gabriela moreira buranelli

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GABRIELA MOREIRA BURANELLI AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE DESPEJO: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de jornais Texto de qualificação apresentado à Universidade de Franca, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Linguística. Orientadora: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. FRANCA 2021

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Page 1: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

GABRIELA MOREIRA BURANELLI

AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO

DE DESPEJO: interpretação e efeitos de sentido das designações em

manchetes de jornais

Texto de qualificação apresentado à

Universidade de Franca, como exigência

parcial para a obtenção do título de Mestre em

Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Aline Fernandes de

Azevedo Bocchi.

FRANCA

2021

Page 2: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

Catalogação na fonte – Biblioteca Central da Universidade de Franca

Buranelli, Gabriela Moreira B966f As formulações para Carolina Maria de Jesus e Quarto de despejo :

interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de jornais / Gabriela Moreira Buranelli ; orientador: Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. – 2021

88 f. : 30 cm.

Dissertação de Mestrado – Universidade de Franca Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestre em Linguística

1. Linguística – Discurso. 2. Análise do discurso. 3. Jesus, CarolinaMaria de, 1914-1977. 4. Interpretação. 5. Designação. 6. Nome próprio. I. Universidade de Franca. II. Título.

CDU – 801:82-5

Page 3: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

¹ Esta classificação poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita justificativa junto Coordenação do Curso. Todo resumo estará disponível para reprodução. ² Texto (PDF); Imagem (JPG ou GIF); Som (WAV. MPEG. AIFF. SND); Vídeo (MPEG. AVI. OT): Outros (Específico da área).

Termo de Autorização para Disponibilização no Repositório Institucional

1. Identificação do material bibliográficoTese Dissertação Trabalhos de alunos Outros

2. Identificação do documento/autor Universidade

Instituição: Universidade de Franca - UNIFRAN

Pós-Graduação: MESTRADO EM LINGUÍSTICA Stricto Sensu Lato Sensu

Área de concentração (Tabela CNPQ): LINGÜÍSTICA

Título: AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE DESPEJO: INTERPRETAÇÃO E EFEITOS DE SENTIDO

DAS DESIGNAÇÕES EM MANCHETES DE JORNAIS.

Autor: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

RG:409146109 CPF:42207130851

Orientador(a) Prof.(a) Dr.(a): ALINE FERNANDES DE AZEVEDO BOCCHI

RG:193460002 CPF:28344099862

Número de páginas: 88 (conforme o exemplar impresso corrigido após a defesa)

Data de defesa: terça-feira, 9 de março de 2021

Data de Entrega do arquivo à Secretaria: sexta-feira, 9 de abril de 2021

3. Informações de acesso ao documento

sim nãoOcasionará registro de patente?

total parcial totalPode ser liberado para publicação?

Em caso de publicação parcial, assine as permissões:

Sumário Conclusões Introdução Bibliografia

Proposição Capítulos. Especifique:

Material e Métodos Outras restrições:

Qual período permanecerá a publicação parcial?

Na qualidade de titular dos direitos de autor da publicação supracitada, de acordo com a Lei n° 9610/98, autorizo o Sistema de Bibliotecas da Cruzeiro do Sul Educacional e o IBICT, a disponibilizar gratuitamente, sem ressarcimento dos direitos autorais, conforme permissões assinadas acima, do documento, em meio eletrônico, na Rede Mundial de Computadores, no formato especificado², para fins de leitura, impressão e/ou download pela Internet, a título de divulgação da produção científica gerada pela Universidade à qual estou/estive vinculado, a partir desta data. O conteúdo poderá ser alterado conforme orientações da banca, dentro de um prazo de 60 dias, onde o aluno é responsável em remeter a versão final aos setores responsáveis.

Local: Franca Data: 09/04/2021

_____________________________________________

Assinatura do autor

_____________________________________________

Assinatura do orientador

Page 4: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR GABRIELA MOREIRA BURANELLI, COMOPARTE DOS REQUISITOS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE NO PROGRAMA DE MESTRADO EM

LINGUÍSTICA.

Aos nove dias do mês de março de dois mil e vinte e um, reuniu-se, no(a) Bloco Cdi - Sala 51, a Comissão Julgadora designadapela Comissão da Unifran - Pós-Graduação, constituída pelos professores doutores: Profa. Dra. Aline Fernandes de AzevedoBocchi (Orientadora), Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano (Titular),Profa. Dra. Gloria da Ressurreição Abreu França(Titular), para examinar a candidata Gabriela Moreira Buranelli na prova da defesa de sua dissertação intitulada: ASFORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE DESPEJO: INTERPRETAÇÃO E EFEITOS DESENTIDO DAS DESIGNAÇÕES EM MANCHETES DE JORNAIS. A Presidente da Comissão Profa. Dra. Aline Fernandes deAzevedo Bocchi, iniciou os trabalhos às 14h, solicitando à candidata que apresentasse, resumidamente, os principais pontos doseu trabalho. Concluída a exposição, os examinadores arguiram alternadamente a candidata sobre diversos aspectos dapesquisa e da dissertação. Após a arguição, que terminou às 20h, a Comissão reuniu-se para avaliar o desempenho dacandidata, tendo chegado ao seguinte resultado: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi( __________________ ), Profa.Dra. Gloria da Ressurreição Abreu França ( __________________ ),Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano(__________________ ). Em vista deste resultado, a candidata Gabriela Moreira Buranell i foi considerada_____________________, fazendo jus ao título de Mestre pelo programa de Mestrado em Linguística . Sendo verdade, eu, Prof.Dr.Thercius Oliveira Tasso, Secretário de Pós-Graduação Stricto Sensu, confirmo e lavro a presente ata, que assino juntamentecom os Membros da Banca Examinadora.

Franca, 09 de março de 2021.

Novo título (sugerido pela banca) :

PROFA. DRA. ALINE FERNANDES DE AZEVEDO BOCCHI

PROFA. DRA. LUCIANA CARMONA GARCIA MANZANO

PROFA. DRA. GLORIA DA RESSURREIÇÃO ABREU FRANÇA

aprovada

aprovadaaprovada

aprovada

Prof. Dr. Thercius Oliveira Tasso Secretário de Pós-Graduação Stricto Sensu

Page 5: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

GABRIELA MOREIRA BURANELLI

AS FORMULAÇÕES PARA CAROLINA MARIA DE JESUS E QUARTO DE

DESPEJO: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de

jornais

COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Presidente: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi

Universidade de Franca

Titular 1: Profa. Dra. Glória da Ressurreição Abreu França

Universidade Federal do Maranhão

Titular 2: Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano

Universidade de Franca

Franca, 09/03/2021

Page 6: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

À memória de Carolina Maria de Jesus

Page 7: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

AGRADECIMENTOS

É chegada a hora em que as lembranças dessa trajetória, tomam conta do meu

ser e me fazem ver como foi trilhar o caminho até aqui. É a hora de finalizar esse ciclo

importante e finalmente dizer obrigada. Nesse sentido, os meus mais sinceros agradecimentos

para aqueles que estiveram comigo nessa empreitada:

À Marília, minha primeira orientadora, mulher forte e aguerrida, que além de

apresentar a história de Carolina Maria de Jesus, me ensinou a ter coragem e desbravar o mundo

acerca das pesquisas. Obrigada por todas as trocas, momentos, contribuições e, sobretudo, por

me ensinar a enfrentar. Esse meu caminho trilhado até aqui, e tão importante para mim, foi

graças ao seu convite para nos aventurarmos na história de Carolina. Infinitamente, obrigada!

À Aline, minha orientadora, mulher forte e inteligente, que me acolheu em um

momento de angústia e ensinou, acima de tudo, a tomar a palavra e posicionar a existência do

meu eu em cada uma delas, em cada linha. Obrigada por contribuições tão ricas, atentas e

minuciosas. Obrigada pela profunda intensidade das trocas, orientações e conversas. Meu

intenso obrigada!

À Glória França e Luciana Manzano por participarem das bancas de qualificação

e defesa. Obrigada por seus olhares atentos e minuciosos que enriqueceram esta pesquisa. Muito

obrigada por contribuírem de maneira tão rica e pertinente.

À Marli, minha mãe, mulher de fibra e garra, que partilha a vida comigo há 25

anos e me ensina sobre ser forte, independente e construir a minha história. Obrigada por

tamanha compreensão que não encontraria em outro lugar que não fosse em você. Obrigada por

me dar a vida e fazer com que ela chegasse aqui, nessa apoteose. Meu eterno obrigada!

Ao Elio, meu pai, que habita outro plano espiritual há 24 anos e às vezes me

visita para (re)lembrar que a vida, assim como os ciclos, tem fim. Obrigada por nossas

conversas silenciosas e por me escutar e acalentar em silêncio. Obrigada por tanto, mesmo

muito longe.

Ao Rafael Nakamura, representação de amor intenso, por converter a angústia

das inseguranças em sonhos e confiança, por sempre direcionar as melhores palavras e me

acolher nas horas improváveis. Obrigada por tanto apoio, presença e afeto.

Page 8: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

Às minhas amigas acadêmicas, Giovana e Camilla, que me ensinaram sobre

amizade e rede de apoio, afeto e carinho. Obrigada por deixarem leve os momentos densos.

Obrigada!

À Maria Maximiana, Viviane, Lorena, Thais Balda, Giovanna e Renato por

serem tão amigos e queridos. Obrigada pelos conselhos horas a fio nessa trajetória. Vocês foram

importantes, obrigada!

À CAPES, pelo financiamento e oportunidade de dedicação plena a essa

pesquisa.

Page 9: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

Da língua cortada,

digo tudo,

amasso o silêncio

e no farfalhar do meio som

solto o grito do grito do grito

e encontro a fala anterior,

aquela que emudecida,

conservou a voz e os sentidos

nos labirintos da lembrança.

Conceição Evaristo

Page 10: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

RESUMO

BURANELLI, Gabriela Moreira Buranelli. As Formulações para Carolina Maria de Jesus

e Quarto de Despejo: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes

de jornais. Orientadora: Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 88f. Dissertação

(Mestrado em Linguística) – Universidade de Franca, Franca.

Carolina Maria de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil, considerada uma

das mais relevantes para a literatura nacional. Ela desponta no cenário editorial em 1960, com

a publicação de Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, que teve grande repercussão

nacional e internacional, tornou-se best-seller com circulação em 40 países e tradução para

13 idiomas. Negra, catadora de papel e moradora da favela do Canindé, Carolina era

designada pela imprensa nacional daquela época como “a favelada” ou “escritora-favelada”,

o que a distanciava da possibilidade de ser interpretada como autora. Esta pesquisa propõe

problematizar como a mídia interpretou a autora no ano em que foi lançado Quarto de

Despejo, em 1960. Para isso, recorre- se a um corpus construído com recortes de manchetes

de jornais desse período histórico, o qual possibilitará a análise das designações que

significam Carolina e Quarto de Despejo, tendo em vista os pressupostos teóricos da Análise

do Discurso pecheutiana. Intenta-se compreender os gestos de interpretação para Carolina na

imprensa, os funcionamentos ideológicos que determinam os nomes e os processos de

estereotipagem produzidos por eles. Verifica-se, no funcionamento discursivo das manchetes

de jornais, a perpetração de silenciamentos históricos acerca da mulher negra. Os resultados

indiciam processos de silenciamento e estereotipagem que funcionam nos discursos sobre

Carolina, o que confirma o caráter estrutural do racismo e a importância dos movimentos

antirracistas, sobretudo no que tange às mulheres. O presente trabalho foi realizado com

apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)

– Código de Financiamento 001.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus; Análise do discurso; Interpretação; Designação;

Nome próprio.

Page 11: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

ABSTRACT

BURANELLI, Gabriela Moreira Buranelli. As Formulações para Carolina Maria de Jesus

e Quarto de Despejo: interpretação e efeitos de sentido das designações em manchetes de

jornais. Orientadora: Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 88f. Dissertação (Mestrado

em Linguística) – Universidade de Franca, Franca.

Carolina Maria de Jesus was one of the first black writers in Brazil, considered one of the most

relevant for national literature. She emerged in the editorial scene in 1960, with the publication

of Quarto de Despejo: diário de uma favelada, which had great national and international

repercussions, becoming a best seller with circulation in 40 countries and translated into 13

languages. Black, a paper collector and resident of the Canindé slum, Carolina was designated

by the national press as “the slum dweller” or “favelada-writer”, which distanced her from the

possibility of being interpreted as an author. This research proposes to problematize how the

media interpreted the author in the year in which Quarto de Despejo was launched, in 1960. For

this, we use a corpus built with clippings from newspaper headlines from this historical period,

which will enable the analysis of the designations meaning Carolina and Quarto de Despejo, in

view of the theoretical assumptions of Pecheut's Discourse Analysis. We intend to understand

the gestures of interpretation for Carolina in the press, the ideological workings that determine

the names and the stereotyping processes sought by them. In the discursive operation of

newspaper headlines, there is the perpetration of historical silences of black women. The results

indicate silencing and stereotyping processes that work in discourses about Carolina, which

confirms the structural character of racism and the importance of anti-racist movements,

especially regarding women. This work was carried out with the support of the Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brazil (CAPES) - Financing Code 001.

Keywords: Carolina Maria de Jesus; Discourse Analysis; Interpretation; Designation; Proper

noun.

Page 12: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Manchete do jornal Correio Paulistano 39

Figura 2 - Manchete do jornal Diário da Noite 41

Figura 3 - Manchete do jornal Diário da Noite 42

Page 13: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Relação de veiculação 39

Page 14: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 ANÁLISE DE DISCURSO E INTERPRETAÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS .. 16

1.1 LÍNGUA, DISCURSO E EFEITOS DE SENTIDO .......................................................... 17

1.2 A TEORIA DA IDEOLOGIA E A INTERPELAÇÃO DO SUJEITO .............................. 18

1.3 GESTOS DE INTERPRETAÇÃO SOBRE CAROLINA ................................................. 21

1.4 DITOS, NÃO-DITOS, SILÊNCIOS E SILENCIAMENTOS ........................................... 23

1.5 MEMÓRIA, EFEITO DE PRÉ-CONSTRUÍDO E DE-SIGNIFICAÇÃO ........................ 26

2 A CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO TEÓRICO ANALÍTICO ................................. 30

2.1 TRAJETOS DE LEITURA NO ARQUIVO DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL 30

2.3 O CORPUS E O ARQUIVO: UMA PROBLEMÁTICA DISCURSIVA ......................... 34

2.4 NOÇÃO DE TRAJETO TEMÁTICO ................................................................................ 36

3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS JORNAIS DE 1960 .................... 39

3.1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ........................................................................................ 39

3.1.1 Sentidos da favela: vestígios da ideologia higienista ...................................................... 41

3.1.2 Quarto De Despejo: sentidos postos à margem ............................................................... 45

3.2 O ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO ......................................................................... 49

3.3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS PERIÓDICOS .............................. 50

3.4 A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO E O PROCESSO DE ESTEREOTIPAGEM ................. 58

3.5 O FUNCIONAMENTO DO NOME PRÓPRIO: EFEITOS DE UMA INVERSÃO ........ 60

3.6 DE QUE MULHERES ESTAMOS FALANDO? ............................................................. 63

3.7 A "ESCRITORA NEGRA" E A FALHA NO RITUAL IDEOLÓGICO .......................... 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 72

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 74

ANEXOS ................................................................................................................................. 80

Page 15: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

12

INTRODUÇÃO

Minhas inquietações acerca deste trabalho começaram em 2016, quando eu

ainda cursava o segundo ano da graduação em jornalismo. Tardiamente, em uma noite de muito

frio na Universidade de Franca, meu caminho cruzou com a história de Carolina Maria de Jesus

quando uma das minhas professoras, e por muito tempo orientadora, contou brevemente sobre

a vida e obra da autora. O incômodo foi instantâneo. Depois de ouvir sobre Carolina,

questionava: Como era possível durante os meus 20 anos não ter escutado sobre aquela

autora? Por que não ouvi sobre ela durante meu percurso escolar? Por que não soube dela

nas aulas de literatura?

Ao partilhar meu incômodo com outras pessoas, percebi que raramente

conheciam a existência da autora e, quando conheciam, sabiam muito pouco sobre ela. As

inquietações aumentaram até chegar em uma apoteose dolorosa ao ter o meu primeiro contato

com a obra Quarto de Despejo. À medida que adentrava nesse Quarto, questionamentos acerca

dessa autora me instigavam avassaladoramente. Desde então, divido grande parte da minha

jornada com essas inquietações que não cessam.

Iniciei, então, um percurso acadêmico com a realização da pesquisa de Iniciação

Científica proposta pela minha orientadora na época, Profa. Dra. Marília Giselda Rodrigues, a

respeito do ethos de Carolina Maria de Jesus em sua obra, com base nos conceitos de

Maingueneau sobre os embreantes paratópicos. Em um momento posterior, passamos pela

interlíngua, também de Maingueneau, para compreender como se mobilizava o código

linguageiro na primeira obra da autora. Terminado meu percurso de estudo, resgatei minhas

primeiras inquietações, que diziam respeito ao fato de poucos conhecerem a autora, e levei para

o meu trabalho de conclusão de curso da graduação. Com o intuito de divulgar a história

caroliniana, produzi um videodocumentário sobre vida e obra da autora. Durante esse processo,

ao entrevistar pesquisadores, autores e Vera Eunice, filha da autora, descobri novas faces e

questionamentos sobre aquele universo que não tinha, e não tem, fim.

Ao ingressar no mestrado, vislumbrei a possibilidade de dar mais voz às minhas

inquietações acerca de Carolina. A realização de uma pesquisa surgia agora como oportunidade

para aprofundar questões intrínsecas ao meu incômodo em relação ao tema. Dessa vez, os

Page 16: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

13

pensamentos rondavam os caminhos de uma problemática específica em relação à obra de

Carolina, que parecia romper padrões enunciativos e autorais de escritores da época. Ao

examinar jornais do período de lançamento de Quarto de Despejo, percebi uma insistência por

parte da mídia em uma interpretação dominante1 de Carolina como “favelada”. As designações

para Carolina presentes nesses documentos exibiam vestígios de um processo de significação

que insistia em qualificar e caracterizar Carolina na relação com a favela, como produto desta

– “uma favelada”.

Carolina, ao causar tantos desassossegos em mim, fez com que a minha atenção

se voltasse para entender qual a problemática que envolve o silenciamento de Carolina e sua

obra perante a maneira como a mídia interpretava ambos. Em agosto de 1960, a editora

Francisco Alves anunciava o surgimento de uma das autoras fundamentais no que tange à

literatura negra. Carolina Maria de Jesus, uma potência feminina que nunca se calou diante as

mazelas sociais, prenunciava tantas outras Carolinas e uma existência pouco revelada na

literatura: a realidade da favela. Ao publicar sua primeira obra, Quarto de Despejo: diário de

uma favelada, Carolina provocou alarde, pois seu diário aludia a uma realidade e, sobretudo, a

uma escrita e a um lugar de enunciação até então não reconhecidos socialmente, mas de suma

importância por questionar não apenas o modelo literário da época, mas, sobretudo, as bases

estruturais de uma formação social profundamente desigual, marcada pelo racismo, sexismo e

pela aversão e hostilidade à pessoa pobre. Mulher negra e pobre, Carolina extrapola o

convencional, caracterizado majoritariamente pelo cânone literário branco, e subverte toda a

lógica de produção do mercado editorial da época.

A autora passa a ocupar incansavelmente manchetes de jornais nacionais e

internacionais. Mulher negra, que elabora seu diário com base em sua experiência pessoal

enquanto moradora da favela do Canindé, a partir de um olhar até então não evidenciado em

uma obra literária, alvoraça uma mídia acostumada com uma literatura canônica produzida em

aparente harmonia com as “normas” linguísticas. Ao descortinar sentidos da favela que até

então não haviam sido abordados, quiçá reconhecidos socialmente, Carolina surge no mercado

editorial ao narrar sua vida cotidiana em cadernos “descobertos” e publicados pelo jornalista

Audálio Dantas, chamando a atenção da sociedade para questões até então ausentes em livros

de autores consagrados.

