teixeira. a questão da periodização do desenvolvimento psicológico em wallon e em vygotski

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  • Educao e PesquisaUniversidade de So Paulo

    [email protected]

    ISSN: 1517-9702

    BRASIL

    2003 Edival Sebastio Teixeira

    A QUESTO DA PERIODIZAO DO DESENVOLVIMENTO PSICOLGICO EM WALLON E EM VIGOTSKI: ALGUNS ASPECTOS DE DUAS TEORIAS

    E Educao e Pesquisa, julio-diciembre, ao/vol. 29, nmero 002 Universidade de Sao Paulo

    So Paulo, Brasil pp. 235-248

  • 235Educao e Pesquisa, So Paulo, v.29, n.2, p. 235-248, jul./dez. 2003

    A questo da periodizao do desenvolvimentopsicolgico em Wallon e em Vigotski: alguns aspectos de duasteorias

    Edival Sebastio TeixeiraCentro Federal de Educao Tecnolgico do Paran - CEFET/PR

    Resumo

    Este artigo apresenta alguns aspectos de duas teorias de desenvol-vimento psicolgico elaboradas sob a tica do materialismodialtico: a de Henri Wallon e a de Lev Vigotski. O trabalho argu-menta que o fato de esses autores terem desenvolvido suas pes-quisas apoiados na mesma matriz filosfica propicia importantesaproximaes entre eles. Entre os aspectos comuns, o artigo des-taca: a recusa em enquadrar o desenvolvimento psicolgico emesquemas rgidos, orientados segundo uma lgica linear; a con-cepo de que o psiquismo humano foi e continua sendo produ-zido historicamente pelos prprios homens no interior das relaesque estabelecem entre si e com a natureza; a defesa feita por es-sas duas teorias quanto ao carter constitutivo, portanto positivo,dos conflitos e alternncias entre perodos crticos e estveis quecaracterizam o desenvolvimento psicolgico; e, principalmente, ofato de ambos os autores ressaltarem que uma compreenso ade-quada do desenvolvimento exige uma anlise desse processo emsua essncia interna, isto , uma anlise dos condicionantes dossintomas externos do desenvolvimento psicolgico. Especifica-mente sobre a teoria walloniana, o artigo reala a idia de que odesenvolvimento marcado pelas alternncias entre cognio eafeto e entre razo e emoo; em relao concepovigotskiana, o texto enfatiza que o estudo do desenvolvimentopsicolgico deve partir da anlise da atividade da criana tal comoela se apresenta nas condies concretas de sua vida.

    Palavras-chave

    Wallon Vigotski Desenvolvimento psicolgico.

    Correspondncia:Edival Sebastio TeixeiraR. Visconde de Ncar, 200085.501-450 - Pato Branco - PRe-mail: [email protected]

  • Educao e Pesquisa, So Paulo, v.29, n.2, p. 235-248, jul./dez. 2003236

    The issue of the periodization of psychologicaldevelopment in Wallon and in Vygotsky: aspects oftwo theories

    Edival Sebastio TeixeiraCentro Federal de Educao Tecnolgico do Paran - CEFET/PR

    Abstract

    This article presents some aspects of two theories of psychologicaldevelopment created from the viewpoint of the dialecticalmaterialism: those of Henri Wallon and of Lev Vygotsky. The workargues that the fact that both these authors developed theirtheories from the same philosophical roots inspires importantapproximations between them. Among the aspects shared by thesetheories the text highlights: the refusal to frame the psychologicaldevelopment within rigid schemes following a linear logic; theidea that human psyche has been and continues to be historicallyproduced by men themselves inside relations they establish witheach other and with nature; the defense they promote of theconstitutive, and therefore positive, nature of conflicts andoscillation between critical and stable periods that characterizepsychological development; and, particularly, the fact that bothauthors emphasize that an adequate understanding ofdevelopment requires the analysis of this process in its internalessence, that is, an analysis of the conditionings of the externalsymptoms of psychological development. Regarding the Walloniantheory, the article draws attention to the idea that development ischaracterized by the alternation between cognition and affection,reason and emotion; as to the Vygotskyan conception, the textemphasizes that the investigation of psychological developmentmust start from the analysis of a child's activities inside theconcrete conditions of his/her life.

    Keywords

    Wallon Vygotsky Psychological development.

    Contact:Edival Sebastio TeixeiraR. Visconde de Ncar, 200085.501-450 - Pato Branco - PRe-mail: [email protected]

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    A questo da periodizao do desenvol-vimento psicolgico tem sido uma das maisinvestigadas na psicologia evolutiva. Tran-Thong (1981), num trabalho que discute oproblema do conceito de estdios de desenvol-vimento da criana na psicologia contempor-nea, considera que quatro sistemas deperiodizao parecem impor-se: os sistemas deFreud, Piaget, Gesell e Wallon. Esses quatrosistemas tm sido base tanto para estudos so-bre a criana e seus estdios de desenvolvimen-to como para a elaborao de estratgias apli-cveis no domnio da educao.

    Segundo Tran-Thong (1981), embora osestudos sobre a periodizao sejam numerosos,tem havido pouca reflexo acerca do conceito edas noes de estdio. Para o autor, os sistemaspiagetiano e walloniano seriam os mais elabora-dos e coerentes, justamente porque somente emPiaget e Wallon encontrar-se-iam esforos nosentido da definio do conceito de estdio e asua sucesso, e empenho no estudo dos proble-mas da passagem de um estdio a outro e dacontinuidade e descontinuidade do desenvolvi-mento. No entanto, em que pese essa caracters-tica comum, esses dois sistemas apresentamgrandes diferenas entre si e traduzem duasconcepes de estgio muito distintas, senoopostas.

    Os sistemas elaborados por autores so-viticos so pouco difundidos no Ocidente, ain-da que uma de suas escolas a histrico-cultu-ral goze atualmente de grande prestgio. Entreesses sistemas, Davidov (1988) destaca os de P.Blonski, L. Vigotski, B. Anniev, L. Bozhvich e D.Elkonin. No Brasil, quase no se discute a perio-dizao elaborada por autores dessa escola, embo-ra outros aspectos da psicologia histrico-cultural,nota-damente de Vigotski, sejam muito freqentesem textos de psicologia educacional.

