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Universidade Presbiteriana Mackenzie 1 O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL Tédney Moreira da Silva (IC) e Hélcio de Abreu Dallari Jr. (Orientador) Apoio: PIVIC Mackenzie Resumo Este artigo estuda o direito à saúde aos Povos Indígenas no Brasil, o que implica o reconhecimento da extensão clara e imprescindível aos seus membros do direito fundamental de todo ser humano de gozar e fruir uma vida saudável e digna, com atendimento às exigências de cura de doenças e manutenção de hígidos estados físico, mental e social por serviços de saúde que assegurem o bem- estar biológico, psicológico, social e espiritual dos indivíduos e coletividades, com respeito às diferenças culturais incidentes, vez que intrínsecas à consciência dos povos originários como tais. Entretanto, os problemas enfrentados pelas populações indígenas, no que toca ao acesso aos serviços de saúde pública e aos mecanismos de cura de doenças e, mesmo, de saneamento básico, são indissociáveis daqueles que também refletem outros processos de marginalização, como o desrespeito aos seus direitos às terras, às línguas, às crenças e à própria existência. A presente pesquisa, portanto, propõe-se à investigação da normatização do direito à saúde aos Povos Indígenas no Brasil, por meio de breve levantamento histórico dos principais regramentos desde a colonização das terras brasileiras, com o intuito de averiguar seu respeito à diversidade cultural existente, bem como apontar as mudanças que se fizerem necessárias para a confluência indispensável de paradigmas que caracterizam tanto a medicina científica (ou medicina convencional) e a medicina indígena, no atendimento integral das populações indígenas no sistema público de saúde. Palavras-chave: direito à saúde, povos indígenas, etnomedicina Abstract This article studies the Indigenous Peoples’ right to health in Brazil, which entails the sheer recognition of the clear and indispensable coverage of their members by the fundamental right of every human being to having and enjoying life with health and dignity by meeting the demands for the cure of diseases and maintaining healthy thus physical, mental and social state through health services that assure the biological, psychological and spiritual well-being of the individuals and the collectivity with respect to incidental cultural differences, which are inherent to the consciousness of the indigenous peoples as such. In the meantime, the problems the indigenous peoples face in having access to public health services and to the mechanisms of curing diseases and even to basic sanitary conditions are unseparable of problems that also reflect other marginalization processes, such as the disrespect for their right to land, language, beliefs and their own existence. This research, therefore, intends to investigate the regulation of the Indigenous Peoples’ right to health in Brazil by a brief survey on the history of the main rules since colonization of Brazil’s land, in order to look into the respect to the existing cultural diversity and also to demonstrate the changes called for to the indispensible confluence of paradigms charactirizing both the scientific medicine (or conventional medicine) and the Indigenous medicine in the coverage of the Indigenous populations by the public health system. Key-words: right to health, Indigenous peoples, ethnomedicine

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Em parceria com a Professora Helena Abascal, publicamos os relatórios das pesquisas realizados por alunos da fau-Mackenzie, bolsistas PIBIC e PIVIC. O Projeto ARQUITETURA TAMBÉM É CIÊNCIA difunde trabalhos e os modos de produção científica no Mackenzie, visando fortalecer a cultura da pesquisa acadêmica. Assim é justo parabenizar os professores e colegas envolvidos e permitir que mais alunos vejam o que já se produziu e as muitas portas que ainda estão adiante no mundo da ciência, para os alunos da Arquitetura - mostrando que ARQUITETURA TAMBÉM É CIÊNCIA.

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Universidade Presbiteriana Mackenzie

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O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Tédney Moreira da Silva (IC) e Hélcio de Abreu Dallari Jr. (Orientador)

Apoio: PIVIC Mackenzie

Resumo

Este artigo estuda o direito à saúde aos Povos Indígenas no Brasil, o que implica o reconhecimento da extensão clara e imprescindível aos seus membros do direito fundamental de todo ser humano de gozar e fruir uma vida saudável e digna, com atendimento às exigências de cura de doenças e manutenção de hígidos estados físico, mental e social por serviços de saúde que assegurem o bem-estar biológico, psicológico, social e espiritual dos indivíduos e coletividades, com respeito às diferenças culturais incidentes, vez que intrínsecas à consciência dos povos originários como tais. Entretanto, os problemas enfrentados pelas populações indígenas, no que toca ao acesso aos serviços de saúde pública e aos mecanismos de cura de doenças e, mesmo, de saneamento básico, são indissociáveis daqueles que também refletem outros processos de marginalização, como o desrespeito aos seus direitos às terras, às línguas, às crenças e à própria existência. A presente pesquisa, portanto, propõe-se à investigação da normatização do direito à saúde aos Povos Indígenas no Brasil, por meio de breve levantamento histórico dos principais regramentos desde a colonização das terras brasileiras, com o intuito de averiguar seu respeito à diversidade cultural existente, bem como apontar as mudanças que se fizerem necessárias para a confluência indispensável de paradigmas que caracterizam tanto a medicina científica (ou medicina convencional) e a medicina indígena, no atendimento integral das populações indígenas no sistema público de

saúde.

Palavras-chave: direito à saúde, povos indígenas, etnomedicina

Abstract

This article studies the Indigenous Peoples’ right to health in Brazil, which entails the sheer recognition of the clear and indispensable coverage of their members by the fundamental right of every human being to having and enjoying life with health and dignity by meeting the demands for the cure of diseases and maintaining healthy thus physical, mental and social state through health services that assure the biological, psychological and spiritual well-being of the individuals and the collectivity with respect to incidental cultural differences, which are inherent to the consciousness of the indigenous peoples as such. In the meantime, the problems the indigenous peoples face in having access to public health services and to the mechanisms of curing diseases and even to basic sanitary conditions are unseparable of problems that also reflect other marginalization processes, such as the disrespect for their right to land, language, beliefs and their own existence. This research, therefore, intends to investigate the regulation of the Indigenous Peoples’ right to health in Brazil by a brief survey on the history of the main rules since colonization of Brazil’s land, in order to look into the respect to the existing cultural diversity and also to demonstrate the changes called for to the indispensible confluence of paradigms charactirizing both the scientific medicine (or conventional medicine) and the Indigenous medicine in the coverage of the Indigenous populations by the public health system.