Quarto de Despejo, ao romper com os padrões do mercado editorial da época,

1 Compreendo que a produção de sentidos de Carolina como “favelada” é hegemônica dada a direção interpretativa

ideológica da época mobilizam. No entanto, embora seja dominante, esse sentido não pode ser considerado

homogêneo. Há uma heterogeneidade que se dá pelas brechas, pela falha e na quebra do ritual ideológico.

Page 17: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

14

revela uma outra perspectiva até então não interpretada pela mídia: mulher negra, mãe de três

filhos, moradora da extinta Favela do Canindé e com menos de dois anos de estudo. Esses

elementos fomentam um estranhamento a que a mídia e o mercado editorial não estavam

acostumados, já que os autores da época eram majoritariamente homens brancos e de classe

média. E as mulheres, notadamente brancas.

O presente trabalho é, então, fruto de uma somatória de inquietações acumuladas

e o cerne da pesquisa são os modos de dizer e significar Carolina Maria de Jesus e Quarto de

Despejo: diário de uma favelada no ano de lançamento da obra, em 1960. Nessa perspectiva,

parto dos seguintes questionamentos: como a mídia informativa interpreta Carolina Maria de

Jesus e sua primeira obra no ano de publicação de Quarto de Despejo? Na remissão às

condições de produção, como os processos discursivos desenham sentidos que se repetem e/ou

deslizam? Desse modo, ao levar em consideração a relação entre as designações para a autora

presentes em jornais daquele momento histórico, nas quais prevalecia processos de

identificação de Carolina como “a favelada”, pergunto sobre como são construídos

historicamente os sentidos para essas designações, percorrendo redes de memória que dispõem

ideologicamente sentidos para as mulheres negras pautados pelos discursos da escravidão e do

colonialismo.

Procuro responder essas questões à luz dos postulados teóricos e metodológicos

da Análise de Discurso, de orientação Francesa, evidenciados sobretudo nos pressupostos que

tangem a noção de acontecimento discursivo e memória para Pêcheux (2002; 2008), bem como

nos estudos de Eni Orlandi (2007) no que diz respeito aos gestos de interpretação. Deste modo,

objetivo investigar como o processo de significação, para autora e obra, retomam ou mantém

os sentidos por meio do funcionamento discursivo das manchetes de jornais, bem como as

designações que norteiam e conduzem interpretações para Carolina Maria de Jesus.

Como corpus, utilizo um conjunto de manchetes de jornais publicadas em 1960,

no lançamento de “Quarto de Despejo”. No que diz respeito ao momento de lançamento da

obra, as manchetes foram recortadas de jornais em circulação à época, encontradas no arquivo

da Biblioteca Nacional Digital. Desse modo, o material analisado é disposto em um arquivo

elaborado para tentar responder como as designações participam de processos de significação

da autora e de Quarto de Despejo tendo em vista suas condições de produção.

A partir do que foi exposto, esta dissertação está estruturada em três capítulos.

No primeiro capítulo, apresento as bases epistemológicas da Análise do Discurso, as quais

fundamentam essa pesquisa, a fim de compreender conceitos-chave importantes que a

Page 18: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

15

sustentam. Para isso, utilizei os pressupostos teóricos de Pêcheux (1995), bem como de Eni

Orlandi (2007), buscando problematizar o funcionamento dos gestos de interpretação

ensejados. Além disso, outros autores foram importantes para sustentar a reflexão, desde o

contexto de surgimento da AD à conceitos como o de de-significação.

No segundo capítulo, considero a construção do dispositivo teórico analítico em

que pontuo a noção de corpus, arquivo e o trajeto temático. Para isso, pormenorizo como se

deu a construção do dispositivo ao partir do trajeto de leitura pelos arquivos da Biblioteca

Nacional. No terceiro capítulo, explano as condições de produção no lançamento de Quarto de

Despejo. Na sequência, direciono a pesquisa para um processo que procuro designar como a

midiatização do acontecimento. Em seguida, busco apoio teórico em Zoppi-Fontana (2003)

para embasar as análises das designações em 1960, traçando reflexões sobre o nome próprio.

Por fim, me detenho na questão de estereótipo e, para isso, busco apoio em Glória França (2018)

para compreender o processo de estereotipagem.

Por fim, apresento um anexo com as manchetes de jornais que circularam em

1960 nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Embora nem todas sejam analisadas,

julguei pertinente documentar a pesquisa e possibilitar ao leitor verificar outras ocorrências

além das trabalhadas nas análises do corpus. O leitor poderá, ainda, constatar as recorrência de

designações como “favelada”, bem como a inversão do nome próprio.

Page 19: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

16

1 ANÁLISE DE DISCURSO E INTERPRETAÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar

tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu

quero escrever o livro, e vocês com estas cenas

desagradaveis2 me fornece os argumentos.

Carolina Maria de Jesus

Inicialmente, é preciso expor a conjuntura epistemológica de surgimento da

Análise de Discurso, doravante AD, posto que seus fundamentos fornecem a base teórica que

ancora esta pesquisa. A AD articula três áreas do conhecimento científico, a Linguística,

Materialismo Histórico e Psicanálise, as quais balizam seus conceitos desde seu surgimento, na

década de 60, na França, quando as contribuições e formulações iniciais de Pêcheux e seus

colaboradores evidenciaram a problemática do sujeito em relação ao sentido.

O que caracteriza a AD, desde o princípio, é o fato dela “considerar a (re)leitura

althusseriana de Marx e o desenvolvimento de Pêcheux do projeto de Althusser em uma teoria

materialista dos processos de significação atravessada por uma noção psicanalítica do sujeito”

(BALDINI, ZOPPI-FONTANA, 2013, p. 9). Nessa perspectiva, o sujeito é entendido não como

a origem do dizer, mas como efeito da relação intrínseca entre a linguagem e o sentido, sendo

esse originado na história e retomado por meio do funcionamento do interdiscurso. As

condições de produção (PÊCHEUX, 2010) e circulação de um discurso são constitutivas dos

sentidos e remetem à atualização de uma memória que pode reafirmar um já-dito e/ou produzir

deslocamentos.

Considerada como uma disciplina de entremeio (ORLANDI, 2007, p. 23), a

análise do discurso não se mobiliza entre as outras disciplinas, mas sim por meio da contradição

entre elas. Para Orlandi, as disciplinas de entremeio não soam como interdisciplinares tidas na

relação comum de uma pela outra. Pelo contrário, ela estabelece que o que determina o discurso

é a relação com sua exterioridade, ou seja, nas palavras da autora, “a AD se forma no lugar em

que a linguagem tem de ser referida necessariamente à sua exterioridade, para que se apreenda

2 As citações referentes à Carolina Maria de Jesus utilizadas nesta pesquisa respeitam fielmente o padrão

ortográfico da autora, tal como está escrito e impresso na 10° edição, da editora Ática, de Quarto de Despejo:

diário de uma favelada.

Page 20: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

17

seu funcionamento, enquanto processo significativo” (ORLANDI, 2007, p. 24).

Orlandi ainda postula que a AD é, na verdade, um tipo de antidisciplina ou

desdisciplina, uma vez que coloca

questões da linguística no campo de sua constituição, interpelando-a pela

historicidade que ela apaga do mesmo modo que coloca questões para as ciências

sociais em seus fundamentos, interrogando a transparência da linguagem sobre a qual

elas se assentam (2007, p. 25).

Assim, o que a AD indaga e introduz é a questão fulcral do sujeito e da situação

enunciativa, ao descentralizar o sujeito como supostamente a origem do dizer. Ao interrogar

possíveis contradições, a AD estrutura-se nesse entremeio, no espaço da contradição. É então a

partir dessa teoria de entremeio que mobilizaremos as análises desta pesquisa.

1.1 LÍNGUA, DISCURSO E EFEITOS DE SENTIDO

É importante ressaltar que, para a AD, tanto a questão da linguagem quanto a da

língua estão perpassadas pela não-transparência, incompletude e equívoco que engendram o

funcionamento do discurso. Isso quer dizer que tomo as manchetes dos jornais e as designações

nelas presentes em sua opacidade; procuro, a partir de uma análise da materialidade linguística,

chegar aos processos de subjetivação/identificação que constituem sentidos para Carolina e

Quarto de Despejo, ratificando para eles uma identidade em confluência com um processo de

estereotipagem.

Dito de outra maneira, ao operar uma análise linguística remeto ao que é próprio

da língua, posto que ela tem sua especificidade, isto é, uma ordem própria; no domínio da Análise

de Discurso, compreende-se que a língua possui uma autonomia relativa e é constituída pelo

equívoco. O funcionamento tanto da linguagem quanto da língua relaciona-se com a formação

ideológica haja vista que a ideologia estabelece a atualização e possibilidades da significação, na

medida em que o sujeito se submete a ela.

Assim, para a AD, o sentido está atrelado ao processo que o produz, uma vez

que ambos estão interligados por meio de um funcionamento ideológico. A noção de ideologia,

entendida aqui como um mecanismo que resulta em evidência (ORLANDI, 2020) tanto dos

sujeitos quanto dos sentidos, é condição para que sujeito e sentido existam, uma vez que “o

indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer” (ORLANDI,

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18

2020, p. 44).

A noção de discurso remete “a ideia de curso, de percurso, de correr por, de

movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do

discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2020, p. 15). O discurso é o que media a

relação entre o homem e sua inserção no mundo. Isto é, há uma dependência entre sujeito e

discurso, de modo que o primeiro é interpelado pelo segundo, por meio de um processo ideológico

que opera na língua e determina os sentidos.

Assim, uma leitura discursiva das manchetes de jornais deve estar atenta ao

funcionamento da língua, ou seja, ao modo como a ideologia determina sentidos através de efeitos

de exclusão e silenciamento decorrentes da construção discursiva da identidade de Carolina

enquanto sujeito socialmente discriminado em relação à cidade, ao gênero e à raça. Focalizo, em

particular, os processos de identificação para Carolina produzidos pelo funcionamento das

designações; coloco em relevo as contradições, as filiações de memória e os silenciamentos,

procurando mostrar como a mídia produz e reforça um processo de estereotipagem.

1.2 A TEORIA DA IDEOLOGIA E A INTERPELAÇÃO DO SUJEITO

A ideologia, fundamentada aqui nos preceitos da Análise de Discurso, é entendida

não como ocultação da realidade, mas como prática determinante das significações que opera na

relação entre sujeito e sentido. Dito com outras palavras, para se significar, o sujeito interpelado

pela ideologia esquece que os sentidos derivam do modo como a língua se inscreve na história e

cria a ilusão de que existe um “eu” que é detentor da origem do seu dizer. Entretanto, esse sentido

é um efeito de sentido já lá; nesse processo há, portanto, a produção da ilusão que o sujeito teria

acesso a tudo o que diz (controle sobre os sentidos) e seria origem desse dizer. Assim, “o sujeito

só tem acesso a parte do que diz. Ele é estruturalmente dividido, desde a sua constituição. A falta

o constitui” (ORLANDI, 1996, p. 28).

Althusser, principal referência de Pêcheux na elaboração da teoria dos processos

discursivos, apresenta sua definição de ideologia na obra Ideologia e aparelhos ideológicos do

Estado ao propor uma releitura de Marx. Segundo ele, “só existe ideologia pelo sujeito e para

sujeitos” (ALTHUSSER, 1980, p. 93). Ao trabalhar a questão da constituição do sujeito pela

ideologia, Althusser postula:

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19

[...] toda ideologia tem por função (é o que a define) “constituir” indivíduos

concretos em sujeitos. É neste jogo de dupla constituição que se localiza o

funcionamento de toda a ideologia, pois que a ideologia não é mais que o seu

próprio funcionamento nas formas materiais da existência deste funcionamento

(ALTHUSSER, 1980, p. 94).

Desse modo, nos interessa aqui aprofundar mais detidamente uma compreensão

do sujeito enquanto sujeito ideológico, uma vez que para a AD o sujeito é interpelado pela

ideologia. A evidência do sujeito e do sentido é efeito da interpelação pela ideologia, dado que

“não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante, a ideologia aparece como

efeito da relação necessária do sujeito com a língua e a com a história para que haja sentido”

(ORLANDI, 2020, p. 46). Assim, compreende-se que a ideologia estabelece a relação entre

linguagem e mundo uma vez que ela “intervém com seu modo de funcionamento imaginário”

(ORLANDI, 2020, p. 46).

Sobre essa questão, postula-se que é por meio da ideologia que o sujeito se

constitui, dado que

Pela interpelação ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por

seu lado, a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente

o apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo

efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do sujeito ser a origem do

que diz (ORLANDI, 2020, p. 46).

Para a autora, a interpelação em sujeito pela ideologia, dada sua inserção do

simbólico, resulta na mobilização tanto da memória, quanto do esquecimento, pois é justamente

por meio do funcionamento de ambos, em trabalho com a ideologia, que o sentido se produz

enquanto efeito. Magalhães e Mariani colocam que:

A interpelação produz assujeitamento e isso ocorre em qualquer época histórica, em

quaisquer que sejam as condições de produção, pois resulta da inscrição do sujeito no

simbólico e, ao mesmo tempo, produz como resultado que esse sujeito, afetado pelo

simbólico, expresse a sua subjetividade na ilusão de autonomia e de ser origem do seu

dizer (MAGALHÃES e MARIANI, 2010, p. 392).

É propício destacar a relevância do esquecimento no funcionamento da

linguagem enquanto processos ideológicos. É por meio do esquecimento que se cria a falsa

percepção de que o sujeito é a origem do seu dizer.

Com intuito de compreender a importância do esquecimento, é necessário inferir

sobre os esquecimentos número um, da ordem da ideologia, e número dois, referente à

enunciação. Com base no que propõe Orlandi (2020, p. 33), o esquecimento número um está

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20

associado a ilusão do sujeito estar na origem do seu dizer. No funcionamento da ideologia, ao

falar, o sujeito retoma um sentido já existente e, nessa retomada, “esquece” que o sentido

preexiste, já-lá. Para Orlandi, os discursos circulam antes mesmo de nascermos; pressupõe-se

então que somos inseridos em processos de significação já existentes. A autora ainda acrescenta

que “embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam como originando-se em nós:

eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que

significam e não passam pela nossa vontade” (ORLANDI, 2020, p. 33).

Para Magalhães e Mariani, o sujeito é entendido como aquele que, além de não

controlar ou ser a origem do seu dizer, tem relação com as marcas do Outro, posto que o seu

dizer se funde ao dizer do Outro, mas que essa relação é dificilmente percebida por ele. O

sujeito, conforme expõem as autoras (2010, p. 404), “não se percebe constituído pelo Outro,

por essa rede de significantes que o constituiu. Ou seja, nós nos pensamos espontaneamente

como origem de nossos pensamentos, atos e palavras”.

O esquecimento número dois, por sua vez, é o que acontece no nível da

enunciação. Compreende-se que esse esquecimento, conforme postula Orlandi, indica que os

dizeres sempre podem ser outros de maneira que para falarmos x, não falamos y. Entretanto,

não nos damos conta que há diversas formas de dizer; esse esquecimento cria a ilusão de que

só é possível dizer x de uma única maneira, com determinadas palavras. Ela ainda ressalta que

esse esquecimento é parcial e semiconsciente, pois “muitas vezes voltamos sobre ele,

recorremos a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É

o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não

é indiferente aos sentidos” (ORLANDI, 2020, p. 33).

Segundo Bocchi (2019), desde a perspectiva da AD, consentir na interpelação

do indivíduo em sujeito pela ideologia nos possibilita afastar a sombra do voluntarismo; “a AD

remete para uma compreensão da linguagem como prática simbólica que se constitui pela via

do significante, em que se considera os processos de constituição do sujeito” (p. 107). Para essa

autora, não é, portanto, do indivíduo que trata a AD, mas de um efeito-sujeito resultante de

processos de interpelação-identificação com implicações nos modos de se compreender a noção

de interpretação, conforme veremos no tópico que se segue.

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21

1.3 GESTOS DE INTERPRETAÇÃO SOBRE CAROLINA

A Análise do Discurso, ao propor o exame das condições de produção, abre margem

para questões que atravessam o discurso, como a noção de interpretação teorizada por Orlandi (2007).

O discurso, entendido como “efeito de sentidos entre locutores” (PÊCHEUX, 2010) é o objeto central

de estudo da AD, que visa compreender como os sentidos se constituem a partir de gestos de

interpretação no simbólico. À luz teórica de Orlandi, a AD é “uma ciência da interpretação”

(ORLANDI, 2013, p. 3), dado que a interpretação opera na afluência do real dos sentidos com a

linguagem, a memória e historicidade da materialidade, de modo que o sentido não é único, mas

sempre pode ser outro.

Assim, a interpretação encontra-se articulada à manifestação da linguagem, uma

vez que os objetos simbólicos podem ser significados de maneiras diversas; o sentido tem sua

especificidade de modo aberto. No entanto, é o gesto de interpretação que interroga a direção do

sentido, uma vez que “O gesto de interpretação se dá porque o espaço simbólico é marcado pela

incompletude, pela relação com o silêncio. A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar

próprio da ideologia e é “materializada” pela história” (ORLANDI, 2007, p. 18).

O trabalho da interpretação não se limita a uma formulação interpretativa única,

não estaciona em uma só direção possível. O analista de discurso interroga possíveis caminhos,

uma vez que ele não interpreta, mas “trabalha (n)os limites da interpretação” (ORLANDI, 2020,

p. 59); ele mostra, por meio de seus procedimentos, os gestos de interpretação que direcionam os

sentidos. Ainda, considero que o movimento do gesto de interpretação, face à abertura dos

processos de significação (ORLANDI, 2013), permite trabalhar as condições de produção dos

objetos simbólicos, o como os sentidos são produzidos e significados.

Neste ínterim, examino os gestos de interpretação que direcionam os sentidos

constitutivos das designações que significam Carolina e Quarto de Despejo, com o intuito de

verificar efeitos de estigmatização, silenciamento, estereotipagem e/ou deslocamentos

decorrentes desses processos discursivos. O gesto de interpretação faz funcionar a memória

discursiva de modo a ratificar determinados sentidos, inscrevendo para tanto posições-sujeito

específicas. Ou seja, o funcionamento do discurso jornalístico fornece uma interpretação

determinada sobre Carolina, por meio de designações que dão a ver processos de identificação.

Assim, embora os gestos de interpretação não sejam estagnados e únicos,

abrindo os processos de significação para sentidos outros, eles não ocorrem de maneira

arbitrária. Se por um lado a mídia mobiliza sentidos ao noticiar o lançamento de Quarto de

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22

Despejo, por outro também os estabiliza a partir de pré-construídos, uma vez que oferece um

caminho de interpretação aos leitores, que são direcionados a significar Carolina, no momento

do lançamento de Quarto de Despejo, na relação com a periferia, no espaço urbano; “a

favelada”, “catadora de reciclagem” etc., nomes que reforçam um certo lugar para essa mulher

negra no território, especificam para ela sentidos atrelados a uma significação especifica acerca

da favela. Tais designações engendram uma narrativa que condiciona o olhar do leitor para

sentidos estabilizados a partir dessas interpretações.

Se a incompletude atesta a condição da linguagem de que a tríade sujeito, sentido

e discurso não são estanques, é essa condição, de serem sempre passíveis de deslocamentos,

que garante o movimento, a transformação e insurgência de novos sentidos. Isso porque, de

acordo com Orlandi (2020, p. 35), ao levar em consideração a língua suscetível ao equívoco, a

possibilidade da ruptura pelo real da história e a falha do ritual ideológico dá abertura para que

o sujeito se signifique diferentemente, garantindo assim a possibilidade de movimento dos

sentidos.