    Os sinais externos de desenvolvimentoso descritos de modo muito parecido pelosdiversos autores que se ocupam da psicologiaevolutiva, como se depreende facilmente daleitura de Wallon, Piaget e Vigotski, por exem-plo. O que diferencia as vrias teorias, e isso

    de fato o mais importante, so os recursosmetodolgicos com que trabalha cada cientis-ta. Tais recursos propiciam interpretaes dis-tintas tanto para a gnese e a evoluo, comopara a manifestao de determinado fenmeno.

    Este trabalho consiste na apresentao dealguns aspectos de duas teorias de desenvolvi-mento psicolgico elaboradas sob a tica domaterialismo dialtico: a de Henri Wallon (1879-1962) e a Lev Semenovich Vigotski (1896-1934).Demonstramos que a lgica subjacente a essasteorias, por si mesma, aproxima Wallon deVigotski, embora haja diferenas importantesentre esses dois autores. Diferenas essas, entre-tanto, que no so objeto de anlise neste texto.

    O conflito como parteconstitutiva dodesenvolvimento psicolgico

    Quando Wallon (1975a) faz uma crti-ca s concepes mecanicista e idealista sobrea constituio do psiquismo, deixa claro quetanto explicaes positivistas, para as quais opsiquismo redutvel a elementos a priori cujasleis so invariveis e por isso previsveis, quantoexplicaes idealistas que colocam a conscin-cia antes da matria, subordinando a realidadeao pensamento, no alcanam a especificidadeda psicologia que se situa nos domnios dobiolgico e do cultural. No entanto, apesar deo psiquismo situar-se ao mesmo tempo nessesdois domnios, no se deve imaginar que resultedo acrscimo da cultura sobre um substratoorgnico. Ao contrrio, embora haja uma liga-o primria e fundamental na sua gnese, opsiquismo resulta de um processo em que es-ses dois constituintes so complementares.

    O psiquismo desenvolve-se num meioque se constitui como um conjunto de circuns-tncias s quais o organismo humano reage.Mas no se trata de simples resposta a estmu-los ambientais, pois o meio sobre o qual ohomem reage no somente o natural, mas tambm um meio criado por sua atividade. Isto

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    , o meio no qual se desenvolve o psiquismo cultural por excelncia; social, dizendo-se deoutro modo. A concepo walloniana, ento,parte da idia segundo a qual o psiquismohumano foi, e continua sendo, produzido his-toricamente pelos prprios homens no interiordas relaes que estabelecem entre si e com anatureza.

    no materialismo dialtico que Wallonencontra o suporte necessrio para desenvolversua psicologia. Para ele, a dialtica marxista d psicologia

    o seu equilbrio e a sua significao, que subtrai alternativa dum materialismo elementar oudum idealismo oco, dum substancialismo gros-seiro ou dum irracionalismo sem horizontes. ela quem mostra a simultaneidade entre cinciada natureza e cincia do homem, suprimindodeste modo a ruptura que o espiritualismo pro-curava consumar no universo entre a conscin-cia e as coisas. ela que lhe permite considerarnuma mesma unidade o ser e seu meio, as suasperptuas interaces recprocas. ela que lheexplica os conflitos dos quais o indivduo devetirar a sua conduta e clarificar a sua personali-dade. (Wallon, 1975b, p. 67)

    Coerente com esse ponto de vista, apsicologia walloniana aceita que o psiquismotem as suas especificidades, embora no subs-titua a realidade das coisas. Por isso mesmo,essa abordagem aceita toda a diversidade doreal com todas as suas contradies, porquejustamente elas as contradies so ele-mentos de explicao do real. Noutras palavras,a realidade em geral e a do psiquismo em par-ticular so o que so justamente por causas dascontradies.

    Na opinio de Wallon (1975b), adialtica marxista introduziu uma revoluo nomodo de conhecer da psicologia ao substituira anlise da propriedade pela anlise do pro-cesso. Isto , a anlise de um dado fenmenopsicolgico tal como este se apresenta, pelaanlise do processo por meio do qual tal fen-

    meno foi produzido. Assim, a anlise das rela-es entre organismo e meio ultrapassa emmuito a linearidade suposta a partir de umesquema rgido de pensamento ao/reao por duas razes: em primeiro lugar, o meiono constante e transformaes em sua na-tureza modificam o homem; em segundo lugar,o homem modifica o meio, ajusta-o s suasnecessidades e, ao proceder desse modo, mo-difica-se tambm.

    Entendemos que a h aproximao deWallon para com o pensamento de Marx eEngels. Em relao transmisso das caracte-rsticas da espcie pelos mecanismos da here-ditariedade, o homem no difere essencialmen-te dos demais animais. O que verdadeiramentediferencia os homens dos animais, segundoesses autores, o fato de que somente oshomens podem produzir seus meios de vida; eao produzir tais meios, produzem sua prpriavida material com tudo que ela abarca, inclu-indo seu psiquismo. Em A ideologia alem,Marx e Engels (1977) consideram que qualquerconcepo materialista histrica acerca do ho-mem deve partir de um fato fundamental: aproduo dos prprios meios de subsistncia o elemento que desencadeia a construo dohomem. O homem , portanto, um ser de na-tureza social e tudo o que tem de humano neleprovm da sua vida em sociedade.

    As primeiras manifestaes psicolgi-cas da criana originam-se do funcionamentodos mecanismos viscerais. Nas etapas iniciais davida, a criana encontra-se em um estado detotal impercia que a impede de satisfazer porsi mesma suas necessidades. Contudo, ao ladodessa incapacidade orgnica, possui um potenterecurso, que o desencadeamento de reaesque despertam a ateno dos outros que a cer-cam. De acordo com Wallon (1986a), a primeiraatividade eficaz da criana a capacidade dedesencadear nos adultos que a cercam aesque levem satisfao de suas necessidades e por essa razo que nessa etapa da vida todasas suas possibilidades psquicas estejam orien-tadas nesse sentido.