Key-words: right to health, Indigenous peoples, ethnomedicine

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INTRODUÇÃO:

Considerado um direito social (ante sua natureza determinada pela segunda dimensão1 de

direitos humanos), o direito à saúde está garantido pela Constituição Federal da República

Federativa do Brasil, datada de 1988, em seu artigo 6º, caput2, devendo ser assegurado por

um conjunto integrado de ações do Poder Público e da sociedade, denominado seguridade

social.

E, nos termos expressos do artigo 196 da Constituição Federal, será o direito à saúde

garantido pela execução de políticas sociais e econômicas, com o intuito de reduzir o risco

de doenças e outros agravos, assim como o de possibilitar o acesso universal igualitário de

todos os jurisdicionados às ações e serviços que promovam, protejam e recuperem a saúde

lesada.

Pelas características de universalidade e equanimidade do acesso aos serviços e ações de

saúde, deverá o Estado identificar quais os mecanismos adequados às suas políticas

públicas, uma vez que difiram ante as características próprias de cada região ou mesmo

pelos preceitos, crenças e valores de seus destinatários. É a demanda costumeira das

populações indígenas no Brasil.

Por certo, muito embora se reconheça o direito à saúde como um direito fundamental, desde

a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, são os povos indígenas e seus

membros, por vezes, excluídos de seus destinatários, uma vez que se encontram

submetidos a políticas públicas desiguais, que menosprezam os frutos de sua medicina

tradicional, abarcada esta por seu direito à diversidade cultural, bem como a opõem a uma

medicina convencional, desvinculada, no mais, das raízes étnicas que aquela definem.

Dado que os conceitos de saúde e debilidade relacionam-se à cosmovisão de cada povo, no

processo de elaboração de políticas públicas de saúde voltadas às comunidades indígenas

deve o Estado pautar-se pelo respeito à diversidade cultural que as caracteriza, buscando

antes uma pluralidade de mecanismos de prevenção, tratamento e recuperação da saúde

1 Os direitos humanos (considerados, terminologicamente, direitos fundamentais, por doutrinadores alemães) resultam de reivindicações e conquistas da sociedade civil organizada ante ingerências do Poder Público, como limites à sua atuação diante de direitos considerados essenciais à existência e dignidade da pessoa humana. É do pensador alemão NORBERTO BOBBIO a exposição dos direitos humanos em diferentes dimensões, contrariamente às suas colocação e expressão em gerações, de uso corrente. Isto porque a idéia de gerações poderia sugerir que umas sobrepõem às outras, seja pela ordem cronológica em que se apresentam, seja pela importância dos eventos históricos que as determinaram. Falar-se em dimensões, por sua vez, sugeriria exatamente o oposto: que os direitos humanos historicamente conquistados e determinados são simultâneos e se interpenetram, não sendo excludentes, mas, antes, cumulativos. A segunda dimensão de direitos humanos corresponde aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, constantes em grande parte dos ordenamentos jurídicos hodiernos. 2 Sua redação original é a que segue: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

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que sua homogeneidade e indistinção. Cada um dos povos indígenas compreende, pelo

arcabouço cultural que os define, de maneira sui generis, o que seja uma existência

saudável, exigindo, conseqüentemente, um sistema de saúde específico ou, ao menos,

multifacetado.

Desta forma, a desvinculação dos programas de saúde estatais com os sistemas de saúde

tradicionais representa, simultaneamente, uma minoração da identidade étnica de seus

pacientes e infrutíferos resultados.

O estudo sobre a garantia e efetividade do direito à saúde no âmbito indigenista coloca

também outras dificuldades. Conceitos de saúde e enfermidades, de tratamentos médicos

convencionais ou terapêuticos confrontam-se constantemente e, geralmente, estabelecem

ao final como hegemônica tão-só a medicina científica (ou convencional), assim nomeado o

conjunto de conhecimentos teóricos e práticos, baseado em observações de relações de

causa e efeito, sob o qual amparamos nosso sistema de prevenção, diagnóstico e cura de

doenças, por meio de intervenções farmacológicas (químicas), clínicas e cirúrgicas, com

metodologias específicas.

Certo que muitas doenças que acometem as populações indígenas demandam um

tratamento próprio da medicina convencional, mas ainda para tais ocorrências o saber

medicinal tradicional é a primeira via de que se socorrem os enfermos, mesmo quando se

sabe, de antemão, tratar-se de doença de branco (expressão utilizada para referir-se, em

geral, às doenças cuja explicação foge à cosmovisão da coletividade e aos mecanismos de

cura tradicionais, advindas do contato com os brancos nas relações interculturais).

Com características demasiado antagônicas é que o saber medicinal das populações

indígenas é relegado aos estudos antropológicos, sendo pouco aproveitados nas políticas

públicas de saúde realizadas pelo Estado. Ao reduzir a importância e eficácia das práticas

médicas indígenas, reduz-se não só ainda mais sua identidade étnica como o próprio êxito

nas curas e sucesso das táticas de prevenção, posto que a cura está, na maior parte das

vezes, associada à cosmovisão da coletividade, numa relação harmônica entre o corpo e o

espírito, o indivíduo e a sociedade, o homem e a natureza.

