gabriela moreira buranelli
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GABRIELA MOREIRA BURANELLI
AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO
DE DESPEJO: interpretação e efeitos de sentido das designações em
manchetes de jornais
Texto de qualificação apresentado à
Universidade de Franca, como exigência
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Linguística.
Orientadora: Profa. Dra. Aline Fernandes de
Azevedo Bocchi.
FRANCA
2021
Catalogação na fonte – Biblioteca Central da Universidade de Franca
Buranelli, Gabriela Moreira B966f As formulações para Carolina Maria de Jesus e Quarto de despejo :
interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de jornais / Gabriela Moreira Buranelli ; orientador: Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. – 2021
88 f. : 30 cm.
Dissertação de Mestrado – Universidade de Franca Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestre em Linguística
1. Linguística – Discurso. 2. Análise do discurso. 3. Jesus, CarolinaMaria de, 1914-1977. 4. Interpretação. 5. Designação. 6. Nome próprio. I. Universidade de Franca. II. Título.
CDU – 801:82-5
¹ Esta classificação poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita justificativa junto Coordenação do Curso. Todo resumo estará disponível para reprodução. ² Texto (PDF); Imagem (JPG ou GIF); Som (WAV. MPEG. AIFF. SND); Vídeo (MPEG. AVI. OT): Outros (Específico da área).
Termo de Autorização para Disponibilização no Repositório Institucional
1. Identificação do material bibliográficoTese Dissertação Trabalhos de alunos Outros
2. Identificação do documento/autor Universidade
Instituição: Universidade de Franca - UNIFRAN
Pós-Graduação: MESTRADO EM LINGUÍSTICA Stricto Sensu Lato Sensu
Área de concentração (Tabela CNPQ): LINGÜÍSTICA
Título: AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE DESPEJO: INTERPRETAÇÃO E EFEITOS DE SENTIDO
DAS DESIGNAÇÕES EM MANCHETES DE JORNAIS.
Autor: GABRIELA MOREIRA BURANELLI
RG:409146109 CPF:42207130851
Orientador(a) Prof.(a) Dr.(a): ALINE FERNANDES DE AZEVEDO BOCCHI
RG:193460002 CPF:28344099862
Número de páginas: 88 (conforme o exemplar impresso corrigido após a defesa)
Data de defesa: terça-feira, 9 de março de 2021
Data de Entrega do arquivo à Secretaria: sexta-feira, 9 de abril de 2021
3. Informações de acesso ao documento
sim nãoOcasionará registro de patente?
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Em caso de publicação parcial, assine as permissões:
Sumário Conclusões Introdução Bibliografia
Proposição Capítulos. Especifique:
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Qual período permanecerá a publicação parcial?
Na qualidade de titular dos direitos de autor da publicação supracitada, de acordo com a Lei n° 9610/98, autorizo o Sistema de Bibliotecas da Cruzeiro do Sul Educacional e o IBICT, a disponibilizar gratuitamente, sem ressarcimento dos direitos autorais, conforme permissões assinadas acima, do documento, em meio eletrônico, na Rede Mundial de Computadores, no formato especificado², para fins de leitura, impressão e/ou download pela Internet, a título de divulgação da produção científica gerada pela Universidade à qual estou/estive vinculado, a partir desta data. O conteúdo poderá ser alterado conforme orientações da banca, dentro de um prazo de 60 dias, onde o aluno é responsável em remeter a versão final aos setores responsáveis.
Local: Franca Data: 09/04/2021
_____________________________________________
Assinatura do autor
_____________________________________________
Assinatura do orientador
ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR GABRIELA MOREIRA BURANELLI, COMOPARTE DOS REQUISITOS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE NO PROGRAMA DE MESTRADO EM
LINGUÍSTICA.
Aos nove dias do mês de março de dois mil e vinte e um, reuniu-se, no(a) Bloco Cdi - Sala 51, a Comissão Julgadora designadapela Comissão da Unifran - Pós-Graduação, constituída pelos professores doutores: Profa. Dra. Aline Fernandes de AzevedoBocchi (Orientadora), Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano (Titular),Profa. Dra. Gloria da Ressurreição Abreu França(Titular), para examinar a candidata Gabriela Moreira Buranelli na prova da defesa de sua dissertação intitulada: ASFORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE DESPEJO: INTERPRETAÇÃO E EFEITOS DESENTIDO DAS DESIGNAÇÕES EM MANCHETES DE JORNAIS. A Presidente da Comissão Profa. Dra. Aline Fernandes deAzevedo Bocchi, iniciou os trabalhos às 14h, solicitando à candidata que apresentasse, resumidamente, os principais pontos doseu trabalho. Concluída a exposição, os examinadores arguiram alternadamente a candidata sobre diversos aspectos dapesquisa e da dissertação. Após a arguição, que terminou às 20h, a Comissão reuniu-se para avaliar o desempenho dacandidata, tendo chegado ao seguinte resultado: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi( __________________ ), Profa.Dra. Gloria da Ressurreição Abreu França ( __________________ ),Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano(__________________ ). Em vista deste resultado, a candidata Gabriela Moreira Buranell i foi considerada_____________________, fazendo jus ao título de Mestre pelo programa de Mestrado em Linguística . Sendo verdade, eu, Prof.Dr.Thercius Oliveira Tasso, Secretário de Pós-Graduação Stricto Sensu, confirmo e lavro a presente ata, que assino juntamentecom os Membros da Banca Examinadora.
Franca, 09 de março de 2021.
Novo título (sugerido pela banca) :
PROFA. DRA. ALINE FERNANDES DE AZEVEDO BOCCHI
PROFA. DRA. LUCIANA CARMONA GARCIA MANZANO
PROFA. DRA. GLORIA DA RESSURREIÇÃO ABREU FRANÇA
aprovada
aprovadaaprovada
aprovada
Prof. Dr. Thercius Oliveira Tasso Secretário de Pós-Graduação Stricto Sensu
GABRIELA MOREIRA BURANELLI
AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE
DESPEJO: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de
jornais
COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA
Presidente: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi
Universidade de Franca
Titular 1: Profa. Dra. Glória da Ressurreição Abreu França
Universidade Federal do Maranhão
Titular 2: Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano
Universidade de Franca
Franca, 09/03/2021
À memória de Carolina Maria de Jesus
AGRADECIMENTOS
É chegada a hora em que as lembranças dessa trajetória, tomam conta do meu
ser e me fazem ver como foi trilhar o caminho até aqui. É a hora de finalizar esse ciclo
importante e finalmente dizer obrigada. Nesse sentido, os meus mais sinceros agradecimentos
para aqueles que estiveram comigo nessa empreitada:
À Marília, minha primeira orientadora, mulher forte e aguerrida, que além de
apresentar a história de Carolina Maria de Jesus, me ensinou a ter coragem e desbravar o mundo
acerca das pesquisas. Obrigada por todas as trocas, momentos, contribuições e, sobretudo, por
me ensinar a enfrentar. Esse meu caminho trilhado até aqui, e tão importante para mim, foi
graças ao seu convite para nos aventurarmos na história de Carolina. Infinitamente, obrigada!
À Aline, minha orientadora, mulher forte e inteligente, que me acolheu em um
momento de angústia e ensinou, acima de tudo, a tomar a palavra e posicionar a existência do
meu eu em cada uma delas, em cada linha. Obrigada por contribuições tão ricas, atentas e
minuciosas. Obrigada pela profunda intensidade das trocas, orientações e conversas. Meu
intenso obrigada!
À Glória França e Luciana Manzano por participarem das bancas de qualificação
e defesa. Obrigada por seus olhares atentos e minuciosos que enriqueceram esta pesquisa. Muito
obrigada por contribuírem de maneira tão rica e pertinente.
À Marli, minha mãe, mulher de fibra e garra, que partilha a vida comigo há 25
anos e me ensina sobre ser forte, independente e construir a minha história. Obrigada por
tamanha compreensão que não encontraria em outro lugar que não fosse em você. Obrigada por
me dar a vida e fazer com que ela chegasse aqui, nessa apoteose. Meu eterno obrigada!
Ao Elio, meu pai, que habita outro plano espiritual há 24 anos e às vezes me
visita para (re)lembrar que a vida, assim como os ciclos, tem fim. Obrigada por nossas
conversas silenciosas e por me escutar e acalentar em silêncio. Obrigada por tanto, mesmo
muito longe.
Ao Rafael Nakamura, representação de amor intenso, por converter a angústia
das inseguranças em sonhos e confiança, por sempre direcionar as melhores palavras e me
acolher nas horas improváveis. Obrigada por tanto apoio, presença e afeto.
Às minhas amigas acadêmicas, Giovana e Camilla, que me ensinaram sobre
amizade e rede de apoio, afeto e carinho. Obrigada por deixarem leve os momentos densos.
Obrigada!
À Maria Maximiana, Viviane, Lorena, Thais Balda, Giovanna e Renato por
serem tão amigos e queridos. Obrigada pelos conselhos horas a fio nessa trajetória. Vocês foram
importantes, obrigada!
À CAPES, pelo financiamento e oportunidade de dedicação plena a essa
pesquisa.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silêncio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.
Conceição Evaristo
RESUMO
BURANELLI, Gabriela Moreira Buranelli. As Formulações para Carolina Maria de Jesus
e Quarto de Despejo: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes
de jornais. Orientadora: Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 88f. Dissertação
(Mestrado em Linguística) – Universidade de Franca, Franca.
Carolina Maria de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil, considerada uma
das mais relevantes para a literatura nacional. Ela desponta no cenário editorial em 1960, com
a publicação de Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, que teve grande repercussão
nacional e internacional, tornou-se best-seller com circulação em 40 países e tradução para
13 idiomas. Negra, catadora de papel e moradora da favela do Canindé, Carolina era
designada pela imprensa nacional daquela época como “a favelada” ou “escritora-favelada”,
o que a distanciava da possibilidade de ser interpretada como autora. Esta pesquisa propõe
problematizar como a mídia interpretou a autora no ano em que foi lançado Quarto de
Despejo, em 1960. Para isso, recorre- se a um corpus construído com recortes de manchetes
de jornais desse período histórico, o qual possibilitará a análise das designações que
significam Carolina e Quarto de Despejo, tendo em vista os pressupostos teóricos da Análise
do Discurso pecheutiana. Intenta-se compreender os gestos de interpretação para Carolina na
imprensa, os funcionamentos ideológicos que determinam os nomes e os processos de
estereotipagem produzidos por eles. Verifica-se, no funcionamento discursivo das manchetes
de jornais, a perpetração de silenciamentos históricos acerca da mulher negra. Os resultados
indiciam processos de silenciamento e estereotipagem que funcionam nos discursos sobre
Carolina, o que confirma o caráter estrutural do racismo e a importância dos movimentos
antirracistas, sobretudo no que tange às mulheres. O presente trabalho foi realizado com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)
– Código de Financiamento 001.
Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus; Análise do discurso; Interpretação; Designação;
Nome próprio.
ABSTRACT
BURANELLI, Gabriela Moreira Buranelli. As Formulações para Carolina Maria de Jesus
e Quarto de Despejo: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de
jornais. Orientadora: Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 88f. Dissertação (Mestrado
em Linguística) – Universidade de Franca, Franca.
Carolina Maria de Jesus was one of the first black writers in Brazil, considered one of the most
relevant for national literature. She emerged in the editorial scene in 1960, with the publication
of Quarto de Despejo: diário de uma favelada, which had great national and international
repercussions, becoming a best seller with circulation in 40 countries and translated into 13
languages. Black, a paper collector and resident of the Canindé slum, Carolina was designated
by the national press as “the slum dweller” or “favelada-writer”, which distanced her from the
possibility of being interpreted as an author. This research proposes to problematize how the
media interpreted the author in the year in which Quarto de Despejo was launched, in 1960. For
this, we use a corpus built with clippings from newspaper headlines from this historical period,
which will enable the analysis of the designations meaning Carolina and Quarto de Despejo, in
view of the theoretical assumptions of Pecheut's Discourse Analysis. We intend to understand
the gestures of interpretation for Carolina in the press, the ideological workings that determine
the names and the stereotyping processes sought by them. In the discursive operation of
newspaper headlines, there is the perpetration of historical silences of black women. The results
indicate silencing and stereotyping processes that work in discourses about Carolina, which
confirms the structural character of racism and the importance of anti-racist movements,
especially regarding women. This work was carried out with the support of the Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brazil (CAPES) - Financing Code 001.
Keywords: Carolina Maria de Jesus; Discourse Analysis; Interpretation; Designation; Proper
noun.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Manchete do jornal Correio Paulistano 39
Figura 2 - Manchete do jornal Diário da Noite 41
Figura 3 - Manchete do jornal Diário da Noite 42
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Relação de veiculação 39
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 ANÁLISE DE DISCURSO E INTERPRETAÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS .. 16
1.1 LÍNGUA, DISCURSO E EFEITOS DE SENTIDO .......................................................... 17
1.2 A TEORIA DA IDEOLOGIA E A INTERPELAÇÃO DO SUJEITO .............................. 18
1.3 GESTOS DE INTERPRETAÇÃO SOBRE CAROLINA ................................................. 21
1.4 DITOS, NÃO-DITOS, SILÊNCIOS E SILENCIAMENTOS ........................................... 23
1.5 MEMÓRIA, EFEITO DE PRÉ-CONSTRUÍDO E DE-SIGNIFICAÇÃO ........................ 26
2 A CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO TEÓRICO ANALÍTICO ................................. 30
2.1 TRAJETOS DE LEITURA NO ARQUIVO DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL 30
2.3 O CORPUS E O ARQUIVO: UMA PROBLEMÁTICA DISCURSIVA ......................... 34
2.4 NOÇÃO DE TRAJETO TEMÁTICO ................................................................................ 36
3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS JORNAIS DE 1960 .................... 39
3.1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ........................................................................................ 39
3.1.1 Sentidos da favela: vestígios da ideologia higienista ...................................................... 41
3.1.2 Quarto De Despejo: sentidos postos à margem ............................................................... 45
3.2 O ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO ......................................................................... 49
3.3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS PERIÓDICOS .............................. 50
3.4 A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO E O PROCESSO DE ESTEREOTIPAGEM ................. 58
3.5 O FUNCIONAMENTO DO NOME PRÓPRIO: EFEITOS DE UMA INVERSÃO ........ 60
3.6 DE QUE MULHERES ESTAMOS FALANDO? ............................................................. 63
3.7 A "ESCRITORA NEGRA" E A FALHA NO RITUAL IDEOLÓGICO .......................... 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 72
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 74
ANEXOS ................................................................................................................................. 80
12
INTRODUÇÃO
Minhas inquietações acerca deste trabalho começaram em 2016, quando eu
ainda cursava o segundo ano da graduação em jornalismo. Tardiamente, em uma noite de muito
frio na Universidade de Franca, meu caminho cruzou com a história de Carolina Maria de Jesus
quando uma das minhas professoras, e por muito tempo orientadora, contou brevemente sobre
a vida e obra da autora. O incômodo foi instantâneo. Depois de ouvir sobre Carolina,
questionava: Como era possível durante os meus 20 anos não ter escutado sobre aquela
autora? Por que não ouvi sobre ela durante meu percurso escolar? Por que não soube dela
nas aulas de literatura?
Ao partilhar meu incômodo com outras pessoas, percebi que raramente
conheciam a existência da autora e, quando conheciam, sabiam muito pouco sobre ela. As
inquietações aumentaram até chegar em uma apoteose dolorosa ao ter o meu primeiro contato
com a obra Quarto de Despejo. À medida que adentrava nesse Quarto, questionamentos acerca
dessa autora me instigavam avassaladoramente. Desde então, divido grande parte da minha
jornada com essas inquietações que não cessam.
Iniciei, então, um percurso acadêmico com a realização da pesquisa de Iniciação
Científica proposta pela minha orientadora na época, Profa. Dra. Marília Giselda Rodrigues, a
respeito do ethos de Carolina Maria de Jesus em sua obra, com base nos conceitos de
Maingueneau sobre os embreantes paratópicos. Em um momento posterior, passamos pela
interlíngua, também de Maingueneau, para compreender como se mobilizava o código
linguageiro na primeira obra da autora. Terminado meu percurso de estudo, resgatei minhas
primeiras inquietações, que diziam respeito ao fato de poucos conhecerem a autora, e levei para
o meu trabalho de conclusão de curso da graduação. Com o intuito de divulgar a história
caroliniana, produzi um videodocumentário sobre vida e obra da autora. Durante esse processo,
ao entrevistar pesquisadores, autores e Vera Eunice, filha da autora, descobri novas faces e
questionamentos sobre aquele universo que não tinha, e não tem, fim.
Ao ingressar no mestrado, vislumbrei a possibilidade de dar mais voz às minhas
inquietações acerca de Carolina. A realização de uma pesquisa surgia agora como oportunidade
para aprofundar questões intrínsecas ao meu incômodo em relação ao tema. Dessa vez, os
13
pensamentos rondavam os caminhos de uma problemática específica em relação à obra de
Carolina, que parecia romper padrões enunciativos e autorais de escritores da época. Ao
examinar jornais do período de lançamento de Quarto de Despejo, percebi uma insistência por
parte da mídia em uma interpretação dominante1 de Carolina como “favelada”. As designações
para Carolina presentes nesses documentos exibiam vestígios de um processo de significação
que insistia em qualificar e caracterizar Carolina na relação com a favela, como produto desta
– “uma favelada”.
Carolina, ao causar tantos desassossegos em mim, fez com que a minha atenção
se voltasse para entender qual a problemática que envolve o silenciamento de Carolina e sua
obra perante a maneira como a mídia interpretava ambos. Em agosto de 1960, a editora
Francisco Alves anunciava o surgimento de uma das autoras fundamentais no que tange à
literatura negra. Carolina Maria de Jesus, uma potência feminina que nunca se calou diante as
mazelas sociais, prenunciava tantas outras Carolinas e uma existência pouco revelada na
literatura: a realidade da favela. Ao publicar sua primeira obra, Quarto de Despejo: diário de
uma favelada, Carolina provocou alarde, pois seu diário aludia a uma realidade e, sobretudo, a
uma escrita e a um lugar de enunciação até então não reconhecidos socialmente, mas de suma
importância por questionar não apenas o modelo literário da época, mas, sobretudo, as bases
estruturais de uma formação social profundamente desigual, marcada pelo racismo, sexismo e
pela aversão e hostilidade à pessoa pobre. Mulher negra e pobre, Carolina extrapola o
convencional, caracterizado majoritariamente pelo cânone literário branco, e subverte toda a
lógica de produção do mercado editorial da época.
A autora passa a ocupar incansavelmente manchetes de jornais nacionais e
internacionais. Mulher negra, que elabora seu diário com base em sua experiência pessoal
enquanto moradora da favela do Canindé, a partir de um olhar até então não evidenciado em
uma obra literária, alvoraça uma mídia acostumada com uma literatura canônica produzida em
aparente harmonia com as “normas” linguísticas. Ao descortinar sentidos da favela que até
então não haviam sido abordados, quiçá reconhecidos socialmente, Carolina surge no mercado
editorial ao narrar sua vida cotidiana em cadernos “descobertos” e publicados pelo jornalista
Audálio Dantas, chamando a atenção da sociedade para questões até então ausentes em livros
de autores consagrados.
Quarto de Despejo, ao romper com os padrões do mercado editorial da época,
1 Compreendo que a produção de sentidos de Carolina como “favelada” é hegemônica dada a direção interpretativa
ideológica da época mobilizam. No entanto, embora seja dominante, esse sentido não pode ser considerado
homogêneo. Há uma heterogeneidade que se dá pelas brechas, pela falha e na quebra do ritual ideológico.
