medida. Écontado em angelins, jequitibás, oitis, copaíbas, ipês, baraúnas, jueranas, louros, canelas emaçarandubas, cada árvore que, durante o trajeto, o olho leigo aprende a distinguir na

 barafunda verde da floresta. Naquele litoral, os naturalistas registraram há poucos anos orecorde planetário de 450 espécies vegetais por hectare. E, perto de lá, num inventário de 500anos atrás, o escrivão Pero Vaz de Caminha atestou: “O arvoredo é tanto e tamanho e tão

 basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular.”

Debruçada sobre essa amostra da eternidade, a passarela foi construída com doaçõesinternacionais e tecnologia canadense para que os visitantes contemplem por que aquela

Page 16: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 16/43

Page 17: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 17/43

Os negros americanos fizeram-se chamar afro-americanos. Os índios de nativos. E os gays preferem ser chamados de homossexuais – mas já foi o contrário, e é preciso ficar atento paranão parecer politicamente incorreto.

Fosse apenas o pecado da palavra e estava tudo muito bem. O problema é que o PC,no afã de justiça cega que caracteriza o movimento, colocou na universidade legiões de alunos

despreparados e incapazes de aprender. Preteriram-se alunos brilhantes em favor de outros pouco dotados intelectualmente. Os escolhidos tinham como virtude acadêmica apenas o fatode ser negros, latinos ou mulheres e estar grávidas. Também as empresas foram obrigadas acontratar levas de candidatos piores apenas porque eles se encaixavam no figurino

 politicamente correto. Nos últimos dois anos, tanto as universidades quanto as empresasconseguiram na Justiça retomar um pouco do poder de admitir alunos e funcionários não com

 base em cotas étnicas, mas na boa e velha competência. “Para isso, quem não sabe, uma dica:os PCs são tão fanáticos quanto a juventude hitlerista”, lembra Camille Paglia. A origemfilosófica do movimento pode se encontrada, na verdade, em outra freguesia tão totalitária edirigista quanto a de Hitler, a China de Mao Tse-Tung. A idéia de carimbar um adversário

 político ou qualquer pessoa indesejável ao regime com o selo de politicamente incorreto foi

um poderoso instrumento de dominação ideológica utilizado por Mao. A idéia foi apropriada pelos militantes das minorias étnicas dos Estados Unidos, em seguida caiu no gosto dasfeministas radicais e dos estudantes politizados. O escritor David Horowitz, autor de Radical 

Son (Filho Radical), livro lançado em abril nos Estados Unidos e que faz uma das melhoresanálises dos descaminhos da esquerda americana, levanta um ponto interessante. Horowitzespanta-se com o fato de que o politicamente correto, embora seja na raiz um movimento deesquerda radical, se viabilizou no país com a ajuda das mais conservadoras instituiçõesamericanas, as grandes empresas e as fundações de apoio ao ensino e pesquisa.

Eurípedes Alcântara. Veja, 26 de Agosto, 1998.

 NovilínguaAnalfabeto – marginalizado em relação Gordo - generosamente modeladoà cultura eurocêntrica Podre - economicamente marginalizadoAnimal selvagem – não humano que Politicamente correto - a própriavagueia livremente expressão deixou a ser "politicamenteAntiaborto – pró-vida correta". Melhor usar culturalmenteBranco – pobre em melanina sensívelCorrupto – eticamente diferente Prisioneiro - cliente do sistemaFeio – cosmeticamente diferente correcional

Fome – déficit nutricional Saqueador - consumidor não tradicionalGastador – pupador negativo Viciado em drogas - privado de

sobriedade

Texto 2Exclusão semântica

Quando o primeiro foguete espacial Ariane 5 explodiu no lançamento, a comunicaçãoao público foi a seguinte pérola, que porta-voz algum faria melhor: “O vôo do Ariane 5 nãoresultou na validação do novo vetor europeu”. E de um coronel da Força Aérea americanatemos a seguinte, a respeito dos aceleradores dos foguetes, mimosos objetos pesando 135toneladas: “Eles exercem uma força explosiva no impacto sobre uma superfície que ésuficiente para exceder o limiar aceito de sobrepressão dos danos fisiológico ao pessoal

Page 18: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 18/43

exposto”. Eu, matogrossense simplório, imaginaria que, se caísse sobre a cabeça de alguém,causaria um belo galo...

Exemplos divertidos não faltam por aí, e muitos estudiosos sérios descobrem o humor involuntário desses convolutos exercícios de expressão. Mas o assunto da semântica vai muitoalém da brincadeira. Não sem motivo, um dos grandes lingüistas deste século, D. Bolinger,

deu a um de seus livros este extraordinário título: “Linguagem, uma Arma Carregada”, quefoi naturalmente muito aperfeiçoada pelos totalitarismos e autoritarismos de todos os sexosimagináveis, desenvolvidos, subdesenvolvidos ou neutros. E ninguém se especializou mais nacriação de slogans do que as esquerdas, de Lênin ao “Grande Pai” Stalin. As esquerdas

 brasileiras não ficaram atrás, a ponto de o presidente Castello Branco lhes reconhecer trêscapacidades especiais: de organizar manifestações de rua, desorganizar a economia e fabricar slogans.

E, para ninguém dizer que só se distinguiram aquelas grandes figuras de esquerda, aCNN acaba de informar que o presidente Clinton e os líderes da maioria republicana noCongresso americano, Trent Lott e Newt Gringrich, receberam do Conselho Nacional dosProfessores de Inglês o “Prêmio Nacional da Dupla Fala” (“Doublespeak”), pela linguagem

escorregadia e ambígua com que descrevem o acordo deste ano sobre o orçamentoequilibrado (que se vai traduzir no aumento do endividamento federal).

Como se sabe, quem primeiro usou o termo “dupla fala”, em conexão com crimes de pensamento, foi George Orwell, o grande escritor inglês, cuja a firme integridade o levou, primeiro, a lutar de armas na mão pela causa da esquerda nos campos de batalha da GuerraCivil Espanhola,e, depois, a denunciar as traições e intrigas das facções a serviço soviético.Isso lhe custou ser vítima de uma dos mais canalhas “patrulhamentos” da intelectualidadesocialista do tempo. (...)Roberto Campos. Folha de S. Paulo, 29 de novembro de 1998.

Texto 3

Cegueira brasileiraO politicamente correto não ridiculariza os EUA,

Como se pensa comumente

É surpreendente a facilidade com que, no Brasil, especialmente nos meios jornalísticose entre intelectuais, idéias preconcebidas, fantasiosas e supostamente críticas se generalizam eacabam, por absoluta falta de contestação, ganhando o status de realidade.

Um dos exemplos mais impressionantes do desconhecimento travestido de sensocrítico é a imagem que se criou, entre nós, do que seja a sociedade norte-americana,

 particularmente, do que significa, nos EUA, o politicamente correto. Supõe-se, em geral, que

o país – tratado, freqüentemente, como um bloco indiferenciado – esteja inteiramentedominado por leis repressivas que cerceiam a liberdade individual, enrijecem as relações entrehomens e mulheres, abalam a espontaneidade e destroem o senso de humor.

Do que exatamente estamos falando, quando nos referimos ao politicamente correto?Trata-se somente de uma série de normas que asfixiam o vocabulário, restringem as relaçõesinterpessoais e substituem a competência pelo sistema de cotas? Alguém acredita, de fato, quea sociedade norte-americana passou a se devotar, gratuitamente ao exercício da autocontençãoe à disseminação de um vocabulário repleto de ridículos eufemismos? Não é curioso, senãomelancólico, o fato de repetirmos os mesmos velhos comentários, pretensamente argutos,sobre o politicamente correto, tantos anos depois de o debate ter-se iniciado e diversificadonos EUA?

Para evitar a hegemonia de uma visão unilateral, sugiro abordarmos o tema de formaum pouco menos provinciana: em primeiro lugar, não podemos esquecer que, a despeito de

Page 19: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 19/43

Page 20: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 20/43

Page 21: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 21/43

A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos (e em certo sentidotambém a Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com osoutros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada,em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônionecessário.

Foi a partir da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois paísesentraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos peculiares de sua história e desua formação espiritual. Surgiu, assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria, em algunssentidos, quase à margem das congêneres européias, e sem delas receber qualquer incitamentoque já não trouxesse em germe.