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    Ora, obviamente a criana no tem con-dies de indicar com preciso o seu estadofisiolgico. Cabe ao adulto que a cerca a inter-pretao das manifestaes viscerais da criana,que se expressam por variados modos. E aointerpret-las, inevitavelmente insere numa si-tuao de natureza biolgica um trao cultural.Ento, embora nas fases iniciais do desenvolvi-mento a fisiologia e a psicologia sejam simult-neas, as conseqncias das manifestaes dacriana ultrapassam a fisiologia e a ligam so-ciedade. Por isso mesmo, Wallon (1986a, p. 141)entende que pelas relaes de sociabilidadeque a vida da criana necessariamente principia.Tais relaes ultrapassam o plano do mundo f-sico e, com o tempo, vo modificando o compor-tamento humano: de visceral para socialmenteorientado.

    Wallon (1986b) discorda de Piaget noque diz respeito ao processo da tomada deconscincia de si pelo sujeito. Na teoria piage-tiana, a participao do outro na formao daconscincia se d muito tardiamente, uma vezque esse percurso opera-se ao longo dos pri-meiros seis ou sete anos. Para Piaget, a crian-a parte do autismo, passa por um perodomarcado pelo egocentrismo, para s ento po-der imaginar os outros como parceiros capazesde manter relaes de reciprocidade. Ou seja,diferentemente de Wallon, Piaget entende queo sujeito deve antes tomar conscincia de si doque do outro.

    Piaget e Freud tambm discordam quan-to gnese da conscincia do Eu. Para Freud,escreve Wallon (1986b, p.160), a conscinciano a clula individual que deve abrir-se umdia sobre o corpo social; o resultado da pres-so exercida pelas exigncias da vida em soci-edade sobre as pulses de um instinto ilimita-do. Parece haver, portanto, uma certa proximi-dade entre as idias de Freud e de Wallonquanto ao ponto de partida da conscincia doEu, que comearia indiferenciada e fundida aooutro.

    No obstante essa proximidade, no quediz respeito formao da conscincia, Wallon

    discorda de Freud, tal como fizera com Piaget:Esta modelagem do Eu pelo meio, da conscin-cia individual pelo ambiente coletivo, no estnecessariamente ligada ao duelo freudiano en-tre o instinto sexual e os imperativos sociais(Wallon, 1986b, p.160), porque o fato primei-ro da formao da conscincia a prpria li-mitao orgnica do beb.

    As reaes descontnuas da crianamuito pequena servem apenas como veculo deexpresso das tenses de origem orgnica ouexteriores. Mas so os outros que interpretamsuas reaes, movimentos e necessidades. Por-tanto, como a criana nessa condio inca-paz de realizar alguma coisa por si mesma, ela manipulada por quem a atende. E nosmovimentos desse outro que as primeiras atitu-des do beb tomaro forma.

    Os gestos do beb, antes de serem teispor si mesmos, so teis como geradores nosoutros de gestos e atitudes desejveis. Embo-ra esse mecanismo possa parecer semelhanteao mecanismo do condicionamento operante,difere da simples associao fisiolgica porquese faz acompanhar de outro tipo de associaoque logo entra no plano da expresso, da com-preenso, do afeto, das relaes interpessoais.Isto , da simples associao entre uma mani-festao de desconforto seguida de uma respos-ta eficaz por parte do outro, passa-se ao pla-no das manifestaes emotivas intencionaiscapazes de suscitar reaes adequadas s ne-cessidades do beb.

    A emoo um veculo para o afeto e,de acordo com a concepo walloniana, umestado psquico mais primitivo que a tomada deconscincia de si mesmo. O psiquismo inicial um estado de indiviso entre a criana e omundo exterior; a unio entre o Eu e o outro total e indiscernvel no comeo: os desejos,medos, necessidades, etc. se confundem no ecom o mundo. Mas no processo de tomada deconscincia o sujeito vai como que se apreen-dendo nele e sua conscincia comea a tornar-se o modo pelo qual o sujeito afirma-se emdireo autonomia.

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    No processo da tomada de conscinciade si alternam-se momentos de expanso e deconteno, de ansiedade e de exploso desurpresa, de choro e de alegria, de presena ede ausncia do outro, etc. (sempre interpreta-dos pelo outro no comeo). Esses jogos dealternncia tornam possvel criana ir, aospoucos, posicionando-se em relao ao outro.Mas, de fato, esse outro nunca abandona ou expulso da conscincia porque o sujeito no uma abstrao que se distingue de outras abs-traes. A distino resulta tanto daquilo quefaz com que o sujeito afirme sua identidadecomo daquilo que o sujeito deve expulsar desi para se afirmar; o indivduo forma-se noesforo do Eu em se opor sociedade. Poroutro lado, e em primeiro lugar, o sujeito social no por contingncias externas, masdevido ao seu estado inicial de necessidades eimpercia.

    A organizao da sociedade, ao longoda histria, fez com que o meio social se trans-formasse em instrumento de ao sobre o meionatural. Dizendo-se de outro modo, a sociedadeconstruiu mecanismos pelos quais as necessi-dades e desejos da criana ou so atendidosimediatamente, ou o atendimento posterga-do, ou ainda tais necessidades e desejos tmsua natureza alterada de modo que a energiaseja canalizada para outro fim alternativo. Apsicologia de Wallon ocupa-se em entendercomo o Eu se constitui. Como o processo deconstituio desse Eu, que vai de um estadoindiferenciado a um estado diferenciado, pormeio de um processo marcado por conflitos.

    As diversas fases pelas quais passa acriana em seu processo de desenvolvimentoso marcadas por mudanas bruscas, nas quaisa energia da criana ou est concentrada em simesma, ou no outro. Trata-se de um percursoem que se alternam os focos de ateno quedirigem a atividade da criana nas diversasfases de desenvolvimento psicolgico pelasquais passa. Wallon [s. d.] dedica um captulode A evoluo psicolgica da criana discus-so dessas alternncias.