Em verdade, as epidemias que constantemente abatem as populações indígenas são frutos

de processos de marginalização a que estão submetidas, pelo não reconhecimento de seus

direitos originários e demais direitos básicos, como o direito à vida, à dignidade e ao acesso

aos serviços públicos de qualidade. A exclusão social e a inobservância de direitos

fundamentais impedem o cumprimento integral de políticas públicas de saúde eficazes. É de

questionar, por sua vez, se tal ineficiência concerne a uma falha do sistema estatal adotado

ou, antes, constitui seu silente objetivo.

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Para empreender esta crítica, é necessário, primeiramente, delimitar nosso objeto de estudo

e os principais pontos antagônicos para sua discussão. Afinal, se o direito à saúde é

considerado um direito fundamental e, pois, universal, seus contornos, contudo, divergem

quando partimos da hegemônica cultura ocidental ou dos sistemas de saúde múltiplos

provenientes das diversas populações indígenas existentes. Do mesmo modo, faz-se

imprescindível uma apresentação do atual quadro dos povos indígenas no Brasil, uma vez

que versaremos sobre sujeitos de direitos peculiares.

Num segundo momento, realizamos breve estudo histórico da atuação do Estado brasileiro

junto a estas comunidades, desde o período colonial até os movimentos de

redemocratização do Brasil, que marcaram sobremaneira os trabalhos do legislador

constituinte de 1988, enaltecendo-se desta forma as dificuldades havidas nas etapas de

normatização, elaboração e execução de ações e serviços de saúde na contemporaneidade.

Debruçamo-nos, também, sobre a legislação indigenista do século XX, caracterizada por

certo evolucionismo spenceriano que predestinava os indígenas à extinção gradual,

integrando-os à sociedade nacional, com atuação do antigo SPI (Serviço de Proteção aos

Índios) e criação da FUNAI (Fundação Nacional do Índio).

Por fim, investigamos os modos hodiernos de atuação do Estado brasileiro na execução de

ações e serviços de saúde aos povos indígenas e o que requerem os seus movimentos

políticos organizados, bem como os movimentos indigenistas para melhor atendimento às

suas exigências.

REFERENCIAL TEÓRICO:

Uma vez que fora reconhecido, ao longo do século XX, que a autolimitação dos poderes do

Estado frente à autonomia e aos direitos civis e políticos dos indivíduos que o compõem não

era, por si, suficiente ao alcance de uma justiça social (pois que tal atuação negativa do

Estado o impedia de intervir nas relações entre particulares, ainda que injustas e desiguais),

outros direitos (denominados sociais, por sua abrangente incidência) passaram a ser

exigidos como verdadeiras prestações do Estado, na proteção do bem comum e na busca

da pacificação dos conflitos da complexa sociedade que se organizava. Desta forma,

diversos direitos trabalhistas, bem como o direito à educação, à segurança pública, à

previdência social, à preservação da cultura e do patrimônio público e, principalmente, o

direito à saúde, ingressaram em diversos textos constitucionais como seu centro orientador.

Assim, tão justiciáveis e exequíveis como os direitos humanos (ou fundamentais) de

primeira dimensão (sendo estes os que se referem às liberdades civis e políticas dos

indivíduos, conforme entendimento da doutrina liberal que marcou as revoluções burguesas

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em fins do século XVIII), os direitos sociais fizeram nascer a consciência da necessidade de

se salvaguardar a realidade social (além dos interesses individuais), pois que esta, mais rica

e aberta à “participação criativa” da personalidade dos seus componentes, possibilita

plenamente a densidade dos valores existenciais, sem os quais o indivíduo pereceria

(BONAVIDES, 2008).

De fato, no que concerne à saúde, os mecanismos de sua prevenção, tratamento e cura

são, por essência, moldados pela sociedade e conduzidos em consonância à valoração que

se faz da vida e da morte, da higidez e da doença, das causas desta, efeitos e suas

reparações possíveis, afirmando-se, então, ser a medicina parte da cultura de um povo

(IIDH, 2006).

Em sociedades pluriculturais como a brasileira, marcadas pela comunhão de povos

originários3 e conquistadores, faz-se a distinção corrente entre a medicina tradicional e a

medicina científica (ou convencional), segundo os métodos e especificidades que as

caracterizam.

A primeira, como conjunto de conhecimentos, práticas e crenças duma coletividade,

suportada pela existência de agentes promotores da saúde, que assim são reconhecidos

socialmente, e pela utilização de ervas medicinais e outros tratamentos terapêuticos

singulares, é solicitada e afirmada pela própria comunidade como válida e suficiente, uma

vez que nela confia a sorte das enfermidades que a cometem. Tais doenças, ademais,

possuem uma conotação cultural, pois que vinculadas aos preceitos e valores que

fundamentam a existência da coesão social. Significa dizer que são as doenças, para a

medicina tradicional, geradas a partir da quebra do equilíbrio entre o corpo e o espírito, a

sociedade e a natureza ou entre a conduta e a moralidade. A cura do enfermo, desta sorte,

corresponde ao restabelecimento deste “Todo” que, por algum modo, fora rompido,

questionado ou ameaçado, cabendo, por vezes, a toda coletividade sua atuação positiva em

busca da extirpação dos males sofridos.

Por sua vez, a medicina científica analisa o enfermo não em sua “totalidade” (como pessoa

– corpo/espírito – integrada ao meio e à moralidade apreendida), mas em seu aspecto

fragmentário, específico, ou seja, busca as causas dos efeitos nocivos que enxerga, de

3 A utilização de expressões tais como sociedades primitivas, originárias e mesmo sociedades indígenas, desde

já, coloca-nos a dificuldade lingüística intrínseca para se versar seriamente sobre tais comunidades, respeitando-se, pois, suas organizações política, econômica, cultural e social. Isto porque todas elas estão eivadas de certo evolucionismo que dispõe as sociedades em graus de desenvolvimento diversos, tendo-se o último patamar (mais elevado) representado pela civilização ocidental da qual fazemos parte. Ainda, esta qualificação generalizante suprime a diversidade existente, nivelando todas as sociedades por características que são tão-somente circunstancialmente semelhantes. Superada, entretanto, a discriminação que poderia provir destas expressões, utilizá-las-emos em consonância à escrita costumeira e ao discurso político tradicional que se deseja investigar.