Quais os fundamentos em que assentam de preferência as formas de vida social nessaregião indecisa entre a Europa e a África, que se estende dos Pirineus a Gilbraltar? Comoexplicar muitas daquelas formas, sem recorrer a indicações mais ou menos vagas e que jamaisnos conduziram a uma estrita objetividade?

Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”

Em entrevista a um jornal carioca,  A Noite, publicada em dezembro de 1925, o autor de Macunaíma [Mário de Andrade] constata, repondo o “lá” e o “cá” nos seus devidoslugares: “O modernista brasileiro matou a saudade pela Europa, a saudade pelos gênios, pelosideais, pelo passado, pelo futuro, e só sente saudade da amada, do amigo...” Para Mário, amelancolia da separação só é passível de ser cultivada no cipoal das relações pessoais. Foradisso, traduz o “desacomodamento” do brasileiro com a realidade ambiente. Daí, segundoMário, a necessidade que o jovem brasileiro tem de “sentir e viver o Brasil não só na suarealidade física mas na sua emotividade histórica também.” Mário estava dando os primeiros

 passos na longa caminhada de “abrasileiramento do Brasil”.

Silviano Santiago, “Introdução a intérpretes do Brasil.”

1. semestre 2003

Texto I Nossa revolução

Sérgio Buarque de HolandaO Estado, entre nós, não precisa e não deve ser despótico – o despotismo condiz mal

com a doçura do nosso gênio – mas necessita de pujança e compostura, de grandeza esolicitude, ao mesmo tempo, se quiser adquirir alguma força e também essa respeitabilidade

que os nossos pais ibéricos nos ensinaram a considerar a virtude suprema entre todas. Eleainda pode conquistar por esse meio uma força verdadeiramente assombrosa em todos osdepartamentos da vida nacional. Mas é indispensável que as peças de seu mecanismofuncionem com certa harmonia e garbo. O Império brasileiro realizou isso em grande parte. Aauréola que ainda hoje o cinge, apesar de tudo, para os nossos contemporâneos, resulta quaseexclusivamente do fato de ter encarnado um pouco esse ideal.

A imagem de nosso país que vive como projeto e aspiração na consciência coletivados brasileiros não pôde, até hoje, desligar-se muito do espírito do Brasil imperial; aconcepção de Estado figurada nesse ideal não somente é válida para a vida interna danacionalidade como ainda não nos é possível conceber em sentido muito diverso nossa

 projeção maior na vida internacional. Ostensivamente ou não, a idéia que de preferência

formamos para nosso prestígio no estrangeiro é a de um gigante cheio de bonomia superior  para com todas as nações do mundo. Aqui, principalmente, o segundo reinado antecipou,

Page 22: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 22/43

Page 23: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 23/43

É claro que a necessidade de boa ordem entre os cidadãos e a estabilidade do conjuntosocial tornaram necessária a criação de preceitos obrigatórios e de sanções eficazes. Emtempos talvez mais ditosos do que o nosso, a obediência àqueles preceitos em nada se parececom o cumprimento de um dever imposto. Tudo se faz, por assim dizer, livremente e semesforço. Para o homem a que chamamos primitivo, a própria segurança cósmica parece

depender da regularidade dos acontecimentos; uma perturbação desta regularidade temqualquer coisa de ominoso. Mais tarde, essa consideração da estabilidade inspiraria afabricação de normas, com o auxílio precioso de raciocínios abstratos e ainda aqui foramconveniências importantes que prevaleceram, pois, muitas vezes, é indispensável abstrair davida para viver e apenas o absolutismo da razão pode pretender que se destitua a vida de todoelemento puramente racional. Em verdade, o racionalismo excedeu os seus limites somentequando, ao erigir em regra suprema os conceitos assim arquitetados, separou-osirremediavelmente da vida e criou com eles um sistema lógico, homogêneo, a-histórico. (...)Colocado no pólo oposto à despersonalização democrática, o “caudilhismo” muitas vezes seencontra no mesmo círculo de idéias a que pertencem os princípios do liberalismo.

Pode ser a forma negativa, da tese liberal, e seu surto é compreensível se nos

lembramos de que a história jamais nos deu o exemplo de um movimento social que nãocontivesse os germes de sua negação — negação esta que se faz, necessariamente, dentro domesmo âmbito.

Assim, Rousseau, o pai do contrato social, pertence à família de Hobbes, o pioneiro doEstado Leviatã; um e outro vêm da mesma ninhada. A negação do liberalismo, inconscienteem um Rosas, um Melgarejo, um Porfírio Diaz, afirma-se hoje como corpo de doutrina nofascismo europeu, que nada mais é do que uma crítica do liberalismo na sua forma

 parlamentarista, erigida em sistema político positivo. Uma superação da doutrina democráticasó será efetivamente possível, entre nós, quando tenha sido vencida a antítese liberalismo-caudilhismo.

Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, osfundamentos personalistas e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda se assentanossa vida social. Se o processo revolucionário a que vamos assistindo, e cujas etapas maisimportantes foram sugeridas nestas páginas, tem um significado claro, será este o dadissolução lenta, posto que irrevogável, das sobrevivências arcaicas, que o nosso estatuto de

  país independente até hoje não conseguiu extirpar. Em palavras mais precisas, somenteatravés de um processo semelhante teremos finalmente revogada a velha ordem colonial e

 patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continuaa acarretar.

(Raízes do Brasil. 24.ª ed. p. 126-142.)

Texto IIA questão da cidadania num universo relacionalRoberto DaMatta

Tome-se, por exemplo, um caso imaginário mas significativo. Como seria a chegadado grande observador Alexis de Tocqueville no Rio de Janeiro de hoje, entrando peloAeroporto Internacional do Galeão?

Veria, primeiramente, um sorriso luminoso das funcionárias de terra, moças elegantesnos seus bem talhados costumes, todas dispostas a contar uma anedota sobre o vôo ou fazer uma confidência espirituosa sobre a linha aérea para a qual trabalham. Seriam até mesmocapazes de chamar o nosso aristocrata francês de Alex, pois na conversa formal para a

intimidade a distância é tênue no Brasil. Encantado com esta recepção um tanto informal,Tocqueville baixaria por meio de uma escada rolante moderna para um outro andar. E, então,

Page 24: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 24/43

  já significativamente por baixo, entraria numa fila para a apresentação do seu passaporte àPolícia Marítima e de Fronteira e outros corpos da nossa segurança pública. Com calor, eentrando numa gigantesca fila, ele (...) se perguntaria por que os brasileiros natos não seriam

 privilegiados em sua própria pátria, já que todos os países modernos dão aos seus cidadãosum conjunto de deveres, mas se abrem igualmente no reconhecimento de seus direitos,

fazendo isso de modo franco, com satisfação. No Brasil, escreveria mais tarde Tocqueville noseu famoso diário de viagem: “a cidadania é definida negativamente neste país, visto que brasileiros natos têm de gramar na fila interminável para o controle dos passaportes, tantoquanto qualquer estrangeiro...” Ato contínuo a essa observação, ele notaria a total ausência desinais de boas-vindas, tão comuns nos outros aeroportos internacionais do planeta. Diriaintrigado de si para si: interessante como fui acolhido com intimidade pelas funcionárias láem cima e agora, aqui embaixo, estou sendo simbolicamente repelido do modo o maisimpessoal. É como se uma das mãos lavasse a outra...