14
revela uma outra perspectiva até então não interpretada pela mídia: mulher negra, mãe de três
filhos, moradora da extinta Favela do Canindé e com menos de dois anos de estudo. Esses
elementos fomentam um estranhamento a que a mídia e o mercado editorial não estavam
acostumados, já que os autores da época eram majoritariamente homens brancos e de classe
média. E as mulheres, notadamente brancas.
O presente trabalho é, então, fruto de uma somatória de inquietações acumuladas
e o cerne da pesquisa são os modos de dizer e significar Carolina Maria de Jesus e Quarto de
Despejo: diário de uma favelada no ano de lançamento da obra, em 1960. Nessa perspectiva,
parto dos seguintes questionamentos: como a mídia informativa interpreta Carolina Maria de
Jesus e sua primeira obra no ano de publicação de Quarto de Despejo? Na remissão às
condições de produção, como os processos discursivos desenham sentidos que se repetem e/ou
deslizam? Desse modo, ao levar em consideração a relação entre as designações para a autora
presentes em jornais daquele momento histórico, nas quais prevalecia processos de
identificação de Carolina como “a favelada”, pergunto sobre como são construídos
historicamente os sentidos para essas designações, percorrendo redes de memória que dispõem
ideologicamente sentidos para as mulheres negras pautados pelos discursos da escravidão e do
colonialismo.
Procuro responder essas questões à luz dos postulados teóricos e metodológicos
da Análise de Discurso, de orientação Francesa, evidenciados sobretudo nos pressupostos que
tangem a noção de acontecimento discursivo e memória para Pêcheux (2002; 2008), bem como
nos estudos de Eni Orlandi (2007) no que diz respeito aos gestos de interpretação. Deste modo,
objetivo investigar como o processo de significação, para autora e obra, retomam ou mantém
os sentidos por meio do funcionamento discursivo das manchetes de jornais, bem como as
designações que norteiam e conduzem interpretações para Carolina Maria de Jesus.
Como corpus, utilizo um conjunto de manchetes de jornais publicadas em 1960,
no lançamento de “Quarto de Despejo”. No que diz respeito ao momento de lançamento da
obra, as manchetes foram recortadas de jornais em circulação à época, encontradas no arquivo
da Biblioteca Nacional Digital. Desse modo, o material analisado é disposto em um arquivo
elaborado para tentar responder como as designações participam de processos de significação
da autora e de Quarto de Despejo tendo em vista suas condições de produção.
A partir do que foi exposto, esta dissertação está estruturada em três capítulos.
No primeiro capítulo, apresento as bases epistemológicas da Análise do Discurso, as quais
fundamentam essa pesquisa, a fim de compreender conceitos-chave importantes que a
15
sustentam. Para isso, utilizei os pressupostos teóricos de Pêcheux (1995), bem como de Eni
Orlandi (2007), buscando problematizar o funcionamento dos gestos de interpretação
ensejados. Além disso, outros autores foram importantes para sustentar a reflexão, desde o
contexto de surgimento da AD à conceitos como o de de-significação.
No segundo capítulo, considero a construção do dispositivo teórico analítico em
que pontuo a noção de corpus, arquivo e o trajeto temático. Para isso, pormenorizo como se
deu a construção do dispositivo ao partir do trajeto de leitura pelos arquivos da Biblioteca
Nacional. No terceiro capítulo, explano as condições de produção no lançamento de Quarto de
Despejo. Na sequência, direciono a pesquisa para um processo que procuro designar como a
midiatização do acontecimento. Em seguida, busco apoio teórico em Zoppi-Fontana (2003)
para embasar as análises das designações em 1960, traçando reflexões sobre o nome próprio.
Por fim, me detenho na questão de estereótipo e, para isso, busco apoio em Glória França (2018)
para compreender o processo de estereotipagem.
Por fim, apresento um anexo com as manchetes de jornais que circularam em
1960 nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Embora nem todas sejam analisadas,
julguei pertinente documentar a pesquisa e possibilitar ao leitor verificar outras ocorrências
além das trabalhadas nas análises do corpus. O leitor poderá, ainda, constatar as recorrência de
designações como “favelada”, bem como a inversão do nome próprio.
16
1 ANÁLISE DE DISCURSO E INTERPRETAÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS
Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar
tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu
quero escrever o livro, e vocês com estas cenas
desagradaveis2 me fornece os argumentos.
Carolina Maria de Jesus
Inicialmente, é preciso expor a conjuntura epistemológica de surgimento da
Análise de Discurso, doravante AD, posto que seus fundamentos fornecem a base teórica que
ancora esta pesquisa. A AD articula três áreas do conhecimento científico, a Linguística,
Materialismo Histórico e Psicanálise, as quais balizam seus conceitos desde seu surgimento, na
década de 60, na França, quando as contribuições e formulações iniciais de Pêcheux e seus
colaboradores evidenciaram a problemática do sujeito em relação ao sentido.
O que caracteriza a AD, desde o princípio, é o fato dela “considerar a (re)leitura
althusseriana de Marx e o desenvolvimento de Pêcheux do projeto de Althusser em uma teoria
materialista dos processos de significação atravessada por uma noção psicanalítica do sujeito”
(BALDINI, ZOPPI-FONTANA, 2013, p. 9). Nessa perspectiva, o sujeito é entendido não como
a origem do dizer, mas como efeito da relação intrínseca entre a linguagem e o sentido, sendo
esse originado na história e retomado por meio do funcionamento do interdiscurso. As
condições de produção (PÊCHEUX, 2010) e circulação de um discurso são constitutivas dos
sentidos e remetem à atualização de uma memória que pode reafirmar um já-dito e/ou produzir
deslocamentos.
Considerada como uma disciplina de entremeio (ORLANDI, 2007, p. 23), a
análise do discurso não se mobiliza entre as outras disciplinas, mas sim por meio da contradição
entre elas. Para Orlandi, as disciplinas de entremeio não soam como interdisciplinares tidas na
relação comum de uma pela outra. Pelo contrário, ela estabelece que o que determina o discurso
é a relação com sua exterioridade, ou seja, nas palavras da autora, “a AD se forma no lugar em
que a linguagem tem de ser referida necessariamente à sua exterioridade, para que se apreenda
2 As citações referentes à Carolina Maria de Jesus utilizadas nesta pesquisa respeitam fielmente o padrão
ortográfico da autora, tal como está escrito e impresso na 10° edição, da editora Ática, de Quarto de Despejo:
diário de uma favelada.
17
seu funcionamento, enquanto processo significativo” (ORLANDI, 2007, p. 24).
Orlandi ainda postula que a AD é, na verdade, um tipo de antidisciplina ou
desdisciplina, uma vez que coloca
questões da linguística no campo de sua constituição, interpelando-a pela
historicidade que ela apaga do mesmo modo que coloca questões para as ciências
sociais em seus fundamentos, interrogando a transparência da linguagem sobre a qual
elas se assentam (2007, p. 25).
Assim, o que a AD indaga e introduz é a questão fulcral do sujeito e da situação
enunciativa, ao descentralizar o sujeito como supostamente a origem do dizer. Ao interrogar
possíveis contradições, a AD estrutura-se nesse entremeio, no espaço da contradição. É então a
partir dessa teoria de entremeio que mobilizaremos as análises desta pesquisa.
1.1 LÍNGUA, DISCURSO E EFEITOS DE SENTIDO
É importante ressaltar que, para a AD, tanto a questão da linguagem quanto a da
língua estão perpassadas pela não-transparência, incompletude e equívoco que engendram o
funcionamento do discurso. Isso quer dizer que tomo as manchetes dos jornais e as designações
nelas presentes em sua opacidade; procuro, a partir de uma análise da materialidade linguística,
chegar aos processos de subjetivação/identificação que constituem sentidos para Carolina e
Quarto de Despejo, ratificando para eles uma identidade em confluência com um processo de
estereotipagem.
Dito de outra maneira, ao operar uma análise linguística remeto ao que é próprio
da língua, posto que ela tem sua especificidade, isto é, uma ordem própria; no domínio da Análise
de Discurso, compreende-se que a língua possui uma autonomia relativa e é constituída pelo
equívoco. O funcionamento tanto da linguagem quanto da língua relaciona-se com a formação
ideológica haja vista que a ideologia estabelece a atualização e possibilidades da significação, na
medida em que o sujeito se submete a ela.
Assim, para a AD, o sentido está atrelado ao processo que o produz, uma vez
que ambos estão interligados por meio de um funcionamento ideológico. A noção de ideologia,
entendida aqui como um mecanismo que resulta em evidência (ORLANDI, 2020) tanto dos
sujeitos quanto dos sentidos, é condição para que sujeito e sentido existam, uma vez que “o
indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer” (ORLANDI,
18
2020, p. 44).
A noção de discurso remete “a ideia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do
discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2020, p. 15). O discurso é o que media a
relação entre o homem e sua inserção no mundo. Isto é, há uma dependência entre sujeito e
discurso, de modo que o primeiro é interpelado pelo segundo, por meio de um processo ideológico
que opera na língua e determina os sentidos.
Assim, uma leitura discursiva das manchetes de jornais deve estar atenta ao
funcionamento da língua, ou seja, ao modo como a ideologia determina sentidos através de efeitos
de exclusão e silenciamento decorrentes da construção discursiva da identidade de Carolina
enquanto sujeito socialmente discriminado em relação à cidade, ao gênero e à raça. Focalizo, em
particular, os processos de identificação para Carolina produzidos pelo funcionamento das
designações; coloco em relevo as contradições, as filiações de memória e os silenciamentos,
procurando mostrar como a mídia produz e reforça um processo de estereotipagem.
1.2 A TEORIA DA IDEOLOGIA E A INTERPELAÇÃO DO SUJEITO
A ideologia, fundamentada aqui nos preceitos da Análise de Discurso, é entendida
não como ocultação da realidade, mas como prática determinante das significações que opera na
relação entre sujeito e sentido. Dito com outras palavras, para se significar, o sujeito interpelado
pela ideologia esquece que os sentidos derivam do modo como a língua se inscreve na história e
cria a ilusão de que existe um “eu” que é detentor da origem do seu dizer. Entretanto, esse sentido
é um efeito de sentido já lá; nesse processo há, portanto, a produção da ilusão que o sujeito teria
acesso a tudo o que diz (controle sobre os sentidos) e seria origem desse dizer. Assim, “o sujeito
só tem acesso a parte do que diz. Ele é estruturalmente dividido, desde a sua constituição. A falta
o constitui” (ORLANDI, 1996, p. 28).
Althusser, principal referência de Pêcheux na elaboração da teoria dos processos
discursivos, apresenta sua definição de ideologia na obra Ideologia e aparelhos ideológicos do
Estado ao propor uma releitura de Marx. Segundo ele, “só existe ideologia pelo sujeito e para
sujeitos” (ALTHUSSER, 1980, p. 93). Ao trabalhar a questão da constituição do sujeito pela
ideologia, Althusser postula:
19
[...] toda ideologia tem por função (é o que a define) “constituir” indivíduos
concretos em sujeitos. É neste jogo de dupla constituição que se localiza o
funcionamento de toda a ideologia, pois que a ideologia não é mais que o seu
próprio funcionamento nas formas materiais da existência deste funcionamento
(ALTHUSSER, 1980, p. 94).
Desse modo, nos interessa aqui aprofundar mais detidamente uma compreensão
do sujeito enquanto sujeito ideológico, uma vez que para a AD o sujeito é interpelado pela
ideologia. A evidência do sujeito e do sentido é efeito da interpelação pela ideologia, dado que
“não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante, a ideologia aparece como
efeito da relação necessária do sujeito com a língua e a com a história para que haja sentido”
(ORLANDI, 2020, p. 46). Assim, compreende-se que a ideologia estabelece a relação entre
linguagem e mundo uma vez que ela “intervém com seu modo de funcionamento imaginário”
(ORLANDI, 2020, p. 46).
Sobre essa questão, postula-se que é por meio da ideologia que o sujeito se
constitui, dado que
Pela interpelação ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por
seu lado, a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente
o apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo
efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do sujeito ser a origem do
que diz (ORLANDI, 2020, p. 46).
Para a autora, a interpelação em sujeito pela ideologia, dada sua inserção do
simbólico, resulta na mobilização tanto da memória, quanto do esquecimento, pois é justamente
por meio do funcionamento de ambos, em trabalho com a ideologia, que o sentido se produz
enquanto efeito. Magalhães e Mariani colocam que:
A interpelação produz assujeitamento e isso ocorre em qualquer época histórica, em
quaisquer que sejam as condições de produção, pois resulta da inscrição do sujeito no
simbólico e, ao mesmo tempo, produz como resultado que esse sujeito, afetado pelo
simbólico, expresse a sua subjetividade na ilusão de autonomia e de ser origem do seu
dizer (MAGALHÃES e MARIANI, 2010, p. 392).
É propício destacar a relevância do esquecimento no funcionamento da
linguagem enquanto processos ideológicos. É por meio do esquecimento que se cria a falsa
percepção de que o sujeito é a origem do seu dizer.
Com intuito de compreender a importância do esquecimento, é necessário inferir
sobre os esquecimentos número um, da ordem da ideologia, e número dois, referente à
enunciação. Com base no que propõe Orlandi (2020, p. 33), o esquecimento número um está
20
associado a ilusão do sujeito estar na origem do seu dizer. No funcionamento da ideologia, ao
falar, o sujeito retoma um sentido já existente e, nessa retomada, “esquece” que o sentido
preexiste, já-lá. Para Orlandi, os discursos circulam antes mesmo de nascermos; pressupõe-se
então que somos inseridos em processos de significação já existentes. A autora ainda acrescenta
que “embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam como originando-se em nós:
eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que
significam e não passam pela nossa vontade” (ORLANDI, 2020, p. 33).
Para Magalhães e Mariani, o sujeito é entendido como aquele que, além de não
controlar ou ser a origem do seu dizer, tem relação com as marcas do Outro, posto que o seu
dizer se funde ao dizer do Outro, mas que essa relação é dificilmente percebida por ele. O
sujeito, conforme expõem as autoras (2010, p. 404), “não se percebe constituído pelo Outro,
por essa rede de significantes que o constituiu. Ou seja, nós nos pensamos espontaneamente
como origem de nossos pensamentos, atos e palavras”.
O esquecimento número dois, por sua vez, é o que acontece no nível da
enunciação. Compreende-se que esse esquecimento, conforme postula Orlandi, indica que os
dizeres sempre podem ser outros de maneira que para falarmos x, não falamos y. Entretanto,
não nos damos conta que há diversas formas de dizer; esse esquecimento cria a ilusão de que
só é possível dizer x de uma única maneira, com determinadas palavras. Ela ainda ressalta que
esse esquecimento é parcial e semiconsciente, pois “muitas vezes voltamos sobre ele,
recorremos a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É
o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não
é indiferente aos sentidos” (ORLANDI, 2020, p. 33).
Segundo Bocchi (2019), desde a perspectiva da AD, consentir na interpelação
do indivíduo em sujeito pela ideologia nos possibilita afastar a sombra do voluntarismo; “a AD
remete para uma compreensão da linguagem como prática simbólica que se constitui pela via
do significante, em que se considera os processos de constituição do sujeito” (p. 107). Para essa
autora, não é, portanto, do indivíduo que trata a AD, mas de um efeito-sujeito resultante de
processos de interpelação-identificação com implicações nos modos de se compreender a noção
de interpretação, conforme veremos no tópico que se segue.
21
1.3 GESTOS DE INTERPRETAÇÃO SOBRE CAROLINA
A Análise do Discurso, ao propor o exame das condições de produção, abre margem
para questões que atravessam o discurso, como a noção de interpretação teorizada por Orlandi (2007).
O discurso, entendido como “efeito de sentidos entre locutores” (PÊCHEUX, 2010) é o objeto central
de estudo da AD, que visa compreender como os sentidos se constituem a partir de gestos de
interpretação no simbólico. À luz teórica de Orlandi, a AD é “uma ciência da interpretação”
(ORLANDI, 2013, p. 3), dado que a interpretação opera na afluência do real dos sentidos com a
linguagem, a memória e historicidade da materialidade, de modo que o sentido não é único, mas
sempre pode ser outro.
Assim, a interpretação encontra-se articulada à manifestação da linguagem, uma
vez que os objetos simbólicos podem ser significados de maneiras diversas; o sentido tem sua
especificidade de modo aberto. No entanto, é o gesto de interpretação que interroga a direção do
sentido, uma vez que “O gesto de interpretação se dá porque o espaço simbólico é marcado pela
incompletude, pela relação com o silêncio. A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar
próprio da ideologia e é “materializada” pela história” (ORLANDI, 2007, p. 18).
O trabalho da interpretação não se limita a uma formulação interpretativa única,
não estaciona em uma só direção possível. O analista de discurso interroga possíveis caminhos,
uma vez que ele não interpreta, mas “trabalha (n)os limites da interpretação” (ORLANDI, 2020,
p. 59); ele mostra, por meio de seus procedimentos, os gestos de interpretação que direcionam os
sentidos. Ainda, considero que o movimento do gesto de interpretação, face à abertura dos
processos de significação (ORLANDI, 2013), permite trabalhar as condições de produção dos
objetos simbólicos, o como os sentidos são produzidos e significados.
Neste ínterim, examino os gestos de interpretação que direcionam os sentidos
constitutivos das designações que significam Carolina e Quarto de Despejo, com o intuito de
verificar efeitos de estigmatização, silenciamento, estereotipagem e/ou deslocamentos
decorrentes desses processos discursivos. O gesto de interpretação faz funcionar a memória
discursiva de modo a ratificar determinados sentidos, inscrevendo para tanto posições-sujeito
específicas. Ou seja, o funcionamento do discurso jornalístico fornece uma interpretação
determinada sobre Carolina, por meio de designações que dão a ver processos de identificação.
Assim, embora os gestos de interpretação não sejam estagnados e únicos,
abrindo os processos de significação para sentidos outros, eles não ocorrem de maneira
arbitrária. Se por um lado a mídia mobiliza sentidos ao noticiar o lançamento de Quarto de
22
Despejo, por outro também os estabiliza a partir de pré-construídos, uma vez que oferece um
caminho de interpretação aos leitores, que são direcionados a significar Carolina, no momento
do lançamento de Quarto de Despejo, na relação com a periferia, no espaço urbano; “a
favelada”, “catadora de reciclagem” etc., nomes que reforçam um certo lugar para essa mulher
negra no território, especificam para ela sentidos atrelados a uma significação especifica acerca
da favela. Tais designações engendram uma narrativa que condiciona o olhar do leitor para
sentidos estabilizados a partir dessas interpretações.
Se a incompletude atesta a condição da linguagem de que a tríade sujeito, sentido
e discurso não são estanques, é essa condição, de serem sempre passíveis de deslocamentos,
que garante o movimento, a transformação e insurgência de novos sentidos. Isso porque, de
acordo com Orlandi (2020, p. 35), ao levar em consideração a língua suscetível ao equívoco, a
possibilidade da ruptura pelo real da história e a falha do ritual ideológico dá abertura para que
o sujeito se signifique diferentemente, garantindo assim a possibilidade de movimento dos
sentidos.
Orlandi articula a problemática da incompletude com a relação entre paráfrase e
polissemia. Para ela, sujeito e sentido “estão sempre se fazendo, havendo um trabalho contínuo,
um movimento constante do simbólico e da história. É a condição de existência dos sujeitos e
dos sentidos: constituírem-se na relação tensa entre paráfrase e polissemia” (ORLANDI, 2020,
p. 35). Embora os processos parafrásticos busquem a estabilização da significação, sujeito e o
sentido sempre podem ser manejados de formas distintas, comportando-se como outros, isso se
dá pelo modo como a língua os afeta, permitindo que se inscrevam no simbólico.
[...] a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem
sustentação no saber discursivo, e a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que
ela é a própria condição de existência dos discursos pois se os sentidos – e os sujeitos
– não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer.