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modo superficial e físico, por seção corporal, para, uma vez identificadas razões da doença,

nelas se debruçar, restaurando o equilíbrio rompido. Seus métodos de cura são o emprego

de teorias científicas aliadas à utilização de tecnologias farmacológicas, clínicas e cirúrgicas,

tornando o corpo humano seu objeto de intervenção.

Enquanto o núcleo de interesse médico da medicina tradicional é integral e profundo,

procurando por explicações espirituais e morais para a cura plena dos enfermos, na

medicina científica as atenções convergem às causas isoladas, não havendo integração

entre médicos (assim habilitados) para o tratamento dos indivíduos, salvo se os efeitos da

causa da doença refletirem noutras “áreas” do saber medicinal convencional, reclamando

um tratamento “em conjunto” (IIDH, 2006).

Em virtude destas disparidades de metodologia e de entendimento sobre os limites da cura

e da doença, é que inúmeras são as dificuldades enfrentadas pelas políticas públicas no

atendimento às demandas por saúde das populações indígenas, amparadas pelo saber

tradicional que lhes dá identidade e coesão ao grupo, uma vez que, quando aplicadas, o são

de forma desconhecedora das peculiaridades da medicina tradicional de seus destinatários

ou em desrespeito a valores outros que não se dissociam do restabelecimento integral da

saúde ao enfermo.

Em outras palavras, todo o bojo da medicina tradicional resta ignorado pelos agentes de

saúde do Estado, como prestadores de um serviço público, em geral, orientados e formados

por conceitos e métodos da medicina convencional. Se não for ignorado, é afastado ou

desrespeitado por insuficiente ou ineficaz ante a modernidade técnica e o aperfeiçoamento

das teorias científicas da sociedade civilizada (IIDH, 2006).

Estas considerações encontram respaldo em razões político-filosóficas ultrapassadas (ao

menos, às academias): as sociedades indígenas e seus valores (como o saber medicinal)

são tidas por refratárias, atrasadas na evolução das sociedades humanas, primitivas – pois

que representariam o estágio inicial de organização de toda a humanidade – e inexperientes

aos desafios próprios da vida e da coexistência, como a formulação de sistemas de saúde

ou mesmo às próprias organizações política e econômica. Diante da evoluída sociedade

civilizada (em oposição à selvageria e barbárie que definiriam aqueles povos), seus métodos

e explicações não desencantadas do mundo – o que, do contrário, sugeriria uma

racionalidade própria da modernidade ocidental – são, por essência, insatisfatórios ou, em

termos de um evolucionismo biológico aplicado às sociedades, “infantis” (RIBEIRO, 1993).

Ademais, em fins do século XIX, diante da expansão das conquistas políticas, econômicas e

tecnológicas inspiradas pelo auge do racionalismo europeu e por descobertas científicas

que conduziriam ao positivismo e evolucionismo como explicações também extensíveis aos

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agrupamentos humanos, os indígenas e seus saberes foram sendo, paulatinamente,

degradados como partícipes de somenos importância à sociedade e suas conquistas.

Neste sentido foram as conclusões de Von Martius4, para quem os indígenas reuniam, em

sua natureza, simultaneamente, as deficiências pertinentes à infância e à senilidade:

Permanecendo em grau inferior da humanidade, moralmente, ainda na infancia, a civilização não o altera, nenhum exemplo o exita e nada o impulsiona para um nobre desenvolvimento progressivo. Assim parecendo estar ainda na minoridade, a sua incapacidade para o progresso assimilha-o a um velho estacionario; reune, pois, em si os polos appostos da vida intellectual.

Este estranho e inexplicavel estado do indigena americano até o presente, tem feito fracassarem todas as tentativas para concilial-o inteiramente com a Europa vencedora e tornal-o um cidadão satisfeito e feliz. E é exactamente nesta sua natureza dupla que a sciencia encontra a maior difficuldade para esclarecer a sua origem e determinar na epoca da historia antiga a que elle, ha millenios pertence, sem comtudo ter progredido. (1938?) 5

Para Teixeira de Sousa e Sousa Lima, inspirados pela medicina convencional e pelo

evolucionismo spenceriano que, aos poucos, se organizava e ganhava adeptos em nosso

País, as “sciencias medico-pharmaceuticas” indígenas deveriam corresponder ao seu grau

de evolução fetichista, assim resumindo os autores suas práticas e tendências:

A mentalidade do selvagem não ascende além da capacidade de especular sobre o conjunto das existências materiaes. No homem primitivo, como na nossa infancia individual, o sentimento da personalidade exterioriza-se e transporta-se á natureza inteira, de modo que só se concebem existindo fórmas de vida, não sendo a propria morte sinão uma continuação da vida sob novas fórmas. Tudo que ao contemplador primitivo se afigurava de extranho aspecto, como o phenomeno negativo da sombra, ou se denunciava em rapidas e raras apparições, como o raio e certos meteoros, o emocionava e enchia de supersticioso pavor. Similhante estado mental sobrevive não só na infancia, mas egualmente nos emotivos chocados por accidentes extraordinários ou por fortes agitações moraes. (1901)

Por esta razão e outras, é que velada ou abertamente se propugnava pela extinção dos

povos indígenas, pois que considerados inservíveis à nação brasileira que, formalmente, se

4 Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), botânico alemão, integrou a missão científica enviada ao Brasil pelos governos austríaco e bávaro, por ocasião da vinda da duquesa Leopoldina, noiva do futuro Imperador D. Pedro I. Percorreu, durante três anos, as terras brasileiras, chegando ao Rio de Janeiro em julho de 1817. Dentre suas obras encontra-se a Reise nach Braesilien (“Viagem ao Brasil”), em que relata seu convívio com os povos indígenas, incluindo índios antropófagos no interior do sertão. 5 Mantivemos a grafia original desta e doutras obras pesquisadas, apenas alterando-a quando imprescindível ao entendimento, preservando-se a escrita das fontes.