Logo depois, entretanto, e já impaciente com a morosidade da fila, Tocqueville notariamais intrigado ainda uma chamada de nomes! É que funcionários da polícia, devidamenteidentificados, gritam por nomes de passageiros. Alguns logo se apresentam e, com abraços ou

apertos de mãos, saem incontinente da fila, ganhando o espaço livre onde estão a alfândega esuas maletas. Inicialmente, o nosso observador francês pensa que esses são passageirosilustres, talvez milionários, celebridades ou nobres. Mas logo descobre, perplexo, que muitossão simplesmente amigos ou parentes de pessoas que trabalham naquele local ou que têmamigos que ali trabalham. São, pois, aristocratas por acidente, mas o fato é que deixam todoscom inveja quando saem da fila com ar meio envergonhado, mas felizes. Suado, cansado deesperar e intrigado com esse novo país que terá de entender, Alexis de Tocqueville bem

 poderia escrever na sua caderneta de campo: “Curioso país esse Brasil, feito de um credoliberal tão alardeado na base de suas instituições jurídicas, mas operando de modo a

  privilegiar as relações pessoais de modo tão flagrante. Vi na chegada ao Rio oestabelecimento de hierarquias inesperadas entre as pessoas, só porque algumas tinhamconhecidos ou parentes entre os funcionários do aeroporto. Assim sendo, tais indivíduos eramchamados e deixavam as filas, mesmo quando tinham nos seus empregos e ocupações uma

 posição menos importante que a de muitas pessoas que continuavam nas filas. Observei,continuaria ele, que ser estrangeiro dava direito imediato a melhor tratamento do que ser umnativo. De fato, verifiquei que meu passaporte francês era quase mágico, evitando maioresdelongas junto ao funcionário que manipulava um moderníssimo computador cujo banco dedados fica à disposição da polícia. Curioso, concluiria novamente o nosso imaginário e

 perplexo Alexis de Tocqueville, que num país tão pobre de recursos os bancos de dados ultramodernos tenham sido implantados primeiramente para o controle policial dos cidadãos do

 país e até hoje a pesquisa científica vegete em busca de verbas para essas máquinas. Será que

o liberalismo brasileiro tem uma bela teoria da igualdade, mas na prática tudo é diferente?”Mas qual será a moral da nossa fábula? Ora, ela nos diz que, em situações históricas esociais diferentes, a mesma noção de cidadania, o mesmo conceito de indivíduo engendram

 práticas sociais e tratamentos substancialmente diversos. E para complicar um pouco mais ascoisas, revelando como elas não são nem estanques, nem lineares, pode-se pensar aindanaquilo que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cidadania regulada”, uma forma decidadania mais ou menos às avessas (como essa que mencionei acima), que: (a) seriareconhecida e definida por uma lei outorgada pelo Estado; e (b) estaria ligada a um “sistemade estratificação ocupacional” e “não a um código de valores políticos” (Cf. dos Santos,1979:75). O resultado é uma nítida distinção de certas categorias ocupacionais que passaram ater mais direitos que outras, gozando mais cedo e melhor de certos direitos universais (como

férias e direitos de pertencer a um sindicato) que estariam teoricamente ligados à idéia geraldo trabalhador-cidadão. Isso mostra como o papel do cidadão e a noção política de cidadania

Page 25: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 25/43

 podem ser diferencialmente acoplados em sociedades diferentes e até mesmo num só sistemasocial. Mas o que o caso brasileiro inegavelmente revela é que a noção de cidadania sofre umaespécie de desvio, seja para baixo, seja para cima, que a impede de assumir integralmente seusignificado político universalista e nivelador (Cf. DaMatta, 1979: 184 ss; Peirano, 1982, paraconsiderações semelhantes).

(A casa e a rua. p. 7 –104 – com adaptação).

Parte I - ResumoResuma, em 200 a 250 palavras, exclusivamente com base nos textos I e II, a resposta àsquestões formuladas por Roberto DaMatta em continuação ao texto II.“Mas qual é o mecanismo social para que tal variação venha a ocorrer? Ou melhor: por que anoção de cidadania sofre tal variação no Brasil, quando o que a caracteriza em sociedadescomo a inglesa, a francesa e a norte-americana é a sua invejável estabilidade?” (valor: 40

 pontos)

Parte II – Redação

Valendo-se da leitura dos textos I e II, disserte sobre o tema suscitado no seguinte trechoextraído de “Nativismo provisório”, de Euclides da Cunha:

“O nosso anti-localismo frisa pela parcialidade. Não há aplausos que nos bastem aosforasteiros disciplinados que nos últimos tempos transfiguraram as nossas culturas e sevincularam aos nossos destinos, nobilitando o trabalho e facilitando a maior reforma social donosso tempo. Somos adversários do nativismo sentimental e irritante, que é um erro, umafraqueza e uma velharia contraposta ao espírito liberal da política contemporânea. A este

 pseudo patriotismo, para o qual Spencer, na sua velhice melancólica e desiludida, criou a palavra “diabolismo”, deve antepor-se um lúcido nacionalismo, em que o mínimo desquerer ao estrangeiro, que nos estende a sua mão experimentada, se harmonize com os máximosresguardos pela conservação dos atributos essenciais da nossa raça e dos traços definidores danossa gens complexa, tão vacilantes, ou rarescentes na instabilidade de uma formaçãoetnológica não ultimada e longa. E ainda quando nos turbasse um esmaniado jacobinismo,todo ele ruiria ao defrontar o quadro da imigração do Brasil: homens de outros climas queaqui se nacionalizam consorciados com a terra pelos vínculos fecundos das culturas.”Extensão: de 400 a 500 palavras.(valor: 60 pontos)

2. semestre 2003 – Democracia x República

 

Questão 1:Valendo-se da leitura dos textos I e 11, disserte sobre o tema suscitado por RenatoJanine Ribeiro no seguinte trecho:"Não há política digna de seu nome, hoje, que não seja democrática e republicana. Mas háuma forte tensão entre esses dois ideais. A república é o regime no qual prevalece o bemcomum, o que exige o sacrificio ou a contenção dos desejos e interesses privados. Já a forçada democracia, hoje, e seu caráter popular estão justamente no fato de que ela

mobiliza o desejo de ser mais - e sobretudo o desejo de ter mais."Extensão: de 450 a 600 palavras. Valor: 70 pontos.

Page 26: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 26/43

 

Texto I

A temática republicana se diferencia, no ceme de sua definição, da democrática. Se há

um tema que aparece constantemente, quer nos pensadores republicanos de Roma, quer naobra de Montesquieu quando reestuda aquele Estado, é o da renúncia às vantagens privadasem favor do bem comum e da coisa pública - renúncia esta a que Montesquieu dá o nome devertu, que me parece adequado traduzir por abnegação. Trata-se, para o autor do Espírito dasLeis, de uma qualidade antinatural - dado que nossa natureza nos faria seguir as inclinaçõesde nosso desejo para ter e ter mais -, construída por intensa educação.Assim, para resumirmos, poderíamos dizer que, enquanto a democracia tem no seu cerne oanseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do queela, sendo, portanto, um regime do desejo, a república tem no seu âmago uma disposição aosacrificio, proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular.Evidentemente, é possívél criticar a república, dizendo-se que o suposto bem comum é, na

verdade, um bem de classe, e que os sacrificios que se fazem em nome da Pátria sãodesigualmente repartidos e, sobretudo, jamais põem em xeque a dominação de um pequenogrupo sobre a maioria. Mas o que eu gostaria de enfatizar na temática republicana é a idéia dedever que nela está saliente.Talvez a grande dificuldade do pensamento democrático tenha estado, por muito tempo, emarticular a sua temática do desejo -no caso, o desejo das massas por ter mais - com anecessidade de que elas não se limitem a tomar os bens de que se sentem privadas e, com isso,injustiçadas, -mas também se proponham conguistar o poder. A disputa pelos bens salda-se

 por um fracasso quando não se desdobra - e se fundamenta - na luta pelo poder. Isso vemosclaramente na epopéia dos irmãos Graco, que se batem, na Roma republicana e socialmentedesigual, por uma reforma agrária, porém terminam, um e depois o outro, derrotados eassassinados pela classe senatorial a que pertenciam e que os viu como traidores.A questão é um pouco complicada, porque na verdade é no desejo que, seja na Europa doséculo XIX, seja hoje no mundo todo, cintila a essência da luta social. Não reclamam asmassas porque se vejam privadas de participação no Parlamento, no Executivo ou noJudiciário: o que as mobiliza é a privação do que é essencial para a vida, ou, em nossos dias,cada vez mais, a falta que lhes faz um supérfluo que se tomou essencial. Desse, o melhor significante é o tênis de qualidade, cujo roubo funciona, nas grandes metrópoles do mundo

 pobre, como o preciso sinal de como a política se joga no dia-a-dia do desejo. A inveja dotênis, assim, é talvez o motor das lutas sociais nas periferias, mais do que nunca o foi a

 propalada inveja do pênis em sua versão freudiana e anti-feminista... Mas, se é no desejo que

eclode o caráter social da luta política, ele é insuficiente para dar-lhe vazão e solução. E isso,  porque a luta pelo excedente, pelo que constitui a desigualdade, só na aparência é umcombate pelo que sobra, pelo resto, pelo excesso: ela é, na verdade, a batalha pelo centro, pelomando, pelo poder.Vejamos que o problema é duplo. A ficarmos no plano do desejo, o risco é enorme de que nãosaibamos encaminhar a sua possível, ainda que sempre incompleta, realização. Mas, a nosapressarmos em resolvê-Io, perdemos por completo a noção do que está em jogo. É o queacontece quando, rápido demais, se procura traduzir o descontentamento popular em termosde suas possíveis soluções: por exemplo, como dizia acima, aumentar sua participação noLegislativo, no Executivo, melhorar o Judiciário, a polícia. O desejo tem seu tempo. suademora paradoxalmente. ele surge apressado, urgente, porém toda a tentativa veloz de

traduzi-lo em outra linguagem se salda por fracasso. Ou o saciamos, e aí a velocidade temsentido, ou ele amadurece e se modifica, e aí há que respeitar um tempo, uma dilação.