    Por meio do processo de alternnciafuncional, vista nessa teoria como uma das leisbsicas do desenvolvimento,

    as diferentes idades em que se pode decompor aevoluo psquica da criana opem-se comofases orientao alternativamente centrpeta ecentrfuga, orientada para a edificao cadavez maior do prprio indivduo ou para o esta-belecimento das suas relaes com o exterior,para a assimilao ou para a diferenciao fun-cional e adaptao subjetiva. Mas sob a orien-tao global dos perodos, possvel encontrarcomponentes mais elementares, que compreen-dem este vaivm e reconhecem mesmo em cadaum desses perodos uma ambivalncia que lhefaz assumir, em comparao com outras, quer afuno da elaborao ntima, quer o de reaorelativa ao meio. (Wallon, [s.d.], p. 105-106)

    Embora se alternem, afetividade e cogniomantm entre si uma relao de reciprocidade. Isto, quando o afeto cede a dominncia numa deter-minada fase, todas as suas conquistas so incorpo-radas pela cognio que passa a operar em basesqualitativamente diferentes. O mesmo sucede quan-do ocorre a inverso; a o afeto que incorpora oconhecimento acumulado at ento e, tambm,opera a partir de bases distintas. Ou seja, durante oprocesso de constituio do psiquismo, cognio eafeto vo construindo-se reciprocamente, num per-manente processo de integrao e diferenciao(Galvo, 1999, p. 46).

    A lei de alternncia funcional uma leigeral, que diz respeito a todas as funes edomnios. As alternncias funcionais so obser-vadas no apenas no conjunto do desenvolvi-mento, mas no interior de um conjunto espe-cfico e em cada funo complexa ou elemen-tar (Tran-Thong, 1981). Por essa razo, nummesmo estdio observa-se uma ambivalnciaque ora o faz parecer de elaborao ntima, orade reao ao meio. Assim, para se definir umestdio, necessria a concorrncia de outrasduas leis do desenvolvimento: lei da predomi-nncia funcional e lei da integrao funcional.

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    A predominncia funcional diz respei-to ao fato de que em cada fase predomina umtipo de atividade como recurso principal deinterao entre a criana e seu meio. Essesrecursos so de ordem cognitiva ou afetiva.Quando o intelecto que predomina, a nfaseda atividade da criana orienta-se para a cons-truo do real e do conhecimento do mundofsico (Galvo, 1999). Nos momentos em quepredomina o afeto, as atividades da crianavoltam-se construo do Eu.

    A integrao funcional, que se inspirano desenvolvimento do sistema nervoso, umprocesso mediante o qual o psiquismo vai sen-do regido cada vez mais por estruturas corticaismais evoludas. Isso significa que uma crianade um ano, por exemplo, no capaz de pen-sar sobre suas emoes, embora sinta e percebaas manifestaes neurovegetativas que asacompanham. A integrao funcional umprincpio bsico no processo de desenvolvimen-to porque, por meio dele, funes corticais maisrecentes passam para o primeiro plano no con-trole da atividade da criana, substituindo fun-es mais antigas. Tran-Thong (1981) afirmaque essa lei da integrao funcional que pre-side a organizao das funes sucessivamen-te preponderantes.

    Convm ressaltar, todavia, que na teo-ria walloniana integrao no significa nemjustaposio, nem combinao e nem mesmouma espcie de associao entre fatores distin-tos e contraditrios entre si. A integrao indicaa realizao de um conjunto em que elementosparticulares perdem sua significao prpria emfavor de uma significao comum. Cada ocor-rncia da integrao funcional significa a pas-sagem a um nvel mais elevado de desenvolvi-mento, resultando em novas estruturas. A evo-luo da criana composta por uma srie deintegraes sucessivas, sendo, por isso mesmo,descontnua e atravessada por crises seguidasde mutaes.

    Enfim, pode-se dizer, com efeito, que odesenvolvimento psicolgico um processocuja finalidade o alcance de um estado, ain-

    da que sujeito transitoriedade, de integraofuncional.

    No plano do desenvolvimento psicol-gico, os conflitos podem ser observados naalternncia que ocorre entre as diversas etapas.No perodo impulsivo emocional, em que hpredomnio da emoo, a criana est maisvoltada para si mesma. como se o beb noconseguisse sentir-se como parte do mundo.Ele o mundo.

    Com o avano do processo de desen-volvimento, a criana entra noutra etapa emque a energia canaliza-se para outra esfera deao, na qual predomina o movimento. Trata-se da etapa sensrio-motora e projetiva. Nela,a criana volta-se para o mundo exterior ecomea a descobrir as qualidades das coisas esua sensibilidade aguada com a ajuda damarcha e da palavra. Com a contribuio dalinguagem, comea a identificar melhor osobjetos que encontra e reencontra em suasandanas o nome do objeto ajuda a crian-a a distingui-lo no conjunto perceptivo emque se encontra. Enfim, trata-se de uma etapaem que a esfera cognitiva muito mais evidenteque a emocional. A etapa do personalismo asucede.

    No personalismo, a esfera afetiva subje-tiva reassume posio de destaque. A crianabusca a independncia e o enriquecimento doseu Eu, baseando suas aes na oposio siste-mtica ao outro. Para que o Eu se constitua, noentanto, a criana precisa negar sistematicamenteo outro, mas, ao mesmo tempo, incorpor-lo namedida em que este, de certo modo, represen-ta o seu devir. Ento, nessa etapa, podem-seobservar claramente pelo menos dois conflitos:a) o da mudana da esfera da cognio para aesfera da emoo; b) a negao e a incorpora-o do outro. No final desse percurso espera-seum fortalecimento da identidade pessoal, fatoque propicia, de certo modo, a entrada noutraetapa. O sucedneo do conflito entre o sujeitoe o outro um retorno esfera cognitiva.

    Na etapa imediatamente posterior personalista, a categorial ou perodo escolar, a

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    criana aprender a conhecer-se como umapersonalidade polivalente e aprender a ajustarsuas condutas s circunstncias particularespela gradual e precisa reduo do sincretismoda inteligncia. Mas, com o passar do tempo,a afetividade reassume posio de destaque naetapa da puberdade e entrada na adolescncia.