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constituía por meio da adoção do regime republicano, em 1889 (CARNEIRO DA CUNHA,

1987). Motivado por esta visão é que o diretor do Museu Paulista, Hermann Von Ihering,

publicaria na Revista Museu Paulista, volume VII, a seguinte nota:

Os actuaes indios do Estado de S. Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como tambem nos outros Estados do Brazil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos indios civilisados e como os Caingangs selvagens são um impecilio para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão o seu extermínio. (1908 apud ALMEIDA, 1908).

Em sentido oposto, no entanto, foram os esforços do Estado pela adoção de uma política

protetora aos povos indígenas, com respeito à sua integridade física, embora de caráter

assimilacionista, que considerava inevitável o gradual abandono de suas culturas para

integração à sociedade nacional circundante.

A principal contribuição à sua salvaguarda, entretanto, de caráter positivista, proveio da

intervenção humanitária de Cândido Mariano da Silva Rondon. Convocado para compor a

comissão construtora de linhas telegráficas, com a missão de conectar o Rio de Janeiro, já

ligado à capital de Mato Grosso, com os territórios de Goiás, Amazonas e Acre

(ROQUETTE-PINTO, 1935), coibia, à medida que avançava, ataques aos povos indígenas

que encontrava.

No governo de Afonso Pena (1906-1909), Rondon foi convocado para ligar o Acre ao

Cuiabá. Ampliando suas funções, tornou a nova expedição telegráfica (desta feita conhecida

como Comissão Rondon), também uma expedição científica, reunindo o maior número

possível de dados geográficos, botânicos, antropológicos e zoológicos.

Como resposta, ainda, à pretensão de extermínio dos indígenas anteriormente aventada por

von Ihering, e às acusações de massacres realizados pelo Estado brasileiro, proferidas no

XVI Congresso de Americanistas, em 1908, na Áustria, foi criado o Serviço de Proteção aos

Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910, por força do Decreto

nº. 8.072, de 20 de junho daquele ano (LIMA, 2006). Inicialmente destinado à capacitação

dos indígenas para mão de obra rural (considerando que o SPILTN fora submetido ao

Ministério da Agricultura), o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), assim caracterizado por

força da Lei Orçamentária 3.454, de 06 de janeiro de 1918, também tinha por meta o

atendimento médico das populações indígenas, conforme realizada a assimilação.

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Figura 1.

Telegrama enviado pela Comissão Rondon, em 10 de maio de 1919, à Faculdade de Medicina do Estado de São Paulo, solicitando a integração à equipe do Dr. Guilherme Milvard, então professor daquela instituição de ensino.

A expedição ficou marcada por ser o primeiro contato de caráter pacifista com as populações indígenas, com a atuação fulcral de MARECHAL RONDON (Fonte: Acervo do Arquivo do Estado de São Paulo).

Eis o que nos informava Luís Bueno Horta Barbosa, então inspetor do SPI, para quem “(...)

os variados e dolorosos padecimentos morais e práticos que os afligem: a desorganização

das famílias, a degradação das mulheres, o alcoolismo, as doenças mortíferas e

repugnantes, a miséria física e por fim a morte” proviriam de sua condição “tribal”, uma vez

que os povos indígenas não teriam recebido “(...) suficiente amparo da ordem social em cujo

seio vivem, por ainda não terem atingido a inteira e indispensável assimilação da

mentalidade correspondente” (1947).

Grande parte das doenças que acometiam as populações indígenas de modo letal adveio do

contato estabelecido com os conquistadores. Em fins de 1563, por exemplo, em Salvador

(na capitania real da Bahia), a varíola provocou a morte de 500 mil índios, somados aos 30

mil indígenas que no ano anterior, em apenas três meses, faleceram pela disseminação de

uma peste vinda de Portugal (CIMI, 2001).

As epidemias desconhecidas dos indígenas, como gripe, sarampo e bexiga, são apontadas

com freqüência como a principal causa de sua elevada mortandade nos escritos de jesuítas,

no período colonial. No decorrer do século XX, esta realidade não se alteraria.

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A restrição territorial, o impacto ambiental provocado pelos projetos desenvolvimentistas promovidos pelo governo nacional, e a inserção crescente no mercado regional impõem transformações nas formas de subsistência dos grupos indígenas do Brasil. Atividades como a caça, a coleta e a pesca – muitas vezes realizadas através de um padrão seminômade de ocupação territorial – são prejudicadas com o sedentarismo em áreas restritas. Muitos grupos caçadores-coletores têm de abandonar parcial ou totalmente sua forma tradicional de produção de alimentos, o que leva a uma redução na variabilidade alimentar e a uma maior dependência de produtos industrializados. O consumo inadequado de alimentos introduzidos pós-contato, como açúcar, refrigerante, biscoitos e todos os carboidratos processados, associados às mudanças no estilo de vida dessas populações, têm provocado o surgimento de doenças crônico-degenerativas, características do mundo moderno, como obesidade, hipertensão e diabetes, inexistentes nestas populações há poucas décadas (ARANTES, 2008).