A polissemia é justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no
mesmo objeto simbólico (ORLANDI, 2020, p. 36).
Assim, para a autora, “todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão
entre processos parafrásticos e processos polissêmicos” (ORLANDI, 2020, p. 34). Essa
especificidade garante que se possa trabalhar o discurso entre o mesmo e o diferente. Enquanto
a paráfrase trabalha nos processos da memória, daquilo que se mantém, a polissemia desloca
os sentidos de modo a produzir uma ruptura nos processos de significação, possibilitando a
manifestação de diferentes sentidos.
No cotejo com o corpus de pesquisa, observa-se que o modo como a mídia
23
informativa interpreta Carolina no momento de lançamento de Quarto de Despejo é regulado,
sobretudo, por processos parafrásticos; nas manchetes de jornais em circulação nesse momento,
repete-se algo que se mantém e que condensa sentidos para Carolina a partir da designação
“favelada”. Entretanto, é preciso destacar que os sentidos de favelada não se encontram colados
ao nome, mas são constituídos por processos ideológicos que significam a favela, em 1960, a
partir de vestígios de uma política higienista de organização das cidades brasileiras difundida
no Brasil desde o final do Séc. XIX e início do XX, a qual determina para os corpos
considerados “inadequados”, corpos pobres e sobretudo negros, espaços de segregação e
divisão que se materializam na linguagem. A ideologia higienista encontra-se no cerne de
formação das favelas e está atrelada à intervenção na ordem das cidades para impor disciplina
das condições de vida por meio da higiene pública. Em nome do progresso, ela disciplina
espaços e corpos, tece “para a cidade um mapa esquadrinhado por relações sociais desiguais,
nas quais impera o sexismo e o racismo” (BOCCHI, 2018, p. 223).
Em contrapartida, a polissemia atesta um deslocamento, verificado nas análises
do momento do centenário, quando novas formas de dizer Carolina encontram condições para
serem formuladas e quando posições-sujeitos e lugares enunciativos interditados em 1960
ganham espaço, inclusive na mídia. Observa-se, nos recortes que serão examinados no terceiro
capítulos desta dissertação, designações como “a escritora” sendo formuladas, como vemos em:
“Carolina de Jesus foi a escritora que mais vendeu livros no Brasil”. Ou as designações
presentes em: “Luz negra. Carolina Maria de Jesus será a homenageada da edição deste ano da
Flink”, onde Carolina é designada “Luz negra” e “a homenageada”, num claro movimento de
reconhecimento de seu mérito e de seu trabalho como escritora. A formulação de Carolina na
relação com a favela não desaparece. Entretanto, o nome “favela” e seu derivado “favelada”
passam a significar diferentemente.
1.4 DITOS, NÃO-DITOS, SILÊNCIOS E SILENCIAMENTOS
Com base nos pressupostos de Orlandi (2007), é preciso salientar a compreensão
do discurso a partir da noção de silêncio. Ao considerar que o dito é também um não-dito, isto
é, que ao manifestar determinado enunciado deixa-se de evocar outros, abrimos espaço para
uma problematização do silêncio e a sua relação com o sentido.
24
Em sua teorização sobre o silêncio, Orlandi estabelece a diferenciação entre o
silêncio fundador e as políticas do silêncio. Para ela, o silêncio fundador se apresenta como
imprescindível, ou seja, necessário, já que confere movimento aos sentidos e que “sempre se
diz a partir do silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 23). Segundo a autora, “as próprias palavras
transpiram silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 11):
O silêncio é assim, a “respiração” (o fôlego) da significação, um lugar de recuo
necessário para que possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do
possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que permite
o movimento do sujeito (ORLANDI, 2007, p. 13).
Segundo ela, o silêncio opera em duas instâncias - a primeira, nas próprias
palavras, e a segunda no silenciamento, que diz respeito ao fato de que colocar em silêncio pode
evocar sentidos outros, tendo em vista que as palavras “produzem silêncio, o silêncio fala por
elas, elas silenciam” (ORLANDI, 2007, p. 14). As palavras carregam em si os sentidos do dito,
já-dito e não-dito sem esquecer do fato de que o silêncio, no interior da linguagem é um não-
dito que significa. Ou seja, o silêncio não pode ser entendido aqui como algo de ordem restritiva,
pelo contrário, ele é carregado de historicidade; o silêncio significa.
Acerca do silêncio fundador, é preciso explorar a duplicidade da palavra
fundante que, nos dizeres de Baldini (2011, p. 135), pode ser compreendido “como aquilo que
funda e como aquilo que dá fundamento, sustentação”. Isso permite entender, então, que o
silêncio fundador é aquele que
Atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido sempre pode
ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais importante nunca se diz, todos esses modos
de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é ‘fundante’
(ORLANDI, 2007, p. 14).
Se por um lado o silêncio fundador apresenta um modo próprio de atuar, posto
que ele é entendido “como o não-dito que é a história, e que, dada a necessária relação do
sentido com o imaginário, é também função da relação (necessária) da língua e ideologia”
(ORLANDI, 2007, p. 22), por outro a política do silêncio atua entre o dito e não-dito e se
caracteriza “pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis,
mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada” (ORLANDI, 2007, p. 73).
Para Orlandi (2007, p. 73), essa distinção acontece porque “a política do silêncio
produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não
estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo”. Assim, nosso interesse aqui,
25
para além da noção de silêncio fundador, é compreender a política do silêncio, a qual atua em
duas instâncias: silêncio constitutivo e silêncio local.
No que diz respeito à política do silêncio, Orlandi estabelece que o silêncio
constitutivo se caracteriza pelo próprio trabalho de recortar, restringir, dividir e disciplinar os
sentidos; em que se diga algo, outras coisas deixam necessariamente de ser ditas. Para a autora,
trata-se do “mecanismo que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para
poder dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74).
Assim, ao recortar e restringir as designações de/para Carolina e Quarto de
Despejo, os jornais estabelecem gestos de interpretações que jogam com o silêncio constitutivo,
interditando determinados sentidos. Nesta pesquisa, o silêncio constitutivo se dá a ver nas
formulações na medida em que as manchetes dos periódicos do ano de 1960 não dizem Carolina
como autora, mas como “favelada”. Podemos entender que o silêncio constitutivo opera nas
manchetes de jornais impedindo que designações como “autora” e “escritora” sejam atribuídas à
Carolina, negando a ela ocupar esses lugares nessa formação discursiva.
Desse modo, entendo que não há espaço, nessa discursividade, para nomear
Carolina como escritora; ela é impedida de ocupar essa posição, não por efeito de censura,
entendida como a manifestação mais visível da política do silêncio, mas como resultado de um
processo histórico ideológico que se materializa como silêncio constitutivo. Diferente da
censura, o funcionamento do silêncio constitutivo é de difícil apreensão, posto a opacidade que
lhe é própria.
Por essa via, compreendo que a materialidade das manchetes de jornais
examinadas neste trabalho evidencia questões relativas ao silêncio. As marcas linguísticas nelas
presentes remetem às designações utilizadas para referirem Carolina Maria de Jesus. As
manchetes - entendidas aqui como uma materialidade discursiva que possui modo próprio de
formulação, constituição e circulação (ORLANDI, 2020) - conduzem o olhar do leitor,
direcionam sua interpretação do início ao fim do texto. Depreende-se que o leitor é convocado
para um dado lugar de interpretação e assume um dado sentido.
Segundo Zoppi-Fontana, as designações, entendidas como capazes de produzir
determinado efeito de sentido e não outro, implicam processos instáveis dado que são
“produzidas pelo cruzamento de diferentes posições de sujeito, a partir das quais instala-se um
sentido, apagando outros possíveis/dizeres” (ZOPPI-FONTANA, 2003, p. 203). Ainda nos
dizeres da autora, os processos de designação:
Funcionam no texto como indícios dos pontos de estabilização das relações de
26
referência no interdiscurso, sendo reconfiguradas no acontecimento enunciativo a
partir do embate das condições de produção sobre a língua (enquanto estrutura formal
capaz de equívoco na história) e sobre a memória (enquanto corpo sócio-histórico de
traços discursivos que se constituem em espaço de estruturação, de regularização de
sentidos) (ZOPPI-FONTANA, 2003, p. 253).
O modo como as designações referentes à autora são empregadas constrói um
percurso de leitura e inscreve um efeito-leitor, em decorrência das projeções imaginárias que
constituem as condições de produção. Ao se valer de determinadas designações, as quais negam
à Carolina Maria de Jesus uma posição de autoria, as formulações constitutivas das manchetes
dos jornais conduzem interpretações.
Em outras palavras, ao mobilizar determinadas escolhas linguísticas e não
outras, essas manchetes evidenciam o silêncio operando entre o dito e não-dito nas palavras
escolhidas. O funcionamento linguístico das designações utilizadas nas manchetes de jornais
dão a ver significações estabilizadas, que se mantém no processo de interpretação para Carolina
e sua primeira obra, Quarto de Despejo. Entretanto, como destaca Zoppi-Fontana (2003), esse
processo pode ser reconfigurado pelo acontecimento enunciativo, conforme mostrarei nas
análises que compõem o último capítulo desta dissertação.
1.5 MEMÓRIA, EFEITO DE PRÉ-CONSTRUÍDO E DE-SIGNIFICAÇÃO
A memória, na perspectiva da Análise de Discurso, pode ser pensada a partir de
três noções fundamentais para sua compreensão. São elas: a) o interdiscurso ou memória
discursiva; b) a memória de arquivo ou memória institucional; c) a memória metálica.
A primeira delas é a que resvala no interdiscurso ou memória discursiva e diz
respeito ao “saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela
se constitui pelo já-dito que possibilita dizer” (ORLANDI, 2020, p. 64). Essa memória decorre
do esquecimento que faz com que ao falarmos, esquecemos dos sentidos já-lá; ela manifesta a
sensação de que o sentido é criado no próprio sujeito, a ilusão do sentido de origem, uma vez que,
para as palavras significarem é preciso que elas já se signifiquem antes. Nas palavras de Zoppi-
Fontana, a memória discursiva “é o espaço dos efeitos de sentido que constituem para o sujeito
sua realidade, enquanto representação imaginária (e necessária) da sua relação com o real
histórico, no qual ele está inserido” (ZOPPI-FONTANA, 2015, p. 168).
Nas palavras de Pêcheux, “algo fala antes, em outro lugar, independentemente”
27
(PÊCHEUX, 1999, p. 64) e cria a ilusão de que o sujeito é a origem do dizer quando, na verdade,
ele faz a retomada e atualização de um sentido já existente, um já-dito. Há, portanto, um
esquecimento que regula a memória discursiva, uma vez que ela é “o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2020, p. 29)
A segunda noção está no âmbito da memória de arquivo ou memória
institucional. É por meio dessa memória que as Instituições, compreendidas aqui como
Aparelhos de Estado, como por exemplo, a escola, a Igreja, a mídia, entre outras, realizam o
processo de arquivamento e consignação do que uma sociedade deve lembrar; “é a memória
que não esquece: é a que se institucionaliza e é arquivada” (ORLANDI, 2014, p. 6).
Por último, a memória metálica, responsável pela significação que circula
através das tecnologias de modo repetido e reproduzido; é aquela que mantém seu
funcionamento por meio das máquinas, ou seja, “da informatização, da digital, a da informação
de massa: a que serializa, repete na horizontalidade, sem se historicizar. Memória descartável”
(ORLANDI, 2014, p. 3).
As memórias discursiva, institucional e metálica comportam-se de modos distintos,
mantendo diferentes relações com o esquecimento3 e acarretam diferenças em termos do circuito
de constituição, formulação e circulação, afetando a função-autor e o efeito-leitor. Isto porque
qualquer forma de memória tem uma relação necessária com a interpretação (e, consequentemente,
com a ideologia.) (ORLANDI, 2006, p. 5). Assim, embora as memórias institucional e metálica
sejam relevantes para a problematização da construção do corpus de pesquisa, destaca-se no
funcionamento das designações a memória discursiva; é dela que tratarei com maior rigor,
destacando sua relação com o silêncio constitutivo e com os processos de de-significação
trabalhados por Orlandi (1999).
Em “Maio de 1968: os silêncios da memória”, Eni Orlandi (1999, p. 59) parte
do fato de que “a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não-ditos, de
sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos”. Compreende-se, então, que falar em
memória é também articular a relação existente com as noções de esquecimentos e de silêncio,
mas também de interpretação, ideologia e pré-construído.
A noção de pré-construído problematiza as construções prévias e anteriores ao
discurso, e que funcionam como aquilo que fala antes, em outro lugar e independentemente. Ou
3 Para uma compreensão dos silêncios de silenciamentos constitutivos da memória de arquivo ver: BOCCHI, Aline
Fernandes de Azevedo. O arquivo médico e seus restos: corpos femininos e práticas de resistência. Entremeios:
Revista de Estudos do Discurso, v. 19, jul.-dez., 2019.
28
seja, o pré-construído é um elemento que, ao ter relação com a exterioridade dos enunciados,
ressoa como um efeito construído anteriormente e é estruturado no interdiscurso, na memória.
Dessa maneira, o pré-construído funciona como um já-dito, um discurso anterior que retorna
no enunciado.
Segundo Pêcheux (1995), o pré-construído tem como característica a separação
fundamental entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pré-existência desse último;
há aí uma “discrepância” em que o sujeito encontra com o impensado de seu pensamento,
“impensado este que, necessariamente, pré-existe ao sujeito” (p. 93). Essa discrepância entre
“o que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente” (p. 89), e o que está contido em
uma formulação foi o que levou Paul Henry a propor o termo ‘pré-construído’ (PÊCHEUX,
1995, p. 89).
Em Semântica e Discurso, Pêcheux estabelece uma importante relação entre o
efeito de pré-construído e as designações, fazendo inclusive reflexões acerca do funcionamento
do nome próprio, que do ponto de vista jurídico e inalienável identifica uma pessoa por
referência à filiação. Voltarei a essa questão mais à frente, ao abordar o funcionamento do nome
próprio nas manchetes analisadas.
Por ora, irei me deter ao funcionamento do silêncio constitutivo nas designações
articulado aos processos de de-significação de sentidos. Em um texto já mencionado sobre maio
de 1968, Orlandi (1999) postula que “falar é esquecer. Esquecer para que surjam novos
sentidos, mas também esquecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis, mas foram
estancados em um processo histórico-político silenciador. São sentidos que são evitados, de-
significados” (1999, p. 61-62).
Para a autora, os sentidos de-significados são os sentidos silenciados, omitidos
na rede de memória, excluídos para que não haja um já-dito; de-significação é, portanto, aquilo
“o que está fora da memória não está nem esquecido nem foi trabalhado, metaforizado,
transferido. Está in-significado, de-significado” (ORLANDI, 1999, p. 66). Não são processos
em que a memória falha, mas processos em que operam faltas a colocar para fora do discurso
aquilo que poderia ser significado.
Sustento que os sentidos que ratificam uma mulher negra, moradora de uma favela
e que pouco frequentou a escola como escritora estão de-significados, postos fora da memória, por
um longo e intenso processo de segregação e racismo que se inicia no período escravocrata e
perpassa toda a história do Brasil, com rastros visíveis ainda hoje.
Como argumenta Barbosa Filho (2016) ao investigar o trabalho de rua na
29
Salvador oitocentista, particularmente no quadro das insurreições que tomaram conta da Bahia,
embora protagonizassem o espaço das ruas os negros “ganhadores” foram interditados de
protagonizar o espaço da palavra: escaparam à autoria do arquivo, não tiveram lugar de fala no
jogo jornalístico, tiveram suas falas consignadas pelas palavras de outrem.
Da mesma forma, o protagonismo de Carolina é confiscado e seu livro
desmerecido; a escritora é reduzida ao estereótipo da favelada, pelo jogo de identificações
imaginárias que funcionam nas designações, apagando seu nome próprio, sua assinatura, sua
legitimidade como autora. Entretanto, como alerta Barbosa-Filho, o real da história faz o
silêncio, o não-dito aparecer nas lacunas. O acontecimento de lançamento de Quarto de Despejo
cava um buraco na memória, desestabiliza processos de significação, de modo que outros
sentidos tornam-se possíveis, como veremos no decorrer das análises.
Considero que Quarto de Despejo produz um “lugar de inscrição subjetiva para
uma fala historicamente silenciada, reinscrevendo na história memória feridas, precárias, de um
passado de-significado” (BOCCHI; RODRIGUES, 2020, p. 341). Embora tematize a periferia,
configurando um discurso sobre o cotidiano da favela do Canindé, o diário de Carolina
textualiza modos de subjetivação frente à fome, à miséria e ao preconceito que o funcionamento
do discurso midiático tenta obturar no processo de estereotipagem.
30
2 A CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO TEÓRICO ANALÍTICO
Aqui todas impricam comigo. Dizem que falo muito
bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico
nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos
os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.
Carolina Maria de Jesus
Como menciono na introdução deste estudo, o corpus desta pesquisa foi
construído a partir de um trabalho de arquivo que resultou em um conjunto de manchetes de
jornais publicadas em 1960, no lançamento de “Quarto de Despejo”. No que diz respeito ao
momento de lançamento da obra, as manchetes foram recortadas de jornais em circulação à
época, encontradas no arquivo da Biblioteca Nacional Digital.
Neste capítulo, descrevo em pormenores os passos de construção do dispositivo
teórico-metodológico da pesquisa, bem como os conceitos e noções chave que me permitiram
gestos de leitura do/no arquivo, tais como a própria noção de arquivo, erigida nos anos 1980, a
qual possibilitou uma profícua articulação entre os campos da Linguística e da História no
âmbito do discurso, bem como a noção de trajeto temático.
2.1 TRAJETOS DE LEITURA NO ARQUIVO DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL
As manchetes e matérias4 retiradas do site da Biblioteca Nacional consistem em
um material informativo veiculado em jornais no período de agosto a dezembro de 1960, e que
indiciam os modos com que a imprensa designava Carolina Maria de Jesus, atribuindo a seu
nome uma relação com o espaço urbano, particularmente a favela, elemento que contrastava
4 Embora o foco das análises seja as manchetes, elas não serão destacadas do contexto das matérias. Entendo, a
partir da perspectiva discursiva, que é preciso situar e remeter as manchetes à notícia ou reportagem da qual ela
faz parte, visando a compreensão dos efeitos de sentido ali produzidos. A manchete de jornal é um recorte
interpretativo do texto jornalístico que visa conduzir o olhar do leitor em uma direção de sentidos ideologicamente
imposta. Dessa forma, confrontar as designações presentes nas manchetes com seus respectivos textos mostra-se
fundamental para a compreensão das formulações ali presentes.
31
com outros escritores da época.
Ao optar por pesquisar as manchetes do ano de 1960 no site da Biblioteca
Nacional, levei em consideração sua importância histórica; trata-se de um arquivo que remete
há mais de 200 anos e reúne cerca de nove milhões de itens em seu acervo. Por apresentar um
panorama abrangente de arquivos históricos, a Biblioteca Nacional permite explorar um acervo
a partir de periódicos que foram importantes para a construção da história oficial brasileira5.
Nessa perspectiva, validei que parte do corpus seria recortado do site da Biblioteca Nacional,
posto a diversidade de periódicos brasileiros ali consignados, o que possibilitaria um vislumbre
das relações ideológicas do período em que as manchetes foram veiculadas.
Em face à noção de arquivo, é preciso também mobilizar aqui a noção de arquivo
digital, dado que é por esse caminho que a montagem do corpus e os trajetos de leitura desta
pesquisa acontecem. É da perspectiva de Orlandi (2007) que suscitamos os preceitos de arquivo
digital entendido, segundo a autora, como memória metálica. Isto é, o funcionamento de um
arquivo digital acontece por uma memória metálica que “não falha e se apresenta como
ilimitada em sua extensão, só produz o mesmo, em sua variação, em suas combinatórias”
(ORLANDI, 2007, p. 16).