Orlandi articula a problemática da incompletude com a relação entre paráfrase e

polissemia. Para ela, sujeito e sentido “estão sempre se fazendo, havendo um trabalho contínuo,

um movimento constante do simbólico e da história. É a condição de existência dos sujeitos e

dos sentidos: constituírem-se na relação tensa entre paráfrase e polissemia” (ORLANDI, 2020,

p. 35). Embora os processos parafrásticos busquem a estabilização da significação, sujeito e o

sentido sempre podem ser manejados de formas distintas, comportando-se como outros, isso se

dá pelo modo como a língua os afeta, permitindo que se inscrevam no simbólico.

[...] a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem

sustentação no saber discursivo, e a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que

ela é a própria condição de existência dos discursos pois se os sentidos – e os sujeitos

– não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer.

A polissemia é justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no

mesmo objeto simbólico (ORLANDI, 2020, p. 36).

Assim, para a autora, “todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão

entre processos parafrásticos e processos polissêmicos” (ORLANDI, 2020, p. 34). Essa

especificidade garante que se possa trabalhar o discurso entre o mesmo e o diferente. Enquanto

a paráfrase trabalha nos processos da memória, daquilo que se mantém, a polissemia desloca

os sentidos de modo a produzir uma ruptura nos processos de significação, possibilitando a

manifestação de diferentes sentidos.

No cotejo com o corpus de pesquisa, observa-se que o modo como a mídia

Page 26: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

23

informativa interpreta Carolina no momento de lançamento de Quarto de Despejo é regulado,

sobretudo, por processos parafrásticos; nas manchetes de jornais em circulação nesse momento,

repete-se algo que se mantém e que condensa sentidos para Carolina a partir da designação

“favelada”. Entretanto, é preciso destacar que os sentidos de favelada não se encontram colados

ao nome, mas são constituídos por processos ideológicos que significam a favela, em 1960, a

partir de vestígios de uma política higienista de organização das cidades brasileiras difundida

no Brasil desde o final do Séc. XIX e início do XX, a qual determina para os corpos

considerados “inadequados”, corpos pobres e sobretudo negros, espaços de segregação e

divisão que se materializam na linguagem. A ideologia higienista encontra-se no cerne de

formação das favelas e está atrelada à intervenção na ordem das cidades para impor disciplina

das condições de vida por meio da higiene pública. Em nome do progresso, ela disciplina

espaços e corpos, tece “para a cidade um mapa esquadrinhado por relações sociais desiguais,

nas quais impera o sexismo e o racismo” (BOCCHI, 2018, p. 223).

Em contrapartida, a polissemia atesta um deslocamento, verificado nas análises

do momento do centenário, quando novas formas de dizer Carolina encontram condições para

serem formuladas e quando posições-sujeitos e lugares enunciativos interditados em 1960

ganham espaço, inclusive na mídia. Observa-se, nos recortes que serão examinados no terceiro

capítulos desta dissertação, designações como “a escritora” sendo formuladas, como vemos em:

“Carolina de Jesus foi a escritora que mais vendeu livros no Brasil”. Ou as designações

presentes em: “Luz negra. Carolina Maria de Jesus será a homenageada da edição deste ano da

Flink”, onde Carolina é designada “Luz negra” e “a homenageada”, num claro movimento de

reconhecimento de seu mérito e de seu trabalho como escritora. A formulação de Carolina na

relação com a favela não desaparece. Entretanto, o nome “favela” e seu derivado “favelada”

passam a significar diferentemente.

1.4 DITOS, NÃO-DITOS, SILÊNCIOS E SILENCIAMENTOS

Com base nos pressupostos de Orlandi (2007), é preciso salientar a compreensão

do discurso a partir da noção de silêncio. Ao considerar que o dito é também um não-dito, isto

é, que ao manifestar determinado enunciado deixa-se de evocar outros, abrimos espaço para

uma problematização do silêncio e a sua relação com o sentido.

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24

Em sua teorização sobre o silêncio, Orlandi estabelece a diferenciação entre o

silêncio fundador e as políticas do silêncio. Para ela, o silêncio fundador se apresenta como

imprescindível, ou seja, necessário, já que confere movimento aos sentidos e que “sempre se

diz a partir do silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 23). Segundo a autora, “as próprias palavras

transpiram silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 11):

O silêncio é assim, a “respiração” (o fôlego) da significação, um lugar de recuo

necessário para que possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do

possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que permite

o movimento do sujeito (ORLANDI, 2007, p. 13).

Segundo ela, o silêncio opera em duas instâncias - a primeira, nas próprias

palavras, e a segunda no silenciamento, que diz respeito ao fato de que colocar em silêncio pode

evocar sentidos outros, tendo em vista que as palavras “produzem silêncio, o silêncio fala por

elas, elas silenciam” (ORLANDI, 2007, p. 14). As palavras carregam em si os sentidos do dito,

já-dito e não-dito sem esquecer do fato de que o silêncio, no interior da linguagem é um não-

dito que significa. Ou seja, o silêncio não pode ser entendido aqui como algo de ordem restritiva,

pelo contrário, ele é carregado de historicidade; o silêncio significa.

Acerca do silêncio fundador, é preciso explorar a duplicidade da palavra

fundante que, nos dizeres de Baldini (2011, p. 135), pode ser compreendido “como aquilo que

funda e como aquilo que dá fundamento, sustentação”. Isso permite entender, então, que o

silêncio fundador é aquele que

Atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido sempre pode

ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais importante nunca se diz, todos esses modos

de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é ‘fundante’

(ORLANDI, 2007, p. 14).

Se por um lado o silêncio fundador apresenta um modo próprio de atuar, posto

que ele é entendido “como o não-dito que é a história, e que, dada a necessária relação do

sentido com o imaginário, é também função da relação (necessária) da língua e ideologia”

(ORLANDI, 2007, p. 22), por outro a política do silêncio atua entre o dito e não-dito e se

caracteriza “pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis,

mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada” (ORLANDI, 2007, p. 73).

Para Orlandi (2007, p. 73), essa distinção acontece porque “a política do silêncio

produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não

estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo”. Assim, nosso interesse aqui,

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25

para além da noção de silêncio fundador, é compreender a política do silêncio, a qual atua em

duas instâncias: silêncio constitutivo e silêncio local.

No que diz respeito à política do silêncio, Orlandi estabelece que o silêncio

constitutivo se caracteriza pelo próprio trabalho de recortar, restringir, dividir e disciplinar os

sentidos; em que se diga algo, outras coisas deixam necessariamente de ser ditas. Para a autora,

trata-se do “mecanismo que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para

poder dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74).

Assim, ao recortar e restringir as designações de/para Carolina e Quarto de

Despejo, os jornais estabelecem gestos de interpretações que jogam com o silêncio constitutivo,

interditando determinados sentidos. Nesta pesquisa, o silêncio constitutivo se dá a ver nas

formulações na medida em que as manchetes dos periódicos do ano de 1960 não dizem Carolina

como autora, mas como “favelada”. Podemos entender que o silêncio constitutivo opera nas

manchetes de jornais impedindo que designações como “autora” e “escritora” sejam atribuídas à

Carolina, negando a ela ocupar esses lugares nessa formação discursiva.

Desse modo, entendo que não há espaço, nessa discursividade, para nomear

Carolina como escritora; ela é impedida de ocupar essa posição, não por efeito de censura,

entendida como a manifestação mais visível da política do silêncio, mas como resultado de um

processo histórico ideológico que se materializa como silêncio constitutivo. Diferente da

censura, o funcionamento do silêncio constitutivo é de difícil apreensão, posto a opacidade que

lhe é própria.

Por essa via, compreendo que a materialidade das manchetes de jornais

examinadas neste trabalho evidencia questões relativas ao silêncio. As marcas linguísticas nelas

presentes remetem às designações utilizadas para referirem Carolina Maria de Jesus. As

manchetes - entendidas aqui como uma materialidade discursiva que possui modo próprio de

formulação, constituição e circulação (ORLANDI, 2020) - conduzem o olhar do leitor,

direcionam sua interpretação do início ao fim do texto. Depreende-se que o leitor é convocado

para um dado lugar de interpretação e assume um dado sentido.

Segundo Zoppi-Fontana, as designações, entendidas como capazes de produzir

determinado efeito de sentido e não outro, implicam processos instáveis dado que são

“produzidas pelo cruzamento de diferentes posições de sujeito, a partir das quais instala-se um

sentido, apagando outros possíveis/dizeres” (ZOPPI-FONTANA, 2003, p. 203). Ainda nos

dizeres da autora, os processos de designação:

Funcionam no texto como indícios dos pontos de estabilização das relações de

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26

referência no interdiscurso, sendo reconfiguradas no acontecimento enunciativo a

partir do embate das condições de produção sobre a língua (enquanto estrutura formal

capaz de equívoco na história) e sobre a memória (enquanto corpo sócio-histórico de

traços discursivos que se constituem em espaço de estruturação, de regularização de

sentidos) (ZOPPI-FONTANA, 2003, p. 253).

O modo como as designações referentes à autora são empregadas constrói um

percurso de leitura e inscreve um efeito-leitor, em decorrência das projeções imaginárias que

constituem as condições de produção. Ao se valer de determinadas designações, as quais negam

à Carolina Maria de Jesus uma posição de autoria, as formulações constitutivas das manchetes

dos jornais conduzem interpretações.

Em outras palavras, ao mobilizar determinadas escolhas linguísticas e não

outras, essas manchetes evidenciam o silêncio operando entre o dito e não-dito nas palavras

escolhidas. O funcionamento linguístico das designações utilizadas nas manchetes de jornais

dão a ver significações estabilizadas, que se mantém no processo de interpretação para Carolina

e sua primeira obra, Quarto de Despejo. Entretanto, como destaca Zoppi-Fontana (2003), esse

processo pode ser reconfigurado pelo acontecimento enunciativo, conforme mostrarei nas

análises que compõem o último capítulo desta dissertação.

1.5 MEMÓRIA, EFEITO DE PRÉ-CONSTRUÍDO E DE-SIGNIFICAÇÃO

A memória, na perspectiva da Análise de Discurso, pode ser pensada a partir de

três noções fundamentais para sua compreensão. São elas: a) o interdiscurso ou memória

discursiva; b) a memória de arquivo ou memória institucional; c) a memória metálica.

A primeira delas é a que resvala no interdiscurso ou memória discursiva e diz

respeito ao “saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela

se constitui pelo já-dito que possibilita dizer” (ORLANDI, 2020, p. 64). Essa memória decorre

do esquecimento que faz com que ao falarmos, esquecemos dos sentidos já-lá; ela manifesta a

sensação de que o sentido é criado no próprio sujeito, a ilusão do sentido de origem, uma vez que,

para as palavras significarem é preciso que elas já se signifiquem antes. Nas palavras de Zoppi-

Fontana, a memória discursiva “é o espaço dos efeitos de sentido que constituem para o sujeito

sua realidade, enquanto representação imaginária (e necessária) da sua relação com o real

histórico, no qual ele está inserido” (ZOPPI-FONTANA, 2015, p. 168).

Nas palavras de Pêcheux, “algo fala antes, em outro lugar, independentemente”

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27

(PÊCHEUX, 1999, p. 64) e cria a ilusão de que o sujeito é a origem do dizer quando, na verdade,

ele faz a retomada e atualização de um sentido já existente, um já-dito. Há, portanto, um

esquecimento que regula a memória discursiva, uma vez que ela é “o saber discursivo que torna

possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do

dizível, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2020, p. 29)

A segunda noção está no âmbito da memória de arquivo ou memória

institucional. É por meio dessa memória que as Instituições, compreendidas aqui como

Aparelhos de Estado, como por exemplo, a escola, a Igreja, a mídia, entre outras, realizam o

processo de arquivamento e consignação do que uma sociedade deve lembrar; “é a memória

que não esquece: é a que se institucionaliza e é arquivada” (ORLANDI, 2014, p. 6).

Por último, a memória metálica, responsável pela significação que circula

através das tecnologias de modo repetido e reproduzido; é aquela que mantém seu

funcionamento por meio das máquinas, ou seja, “da informatização, da digital, a da informação

de massa: a que serializa, repete na horizontalidade, sem se historicizar. Memória descartável”

(ORLANDI, 2014, p. 3).

As memórias discursiva, institucional e metálica comportam-se de modos distintos,

mantendo diferentes relações com o esquecimento3 e acarretam diferenças em termos do circuito

de constituição, formulação e circulação, afetando a função-autor e o efeito-leitor. Isto porque

qualquer forma de memória tem uma relação necessária com a interpretação (e, consequentemente,

com a ideologia.) (ORLANDI, 2006, p. 5). Assim, embora as memórias institucional e metálica

sejam relevantes para a problematização da construção do corpus de pesquisa, destaca-se no

funcionamento das designações a memória discursiva; é dela que tratarei com maior rigor,

destacando sua relação com o silêncio constitutivo e com os processos de de-significação

trabalhados por Orlandi (1999).

Em “Maio de 1968: os silêncios da memória”, Eni Orlandi (1999, p. 59) parte

do fato de que “a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não-ditos, de

sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos”. Compreende-se, então, que falar em

memória é também articular a relação existente com as noções de esquecimentos e de silêncio,

mas também de interpretação, ideologia e pré-construído.

A noção de pré-construído problematiza as construções prévias e anteriores ao

discurso, e que funcionam como aquilo que fala antes, em outro lugar e independentemente. Ou

3 Para uma compreensão dos silêncios de silenciamentos constitutivos da memória de arquivo ver: BOCCHI, Aline

Fernandes de Azevedo. O arquivo médico e seus restos: corpos femininos e práticas de resistência. Entremeios:

Revista de Estudos do Discurso, v. 19, jul.-dez., 2019.

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28

seja, o pré-construído é um elemento que, ao ter relação com a exterioridade dos enunciados,

ressoa como um efeito construído anteriormente e é estruturado no interdiscurso, na memória.

Dessa maneira, o pré-construído funciona como um já-dito, um discurso anterior que retorna

no enunciado.

Segundo Pêcheux (1995), o pré-construído tem como característica a separação

fundamental entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pré-existência desse último;

há aí uma “discrepância” em que o sujeito encontra com o impensado de seu pensamento,

“impensado este que, necessariamente, pré-existe ao sujeito” (p. 93). Essa discrepância entre

“o que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente” (p. 89), e o que está contido em

uma formulação foi o que levou Paul Henry a propor o termo ‘pré-construído’ (PÊCHEUX,

1995, p. 89).

Em Semântica e Discurso, Pêcheux estabelece uma importante relação entre o

efeito de pré-construído e as designações, fazendo inclusive reflexões acerca do funcionamento

do nome próprio, que do ponto de vista jurídico e inalienável identifica uma pessoa por

referência à filiação. Voltarei a essa questão mais à frente, ao abordar o funcionamento do nome

próprio nas manchetes analisadas.

Por ora, irei me deter ao funcionamento do silêncio constitutivo nas designações

articulado aos processos de de-significação de sentidos. Em um texto já mencionado sobre maio

de 1968, Orlandi (1999) postula que “falar é esquecer. Esquecer para que surjam novos

sentidos, mas também esquecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis, mas foram

estancados em um processo histórico-político silenciador. São sentidos que são evitados, de-

significados” (1999, p. 61-62).

Para a autora, os sentidos de-significados são os sentidos silenciados, omitidos

na rede de memória, excluídos para que não haja um já-dito; de-significação é, portanto, aquilo

“o que está fora da memória não está nem esquecido nem foi trabalhado, metaforizado,

transferido. Está in-significado, de-significado” (ORLANDI, 1999, p. 66). Não são processos

em que a memória falha, mas processos em que operam faltas a colocar para fora do discurso

aquilo que poderia ser significado.

Sustento que os sentidos que ratificam uma mulher negra, moradora de uma favela

e que pouco frequentou a escola como escritora estão de-significados, postos fora da memória, por

um longo e intenso processo de segregação e racismo que se inicia no período escravocrata e

perpassa toda a história do Brasil, com rastros visíveis ainda hoje.

Como argumenta Barbosa Filho (2016) ao investigar o trabalho de rua na

Page 32: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

29

Salvador oitocentista, particularmente no quadro das insurreições que tomaram conta da Bahia,

embora protagonizassem o espaço das ruas os negros “ganhadores” foram interditados de

protagonizar o espaço da palavra: escaparam à autoria do arquivo, não tiveram lugar de fala no

jogo jornalístico, tiveram suas falas consignadas pelas palavras de outrem.

Da mesma forma, o protagonismo de Carolina é confiscado e seu livro

desmerecido; a escritora é reduzida ao estereótipo da favelada, pelo jogo de identificações

imaginárias que funcionam nas designações, apagando seu nome próprio, sua assinatura, sua

legitimidade como autora. Entretanto, como alerta Barbosa-Filho, o real da história faz o

silêncio, o não-dito aparecer nas lacunas. O acontecimento de lançamento de Quarto de Despejo

cava um buraco na memória, desestabiliza processos de significação, de modo que outros

sentidos tornam-se possíveis, como veremos no decorrer das análises.

Considero que Quarto de Despejo produz um “lugar de inscrição subjetiva para

uma fala historicamente silenciada, reinscrevendo na história memória feridas, precárias, de um

passado de-significado” (BOCCHI; RODRIGUES, 2020, p. 341). Embora tematize a periferia,

configurando um discurso sobre o cotidiano da favela do Canindé, o diário de Carolina

textualiza modos de subjetivação frente à fome, à miséria e ao preconceito que o funcionamento

do discurso midiático tenta obturar no processo de estereotipagem.

Page 33: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

30

2 A CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO TEÓRICO ANALÍTICO

Aqui todas impricam comigo. Dizem que falo muito

bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico

nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos

os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

Carolina Maria de Jesus

Como menciono na introdução deste estudo, o corpus desta pesquisa foi

construído a partir de um trabalho de arquivo que resultou em um conjunto de manchetes de

jornais publicadas em 1960, no lançamento de “Quarto de Despejo”. No que diz respeito ao

momento de lançamento da obra, as manchetes foram recortadas de jornais em circulação à

época, encontradas no arquivo da Biblioteca Nacional Digital.

Neste capítulo, descrevo em pormenores os passos de construção do dispositivo

teórico-metodológico da pesquisa, bem como os conceitos e noções chave que me permitiram

gestos de leitura do/no arquivo, tais como a própria noção de arquivo, erigida nos anos 1980, a

qual possibilitou uma profícua articulação entre os campos da Linguística e da História no

âmbito do discurso, bem como a noção de trajeto temático.

2.1 TRAJETOS DE LEITURA NO ARQUIVO DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL

As manchetes e matérias4 retiradas do site da Biblioteca Nacional consistem em

um material informativo veiculado em jornais no período de agosto a dezembro de 1960, e que

indiciam os modos com que a imprensa designava Carolina Maria de Jesus, atribuindo a seu

nome uma relação com o espaço urbano, particularmente a favela, elemento que contrastava

4 Embora o foco das análises seja as manchetes, elas não serão destacadas do contexto das matérias. Entendo, a

partir da perspectiva discursiva, que é preciso situar e remeter as manchetes à notícia ou reportagem da qual ela

faz parte, visando a compreensão dos efeitos de sentido ali produzidos. A manchete de jornal é um recorte

interpretativo do texto jornalístico que visa conduzir o olhar do leitor em uma direção de sentidos ideologicamente

imposta. Dessa forma, confrontar as designações presentes nas manchetes com seus respectivos textos mostra-se

fundamental para a compreensão das formulações ali presentes.

Page 34: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

31

com outros escritores da época.

Ao optar por pesquisar as manchetes do ano de 1960 no site da Biblioteca

Nacional, levei em consideração sua importância histórica; trata-se de um arquivo que remete

há mais de 200 anos e reúne cerca de nove milhões de itens em seu acervo. Por apresentar um

panorama abrangente de arquivos históricos, a Biblioteca Nacional permite explorar um acervo

a partir de periódicos que foram importantes para a construção da história oficial brasileira5.

Nessa perspectiva, validei que parte do corpus seria recortado do site da Biblioteca Nacional,

posto a diversidade de periódicos brasileiros ali consignados, o que possibilitaria um vislumbre

das relações ideológicas do período em que as manchetes foram veiculadas.