Page 27: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 27/43

Renato Janine Ribeiro. "Democracia versus República: a questão do desejo nas lutas sociais".

Texto 2

 DUPLO PROBLEMA DA DEMOCRACIA

O problema da viabilidade

Desde sua emergência na Grécia clássica, o regime democrático defrontou com umduplo problema básico: o problema de sua viabilidade empírica e o problema de sua validade.

Consideremos, brevemente, o primeiro problema. O que está em jogo, basicamente,é a questão de se saber como é possível que venha a prevalecer o princípio democrático, nacultura política de uma sociedade, e, sobretudo, como pode vir a ser efetivamenteimplementado, ante as desigualdades sociais observáveis em todas as sociedades não-

 primitivas.Essa questão envolve a ambigüidade, inerente ao sistema democrático, entre demos

como povo soberano e demos como massa de pobres. Foi por entender que, num sistema puramente democrático, os pobres se valeriam de sua superioridade numérica para impor,  pela Assembléia, medidas expropriativas dos ricos, assim gerando insanáveis eautodestrutivos conflitos sociais, que Aristóteles condenou tal regime como malsão.Importava, segundo o estagirita, estabelecer um equilíbrio entre os princípios dademocracia, tendencialmente asseguradores das liberdades públicas e da participação

 popular, e os da monarquia e aristocracia, tendencialmente aseguradores de certas ormassociais de excelência e preservadores de condições que permitam modalidades razoáveis deacumulação e de preservação da riqueza.

Vista essa questão em seu âmbito mais amplo, o que ela apresenta, tanto teórica como praticamente, é uma inerente propensão ao conflito entre os princípios da igualdade e daliberdade, ambos constituindo elementos necessários do regime democrático.

 Na medida em que, em dada sociedade, exista significativa taxa de desigualdadesocialo que empiricamente sempre tende a ocorrer -, a tensão entre minorias ricas emaiorias pobres constitui-se em algo de inevitável. Em face de tal tensão, uma dasalternativas é a de que as maiorias pobres, num regime democrático, logrem, ematendimento a seus interesses, impor às minorias ricas medidas redistributivas inaceitáveis

  para estas, assim gerando os insanáveis conflitos a que se refere Aristóteles. A outraalternativa é a de que as minorias ricas, por mais aptas ao exercício do controle social,limitem eficazmente a capacidade de participação das massas, preservando a riqueza e o

 predomínio político das minorias, mas, em tal caso, cerceando as liberdades democráticas eimpedindo que a direção da sociedade exprima a vontade da maIona.

A democracia, como forma de direção da sociedade, é um regime que implica,idealmente, a otimização da liberdade e a minimização da desigualdade. Se a minimizaçãodesta é empiricamente insuficiente, ou a liberdade de muitos tende a oprimir a dos poucos,ou a dos poucos tende a oprimir a de muitos.

O problema da validadeIndependentemente de seu problema de viabilidade, sucintamente referido no tópico

 precedente, a democracia apresenta, também, um sério problema em termos de sua validade.As decisões públicas, para que subsista uma sociedade, devem atender a um satisfatório nívelde competência técnica e de consistência axiológica. Se a maioria adota decisõestecnicamente incompetentes, a sociedade reduzirá, correspondentemente, a eficácia de seu

Page 28: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 28/43

relacionamento com a natureza, com outras sociedades ou consigo mesma. No limite da possibilidade, a incompetência técnica conduz a desastres naturais, militares, políticos ousociais, que podem aniquilar uma sociedade.

Por sua vez, as relações entre a ordem moral e a social não são apenas ornamentais. Écerto que a experiência histórica e a contemporânea indicam que as sociedades podem ser 

expostas a alarmantes graus de desrespeito das normas morais sem que, de imediato, ocorram,necessariamente, significativas conseqüências sociais. Os antológicos abusos de certosimperadores romanos ou de dirigentes contemporâneos como Stalin e Hitler são exemplos decomo as mais graves violações da justiça e de princípios éticos básicos podem perdurar por 

  bastante tempo. Essa mesma experiência, entretanto, acusa, afinal, uma inescapávelcorrelaçãoentre a ordem moral e a social, embora tal relação esteja submetida a condições que

 podem retardá-Ia ou difundir seus efeitos. Os abusos dos imperadores romanos usualmenteterminaram por suscitar sublevações ou conspirações que os levaram à morte. Hitler provocao próprio aniquilamento final e Stalin, ainda que se mantenha no poder até sua morte natural,termina repudiado pelos sucessores e tem sua memória levada à execração pública.

Mais do que correlações específicas entre as violações sociais da ordem ética e a

 punição social dos violadores, o que a experiência histórica registra é uma genérica correlaçãoentre a deterioração da ordem ética e a da ordem social. As sociedades em que, por abuso dotirano da oligarquia ou das massas, se pratiquem impunentemente sérios atentados a ordemmoral sofrem correspondente deterioração de seu sistema de internalização e da sozializaçãode valores. Deixa de suncionar apropriadamente o processo de regulagem espontâneo defuncionalidade social das condutas, ampliando-se as taxas de anomia, de desviança e dealienação. No limite do processo, as sociedades que perdem sua moral perdem sua viabilidadeinterna e externa.

Foi por sua convicção na profunda correspondência entre a ordem moral e a socialque Platão considerava que a direção da coisa pública requer o prévio adestramento moralde todos os participantes e exige uma estrita equivalência entre o nível de compreensão e

 prática das virtudes e o nível de ingerência das pessoas na condução da coisa pública.O problema da validade das decisões públicas, no regime democrático, decorre do

fato de que o princípio da maioria não é, nem analítica nem empiricamente, assegurador davalidade técnica ou moral de tais decisões. Donde as objeções tecnocráticas ou moralistas àvalidade da democracia

Contra tais objeções, os defensores da democracia, desde Péricles, observam, por umlado - com evidente razão -, que as formas alternativas de governo não asseguram melhorescondições para a validade técnica ou moral de suas decisões. Ao contrário, a experiênciatem indicado, notadamente nas condições contemporâneas, que os governos exercidos por grupos restritos e fechados são muito mais susceptíveis do que os democráticos de resvalar 

 para a corrupção e até mesmo para falácias técnicas. Por outro lado, como assinalam os

atuais analistas, a democracia representativa contemporânea dispõe, muito satisfatoriamente,de mecanismos e processos que permitem que as opções populares sejam mediatizadas por competentes equipes técnicas, em condições que praticamente excluem a possibilidade deerros grosseiros nas decisões de tais democracias. O que, sem dúvida, não pode ser evitado éa eleição de dirigentes que não se revelem à altura das funções que lhe são conferidas pelovoto popular.

Mesmo relativamente a tal hipótese - cuja ocorrência não é infreqüente -, asdemocracias representativas modernas contam com melhores remédios do que quaisquer regimes alternativos. Estes vão desde a não-reeleição de maus candidatos até a neutralizaçãode titulares inconvenientes pelo sistema de contrapesos do Estado democráticocontemporâneo, incluídos os processos que permitem, democraticamente, a destituição demandatários que violem as leis ou adotem medidas inaceitáveis para a maioria do eleitorado.

Page 29: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 29/43

Helio Jaguaribe. Brasil, sociedade democrática. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1985. p. 30-34 (com adaptações).

2004

Examinadores: Denise de Aragão Costa Martins, Gisele Gama Andrade, Mônica Maria Rio Nobre

Leia os textos I, II e III abaixo.

Texto 1

Divagação sobre as ilhas

Carlos Drummond de Andrade

Quando me acontecer alguma pecúnia, passante de um milhão de cruzeiros, comprouma ilha; não muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá

 possa eu aspirar a fumaça e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me consideroseu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto dosventos,sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-lodiuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e umanão muito estouvada confraternização.