Era a continuação de um diálogo entre indígenas e não-indígenas que, em geral, resultava

na dissolução dos povos, pelo assassínio de seus membros ou pela degradação de seus

valores e costumes, em nome de um ideal integracionista. O contágio de doenças, desta

forma, realizava-se por vezes com propósitos calculados. Assim, quando os Canela

decidiram confraternizar-se com os civilizados contra outro subgrupo Timbira em troca de

roçados e campos de caça financiados pelo Governo – e estes recursos faltaram – a

solução finalmente veio:

(...) o plano era atrair os índios para a vila de Caxias, então atacada por uma epidemia de bexiga, a pretexto de uma nova guerra contra outra tribo Timbíra. Uma vez ali, as bexigas dariam cabo deles. Os índios deixaram-se enganar, atendendo ao chamamento. Em Caxias, durante vários dias nada lhes foi dado para se alimentarem e quando, premidos pela fome, quiseram colher legumes nas roças vizinhas da vila, caiu sobre eles todo o peso de uma punição premeditada. Foram presos e espancados, inclusive mulheres e crianças e dentre elas a esposa do principal chefe da tribo que, ao reclamar contra este tratamento, foi também fustigado. (RIBEIRO, 1993)

O SPI foi extinto por força dos inúmeros relatos de corrupção, bem como pela ocorrência de

grandes carnificinas de povos indígenas inteiros, como aquele conhecido por “Massacre do

Paralelo 11”, em que os Cintas Largas, que atualmente habitam os Estados de Mato Grosso

e Rondônia, foram dizimados pela ação de pistoleiros mediante a paga de interessados na

ocupação de suas terras, com participação de funcionários públicos daquele órgão.

O órgão tutor dos povos indígenas foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI),

criada pela Lei ordinária nº. 5.071, de 05 de dezembro de 1967. Além desta medida, foi

adotado o Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/1973) que, mantendo o ideal integracionista do

órgão substituído, declarou que teriam direito aos mesmos meios de proteção à saúde que

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se facultassem aos não-indígenas (comunhão nacional)6. As dificuldades de atendimento

satisfatório às reivindicações das populações indígenas, no entanto, persistiriam, ainda que

alterada estivesse a estrutura do novo órgão tutor.

Os povos indígenas são marcados pela habitual mortandade, violência e mesmo pela

prostituição de crianças e suicídios, como fuga da miséria. Entre os Caiuás (que designa

tanto os Guarani-Kaiowá como os Guarani-Ñandeva), localizados em grande parte em

Dourados (MS), a desnutrição infantil e o alcoolismo são suas maiores máculas, reduzidas

pelo fornecimento de cestas básicas realizado pelos governos estadual e federal. No início

do ano de 2007, entretanto, após a suspensão de distribuição de 11 mil cestas de alimentos

pelo governo estadual, seis mortes foram relacionadas à desnutrição, somadas às 47

crianças indígenas, menores de quatro anos de idade, que de 2005 até fevereiro daquele

ano padeceram de idêntica sorte (CORREA, 2007).

Sem se alterar este quadro, em março de 2009, nos termos do artigo 50, §2º, da

Constituição Federal (CF), a Mesa da Câmara dos Deputados encaminhou ao então Ministro

de Estado da Justiça, Tarso Genro, Requerimento de Informação (RIC 3.793/2009) sobre

oito toneladas de fubá e feijão que, destinados a compor as cestas básicas das populações

Caiuás e Terena, em Mato Grosso do Sul, tiveram o prazo de validade vencido antes de

serem entregues por agentes da FUNAI.

Se no início do século passado os grandes vilões que ameaçavam a integridade dos povos indígenas foram os vírus e bactérias trazidos pelos não-índios, na atualidade, as grandes ameaças são as transformações socioambientais às quais eles estão sendo submetidos desde a segunda metade do século XX até agora, início do século XXI. A restrição territorial e a adoção de novos regimes econômicos têm levado os povos indígenas a drásticas alterações nos sistemas de subsistência, ocasionando empobrecimento e dificuldade de sustentabilidade alimentar, muitas vezes com sérias conseqüências para a saúde dos grupos indígenas nacionais (ARANTES, 2008)..

As mudanças efetivas em prol da concretização do direito à saúde aos povos originários

ocorreriam após a aprovação da “Lei Arouca”7 (nº 9.836/99) pelo Senado Federal, que criou

o “Subsistema de Atenção à Saúde Indígena”, no Capítulo V, incluído na Lei nº 8.080 de

1990, que deu diretrizes à formulação do Sistema Único de Saúde (SUS).

6 Literalmente: “Art.54. Os índios têm direito aos meios de proteção à saúde facultados à comunhão nacional. Parágrafo único. Na infância, na maternidade, na doença e na velhice, deve ser assegurada ao silvícola especial assistência dos poderes públicos, em estabelecimentos a esse destinados”. 7 O nome foi dado em homenagem ao autor do Projeto de Lei, então Deputado Federal Sérgio Arouca.

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Por meio da “Lei Arouca”, o atendimento às demandas pela efetivação da saúde indígena foi

atribuído à Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão executivo do Ministério da Saúde.

A transferência dos recursos humanos e demais bens da FUNAI, voltados à prestação de

serviços de saúde aos povos indígenas, para a Funasa, foi possível graças à edição da

Medida Provisória nº 1.911-8, de 29 de julho de 1999.

Também o Decreto nº 3.156/1999 determinou as condições de atendimento daqueles povos

no âmbito do SUS. Na formulação de políticas públicas de saúde devem ser reconhecidas

as especificidades da cultura dos povos indígenas atendidos, bem como sua realidade local,

garantindo-se, de todo modo, o acesso dos seus membros ao Sistema Único de Saúde8.