Em face à noção de arquivo, é preciso também mobilizar aqui a noção de arquivo

digital, dado que é por esse caminho que a montagem do corpus e os trajetos de leitura desta

pesquisa acontecem. É da perspectiva de Orlandi (2007) que suscitamos os preceitos de arquivo

digital entendido, segundo a autora, como memória metálica. Isto é, o funcionamento de um

arquivo digital acontece por uma memória metálica que “não falha e se apresenta como

ilimitada em sua extensão, só produz o mesmo, em sua variação, em suas combinatórias”

(ORLANDI, 2007, p. 16).

Dito em outros termos, ao garantir a circulação do arquivo de modo repetido, a

memória metálica retoma uma rede de já-dito; essa repetição ratifica sentidos de totalidade e

completude para o arquivo. Para Orlandi (2006, p. 5), o funcionamento da memória metálica

acontece de maneira horizontal, “não havendo assim estratificação em seu processo, mas

distribuição em série, na forma de adição, acúmulo: o que foi dito aqui e ali e mais além vai-se

juntando como se formasse uma rede de filiação e não apenas uma soma”.

Desse modo, os arquivos digitais comportam uma evidência. Isto é, eles

supostamente parecem ser completos, abranger todos os sentidos possíveis. No entanto, essa

ilusão de que o arquivo digital possa tudo guardar é construída discursivamente. O arquivo, ao

agrupar documentos, permite reunir em um só local um conjunto de materiais e cria a ilusão de

que os documentos ali consignados remetem à realidade; apaga-se o fato de que qualquer

arquivo comporta falhas e furos, lacunas e esquecimentos, sendo, portanto, um recorte de um

dado momento ou conjuntura. Nesse quesito, é de grande importância levar em consideração

que a aparente completude é, na verdade, um efeito da evidência. Assim, como aponta Dias

(2015, p. 974), cuido para “não tomar como uma evidência do arquivo o resultado da busca,

5 Digo história oficial pois considero, com Bocchi (2019, p. 80), que “o arquivo abriga também faltas, furos e

restos ignorados e esquecidos de memória. O modo discursivo de apreensão do arquivo impõe, então, considerar

a falta como constitutiva do próprio arquivo, de sua materialidade [...]”.

Page 35: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

32

porque ela não é mais do que dados em uma relação algorítmica numa memória metálica”.

Os trajetos de leitura nos arquivos da Biblioteca Nacional partiram de buscas no

site da Hemeroteca Digital, onde é possível realizar pesquisas de três modos distintos: pelo

nome do periódico, pelo período ou pelo local da publicação. Para esta pesquisa, optei pelas

buscas com base no período de circulação dos jornais, isto é, selecionei o período da década de

1960. Essa escolha, de mobilizar o período e não o periódico ou o local se deu, sobretudo,

devido ao objetivo desta pesquisa de compreender o funcionamento das designações acerca de

Carolina em manchetes de jornais no momento de lançamento de Quarto de Despejo e não

restringir apenas a jornais e cidades específicas.

Embora tenha sido selecionado o modo “período”, o que apresentou resultados de

vários Estados, em um segundo momento optei por me deter apenas às análises de manchetes de

São Paulo. Isso porque a incidência das designações nessa localidade apresentava semelhanças

com as designações que apareciam na imprensa dos outros Estados. Ao selecionar São Paulo

como recorte, levei em consideração o fato de ser o Estado em que Carolina Maria de Jesus

morava, a favela do Canindé. Além disso, foi também na capital paulista que aconteceu o primeiro

lançamento de Quarto de Despejo. Em anexo, ao fim desta pesquisa, reuni recortes dos três

Estados (São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná) que mais noticiaram o lançamento com o intuito de

documentar o estudo e verificar a incidência das designações.

Como mencionado em um outro momento, as manchetes da década de 60 foram

retiradas do site da Biblioteca Nacional. Para isso, selecionei a opção “período” em que realizei

as buscas com base em frases, e não em palavras-chave, uma vez que os resultados oferecidos

pelo site poderiam ser mais exatos. Segundo o site, havia 2416 periódicos em 20 localidades.

Com isso, a frase que usei para pesquisar as manchetes foi, em um primeiro momento,

“Carolina Maria de Jesus Quarto de Despejo”. No entanto, os resultados mostraram-se

desassociados à pesquisa, já que as buscas coletavam informações imprecisas e arbitrárias desde

nomes de Carolina ou Maria à Quartos de Despejo como cômodo de casa para ser alugada.

Ao pesquisar apenas o nome da autora, o site apresentava 64 periódicos, com

buscas em todos os estados brasileiros, e 967 ocorrências. No entanto, esses números não

correspondiam apenas ao ano de 1960 e sim ao período de 1960 a 1969, o que demandou uma

6 Nas configurações da Hemeroteca Digital Brasileira, ao selecionar a década de 60, aparecem 20 localidades e

247 periódicos. No entanto, deve-se desconsiderar dois locais que não se referem aos estados do Brasil:

Georgetown, no Estados Unidos, e Madri, na Espanha. Ambos com um periódico cada. Além disso, aparece como

local a opção X1 com quatro periódicos: Estrela do Minho, Filme & Cultura 1, Hochzeits Zeitung e O Estudante.

Para esta pesquisa desconsideramos essas localidades e periódicos já que não há ocorrência do nome da autora e

sua obra. Consideraremos então 17 localidades e 241 periódicos.

Page 36: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

33

filtragem manual para selecionar apenas o material publicado em 1960. Embora o jornal Última

Hora, no Paraná, tenha apresentado mais ocorrências, com 94 resultados, os jornais do Estado

do Rio de Janeiro foram os que mais noticiaram Carolina e o lançamento de Quarto de Despejo,

totalizando, dos 82 periódicos da época, 32 jornais com 580 ocorrências. No estado de

lançamento, em São Paulo, dos 22 periódicos apenas 11 noticiaram, totalizando 160

ocorrências. Já em Minas Gerais, no estado em que Carolina nasceu, dos 64 jornais apenas 5,

com 26 ocorrências, veicularam notícias sobre autora e obra.

A tabela abaixo ilustra quais Estados brasileiros veicularam o nome de Carolina

Maria de Jesus e o lançamento de Quarto de Despejo, bem como o número total de periódicos

por estado e a quantidade deles que veicularam notícias sobre obra e autora e, por fim, a

quantidade de ocorrências nesses jornais. Vale a pena lembrar que o número de ocorrências

total não se refere apenas ao ano de lançamento, mas sim ao período de 1960 a 1969 que é

disponibilizado, por década, no acervo digital da Biblioteca Nacional.

Tabela 1 – Relação de veiculação

Fonte: elaborado pela autora, 2020.

Além das buscas anteriores, procurei por “Quarto de Despejo” e os resultados

eram demasiados e imprecisos, já que se relacionavam também, e sobretudo, a aluguéis de casas

com quartos e/ou quartos de despejo. Resolvi inserir “Lançamento” na busca anterior e os

Estado Acervo Total Acervos Ocorrências

Rio de Janeiro 82 32 580

São Paulo 22 11 160

Paraná 9 4 120

Minas Gerais 64 5 26

Pernambuco 4 2 44

Distrito Federal 1 1 13

Santa Catarina 17 2 10

Rio Grande do Sul 13 3 6

Rio Grande do Norte 2 1 3

Amazonas 2 1 3

Acre 11 1 1

Mato Grosso 3 1 1

Total: 12 230 64 967

Page 37: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

34

resultados, dez ocorrências em oito periódicos, já referiam Carolina Maria de Jesus.

Ainda interessada nas buscas e nos resultados obtidos anteriormente, pesquisei

o nome da autora associado à “Escritora” e também “Favelada”. Obtive resultados, mas havia

poucas ocorrências, sendo que apenas onze periódicos traziam dezoito ocorrências da frase

“Carolina Maria de Jesus Escritora” enquanto quatorze jornais elucidavam dezenove

ocorrências da frase “Carolina Maria de Jesus Favelada”.

No entanto, é necessário ressaltar que as ocorrências com o termo “Escritora”

mostravam resultados associados às designações de favelada ou ainda “da favela”, “ex-

favelada” e “humilde”. Desses resultados obtidos, pude notar que, das dezoito ocorrências,

apenas duas não associavam Carolina a esses nomes. Uma delas, veiculada no jornal Última

Hora, no Paraná, não tratava sobre a autora e apenas citava o seu nome como “escritora e agora

cantora”, além disso, o ano de publicação foi no ano seguinte ao lançamento da obra. A outra

ocorrência, no jornal Diário da Noite, de São Paulo, não apresentava Carolina Maria de Jesus

como escritora, nem como favelada, mas como cronista. Essa ocorrência, datada de 1962, assim

como a anterior, também não foi publicada no ano de lançamento da obra.

2.3 O CORPUS E O ARQUIVO: UMA PROBLEMÁTICA DISCURSIVA

Ao selecionar como corpus as manchetes de 1960, nos arquivos da Biblioteca

Nacional Digital, é pertinente mencionar que o trajeto de leitura percorrido nessa plataforma se

assenta nas noções de corpus e arquivo.

Para AD, a noção de corpus resvala em sua relação associada, e não separada, das

condições de produção dos discursos. Para Dias (2015, p. 972), a questão do corpus diz respeito

a “um conjunto de formulações produzido pelo próprio processo de interpretação do discurso, no

confronto com o arquivo”. Dito em outras palavras, à luz teórica da autora, com embasamento

em Pêcheux, o corpus resulta do cotejamento de interpretação e descrição, pela via de um

batimento entre ambos. Em síntese, o corpus aqui é o que “resulta de um trabalho de leitura de

arquivo, cujo nó central é a relação entre língua e exterioridade, uma remetendo ao jogo, ao

equívoco, e a outra, aos efeitos linguísticos materiais na história” (DIAS, 2015, p. 975)

Pensar a noção de arquivo, segundo Pêcheux (2010, p. 51), é considerá-la em

“sentido amplo” como um “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma

Page 38: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

35

questão”, ou seja, trata-se de considerar o arquivo em sua própria materialidade e não como um

acervo de materiais acumulados e armazenados. Isso porque “o arquivo comporta mais que um

simples conjunto de documentos agrupados por uma lógica institucional” (DELA-SILVA e

LUNKES, 2014, p. 137). Isso porque, para Pêcheux, pensar o arquivo é também pensar o gesto

de leitura que é convocado diante do arquivo em questão. Esse trabalho da leitura fica na

incumbência da “relação entre língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo,

e a discursividade como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história, que constitui o

nó central de um trabalho de leitura de arquivo” (PÊCHEUX, 2010, p. 58).

O arquivo pensando em sua materialidade é o que permite emergir um significado

e não outro, conforme Dias (2015, p. 973): “ao se deparar com ele, o sujeito o recorte de maneira

x e não y. Um mesmo arquivo nunca é o mesmo, por causa da sua materialidade”. De outra

maneira, é através do gesto de leitura do analista que os sentidos se manifestam e outros são

suprimidos, na medida em que um arquivo é sempre passível de novas leituras. Isso porque, nas

palavras de Guilhaumou e Maldidier (2010, p. 162), “o arquivo não é um simples documento no

qual se encontram referências; ele permite uma leitura que traz à tona dispositivos e configurações

significantes”. Sobre isso é importante destacar, de acordo com os autores supracitados, que “o

arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura seu funcionamento é opaco”

(GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2010, p. 162).

Em “Novos Gestos de leitura ou o ponto de vista da Análise de Discurso sobre

o sentido”, de Guilhaumou e Maldidier ([1990] 2016), considera-se que a AD tem como apoio

material a língua e o arquivo, o que implica, ao mencionarem Foucault, que o arquivo “é um

dispositivo não fortuito que constitui figuras distintas, no sentido de que cada dispositivo de

arquivo estabelece sua própria ordenação” (2016), p. 238). Considerando a história da Análise

de Discurso, a problemática do arquivo permitiu ampliar, a partir da releitura de Foucault, a

tarefa de investigação à análise de configurações de enunciados atestados no arquivo, o que

possibilitou avanços em relação ao problema do corpus fechado que marcou a primeira fase da

AD. Trata-se, segundo Guilhaumou, de trabalhar com um dispositivo experimental em que um

trabalho sobre a configuração dos enunciados de arquivo e estudos pontuais de momentos do

corpus se associam.

Os autores referenciados postulam que o arquivo exibe o sentido que é dado “a

partir de uma diversidade de textos, de dispositivos de arquivos específicos sobre um tema, um

acontecimento, um itinerário” (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2016, p. 238). Assim, não se

trata de estabelecer uma “leitura plural” que adicionaria textos e sentidos, mas de apreender

Page 39: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

36

sentidos determinados “exibidos” pelo arquivo, a partir das restrições que ele, o arquivo,

introduz na descrição do semantismo dos enunciados, ou seja, trata-se de “um instrumental

metodológico que coloca em evidência, com a ajuda de quadros semânticos, elementos textuais

em relação de substituição paradigmática” (GUILHAUMOU; MALDIDIER; ROBIN, 2016, p.

19). “Do lado da língua, não é apenas através das palavras, mas através de mecanismos

sintáticos e enunciativos que o sentido se produz.” (p. 238).

Consequentemente, embora a entrada analítica se dê a partir da recorrência de

designações para Carolina e seu livro, são os mecanismos sintáticos e enunciativos, articulados

às condições de produção, que proporcionam o vislumbre de como os sentidos se dão a ver no

arquivo. Nesta pesquisa, o arquivo foi elaborado a partir de buscas com frases-chaves no site

Biblioteca Nacional, onde pesquisou-se “Carolina Maria de Jesus”, e no Google, onde as

ocorrências resultaram de uma busca a partir de “Centenário Carolina Maria de Jesus”.

Posteriormente, com base nesse arquivo, iniciei os recortes que comporiam o corpus ao ter

como norte as ocorrências das designações para a autora nos dois períodos, observando as

disparidades em relação aos mecanismos enunciativos e sintáticos.

O corpus é, portanto, um recorte no arquivo ordenado por um trajeto temático,

o qual organiza as designações para Carolina em uma série que emerge como efeito do arquivo,

constituído por manchetes que circularam em 1960. Para tanto, o corpus é constituído de cinco

manchetes que são elas: (I) “Lançamento do diário da favelada”, (II) “Livro da favelada causa

complicações na edilidade”, (III) “Líderes do Movimento Cultural do Negro homenageiam a

escritora Maria Carolina”, (IV) “Homenagem na campanha da Associação Cristã Feminina à

Carolina Maria de Jesus, (V) “São Paulo lança escritora negra: Carolina Maria”.

2.4 NOÇÃO DE TRAJETO TEMÁTICO

Guilhaumou e Maldidider (2010), em “Efeitos de Arquivo. A análise do discurso

no lado da história”, propõem a noção de trajeto temático considerando o tema como aquilo

que “não remete, aqui, nem à análise temática, tal como é praticada pelos críticos literários,

nem aos empregos que dela se faz na linguística” (1997, p. 164). Os autores estabelecem o

trajeto temático como uma noção que “supõe a distinção entre o ‘horizonte de expectativas’ –

o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica dada – e o acontecimento

Page 40: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

37

discursivo que realiza uma dessas possibilidades, inscrito o tema em posição referencial”

(GUILHAUMOU e MALDIDIDER, 2010, p. 164).

Considero o lançamento de Quarto de Despejo como um acontecimento

discursivo7. A partir dele, entendo o trajeto temático como um elemento norteador que regula

o arquivo de modo que, ao funcionar também como uma ferramenta de seleção do corpus, tem

como tema as designações formuladas para Carolina. Dessa maneira, o percurso temático parte

de enunciados em circulação em 1960, os quais possibilitam emergir designações referentes à

autora, como por exemplo “favelada”. Os autores já referidos ainda postulam sobre o trajeto

temático:

A análise de um trajeto temático remete ao conhecimento de tradições retóricas, de

forma escrita, de usos da linguagem, mas sobretudo, interessa-se pelo novo no interior

da repetição. Esse tipo de análise não se restringe aos limites da escrita, de um gênero,

de uma série: ela reconstrói os caminhos daquilo que produz o acontecimento na

linguagem (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2010, p. 165).

Dessa maneira, o trajeto temático serve como um procedimento para a seleção

do corpus, ou como refere Dela-Silva (2008, p. 12) é a “principal noção utilizada para a seleção

do material de análise e a realização dos recortes para a compreensão do processo discursivo”.

Ao levar em consideração que o trajeto temático também se comporta como um procedimento

de seleção, o ponto de partida para a composição do corpus desta pesquisa se deu de forma a

verificar as designações que se apresentavam com certa regularidade, como é o caso, por

exemplo, do termo “favelada”.

Tendo em vista o trajeto temático realizado pelo corpus das manchetes de 1960,

retiradas da Biblioteca Nacional, observa-se que Carolina encontra-se atrelada a nomes e

expressões como “favelada”, “diário da favelada”, “livro da favelada”, “escritora favelada”

ou, ainda, “Maria Carolina”, caracterizando um processo de construção de sentidos pré-

construídos que determina as significações para Carolina. Nota-se que, no processo de

significação para a autora, no período de lançamento de Quarto de Despejo, há uma saturação

e desqualificação que o termo “favelada”, filiado à vestígios da ideologia higienista, ocasiona.

Assim, Carolina enquanto mulher, negra e moradora da favela, é estereotipada e situada numa

7 Considero que há uma distinção entre acontecimento discursivo, acontecimento jornalístico e acontecimento

midiático. Compreendo que o acontecimento discursivo “é apreendido na consistência de enunciados que se

entrecruzam em um momento dado” (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 2010, p. 164), já o acontecimento

jornalístico se manifesta nos jornais na forma de notícias, como poderemos ver mais adiante, no capítulo três, e,

por fim, penso o acontecimento midiático como aquele que se dá na relação com outras mídias, por ser mais

abrangente e amplo do que o acontecimento jornalístico.

Page 41: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

38

zona específica do espaço urbano.

Em síntese, ao percorrer a materialidade do arquivo é que se encontra o percurso

temático. É por meio desse movimento, de manuseio no arquivo, que é possível organizá-lo a

partir das recorrências e deslizamentos das designações. A designação funciona de modo que

ora se comporta como analítica, ora como metodológica, o que possibilita a organização do

corpus e implica que o recorte no arquivo seja feito a partir dessas designações. Assim, o trajeto

temático recorre a elas e, ao emergir um efeito de série dessas designações que significam a

autora, produz efeitos do/no arquivo. Isto é, nesta pesquisa, ao pontuar as designações como

uma série “favelada”, “diário da favelada”, “Maria Carolina”, “Escritora Negra” é que se

chega no efeito do arquivo coordenado pelo percurso temático.

Page 42: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

39

3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS JORNAIS DE 1960

O João quando retornou-se disse que a reportagem

havia saido. Vasculhei os bolsos procurando dinheiro.

Tinha 13 cruzeiros. Faltava 2. O senhor Luis

emprestou-me. E o João foi buscar. O meu coração

ficou oscilando igual as molas de um relogio. O que

será que eles escreveram a meu respeito?

Carolina Maria de Jesus

Neste capítulo, examino mais detidamente as designações para Carolina Maria

de Jesus e Quarto de Despejo presentes em manchetes de jornais no ano de lançamento da obra,

procurando mostrar como se dá o processo de estereotipagem de Carolina como “favelada”,

bem como os trajetos de memória que legitimam essa sua interpretação por parte da mídia

informativa. Tomo como ponto de partida as condições de produção de Quarto de despejo, a

partir das quais procuro mostrar as filiações de memória que sustentam um pré-construído sobre

a favela e o sujeito favelado atrelado a vestígios da ideologia higienista.

Para tanto, convoco cinco recortes que trazem marcas do funcionamento

ideológico racista na determinação de sentidos para Carolina e seu primeiro livro; busco apontar

como esse funcionamento produz a absorção do acontecimento discursivo ao colocar em cena

o acontecimento jornalístico, constituído por processos de apropriação discursiva e

estereotipagem.