Dito em outros termos, ao garantir a circulação do arquivo de modo repetido, a
memória metálica retoma uma rede de já-dito; essa repetição ratifica sentidos de totalidade e
completude para o arquivo. Para Orlandi (2006, p. 5), o funcionamento da memória metálica
acontece de maneira horizontal, “não havendo assim estratificação em seu processo, mas
distribuição em série, na forma de adição, acúmulo: o que foi dito aqui e ali e mais além vai-se
juntando como se formasse uma rede de filiação e não apenas uma soma”.
Desse modo, os arquivos digitais comportam uma evidência. Isto é, eles
supostamente parecem ser completos, abranger todos os sentidos possíveis. No entanto, essa
ilusão de que o arquivo digital possa tudo guardar é construída discursivamente. O arquivo, ao
agrupar documentos, permite reunir em um só local um conjunto de materiais e cria a ilusão de
que os documentos ali consignados remetem à realidade; apaga-se o fato de que qualquer
arquivo comporta falhas e furos, lacunas e esquecimentos, sendo, portanto, um recorte de um
dado momento ou conjuntura. Nesse quesito, é de grande importância levar em consideração
que a aparente completude é, na verdade, um efeito da evidência. Assim, como aponta Dias
(2015, p. 974), cuido para “não tomar como uma evidência do arquivo o resultado da busca,
5 Digo história oficial pois considero, com Bocchi (2019, p. 80), que “o arquivo abriga também faltas, furos e
restos ignorados e esquecidos de memória. O modo discursivo de apreensão do arquivo impõe, então, considerar
a falta como constitutiva do próprio arquivo, de sua materialidade [...]”.
32
porque ela não é mais do que dados em uma relação algorítmica numa memória metálica”.
Os trajetos de leitura nos arquivos da Biblioteca Nacional partiram de buscas no
site da Hemeroteca Digital, onde é possível realizar pesquisas de três modos distintos: pelo
nome do periódico, pelo período ou pelo local da publicação. Para esta pesquisa, optei pelas
buscas com base no período de circulação dos jornais, isto é, selecionei o período da década de
1960. Essa escolha, de mobilizar o período e não o periódico ou o local se deu, sobretudo,
devido ao objetivo desta pesquisa de compreender o funcionamento das designações acerca de
Carolina em manchetes de jornais no momento de lançamento de Quarto de Despejo e não
restringir apenas a jornais e cidades específicas.
Embora tenha sido selecionado o modo “período”, o que apresentou resultados de
vários Estados, em um segundo momento optei por me deter apenas às análises de manchetes de
São Paulo. Isso porque a incidência das designações nessa localidade apresentava semelhanças
com as designações que apareciam na imprensa dos outros Estados. Ao selecionar São Paulo
como recorte, levei em consideração o fato de ser o Estado em que Carolina Maria de Jesus
morava, a favela do Canindé. Além disso, foi também na capital paulista que aconteceu o primeiro
lançamento de Quarto de Despejo. Em anexo, ao fim desta pesquisa, reuni recortes dos três
Estados (São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná) que mais noticiaram o lançamento com o intuito de
documentar o estudo e verificar a incidência das designações.
Como mencionado em um outro momento, as manchetes da década de 60 foram
retiradas do site da Biblioteca Nacional. Para isso, selecionei a opção “período” em que realizei
as buscas com base em frases, e não em palavras-chave, uma vez que os resultados oferecidos
pelo site poderiam ser mais exatos. Segundo o site, havia 2416 periódicos em 20 localidades.
Com isso, a frase que usei para pesquisar as manchetes foi, em um primeiro momento,
“Carolina Maria de Jesus Quarto de Despejo”. No entanto, os resultados mostraram-se
desassociados à pesquisa, já que as buscas coletavam informações imprecisas e arbitrárias desde
nomes de Carolina ou Maria à Quartos de Despejo como cômodo de casa para ser alugada.
Ao pesquisar apenas o nome da autora, o site apresentava 64 periódicos, com
buscas em todos os estados brasileiros, e 967 ocorrências. No entanto, esses números não
correspondiam apenas ao ano de 1960 e sim ao período de 1960 a 1969, o que demandou uma
6 Nas configurações da Hemeroteca Digital Brasileira, ao selecionar a década de 60, aparecem 20 localidades e
247 periódicos. No entanto, deve-se desconsiderar dois locais que não se referem aos estados do Brasil:
Georgetown, no Estados Unidos, e Madri, na Espanha. Ambos com um periódico cada. Além disso, aparece como
local a opção X1 com quatro periódicos: Estrela do Minho, Filme & Cultura 1, Hochzeits Zeitung e O Estudante.
Para esta pesquisa desconsideramos essas localidades e periódicos já que não há ocorrência do nome da autora e
sua obra. Consideraremos então 17 localidades e 241 periódicos.
33
filtragem manual para selecionar apenas o material publicado em 1960. Embora o jornal Última
Hora, no Paraná, tenha apresentado mais ocorrências, com 94 resultados, os jornais do Estado
do Rio de Janeiro foram os que mais noticiaram Carolina e o lançamento de Quarto de Despejo,
totalizando, dos 82 periódicos da época, 32 jornais com 580 ocorrências. No estado de
lançamento, em São Paulo, dos 22 periódicos apenas 11 noticiaram, totalizando 160
ocorrências. Já em Minas Gerais, no estado em que Carolina nasceu, dos 64 jornais apenas 5,
com 26 ocorrências, veicularam notícias sobre autora e obra.
A tabela abaixo ilustra quais Estados brasileiros veicularam o nome de Carolina
Maria de Jesus e o lançamento de Quarto de Despejo, bem como o número total de periódicos
por estado e a quantidade deles que veicularam notícias sobre obra e autora e, por fim, a
quantidade de ocorrências nesses jornais. Vale a pena lembrar que o número de ocorrências
total não se refere apenas ao ano de lançamento, mas sim ao período de 1960 a 1969 que é
disponibilizado, por década, no acervo digital da Biblioteca Nacional.
Tabela 1 – Relação de veiculação
Fonte: elaborado pela autora, 2020.
Além das buscas anteriores, procurei por “Quarto de Despejo” e os resultados
eram demasiados e imprecisos, já que se relacionavam também, e sobretudo, a aluguéis de casas
com quartos e/ou quartos de despejo. Resolvi inserir “Lançamento” na busca anterior e os
Estado Acervo Total Acervos Ocorrências
Rio de Janeiro 82 32 580
São Paulo 22 11 160
Paraná 9 4 120
Minas Gerais 64 5 26
Pernambuco 4 2 44
Distrito Federal 1 1 13
Santa Catarina 17 2 10
Rio Grande do Sul 13 3 6
Rio Grande do Norte 2 1 3
Amazonas 2 1 3
Acre 11 1 1
Mato Grosso 3 1 1
Total: 12 230 64 967
34
resultados, dez ocorrências em oito periódicos, já referiam Carolina Maria de Jesus.
Ainda interessada nas buscas e nos resultados obtidos anteriormente, pesquisei
o nome da autora associado à “Escritora” e também “Favelada”. Obtive resultados, mas havia
poucas ocorrências, sendo que apenas onze periódicos traziam dezoito ocorrências da frase
“Carolina Maria de Jesus Escritora” enquanto quatorze jornais elucidavam dezenove
ocorrências da frase “Carolina Maria de Jesus Favelada”.
No entanto, é necessário ressaltar que as ocorrências com o termo “Escritora”
mostravam resultados associados às designações de favelada ou ainda “da favela”, “ex-
favelada” e “humilde”. Desses resultados obtidos, pude notar que, das dezoito ocorrências,
apenas duas não associavam Carolina a esses nomes. Uma delas, veiculada no jornal Última
Hora, no Paraná, não tratava sobre a autora e apenas citava o seu nome como “escritora e agora
cantora”, além disso, o ano de publicação foi no ano seguinte ao lançamento da obra. A outra
ocorrência, no jornal Diário da Noite, de São Paulo, não apresentava Carolina Maria de Jesus
como escritora, nem como favelada, mas como cronista. Essa ocorrência, datada de 1962, assim
como a anterior, também não foi publicada no ano de lançamento da obra.
2.3 O CORPUS E O ARQUIVO: UMA PROBLEMÁTICA DISCURSIVA
Ao selecionar como corpus as manchetes de 1960, nos arquivos da Biblioteca
Nacional Digital, é pertinente mencionar que o trajeto de leitura percorrido nessa plataforma se
assenta nas noções de corpus e arquivo.
Para AD, a noção de corpus resvala em sua relação associada, e não separada, das
condições de produção dos discursos. Para Dias (2015, p. 972), a questão do corpus diz respeito
a “um conjunto de formulações produzido pelo próprio processo de interpretação do discurso, no
confronto com o arquivo”. Dito em outras palavras, à luz teórica da autora, com embasamento
em Pêcheux, o corpus resulta do cotejamento de interpretação e descrição, pela via de um
batimento entre ambos. Em síntese, o corpus aqui é o que “resulta de um trabalho de leitura de
arquivo, cujo nó central é a relação entre língua e exterioridade, uma remetendo ao jogo, ao
equívoco, e a outra, aos efeitos linguísticos materiais na história” (DIAS, 2015, p. 975)
Pensar a noção de arquivo, segundo Pêcheux (2010, p. 51), é considerá-la em
“sentido amplo” como um “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma
35
questão”, ou seja, trata-se de considerar o arquivo em sua própria materialidade e não como um
acervo de materiais acumulados e armazenados. Isso porque “o arquivo comporta mais que um
simples conjunto de documentos agrupados por uma lógica institucional” (DELA-SILVA e
LUNKES, 2014, p. 137). Isso porque, para Pêcheux, pensar o arquivo é também pensar o gesto
de leitura que é convocado diante do arquivo em questão. Esse trabalho da leitura fica na
incumbência da “relação entre língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo,
e a discursividade como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história, que constitui o
nó central de um trabalho de leitura de arquivo” (PÊCHEUX, 2010, p. 58).
O arquivo pensando em sua materialidade é o que permite emergir um significado
e não outro, conforme Dias (2015, p. 973): “ao se deparar com ele, o sujeito o recorte de maneira
x e não y. Um mesmo arquivo nunca é o mesmo, por causa da sua materialidade”. De outra
maneira, é através do gesto de leitura do analista que os sentidos se manifestam e outros são
suprimidos, na medida em que um arquivo é sempre passível de novas leituras. Isso porque, nas
palavras de Guilhaumou e Maldidier (2010, p. 162), “o arquivo não é um simples documento no
qual se encontram referências; ele permite uma leitura que traz à tona dispositivos e configurações
significantes”. Sobre isso é importante destacar, de acordo com os autores supracitados, que “o
arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura seu funcionamento é opaco”
(GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2010, p. 162).
Em “Novos Gestos de leitura ou o ponto de vista da Análise de Discurso sobre
o sentido”, de Guilhaumou e Maldidier ([1990] 2016), considera-se que a AD tem como apoio
material a língua e o arquivo, o que implica, ao mencionarem Foucault, que o arquivo “é um
dispositivo não fortuito que constitui figuras distintas, no sentido de que cada dispositivo de
arquivo estabelece sua própria ordenação” (2016), p. 238). Considerando a história da Análise
de Discurso, a problemática do arquivo permitiu ampliar, a partir da releitura de Foucault, a
tarefa de investigação à análise de configurações de enunciados atestados no arquivo, o que
possibilitou avanços em relação ao problema do corpus fechado que marcou a primeira fase da
AD. Trata-se, segundo Guilhaumou, de trabalhar com um dispositivo experimental em que um
trabalho sobre a configuração dos enunciados de arquivo e estudos pontuais de momentos do
corpus se associam.
Os autores referenciados postulam que o arquivo exibe o sentido que é dado “a
partir de uma diversidade de textos, de dispositivos de arquivos específicos sobre um tema, um
acontecimento, um itinerário” (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2016, p. 238). Assim, não se
trata de estabelecer uma “leitura plural” que adicionaria textos e sentidos, mas de apreender
36
sentidos determinados “exibidos” pelo arquivo, a partir das restrições que ele, o arquivo,
introduz na descrição do semantismo dos enunciados, ou seja, trata-se de “um instrumental
metodológico que coloca em evidência, com a ajuda de quadros semânticos, elementos textuais
em relação de substituição paradigmática” (GUILHAUMOU; MALDIDIER; ROBIN, 2016, p.
19). “Do lado da língua, não é apenas através das palavras, mas através de mecanismos
sintáticos e enunciativos que o sentido se produz.” (p. 238).
Consequentemente, embora a entrada analítica se dê a partir da recorrência de
designações para Carolina e seu livro, são os mecanismos sintáticos e enunciativos, articulados
às condições de produção, que proporcionam o vislumbre de como os sentidos se dão a ver no
arquivo. Nesta pesquisa, o arquivo foi elaborado a partir de buscas com frases-chaves no site
Biblioteca Nacional, onde pesquisou-se “Carolina Maria de Jesus”, e no Google, onde as
ocorrências resultaram de uma busca a partir de “Centenário Carolina Maria de Jesus”.
Posteriormente, com base nesse arquivo, iniciei os recortes que comporiam o corpus ao ter
como norte as ocorrências das designações para a autora nos dois períodos, observando as
disparidades em relação aos mecanismos enunciativos e sintáticos.
O corpus é, portanto, um recorte no arquivo ordenado por um trajeto temático,
o qual organiza as designações para Carolina em uma série que emerge como efeito do arquivo,
constituído por manchetes que circularam em 1960. Para tanto, o corpus é constituído de cinco
manchetes que são elas: (I) “Lançamento do diário da favelada”, (II) “Livro da favelada causa
complicações na edilidade”, (III) “Líderes do Movimento Cultural do Negro homenageiam a
escritora Maria Carolina”, (IV) “Homenagem na campanha da Associação Cristã Feminina à
Carolina Maria de Jesus, (V) “São Paulo lança escritora negra: Carolina Maria”.
2.4 NOÇÃO DE TRAJETO TEMÁTICO
Guilhaumou e Maldidider (2010), em “Efeitos de Arquivo. A análise do discurso
no lado da história”, propõem a noção de trajeto temático considerando o tema como aquilo
que “não remete, aqui, nem à análise temática, tal como é praticada pelos críticos literários,
nem aos empregos que dela se faz na linguística” (1997, p. 164). Os autores estabelecem o
trajeto temático como uma noção que “supõe a distinção entre o ‘horizonte de expectativas’ –
o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica dada – e o acontecimento
37
discursivo que realiza uma dessas possibilidades, inscrito o tema em posição referencial”
(GUILHAUMOU e MALDIDIDER, 2010, p. 164).
Considero o lançamento de Quarto de Despejo como um acontecimento
discursivo7. A partir dele, entendo o trajeto temático como um elemento norteador que regula
o arquivo de modo que, ao funcionar também como uma ferramenta de seleção do corpus, tem
como tema as designações formuladas para Carolina. Dessa maneira, o percurso temático parte
de enunciados em circulação em 1960, os quais possibilitam emergir designações referentes à
autora, como por exemplo “favelada”. Os autores já referidos ainda postulam sobre o trajeto
temático:
A análise de um trajeto temático remete ao conhecimento de tradições retóricas, de
forma escrita, de usos da linguagem, mas sobretudo, interessa-se pelo novo no interior
da repetição. Esse tipo de análise não se restringe aos limites da escrita, de um gênero,
de uma série: ela reconstrói os caminhos daquilo que produz o acontecimento na
linguagem (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2010, p. 165).
Dessa maneira, o trajeto temático serve como um procedimento para a seleção
do corpus, ou como refere Dela-Silva (2008, p. 12) é a “principal noção utilizada para a seleção
do material de análise e a realização dos recortes para a compreensão do processo discursivo”.
Ao levar em consideração que o trajeto temático também se comporta como um procedimento
de seleção, o ponto de partida para a composição do corpus desta pesquisa se deu de forma a
verificar as designações que se apresentavam com certa regularidade, como é o caso, por
exemplo, do termo “favelada”.
Tendo em vista o trajeto temático realizado pelo corpus das manchetes de 1960,
retiradas da Biblioteca Nacional, observa-se que Carolina encontra-se atrelada a nomes e
expressões como “favelada”, “diário da favelada”, “livro da favelada”, “escritora favelada”
ou, ainda, “Maria Carolina”, caracterizando um processo de construção de sentidos pré-
construídos que determina as significações para Carolina. Nota-se que, no processo de
significação para a autora, no período de lançamento de Quarto de Despejo, há uma saturação
e desqualificação que o termo “favelada”, filiado à vestígios da ideologia higienista, ocasiona.
Assim, Carolina enquanto mulher, negra e moradora da favela, é estereotipada e situada numa
7 Considero que há uma distinção entre acontecimento discursivo, acontecimento jornalístico e acontecimento
midiático. Compreendo que o acontecimento discursivo “é apreendido na consistência de enunciados que se
entrecruzam em um momento dado” (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2010, p. 164), já o acontecimento
jornalístico se manifesta nos jornais na forma de notícias, como poderemos ver mais adiante, no capítulo três, e,
por fim, penso o acontecimento midiático como aquele que se dá na relação com outras mídias, por ser mais
abrangente e amplo do que o acontecimento jornalístico.
38
zona específica do espaço urbano.
Em síntese, ao percorrer a materialidade do arquivo é que se encontra o percurso
temático. É por meio desse movimento, de manuseio no arquivo, que é possível organizá-lo a
partir das recorrências e deslizamentos das designações. A designação funciona de modo que
ora se comporta como analítica, ora como metodológica, o que possibilita a organização do
corpus e implica que o recorte no arquivo seja feito a partir dessas designações. Assim, o trajeto
temático recorre a elas e, ao emergir um efeito de série dessas designações que significam a
autora, produz efeitos do/no arquivo. Isto é, nesta pesquisa, ao pontuar as designações como
uma série “favelada”, “diário da favelada”, “Maria Carolina”, “Escritora Negra” é que se
chega no efeito do arquivo coordenado pelo percurso temático.
39
3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS JORNAIS DE 1960
O João quando retornou-se disse que a reportagem
havia saido. Vasculhei os bolsos procurando dinheiro.
Tinha 13 cruzeiros. Faltava 2. O senhor Luis
emprestou-me. E o João foi buscar. O meu coração
ficou oscilando igual as molas de um relogio. O que
será que eles escreveram a meu respeito?
Carolina Maria de Jesus
Neste capítulo, examino mais detidamente as designações para Carolina Maria
de Jesus e Quarto de Despejo presentes em manchetes de jornais no ano de lançamento da obra,
procurando mostrar como se dá o processo de estereotipagem de Carolina como “favelada”,
bem como os trajetos de memória que legitimam essa sua interpretação por parte da mídia
informativa. Tomo como ponto de partida as condições de produção de Quarto de despejo, a
partir das quais procuro mostrar as filiações de memória que sustentam um pré-construído sobre
a favela e o sujeito favelado atrelado a vestígios da ideologia higienista.
Para tanto, convoco cinco recortes que trazem marcas do funcionamento
ideológico racista na determinação de sentidos para Carolina e seu primeiro livro; busco apontar
como esse funcionamento produz a absorção do acontecimento discursivo ao colocar em cena
o acontecimento jornalístico, constituído por processos de apropriação discursiva e
estereotipagem.