    Essa ltima etapa fecunda em confli-tos. Em alguns momentos as necessidades doEu tendem a absorver as disponibilidades dosujeito. Noutros, despende-se energia em ma-nifestaes exteriores que por vezes tomamaspecto de verdadeiros paroxismos passionais.Alternam-se sentimentos ambivalentes: timideze arrogncia; egosmo e altrusmo; sentimentosde espanto perante si mesmo, como se o sujeitono se conhecesse mais, com o surgimento depreocupaes em relao a responsabilidadessociais, profissionais e familiares. Contudo, oque parece mais desintegrador , na verdade,um trunfo que o sujeito humano alcana nes-sa etapa. A dvida perante si mesmo no mun-do uma boa base para o esprito da constru-o, da inveno e descoberta, da aventura eda criao.

    Enfim, longe de representar uma pato-logia do desenvolvimento, os conflitos na pers-pectiva walloniana so, na verdade, funcionais.Isto , fazem parte mesmo do processo deconstruo do Eu.

    Alm do que se observa no processode desenvolvimento psicolgico em sentidoamplo, os conflitos tambm so observveisnoutros campos mais restritos, por assim di-zer. Por exemplo, h conflitos evidenciadospelos antagonismos entre razo e emoo,embora as emoes faam parte da gneseda cognio e desempenhem importante pa-pel na vida psquica.

    Nos grupos humanos primitivos, as rea-es emocionais tiveram o papel essencial desuscitar aes coletivas de ataque ou defesa,reforando com isso sentimentos de coletivida-de. Atualmente as reaes emocionais tm umefeito coercitivo de atitudes e sentimentos, dereaes grupais, etc. Nos dizeres de Wallon

    (1986b), as emoes criam pblico ao mes-mo tempo em que criam um consentimentogeral que escapa ao controle individual. svezes, elas tm efeitos instantneos e totalit-rios que desorientam a reflexo. Seu terrenopropcio so as situaes em que no existemrelaes organizadas, tcnicas e conceituaisentre as pessoas.

    Mas a vida intelectual supe a vidasocial e a vida emocional, como primeiro terre-no das relaes interindividuais de conscincia, condio, portanto, do surgimento da lingua-gem. Com as emoes surge um tipo de ativi-dade que no propriamente uma respostaautomtica do organismo, mas sim toda umaorganizao plstica do aparelho psicomotor.

    A palavra articulada, por exemplo, rela-ciona-se com a atividade postural tnica. Noentanto, a emoo no uma linguagem. Asemoes fazem com que o sujeito se concen-tre no interesse do momento, eliminando qual-quer elemento que no possa incorporar e queno se relacione com a situao. Por isso aemoo no possui nenhuma caracterstica deatividade simblica.

    Ora, se entre emoo e representaoexiste algum grau de incompatibilidade, por-que a emoo interfere na atividade intelectu-al, e se a emoo foi um fator que orientou osurgimento da unidade de atitude e conscin-cia entre os indivduos, ento o conflito entrerazo e emoo evidente. H pelo menosduas justificativas para essa afirmao: a) aemoo situa-se entre o automatismo das re-aes e a vida intelectual. Embora as emoesse originem da atividade tnica, elas desenvol-vem sistemas de reaes demonstrativas quesubstituem ou comprometem a execuo dasaes externas; b) embora as emoes se ori-ginem como elemento desencadeador das ati-tudes solidrias que levam ao intelecto (strocas intelectuais entre as pessoas), elas soperturbadas ou suprimidas pelo controle dainteligncia. No obstante, as emoes conti-nuam sendo o fundamento necessrio dasrelaes interpessoais.

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    O problema da periodizao dodesenvolvimento na escola deVigotski

    Para Davidov (1988), nas idias funda-mentais da psicologia histrico-cultural encon-tra-se um enfoque original ao problema daperiodizao do desenvolvimento. O estudo dodesenvolvimento psicolgico deve partir daanlise do desenvolvimento da atividade dacriana tal como ela se processa nas condiesconcretas de sua vida. Esse autor justifica suaafirmao dizendo que o desenvolvimento daatividade,

    em primeiro lugar, est internamente ligado coma formao da conscincia humana; em segun-do lugar, contm em si um rico espectro dequalidades, segundo as quais se pode caracteri-zar de forma bastante profunda cada idade esuas vinculaes mtuas. (Davidov, 1988, p. 68)1

    Embora Vigotski no tenha tido tempo deelaborar um sistema completo de periodizao,lanou-lhe as bases (Elkonin, 1996). Suas tesesacerca da periodizao foram desenvolvidas pordiscpulos seus como Leontiev, Elkonin e Davidov.Esse ltimo considera que as idias essenciais deVigotski e seus discpulos acerca do problemaapresentam algumas caractersticas comuns: a)muitas das periodizaes elaboradas por autoresocidentais so inconsistentes porque tomam porprincpio traos externos do desenvolvimento eno a essncia interna desse processo; b) aperiodizao deve levar em conta as mudanasna atividade integral da criana porque sua per-sonalidade muda como um todo integral em suaestrutura interna no percurso do desenvolvimen-to; c) o exame das fontes de desenvolvimentodeve realar a ligao de cada um dos perodoscom um tipo de atividade que caracteriza o pe-rodo dado e; d) so as atividades integrais dacriana, especficas para cada idade que, ao de-terminar as transformaes psquicas, determinamtambm a conscincia da criana e suas relaescom o meio, sua vida interna e externa.

    O surgimento de novas formaes, cha-madas por Vigotski (1996) de neoformaes,deve ser o critrio central para a periodizaodo desenvolvimento. Para esse autor, em cadadegrau evolutivo existe uma atividade principalque dirige todo o processo de desenvolvimen-to e caracteriza a reestruturao da personalida-de. Por neoformao deve-se entender o novotipo de atividade da criana que caracteriza aidade dada, o novo tipo de personalidade e astransformaes que ocorrem pela primeira veznesta idade (Davidov, 1988, p. 60-70).