3.1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

Dissemos anteriormente que as condições de produção (PÊCHEUX, 2010) e

circulação de um discurso são constitutivas dos sentidos e remetem à atualização de uma

memória que pode reafirmar um já-dito e/ou produzir deslocamentos. Considero a noção de

condições produção, a partir de Orlandi, em seu sentido estrito e amplo. Enquanto a primeira

diz do contexto imediato, a segunda se refere ao “contexto sócio-histórico, ideológico”

Page 43: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

40

(ORLANDI, 2020, p. 30). De acordo com a autora citada, as condições de produção

compreendem os sujeitos e a situação, além de que é por meio da memória que faz funcionar

as condições de produção e circulação de determinado discurso. Na sequência, aprofundo nas

condições de produção em seu sentido amplo, ou seja, o contexto sócio-histórico em que Quarto

de Despejo foi lançado.

Segundo Hohlfeldt (2008, p. 38), a década de 1960 foi marcada por uma forte

agitação política que se acentua com a ditadura militar instaurada em 1964. Nas palavras da

autora, uma contradição manifestava “variadas e múltiplas posições em todos os campos da

atividade política, econômica e cultural. Daí a perspectiva de oposição entre diferentes

princípios e ideologias, que acaba se expressando numa tensão constante”.

A produção cultural brasileira do fim da década de 1950 e início de 1960 refletiu

esse embate político caracterizado pela presença de uma ideologia nacionalista e uma crescente

mobilização popular. O teatro, a música, literatura, enfim, a cultura de modo geral passava por

um momento de ebulição: “a efervescência cultural e a participação popular que se inicia nos

anos 1950 atingem seu ápice com o CPC [Centro Popular de Cultura] e atravessam a década

até praticamente 1968, embora sofram quedas bruscas a partir de 1964, com o Golpe Militar”

(PERPÉTUA, 2014, p. 48)8.

É nesse momento marcado por agitações sociais, políticas e culturais que surge

Quarto de Despejo, o diário em que Carolina Maria de Jesus registra a vida de uma mulher

negra, mãe e catadora de reciclagem. Os apontamentos que envolvem a problemática social e

política formulados no Diário de Carolina destoam das demais narrativas na época, por demais

atrelados a sentidos idealizados da favela. Enquanto a favela era retratada de forma romantizada

em outras obras, como por exemplo, na canção Ave Maria no Morro, de Herivelto Martins,

Quarto de Despejo revelava de maneira crua uma perspectiva ainda desconhecida ou, talvez,

silenciada sobre a favela: “hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para

suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida (...)” (JESUS,

2014, p. 174).

Na produção cultural, os sentidos da favela relacionavam-se majoritariamente

com a ideia do “cartão-postal” (LAJOLO, 1996, p. 39), um retrato idealizado formulado a partir

de uma interpretação romantizada, como a que encontramos em Ave Maria no Morro:

8 O CPC foi constituído em 1962 no Rio de Janeiro e tinha por objetivo divulgar a “arte popular revolucionária”.

Ele implicava tanto o rompimento com a cultura dominante considerada alienada quanto a recusa em transformar

em folclore a cultura das classes populares. O centro carioca inspirou a formação de centros em outros estados.

Page 44: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

41

Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura. Lá no morro barracão é bangalô. Lá não

existe felicidade de arranha-céu, pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu.

Tem alvorada, tem passarada, alvorecer, sinfonia de pardais anunciando o anoitecer.

E o morro inteiro no fim do dia reza uma prece ave Maria. E o morro inteiro no fim

do dia reza uma prece, ave Maria. Ave Maria, Ave. E quando o morro escurece, elevo

a Deus uma prece, ave Maria.

Essa canção, entendida como exemplar de um modo de significar a favela na

música popular brasileira, produz em seus modos de formulação e constituição sentidos

romantizados: a “favela” é formulada como “morro”, lugar de “alvorada”, “alvorecer”,

“sinfonia de pardais anunciando o anoitecer”, onde não se tem “barraco” ou “barracão”, mas

“bangalô”. Disso depreende-se o que Lajolo (1996, p. 39) problematiza ao dizer que “os

subespaços urbanos parecem ter-se reservado para a música popular, na qual completamente

maquiados, recobriam sua degradação com promessas de felicidade conquistada por

contiguidade e vizinhança”.

Nessa canção, a favela assume contornos imaginários, romantizados. Enquanto

nela o favelado é aquele que “vive pertinho do céu”, em Quarto de Despejo denuncia-se a favela

como lugar da fome, “o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2014, p. 32). Disso compreende-

se que, de um lado, temos um sítio de significância (ORLANDI, 2007) no qual operam os

significantes “morro”, “bangalô”, “alvorada” e “alvorecer”; e, de outro, temos um sítio de

significância diferenciado, linguisticamente marcado por “favela”, “despejo”, “fome”, “lixo”.

Ou seja, há uma discrepância nos sentidos que se constituem em um e outro sítio de

significância, um embate de significações que opera acerca de um objeto simbólico, a favela, e

que dão a ver distintas formações ideológicas na produção cultural. Entretanto, há de se

observar, também, para além desse imaginário, filiações de sentido para a favela advindas de

uma memória entrelaçada à ideologia higienista, conforme mostraremos a seguir.

3.1.1 Sentidos da favela: vestígios da ideologia higienista

Ao constar a não estabilidade dos sentidos, que se apresentam em movência,

considera-se que há sempre um embate entre modos de significação que se estabelecem como

distintos e concorrem pela estabilização dos sentidos. Como mostramos anteriormente, temos,

a partir de posições enunciativas daqueles que falam de dentro do morro nas canções brasileiras,

sentidos mobilizados na relação com o imaginário da favela como cartão-postal. Em

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42

contraposição a esses sentidos, Quarto de despejo: diário de uma favelada emerge como um

acontecimento que rompe com a suposta evidência de sentidos romantizados para a favela ao

convocar para ela outras significações. Entretanto, há ainda uma terceira via a ser explorada, a

qual considera os sentidos da favela na relação com vestígios de uma ideologia higienista

operante na sociedade brasileira desde o final do Séc. XIX e início do Séc. XX, conforme

Oliveira Sobrinho (2013).

A favela do Canindé, onde residia Carolina, era situada às margens do Rio Tietê

e foi construída em 1948 por Adhemar de Barros. Nas palavras de Vera Eunice, filha de

Carolina:

Minha mãe contava que o criador das favelas de São Paulo foi o ex-governador de

São Paulo, Adhemar de Barros. Por quê? Foi o seguinte: ele mandou recolher da rua

toda pessoa que não tivesse casa para morar por causa de um convidado importante

que estava para visitar a cidade. Era um desses diplomatas americanos e o Adhemar

queria causa uma boa impressão. O que ele fez? Mandou limpar tudo, ajeitar as praças,

varrer, lavar, tapar buracos e acabou fazendo a polícia recolher a mendigada também.

Um por um, os policiais pegavam os pobres na rua e iam despejar nos terrenos vazios,

como o Canindé. Os pobres não podiam dormir na rua, senão acordavam na delegacia,

e daí, era pior, maus tratos, agressões. Podia ser homem, mulher ou velho: era tudo

pobre ... Foi assim então que as pessoas começaram a construir os barracos. Foram

juntando a madeira de caixotes, mais papelão, latas velhas, e as favelas foram

crescendo, crescendo, e chegaram ao ponto que estão hoje (EUNICE, 2015, p. 77-78).

O relato de Vera Eunice sobre suas recordações pessoais aponta para formas

específicas de significar os pobres que eram “despejados” nas favelas. Também narrativiza a

fundação da favela do Canindé a partir de uma história de vida, da vida de sua família, e das

narrativas compartilhadas entre gerações sobre a origem do lugar onde ela vivia. O uso do nome

“despejados” pela filha de Carolina não é um acaso; “quarto de despejo” não é apenas o barraco,

mas também a favela, esse lugar onde despejam pessoas tidas pela sociedade higienista como

abjetas, inadequadas, e que, portanto, deveriam ser escondidas, apagadas, invisibilizadas, postas

para fora dos sentidos e da memória.

Isso se mostra também nas palavras de Carolina: “eu classifico São Paulo assim:

o Palacio, é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o

quintal onde jogam os lixos” (2014, p. 32), percebemos que os sentidos de favela se formulam

na relação com o resto, o lixo, como lugar de descarte de pessoas, ao passo que a cidade é

estruturada pelo palácio, sala de jantar e jardim, sendo o quarto de despejo o lugar deteriorado.

Ela ainda considera: “quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com

seus lustres de cristais seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela

tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (2014,

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43

p. 37), o que confirma a ideia de que o espaço urbano é composto por lugares desiguais e que

na favela é lugar de objetos “fora de uso”, que não tem valor.

Como bem pontuou Lélia Gonzalez (1982, p. 232), desde a época colonial é

evidente a separação do espaço físico ocupado por dominadores e dominados, o que a autora

denomina “divisão racial do espaço”. Cito-a: “O lugar natural do grupo branco dominante são

moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo [...]. Já o lugar do

negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos

habitacionais [...]”. Gonzalez percorre questões impertinentes à formação social brasileira e seu

mito da democracia racial, articulando com genialidade a constituição ideológica da “divisão

racial do espaço” às designações estereotípicas que historicamente se constituem para a mulher

negra. Segundo a autora, “[m]ulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente,

trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler o jornal, ouvir radio e ver televisão. Eles não

querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados” (p. 226).

Professora, intelectual, feminista, militante e fundadora do Movimento Negro

Unificado, Lélia Gonzalez se destaca por suas contribuições que endossam as pautas dos

movimentos feministas negros e por sua atuação incisiva na luta contra o racismo. Dentro de

suas abordagens, destaca-se “sua perspectiva interseccional, envolvendo as dimensões da

dominação sexual, de classe e de raça articuladas nas formas de opressão e hierarquização

racial, bem como na formação de identidade de afirmação coletiva” (RIOS, 2020, [n.p.]).

Em sua trajetória política e acadêmica, destacam-se pautas compromissadas com

temas que versam sobre a mulher negra, principalmente a crítica ao racismo estrutural. Diferente

do movimento feminista que antecede o feminismo negro, Lélia propõe um olhar sobre a raça, o

que a coloca como “precursora em acrescentar à condição da mulher brasileira o marcador de

raça, pouco tempo depois do campo feminista-marxista no Brasil ter começado a discutir como a

diferença de classe afetava as mulheres” (RODRIGUES, 2020, [n.p.]).

Retomando os dizeres de Vera Eunice, verifica-se, também, como o Aparelho

repressor atuou em favor da ideologia de classe, “despejando” os pobres nas favelas como se

fossem entulho, resto que a sociedade tenta apagar. Passa-se, então, a um processo de

naturalização de espaços considerados próprios a esses corpos entulho, despejados, por meio

de um “mapeamento segregativo da cidade” (BOCCHI, 2018, p. 224). Em sua análise da

crônica Mulheres detentas, de João do Rio, Bocchi (2018) mostra que, na forma como a cidade

se organiza, há espaços de segregação e divisão que se materializam na literatura. Na crônica

de João do Rio, esses espaços se formulam como “morros da Favela”, “becos”, e “ruelas”, os

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44

quais perfazem lugares “naturais” - a favela, a prisão e o hospício - a determinados corpos tidos

como abjetos. A pesquisadora problematiza a abjeção a partir de Butler, como os corpos que

são constituídos fora do circuito de reconhecimento. Trata-se de um outro que, por conta de sua

diferença (de classe, raça e sexo), não cabe nos espaços normativos citadinos.

Acerca do Aparelho repressor, encontramos a marca de sua atuação também em

Martha Godinho (1955), que realizou o primeiro estudo sobre as favelas na capital paulista,

pesquisa onde sistematiza a construção da favela do Canindé:

Favela do Canindé: Começou em 1948, [...]. Junto a Rua Antônio de Barros, num

terreno dos irmãos X, formou-se uma favela à revelia dos proprietários que, tão logo

tiveram conhecimento, requereram despejo policial. Aquelas pessoas então

desalojadas foram reclamar no Gabinete do Prefeito, onde receberam um memorando

para usarem o terreno da Prefeitura, no Canindé. Para alguns, a Prefeitura forneceu

também caminhão para o transporte do barraco. Iniciou-se, então, a “Favela do

Canindé” com 99 famílias (GODINHO, 1955, p. 16-17 apud PAULINO, 2007, p. 81).

Embora Vera Eunice e Martha Godinho teçam considerações a respeito da

construção da favela do Canindé, há registros de favelas anteriores a ela, que data de 1935, e de

quatro outras surgidas nos dois anos posteriores. Para Coelho (2002, apud PAULINO, 2007),

entre 1942 a 1949 já existiam 16 favelas na cidade. Segundo Paulino (2007, p. 47), nas décadas

de 50 e 60, “se elege a favela como um problema em São Paulo”, em que todo um arsenal de

pré-conceitos e representações estigmatizantes se manifestou como um “legado da ideologia

higienista, o estigma sobre a favela se revelou em São Paulo já nas suas origens” (PAULINO,

2007, p. 47).

Oliveira Sobrinho (2013) localiza o surgimento da ideologia higienista no

movimento que passa a sustentar a ideia de que as classes pobres não eram perigosas “apenas”

porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem

pública, mas sobretudo porque “os pobres ofereciam também perigo de contágio.” (OLIVEIRA

SOBRINHO, 2013, p. 212). Por consequência, a política higienista demanda certa organização

para a cidade, conformando espaços e corpos:

Utiliza-se dos discursos do progresso como uma utopia para que se possa disciplinar

os espaços e corpos. Também a pobreza é associada às doenças causadas pela falta de

higiene em moradias insalubres e aos odores exalados pelos ambientes propícios a

propagações e manifestações perigosas de todo tipo, inclusive doenças contagiosas

(OLIVEIRA SOBRINHO, 2013, p. 214).

As “classes perigosas” (OLIVEIRA SOBRINHO, 2013) oferecem um risco, um

problema para o espaço urbano uma vez que representam uma ameaça à civilidade:

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Os cortiços representam, portanto, uma ameaça à noção de civilidade; as greves, uma

ameaça à ordem burguesa de cidade limpa, disciplinada e livre das imundícies e de

manifestações turbulentas dos operários; a rua será objeto da disciplina devido à

ameaça à própria ordem que mantém desigualdades. As doenças que se espalhavam

pela urbe, do ponto de vista ideológico, teriam como foco de proliferação justamente

as áreas pobres (OLIVEIRA SOBRINHO, 2013, p. 214).

A política higienista, pensada como uma ideologia, imbrica um desejo utópico

do poder público de manutenção do progresso, aniquilando “as classes perigosas” (OLIVEIRA

SOBRINHO, 2013) dos espaços urbanos e reservando para elas um lugar subalterno. Nesse

sentido, a política higienista “terá o sentido de limpar a cidade da pobreza” (OLIVEIRA

SOBRINHO, 2013, 231). Com isso, “a favela desde o seu início, já é lugar sujeito ao

preconceito, à discriminação. Um “símbolo da segregação” (SAMPAIO, 1998, p. 124 apud

PAULINO, 2007, p. 75). Quando Quarto de Despejo é lançado, o termo favela é amplamente

discutido. O contexto social da época, na capital paulista, propulsiona os debates acerca da

favela.

3.1.2 Quarto De Despejo: sentidos postos à margem

Paulino (2007) localiza a publicação de Quarto de despejo no contexto de

surgimento de projetos de urbanização das favelas e do MUD – Movimento Universitário de

Desfavelamento que, entre outros fatores, contribuíram para que o assunto ganhasse a opinião

pública e intervenções do poder público acontecessem. Isso se dá, justamente, porque o livro

de Carolina desestabiliza, como disse, um imaginário romantizado da favela como cartão-

postal, inaugura “um modo novo de falar sobre um problema que já vinha sendo tratado havia

algum tempo, além do âmbito da música popular, por alguns intelectuais brasileiros”

(PERPÉTUA, 2014, p. 45).

Iniciado no dia 15 de julho de 1955, data do aniversário de Vera Eunice, o diário

descreve o cotidiano de sobrevivência de Carolina e seus filhos, registrando suas mazelas. Sobre

o aniversário de Vera Eunice, a autora conta:

Pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimentícios

nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de

vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, levei e remendei para ela calçar [...] (JESUS,

2014, p. 11).

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46

Para Meihy e Levine (2015), Carolina representa uma costura entre temas que

expõem as fronteiras entre as classes sociais. Discursivamente, é possível considerar Quarto de

Despejo um acontecimento que expõe uma formação social dividida e profundamente desigual

ao discursivizar, em sua narrativa,

a distância extrema entre as classes sociais, a impermeabilidade da estratificação

social, as dificuldades de adaptação de uma categoria a outra, os preconceitos contra

a mulher e os negros e, sobretudo, a perpetuação dinâmica dos contingentes pobres

(LEVINE e MEIHY, 2015, p. 58).

De acordo com esses autores, o livro de Carolina descontrói uma visão idealizada

das favelas, substituindo-as pelas “evidencias testemunhais da violência. De início, a

receptividade da história de Carolina foi, em certo nível, fruto da romantização da vida dos

pobres” (LEVINE; MEYHI, 2015 p. 59). Entretanto, ao descrever o cotidiano com a crueza da

palavra que não oblitera as mazelas e sofrimentos a que eram submetidos seus moradores,

Quarto de Despejo rompe, de certo modo, com essa romantização, que não se sustenta face ao

relato da autora.

Carolina inicia seu diário em plena década de 50. Conhecida como os anos

dourados, foi um período marcado por intensa agitação no campo político durante os governos

Vargas e Kubistchek. Com abertura à industrialização nacional, “ao mesmo tempo em que a

cidade grande se mostrava receptiva à política do desenvolvimento, camuflava-se na periferia

urbana o custo social do projeto com o crescimento da favela” (PERPÉTUA, 2014, p. 42).

No âmbito cultural, o cinema, teatro, a música e a literatura realizavam expressivas

mudanças, uma vez que manifestavam interesse em buscar uma identidade brasileira. Nas

palavras da autora supracitada (2014, p. 45), naquela época o Brasil encontrava-se numa

“renovação nas abordagens temáticas sobre o país. No cinema e no teatro, buscava-se um modelo

nacional, que fugisse dos padrões vigentes na época. Como tema genuinamente brasileiro, a

favela ganhava proporções inexploradas até então”.

São essas as condições em que Carolina escreve sua obra, um diário sobre sua

vida na favela do Canindé. É também nessa mesma década que a autora conhece o jornalista

Audálio Dantas, em 1958, que viabiliza a publicação de Quarto de Despejo. Nesse mesmo ano,

alguns trechos da obra são publicados no jornal Folha da Noite. Embora haja registros de outras

ocasiões em que poemas da autora foram publicados em periódicos9, é a partir desses trechos

9 Segundo a cronologia biográfica da autora, elaborada por Elizabeth Barboza Pereira em Vida por Escrito: guia

do acervo de Carolina Maria de Jesus, há dois momentos anteriores ao lançamento de Quarto de Despejo em que

Carolina vai aparecer na mídia. O primeiro em 1940, quando é publicado, no jornal Folha da Manhã, um poema

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47

de Quarto de Despejo, veiculados anteriormente ao ano de lançamento, que Carolina e obra

começam a ser noticiados (e interpretados) pela mídia jornalística. Há de se ressaltar aqui, no

entanto, que esses trechos veiculados não correspondem com a publicação integral da obra em

jornais de circulação da época, mas sim apenas alguns excertos, como pontua Audálio Dantas:

“ao invés de fazer uma reportagem sobre a favela, fiz uma matéria sobre Carolina Maria de

Jesus e transcrevi alguns trechos do diário” (2015, p. 15).

Autora e obra tiveram grande repercussão também na mídia internacional. Nas

palavras de Fernanda Miranda (2019, p. 114), “ao livro também pertence o mérito de ter sido a

primeira obra de uma mulher negra brasileira traduzida”, uma vez que Quarto de Despejo,

reimpresso sete vezes no primeiro ano de publicação, foi traduzido para “treze línguas –

holandês, alemão, francês, inglês, tcheco, italiano, japonês, castelhano, dinamarquês, húngaro,

polonês, sueco e romeno - e circulou em quarenta países. Existiria uma 14° tradução para o

russo, não confirmada” (PERPÉTUA, 2014, p. 21).