3.1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
Dissemos anteriormente que as condições de produção (PÊCHEUX, 2010) e
circulação de um discurso são constitutivas dos sentidos e remetem à atualização de uma
memória que pode reafirmar um já-dito e/ou produzir deslocamentos. Considero a noção de
condições produção, a partir de Orlandi, em seu sentido estrito e amplo. Enquanto a primeira
diz do contexto imediato, a segunda se refere ao “contexto sócio-histórico, ideológico”
40
(ORLANDI, 2020, p. 30). De acordo com a autora citada, as condições de produção
compreendem os sujeitos e a situação, além de que é por meio da memória que faz funcionar
as condições de produção e circulação de determinado discurso. Na sequência, aprofundo nas
condições de produção em seu sentido amplo, ou seja, o contexto sócio-histórico em que Quarto
de Despejo foi lançado.
Segundo Hohlfeldt (2008, p. 38), a década de 1960 foi marcada por uma forte
agitação política que se acentua com a ditadura militar instaurada em 1964. Nas palavras da
autora, uma contradição manifestava “variadas e múltiplas posições em todos os campos da
atividade política, econômica e cultural. Daí a perspectiva de oposição entre diferentes
princípios e ideologias, que acaba se expressando numa tensão constante”.
A produção cultural brasileira do fim da década de 1950 e início de 1960 refletiu
esse embate político caracterizado pela presença de uma ideologia nacionalista e uma crescente
mobilização popular. O teatro, a música, literatura, enfim, a cultura de modo geral passava por
um momento de ebulição: “a efervescência cultural e a participação popular que se inicia nos
anos 1950 atingem seu ápice com o CPC [Centro Popular de Cultura] e atravessam a década
até praticamente 1968, embora sofram quedas bruscas a partir de 1964, com o Golpe Militar”
(PERPÉTUA, 2014, p. 48)8.
É nesse momento marcado por agitações sociais, políticas e culturais que surge
Quarto de Despejo, o diário em que Carolina Maria de Jesus registra a vida de uma mulher
negra, mãe e catadora de reciclagem. Os apontamentos que envolvem a problemática social e
política formulados no Diário de Carolina destoam das demais narrativas na época, por demais
atrelados a sentidos idealizados da favela. Enquanto a favela era retratada de forma romantizada
em outras obras, como por exemplo, na canção Ave Maria no Morro, de Herivelto Martins,
Quarto de Despejo revelava de maneira crua uma perspectiva ainda desconhecida ou, talvez,
silenciada sobre a favela: “hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para
suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida (...)” (JESUS,
2014, p. 174).
Na produção cultural, os sentidos da favela relacionavam-se majoritariamente
com a ideia do “cartão-postal” (LAJOLO, 1996, p. 39), um retrato idealizado formulado a partir
de uma interpretação romantizada, como a que encontramos em Ave Maria no Morro:
8 O CPC foi constituído em 1962 no Rio de Janeiro e tinha por objetivo divulgar a “arte popular revolucionária”.
Ele implicava tanto o rompimento com a cultura dominante considerada alienada quanto a recusa em transformar
em folclore a cultura das classes populares. O centro carioca inspirou a formação de centros em outros estados.
41
Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura. Lá no morro barracão é bangalô. Lá não
existe felicidade de arranha-céu, pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu.
Tem alvorada, tem passarada, alvorecer, sinfonia de pardais anunciando o anoitecer.
E o morro inteiro no fim do dia reza uma prece ave Maria. E o morro inteiro no fim
do dia reza uma prece, ave Maria. Ave Maria, Ave. E quando o morro escurece, elevo
a Deus uma prece, ave Maria.
Essa canção, entendida como exemplar de um modo de significar a favela na
música popular brasileira, produz em seus modos de formulação e constituição sentidos
romantizados: a “favela” é formulada como “morro”, lugar de “alvorada”, “alvorecer”,
“sinfonia de pardais anunciando o anoitecer”, onde não se tem “barraco” ou “barracão”, mas
“bangalô”. Disso depreende-se o que Lajolo (1996, p. 39) problematiza ao dizer que “os
subespaços urbanos parecem ter-se reservado para a música popular, na qual completamente
maquiados, recobriam sua degradação com promessas de felicidade conquistada por
contiguidade e vizinhança”.
Nessa canção, a favela assume contornos imaginários, romantizados. Enquanto
nela o favelado é aquele que “vive pertinho do céu”, em Quarto de Despejo denuncia-se a favela
como lugar da fome, “o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2014, p. 32). Disso compreende-
se que, de um lado, temos um sítio de significância (ORLANDI, 2007) no qual operam os
significantes “morro”, “bangalô”, “alvorada” e “alvorecer”; e, de outro, temos um sítio de
significância diferenciado, linguisticamente marcado por “favela”, “despejo”, “fome”, “lixo”.
Ou seja, há uma discrepância nos sentidos que se constituem em um e outro sítio de
significância, um embate de significações que opera acerca de um objeto simbólico, a favela, e
que dão a ver distintas formações ideológicas na produção cultural. Entretanto, há de se
observar, também, para além desse imaginário, filiações de sentido para a favela advindas de
uma memória entrelaçada à ideologia higienista, conforme mostraremos a seguir.
3.1.1 Sentidos da favela: vestígios da ideologia higienista
Ao constar a não estabilidade dos sentidos, que se apresentam em movência,
considera-se que há sempre um embate entre modos de significação que se estabelecem como
distintos e concorrem pela estabilização dos sentidos. Como mostramos anteriormente, temos,
a partir de posições enunciativas daqueles que falam de dentro do morro nas canções brasileiras,
sentidos mobilizados na relação com o imaginário da favela como cartão-postal. Em
42
contraposição a esses sentidos, Quarto de despejo: diário de uma favelada emerge como um
acontecimento que rompe com a suposta evidência de sentidos romantizados para a favela ao
convocar para ela outras significações. Entretanto, há ainda uma terceira via a ser explorada, a
qual considera os sentidos da favela na relação com vestígios de uma ideologia higienista
operante na sociedade brasileira desde o final do Séc. XIX e início do Séc. XX, conforme
Oliveira Sobrinho (2013).
A favela do Canindé, onde residia Carolina, era situada às margens do Rio Tietê
e foi construída em 1948 por Adhemar de Barros. Nas palavras de Vera Eunice, filha de
Carolina:
Minha mãe contava que o criador das favelas de São Paulo foi o ex-governador de
São Paulo, Adhemar de Barros. Por quê? Foi o seguinte: ele mandou recolher da rua
toda pessoa que não tivesse casa para morar por causa de um convidado importante
que estava para visitar a cidade. Era um desses diplomatas americanos e o Adhemar
queria causa uma boa impressão. O que ele fez? Mandou limpar tudo, ajeitar as praças,
varrer, lavar, tapar buracos e acabou fazendo a polícia recolher a mendigada também.
Um por um, os policiais pegavam os pobres na rua e iam despejar nos terrenos vazios,
como o Canindé. Os pobres não podiam dormir na rua, senão acordavam na delegacia,
e daí, era pior, maus tratos, agressões. Podia ser homem, mulher ou velho: era tudo
pobre ... Foi assim então que as pessoas começaram a construir os barracos. Foram
juntando a madeira de caixotes, mais papelão, latas velhas, e as favelas foram
crescendo, crescendo, e chegaram ao ponto que estão hoje (EUNICE, 2015, p. 77-78).
O relato de Vera Eunice sobre suas recordações pessoais aponta para formas
específicas de significar os pobres que eram “despejados” nas favelas. Também narrativiza a
fundação da favela do Canindé a partir de uma história de vida, da vida de sua família, e das
narrativas compartilhadas entre gerações sobre a origem do lugar onde ela vivia. O uso do nome
“despejados” pela filha de Carolina não é um acaso; “quarto de despejo” não é apenas o barraco,
mas também a favela, esse lugar onde despejam pessoas tidas pela sociedade higienista como
abjetas, inadequadas, e que, portanto, deveriam ser escondidas, apagadas, invisibilizadas, postas
para fora dos sentidos e da memória.
Isso se mostra também nas palavras de Carolina: “eu classifico São Paulo assim:
o Palacio, é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o
quintal onde jogam os lixos” (2014, p. 32), percebemos que os sentidos de favela se formulam
na relação com o resto, o lixo, como lugar de descarte de pessoas, ao passo que a cidade é
estruturada pelo palácio, sala de jantar e jardim, sendo o quarto de despejo o lugar deteriorado.
Ela ainda considera: “quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com
seus lustres de cristais seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela
tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (2014,
43
p. 37), o que confirma a ideia de que o espaço urbano é composto por lugares desiguais e que
na favela é lugar de objetos “fora de uso”, que não tem valor.
Como bem pontuou Lélia Gonzalez (1982, p. 232), desde a época colonial é
evidente a separação do espaço físico ocupado por dominadores e dominados, o que a autora
denomina “divisão racial do espaço”. Cito-a: “O lugar natural do grupo branco dominante são
moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo [...]. Já o lugar do
negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos
habitacionais [...]”. Gonzalez percorre questões impertinentes à formação social brasileira e seu
mito da democracia racial, articulando com genialidade a constituição ideológica da “divisão
racial do espaço” às designações estereotípicas que historicamente se constituem para a mulher
negra. Segundo a autora, “[m]ulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente,
trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler o jornal, ouvir radio e ver televisão. Eles não
querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados” (p. 226).
Professora, intelectual, feminista, militante e fundadora do Movimento Negro
Unificado, Lélia Gonzalez se destaca por suas contribuições que endossam as pautas dos
movimentos feministas negros e por sua atuação incisiva na luta contra o racismo. Dentro de
suas abordagens, destaca-se “sua perspectiva interseccional, envolvendo as dimensões da
dominação sexual, de classe e de raça articuladas nas formas de opressão e hierarquização
racial, bem como na formação de identidade de afirmação coletiva” (RIOS, 2020, [n.p.]).
Em sua trajetória política e acadêmica, destacam-se pautas compromissadas com
temas que versam sobre a mulher negra, principalmente a crítica ao racismo estrutural. Diferente
do movimento feminista que antecede o feminismo negro, Lélia propõe um olhar sobre a raça, o
que a coloca como “precursora em acrescentar à condição da mulher brasileira o marcador de
raça, pouco tempo depois do campo feminista-marxista no Brasil ter começado a discutir como a
diferença de classe afetava as mulheres” (RODRIGUES, 2020, [n.p.]).
Retomando os dizeres de Vera Eunice, verifica-se, também, como o Aparelho
repressor atuou em favor da ideologia de classe, “despejando” os pobres nas favelas como se
fossem entulho, resto que a sociedade tenta apagar. Passa-se, então, a um processo de
naturalização de espaços considerados próprios a esses corpos entulho, despejados, por meio
de um “mapeamento segregativo da cidade” (BOCCHI, 2018, p. 224). Em sua análise da
crônica Mulheres detentas, de João do Rio, Bocchi (2018) mostra que, na forma como a cidade
se organiza, há espaços de segregação e divisão que se materializam na literatura. Na crônica
de João do Rio, esses espaços se formulam como “morros da Favela”, “becos”, e “ruelas”, os
44
quais perfazem lugares “naturais” - a favela, a prisão e o hospício - a determinados corpos tidos
como abjetos. A pesquisadora problematiza a abjeção a partir de Butler, como os corpos que
são constituídos fora do circuito de reconhecimento. Trata-se de um outro que, por conta de sua
diferença (de classe, raça e sexo), não cabe nos espaços normativos citadinos.
Acerca do Aparelho repressor, encontramos a marca de sua atuação também em
Martha Godinho (1955), que realizou o primeiro estudo sobre as favelas na capital paulista,
pesquisa onde sistematiza a construção da favela do Canindé:
Favela do Canindé: Começou em 1948, [...]. Junto a Rua Antônio de Barros, num
terreno dos irmãos X, formou-se uma favela à revelia dos proprietários que, tão logo
tiveram conhecimento, requereram despejo policial. Aquelas pessoas então
desalojadas foram reclamar no Gabinete do Prefeito, onde receberam um memorando
para usarem o terreno da Prefeitura, no Canindé. Para alguns, a Prefeitura forneceu
também caminhão para o transporte do barraco. Iniciou-se, então, a “Favela do
Canindé” com 99 famílias (GODINHO, 1955, p. 16-17 apud PAULINO, 2007, p. 81).
Embora Vera Eunice e Martha Godinho teçam considerações a respeito da
construção da favela do Canindé, há registros de favelas anteriores a ela, que data de 1935, e de
quatro outras surgidas nos dois anos posteriores. Para Coelho (2002, apud PAULINO, 2007),
entre 1942 a 1949 já existiam 16 favelas na cidade. Segundo Paulino (2007, p. 47), nas décadas
de 50 e 60, “se elege a favela como um problema em São Paulo”, em que todo um arsenal de
pré-conceitos e representações estigmatizantes se manifestou como um “legado da ideologia
higienista, o estigma sobre a favela se revelou em São Paulo já nas suas origens” (PAULINO,
2007, p. 47).
Oliveira Sobrinho (2013) localiza o surgimento da ideologia higienista no
movimento que passa a sustentar a ideia de que as classes pobres não eram perigosas “apenas”
porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem
pública, mas sobretudo porque “os pobres ofereciam também perigo de contágio.” (OLIVEIRA
SOBRINHO, 2013, p. 212). Por consequência, a política higienista demanda certa organização
para a cidade, conformando espaços e corpos:
Utiliza-se dos discursos do progresso como uma utopia para que se possa disciplinar
os espaços e corpos. Também a pobreza é associada às doenças causadas pela falta de
higiene em moradias insalubres e aos odores exalados pelos ambientes propícios a
propagações e manifestações perigosas de todo tipo, inclusive doenças contagiosas
(OLIVEIRA SOBRINHO, 2013, p. 214).
As “classes perigosas” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2013) oferecem um risco, um
problema para o espaço urbano uma vez que representam uma ameaça à civilidade:
45
Os cortiços representam, portanto, uma ameaça à noção de civilidade; as greves, uma
ameaça à ordem burguesa de cidade limpa, disciplinada e livre das imundícies e de
manifestações turbulentas dos operários; a rua será objeto da disciplina devido à
ameaça à própria ordem que mantém desigualdades. As doenças que se espalhavam
pela urbe, do ponto de vista ideológico, teriam como foco de proliferação justamente
as áreas pobres (OLIVEIRA SOBRINHO, 2013, p. 214).
A política higienista, pensada como uma ideologia, imbrica um desejo utópico
do poder público de manutenção do progresso, aniquilando “as classes perigosas” (OLIVEIRA
SOBRINHO, 2013) dos espaços urbanos e reservando para elas um lugar subalterno. Nesse
sentido, a política higienista “terá o sentido de limpar a cidade da pobreza” (OLIVEIRA
SOBRINHO, 2013, 231). Com isso, “a favela desde o seu início, já é lugar sujeito ao
preconceito, à discriminação. Um “símbolo da segregação” (SAMPAIO, 1998, p. 124 apud
PAULINO, 2007, p. 75). Quando Quarto de Despejo é lançado, o termo favela é amplamente
discutido. O contexto social da época, na capital paulista, propulsiona os debates acerca da
favela.
3.1.2 Quarto De Despejo: sentidos postos à margem
Paulino (2007) localiza a publicação de Quarto de despejo no contexto de
surgimento de projetos de urbanização das favelas e do MUD – Movimento Universitário de
Desfavelamento que, entre outros fatores, contribuíram para que o assunto ganhasse a opinião
pública e intervenções do poder público acontecessem. Isso se dá, justamente, porque o livro
de Carolina desestabiliza, como disse, um imaginário romantizado da favela como cartão-
postal, inaugura “um modo novo de falar sobre um problema que já vinha sendo tratado havia
algum tempo, além do âmbito da música popular, por alguns intelectuais brasileiros”
(PERPÉTUA, 2014, p. 45).
Iniciado no dia 15 de julho de 1955, data do aniversário de Vera Eunice, o diário
descreve o cotidiano de sobrevivência de Carolina e seus filhos, registrando suas mazelas. Sobre
o aniversário de Vera Eunice, a autora conta:
Pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimentícios
nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de
vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, levei e remendei para ela calçar [...] (JESUS,
2014, p. 11).
46
Para Meihy e Levine (2015), Carolina representa uma costura entre temas que
expõem as fronteiras entre as classes sociais. Discursivamente, é possível considerar Quarto de
Despejo um acontecimento que expõe uma formação social dividida e profundamente desigual
ao discursivizar, em sua narrativa,
a distância extrema entre as classes sociais, a impermeabilidade da estratificação
social, as dificuldades de adaptação de uma categoria a outra, os preconceitos contra
a mulher e os negros e, sobretudo, a perpetuação dinâmica dos contingentes pobres
(LEVINE e MEIHY, 2015, p. 58).
De acordo com esses autores, o livro de Carolina descontrói uma visão idealizada
das favelas, substituindo-as pelas “evidencias testemunhais da violência. De início, a
receptividade da história de Carolina foi, em certo nível, fruto da romantização da vida dos
pobres” (LEVINE; MEYHI, 2015 p. 59). Entretanto, ao descrever o cotidiano com a crueza da
palavra que não oblitera as mazelas e sofrimentos a que eram submetidos seus moradores,
Quarto de Despejo rompe, de certo modo, com essa romantização, que não se sustenta face ao
relato da autora.
Carolina inicia seu diário em plena década de 50. Conhecida como os anos
dourados, foi um período marcado por intensa agitação no campo político durante os governos
Vargas e Kubistchek. Com abertura à industrialização nacional, “ao mesmo tempo em que a
cidade grande se mostrava receptiva à política do desenvolvimento, camuflava-se na periferia
urbana o custo social do projeto com o crescimento da favela” (PERPÉTUA, 2014, p. 42).
No âmbito cultural, o cinema, teatro, a música e a literatura realizavam expressivas
mudanças, uma vez que manifestavam interesse em buscar uma identidade brasileira. Nas
palavras da autora supracitada (2014, p. 45), naquela época o Brasil encontrava-se numa
“renovação nas abordagens temáticas sobre o país. No cinema e no teatro, buscava-se um modelo
nacional, que fugisse dos padrões vigentes na época. Como tema genuinamente brasileiro, a
favela ganhava proporções inexploradas até então”.
São essas as condições em que Carolina escreve sua obra, um diário sobre sua
vida na favela do Canindé. É também nessa mesma década que a autora conhece o jornalista
Audálio Dantas, em 1958, que viabiliza a publicação de Quarto de Despejo. Nesse mesmo ano,
alguns trechos da obra são publicados no jornal Folha da Noite. Embora haja registros de outras
ocasiões em que poemas da autora foram publicados em periódicos9, é a partir desses trechos
9 Segundo a cronologia biográfica da autora, elaborada por Elizabeth Barboza Pereira em Vida por Escrito: guia
do acervo de Carolina Maria de Jesus, há dois momentos anteriores ao lançamento de Quarto de Despejo em que
Carolina vai aparecer na mídia. O primeiro em 1940, quando é publicado, no jornal Folha da Manhã, um poema
47
de Quarto de Despejo, veiculados anteriormente ao ano de lançamento, que Carolina e obra
começam a ser noticiados (e interpretados) pela mídia jornalística. Há de se ressaltar aqui, no
entanto, que esses trechos veiculados não correspondem com a publicação integral da obra em
jornais de circulação da época, mas sim apenas alguns excertos, como pontua Audálio Dantas:
“ao invés de fazer uma reportagem sobre a favela, fiz uma matéria sobre Carolina Maria de
Jesus e transcrevi alguns trechos do diário” (2015, p. 15).
Autora e obra tiveram grande repercussão também na mídia internacional. Nas
palavras de Fernanda Miranda (2019, p. 114), “ao livro também pertence o mérito de ter sido a
primeira obra de uma mulher negra brasileira traduzida”, uma vez que Quarto de Despejo,
reimpresso sete vezes no primeiro ano de publicação, foi traduzido para “treze línguas –
holandês, alemão, francês, inglês, tcheco, italiano, japonês, castelhano, dinamarquês, húngaro,
polonês, sueco e romeno - e circulou em quarenta países. Existiria uma 14° tradução para o
russo, não confirmada” (PERPÉTUA, 2014, p. 21).