De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamossempre, inclusive os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amas as ilhas,se buscamos o centro mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha,dissimulada e transportável. Por onde fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo paraque toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das

formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenosatmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no fundo de suailuminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dosque mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a suacidade de ouro, e nela reside por efeito de imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza.Seu mito vale o da liberdade das ilhas. E, contendor do mundo burguês, que outra coisa fazsenão aplicara técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses que se acomodamà realidade, elidindo-a?

A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se desê-lo. Pode ser abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago com agraça de fogo nem expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este

isolamento não é inumano. Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismoque sovertesse tão amena, repousante, discreta e digna forma natural, inventada para asnecessidades de ser no momento exato em que se farta de seus espelhos, amigos comoinimigos.

E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, acristalinidade dos regatos – tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio dela. A mesmasolidão existe, com diferentes pressões, nos mais diferentes locais, inclusive os de populaçãodensa, em terra firme e longa. Resta ainda o argumento da felicidade – “aqui eu não soufeliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua Pasárgada: mas será que se

 procura realmente nas ilhas uma ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? E só se alcançaria

tam mercê, de índole extremamente subjetiva, no regaço de uma ilha, e não igualmente emterra comum?

Page 30: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 30/43

Quando penso em comprar uma ilha, nenhuma dessas excelências me seduz mais queas outras, nem todas juntas constituem a razão de meu desejo. Sou pouco afeiçoado ànatureza, que em mim ser reduz quase que a uma paisagem moral, íntima, em dois ou trêstons, só que latejante em todas as partículas. A solidão, carrego-a no bolso, e nunca me faltoumenos do que quando, por obrigação de ofício, me debruçava incessantemente sobre a vida

dos outros. E felicidade não é em rigor o que eu procuro. Não. Procuro uma ilha, como já procurei uma noiva.

A ilha me satisfaz por ser uma porção curta de terra (falo de ilhas individuais, não metentam aventuras marajoaras), um resumo prático, substantivo, dos estirões deste vastomundo, sem os inconvenientes dele, e com a vantagem de ser quase ficção sem deixar deconstituir uma realidade. A casa de campo é diferente. A continuidade do solo torna-a um

 pobre complemento dessas propriedades individuais ou coletivas, públicas ou particulares, emque todo o desgosto, toda a execrabilidade, toda a mesquinhez da coisa possuída, taxada,fiscalizada, trafegada, beneficiada, herdada, conspurcada, se nos apresenta antes que a vistarepare em qualquer de seus eventuais encantos. A casa junto ao mar, que já foi moradia. Tudo

forma uma cidade só, torpe e triste, mais triste talvez que torpe. O progresso técnico teve istode retrógrado: esqueceu-se completamente do fim a que se propusera, ou devia ter-se proposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que ele tornou muito confortável,mas invisível. Fez-se numa escala de massas, esquecendo-se do indivíduo, e nenhuma centralelétrica de milhões de kw será capaz de produzir aquilo que precisamente cada um de nóscarece na cidade excessivamente iluminada: uma certa penumbra. O progresso nos dá tantacoisa, que não nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar fora. Tudo éinútil e atravancador. A ilha sugere uma negação disto.

A ilha deve ser o quantum satis selvagem, sem bichos, superiores à força e ao medo dohomem. Mas precisa ter bichos superiores à força e ao medo do homem. Mas precisa ter 

 bichos, principalmente os de plumagem gloriosa, com alguns exemplares mais meigos. As

cores do cinema enjoam-nos do colorido, e só uma cura de autenticidade nos reconciliará comos nossos olhos doentes. Já que não há mais vestidos de cores puras e naturais (de que má

 pintura moderna se vestem as mulheres do nosso tempo?), peçamos a araras e periquitos, e aalgum suave pássaro de colo mimoso, que nos propiciem as sensações delicadas de uma vistavoluptuosa, minudente e repousada.

Para esta ilha sóbria não se levará bíblia nem se carregarão discos. Algum amigo quesaiba contar histórias está naturalmente convidado. Bem como alguma amiga de voz doce ouquente, que não abuse muito dessa prenda. Haverá pedras à mão – cascalho miúdo – que se

 possa lançar ao céu, a título de advertência, quando demasiada arte puser em perigo o ruminar  bucólico da ilha. Não vejo inconveniente na entrada sub-reptícia de jornais. Servem para

embrulho, e nas costas do noticiário político ou esportivos há sempre um anúncio de filme emreprise, invocativo, ou qualquer vaga menção a algum vago evento que, por obscuromecanismo, desperte em nós fundas e gratas emoções retrospectivas. Nossa vida interior tende à inércia. E bem-vinda é a provocação que lhe avive a sensibilidade, impelindo-a aosdevaneios que formam uma crônica particular do homem, passada muitas vezes dentro dele,somente, mas compensado em variedade ou em profundeza o medíocre da vida social.

Serão admitidos poetas? Em que número? Se foram proscritos das repúblicas idéias edas outras, pareceria cruel bani-los também da ilha de recreio. Contudo, devem comportar-secomo se poetas não fossem: pondo de lado os tiques profissionais, o tecnicismo, a excessiva

 preocupação literária, o misto de esteticismo e frialdade que costuma necrosar os artistas.

Sejam homens razoáveis, carentes, humildes, inclinados à pesca e à corrida, a pé, saibam fazer 

Page 31: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 31/43

alguma coisa simples para o estômago, no fogão improvisado. Não levem para a ilha os problemas de hegemonia e ciúme.*

Por aí se observa que a ilha mais paradisíaca pede regulamentação e que os perigos daconvivência urbana estão presentes. Tanto melhor, porque não se quer uma ilha perfeita,

senão um modesto território banhado de água por todos os lados e onde não seja obrigatóriosalvar o mundo.A idéia de fuga tem sido alvo de crítica severa e indiscriminada nos últimos anos,

como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo, de um sofrimento, de umacaceteação. Como se devesse o homem consumir-se numa fogueira perene, sem carinho paracom as partes cândidas ou pueris dele mesmo, que cumpre preservar principalmente em vistade uma possível felicidade coletivista no futuro. Se se trata de harmonizar o homem com omundo, não se vê porque essa harmonia só será obtida através do extermínio generalizado eda autopunição dos melhores. Pois afinal, o que se recomenda aos homens é apenas isto:“Sejam infelizes, aborreçam o mais possível aos seus semelhantes, recusem-se a qualquer comiseração, façam do ódio um motor político. Assim atingirão o amor.” Obtida a esse preço

a cidade futura, nela já não haveria o que amar.Chega-se a um ponto em que convém fugir menos da malignidade dos homens do que

da sua bondade incandescente. Por bondade abstrata nos tornamos atrozes. E o pensamento desalvar o mundo é dos que acarretam as mais copiosas – e inúteis – carnificinas.

Estas reflexões descosidas procuram apenas recordar que há motivos para ir às ilhas,quando menos para não participar de crimes e equívocos mentais generalizados. São motivoséticos, tão respeitáveis quanto os que impelem à ação o temperamento sôfrego. A ilha émeditação despojada, renúncia ao desejo de influir e de atrair. Por ser muitas vezes umadesilusão, paga-se relativamente caro. Mas todo o peso dos ataques desfechados contra o

 pequeno Robinson moderno, que se alongou das rixas miúdas, significa tão-somente que eletinha razão em não contribuir para agravá-las. Em geral, não se pedem companheiros, mascúmplices. E este é o risco da convivência ideológica. Por outro lado, há um certo gosto em

 pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.A ilha é, afinal de contas, o refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca

destruir. Amemos a ilha.

Passeios na ilha: subúrbios da calma. IN : Obra completa, p 625-28

 Post-scriptum sobre as sociedades de controle

Gilles Delleuze

Foucault situou as  sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seuapogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios deconfinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um comsuas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois acaserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital,eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve demodelo analógico: a heroína de  Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, “pensei estar vendo condenados...”. Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios deconfinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar notempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma dasforças elementares. Mas Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às

 sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar,mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição

Page 32: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 32/43

foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de umasociedade na outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da SegundaGuerra Mundial: sociedades disciplinares é o que não éramos mais, o que deixávamos de ser.

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão,hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior”, em crise como qualquer outrointerior, escolar, profissional etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformassupostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a

 prisão; mas todos sabem que estas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menoslongo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novasforças que se anunciam. São as  sociedades de controle que estão substituindo as sociedadesdisciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, eque Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também analisa sem parar asformas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas queoperavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas

extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejamdestinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou omais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, oatendimento em domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passarama integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Nãocabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

 II. Lógica

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo sãovariáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum

a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, oscontrolatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cujalinguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos sãomoldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagemautodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujasmalhas mudassem de um ponto a outro. (...)

 Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, dacaserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca terminam nada, a empresa, aformação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes da mesma modulação, comoque de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos desociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente

das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedadesde controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e senosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar nooutro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e onúmero de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viramincompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante eindividuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda aindividualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no

 poder pastoral do sacerdote – o rebanho e cada um dos animais -, mas o poder civil, por suavez, iria converter-se em “pastor” laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao

contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra, ao passoque as sociedades disciplinares são reguladas por  palavras de ordem (tanto do ponto de vista

Page 33: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 33/43

da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, quemarcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está diante do par massa-indivíduo. Osindivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados,mercados ou “bancos”. É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duassociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – este servia

de medida-padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações quefazem intervir uma cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeiramonetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades decontrole. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos,mês também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O homem dadisciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antesondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu osantigos esportes.

L’Autre Journal, no. 1, maio/1990. IN:Conversações, p.219-26

Texto III

[Do livre arbítrio]

Fernando Pessoa

A idéia do LIVRE ARBÍTRIO, na minha opinião, tem o seu princípio na aplicação aomundo moral da idéia primitiva e natural de liberdade física. Esta aplicação, esta analogia éinconsciente; e é também falsa. É repito, um daqueles erros inconscientes que nóscometemos; um daqueles falsos raciocínios nos quais tantas vezes e tão naturalmente caímos.Schopenhauer mostrou que a primitiva noção de liberdade é a “ausência de obstáculos”, umanoção puramente física. E na nossa concepção humana de liberdade a noção persiste.

 Ninguém toma um idiota, ou louco por responsável. Por quê? Porque ele concebe uma coisano cérebro como um obstáculo a um verdadeiro juízo.

A idéia de liberdade é uma idéia puramente metafísica.

A idéia primária é a idéia de responsabilidade que é somente a aplicação da idéia decausa, pela referência de um efeito à sua Causa. “Uma pessoa bate-me; eu bato àquela emdefesa.” A primeira atingiu a segunda e matou-a. eu vi tudo. Essa pessoa é a Causa da morteda outra. Tudo isto é inteiramente verdade.

Assim se vê que a idéia de livre arbítrio não é de modo algum primitiva; essaresponsabilidade, fundada numa legítima mas ignorante aplicação do princípio deCausalidade, é a idéia realmente primitiva.

Ao princípio o homem não é consciente senão da liberdade física. Ao princípionão há um tal estado metafísico da mente. A idéia de liberdade apareceu pela razão, émetafísica, portanto, sujeita a erro.

A opinião popular, pelo que vimos, põe o elemento real de liberdade moral no juízo,na consideração, no poder de percepção, para distinguir o bem do mal, para os discutir mentalmente. Mas esta afirmação é falsa. A concepção popular, é esta faculdade que nos dizque uma coisa é boa ou má; é, pensa-se, o elemento do bem em nós. O povo pensa que, se eunoto que uma ação é má e não obstante eu a pratico, eu sou réu do mal.

A idéia de liberdade moral não é de modo nenhum primitiva, nem mesmo de hoje, na

mente popular, ou hipoteticamente, em qualquer mente culta que ignore inteiramente aquestão. É uma idéia adquirida pela razão, uma idéia filosófica. Primitivamente não há nem

Page 34: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 34/43

senso moral de liberdade nem um senso de determinismo. É inútil pensar que um selvagemtenha um senso de liberdade moral.

O homem é um animal perfeito e o único senso primitivo neste caso é o sensode liberdade física. “Eu posso fazer o que quero.” Disto não há dúvida, evidentemente. Atéagora eu não estou prisioneiro, nem paralítico, nem ligado por qualquer obstáculo físico, eusou livre: posso fazer o que quero. “Mas posso eu querer o que quero e não querer nadamais?” Eis aqui a grande questão. Ora, esta inconsciência primitiva, para que lado pendemais: para o livre arbítrio ou para o determinismo?

[Manuscrito 1906?] Idéias filosóficas. IN: Obras em prosa, p. 536-37. (com adaptações).

Parte I – REDAÇÃO

Valendo-se da leitura dos textos I, II e III, disserte sobre o tema suscitado por RuiBarbosa no seguinte trecho:

A presunção de liberdade, com efeito, não é apenas um direito natural na acepção maisou menos arbitrária ligada a esse vocábulo pela escola metafísica que procura o ideal dodireito numa concepção abstrata da natureza humana, mas no sentido histórico. Ela é aexpressão de uma necessidade orgânica das relações do homem com o homem entre associedades iniciadas na civilização.

Extensão: de 400 a 500 palavras (valor: 70 pontos)

2005

Leia os textos I, II e III a seguir.

Texto I: O punhal de Martinha

Machado de Assis

Quereis ver o que são destinos? Escutai. Ultrajada por Sexto Tarqüínio, uma noite,Lucrécia resolve não sobreviver à desonra, mas primeiro denuncia ao marido e ao pai aaleivosia daquele hóspede, e pede-lhes que a vinguem. Eles juram vingá-la, e procuram tirá-lada aflição dizendo-lhe que só a alma é culpada, não o corpo, e que não há crime onde nãohouve aquiescência. A honesta moça fecha os ouvidos à consolação e ao raciocínio, e,sacando o punhal que trazia escondido, embebe-o no peito e morre. Esse punhal podia ter 

ficado no peito da heroína, sem que ninguém mais soubesse dele; mas, arrancado por Bruto,serviu de lábaro à revolução que fez baquear a realeza e passou o governo à aristocraciaromana. Tanto bastou para que Tito Lívio lhe desse um lugar de honra na história, entreenérgicos discursos de vingança. O punhal ficou sendo clássico. Pelo duplo caráter de armadoméstica e pública, serve tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar força e luz àeloqüência política.Bem sei que Roma não é Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade baiana podemcompetir com historiadores de gênio. Mas é isso mesmo que deploro. Essa parcialidade dostempos, que só recolhem, conservam e transmitem as ações encomendadas nos bons livros, éque me entristece, para não dizer que me indigna. Cachoeira não é Roma, mas o punhal deLucrécia, por mais digno que seja dos encômios do mundo, não ocupa tanto lugar na história,que não fique um canto para o punhal de Martinha. Entretanto, vereis que esta pobre arma vaiser consumida pela ferrugem da obscuridade.

Page 35: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 35/43

Page 36: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 36/43

Sabem os historiadores e as pessoas dedicadas às ciências humanas em geral que o passado não é um campo imóvel, de contornos definidos, possibilitando aos especialistasconhecer os fatos tal como eles realmente aconteceram. Esse foi um grande sonho positivistaque quis aproximar as ciências humanas da objetividade das chamadas “ciências duras” — uma objetividade também relativa, como hoje se sabe — para daí extrair grandes leis

explicativas da vida social. Na verdade, o passado é movente, não por ser tecido apenas por diferentes discursos,como os pós-modernos pretendem, mas porque sua interpretação, em busca de grauscrescentes de certeza, está sujeita à ampliação do conhecimento e às opções das construçõeshistóricas do presente.Fico aqui no terreno interpretativo, separando-o algo artificialmente dos avanços doconhecimento, pois estes e a renovação interpretativa muitas vezes se entrelaçam.Vejam, por exemplo, o acesso a fontes antes consideradas segredo de Estado, como sedeu com os arquivos soviéticos, felizmente bastante preservados. A análise mais aprofundadadas decisões da burocracia soviética ou, personalizando, de Stálin e sua corte, do universoconcentracionário, da liquidação dos camponeses ou até mesmo da aventura insurrecional de

novembro de 1935 no Brasil deveram-se ao mencionado avanço do conhecimento.Longe de serem inocentes, as interpretações e reinterpretações dos historiadores têmmuito a ver com sua visão do presente. No caso, invertendo uma conhecida expressão deAuguste Comte [1798–1857], são os vivos que governam os mortos. É esse, aliás, o sentidoda conhecida expressão de Benedetto Croce [1866–1952], segundo a qual toda história éhistória contemporânea.Exemplos não faltam, e entre os mais significativos encontram-se as controvérsiasinterpretativas em torno de duas grandes balizas que marcaram o trabalho dos historiadores ea imaginação dos povos: a Revolução Francesa [1789] e a Revolução Russa [1917].É curioso observar, por outra parte, que as reelaborações do passado, versando sobre