    Vigotski (1996) divide em trs gruposas teorias que se ocupam do problema daperiodizao do desenvolvimento psicolgico.

    O primeiro grupo de teorias parte doprincpio de que h um paralelismo rigorosoentre o desenvolvimento da humanidade e odesenvolvimento da criana. Trata-se da idiasegundo a qual a ontognese reproduziria, ain-da que de forma breve e resumida, a filognese.Desse modo, os adeptos da teoria biogenticatendem a periodizar a infncia com base nasetapas fundamentais da histria da humanida-de. Outros tericos do mesmo grupo dividem odesenvolvimento com base nas etapas da edu-cao, considerando que uma periodizaodeveria conter uma idade pr-escolar, uma ida-de escolar e assim sucessivamente.

    O erro dessas teorias decorre do fatode que elas no fracionam o curso do desen-volvimento da criana em seu interior. Isto ,tomam como limite entre os diversos perodoseventos externos como, por exemplo, as etapasda escolarizao.

    O segundo grupo de teorias caracteriza-se pela eleio de algum indcio no curso de de-senvolvimento como critrio para a periodizao.Esses indcios devem ser suficientes para sinaliza-rem o desenvolvimento geral da criana, seremacessveis observao e serem objetivos. Confor-me Vigotski (1996), a proposta de P. P. Blonski

    1. Todas as citaes de Davidov, Elkonin e Vigotski foram extradas demateriais cujos originais foram traduzidos do russo ao espanhol. As tradu-es do espanhol ao portugus so nossas e foram feitas apenas para osfins deste trabalho.

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    em dividir os perodos da infncia a partir dosurgimento da dentio, um exemplo claro dessegrupo de teorias.

    Os eventos da dentio satisfazem asexigncias apontadas acima: relacionam-se comas peculiaridades do organismo em crescimento,sobretudo com os processos da calcificao e daatividade das glndulas de secreo interna; sofacilmente observveis; e sua constatao nooferece dvidas. No esquema de Blonski, ento,a infncia comportaria trs perodos: a) a infn-cia sem dentes; b) a infncia dos dentes de lei-te; c) a infncia da dentio permanente.

    Alguns autores desse grupo elegem ou-tros indcios, como o desenvolvimento sexual, porexemplo, ou ainda baseiam sua periodizao emcritrios psicolgicos.

    Vigotski critica essas teorias apontan-do-lhes trs defeitos. Em primeiro lugar, elasso subjetivas. A despeito de se valerem deindcios claramente objetivos como a erupodentria ou as transformaes da puberdade, aanlise que fazem desses eventos funda-senaquilo que mais chama a ateno em particu-lar. A idade por certo uma categoria objetiva,mas os signos que marcam a separao dasidades somente podem ser colocados naquelespontos especficos que marcam o trmino deuma etapa e o comeo de outra.

    Em segundo lugar, ao elegerem um cri-trio nico para delimitar as idades, ignoram queno curso do desenvolvimento o significado e ovalor de um sintoma se modifica. Isto , umindcio valioso num momento, como osurgimento da dentio, perde sua significaoem outros momentos mais tardios. A erupodentria um forte indcio do desenvolvimentoda criana, mas seu significado no permaneceidntico ao longo do tempo. A troca dos den-tes ou a erupo dos molares tm significaomuito distinta da que teve a primeira dentio.

    Enfim, essas teorias no levam em con-ta que a reorganizao do processo de desen-volvimento modifica a importncia e o signifi-cado do prprio indcio eleito quando se pas-sa de uma idade a outra. E por essa razo

    que no se pode periodizar a infncia a partirde um critrio nico para todas as idades.

    Em terceiro lugar, essas teorias investi-gam indcios externos do desenvolvimento eno a essncia do processo. Nesse ponto acrtica vigotskiana est fundada na concepomarxista de cincia, segundo a qual a essnciados objetos no coincide com a manifestaoexterna dos mesmos. Em acordo com a visomaterialista dialtica, a tarefa da psicologiadeixa de ser o estudo do sintoma, dos indciosexternos, para voltar-se investigao doscondicionantes do sintoma ou dos indcios. Ouseja, cabe psicologia evolutiva ocupar-se comas leis internas do processo de desenvolvimen-to infantil. Assim, Vigotski (1996) renuncia aqualquer tentativa de classificar as idades a partirde sintomas, em favor de uma periodizaobaseada na essncia do processo de desenvol-vimento psicolgico.

    O terceiro grupo de teorias consistenuma tentativa de superar o estudo do fen-meno por meio da investigao das peculiari-dades essenciais do processo de desenvolvimen-to. No entanto, essas teorias no lograram xitoporque sua escolha metodolgica, sendodualista, as impediu de considerar o desenvol-vimento infantil com um processo nico deautodesenvolvimento. De acordo com Vigotski(1996), a teoria de Arnold Gesell faz parte dessegrupo.

    Gesell elaborou uma periodizao basea-da na mudana do ritmo interno, que determina,por sua vez, volumes maiores de desenvolvi-mento medida que a maturao nervosa avan-a. A etapizao geselliana centra-se numa di-viso da infncia em perodos isolados ou on-das rtmicas de desenvolvimento. Para Gesell, acriana possui traos e tendncias constitucio-nais, em sua maioria inatos, que determinamcomo, o que, e at certo ponto quando, elapoder aprender (Tran-Thong, 1981). Por meioda maturao a criana vai se apoderandodesses traos e tendncias, num processo ina-to de crescimento. E mediante um outro pro-cesso, de aculturao, a criana apodera-se da

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    herana social e cultural do seu meio.Por intermdio da interao e da fuso

    entre os processos de maturao e aculturao,a criana vai se constituindo. Todavia, na con-cepo geselliana, o processo de maturao o mais importante, de modo que a aquisio dacultura nunca o ultrapassa. O meio pode orien-tar e especificar por condicionamento o desen-volvimento, mas no cria ou orienta as progres-ses deste.