Para compreender melhor o funcionamento da midiatização de Carolina e de seu
livro, é importante mencionar a visão de Miranda (2019) sobre o momento de lançamento de
Quarto de Despejo:
Trata-se de uma autora que visibiliza intensamente as marcas da condição nacional
racista dentro do sistema literário brasileiro. Quando surgiu, entre o fim da década de
1950 e o começo dos anos 1960, imediatamente tornou-se um fenômeno midiático,
em primeiro lugar, porque escrevia, em segundo, porque escrevia sobre si em primeira
pessoa, narrando as mazelas de um cotidiano urbano desconhecido pela própria
metrópole à altura – a favela. (MIRANDA, 2019, p. 115).
Em agosto de 1960 acontece o lançamento de Quarto de Despejo. A repercussão
da obra, já mobilizada previamente com os trechos veiculados antes do lançamento, no jornal
Folha da Manhã, confirma a perspectiva da autora sobre a vida na favela não romantizada. Ou,
ainda, como pondera Perpétua:
a repercussão do lançamento de Quarto de despejo vai confirmar que muito do seu
êxito inicial pode ser compreendido a partir da leitura das reportagens que o
precederam, e cuja forma obedece ao modelo de texto que se fortalece então na
imprensa diária, com seu conteúdo alinhavado ao momento de participação da
sociedade civil nos acontecimentos. (grifo da autora). (PERPÉTUA, 2014, p. 60)
Levine e Meihy (2015, p. 38) delimitam que o início da década foi marcado por
e uma foto da autora ao lado do jornalista Willy Aureli. O segundo momento, em 1950, data da publicação pelo
jornal O Defender de um poema da autora sobre Getúlio Vargas.
48
uma espécie de “onda reformista caracterizada pelo prenúncio de que as camadas pobres
poderiam produzir figuras – no caso uma mulher negra – que levantariam a opinião pública”.
Os autores ainda acrescentam:
esse tipo de percepção no passado era limitado pela eficiência da máquina classista
que não permitia mobilidade. Particularmente no caso das mulheres, estava definido
um papel de subserviência em que restava a condição feminina pobre, no máximo o
direito de trabalhar servindo aos brancos como cozinheiras, babás, faxineiras
(LEVINE, MEIHY, 2015, p. 38).
O trecho supramencionado remete ao fato de que Carolina e sua obra subvertem o
sentido consensual da época e colocam em jogo outros sentidos: mulher negra, à frente de seu
tempo, dois anos de estudos, mãe solo e escritora. Assim, o lançamento de Quarto de Despejo
indicia uma transformação nos rituais enunciativos, configurando um acontecimento discursivo,
que segundo Zoppi-Fontana (1997) funciona como ponto de deslocamento de uma prática
discursiva. Para essa autora, o acontecimento participa do processo de produção do real histórico,
pela emergência de um enunciado ou de uma posição enunciativa novos.
Entretanto, os sentidos postos em cena pelo discurso jornalístico evidenciam que
as possíveis interpretações da mídia sobre Carolina resvalam os preconceitos de sua condição de
mulher negra e pobre. No próximo tópico, mostraremos como a mídia, ao produzir um
acontecimento jornalístico midiatizado apoiado por um processo de estereotipagem, busca
engendrar a absorção do acontecimento do lançamento de Quarto de Despejo no espaço da
memória. Há, por assim dizer, uma fragilidade na inscrição do acontecimento, posto que as
interpretações para Carolina colocadas em jogo pelos discursos jornalísticos, os quais têm
especial força na configuração dos discursos sociais, interditam determinados sentidos,
inviabilizando significações.
Entretanto, esses sentidos inviabilizados não desaparecem de todo, como nos
ensinou Orlandi (1999, p. 67): “Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso, in-significados
e que demandam, na relação com o saber discursivo, com a memória do dizer, uma relação
equívoca com as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites”. Como belamente disse
Barbosa-Filho (2018) “o real da história faz o silêncio, o não-dito aparecer nas lacunas”.
49
3.2 O ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO
Segundo Garcia e Sousa (2015), o acontecimento jornalístico é apresentado nos
jornais em forma de notícias, nas quais um fato considerado de interesse público é selecionado e
passa a ocupar as edições diárias dos noticiários impressos e eletrônicos. Como pontua Dela-Silva
(2011, p. 152), “o dizer jornalístico não traz consigo o fato, mas um gesto de interpretação do
mesmo. A imprensa, mais que simplesmente narrar acontecimentos e servir de suporte para tais
narrações, produz sentidos para os acontecimentos que elege como de destaque”.
Essas interpretações se dão também pelas designações colocadas em jogo nas
notícias e, sobretudo, nas manchetes, que funcionam de modo a estabilizar os processos de
significação para o acontecimento do lançamento de Quarto de Despejo. Ao nomear Carolina
como favelada, o discurso midiático informativo inscreve uma posição-sujeito ideológica que
carrega traços do racismo e do processo de de-significação de sentidos para os negros no Brasil,
herança da sociedade escravocrata. Isso porque os sentidos de favela, como mostramos
anteriormente, encontram-se filiados a vestígios da ideologia higienista que se atualizam nessas
designações, em processos que silenciam Carolina como escritora ao dizê-la favelada.
Os discursos formulados a partir desses veículos de comunicação contribuem
para interpretações que colam ao nome da autora sentidos que não o de autora ou escritora. Isso
significa dizer que as manchetes de jornais, ao serem formuladas a partir de posicionamentos
ideológicos específicos, fazem emergir determinados sentidos e não outros, produzindo efeitos
que imprimem à Carolina Maria de Jesus sentidos de “favelada”, esvaziando a potência de
acontecimento de Quarto de Despejo e os sentidos insurgentes que o livro possibilita.
Cabe ressaltar que esse esvaziamento do acontecimento configura apenas uma
tentativa. Ou seja, por mais que o funcionamento da ideologia dominante tente esvaziar o
acontecimento, a potência de Carolina e de Quarto de Despejo não se deixa apreender.
Os processos de enunciação mobilizados por Carolina em Quarto de Despejo,
os escritos que emergem da sua vida enquanto moradora da favela do Canindé e articulam
processos de subjetivação que dizem de sua singularidade em significar-se através da escrita,
são apagados pelo processo de midiatização do acontecimento de lançamento de seu livro,
processo esse visível nas designações que negam sua existência e condição humana.
50
3.3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS PERIÓDICOS
Figura 1: Print da matéria do jornal Correio Paulistano, São Paulo, 18 de agosto de 1960.
Fonte: Correio Paulistano, São Paulo, 18 de agosto de 1960.
A manchete escolhida para iniciar nossas análises (fig. 1) foi veiculada no
periódico Correio Paulistano, em São Paulo, no dia 18 de agosto de 1960, um dia antes do
lançamento de Quarto de Despejo. O título da matéria “Lançamento do Diário da Favelada”
precede a matéria em que o periódico faz o convite para o público prestigiar “o mais sensacional
lançamento de autógrafos já realizado”. Trata-se “[d]o diário da favelada Carolina Maria de
Jesus”. Além do lançamento, noticia-se também a presença de Batista Ramón, ministro do
trabalho na época, que “aceitou o convite para ser padrinho da escritora-favelada”. Por fim, a
notícia relata que a livraria Francisco Alves está “especialmente decorada com vitrina, faixas com
frases do diário” e, mais do que isso, “com todo o material alusivo a este lançamento que vai
revolucionar o mercado editorial do país”.
A formulação evidenciada na manchete “Lançamento do diário da favelada”,
51
condiciona o olhar do leitor para um sentido que resvala no estereótipo atribuído à autora. Essa
marca de uma mulher “favelada” é recorrente em manchetes de periódicos da época e deixa
entrever um sentido cuja constituição tem relação com determinada região do espaço urbano,
conforme mostramos anteriormente. Nessa formulação, o nome “escritora” é elidido; ele fica
circunscrito à designação que aparece ao final da notícia: “escritora-favelada”. Compreendemos
com Gonzalez (1980) que a favela não é qualquer espaço, posto que ela emerge de uma “divisão
racial do espaço”; a favela é lugar de despejo, conforme escreveu Carolina, caracterizado por
moradias precárias, densamente povoado e geralmente decorrente de assentamento informal.
Em outras palavras, essa ocorrência da designação “favelada” é o que atribui sentidos não de
uma autora que escreveu seu livro cujo lançamento foi marcado, mas sim de uma “favelada”
que escreveu um “diário”.
Compreende-se, assim, porque o acontecimento é formulado como “o mais
sensacional lançamento de autógrafos já realizado”; há um efeito de curiosidade acerca do
conteúdo do livro que, sendo um diário, suposta textualizaria a intimidade de Carolina, de seus
sofrimentos e mazelas. Ainda, há de se considerar a complexidade de efeitos possíveis; “o
sofrimento pode tanto repugnar quanto seduzir, gerar modos de assistência, sentimentos de
compaixão” (FARGE, 2019, p. 19). Não é difícil prever as armadilhas da espetacularização da
miséria e do voyeurismo que rapidamente podem absorver e denegar o acontecimento.
Nesses modos de designação e identificação de Carolina há o que Paveau (2017)
descreve como “destituição interpretativa” realizada pela imprensa informativa, a qual se
caracteriza pela apropriação de um lugar de fala interditado e “discursivamente vulnerável”, ou
seja, constituído por uma “insegurança enunciativa” ocasionada pela dominação, discriminação
e opressão sistemáticas, e que resulta em estereótipos. Observa-se que nesse funcionamento
discursivo prevalece a criação de slogans e retratos, os quais produzem efeitos de
espetacularização de uma fala confiscada; o lançamento de Quarto de Despejo é formulado como
espetáculo midiático, reduzindo Carolina ao estereótipo de favelada.
Verifica-se que a marca da designação “favelada”, repetida duas vezes no corpo
da matéria, aparece antes mesmo do nome da autora, tendo efeitos sobre ele. Podemos perceber
isso quando a matéria diz “trata-se do coquetel de lançamento de ‘Quarto de Despejo’, o diário
da favelada Carolina Maria de Jesus, do Canindé”. Aqui o nome da autora aparece também
marcado pela determinação de um lugar de origem, “do Canindé”, isto é, “a favelada do
Canindé”. Os sentidos de “favelada”, no entanto, são dados antes e em outro lugar,
independentemente. Eles têm relação com uma história política dividida que estabelece os
52
espaços das cidades a partir de relações de classe e raça dissimétricas.
Na última designação que estampa essa notícia, percebe-se que esse pré-
construído incide sobre o nome da autora, determinando-o. Trata-se da designação “escritora-
favelada”. Nessa formulação, a palavra “escritora” tem seus sentidos determinados por
“favelada”, que funciona aí como modo de adjetivação. Ao fazer o uso do hífen, a palavra
“escritora-favelada” torna-se uma palavra composta, capaz de determinar o sentido de
“escritora” a partir da evidência do nome “favelada”. Assim, o processo de significação para
autora revela que a marca da designação “favelada” funciona como pré-construído. Dito de
outra forma, “todos sabem” o que é uma favelada, uma vez que os objetos simbólicos são
fornecidos juntamente com a maneira de se servir deles:
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais ''todo mundo sabe” o que
é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc.,
evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado "queiram dizer
o que realmente dizem'' e que mascara, assim, sob a "transparência da
linguagem", aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras
e dos enunciados (PÊCHEUX, 1995, p. 160).
Assim, a partir de Pêcheux, entende-se que o sentido de “favelada” não existe em si
mesmo (PÊCHEUX, 1995), mas é determinado de acordo com a posição ideológica sustentada
pelos jornais que a formulam: “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido
segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem
seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência as posições ideológicas”
(PÊCHEUX, 1995, p. 160). Acrescente-se, ainda, que essas ideologias são práticas da luta classes:
Os "objetos'' ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a
''maneira de se servir deles'' - seu "sentido”, isto é, sua orientação, ou seja, os
interesses de classe aos quais eles servem -, o que se pode comentar dizendo
que as ideologias práticas são práticas de classes (de luta de classes) na
Ideologia (PÊCHEUX, 1995, p. 146).
Assim, a ideologia fornece o sentido do que seja uma “favelada”, em um
processo que funciona produzindo uma evidência sobre esse nome; é evidente que “todo mundo
sabe” o que é uma “favelada”. Com Pêcheux, compreende-se que os sentidos para a designação
“favelada” são construídos historicamente tendo em vista redes de memória em que os corpos
das mulheres negras são significados pelo discurso da escravidão e do colonialismo,
considerando-se que a luta ideologia se estabelece também no campo da linguagem. Esse
funcionamento, colocado em relevo pela mídia informativa, entendida aqui como aparelho
53
ideológico que enceta uma prática ideológica, serve a determinados interesses de classe. Dito
de outro modo, a mídia informativa funciona a partir de um regime de enunciabilidade e
visibilidade que transforma os “locutores vulneráveis”, consoante Paveau (2017), em um
espetáculo para ser visto.
A impossibilidade de reconhecer Carolina como autora e/ou escritora marca o
modo como a imprensa a interpreta, como “a favelada”. Destaca-se, ainda, a constituição de
sentidos para seu diário, originalmente um escrito de intimidade, quando este passa a circular
publicamente, enquanto obra literária, despertando a curiosidade de leitores fascinados, talvez,
pelo exotismo da pobreza sob o risco de um desvio para um olhar que inferioriza.
As condições em que os diários da autora deixam de ser apenas cadernos nos
quais Carolina registrava sua vida e cotidiano para adquirirem um endereçamento outro foram
marcadas, como é largamente difundido, pela intervenção do jornalista Audálio Dantas, que
viabilizou a publicação de Quarto de Despejo. A partir desse contato, em que o jornalista tem
acesso aos cadernos e oportuniza a publicação desses escritos, deixa de ser possível saber o que
é ou não efeito de edição desse porta-voz. Audálio Dantas, na época repórter da Folha da Noite,
ao se dirigir à favela do Canindé para uma reportagem, conhece Carolina que, na oportunidade,
apresenta a ele seus escritos em cadernos retirados do lixo. Segundo o jornalista,
o primeiro resultado disso foi que eu, ao invés de fazer uma reportagem sobre
a favela, fiz uma matéria sobre Carolina Maria de Jesus e transcrevi alguns
trechos do diário [...] A partir daí, ela me passou os cadernos e comecei a
examiná-los atentamente, já pensando em um trabalho, em um livro. Depois,
saí da Folha da Manhã e fui para a revista O Cruzeiro, onde publiquei outra
matéria sobre o assunto. Como a revista era de grande circulação nacional, a
repercussão foi enorme e, a partir daí, consequentemente, a edição do livro foi
um passo (DANTAS, 2015, p. 119-120).
Adverte-se que a publicação, em agosto de 1960, é viabilizada por um homem,
que se torna um porta-voz e deixa marcas de seus gestos de edição na obra, seja por meio de
substituições ou mesmo supressões de trechos dos originais. A partir desses gestos edição,
torna-se difícil pormenorizar os efeitos da interpretação do jornalista e da editora, a fim de
corresponder a um critério mercadológico. Retomando as considerações de Paveau (2017),
pode-se dizer que se trata de um fenômeno de “apropriação discursiva”, em que o discurso do
dominado é (re)produzido, mas a partir do enunciado do dominante.
Ainda sobre a manchete anterior, é possível compreender o gesto de interpretação
que reescreve, por assim dizer, o título da obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Ao
formular a manchete “Lançamento de Diário da Favelada”, apaga-se o título principal do livro,
54
Quarto de Despejo, ao mesmo tempo que se enfatiza o subtítulo. Entretanto, há um deslocamento
do subtítulo original, “Diário de uma favelada”, o qual assume nessa manchete a formulação
“Diário da Favelada”, que passa a atuar como um atributo para Carolina. Essa passagem do “de
uma” para “da” produz um efeito ideológico de universalização em que emerge uma
generalização acerca “da favelada”. Essa universalidade corrobora ao funcionamento do “todo
mundo sabe”, efeito da ideologia, como postula Pêcheux; ela é um efeito imaginário necessário à
reprodução das relações de produção.
Considerado uma escrita de si, o diário constitui traços de memória e de
constituição subjetiva na composição e historicização daquele que se identifica ao escrevê-lo.
Considerado em uma perspectiva discursiva, compreendo o diário como um testemunho,
consoante Bocchi (2017), que enseja processos de identificação e individuação, um modo narrar
a experiência do sujeito em dizeres permeados por equívocos; a escrita testemunhal carrega
marcas, revela cicatrizes dos sujeitos que participam dessa experiência. Para Schons e Munhoz
(2015), escrever um diário é “falar de si e assumir a incompletude do sujeito e do sentido”;
escrever implica a existência de um autor que se entrega a gestos de interpretação ao inscrever-
se como origem dos sentidos. Enquanto lugar de interpretação, a escrita constitui um espaço
simbólico que articula língua e história; ela participa de processos de subjetivação e, também,
individuação, posto que por meio dela o sujeito se individualiza em relação a discursos e
práticas que o submetem.
Esses processos se materializam no título e subtítulo do diário de Carolina;
enquanto o primeiro organiza sentidos para um lugar específico, a favela, o segundo localiza
uma experiência singular neste espaço, “de uma favelada”. Nessa formulação, há uma marca
de singularidade, de um sujeito que se individualiza por meio da escrita. Assim, ao reescrever
o subtítulo como “diário da favelada”, a manchete apaga a singularidade da autora, produz um
processo de des-individuação.
Para Orlandi (2010, p. 4), a constituição do sujeito se dá por meio de dois
movimentos inseparáveis, no o primeiro “temos a interpelação do indivíduo em sujeito, pela
ideologia, no simbólico, constituindo a forma-sujeito-histórica”, já o segundo “com esta forma-
sujeito histórica já constituída dá-se então o que considero como processo de individuação do
sujeito”. A respeito da individuação, a autora coloca que essa “noção de sujeito individuado
não é psicológica, mas política, ou seja, a relação indivíduo-sociedade é uma relação política”
(ORLANDI, 2010, p. 4).
Um sujeito individuado, pensado em sua relação política e entendido como um
55
corpo político (ORLANDI, 2010) é “a forma da pessoa pública, esta correspondendo a uma
forma de individuação, o sentimento de ser Um, no todo da sociedade. É a forma de
individuação em relação à sociedade em geral, de que resulta o “eu comum” (ORLANDI, 2010,
p. 5).
Na manchete “Lançamento de Diário da Favelada” é possível ver uma posição
ideológica operar a partir de uma “apropriação discursiva”, produzindo sentidos específicos em
relação ao nome da obra e de sua autora. Ao longo da matéria essa apropriação que reescreve o
subtítulo de Quarto de Despejo se repete no trecho “o lançamento de ‘Quarto de Despejo’, o
diário da favelada, Carolina Maria de Jesus”, o que confirma a apropriação da fala de Carolina,
traduzindo-a em uma interpretação universalizante sobre “a favelada” realizada através de
recursos discursivos que espetacularizam a autora ao produzirem para ela uma identificação
generalizante.
Figura 2: Diário da Noite, 1960, p. 3
Fonte: Diário da Noite, 1960, p. 3.
A manchete “Livro da favelada provoca complicações na edilidade” (fig. 2),
veiculada no periódico Diário da Noite, intitula a matéria em que o então vereador Silva Ribeiro
saúda “o aparecimento de Quarto de Despejo da favelada Carolina Maria de Jesus”, como um
“símbolo da opinião pública a respeito dos políticos” e também como um livro de “denúncia”
ao falar sobre a “situação de miséria reinante nas favelas”.