 processos históricos, instituições, acontecimentos ou personagens, ganharam uma popularidade que transcende os círculos acadêmicos. Matéria publicada nesta Folha em 6/2,com o sugestivo título Revisionismo Histórico Vira Best Seller nos EUA, refere-se a essefenômeno. Os exemplos aí citados, indo da revisão da Guerra da Secessão [1861–65] à dafigura do presidente Roosevelt [1882–1945] e da implantação do New Deal, são indicativosde um misto de ampliação do conhecimento histórico e, ao mesmo tempo, dairresponsabilidade que, em certos casos, acompanha o ímpeto interpretativo.A que se deve a popularidade das revisões? Entre outras razões, ao prazer que o leitor encontra na desconstrução de figuras históricas, sobretudo quando convertidas em mitos,como ocorre com Churchill [1874–1965], Roosevelt e tantos outros. busca de sensaçõesnovas, crescente no mundo urbano desde as últimas décadas do século XIX, permite sugerir 

que o revisionismo com ingredientes sensacionalistas é uma das vertentes desse contextohistórico.Do ponto de vista cronológico, um aspecto a ser notado é o de que as controvérsiasinterpretativas mais ardorosas dizem respeito, com freqüência, a instituições, episódios ou

 personagens de um passado próximo, e menos ao passado mais distante. Isso acontece porquetais controvérsias têm muito a ver com disputas políticas que fazem parte da memória dasgerações mais velhas, incidindo, ao mesmo tempo, num quadro presente, conservando traçosdo passado.Para ficar num exemplo nosso, vejam o caso do getulismo e da figura de GetúlioVargas [1883–1954]. Getulismo e antigetulismo foram dois exércitos em combate, no âmbitoda história do Brasil, a partir de 1930, com repercussão nas diferentes ideologias e, em certa

medida, nas disputas do presente.Se a crítica sem matizes ao getulismo foi superada pelo tempo, a mitificação da época

Page 37: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 37/43

e de seu ator principal vem sendo utilizada na defesa do nacionalismo, nas críticas àglobalização, nas denúncias ao chamado desmonte da era Vargas. Não é por acaso que, nessetipo de leitura, a dura repressão do primeiro e longo governo Vargas tende a ser ignorada.Em certos casos, e não só nos círculos acadêmicos, as interpretações de um passadomais distante são também objeto de disputas árduas, em que se espelham visões do presente.

Dois exemplos, aqui apenas enunciados, são significativos. Vejam a revisão do escravismo, por meio da qual autores como João José Reis, Robert Slenes, Sílvia Lara, entre outros,contrapõem-se às teses estruturalistas clássicas, que ressaltam a anomia das populaçõesescravas.Os revisionistas, em poucas palavras, enfatizam a relevância dos escravos comoagentes históricos, manifestada no plano da resistência social e da cultura. Essa vertente, quetem muitos méritos e alguns exageros, guarda relação íntima com a crítica mais geral aodeterminismo e com a emergência da sociedade civil, características dos dias que vivemos.O outro exemplo é o da interpretação da Guerra do Paraguai [1864–70], que sórecentemente, graças aos trabalhos de historiadores como Francisco Doratioto e RicardoSalles, abriu-se a novos caminhos, rejeitando, de um lado, a simplista historiografia

antiimperialista, tendo como alvo exclusivo a Inglaterra, e, de outro, os fastos heróicos daversão militar.Isso foi possível porque muitos arquivos foram abertos, no Paraguai e em parte noBrasil, e porque os maniqueísmos de direita e de esquerda perderam muito de sua força. Aconstatação tem também a ver com a emergência do regime democrático que permitiu arevisão, sem temores, da interpretação patrioteira do conflito — uma “verdade inconteste”, naépoca do regime militar e mesmo antes dele.Tudo isso indica que as interpretações históricas não são ondas que vão e vêm, comodiscursos que se equivalem. Elas favorecem a ampliação do conhecimento e, mais do queisso, possibilitam ao cidadão letrado opções de análise do passado que não o obriga à ingestãode pratos feitos, quase sempre indigestos.Folha de S. Paulo. 27/2/2005 (com adaptações).

Texto III: A narrativa na escrita da história e da ficçãoLuiz Costa Lima

A tendência à confusão entre as formas discursivas da história e da ficção literária nãoé apenas um efeito do que têm em comum — a organização narrativa — ou uma resultante dareação ao estatuto inadequado que se conferiu a esta e àquela. Se assim o fosse, essa tendênciasó se manifestaria em data recente. Ora, J. Lotman* nos faz notar que essa tendência émuitíssimo mais remota. Mostra-nos ele que, sob a forma comum de narrativa, desde tempos

imemoriais, surgiam dois tipos de relato. De um lado, aqueles que tinham por finalidadeapresentar um mundo estável, absolutamente regulado por leis. Fixados sob a forma de mitos,“não lidavam com fenômenos que sucediam apenas uma vez e sem referência às leis naturais,mas com eventos intemporais, sem cessar reproduzidos, e, neste sentido, sem movimento”(Lotman, J.: 1979, 162-3). De outro lado, surgiam as narrativas voltadas para o excesso, oanômalo e o singular, que, pelo próprio tipo de cena privilegiado, não permitiam arepresentação do ciclo cósmico, nas quais encontra o cerne dos relatos dotados de enredo.Desde tempos sem conta, a humanidade recorreu a estas duas formas antagônicas de narrar.Se a primeira privilegiava a visão de ciclos estáveis, dotados de leis constantes, a segundaressaltava o acidental irrepetível e singular. “O texto de enredo (plot-text) moderno é o frutoda interação e da influência recíproca destas duas espécies de texto, tipologicamente remotas”

(Lotman, J.: idem, 163).A passagem de Lotman realça por outro caminho um velho conhecimento: o mito é o

Page 38: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 38/43

corpo unânime de cuja fragmentação surgiram, na Grécia, a história e a tragédia. O interessedeste conhecimento assim recuperado está em nos permitir, ao mesmo tempo, o melhor entendimento tanto da proximidade quanto da diferença entre história e ficção. O fato de queambas se realizem narrativamente não impede que cada uma provoque um relacionamentodiverso com o mundo. O intento do historiador é designar o mundo que estuda. Designá-lo

não no sentido de apontar o que ali já estivesse, pronto e apenas à espera da palavra que o propagasse. Designá-lo, no caso, significa: organizar os restos do passado, tal como presentesou inferidos de documentos, em um todo cujo sentido centralmente não é da ordem doimaginário. A interpretação do historiador, sua forçosa interpretação, será arbitrária se, por conta de seus valores, fundá-lo à imagem de outro tempo e fundi-lo às expectativas ecategorias deste. O intento do ficcionista é criar uma interpretação desestabilizadora domundo. Como este já é demarcado pelas múltiplas representações dos frames cotidianos, ocorreto será dizer que ele cria uma representação desestabilizante das representações.Representação segunda, a do ficcionista, que não tem o propósito de re-duplicar a primeira, oque a tornaria ociosa, senão que de mostrá-la à distância, assim possibilitando ao receptor uma orientação diversa da que se lhe impõe quando é mero “ator”. Porque próximas, as

 práticas do historiador e do ficcionista podem ser comparadas e não só contrapostas. Porqueenraizadas no uso da linguagem, de cuja capacidade organizativa depende a eficácia deambas, é de se esperar que o questionamento da cientificidade da história conduza ao estudomais acurado dos procedimentos verbais escolhidos pelo historiador. A partir daí, contudo,supor que se conduza como um ficcionista será tão desastroso quanto tem sido para estetomar-se o seu produto como um documento histórico. Próximos, mas distintos, os discursosdo historiador e do ficcionista diferenciam-se tanto pela maneira como suas narrativas serelacionam com o mundo quanto pelo modo como neles atua o narrador.A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 101-2.* Iuri (Juri ou Jurij) M. Lotman (1922-1993) é autor de diversas obras sobre Teoria daLiteratura e Semiótica. Os trechos citados no texto III foram extraídos do ensaio The origin of 

 plot in the light of typology, publicado na revista Poetics today 1 (1/2): 161-184 (1979). [Notados examinadores]

Parte II – RedaçãoDisserte sobre o tema suscitado no seguinte trecho de Benedito Nunes.