    Ora, essa preponderncia da maturaosobre a cultura afasta irremediavelmente Gesellde Vigotski, para quem a cultura mediada pelooutro no apenas est na base do processo deconstituio do psiquismo, como potencializa odesenvolvimento para alm de aquisies espe-cficas de uma dada faixa etria cronolgica. Odesenvolvimento , para Vigotski, um processoautocondicionado e contnuo e no um proces-so marcado pelo dualismo entre o hereditrio eo ambiental.

    Vigotski, embora admita que o trabalhode Gesell se constitua como uma importantetentativa de superao das tendncias bioge-ntica e fenomenolgica, critica sua concepoevolucionista, que no considera que o proces-so de desenvolvimento produz mudanas qua-litativas. Para Gesell, o processo de desenvolvi-mento se d como uma atualizao de poten-ciais a priori, sendo os primeiros meses de vidada criana cruciais para o desenvolvimentoposterior. De acordo com Vigotski, o erro deGesell radica na sua aceitao de que a crian-a cresce e se desenvolve com base no que dado desde o princpio. Na realidade, afirma oautor russo, o desenvolvimento caracteriza-se,em primeiro lugar, pelo surgimento de forma-es qualitativamente novas, com ritmo prprioe que precisam sempre de mediaes especiais.

    Diante do exposto, que critrio poderia serutilizado para a estruturao de uma periodizaoque supere uma fenomenologia do sintoma emfavor de uma periodizao baseada na dinmica doprocesso de desenvolvimento? Para Vigotski(1996), o fundamento verdadeiro da periodizaodeve ser buscado nas mudanas internas do pr-

    prio desenvolvimento, porque somente essas mu-danas podem proporcionar uma base slida paraa determinao dos principais perodos de forma-o da personalidade da criana, chamados peloautor de idades.

    O desenvolvimento um processo quese distingue pela unidade do material e do psi-colgico, do social e do pessoal, medida quea criana se desenvolve. Uma investigaocriteriosa, pois, deveria centrar-se nas formaesnovas, graas s quais se pode determinar oessencial em cada idade. Uma formao nova

    o novo tipo de estrutura da personalidade e desua atividade, as transformaes psquicas esociais que se produzem pela primeira vez emcada idade e determinam, no aspecto mais im-portante e fundamental, a conscincia da crian-a, sua relao com o meio, sua vida interna eexterna, todo o curso de seu desenvolvimento noperodo dado. (Vigotski, 1996, p. 257)

    Mas uma periodizao consistente pre-cisaria, ainda, considerar a dinmica do desen-volvimento infantil e a dinmica de passagemde uma idade a outra. As transformaes doprocesso de desenvolvimento podem ocorrer demaneira lenta e gradual, ou de modo crtico eviolento.

    Compreender teoricamente uma idade,diz Vigotski (1996, p. 338), significa encontrara mudana na personalidade da criana em suatotalidade, dentro da qual todos os seus elemen-tos ficam esclarecidos, uns em qualidade de pre-missas, outros como momentos determinados.

    Em algumas idades o desenvolvimentose processa de um modo em que as mudanasna personalidade ocorrem muito lentamente,quase imperceptveis. Durante um lapso de tem-po, mais ou menos longo, no se produzemmudanas bruscas nem desvios capazes dereestruturar a personalidade inteira da criana.As transformaes que se originam na persona-lidade da criana, nessas idades, so resultadode um lento e oculto processo, que somentetornam visvel seu produto aps um perodo de

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    tempo relativamente longo.Desse modo, nas idades estveis, o

    desenvolvimento se deve, principalmente, smudanas microscpicas que ocorrem na per-sonalidade e vo se acumulando at que, apsum certo limite, repentinamente se manifestemcomo uma formao qualitativamente nova.Analisando-se a infncia pelo critrio cronol-gico, observa-se que sua quase totalidadecorresponde a perodos estveis. Mas se a an-lise recair sobre o trmino de uma idade est-vel e o incio de outra, a se ver que ao lon-go do processo de desenvolvimento grandestransformaes so operadas na personalidadeda criana.

    As passagens de uma idade a outra,como por exemplo da pr-escolar para a escolar,so marcadas por crises mais ou menos violen-tas. No entanto, essas crises so consideradaspor alguns estudiosos como um desvio danorma, uma patologia do processo. Vigotski, porsua vez, entende que as crises so tambm um tipode desenvolvimento e seu intento de sistematiz-las, explic-las e integr-las no esquema geral dodesenvolvimento infantil deve ser entendido comouma importante contribuio desse autor.

    Particularmente achamos a uma aproxi-mao entre as teorias de Wallon e de Vigotski.Para o primeiro, as crises so constituintes doprocesso de desenvolvimento e manifestadaspela dialtica entre as leis de alternncia, predo-minncia e integrao funcionais. Para o segun-do, as crises, que so mais ou menos localiza-das nos momentos de viragem de uma idade aoutra, so, igualmente, parte inseparvel do pro-cesso de desenvolvimento psicolgico.

    Os perodos de crise apresentam algu-mas peculiaridades e por elas se distinguem dasidades estveis. Durante uma crise, num lapsode tempo relativamente curto, mudanas brus-cas e rupturas acontecem no psiquismo dacriana, de modo que sua personalidade mudapor completo.

    A primeira peculiaridade dos perodoscrticos caracteriza-se pela emergncia repentinae quase imperceptvel das crises, o que dificulta

    a determinao de seu comeo e fim em rela-o s idades contguas e pelo fato de essesperodos apresentarem, claramente, um mo-mento de agudizao da crise.

    A segunda peculiaridade desses pero-dos que justamente a agudizao da crise consiste em que muitas crianas, quando osvivenciam, tornam-se muito reativas educa-o. Quando se trata de escolares, observa-sequeda no rendimento e no interesse pelas au-las e diminuio geral de sua capacidade detrabalho. Nos perodos de crise, ainda, muitascrianas podem entrar em conflito mais oumenos agudos com as pessoas de seu entorno,bem como sofrer dolorosas vivncias e confli-tos ntimos (Vigotski, 1996, p. 256). Todavia,isso tudo no se trata de regra com poucasexcees; muitas crianas em crise no apre-sentam dificuldades educativas, tampouco derendimento escolar e de trabalho.