Para compreender melhor o funcionamento da midiatização de Carolina e de seu

livro, é importante mencionar a visão de Miranda (2019) sobre o momento de lançamento de

Quarto de Despejo:

Trata-se de uma autora que visibiliza intensamente as marcas da condição nacional

racista dentro do sistema literário brasileiro. Quando surgiu, entre o fim da década de

1950 e o começo dos anos 1960, imediatamente tornou-se um fenômeno midiático,

em primeiro lugar, porque escrevia, em segundo, porque escrevia sobre si em primeira

pessoa, narrando as mazelas de um cotidiano urbano desconhecido pela própria

metrópole à altura – a favela. (MIRANDA, 2019, p. 115).

Em agosto de 1960 acontece o lançamento de Quarto de Despejo. A repercussão

da obra, já mobilizada previamente com os trechos veiculados antes do lançamento, no jornal

Folha da Manhã, confirma a perspectiva da autora sobre a vida na favela não romantizada. Ou,

ainda, como pondera Perpétua:

a repercussão do lançamento de Quarto de despejo vai confirmar que muito do seu

êxito inicial pode ser compreendido a partir da leitura das reportagens que o

precederam, e cuja forma obedece ao modelo de texto que se fortalece então na

imprensa diária, com seu conteúdo alinhavado ao momento de participação da

sociedade civil nos acontecimentos. (grifo da autora). (PERPÉTUA, 2014, p. 60)

Levine e Meihy (2015, p. 38) delimitam que o início da década foi marcado por

e uma foto da autora ao lado do jornalista Willy Aureli. O segundo momento, em 1950, data da publicação pelo

jornal O Defender de um poema da autora sobre Getúlio Vargas.

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48

uma espécie de “onda reformista caracterizada pelo prenúncio de que as camadas pobres

poderiam produzir figuras – no caso uma mulher negra – que levantariam a opinião pública”.

Os autores ainda acrescentam:

esse tipo de percepção no passado era limitado pela eficiência da máquina classista

que não permitia mobilidade. Particularmente no caso das mulheres, estava definido

um papel de subserviência em que restava a condição feminina pobre, no máximo o

direito de trabalhar servindo aos brancos como cozinheiras, babás, faxineiras

(LEVINE, MEIHY, 2015, p. 38).

O trecho supramencionado remete ao fato de que Carolina e sua obra subvertem o

sentido consensual da época e colocam em jogo outros sentidos: mulher negra, à frente de seu

tempo, dois anos de estudos, mãe solo e escritora. Assim, o lançamento de Quarto de Despejo

indicia uma transformação nos rituais enunciativos, configurando um acontecimento discursivo,

que segundo Zoppi-Fontana (1997) funciona como ponto de deslocamento de uma prática

discursiva. Para essa autora, o acontecimento participa do processo de produção do real histórico,

pela emergência de um enunciado ou de uma posição enunciativa novos.

Entretanto, os sentidos postos em cena pelo discurso jornalístico evidenciam que

as possíveis interpretações da mídia sobre Carolina resvalam os preconceitos de sua condição de

mulher negra e pobre. No próximo tópico, mostraremos como a mídia, ao produzir um

acontecimento jornalístico midiatizado apoiado por um processo de estereotipagem, busca

engendrar a absorção do acontecimento do lançamento de Quarto de Despejo no espaço da

memória. Há, por assim dizer, uma fragilidade na inscrição do acontecimento, posto que as

interpretações para Carolina colocadas em jogo pelos discursos jornalísticos, os quais têm

especial força na configuração dos discursos sociais, interditam determinados sentidos,

inviabilizando significações.

Entretanto, esses sentidos inviabilizados não desaparecem de todo, como nos

ensinou Orlandi (1999, p. 67): “Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso, in-significados

e que demandam, na relação com o saber discursivo, com a memória do dizer, uma relação

equívoca com as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites”. Como belamente disse

Barbosa-Filho (2018) “o real da história faz o silêncio, o não-dito aparecer nas lacunas”.

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49

3.2 O ACONTECIMENTO JORNALÍSTICO

Segundo Garcia e Sousa (2015), o acontecimento jornalístico é apresentado nos

jornais em forma de notícias, nas quais um fato considerado de interesse público é selecionado e

passa a ocupar as edições diárias dos noticiários impressos e eletrônicos. Como pontua Dela-Silva

(2011, p. 152), “o dizer jornalístico não traz consigo o fato, mas um gesto de interpretação do

mesmo. A imprensa, mais que simplesmente narrar acontecimentos e servir de suporte para tais

narrações, produz sentidos para os acontecimentos que elege como de destaque”.

Essas interpretações se dão também pelas designações colocadas em jogo nas

notícias e, sobretudo, nas manchetes, que funcionam de modo a estabilizar os processos de

significação para o acontecimento do lançamento de Quarto de Despejo. Ao nomear Carolina

como favelada, o discurso midiático informativo inscreve uma posição-sujeito ideológica que

carrega traços do racismo e do processo de de-significação de sentidos para os negros no Brasil,

herança da sociedade escravocrata. Isso porque os sentidos de favela, como mostramos

anteriormente, encontram-se filiados a vestígios da ideologia higienista que se atualizam nessas

designações, em processos que silenciam Carolina como escritora ao dizê-la favelada.

Os discursos formulados a partir desses veículos de comunicação contribuem

para interpretações que colam ao nome da autora sentidos que não o de autora ou escritora. Isso

significa dizer que as manchetes de jornais, ao serem formuladas a partir de posicionamentos

ideológicos específicos, fazem emergir determinados sentidos e não outros, produzindo efeitos

que imprimem à Carolina Maria de Jesus sentidos de “favelada”, esvaziando a potência de

acontecimento de Quarto de Despejo e os sentidos insurgentes que o livro possibilita.

Cabe ressaltar que esse esvaziamento do acontecimento configura apenas uma

tentativa. Ou seja, por mais que o funcionamento da ideologia dominante tente esvaziar o

acontecimento, a potência de Carolina e de Quarto de Despejo não se deixa apreender.

Os processos de enunciação mobilizados por Carolina em Quarto de Despejo,

os escritos que emergem da sua vida enquanto moradora da favela do Canindé e articulam

processos de subjetivação que dizem de sua singularidade em significar-se através da escrita,

são apagados pelo processo de midiatização do acontecimento de lançamento de seu livro,

processo esse visível nas designações que negam sua existência e condição humana.

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3.3 O FUNCIONAMENTO DAS DESIGNAÇÕES NOS PERIÓDICOS

Figura 1: Print da matéria do jornal Correio Paulistano, São Paulo, 18 de agosto de 1960.

Fonte: Correio Paulistano, São Paulo, 18 de agosto de 1960.

A manchete escolhida para iniciar nossas análises (fig. 1) foi veiculada no

periódico Correio Paulistano, em São Paulo, no dia 18 de agosto de 1960, um dia antes do

lançamento de Quarto de Despejo. O título da matéria “Lançamento do Diário da Favelada”

precede a matéria em que o periódico faz o convite para o público prestigiar “o mais sensacional

lançamento de autógrafos já realizado”. Trata-se “[d]o diário da favelada Carolina Maria de

Jesus”. Além do lançamento, noticia-se também a presença de Batista Ramón, ministro do

trabalho na época, que “aceitou o convite para ser padrinho da escritora-favelada”. Por fim, a

notícia relata que a livraria Francisco Alves está “especialmente decorada com vitrina, faixas com

frases do diário” e, mais do que isso, “com todo o material alusivo a este lançamento que vai

revolucionar o mercado editorial do país”.

A formulação evidenciada na manchete “Lançamento do diário da favelada”,

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condiciona o olhar do leitor para um sentido que resvala no estereótipo atribuído à autora. Essa

marca de uma mulher “favelada” é recorrente em manchetes de periódicos da época e deixa

entrever um sentido cuja constituição tem relação com determinada região do espaço urbano,

conforme mostramos anteriormente. Nessa formulação, o nome “escritora” é elidido; ele fica

circunscrito à designação que aparece ao final da notícia: “escritora-favelada”. Compreendemos

com Gonzalez (1980) que a favela não é qualquer espaço, posto que ela emerge de uma “divisão

racial do espaço”; a favela é lugar de despejo, conforme escreveu Carolina, caracterizado por

moradias precárias, densamente povoado e geralmente decorrente de assentamento informal.

Em outras palavras, essa ocorrência da designação “favelada” é o que atribui sentidos não de

uma autora que escreveu seu livro cujo lançamento foi marcado, mas sim de uma “favelada”

que escreveu um “diário”.

Compreende-se, assim, porque o acontecimento é formulado como “o mais

sensacional lançamento de autógrafos já realizado”; há um efeito de curiosidade acerca do

conteúdo do livro que, sendo um diário, suposta textualizaria a intimidade de Carolina, de seus

sofrimentos e mazelas. Ainda, há de se considerar a complexidade de efeitos possíveis; “o

sofrimento pode tanto repugnar quanto seduzir, gerar modos de assistência, sentimentos de

compaixão” (FARGE, 2019, p. 19). Não é difícil prever as armadilhas da espetacularização da

miséria e do voyeurismo que rapidamente podem absorver e denegar o acontecimento.

Nesses modos de designação e identificação de Carolina há o que Paveau (2017)

descreve como “destituição interpretativa” realizada pela imprensa informativa, a qual se

caracteriza pela apropriação de um lugar de fala interditado e “discursivamente vulnerável”, ou

seja, constituído por uma “insegurança enunciativa” ocasionada pela dominação, discriminação

e opressão sistemáticas, e que resulta em estereótipos. Observa-se que nesse funcionamento

discursivo prevalece a criação de slogans e retratos, os quais produzem efeitos de

espetacularização de uma fala confiscada; o lançamento de Quarto de Despejo é formulado como

espetáculo midiático, reduzindo Carolina ao estereótipo de favelada.

Verifica-se que a marca da designação “favelada”, repetida duas vezes no corpo

da matéria, aparece antes mesmo do nome da autora, tendo efeitos sobre ele. Podemos perceber

isso quando a matéria diz “trata-se do coquetel de lançamento de ‘Quarto de Despejo’, o diário

da favelada Carolina Maria de Jesus, do Canindé”. Aqui o nome da autora aparece também

marcado pela determinação de um lugar de origem, “do Canindé”, isto é, “a favelada do

Canindé”. Os sentidos de “favelada”, no entanto, são dados antes e em outro lugar,

independentemente. Eles têm relação com uma história política dividida que estabelece os

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52

espaços das cidades a partir de relações de classe e raça dissimétricas.

Na última designação que estampa essa notícia, percebe-se que esse pré-

construído incide sobre o nome da autora, determinando-o. Trata-se da designação “escritora-

favelada”. Nessa formulação, a palavra “escritora” tem seus sentidos determinados por

“favelada”, que funciona aí como modo de adjetivação. Ao fazer o uso do hífen, a palavra

“escritora-favelada” torna-se uma palavra composta, capaz de determinar o sentido de

“escritora” a partir da evidência do nome “favelada”. Assim, o processo de significação para

autora revela que a marca da designação “favelada” funciona como pré-construído. Dito de

outra forma, “todos sabem” o que é uma favelada, uma vez que os objetos simbólicos são

fornecidos juntamente com a maneira de se servir deles:

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais ''todo mundo sabe” o que

é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc.,

evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado "queiram dizer

o que realmente dizem'' e que mascara, assim, sob a "transparência da

linguagem", aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras

e dos enunciados (PÊCHEUX, 1995, p. 160).

Assim, a partir de Pêcheux, entende-se que o sentido de “favelada” não existe em si

mesmo (PÊCHEUX, 1995), mas é determinado de acordo com a posição ideológica sustentada

pelos jornais que a formulam: “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido

segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem

seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência as posições ideológicas”

(PÊCHEUX, 1995, p. 160). Acrescente-se, ainda, que essas ideologias são práticas da luta classes:

Os "objetos'' ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a

''maneira de se servir deles'' - seu "sentido”, isto é, sua orientação, ou seja, os

interesses de classe aos quais eles servem -, o que se pode comentar dizendo

que as ideologias práticas são práticas de classes (de luta de classes) na

Ideologia (PÊCHEUX, 1995, p. 146).

Assim, a ideologia fornece o sentido do que seja uma “favelada”, em um

processo que funciona produzindo uma evidência sobre esse nome; é evidente que “todo mundo

sabe” o que é uma “favelada”. Com Pêcheux, compreende-se que os sentidos para a designação

“favelada” são construídos historicamente tendo em vista redes de memória em que os corpos

das mulheres negras são significados pelo discurso da escravidão e do colonialismo,

considerando-se que a luta ideologia se estabelece também no campo da linguagem. Esse

funcionamento, colocado em relevo pela mídia informativa, entendida aqui como aparelho

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53

ideológico que enceta uma prática ideológica, serve a determinados interesses de classe. Dito

de outro modo, a mídia informativa funciona a partir de um regime de enunciabilidade e

visibilidade que transforma os “locutores vulneráveis”, consoante Paveau (2017), em um

espetáculo para ser visto.

A impossibilidade de reconhecer Carolina como autora e/ou escritora marca o

modo como a imprensa a interpreta, como “a favelada”. Destaca-se, ainda, a constituição de

sentidos para seu diário, originalmente um escrito de intimidade, quando este passa a circular

publicamente, enquanto obra literária, despertando a curiosidade de leitores fascinados, talvez,

pelo exotismo da pobreza sob o risco de um desvio para um olhar que inferioriza.

As condições em que os diários da autora deixam de ser apenas cadernos nos

quais Carolina registrava sua vida e cotidiano para adquirirem um endereçamento outro foram

marcadas, como é largamente difundido, pela intervenção do jornalista Audálio Dantas, que

viabilizou a publicação de Quarto de Despejo. A partir desse contato, em que o jornalista tem

acesso aos cadernos e oportuniza a publicação desses escritos, deixa de ser possível saber o que

é ou não efeito de edição desse porta-voz. Audálio Dantas, na época repórter da Folha da Noite,

ao se dirigir à favela do Canindé para uma reportagem, conhece Carolina que, na oportunidade,

apresenta a ele seus escritos em cadernos retirados do lixo. Segundo o jornalista,

o primeiro resultado disso foi que eu, ao invés de fazer uma reportagem sobre

a favela, fiz uma matéria sobre Carolina Maria de Jesus e transcrevi alguns

trechos do diário [...] A partir daí, ela me passou os cadernos e comecei a

examiná-los atentamente, já pensando em um trabalho, em um livro. Depois,

saí da Folha da Manhã e fui para a revista O Cruzeiro, onde publiquei outra

matéria sobre o assunto. Como a revista era de grande circulação nacional, a

repercussão foi enorme e, a partir daí, consequentemente, a edição do livro foi

um passo (DANTAS, 2015, p. 119-120).

Adverte-se que a publicação, em agosto de 1960, é viabilizada por um homem,

que se torna um porta-voz e deixa marcas de seus gestos de edição na obra, seja por meio de

substituições ou mesmo supressões de trechos dos originais. A partir desses gestos edição,

torna-se difícil pormenorizar os efeitos da interpretação do jornalista e da editora, a fim de

corresponder a um critério mercadológico. Retomando as considerações de Paveau (2017),

pode-se dizer que se trata de um fenômeno de “apropriação discursiva”, em que o discurso do

dominado é (re)produzido, mas a partir do enunciado do dominante.

Ainda sobre a manchete anterior, é possível compreender o gesto de interpretação

que reescreve, por assim dizer, o título da obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Ao

formular a manchete “Lançamento de Diário da Favelada”, apaga-se o título principal do livro,

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54

Quarto de Despejo, ao mesmo tempo que se enfatiza o subtítulo. Entretanto, há um deslocamento

do subtítulo original, “Diário de uma favelada”, o qual assume nessa manchete a formulação

“Diário da Favelada”, que passa a atuar como um atributo para Carolina. Essa passagem do “de

uma” para “da” produz um efeito ideológico de universalização em que emerge uma

generalização acerca “da favelada”. Essa universalidade corrobora ao funcionamento do “todo

mundo sabe”, efeito da ideologia, como postula Pêcheux; ela é um efeito imaginário necessário à

reprodução das relações de produção.

Considerado uma escrita de si, o diário constitui traços de memória e de

constituição subjetiva na composição e historicização daquele que se identifica ao escrevê-lo.

Considerado em uma perspectiva discursiva, compreendo o diário como um testemunho,

consoante Bocchi (2017), que enseja processos de identificação e individuação, um modo narrar

a experiência do sujeito em dizeres permeados por equívocos; a escrita testemunhal carrega

marcas, revela cicatrizes dos sujeitos que participam dessa experiência. Para Schons e Munhoz

(2015), escrever um diário é “falar de si e assumir a incompletude do sujeito e do sentido”;

escrever implica a existência de um autor que se entrega a gestos de interpretação ao inscrever-

se como origem dos sentidos. Enquanto lugar de interpretação, a escrita constitui um espaço

simbólico que articula língua e história; ela participa de processos de subjetivação e, também,

individuação, posto que por meio dela o sujeito se individualiza em relação a discursos e

práticas que o submetem.

Esses processos se materializam no título e subtítulo do diário de Carolina;

enquanto o primeiro organiza sentidos para um lugar específico, a favela, o segundo localiza

uma experiência singular neste espaço, “de uma favelada”. Nessa formulação, há uma marca

de singularidade, de um sujeito que se individualiza por meio da escrita. Assim, ao reescrever

o subtítulo como “diário da favelada”, a manchete apaga a singularidade da autora, produz um

processo de des-individuação.

Para Orlandi (2010, p. 4), a constituição do sujeito se dá por meio de dois

movimentos inseparáveis, no o primeiro “temos a interpelação do indivíduo em sujeito, pela

ideologia, no simbólico, constituindo a forma-sujeito-histórica”, já o segundo “com esta forma-

sujeito histórica já constituída dá-se então o que considero como processo de individuação do

sujeito”. A respeito da individuação, a autora coloca que essa “noção de sujeito individuado

não é psicológica, mas política, ou seja, a relação indivíduo-sociedade é uma relação política”

(ORLANDI, 2010, p. 4).

Um sujeito individuado, pensado em sua relação política e entendido como um

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55

corpo político (ORLANDI, 2010) é “a forma da pessoa pública, esta correspondendo a uma

forma de individuação, o sentimento de ser Um, no todo da sociedade. É a forma de

individuação em relação à sociedade em geral, de que resulta o “eu comum” (ORLANDI, 2010,

p. 5).

Na manchete “Lançamento de Diário da Favelada” é possível ver uma posição

ideológica operar a partir de uma “apropriação discursiva”, produzindo sentidos específicos em

relação ao nome da obra e de sua autora. Ao longo da matéria essa apropriação que reescreve o

subtítulo de Quarto de Despejo se repete no trecho “o lançamento de ‘Quarto de Despejo’, o

diário da favelada, Carolina Maria de Jesus”, o que confirma a apropriação da fala de Carolina,

traduzindo-a em uma interpretação universalizante sobre “a favelada” realizada através de

recursos discursivos que espetacularizam a autora ao produzirem para ela uma identificação

generalizante.

Figura 2: Diário da Noite, 1960, p. 3

Fonte: Diário da Noite, 1960, p. 3.

A manchete “Livro da favelada provoca complicações na edilidade” (fig. 2),

veiculada no periódico Diário da Noite, intitula a matéria em que o então vereador Silva Ribeiro

saúda “o aparecimento de Quarto de Despejo da favelada Carolina Maria de Jesus”, como um

“símbolo da opinião pública a respeito dos políticos” e também como um livro de “denúncia”

ao falar sobre a “situação de miséria reinante nas favelas”.