Observa-se, nos modos de formulação dessa manchete, o mesmo processo de
apagamento da singularidade de Carolina vislumbrado no recorte anterior. Ao lê-la entende-se
que o “livro da favelada” provocou “complicações” na câmara dos vereadores, entendida aqui
no termo “edilidade”. Além de utilizar o nome “favelada”, que reforça o preconceito instaurado
pelo efeito de pré-construído do qual já falamos, o que ratifica o processo de estereotipagem
56
para a autora, o emprego das palavras “provocar” e “complicações” no fio do discurso
estabelecem uma relação lógica destes para com o “livro da favelada”. Entretanto, quais
complicações seriam essas?
A matéria em si não apresenta tais “complicações”, cujo sentido é construído
interdiscursivamente, pela filiação a uma rede de memória. O funcionamento da manchete
condiciona o leitor a crer nessas complicações provocadas pelo livro, embora não pontue tais
adversidades que Quarto de Despejo possa ter ocasionado na câmara dos vereadores.
Entretanto, ao formular, no corpo da matéria, o livro como “símbolo da opinião pública a
respeito dos políticos e uma denúncia da situação de miséria reinante na favela”, a notícia
constitui para ele sentidos subversivos à ordem da edilidade.
A matéria ainda diz que o vereador Silva Ribeiro terminou seu discurso fazendo
a leitura de um trecho da obra em que um ex-vereador Cantidio Sampaio é mencionado como
“visitante” da favela. Dispensável dizer que “visitante” é, justamente, um não-morador, ou seja,
aquele que não pertence ao grupo dos favelados. A notícia interpreta que essa leitura tenha sido
“intencional ao Sr Helio Mendonça, do PSP, amigo pessoal do Sr. Cantidio Sampaio”. O
vereador Silva Ribeiro usa o livro de Carolina em ataque aos adversários políticos do PSP,
Partido Social Progressista, que não por acaso foi fundado por Ademar de Barros em junho de
1946.
Esse processo discursivo permite descortinar as práticas políticas em vigência,
as quais se apropriam da fala dos pobres, suas mazelas e dores, em suas disputas políticas. Tal
prática instrumentaliza o livro de Carolina, usando-o para “provocar complicações” para os
adversários políticos. O “aparecimento” do livro é, portanto, saudado não por materializar o
testemunho do sofrimento de Carolina e de sua família ou por expor a face vil e cruel de uma
sociedade desigual e racista como a brasileira, mas porque serve de munição à disputa política.
Há uma apropriação discursiva, nos termos de Paveau (2017), que instrumentaliza o discurso
de “locutores vulneráveis”. Isso posto, perguntamos: “pode o subalterno falar?”. Questão a qual
Spivak (2010) responde negativamente: o subalterno não pode falar pois sua fala não é
compreendida; ela é recoberta pela do Sujeito soberano.
Como bem pontuou Gayatri Spivak, "[s]e o discurso do subalterno é obliterado,
a mulher subalterna encontra-se em uma posição ainda mais periférica pelos problemas
subjacentes às questões de gênero. [...] O subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito
subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade" (SPIVAK, 2010, p. 14-
15).
57
A respeito das problemáticas que envolvem as mulheres negras, Lélia considera
que “ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de uma tripla discriminação, uma vez
que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais alto nível de
opressão” (GONZALEZ, 2020, p. 58) e que “ao nos impor um lugar inferior dentro de sua
hierarquia (sustentado por nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa
humanidade precisamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não apenas de nosso próprio
discurso, mas de nossa própria história (GONZALEZ, 2020, p. 141).
Ao interrogar o racismo estrutural e desigualdade racial, Gonzalez denuncia a
dominação branca e europeia que denega (RODRIGUES, 2020, s/n) as raízes africanas e,
também, as origens indígenas e latinas. Nessa direção, Lélia considera “impossível combater o
racismo se as pessoas brancas não reconhecessem nossa condição colonial” (RODRIGUES,
2020, s/n). Rodrigues ainda nos coloca:
Difícil tarefa, já que valorizar a origem europeia é parte do processo de denegar a
latinidade e de sustentar o racismo contra negros e indígenas, a serem estigmatizados
como “os outros”, “os bárbaros” ou, no vocabulário contemporâneo, “os bandidos” e até
“os invasores”, mesmo que o termo seja usado em referência ao povo nativo. Há aqui
um jogo de inversões do qual depende a opressão colonial: para afirmar-se no poder, os
colonizadores precisam dominar não apenas os corpos, mas sobretudo o imaginário de
cada povo dominado, atribuindo valor simbólico ao europeu branco, naturalizado como
quem tem o direito de ocupar o lugar de dominação, e destituindo de valor simbólico
todo não branco que fica destinado à subalternidade. Assim se constitui um duplo
mecanismo, a afirmação da superioridade do colonizador e a alienação do colonizado
(RODRIGUES, 2020, [n.p.]).
“Os outros”, “os bárbaros”, “os bandidos”, “os invasores”, “os favelados”.
Designações carregadas de sentidos constituídos a partir de redes de filiação histórica que
organizam o dizível, dando lugar aos processos de identificação segundo os quais o sujeito
encontra as evidências que permitem seu dizer. A memória discursiva é entendida aqui como
“o espaço dos efeitos de sentidos que constituem para o sujeito sua realidade, enquanto
representação imaginária (e necessária) da sua relação com o real histórico, no qual ele está
inserido” (ZOOPI-FONTANA e CESTARI, 2014, p. 168).
Nota-se como os jornais atuam na constituição de um imaginário a partir da
posição do colonizador, produzindo para Carolina, mulher negra, sentidos permeados pelo
racismo estrutural e sistemático. Desse modo, as manchetes de jornais são capazes de manusear
discursos que perfazem o poder do colonizador a fim de manter o colonizado em sua posição
de subalternidade, através da atribuição de “valor simbólico ao europeu branco, naturalizado
como quem tem o direito de ocupar o lugar da dominação, e destituindo de valor simbólico todo
58
não branco que fica destinado a subalternidade”. Nessa direção, as designações atribuídas à
Carolina mostram processos de significação que denegam seu direito de ocupar e ser legitimada
como “escritora/autora”, reservando para ela o estereótipo da subalternidade.
3.4 A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO E O PROCESSO DE ESTEREOTIPAGEM
A conceituação de estereótipo reporta, com Firmin Didot, em 1798, a uma peça
utilizada na prensa tipográfica que consistia em um molde, uma placa rígida de metal, utilizada
para fazer cópias sequenciais de textos, o que implica movimentos repetidos e mecânicos. No
entanto, se pensarmos etimologicamente, a palavra estereótipo provém dos radicais gregos
“stereos” e “topos”, que remetem a uma escrita rígida, sólida e “portanto, o termo comporta em
si uma referência ao que foi pré-determinado e encontra-se fixado, cristalizado” (LIZARDO-
DIAS, 2007, p. 26).
Em 1898, com Durkeim, a sociologia trabalha o termo estereótipo remetendo às
imagens mentais e coletivas, isto é, que atuam no modo como os indivíduos agem e sentem. Para
Lizardo-Dias (2007, p. 27), “essas imagens são responsáveis pela coesão do grupo e geram um
sentimento de pertença dos indivíduos em relação àquela comunidade”. Isto significa que o
estereótipo, no campo da sociologia, atua de forma positiva ao fazer com que os indivíduos, ao
se identificarem com os outros indivíduos, sintam-se inclusos naquela comunidade.
Já no século XIX, se uma ocorrência do uso do termo estereótipo na área de
psiquiatria, que o conceituava como “a repetição mecânica e frequente de um mesmo gesto,
postura ou fala dos pacientes que sofriam de dementia praecox, por exemplo” (FREITAS, 2014,
p. 113). Em 1922, com Walter Lippnam e sua obra Public Opinion, iniciam-se os primeiros estudos
acerca do termo “estereótipo”. De acordo com Freitas, o jornalista americano definia os estereótipos
como padrões que “não podem ser neutros, pois repassam ao mundo informações de senso comum,
valores comuns, respeito e direito próprios” (FREITAS, 2014, p. 114). Para Baccega (1998, p. 8),
com base em Lippman, o estereótipo se comporta como "os tipos aceitos, os padrões correntes, as
versões padronizadas".
No entanto, o conceito de estereótipo com base na análise do discurso admite
outras questões. Ao me afastar das conceituações históricas elucidadas anteriormente, trabalho o
estereótipo no ponto de vista discursivo, o que implica convocar a noção do pré-construído, que
59
apresenta uma relação necessária com a exterioridade e com um já-dito. Lizardo-Dias postula que
a noção do pré-construído resvala em duas instâncias e são elas:
a primeira seria a de saber sobre o qual se apoia a asserção do enunciador, ou seja, a
dimensão de pressuposto. A segunda seria a de elemento discursivo anterior à
enunciação, aquilo que foi dito ou elaborado. Dessa maneira, se opera uma distinção
entre aquilo que está inscrito no enunciado e aquilo sobre o qual ele se apoia em
termos de ideias, valores e crenças (LIZARDO-DIAS, 2007, p. 27).
Dessa maneira, ao atuar nessas duas dimensões, o pré-construído atua como
evidência que fala antes. Assim, o estereótipo passa a ser compreendido “como um elemento
agregador que tende a instaurar um espaço de aproximação e de reconhecimento através da
mobilização desse domínio referencial de existência notória” (LIZARDO-DIAS, 2007, p. 27).
Pensar sobre o estereótipo “é considerar a premência de um dizer anterior inevitável na
elaboração de “novos” dizeres; é uma questão de entendimento prévio que viabilize e garanta
uma compreensão mínima entre sujeitos historicamente instanciados” (2007, p. 27).
Para Baccega, o estereótipo atua nas subjetividades dos indivíduos dado que ele
se manifesta sob a forma de elementos emocionais, valorativos e volitivos, que vão
influenciar o comportamento humano. Ele se manifesta, portanto, em bases
emocionais, trazendo em si, como já dissemos, juízos de valor pré-concebidos,
preconceitos, e atuam na nossa vontade (BACCEGA, 1998, p. 10).
Ao produzir e ratificar estereótipos, a mídia informativa funciona
ideologicamente como um aparelho de Estado que garante a imobilidade das relações de sentido
com consequências para as relações sociais. Ao negro caberia um determinado papel social, um
lugar especifico na sociedade; os processos de identificação para as mulheres negras, como
pontuam Garcia e Sousa (2015), são atravessados por pré-construídos que as significam como
pobres, moradoras de favelas, domésticas, babás. “O negro ocupa ainda na sociedade brasileira
uma posição segregada, marcada por seu passado histórico” (2015, p. 52).
Sendo assim, os estereótipos se manifestam de modo pré-construído, produzindo
uma evidência para os sentidos por eles mobilizados a partir de uma marca anterior. Para Amossy
(1999), trata-se de uma representação cristalizada, uma construção de leitura que recupera
elementos para reconstruí-los em função de um modelo cultura preexistente.
Glória França, em sua tese “Gênero, Raça E Colonização: A Brasilidade no Olhar
do Discurso Turístico no Brasil e na França”, com base em Amossy, Paveau e Pierrot, traz à luz
a questão do estereótipo. Ao referenciar Amossy, propõe não a noção de estereotipia, mas sim
60
noção de estereotipagem. Segundo essa autora, trata-se da atividade que recorta um modelo
coletivo fixo, reunindo um esquema conhecido a partir de elementos escolhidos; a estereotipagem
é compreendida como uma leitura programada do real ou do texto.
Para França (2018), a análise do discurso propõe a noção de estereótipo “[...]
numa relação muito próxima com a noção de pré-construído, e mais amplamente, com o
funcionamento do interdiscurso” (FRANÇA, 2018, p. 25). A autora ainda coloca que o
funcionamento do pré-construído:
[...] se apresenta como sempre-já-aí como imposição do sentido, sob efeito da
universalidade e como evidência constituída pelo esquecimento, considerando-se
desse modo que é constitutivo do discurso projetar-se, como efeito, como uma leitura
programada e, ao mesmo tempo, produzir, imaginariamente, a fixação de identidades
(FRANÇA, 2018, p. 25-26).
Se o efeito do pré-construído recai como uma imposição do sentido e evidência
constituída pelo esquecimento, aponto que o estereótipo de favelada atribuído à Carolina
perpassa a mobilização de sentidos que atravessam um dizer prévio depreciativo para a mulher
negra e que procura fixar sua identidade a partir desses sentidos, como “favelada”. Nessas
condições, a mídia imprensa delimita sentidos ao significar Carolina.
Assim, sustento que as manchetes dos periódicos direcionam a interpretação do
leitor para que reconheça Carolina a partir de uma identidade fixa, como a “favelada”, por meio
da designação que manifesta uma direção programada do processo de significação, uma direção
prévia do sentido. A ocorrência do “favelada” marca assim um estereótipo advindo de um pré-
construído entendido aqui como uma forma de limitar o sentido. Nessa direção, é preciso que
o “favelada” retome um já-dito para que esse novo dizer de “a favelada” faça sentido e, ao
mesmo tempo, marque o esquecimento dos sentidos de Carolina como autora.
3.5 O FUNCIONAMENTO DO NOME PRÓPRIO: EFEITOS DE UMA INVERSÃO
A matéria abaixo (fig. 3), veiculada no jornal Diário da Noite, de São Paulo,
tem como manchete “Líderes Do Movimento Cultural do Negro Homenageiam a Escritora
Maria Carolina”. Há o emprego de “escritora”, porém precedido de um “erro” no nome de
Carolina, uma inversão no nome próprio da autora, nomeada “Maria Carolina”. O
funcionamento dessa manchete dá a ver o equívoco no modo de identificação de Carolina; ela
61
só pode ocupar um espaço como escritora transmutada em Maria Carolina. Há, aqui, uma dupla
negação: nega-se Carolina como escritora e, no mesmo gesto, nega-se a ela tornar-se sujeito
por meio da identificação com um nome próprio.
Figura 3: Diário da Noite, 1960.
Fonte: Diário da Noite, 1960, p. 12.
Segundo Garcia e Sousa (2015), nosso país ainda reserva aos negros posições
subalternas e desfavorecidas. Ao analisarem a história do negro e a posição por ele ocupada na
história do Brasil, as autoras relatam que
[...] é possível observar que se sustentam dizeres que colocam o negro como uma
“coisa” que pode ser descartada, arrastada; como um marginal, bandido. O negro
ocupa ainda na sociedade brasileira uma posição segregada, marcada por seu passado
histórico (GARCIA e SOUSA, 2015, p. 52).
Por esta perspectiva, cabe ressaltar que há, ainda, diferenças na maneira como
esses efeitos incidem sobre homens e mulheres negras. Segundo Giacomini:
[...] a negra é coisa, pau para toda obra, objeto de compra e venda em razão de sua
condição de escrava. Mas é objeto sexual, ama de leite, saco de pancada das
sinhazinhas, porque além de escrava é mulher, evidentemente essa maneira de viver
a chamada “condição feminina” não se dá́ de fora da condição de classe e mesmo de
cor (GIACOMINI, 1988, p. 87-88).
A história do negro, ao ser marcada por preconceito, sobretudo da mulher negra
62
relegada à condição sexual com raízes na escravidão, como salienta Giacomini, é ainda
presente. Contudo, “embora funcione na sociedade um lugar ao negro à margem (terrível e
degradante), este resiste e busca ocupar espaços além dos limites das favelas e dizer-se sujeito
de direitos” (GARCIA e SOUSA, 2015, p. 54).
É nesse espaço de (re)existência que Carolina escreve também para ocupar
lugares que não o suburbano, a favela, com a sua obra que, ao insurgir no mercado editorial,
questiona a condição social a que ela é submetida pelo sistema. Enquanto mulher negra, pobre
e moradora do Canindé há a omissão, na mídia informativa da época, de designá-la “escritora”.
É assim que o apagamento de seu nome, ora por meio da designação “a favelada”, ora por
inversão no nome próprio, adverte sentidos velados pelo preconceito, pela hostilidade e pela
segregação.
Nesse percurso, considero o que pontua Lélia Gonzales ao dizer que “negro tem
que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido... ao gosto deles” (BAIRROS,
2000, p. 2), isso implica que a inversão do nome próprio produz a negação dos direitos do sujeito
e, consequentemente, a desumanização. Bocchi, com base em Butler, afirma que “a existência
social do corpo só é possível por meio do processo de interpelação simbólico: receber um nome
é um artifício linguístico que permite a constituição do sujeito da linguagem”. Se o sujeito da
linguagem se constitui ao receber um nome enquanto um endereçamento (BOCCHI, 2017), na
manchete em questão, a inversão desse nome próprio pretere a autora a um lugar de negação, de
não aceitação dessa mulher negra. É por meio desse endereçamento que, conforme esclarece
Bocchi, há a constituição dos chamados corpos abjetos:
o corpo nos é acessível pela ocasião de um endereçamento, de um chamado, de uma
interpelação que não o “descobre”, mas o constitui. O endereçamento constitui um
corpo no interior de um circuito possível de reconhecimento e pode também o
constituir fora desse circuito, como no caso dos corpos dito “abjetos” (BOCCHI,
2017, p. 22).
Entretanto, é importante notar que, no caso do nome próprio, os mecanismos de
identificação funcionam de modo específico. O nome próprio é aquele que participa da produção
de identificação para o sujeito a partir de uma nomeação particular, que lhe é dada ao nascer; é
por meio dele que se constitui e legitima alguém enquanto sujeito. A respeito dessa
consideração, Mariani nos coloca:
É a partir desse nome legalmente validado que podemos ser designados socialmente,
mesmo que à nossa revelia. Esse funcionamento linguístico e social mostra tanto o
aspecto convencional do nome próprio quanto implica seu caráter referencial,
63
produzindo um efeito de identidade por sua repetição. O nome próprio funciona como
uma referência para o sujeito, uma vez que o sujeito é designado e se designa a partir
desse nome que lhe é dado ao nascer (MARIANI, 2014, p. 133-134).
Conforme Guimarães (2003, p. 54), “um nome, ao designar, funciona como
elemento das relações sociais que ajuda a construir e das quais passa a fazer parte. Dar nome a
algo [...] é dar-lhe existência histórica”. Dito isso, perguntamos: o que se diz ao dizer errado o
nome de alguém? O que se nega nessa nomeação “defeituosa”? Considera-se, assim, que a
inversão do nome próprio formulada na manchete nega à Carolina não apenas sua existência
enquanto escritora, mas também seu estatuto de sujeito de direito, ao não permitir que ela faça
parte das relações sociais, da existência histórica como pontua Guimarães (2003).
Assim, na manchete “Líderes Do Movimento Cultural do Negro Homenageiam a
Escritora Maria Carolina” é possível evidenciar o funcionamento da inversão do nome próprio
que restringe não só o termo “escritora”, mas também nega a constituição de Carolina Maria de
Jesus como sujeito. Considero, assim, a inversão do nome próprio um mecanismo que nega a
existência de um sujeito de direito e de uma mulher negra enquanto escritora e autora.
3.6 DE QUE MULHERES ESTAMOS FALANDO?
Alves e Pitanguy (2003) julgam ser difícil estabelecer com exatidão o que é e
quando começou o feminismo. Nas palavras das autoras, “este termo traduz todo um processo
que tem raízes no passado, que se constrói no cotidiano, e que não tem um ponto
predeterminado de chegada. Como todo processo de transformação, contém contradições,
avanços, recuos, medos e alegrias” (ALVES e PITANGUY, 2003, p. 7). A despeito dessa
inexatidão fundadora, elas consideram que o movimento feminista no Brasil teve início no
século XIX, quando surge a chamada “primeira onda”. Nessa fase inicial, as pautas
reivindicavam o direito ao voto e à vida pública, direitos dos quais as mulheres eram excluídas.
De cunho conservador, esse primeiro momento não questiona a divisão sexual ou racial e, como
coloca Regina Pinto, “era um feminismo bem-comportado na medida em que agia no limite da
pressão intraclasse, não buscando agregar nenhum tipo de tema que pudesse pôr em xeque as
bases da organização das relações patriarcais” (PINTO, 2003, p. 26).