(...) “o recurso aos documentos assinala uma linha divisória entre história e ficção;diferindo do romance, as construções do historiador pretendem ser reconstruções do passado.”(...) Mas essa linha divisória, que acentua a dissimetria entre a narrativa histórica e a narrativa

ficcional, anula-se pela natureza desse passado reconstruído, quando se dá à expressão o seu peso ontológico de reconstrução de uma realidade que não mais existe, que já deixou de ser.Desse ponto de vista, a “realidade histórica” é tão sui generis quanto a “irrealidade” daFicção. Nesta, os acontecimentos inventados, formando um mundo fictício, escapam aqualquer espécie de confirmação empírica. Naquela, os dados empíricos (documentos), signosde um mundo que foi real, remetem a acontecimentos passados, conhecidos por inferência, eque só se confirmam, fora de toda comprovação empírica, pela reconstrução desse mesmomundo.

2006

Leia os textos I, II e III a seguir.

Page 39: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 39/43

Texto I

Vasco Leitão da Cunha

Durante oito anos não houve concurso, de maneira que eu via as pessoas serem nomeadas efiquei achando que não teria ocasião de entrar para o Itamaraty, porque não me considerava

suficientemente apadrinhado. Torcia pela abertura do concurso, achava que era a maneiraséria e correta de entrar. Foi o Mangabeira quem reabriu os concursos, que passaram a serealizar todo mês de junho, durante quatro anos. Minha banca, em 1927, foi presidida.[...]. Eramos 20 e só dois fomos aprovados. [...]. Comecei no Itamaraty como terceiro-oficialda Secretaria de Estado, ganhando 450 mil réis. No escritório do meu avô eu ganhava odobro,um conto de réis. [...]A diplomacia estava à espreita, estava me esperando, acho que desde sempre. [...]

Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC. 2ª ed. Rio de Janeiro:Editora FGV; Brasília: FUNAG, 2003. p. 9-10.

Texto IIFernando de Azevedo[...] só muito recentemente, a partir de João Ribeiro e Capistrano de Abreu,começaram os nossos estudos históricos a ser penetrados de espírito científico e a apresentar,em conseqüência, mais rigor na interpretação dos fatos. Mas dever-se-ia concluir daí, de todasas dificuldades inerentes a trabalhos dessa ordem, que seria inútil ou infecunda uma tentativade síntese da cultura brasileira? Parece-nos que não. Antes de tudo, uma visão de conjunto,

  por imperfeita que fosse, teria a vantagem de grupar numa exposição metódica finasindicações e observações seguras que, dispersas por um grande número de estudosmonográficos, perdem assim muito de sua força explicativa e ficam necessariamenteincompletas. Por mais difícil que seja, é possível, não só pela utilização dos materiaisconhecidos, mas, com as impressões recolhidas da reflexão sobre os fatos, traçar o quadro

 provisório da cultura no Brasil, sem dela fazer uma caricatura, tão de gosto dos pessimistasque não situam o esforço brasileiro no seu clima social e histórico, nem apresentar um retratolisonjeiro, que podia ser agradável à vaidade nacional, mas não serviria para nos abrir osolhos sobre a realidade e conduzir-nos o esforço empreendido pela libertação do espírito.Assim uma tal obra seria desde logo uma “tomada de consciência” de nós mesmos, desde queseriamente pensada, construída e documentada [...]

A cultura brasileira. 4ª ed. Brasília: EdUnB, 1963. p. 48-9.Texto III

Machado de Assis

A persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente aconsciência de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar, recebesse uma convicçãode superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma dascoisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano.Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas, chamou a atenção paraa complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essaobservação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação.

Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro. p. 30.

Parte I – RedaçãoElabore uma dissertação com base no texto I, podendo privilegiar um de seus aspectos.

Page 40: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 40/43

Dê titulo a sua dissertação.Extensão: de 600 a 650 palavras

(valor: 60 pontos)

Parte II – Exercício I

Com base no texto II, na perspectiva de hoje, interprete o conceito de “‘tomada deconsciência’ de nós mesmos”.Extensão: de 100 a 150 palavras(valor: 20 pontos)

Parte II – Exercício IICom base no texto III, interprete a referência feita por Machado de Assis ao trecho queatribui a Erasmo, autor do Elogio da Loucura.Extensão: de 100 a 150 palavras(valor: 20 pontos)

2007

Parte I – Redação

Texto I

[...]Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentropara fora, outra que olha de fora para entro... [...]Há casos, por exemplo, em que umsimples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a

polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, umtambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como aprimeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, umalaranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; ecasos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.[...]

Machado de Assis. O Espelho.

Texto II

[...] É bem provável que o brasileiro comece a surgir e a reconhecer-se a sipróprio mais pela percepção de estranheza que provoca no lusitado, do que por suaidentificação como membro das comunidades socioculturais novas, porventuratambém porque desejoso de remarcar sua diferença e superioridade frente aosindígenas. [...]

O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndiomestiço na carne e no espírito, que, não podendo identificar-se com os que foramseus ancestrais americanos – que ele desprezava –, nem com os europeus – que odesprezavam –, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos luso-nativos, via-secondenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro.

Através dessas oposições e de um persistente esforço de elaboração de sua

própria imagem e consciência como correspondentes a uma entidade étnico-culturalnova, é que surge, pouco a pouco, e ganha corpo a brasilianidade. [...]

Page 41: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 41/43

Darcy Ribeiro. O Povo Brasileiro.

Texto III

[...] Quando se fez a propaganda republicana, julgou-se, é certo, introduzir,com o novo regime, um sistema mais acorde com as supostas aspirações danacionalidade: o país ia viver finalmente por si, sem precisar exibir, só na América,formas políticas caprichosas e antiquadas; na realidade, porém, foi ainda umincitamento negador o que animou os propagandistas: o Brasil devia entrar em novorumo, porque “se envergonhava” de si mesmo, de sua realidade biológica. Aquelesque pugnaram por uma vida nova representavam, talvez, ainda mais do que seusantecessores, a idéia de que o país não pode crescer pelas suas próprias forçasnaturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a aprovação dos outros.[...]

Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil.

Elabore dissertação com base na analogia entre as idéias expostas nos textos I, II eIII.

Extensão: de 600 a 650 palavras(valor: 60 pontos)

Parte II – Interpretação de textos

Parte II – Exercício I

 – [...] assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim tambémé de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem,ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que teaconselho hoje, dia da tua maioridade. – Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá? – Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi osonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabocomo vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que depositoem ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende.[...] – E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits davida? – Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade. – Nem política? – Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podespertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano,com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, ereconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico. – Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna? – Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos

discursos, tens à escolha: – ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, masprefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem

Page 42: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 42/43

daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes,adota a metafísica; – é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por quemotivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu;serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutosas razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política

apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. Edepois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanostudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes damemória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejávelvulgaridade. – Farei o que puder. Nenhuma imaginação? – Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo. – Nenhuma filosofia? – Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia dahistória", por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, masproíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros.

Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc. – Também ao riso? – Como ao riso? – Ficar sério, muito sério... – Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um gravepode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, – e este ponto émelindroso... – Diga... – Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheiode mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano,transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usaantes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sembiocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, fazpular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Queé isto? – Meia-noite. – Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamentemaior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadasas proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.

Machado de Assis. Teoria do Medalhão.

O conto Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, tem a forma de um diálogo, aolongo do qual o pai dá conselhos ao filho que completa sua maioridade. Interprete ofragmento acima, extraído desse conto, sem deixar de comentar a referência, noúltimo parágrafo, à obra O Príncipe, de Maquiavel.

Extensão: de 100 a 150 palavras(valor: 20 pontos)

Parte II – Exercício II

Cada literatura requer tratamento peculiar, em virtude dos seus problemasespecíficos ou da relação que mantém com outras. A brasileira é recente, gerou no

Page 43: Temas irbr- alunos

8/3/2019 Temas irbr- alunos

http://slidepdf.com/reader/full/temas-irbr-alunos 43/43

seio da portuguesa e dependeu da influência de mais duas ou três para se constituir.[...]

[...] A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbustode segunda ordem no jardim das Musas... Os que se nutrem apenas delas sãoreconhecíveis à primeira vista, mesmo quando eruditos e inteligentes, pelo gosto

provinciano e falta do senso de proporções. Estamos fadados, pois, a depender daexperiência de outras letras, o que pode levar ao desinteresse e até menoscabo dasnossas. [...]

Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira.

Comente o texto acima, interpretando a propriedade da avaliação nele contida.