A base do “Subsistema de Atenção à Saúde Indígena” (de caráter descentralizado,

regionalizado e hierarquizado, como o SUS) são os “Dseis – Distritos Sanitários Especiais

Indígenas”. Estende-se aos povos indígenas atendidos a possibilidade de participação nos

organismos colegiados (como o Conselho Nacional de Saúde, ou conselhos estaduais e

municipais, quando o caso) para formulação, acompanhamento e avaliação de políticas

públicas de saúde (Funasa, 2009).

A Funasa busca cumprir sua missão institucional por meio da criação e manutenção de

“Cores – Coordenações Regionais”, totalizando 26 (vinte e seis) em todos os Estados-

membros. Às Coordenações compete a administração do patrimônio e de recursos

humanos, bem como a realização de licitações para compra de insumos que tornem

possível a assistência à saúde. Oferecem, também, assistência jurídica aos Dseis (Funasa,

2009).

Além de ambos os órgãos, há o “Desai – Departamento de Saúde Indígena”, como gestor

central do “Subsistema de Atenção à Saúde Indígena”, cabendo-lhe desenvolver atividades

que dêem coesão àquelas dos Dseis, observando, sempre, a Política Nacional de Atenção

à Saúde dos Povos Indígenas.

Compete-lhe, também, assegurar-lhes a saúde considerando seu perfil epidemiológico e as

condições sanitárias em que se apresentam, executando suas metas de modo coordenado

ao “Densp – Departamento de Engenharia de Saúde Pública” no âmbito da Funasa

(Funasa, 2009).

Além de atender às demandas específicas das populações indígenas no que toca à

prevenção, tratamento e cura de doenças que lhes afetam, cabe à Funasa, por meio de

8 É o que dispõe o artigo 19-F da Lei nº. 8.080/1990, com redação dada pela Lei nº. 9.836/1999, cuja transcrição é a que segue: “Art. 19-F. Dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional”.

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seus órgãos auxiliares, a realização de atividades educativas quanto às medidas de

saneamento básico e prevenção de outras moléstias.

Figura 2.

Fonte: Páginas da cartilha “A cura de nossa aldeia”. Criação: Ziraldo. Arte-final: Miguel Mendes, Fábio Ferreira, Charles Bertho, Ferreth, Vanderlei Soares e Marco Antonio J. Ferreira.

Direitos autorais: Ministério da Saúde – Fundação Nacional de Saúde.

Por fim, embora não seja precisa a estimativa de quantos os indígenas e seus povos que

habitam o Brasil, podemos, na atualidade, referir-nos à existência de, ao menos, 232 povos

indígenas no Brasil, somando quase 600 mil indivíduos, falantes de mais de 180 línguas

indígenas contemporâneas (embora se faça, correntemente, menção a 190 línguas),

distribuídos pelas 645 Terras Indígenas (em diferentes etapas do processo demarcatório) e

capitais de todo o País. Só na Amazônia Legal vivem 60% dos indígenas, não havendo um

censo exato sobre os habitantes dos centros urbanos (ISA, 2011).

Tendo em vista um passado (recente) de dizimações e completo desconhecimento de suas

necessidades, como grupos social, política, econômica e culturalmente diferentes do que se

convencionou denominar como a “sociedade nacional” – e, principalmente, considerando os

elevados índices de mortalidade e miserabilidade que caracterizam sua existência – é a

presente pesquisa orientada à averiguação da eficácia (e eficiência) das medidas adotadas

pelo Estado na concretização de seu direito à saúde, com vistas a elucidar se o caminho

seguido, já em suas bases, apresenta ou não possibilidade de sucesso.

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MÉTODO:

Nossa hipótese inicial de pesquisa foi orientada pela persecução do ideário integracionista,

ainda marcante na legislação indigenista brasileira, nas políticas públicas desenvolvidas

pelo Estado na efetivação do direito à saúde. Em que pese a mudança de sentido operada

pela Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, principalmente, guiada que

está pela preservação de direitos originários e em respeito à diversidade cultural dos

sujeitos de direitos indígenas, na prática os desafios enfrentados ao adequado atendimento

das demandas indígenas e indigenistas (incluindo-se, aí, aquelas relacionadas à prevenção,

recuperação e promoção da saúde) dão-se como fruto ainda daquela visão assimilacionista,

que não estende aos indígenas e suas comunidades o direito à alteridade, à diferença. Seus

métodos de saúde são considerados insuficientes e improfícuos para a mantença ou

restauração da higidez lesada e, pois, afastados ou desconhecidos pelos agentes de saúde

estatais, aplicando-se-lhes medidas outras não só avessas, por vezes, à sua cosmovisão e

valores essenciais, mas às necessidades mesmas enfrentadas. Além desta dificuldade de

tratamento com a diversidade cultural, outra, mais premente, impede um efetivo acesso à

saúde: a falta de assistência adequada pela ineficiência do sistema de saúde pública.

Partindo desta tese, fizemos, primeiramente, um levantamento bibliográfico sobre o tema,

apontando as diferenças essenciais entre a medicina tradicional e a medicina científica (ou

convencional), conforme apontado. Por meio do contato com a bibliografia etnográfica e

jurídica sobre o tema seria possível identificar se os estudos empreendidos no direito à

saúde indígena prevalecia uma orientação integracionista (como a do Estatuto do Índio) ou

voltada à salvaguarda do aspecto pluricultural que constitui o Brasil.

Cotejando seus conceitos com as políticas públicas adotadas pelo Estado, pudemos

confirmar, como adiante se exporá, que a “Lei Arouca” e doutros regramentos similares, de

fato, transformaram o modo de encarar as demandas por saúde das populações indígenas,

em consonância à Constituição Federal, embora, ao mesmo passo, continuem a enfrentar

resistências na sua aplicação e execução de seus projetos.