    Os elementos determinantes do carterconcreto da manifestao das crises devem serbuscados no nas disposies internas da cri-ana, mas nas condies materiais concretas deseu contexto externo. Por isso, dadas as ml-tiplas conformaes contextuais nas quais ascrianas, como um todo, esto inseridas, en-contram-se muitas possibilidades dspares emultiformes de manifestao das idades crticas.E mesmo que se considerem crianas inseridasem contextos muito parecidos do ponto devista social e de desenvolvimento, ainda assimas diferenas entre elas sero muito mais agu-das nos perodos crticos do que nas idadesestveis.

    No entanto, no a presena ou au-sncia de condies externas especficas queprovocam as crises nas crianas. O surgimentodos perodos crticos faz parte da prpria lgicainterna do processo de desenvolvimento. E talprocesso no consiste numa sucesso determi-nada de eventos, cuja manifestao est con-dicionada ao ambiente.

    A terceira peculiaridade das idades cr-ticas, e talvez a mais importante, que elas seapresentam como se tais momentos fossem

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    negativos, como opinam alguns autores. Isto ,nessas idades a ndole criadora do desenvolvi-mento cede espao para manifestaes quemelhor se caracterizariam como destruidoras edesintegradoras dos ganhos obtidos na idadeestvel imediatamente anterior. Por isso, a cri-ana parece mais perder terreno j conquista-do do que propriamente avanar. Assim, o quecaracteriza o surgimento das etapas crticas no o surgimento de novos interesses e atividades,tampouco de novas formas de vida interior.Pelo contrrio, as crianas, ao entrarem nosperodos de crise, perdem o mpeto com queantes se entregavam s atividades que lhesdespertavam o interesse ou que ocupavam amaior parte de seu tempo e ateno. Pode serobservado, ainda, nessas crianas, como queum vazio em suas relaes externas e em suavida interior.

    Mas, em que pesem as caractersticasapontadas acima, Vigotski (1996) entende queas etapas crticas no devem ser caracterizadascomo essencialmente negativas. Na verdade, ofato de o complexo percurso em direo aocrescimento conter em si processos de reduoe de extino indicativo do carter dialticodo processo de desenvolvimento psquico.Ento, se desenvolvimento significa transforma-o e avano, mesmo os momentos crticosseriam de criao, por mais contraditrio queisso possa parecer. E no processo de desenvol-vimento psicolgico, o velho deve desaparecerinapelavelmente para dar lugar ao novo e essedesaparecimento comea a ocorrer justamentenas etapas crticas. Com efeito, o desenvolvi-mento nunca interrompe sua obra criadora e osprocessos involutivos, na verdade, subordinam-se e dependem dos processos positivos deconstruo da personalidade, formando comeles um todo indissolvel. Sucede, portanto,que o trabalho destrutivo que se realiza nosperodos crticos parte de um processo decrescimento e, em sendo assim, trata-se de ele-mento indispensvel da criao do novo. Comodiz o autor em questo, o contedo negativodo desenvolvimento nos perodos crticos to

    somente a faceta inversa ou velada das mudan-as positivas da personalidade que configuramo sentido principal e bsico de toda idade cr-tica (Vigotski, 1996, p. 259).

    Enfim, o essencial dos perodos crticos o surgimento de formaes novas peculiares,que no se mantm, todavia, como instnciasindependentes, mas que participam do desen-volvimento em estado latente.

    Consideraes finais

    Ao apresentar alguns aspectos das teo-rias de Wallon e Vigotski acerca do desenvolvi-mento psicolgico, enfatizamos que esses auto-res desenvolveram seus trabalhos sob a ticado materialismo dialtico, fato esse que osaproxima.

    Uma importante diferena entre as psi-cologias de base materialista dialtica e asdemais a recusa das primeiras em enquadraro desenvolvimento psicolgico em esquemasrgidos, orientados por uma lgica linear. Isso particularmente observvel em Wallon eVigotski, como demonstramos. No que diz res-peito teoria walloniana, apresentamos doisaspectos: o processo de desenvolvimento dopsiquismo, realando o jogo de alternnciaentre cognio e afeto ao longo do tempo e asrelaes entre razo e emoo. Ou seja, a idiade que o conflito se apresenta como parteinseparvel e constitutiva do processo de cons-tituio do psiquismo.

    Em relao a Vigotski, enfatizamos queo estudo do desenvolvimento psicolgico devepartir da anlise do desenvolvimento da ativi-dade da criana, tal como ela se processa nascondies concretas de sua vida. Na concep-o vigotskiana, pois, qualquer periodizaodeve levar em conta as mudanas na ativida-de integral da criana, porque sua personali-dade muda como um todo integral em sua es-trutura interna no percurso do desenvolvimen-to. Em ambos os casos tentamos evidenciarque em cada um desses autores encontramosa idia de que o desenvolvimento psicolgico

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    marcado por conflitos e pela alternnciaentre perodos estveis e crticos.

    Finalmente, gostaramos de mencionarque esses dois autores, contemporneos entre si,tiveram conhecimento do trabalho um do outro.No obstante, porque teve uma vida curta,Vigotski tomou contato2 apenas com as primeirasobras de Wallon. Este, por sua vez, ao que tudo 2. No livro sobre psicologia infantil em que trabalhara entre os anos de1932 e 1934, Vigotski cita diversas vezes trabalhos de Wallon.

    indica, conheceu Vigotski em 1954 (Golder,2002), depois de um encontro, em Paris, comLeontiev. Nessa ocasio, o psiclogo russo mos-trou ao colega francs alguns dos primeiros tex-tos de Vigotski e pediu que fossem publicados.

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    Recebido em 25.06.02Aprovado em 29.09.03

    Edival Sebastio Teixeira professor de psicologia e membro do Centro de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Regional Cepad/Cefet-PR Unidade de Pato Branco. Mestre em Educao pela Unesp/Marlia, doutorando em Educao na FEUSP.