Observa-se, nos modos de formulação dessa manchete, o mesmo processo de

apagamento da singularidade de Carolina vislumbrado no recorte anterior. Ao lê-la entende-se

que o “livro da favelada” provocou “complicações” na câmara dos vereadores, entendida aqui

no termo “edilidade”. Além de utilizar o nome “favelada”, que reforça o preconceito instaurado

pelo efeito de pré-construído do qual já falamos, o que ratifica o processo de estereotipagem

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56

para a autora, o emprego das palavras “provocar” e “complicações” no fio do discurso

estabelecem uma relação lógica destes para com o “livro da favelada”. Entretanto, quais

complicações seriam essas?

A matéria em si não apresenta tais “complicações”, cujo sentido é construído

interdiscursivamente, pela filiação a uma rede de memória. O funcionamento da manchete

condiciona o leitor a crer nessas complicações provocadas pelo livro, embora não pontue tais

adversidades que Quarto de Despejo possa ter ocasionado na câmara dos vereadores.

Entretanto, ao formular, no corpo da matéria, o livro como “símbolo da opinião pública a

respeito dos políticos e uma denúncia da situação de miséria reinante na favela”, a notícia

constitui para ele sentidos subversivos à ordem da edilidade.

A matéria ainda diz que o vereador Silva Ribeiro terminou seu discurso fazendo

a leitura de um trecho da obra em que um ex-vereador Cantidio Sampaio é mencionado como

“visitante” da favela. Dispensável dizer que “visitante” é, justamente, um não-morador, ou seja,

aquele que não pertence ao grupo dos favelados. A notícia interpreta que essa leitura tenha sido

“intencional ao Sr Helio Mendonça, do PSP, amigo pessoal do Sr. Cantidio Sampaio”. O

vereador Silva Ribeiro usa o livro de Carolina em ataque aos adversários políticos do PSP,

Partido Social Progressista, que não por acaso foi fundado por Ademar de Barros em junho de

1946.

Esse processo discursivo permite descortinar as práticas políticas em vigência,

as quais se apropriam da fala dos pobres, suas mazelas e dores, em suas disputas políticas. Tal

prática instrumentaliza o livro de Carolina, usando-o para “provocar complicações” para os

adversários políticos. O “aparecimento” do livro é, portanto, saudado não por materializar o

testemunho do sofrimento de Carolina e de sua família ou por expor a face vil e cruel de uma

sociedade desigual e racista como a brasileira, mas porque serve de munição à disputa política.

Há uma apropriação discursiva, nos termos de Paveau (2017), que instrumentaliza o discurso

de “locutores vulneráveis”. Isso posto, perguntamos: “pode o subalterno falar?”. Questão a qual

Spivak (2010) responde negativamente: o subalterno não pode falar pois sua fala não é

compreendida; ela é recoberta pela do Sujeito soberano.

Como bem pontuou Gayatri Spivak, "[s]e o discurso do subalterno é obliterado,

a mulher subalterna encontra-se em uma posição ainda mais periférica pelos problemas

subjacentes às questões de gênero. [...] O subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito

subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade" (SPIVAK, 2010, p. 14-

15).

Page 60: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

57

A respeito das problemáticas que envolvem as mulheres negras, Lélia considera

que “ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de uma tripla discriminação, uma vez

que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais alto nível de

opressão” (GONZALEZ, 2020, p. 58) e que “ao nos impor um lugar inferior dentro de sua

hierarquia (sustentado por nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa

humanidade precisamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não apenas de nosso próprio

discurso, mas de nossa própria história (GONZALEZ, 2020, p. 141).

Ao interrogar o racismo estrutural e desigualdade racial, Gonzalez denuncia a

dominação branca e europeia que denega (RODRIGUES, 2020, s/n) as raízes africanas e,

também, as origens indígenas e latinas. Nessa direção, Lélia considera “impossível combater o

racismo se as pessoas brancas não reconhecessem nossa condição colonial” (RODRIGUES,

2020, s/n). Rodrigues ainda nos coloca:

Difícil tarefa, já que valorizar a origem europeia é parte do processo de denegar a

latinidade e de sustentar o racismo contra negros e indígenas, a serem estigmatizados

como “os outros”, “os bárbaros” ou, no vocabulário contemporâneo, “os bandidos” e até

“os invasores”, mesmo que o termo seja usado em referência ao povo nativo. Há aqui

um jogo de inversões do qual depende a opressão colonial: para afirmar-se no poder, os

colonizadores precisam dominar não apenas os corpos, mas sobretudo o imaginário de

cada povo dominado, atribuindo valor simbólico ao europeu branco, naturalizado como

quem tem o direito de ocupar o lugar de dominação, e destituindo de valor simbólico

todo não branco que fica destinado à subalternidade. Assim se constitui um duplo

mecanismo, a afirmação da superioridade do colonizador e a alienação do colonizado

(RODRIGUES, 2020, [n.p.]).

“Os outros”, “os bárbaros”, “os bandidos”, “os invasores”, “os favelados”.

Designações carregadas de sentidos constituídos a partir de redes de filiação histórica que

organizam o dizível, dando lugar aos processos de identificação segundo os quais o sujeito

encontra as evidências que permitem seu dizer. A memória discursiva é entendida aqui como

“o espaço dos efeitos de sentidos que constituem para o sujeito sua realidade, enquanto

representação imaginária (e necessária) da sua relação com o real histórico, no qual ele está

inserido” (ZOOPI-FONTANA e CESTARI, 2014, p. 168).

Nota-se como os jornais atuam na constituição de um imaginário a partir da

posição do colonizador, produzindo para Carolina, mulher negra, sentidos permeados pelo

racismo estrutural e sistemático. Desse modo, as manchetes de jornais são capazes de manusear

discursos que perfazem o poder do colonizador a fim de manter o colonizado em sua posição

de subalternidade, através da atribuição de “valor simbólico ao europeu branco, naturalizado

como quem tem o direito de ocupar o lugar da dominação, e destituindo de valor simbólico todo

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58

não branco que fica destinado a subalternidade”. Nessa direção, as designações atribuídas à

Carolina mostram processos de significação que denegam seu direito de ocupar e ser legitimada

como “escritora/autora”, reservando para ela o estereótipo da subalternidade.

3.4 A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO E O PROCESSO DE ESTEREOTIPAGEM

A conceituação de estereótipo reporta, com Firmin Didot, em 1798, a uma peça

utilizada na prensa tipográfica que consistia em um molde, uma placa rígida de metal, utilizada

para fazer cópias sequenciais de textos, o que implica movimentos repetidos e mecânicos. No

entanto, se pensarmos etimologicamente, a palavra estereótipo provém dos radicais gregos

“stereos” e “topos”, que remetem a uma escrita rígida, sólida e “portanto, o termo comporta em

si uma referência ao que foi pré-determinado e encontra-se fixado, cristalizado” (LIZARDO-

DIAS, 2007, p. 26).

Em 1898, com Durkeim, a sociologia trabalha o termo estereótipo remetendo às

imagens mentais e coletivas, isto é, que atuam no modo como os indivíduos agem e sentem. Para

Lizardo-Dias (2007, p. 27), “essas imagens são responsáveis pela coesão do grupo e geram um

sentimento de pertença dos indivíduos em relação àquela comunidade”. Isto significa que o

estereótipo, no campo da sociologia, atua de forma positiva ao fazer com que os indivíduos, ao

se identificarem com os outros indivíduos, sintam-se inclusos naquela comunidade.

Já no século XIX, se uma ocorrência do uso do termo estereótipo na área de

psiquiatria, que o conceituava como “a repetição mecânica e frequente de um mesmo gesto,

postura ou fala dos pacientes que sofriam de dementia praecox, por exemplo” (FREITAS, 2014,

p. 113). Em 1922, com Walter Lippnam e sua obra Public Opinion, iniciam-se os primeiros estudos

acerca do termo “estereótipo”. De acordo com Freitas, o jornalista americano definia os estereótipos

como padrões que “não podem ser neutros, pois repassam ao mundo informações de senso comum,

valores comuns, respeito e direito próprios” (FREITAS, 2014, p. 114). Para Baccega (1998, p. 8),

com base em Lippman, o estereótipo se comporta como "os tipos aceitos, os padrões correntes, as

versões padronizadas".

No entanto, o conceito de estereótipo com base na análise do discurso admite

outras questões. Ao me afastar das conceituações históricas elucidadas anteriormente, trabalho o

estereótipo no ponto de vista discursivo, o que implica convocar a noção do pré-construído, que

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59

apresenta uma relação necessária com a exterioridade e com um já-dito. Lizardo-Dias postula que

a noção do pré-construído resvala em duas instâncias e são elas:

a primeira seria a de saber sobre o qual se apoia a asserção do enunciador, ou seja, a

dimensão de pressuposto. A segunda seria a de elemento discursivo anterior à

enunciação, aquilo que foi dito ou elaborado. Dessa maneira, se opera uma distinção

entre aquilo que está inscrito no enunciado e aquilo sobre o qual ele se apoia em

termos de ideias, valores e crenças (LIZARDO-DIAS, 2007, p. 27).

Dessa maneira, ao atuar nessas duas dimensões, o pré-construído atua como

evidência que fala antes. Assim, o estereótipo passa a ser compreendido “como um elemento

agregador que tende a instaurar um espaço de aproximação e de reconhecimento através da

mobilização desse domínio referencial de existência notória” (LIZARDO-DIAS, 2007, p. 27).

Pensar sobre o estereótipo “é considerar a premência de um dizer anterior inevitável na

elaboração de “novos” dizeres; é uma questão de entendimento prévio que viabilize e garanta

uma compreensão mínima entre sujeitos historicamente instanciados” (2007, p. 27).

Para Baccega, o estereótipo atua nas subjetividades dos indivíduos dado que ele

se manifesta sob a forma de elementos emocionais, valorativos e volitivos, que vão

influenciar o comportamento humano. Ele se manifesta, portanto, em bases

emocionais, trazendo em si, como já dissemos, juízos de valor pré-concebidos,

preconceitos, e atuam na nossa vontade (BACCEGA, 1998, p. 10).

Ao produzir e ratificar estereótipos, a mídia informativa funciona

ideologicamente como um aparelho de Estado que garante a imobilidade das relações de sentido

com consequências para as relações sociais. Ao negro caberia um determinado papel social, um

lugar especifico na sociedade; os processos de identificação para as mulheres negras, como

pontuam Garcia e Sousa (2015), são atravessados por pré-construídos que as significam como

pobres, moradoras de favelas, domésticas, babás. “O negro ocupa ainda na sociedade brasileira

uma posição segregada, marcada por seu passado histórico” (2015, p. 52).

Sendo assim, os estereótipos se manifestam de modo pré-construído, produzindo

uma evidência para os sentidos por eles mobilizados a partir de uma marca anterior. Para Amossy

(1999), trata-se de uma representação cristalizada, uma construção de leitura que recupera

elementos para reconstruí-los em função de um modelo cultura preexistente.

Glória França, em sua tese “Gênero, Raça E Colonização: A Brasilidade no Olhar

do Discurso Turístico no Brasil e na França”, com base em Amossy, Paveau e Pierrot, traz à luz

a questão do estereótipo. Ao referenciar Amossy, propõe não a noção de estereotipia, mas sim

Page 63: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

60

noção de estereotipagem. Segundo essa autora, trata-se da atividade que recorta um modelo

coletivo fixo, reunindo um esquema conhecido a partir de elementos escolhidos; a estereotipagem

é compreendida como uma leitura programada do real ou do texto.

Para França (2018), a análise do discurso propõe a noção de estereótipo “[...]

numa relação muito próxima com a noção de pré-construído, e mais amplamente, com o

funcionamento do interdiscurso” (FRANÇA, 2018, p. 25). A autora ainda coloca que o

funcionamento do pré-construído:

[...] se apresenta como sempre-já-aí como imposição do sentido, sob efeito da

universalidade e como evidência constituída pelo esquecimento, considerando-se

desse modo que é constitutivo do discurso projetar-se, como efeito, como uma leitura

programada e, ao mesmo tempo, produzir, imaginariamente, a fixação de identidades

(FRANÇA, 2018, p. 25-26).

Se o efeito do pré-construído recai como uma imposição do sentido e evidência

constituída pelo esquecimento, aponto que o estereótipo de favelada atribuído à Carolina

perpassa a mobilização de sentidos que atravessam um dizer prévio depreciativo para a mulher

negra e que procura fixar sua identidade a partir desses sentidos, como “favelada”. Nessas

condições, a mídia imprensa delimita sentidos ao significar Carolina.

Assim, sustento que as manchetes dos periódicos direcionam a interpretação do

leitor para que reconheça Carolina a partir de uma identidade fixa, como a “favelada”, por meio

da designação que manifesta uma direção programada do processo de significação, uma direção

prévia do sentido. A ocorrência do “favelada” marca assim um estereótipo advindo de um pré-

construído entendido aqui como uma forma de limitar o sentido. Nessa direção, é preciso que

o “favelada” retome um já-dito para que esse novo dizer de “a favelada” faça sentido e, ao

mesmo tempo, marque o esquecimento dos sentidos de Carolina como autora.

3.5 O FUNCIONAMENTO DO NOME PRÓPRIO: EFEITOS DE UMA INVERSÃO

A matéria abaixo (fig. 3), veiculada no jornal Diário da Noite, de São Paulo,

tem como manchete “Líderes Do Movimento Cultural do Negro Homenageiam a Escritora

Maria Carolina”. Há o emprego de “escritora”, porém precedido de um “erro” no nome de

Carolina, uma inversão no nome próprio da autora, nomeada “Maria Carolina”. O

funcionamento dessa manchete dá a ver o equívoco no modo de identificação de Carolina; ela

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61

só pode ocupar um espaço como escritora transmutada em Maria Carolina. Há, aqui, uma dupla

negação: nega-se Carolina como escritora e, no mesmo gesto, nega-se a ela tornar-se sujeito

por meio da identificação com um nome próprio.

Figura 3: Diário da Noite, 1960.

Fonte: Diário da Noite, 1960, p. 12.

Segundo Garcia e Sousa (2015), nosso país ainda reserva aos negros posições

subalternas e desfavorecidas. Ao analisarem a história do negro e a posição por ele ocupada na

história do Brasil, as autoras relatam que

[...] é possível observar que se sustentam dizeres que colocam o negro como uma

“coisa” que pode ser descartada, arrastada; como um marginal, bandido. O negro

ocupa ainda na sociedade brasileira uma posição segregada, marcada por seu passado

histórico (GARCIA e SOUSA, 2015, p. 52).

Por esta perspectiva, cabe ressaltar que há, ainda, diferenças na maneira como

esses efeitos incidem sobre homens e mulheres negras. Segundo Giacomini:

[...] a negra é coisa, pau para toda obra, objeto de compra e venda em razão de sua

condição de escrava. Mas é objeto sexual, ama de leite, saco de pancada das

sinhazinhas, porque além de escrava é mulher, evidentemente essa maneira de viver

a chamada “condição feminina” não se dá́ de fora da condição de classe e mesmo de

cor (GIACOMINI, 1988, p. 87-88).

A história do negro, ao ser marcada por preconceito, sobretudo da mulher negra

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62

relegada à condição sexual com raízes na escravidão, como salienta Giacomini, é ainda

presente. Contudo, “embora funcione na sociedade um lugar ao negro à margem (terrível e

degradante), este resiste e busca ocupar espaços além dos limites das favelas e dizer-se sujeito

de direitos” (GARCIA e SOUSA, 2015, p. 54).

É nesse espaço de (re)existência que Carolina escreve também para ocupar

lugares que não o suburbano, a favela, com a sua obra que, ao insurgir no mercado editorial,

questiona a condição social a que ela é submetida pelo sistema. Enquanto mulher negra, pobre

e moradora do Canindé há a omissão, na mídia informativa da época, de designá-la “escritora”.

É assim que o apagamento de seu nome, ora por meio da designação “a favelada”, ora por

inversão no nome próprio, adverte sentidos velados pelo preconceito, pela hostilidade e pela

segregação.

Nesse percurso, considero o que pontua Lélia Gonzales ao dizer que “negro tem

que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido... ao gosto deles” (BAIRROS,

2000, p. 2), isso implica que a inversão do nome próprio produz a negação dos direitos do sujeito

e, consequentemente, a desumanização. Bocchi, com base em Butler, afirma que “a existência

social do corpo só é possível por meio do processo de interpelação simbólico: receber um nome

é um artifício linguístico que permite a constituição do sujeito da linguagem”. Se o sujeito da

linguagem se constitui ao receber um nome enquanto um endereçamento (BOCCHI, 2017), na

manchete em questão, a inversão desse nome próprio pretere a autora a um lugar de negação, de

não aceitação dessa mulher negra. É por meio desse endereçamento que, conforme esclarece

Bocchi, há a constituição dos chamados corpos abjetos:

o corpo nos é acessível pela ocasião de um endereçamento, de um chamado, de uma

interpelação que não o “descobre”, mas o constitui. O endereçamento constitui um

corpo no interior de um circuito possível de reconhecimento e pode também o

constituir fora desse circuito, como no caso dos corpos dito “abjetos” (BOCCHI,

2017, p. 22).

Entretanto, é importante notar que, no caso do nome próprio, os mecanismos de

identificação funcionam de modo específico. O nome próprio é aquele que participa da produção

de identificação para o sujeito a partir de uma nomeação particular, que lhe é dada ao nascer; é

por meio dele que se constitui e legitima alguém enquanto sujeito. A respeito dessa

consideração, Mariani nos coloca:

É a partir desse nome legalmente validado que podemos ser designados socialmente,

mesmo que à nossa revelia. Esse funcionamento linguístico e social mostra tanto o

aspecto convencional do nome próprio quanto implica seu caráter referencial,

Page 66: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

63

produzindo um efeito de identidade por sua repetição. O nome próprio funciona como

uma referência para o sujeito, uma vez que o sujeito é designado e se designa a partir

desse nome que lhe é dado ao nascer (MARIANI, 2014, p. 133-134).

Conforme Guimarães (2003, p. 54), “um nome, ao designar, funciona como

elemento das relações sociais que ajuda a construir e das quais passa a fazer parte. Dar nome a

algo [...] é dar-lhe existência histórica”. Dito isso, perguntamos: o que se diz ao dizer errado o

nome de alguém? O que se nega nessa nomeação “defeituosa”? Considera-se, assim, que a

inversão do nome próprio formulada na manchete nega à Carolina não apenas sua existência

enquanto escritora, mas também seu estatuto de sujeito de direito, ao não permitir que ela faça

parte das relações sociais, da existência histórica como pontua Guimarães (2003).

Assim, na manchete “Líderes Do Movimento Cultural do Negro Homenageiam a

Escritora Maria Carolina” é possível evidenciar o funcionamento da inversão do nome próprio

que restringe não só o termo “escritora”, mas também nega a constituição de Carolina Maria de

Jesus como sujeito. Considero, assim, a inversão do nome próprio um mecanismo que nega a

existência de um sujeito de direito e de uma mulher negra enquanto escritora e autora.

3.6 DE QUE MULHERES ESTAMOS FALANDO?

Alves e Pitanguy (2003) julgam ser difícil estabelecer com exatidão o que é e

quando começou o feminismo. Nas palavras das autoras, “este termo traduz todo um processo

que tem raízes no passado, que se constrói no cotidiano, e que não tem um ponto

predeterminado de chegada. Como todo processo de transformação, contém contradições,

avanços, recuos, medos e alegrias” (ALVES e PITANGUY, 2003, p. 7). A despeito dessa

inexatidão fundadora, elas consideram que o movimento feminista no Brasil teve início no

século XIX, quando surge a chamada “primeira onda”. Nessa fase inicial, as pautas

reivindicavam o direito ao voto e à vida pública, direitos dos quais as mulheres eram excluídas.

De cunho conservador, esse primeiro momento não questiona a divisão sexual ou racial e, como

coloca Regina Pinto, “era um feminismo bem-comportado na medida em que agia no limite da

pressão intraclasse, não buscando agregar nenhum tipo de tema que pudesse pôr em xeque as

bases da organização das relações patriarcais” (PINTO, 2003, p. 26).