É nessa primeira fase que se reivindica o direito ao voto feminino no país;
intitulado luta sufragista, ele teve como líder Bertha Lutz. A conquista da inserção da mulher
64
na vida política com direito ao voto se deu em 1932. Regina Pinto (2010) considera que essa
primeira onda se manifestou no Brasil mais publicamente pela luta das sufragetes; ela ressalta,
também, da importância do movimento das operárias de ideologia anarquista, organizadas em
torno da “União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas”.
Em 1960, o movimento feminista entra em sua segunda fase, e aqui sinalizo o
lançamento de Quarto de Despejo. Caracterizada por ampliar os debates no campo político e
levar o individual para o político, essa fase se centra no “coletivo, demonstrando que o ser social
não se esgota na experiência de sua classe” (ALVES e PITANGUY, 2003, p. 58). De acordo
com essas autoras, é nesse período que, para alargar as discussões políticas, ampliam-se também
as discussões sociais que vão além da questão econômica, indicando novas maneiras de exercer
o poder. Para elas, a década de 60 é, portando, caracterizada por “intensa mobilização na luta
contra o colonialismo, a discriminação racial, pelos direitos das minorias, pelas reivindicações
estudantis” (2003, p. 58). Ainda, “é neste momento histórico de contestação e de luta que o
feminismo ressurge como um movimento de massas que passa a se constituir, a partir da década
de 70, em inegável força política com enorme potencial de transformação social” (ALVES e
PITANGUY, 2003, p. 58).
A segunda onda do movimento teve como pano de fundo um cenário político
efervescente marcado pela ditadura no país e indicativo de um momento de repressão, uma vez que
“o regime militar via com grande desconfiança qualquer manifestação de feministas por entendê-
las como política e moralmente perigosas” (PINTO, 2010, p. 16-17). É nesse momento que se
incorporam novas pautas, que vão além dos direitos nos âmbitos político e econômico. Com uma
conjuntura política marcada pela repressão, pautas relacionadas ao corpo, à sexualidade e à
violência sexual ganham força nos debates. Há, também, uma maior mobilização de mulheres em
espaços públicos, o que faz com que universidades e empregos formais sejam marcados pela
presença feminina, além de movimentos sociais como o Diretas Já.
A terceira onda feminista sustenta discussões sobre gênero, raça e classe e,
sobretudo, alavanca críticas ao discurso sobre a mulher universal, entendida aqui como uma
categoria, ao encará-la como um padrão que exclui diferenças e opressões desiguais. A respeito
disso, Camila Siqueira ressalta os imbricamentos dessa categoria como universal:
Trata-se de reivindicar a diferença dentro da diferença. As mulheres não são iguais aos
homens, na esteira das ideias do feminismo de segunda onda, mas elas tampouco são
todas iguais entre si, pois sofrem as consequências da diferença de outros elementos,
tais como raça, classe, localidade ou religião. (SIQUEIRA, 2015, p. 337-338)
65
Essa terceira fase do movimento expõe sua face excludente, já que apenas uma
parte das mulheres se sentia representada. É nesse vão de pluralidade de mulheres e suas
distintas demandas femininas que pautas relacionadas ao gênero se tornam uma ferramenta
importante para a luta. Nesse cenário, as mulheres negras se organizam mais ativamente com o
intuito de lutar por suas reivindicações, uma vez que, embora o movimento feminista fosse
importante, ainda assim portava a marca da exclusão em seus discursos, inviabilizando a
representação da mulher negra. É, portanto, essa discussão que sustenta a necessidade e a
emergência dos feminismos negros.
Para Núbia Moreira, a relação entre as mulheres negras e o movimento feminista,
em um primeiro momento, foi marcada por certa resistência por parte das mulheres negras “em
aceitar a identidade feminista” (MOREIRA, 2006, p. 1). Ela destaca que é no III Encontro
Feminista Latino-americano, acontecido em Bertioga, em 1985, que a relação entre as mulheres
negras e o movimento feminista se efetiva. Para ela, é a partir desse ano que “surgem os
primeiros coletivos de mulher negras, época que antecederam alguns Encontros Estaduais e
Nacionais de Mulher Negras” (2006, p.1). Graças às reivindicações e conquistas dos
feminismos negros que mulheres negras passam a ser consideradas pelas políticas de
representatividade, enquanto sujeitos políticos, deslocando processos de significação
sedimentados ao longo de uma história de escravização, silenciamento e opressão.
Angela Davis, filósofa estadunidense, por sua vez, nos pontua que o movimento
feminista não é resumido a um só movimento; existe uma diversidade, dado que “nós temos
feministas por toda a parte (...) e mesmo dentre as feministas negras é preciso reconhecer a
grande diversidade existente (...) dentre todos estes tipos, é evidente que elas não concordam
necessariamente umas com as outras, já que muitas são as diferenças” (2011, s/n.). Davis
considera que se há uma pluralidade de movimentos, existe também um desafio: olhar para as
diferenças desses movimentos e reconhecer as contradições já que é evidente a heterogeneidade
entre os movimentos feministas.
66
Figura 4: Diário da Noite, 1960.
Fonte: Diário da Noite, 1960, [n.p.].
A manchete acima (fig. 4) foi veiculada no Diário da Noite, em São Paulo, no
ano de 1960, nos apresenta como título: “Homenagem na campanha da associação Cristã
Feminina à escritora favelada”. Como matéria temos que a Associação Cristã Feminina, de São
Paulo, homenageou Carolina Maria de Jesus em sua primeira reunião social de acordo com o
plano de campanha financeira da associação. Na ocasião, a presidente da campanha, Maria
Lício Rizzo, “saudou a escritora favelada” e na sequência é possível perceber, pelo uso do
travessão, que no trecho “- homenageada do dia -” há uma enfatização, chama atenção, para o
fato de que Carolina, a “escritora favelada”, é homenageada. Essa “escritora favelada”
autografou o “seu Quarto de Despejo”, com ressalva para o uso do “seu” que depreende um
sentido pejorativo de “escritora favelada autografou seu Quarto de despejo”. Essa reunião visa
arrecadar fundos a fim de atender às necessidades da organização para as obras “de elevado
cunho sócio-assistencial de ajuda à mulher”.
O funcionamento da manchete e matéria dá a ver sentidos da benevolência da
mulher branca, a ideia de bondade e generosidade de uma mulher branca para com Carolina,
mulher negra. Nesse imbricamento, também há a caridade da mulher cristã, que atua como
benevolente por meio da religião, isto é, essa mulher branca, religiosa e bondosa representa
apenas uma parte das mulheres. Embora trata-se de uma associação “feminina” e não feminista,
temos um discurso assistencialista pautado pela benevolência, o qual se sustenta em um pré-
construído: uma suposta superioridade das mulheres brancas em relação a outras mulheres,
“assistidas” pela associação. Essa questão me parece tocar nas entrelinhas a ideia dos
movimentos feministas, conforme dito anteriormente, que durante muito tempo representou
reinvindicações de mulheres brancas, excluindo demandas e especificidades das mulheres
negras, indígenas e periféricas.
Nessa direção, bell hooks, feminista negra estadunidense, nos convida a refletir
67
sobre a supremacia da mulher branca nos movimentos feministas e como é possível identificar,
em seus discursos, a desconsideração de pautas sobre raça e classe. A autora coloca:
As mulheres brancas que dominam o discurso feminista – as quais, na maior parte,
fazem e formulam a teoria feminista – têm pouca ou nenhuma compreensão da
supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição
política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista (hooks, 2015, p. 196).
hooks ainda pontua que “o racismo abunda nos textos de feministas brancas,
reforçando a supremacia branca e negando a possibilidade de que as mulheres se conectem
politicamente cruzando fronteiras étnicas e raciais” (2015, p. 196). Por essa perspectiva,
compreendo a manchete anterior, ao reforçar um pré-construído da benevolência da mulher
branca, tangencia o pensamento de hooks quando nos mostra a supremacia branca que denega
e silencia as pautas de mulheres negras.
Por isso, evoco Sueli Carneiro (2011, s/n) que ao questionar de que mulheres
estamos falando? provoca uma reflexão sobre quais feminismos e mulheres são representados
diante das pautas dos movimentos feministas. Por essa perspectiva, fomenta o debate sobre
como as mulheres negras, durante as primeiras ondas dos movimentos feministas, tiveram suas
histórias narradas pela posição privilegiada da mulher branca, ou seja, suas histórias foram
significadas por outras vozes, o que consequentemente produz silenciamento, opressão e
ausência de representatividade. Carneiro coloca em destaque a problemática da
interseccionalidade que atravessa as opressões e violências vivenciadas pelas mulheres negras;
a partir dela, compreende-se que questões que interseccionam sexismo, classe e raça são
imprescindíveis para compreender os movimentos feministas negros e a constituição do sujeito
mulher negra. A respeito disso, essa intelectual propõe para os feminismos negros uma
definição:
Construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como
são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo
e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria
hierarquia de gênero em nossas sociedades. (CARNEIRO, 2011, [n.p.])
Ao questionar “de que mulheres estamos falando?” e considerar que é preciso
“enegrecer o feminismo brasileiro”, Carneiro afirma a importância de introduzir e instituir
pautas que privilegiem a questão racial, de gênero, da violência contra a mulher negra como
reguladores da luta feminista negra. A autora ainda coloca que destacar as contradições como
efeito da articulação entre raça, classe e gênero, sustentadas por mulheres negras e o movimento
68
negro, possibilita “as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do
conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas
e reivindicações do movimento negro (CARNEIRO, 2011, [n.p.]).
Pensar a interssecionalidade, para além de Carneiro, é evocar Kimberlé
Crenshaw. Para a autora (2002, p. 177), que cunhou o termo em 1989, a interssecionalidade é
“uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas
da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” e acrescenta que o termo “trata
especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de
mulheres, raças, etnias, classes e outras”. Isto é, considerar a interseccionalidade é pontuar que
existe um sistema que oprime e, mais ainda, pensar em raça, classe e gênero como uma
intersecção. Segundo Crenshaw:
Tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções
complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As mulheres
racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a
xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem
atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas
e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nessas intersecções
em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o “tráfego” que flui
através dos cruzamentos (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Nesse mesmo raciocínio de Crenshaw, de pensar opressões estruturais de
maneira não isolada, Angela Davis preconiza:
É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe.
E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma
que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para
perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre
essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas. Ninguém
pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras (DAVIS, 2011, [n.p.]).
Assim dizendo, compreendo com Kimberlé Crenshaw e Angela Davis que os
marcadores de raça, classe e gênero se cruzam de modo que é impensável considera-los de
maneira isolada. Refletir sobre Carolina, é reconhecer as intersecções que a acometem e as
múltiplas opressões que se cruzam enquanto mulher negra, mãe que residia na periferia, com
poucos anos de estudo.
69
3.7 A "ESCRITORA NEGRA" E A FALHA NO RITUAL IDEOLÓGICO
Figura 5: Jornal do Brasil, 1960.
Fonte: Jornal do Brasil, 1960, [n.p.]
O recorte acima (fig. 5) foi retirado do Jornal do Brasil, veiculado no Rio de
Janeiro, no ano de lançamento de Quarto de Despejo. Embora os outros recortes selecionados
e analisados sejam de São Paulo, convoco essa manchete pois ela coloca em circulação outros
sentidos, mobilizados através da falha do ritual ideológico. A manchete “São Paulo lança uma
escritora negra: Carolina Maria” revela não mais a repetição, mas um novo sentido possível por
meio do emprego da designação “escritora”. Infiro ainda que neste recorte podemos perceber
que o sentido dominante não é homogêneo dado que pela falha ideológica a heterogeneidade
do sentido atua. Isto é, pelas brechas, pode-se notar que há possibilidades diferentes, e não
uniforme, de se interpretar Carolina.
Há, aqui, um processo polissêmico, dado que temos um deslocamento no sentido
da designação “favelada” encontrada com certa recorrência nas manchetes, ao contrário dos
processos parafrásticos, em que há algo da ordem da repetição, neste recorte vemos a polissemia
atuar. A manchete em questão (fig. 5) não nos traz os processos de repetição de um sentido que
se mantém, ela atesta a ruptura, ele atesta a ruptura, a descontinuidade da designação “favelada”
para o “escritora negra”. Temos, então, um sentido “diferente: nas mesmas condições de
produção imediatas (locutores e situação) há no entanto um deslocamento, um deslizamento de
sentido (polissemia)” (ORLANDI, 1998, p. 15).
Essa atuação da polissemia na ruptura dos sentidos, em que sinaliza a
possibilidade de uma nova designação que até então não aparecia, ela atesta, também, o lugar
70
da ideologia. Isto é, o “escritora negra”, como na manchete, manifesta uma quebra de sentido e
demonstra, ainda, também a potência de Quarto de Despejo como um acontecimento que se faz
pelas brechas, pela quebra do ritual ideológico.
Nesse sentido, esse recorte dá a ver que a ideologia é um ritual com falhas,
conforme Pêcheux (2009, p. 277):
Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual supõe
reconhecer que não há ritual sem falha; enfraquecimento e brechas, ‘uma palavra por
outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça
no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos são abundantes, seja na
cerimônia religiosa, no processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso
político...).
A brecha no ritual ideológico possibilita entrever que o acontecimento
jornalístico, por mais que tenha se esforçado, não pôde capturar e apagar a potência do
acontecimento discursivo que foi a publicação de Quarto de Despejo. A força da escrita de
Carolina inaugura discursividades; ela influenciou uma geração de escritoras, militantes e
intelectuais que passam a atuar nas décadas subsequentes, ancoradas nas filiações de memória
que Carolina e o acontecimento de seu livro possibilita; Quarto de Despejo passa a funcionar
como referência básica no imaginário constitutivo do Brasil, estabilizando-se como
fundamental na construção da memória dos movimentos das mulheres negras. Um discurso
fundador. Entretanto, como nos mostrou Orlandi (1992), o discurso fundador não diz respeito
a um princípio absoluto; os sentidos não têm origem determinada.
Ele, o discurso fundador, funciona em função de uma relação de forças que
transfigura o sem-sentido em sentido. Carolina permite que determinados sentidos sobre as
mulheres negras possam surgir, deslocando o já-dito; seu livro, em sua dimensão de
acontecimento, significa o sem-sentido, dá lugar a lugares interditados pelos processos de
significação.
Enfatizo, por fim, a potência de acontecimento de Carolina e Quarto de Despejo
como produtores de memórias que insistentemente são apagadas e silenciadas, mas se dão pelas
lacunas dos sentidos hegemônicos. É nesse ínterim, pelas brechas, que o acontecimento se
coloca e é possível uma outra discursividade para Carolina. É partir do discurso fundador, como
considera Orlandi, que se “(...) instala as condições de formação de outros, filiando-se à sua
própria possibilidade, instituindo em seu conjunto um complexo de formações discursivas, uma
região de sentidos, um sítio de significância (...)”. Nesse limiar é que considero Carolina Maria
de Jesus como a possibilidade de um novo sentido, Quarto de Despejo inaugura uma
71
discursividade. Ao designar “escritora negra” em uma manchete posta em circulação em 1960,
a formulação indicia uma nova maneira de significar as mulheres negras. A circulação dessa
designação, como resultado de processos polissêmicos, nos mostra que Carolina irrompe por
meio da sua escrita contundente, com Quarto de Despejo, transformando destinos ao constituir
novos modos de significar uma mulher negra.
72
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com aporte teórico em Análise de Discurso, mobilizei conceitos fulcrais para
embasar as análises desta pesquisa, com o intuito de compreender os mecanismos pelos quais a
mídia interpreta Carolina Maria de Jesus e Quarto de Despejo. Foi preciso percorrer,
inicialmente, os fundamentos teóricos, explanados no primeiro capítulo, onde fica evidente a
importância da noção de interpretação, o conceito que estrutura pesquisa. Isto é, ao sustentar as
análises na interpretação, teorizada por Orlandi (2007), falei sobre sua relação com a língua,
discurso, ideologia, silêncio, memória e os efeitos de sentidos. O que me fez chegar ao fato de
que a leitura discursiva feita pelas manchetes de 1960, que compõem o corpus, percorreu o
imbricamento desses conceitos, uma vez que me permitiram chegar aos efeitos sentidos
possíveis provenientes das possibilidades de interpretar a autora e sua obra.
A partir da delineação teórica no primeiro capítulo, no segundo foi preciso
apresentar como se deu a construção e constituição do dispositivo analítico. Para tanto, foi
necessário também passar por outras concepções teóricas, como a noção de trajeto temático,
arquivo e corpus com o intuito de sustentar o gesto de leitura do/no arquivo. Nesse sentido,
pontuo a construção do dispositivo analítico a partir de um trajeto de leitura no arquivo da
biblioteca nacional. Isto é, a partir da noção de trajeto temático foi possível delinear e selecionar
quais manchetes comporiam o corpus ao ter como parâmetro a regularidade de determinadas
designações, como a designação “favelada”.
Depois de definir os fundamentos teóricos e delinear a construção do corpus, o
terceiro capítulo tratou do funcionamento das designações nos jornais em 1960. Para isso foi
necessário explanar as condições de produção em que Quarto de Despejo fora lançado, bem
como tratar dos vestígios higienistas da época e dos sentidos não romantizados que a obra
possibilitou. Antes de adentrar as análises, foi preciso discorrer sobre acontecimento
jornalístico, o que permitiu compreender como a circulação de determinados discursos
contribuem para as interpretações que recaem em Carolina e sua obra.
Ainda no terceiro capítulo, as análises são mobilizadas a partir de certas
designações e percebe-se um funcionamento de repetição que perpassam o estereótipo e a
inversão do nome próprio. Em consonância a essas duas noções, adentrei e percorri a trilha dos
73
movimentos feministas como forma de verificar que o processo de estereotipagem e a inversão
do nome próprio da autora nega à Carolina a existência de um sujeito de direito e, também, seu
reconhecimento enquanto mulher negra escritora e autora. Nessas análises foi possível concluir
que as designações, por meio do jogo da paráfrase, provocam a repetição e a insistÊncia em um
sentido que denega Carolina como autora. Ou seja, a recorrência do termo “favelada” marca
um processode estereotipagem e, ao mesmo tempo, apaga o sentido de autora.
Por fim, concluo que as especificidades do aporte teórico em consonância às
manchetes que compõem o corpus não se limitam a uma única formulação interpretativa para
Carolina Maria de Jesus e sua obra. Dito em outras palavras, infiro que a mídia mobiliza
designações que são atribuidas para Carolina e majoritariamente a escritora é reduzida ao
estereótipo de favelada, denegando o sentido de autora. No entanto, o funcionamento linguístico
das designações empregadas nas manchetes de jornais também é suscetível à falha ideológica.
Isto é, vimos que, na última análise apresentada, se por um lado há a insistência na designação
“favelada”, por outro, a quebra do ritual ideológico permite inaugurar um novo sentido. Em vista
disso, concluo, portanto, no jogo da polissemia, que a descontinuidade dos sentidos de “favelada”
torna possível inaugurar uma nova discursividade, a de “escritora negra” para Carolina Maria de
Jesus.
74
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2020.
80
ANEXOS
1. Manchetes de 1960
1.1 São Paulo
Diário da Noite, 1960, [n.p.].
81
Diário da Noite, 1960, [n.p]
82
Diário da Noite, 1960, p. 5
83
Diário da Noite, 1960, p. 20.
84
1.2 Rio de Janeiro
Última hora, 1960, [n.p.].
Jornal do Brasil, 1960, [n.p.].
Jornal do Brasil, 1960, [n.p.].
85
1.3 Paraná
Última Hora, 1960, [n.p.].
86
Última Hora, 1960, p. 8
Última Hora, 1960, p. 5.