A modificação de orientação da legislação relacionada ao direito à saúde dos povos

indígenas, reconhecendo-lhes a diversidade cultural ínsita, fez com que reconhecêssemos,

também no âmbito da academia jurídica, uma alteração de visão sobre a diversidade

cultural, em respeito a ela. O confronto, entretanto, desta primeira conclusão com as

dificuldades ainda persistentes na prática da execução dos serviços públicos de saúde, fez

com que prescindíssemos de uma pesquisa a campo, visitando Distritos Sanitários

Especiais Indígenas (Dseis) para, acompanhando suas tarefas, apreender os obstáculos a

serem superados.

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Em visita realizada entre os dias 01º e 15 de fevereiro de 2011 à região do Alto Rio Negro,

no Estado de Amazonas, tivemos a oportunidade de conhecer dois Dseis, cada qual

localizado em dois Municípios do extremo noroeste do Estado brasileiro: Barcelos e São

Gabriel da Cachoeira.

No Dsei localizado em Barcelos/AM, destinado ao atendimento das populações indígenas

Baré, Tariana, Baniwa,Tucana e Yanomami, em sua grande maioria, a falta de medicamento

exigível, de alimentos e de agentes de saúde especializados impedia a execução plena dos

serviços propostos, sendo o Dsei auxiliado por organizações da sociedade civil ou por

doações dos próprios moradores da região. É o que nos compartilhou João Silvério Dias,

encarregado de colher dados qualificativos dos assistidos, para seu registro junto aos

órgãos da FUNAI e Funasa.

Embora não tivéssemos tido acesso às instalações do Dsei de São Gabriel da Cachoeira ou

aos seus responsáveis, a falta de vacinas foi uma das constantes reivindicações dos

moradores da região, considerando que mais de 90% (noventa por cento) da população

daquele Município é composta por indígenas, assim identificados junto ao Censo, 2010.

Figura 3.

Entrada de Dsei em São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro/AM (Arquivo pessoal)

RESULTADOS E DISCUSSÃO:

Realizada a pesquisa bibliográfica e as visitas a campo, obtivemos os seguintes resultados.

Os povos indígenas contam com uma primeira dificuldade à concretização plena do seu

direito à saúde: seus valores, métodos e saberes medicinais são apartados dos serviços

públicos aplicados e voltados à sua assistência.

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É preciso que, desde já, se esclareça que tão fundamental quanto o direito à saúde é o

direito às diversidades cultural, social, política e econômica que, em conjunto, atribuem uma

identidade aos grupos indígenas, singularmente considerados, de forma que o respeito à

sua cosmovisão e ao efetivo acesso aos serviços públicos de saúde devem ser equiparados

em todas as fases de sua realização.

Entretanto, como dissemos, a “Lei Arouca” e doutros regramentos de mesma orientação

representaram importante passo na adequação dos serviços de saúde às necessidades

reais enfrentadas pelos diversos grupos indígenas, pois estende-lhes a possibilidade de

participação na adoção e execução das medidas pertinentes, além de estruturá-las em

conformidade ao Sistema Único de Saúde – outra importante conquista à saúde pública

como um todo. Isto afasta, em termos legais, a orientação integracionista ainda presente no

Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/1973).

A principal contribuição deste conjunto de leis, no entanto, foi reconhecer a imprescindível

necessidade de respeito às peculiaridades de cada grupo populacional, visando a obtenção

de melhores resultados. As dificuldades, portanto, são de caráter político, pois, como

pesquisado em dois Municípios da região do Alto Rio Negro (AM), marcadamente indígena,

a falta de medicamentos, vacinas e agentes de saúde especializados, prejudica a plenitude

e eficiência dos serviços propostos.

Outro empecilho à efetivação plena do direito à saúde dos povos indígenas está nos

conflitos internos, de ordem institucional, do Ministério da Saúde. Assinalando para a criação

futura de uma Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena em substituição à atuação

da Funasa, a vontade política concreta para empreender melhorias se torna cada vez mais

improfícua. Isto revela que, embora a legislação e o discurso político tenham abandonado o

(antigo) ideal asssimilacionista e a visão dos povos indígenas como inferiores e primitivos

para a organização e mantença de sua própria existência, a vontade do Estado, externada

por seus diversos agentes públicos e pela prestação ineficiente de serviços, revela-se

consoante àqueles paradigmas, o que impede, por si, a concretização do direito à saúde e

de quaisquer outros direitos fundamentais ou originários.

CONCLUSÃO:

Os povos indígenas no Brasil enfrentam, como maior obstáculo ao acesso aos serviços

públicos (e, num plano maior, à concretização de direitos fundamentais), o etnocentrismo do

Estado, avesso às reivindicações por respeito ao seu direito à diversidade, ainda que no seu

discurso político e jurídico, em caráter simbólico, demonstre ser favorável a ele.

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O direito à saúde, como direito fundamental, também se aplica aos povos indígenas (pela

simples condição de humanidade que, por obviedade, lhes pertence), mas deve ser

sopesado ante as diferenças culturais e às reais necessidades exigidas, sob pena de ser

mera falácia.

Somente cientes destas especificidades será possível traçar políticas públicas que garantam

o direito à saúde e respeitem a diversidade cultural dos povos indígenas atendidos, tornando

fruto dum passado que não mais se pretende viver os versos de D. Pedro Casaldáliga

(responsável pela realização, em 1980, de uma simbólica missa nas ruínas de São Miguel

(RS), em memória dos povos indígenas massacrados):

Eu sou América, Sou o Povo da Terra, da Terra-sem-males, o Povo dos Andes, o Povo das Selvas, o Povo dos Pampas, o Povo do Mar... (...) Eu era a Saúde dos olhos, penetrantes como flechas, dos ouvidos atentos, dos músculos harmônicos, da alma em sossego. E nós te mergulhamos nos vírus, nos bacilos, nas pestes importadas. teu povo reduzimos a um Povo de doentes, a um Povo de defuntos.

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