É nessa primeira fase que se reivindica o direito ao voto feminino no país;

intitulado luta sufragista, ele teve como líder Bertha Lutz. A conquista da inserção da mulher

Page 67: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

64

na vida política com direito ao voto se deu em 1932. Regina Pinto (2010) considera que essa

primeira onda se manifestou no Brasil mais publicamente pela luta das sufragetes; ela ressalta,

também, da importância do movimento das operárias de ideologia anarquista, organizadas em

torno da “União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas”.

Em 1960, o movimento feminista entra em sua segunda fase, e aqui sinalizo o

lançamento de Quarto de Despejo. Caracterizada por ampliar os debates no campo político e

levar o individual para o político, essa fase se centra no “coletivo, demonstrando que o ser social

não se esgota na experiência de sua classe” (ALVES e PITANGUY, 2003, p. 58). De acordo

com essas autoras, é nesse período que, para alargar as discussões políticas, ampliam-se também

as discussões sociais que vão além da questão econômica, indicando novas maneiras de exercer

o poder. Para elas, a década de 60 é, portando, caracterizada por “intensa mobilização na luta

contra o colonialismo, a discriminação racial, pelos direitos das minorias, pelas reivindicações

estudantis” (2003, p. 58). Ainda, “é neste momento histórico de contestação e de luta que o

feminismo ressurge como um movimento de massas que passa a se constituir, a partir da década

de 70, em inegável força política com enorme potencial de transformação social” (ALVES e

PITANGUY, 2003, p. 58).

A segunda onda do movimento teve como pano de fundo um cenário político

efervescente marcado pela ditadura no país e indicativo de um momento de repressão, uma vez que

“o regime militar via com grande desconfiança qualquer manifestação de feministas por entendê-

las como política e moralmente perigosas” (PINTO, 2010, p. 16-17). É nesse momento que se

incorporam novas pautas, que vão além dos direitos nos âmbitos político e econômico. Com uma

conjuntura política marcada pela repressão, pautas relacionadas ao corpo, à sexualidade e à

violência sexual ganham força nos debates. Há, também, uma maior mobilização de mulheres em

espaços públicos, o que faz com que universidades e empregos formais sejam marcados pela

presença feminina, além de movimentos sociais como o Diretas Já.

A terceira onda feminista sustenta discussões sobre gênero, raça e classe e,

sobretudo, alavanca críticas ao discurso sobre a mulher universal, entendida aqui como uma

categoria, ao encará-la como um padrão que exclui diferenças e opressões desiguais. A respeito

disso, Camila Siqueira ressalta os imbricamentos dessa categoria como universal:

Trata-se de reivindicar a diferença dentro da diferença. As mulheres não são iguais aos

homens, na esteira das ideias do feminismo de segunda onda, mas elas tampouco são

todas iguais entre si, pois sofrem as consequências da diferença de outros elementos,

tais como raça, classe, localidade ou religião. (SIQUEIRA, 2015, p. 337-338)

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65

Essa terceira fase do movimento expõe sua face excludente, já que apenas uma

parte das mulheres se sentia representada. É nesse vão de pluralidade de mulheres e suas

distintas demandas femininas que pautas relacionadas ao gênero se tornam uma ferramenta

importante para a luta. Nesse cenário, as mulheres negras se organizam mais ativamente com o

intuito de lutar por suas reivindicações, uma vez que, embora o movimento feminista fosse

importante, ainda assim portava a marca da exclusão em seus discursos, inviabilizando a

representação da mulher negra. É, portanto, essa discussão que sustenta a necessidade e a

emergência dos feminismos negros.

Para Núbia Moreira, a relação entre as mulheres negras e o movimento feminista,

em um primeiro momento, foi marcada por certa resistência por parte das mulheres negras “em

aceitar a identidade feminista” (MOREIRA, 2006, p. 1). Ela destaca que é no III Encontro

Feminista Latino-americano, acontecido em Bertioga, em 1985, que a relação entre as mulheres

negras e o movimento feminista se efetiva. Para ela, é a partir desse ano que “surgem os

primeiros coletivos de mulher negras, época que antecederam alguns Encontros Estaduais e

Nacionais de Mulher Negras” (2006, p.1). Graças às reivindicações e conquistas dos

feminismos negros que mulheres negras passam a ser consideradas pelas políticas de

representatividade, enquanto sujeitos políticos, deslocando processos de significação

sedimentados ao longo de uma história de escravização, silenciamento e opressão.

Angela Davis, filósofa estadunidense, por sua vez, nos pontua que o movimento

feminista não é resumido a um só movimento; existe uma diversidade, dado que “nós temos

feministas por toda a parte (...) e mesmo dentre as feministas negras é preciso reconhecer a

grande diversidade existente (...) dentre todos estes tipos, é evidente que elas não concordam

necessariamente umas com as outras, já que muitas são as diferenças” (2011, s/n.). Davis

considera que se há uma pluralidade de movimentos, existe também um desafio: olhar para as

diferenças desses movimentos e reconhecer as contradições já que é evidente a heterogeneidade

entre os movimentos feministas.

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66

Figura 4: Diário da Noite, 1960.

Fonte: Diário da Noite, 1960, [n.p.].

A manchete acima (fig. 4) foi veiculada no Diário da Noite, em São Paulo, no

ano de 1960, nos apresenta como título: “Homenagem na campanha da associação Cristã

Feminina à escritora favelada”. Como matéria temos que a Associação Cristã Feminina, de São

Paulo, homenageou Carolina Maria de Jesus em sua primeira reunião social de acordo com o

plano de campanha financeira da associação. Na ocasião, a presidente da campanha, Maria

Lício Rizzo, “saudou a escritora favelada” e na sequência é possível perceber, pelo uso do

travessão, que no trecho “- homenageada do dia -” há uma enfatização, chama atenção, para o

fato de que Carolina, a “escritora favelada”, é homenageada. Essa “escritora favelada”

autografou o “seu Quarto de Despejo”, com ressalva para o uso do “seu” que depreende um

sentido pejorativo de “escritora favelada autografou seu Quarto de despejo”. Essa reunião visa

arrecadar fundos a fim de atender às necessidades da organização para as obras “de elevado

cunho sócio-assistencial de ajuda à mulher”.

O funcionamento da manchete e matéria dá a ver sentidos da benevolência da

mulher branca, a ideia de bondade e generosidade de uma mulher branca para com Carolina,

mulher negra. Nesse imbricamento, também há a caridade da mulher cristã, que atua como

benevolente por meio da religião, isto é, essa mulher branca, religiosa e bondosa representa

apenas uma parte das mulheres. Embora trata-se de uma associação “feminina” e não feminista,

temos um discurso assistencialista pautado pela benevolência, o qual se sustenta em um pré-

construído: uma suposta superioridade das mulheres brancas em relação a outras mulheres,

“assistidas” pela associação. Essa questão me parece tocar nas entrelinhas a ideia dos

movimentos feministas, conforme dito anteriormente, que durante muito tempo representou

reinvindicações de mulheres brancas, excluindo demandas e especificidades das mulheres

negras, indígenas e periféricas.

Nessa direção, bell hooks, feminista negra estadunidense, nos convida a refletir

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67

sobre a supremacia da mulher branca nos movimentos feministas e como é possível identificar,

em seus discursos, a desconsideração de pautas sobre raça e classe. A autora coloca:

As mulheres brancas que dominam o discurso feminista – as quais, na maior parte,

fazem e formulam a teoria feminista – têm pouca ou nenhuma compreensão da

supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição

política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista (hooks, 2015, p. 196).

hooks ainda pontua que “o racismo abunda nos textos de feministas brancas,

reforçando a supremacia branca e negando a possibilidade de que as mulheres se conectem

politicamente cruzando fronteiras étnicas e raciais” (2015, p. 196). Por essa perspectiva,

compreendo a manchete anterior, ao reforçar um pré-construído da benevolência da mulher

branca, tangencia o pensamento de hooks quando nos mostra a supremacia branca que denega

e silencia as pautas de mulheres negras.

Por isso, evoco Sueli Carneiro (2011, s/n) que ao questionar de que mulheres

estamos falando? provoca uma reflexão sobre quais feminismos e mulheres são representados

diante das pautas dos movimentos feministas. Por essa perspectiva, fomenta o debate sobre

como as mulheres negras, durante as primeiras ondas dos movimentos feministas, tiveram suas

histórias narradas pela posição privilegiada da mulher branca, ou seja, suas histórias foram

significadas por outras vozes, o que consequentemente produz silenciamento, opressão e

ausência de representatividade. Carneiro coloca em destaque a problemática da

interseccionalidade que atravessa as opressões e violências vivenciadas pelas mulheres negras;

a partir dela, compreende-se que questões que interseccionam sexismo, classe e raça são

imprescindíveis para compreender os movimentos feministas negros e a constituição do sujeito

mulher negra. A respeito disso, essa intelectual propõe para os feminismos negros uma

definição:

Construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como

são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo

e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria

hierarquia de gênero em nossas sociedades. (CARNEIRO, 2011, [n.p.])

Ao questionar “de que mulheres estamos falando?” e considerar que é preciso

“enegrecer o feminismo brasileiro”, Carneiro afirma a importância de introduzir e instituir

pautas que privilegiem a questão racial, de gênero, da violência contra a mulher negra como

reguladores da luta feminista negra. A autora ainda coloca que destacar as contradições como

efeito da articulação entre raça, classe e gênero, sustentadas por mulheres negras e o movimento

Page 71: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

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negro, possibilita “as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do

conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas

e reivindicações do movimento negro (CARNEIRO, 2011, [n.p.]).

Pensar a interssecionalidade, para além de Carneiro, é evocar Kimberlé

Crenshaw. Para a autora (2002, p. 177), que cunhou o termo em 1989, a interssecionalidade é

“uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas

da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” e acrescenta que o termo “trata

especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros

sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de

mulheres, raças, etnias, classes e outras”. Isto é, considerar a interseccionalidade é pontuar que

existe um sistema que oprime e, mais ainda, pensar em raça, classe e gênero como uma

intersecção. Segundo Crenshaw:

Tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções

complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As mulheres

racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a

xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem

atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas

e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nessas intersecções

em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o “tráfego” que flui

através dos cruzamentos (CRENSHAW, 2002, p. 177).

Nesse mesmo raciocínio de Crenshaw, de pensar opressões estruturais de

maneira não isolada, Angela Davis preconiza:

É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe.

E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma

que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para

perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre

essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas. Ninguém

pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras (DAVIS, 2011, [n.p.]).

Assim dizendo, compreendo com Kimberlé Crenshaw e Angela Davis que os

marcadores de raça, classe e gênero se cruzam de modo que é impensável considera-los de

maneira isolada. Refletir sobre Carolina, é reconhecer as intersecções que a acometem e as

múltiplas opressões que se cruzam enquanto mulher negra, mãe que residia na periferia, com

poucos anos de estudo.

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3.7 A "ESCRITORA NEGRA" E A FALHA NO RITUAL IDEOLÓGICO

Figura 5: Jornal do Brasil, 1960.

Fonte: Jornal do Brasil, 1960, [n.p.]

O recorte acima (fig. 5) foi retirado do Jornal do Brasil, veiculado no Rio de

Janeiro, no ano de lançamento de Quarto de Despejo. Embora os outros recortes selecionados

e analisados sejam de São Paulo, convoco essa manchete pois ela coloca em circulação outros

sentidos, mobilizados através da falha do ritual ideológico. A manchete “São Paulo lança uma

escritora negra: Carolina Maria” revela não mais a repetição, mas um novo sentido possível por

meio do emprego da designação “escritora”. Infiro ainda que neste recorte podemos perceber

que o sentido dominante não é homogêneo dado que pela falha ideológica a heterogeneidade

do sentido atua. Isto é, pelas brechas, pode-se notar que há possibilidades diferentes, e não

uniforme, de se interpretar Carolina.

Há, aqui, um processo polissêmico, dado que temos um deslocamento no sentido

da designação “favelada” encontrada com certa recorrência nas manchetes, ao contrário dos

processos parafrásticos, em que há algo da ordem da repetição, neste recorte vemos a polissemia

atuar. A manchete em questão (fig. 5) não nos traz os processos de repetição de um sentido que

se mantém, ela atesta a ruptura, ele atesta a ruptura, a descontinuidade da designação “favelada”

para o “escritora negra”. Temos, então, um sentido “diferente: nas mesmas condições de

produção imediatas (locutores e situação) há no entanto um deslocamento, um deslizamento de

sentido (polissemia)” (ORLANDI, 1998, p. 15).

Essa atuação da polissemia na ruptura dos sentidos, em que sinaliza a

possibilidade de uma nova designação que até então não aparecia, ela atesta, também, o lugar

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70

da ideologia. Isto é, o “escritora negra”, como na manchete, manifesta uma quebra de sentido e

demonstra, ainda, também a potência de Quarto de Despejo como um acontecimento que se faz

pelas brechas, pela quebra do ritual ideológico.

Nesse sentido, esse recorte dá a ver que a ideologia é um ritual com falhas,

conforme Pêcheux (2009, p. 277):

Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual supõe

reconhecer que não há ritual sem falha; enfraquecimento e brechas, ‘uma palavra por

outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça

no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos são abundantes, seja na

cerimônia religiosa, no processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso

político...).

A brecha no ritual ideológico possibilita entrever que o acontecimento

jornalístico, por mais que tenha se esforçado, não pôde capturar e apagar a potência do

acontecimento discursivo que foi a publicação de Quarto de Despejo. A força da escrita de

Carolina inaugura discursividades; ela influenciou uma geração de escritoras, militantes e

intelectuais que passam a atuar nas décadas subsequentes, ancoradas nas filiações de memória

que Carolina e o acontecimento de seu livro possibilita; Quarto de Despejo passa a funcionar

como referência básica no imaginário constitutivo do Brasil, estabilizando-se como

fundamental na construção da memória dos movimentos das mulheres negras. Um discurso

fundador. Entretanto, como nos mostrou Orlandi (1992), o discurso fundador não diz respeito

a um princípio absoluto; os sentidos não têm origem determinada.

Ele, o discurso fundador, funciona em função de uma relação de forças que

transfigura o sem-sentido em sentido. Carolina permite que determinados sentidos sobre as

mulheres negras possam surgir, deslocando o já-dito; seu livro, em sua dimensão de

acontecimento, significa o sem-sentido, dá lugar a lugares interditados pelos processos de

significação.

Enfatizo, por fim, a potência de acontecimento de Carolina e Quarto de Despejo

como produtores de memórias que insistentemente são apagadas e silenciadas, mas se dão pelas

lacunas dos sentidos hegemônicos. É nesse ínterim, pelas brechas, que o acontecimento se

coloca e é possível uma outra discursividade para Carolina. É partir do discurso fundador, como

considera Orlandi, que se “(...) instala as condições de formação de outros, filiando-se à sua

própria possibilidade, instituindo em seu conjunto um complexo de formações discursivas, uma

região de sentidos, um sítio de significância (...)”. Nesse limiar é que considero Carolina Maria

de Jesus como a possibilidade de um novo sentido, Quarto de Despejo inaugura uma

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71

discursividade. Ao designar “escritora negra” em uma manchete posta em circulação em 1960,

a formulação indicia uma nova maneira de significar as mulheres negras. A circulação dessa

designação, como resultado de processos polissêmicos, nos mostra que Carolina irrompe por

meio da sua escrita contundente, com Quarto de Despejo, transformando destinos ao constituir

novos modos de significar uma mulher negra.

Page 75: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

72

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com aporte teórico em Análise de Discurso, mobilizei conceitos fulcrais para

embasar as análises desta pesquisa, com o intuito de compreender os mecanismos pelos quais a

mídia interpreta Carolina Maria de Jesus e Quarto de Despejo. Foi preciso percorrer,

inicialmente, os fundamentos teóricos, explanados no primeiro capítulo, onde fica evidente a

importância da noção de interpretação, o conceito que estrutura pesquisa. Isto é, ao sustentar as

análises na interpretação, teorizada por Orlandi (2007), falei sobre sua relação com a língua,

discurso, ideologia, silêncio, memória e os efeitos de sentidos. O que me fez chegar ao fato de

que a leitura discursiva feita pelas manchetes de 1960, que compõem o corpus, percorreu o

imbricamento desses conceitos, uma vez que me permitiram chegar aos efeitos sentidos

possíveis provenientes das possibilidades de interpretar a autora e sua obra.

A partir da delineação teórica no primeiro capítulo, no segundo foi preciso

apresentar como se deu a construção e constituição do dispositivo analítico. Para tanto, foi

necessário também passar por outras concepções teóricas, como a noção de trajeto temático,

arquivo e corpus com o intuito de sustentar o gesto de leitura do/no arquivo. Nesse sentido,

pontuo a construção do dispositivo analítico a partir de um trajeto de leitura no arquivo da

biblioteca nacional. Isto é, a partir da noção de trajeto temático foi possível delinear e selecionar

quais manchetes comporiam o corpus ao ter como parâmetro a regularidade de determinadas

designações, como a designação “favelada”.

Depois de definir os fundamentos teóricos e delinear a construção do corpus, o

terceiro capítulo tratou do funcionamento das designações nos jornais em 1960. Para isso foi

necessário explanar as condições de produção em que Quarto de Despejo fora lançado, bem

como tratar dos vestígios higienistas da época e dos sentidos não romantizados que a obra

possibilitou. Antes de adentrar as análises, foi preciso discorrer sobre acontecimento

jornalístico, o que permitiu compreender como a circulação de determinados discursos

contribuem para as interpretações que recaem em Carolina e sua obra.

Ainda no terceiro capítulo, as análises são mobilizadas a partir de certas

designações e percebe-se um funcionamento de repetição que perpassam o estereótipo e a

inversão do nome próprio. Em consonância a essas duas noções, adentrei e percorri a trilha dos

Page 76: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

73

movimentos feministas como forma de verificar que o processo de estereotipagem e a inversão

do nome próprio da autora nega à Carolina a existência de um sujeito de direito e, também, seu

reconhecimento enquanto mulher negra escritora e autora. Nessas análises foi possível concluir

que as designações, por meio do jogo da paráfrase, provocam a repetição e a insistÊncia em um

sentido que denega Carolina como autora. Ou seja, a recorrência do termo “favelada” marca

um processode estereotipagem e, ao mesmo tempo, apaga o sentido de autora.

Por fim, concluo que as especificidades do aporte teórico em consonância às

manchetes que compõem o corpus não se limitam a uma única formulação interpretativa para

Carolina Maria de Jesus e sua obra. Dito em outras palavras, infiro que a mídia mobiliza

designações que são atribuidas para Carolina e majoritariamente a escritora é reduzida ao

estereótipo de favelada, denegando o sentido de autora. No entanto, o funcionamento linguístico

das designações empregadas nas manchetes de jornais também é suscetível à falha ideológica.

Isto é, vimos que, na última análise apresentada, se por um lado há a insistência na designação

“favelada”, por outro, a quebra do ritual ideológico permite inaugurar um novo sentido. Em vista

disso, concluo, portanto, no jogo da polissemia, que a descontinuidade dos sentidos de “favelada”

torna possível inaugurar uma nova discursividade, a de “escritora negra” para Carolina Maria de

Jesus.

Page 77: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

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2020.

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80

ANEXOS

1. Manchetes de 1960

1.1 São Paulo

Diário da Noite, 1960, [n.p.].

Page 84: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

81

Diário da Noite, 1960, [n.p]

Page 85: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

82

Diário da Noite, 1960, p. 5

Page 86: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

83

Diário da Noite, 1960, p. 20.

Page 87: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

84

1.2 Rio de Janeiro

Última hora, 1960, [n.p.].

Jornal do Brasil, 1960, [n.p.].

Jornal do Brasil, 1960, [n.p.].

Page 88: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

85

1.3 Paraná

Última Hora, 1960, [n.p.].

Page 89: GABRIELA MOREIRA BURANELLI

86

Última Hora, 1960, p. 8

Última Hora, 1960, p. 5.