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UNIVERSIDADE DO VALE DO PARABA FACULDADE DE EDUCAO E ARTES CURSO DE HISTRIA

JONAS LEANDRO CASTILHO SILVA

ELUCIDANDO COMPORTAMENTOS ATRAVS DE CHARGES (1951-1970)

So Jos dos Campos 2008

UNIVERSIDADE DO VALE DO PARABA FACULDADE DE EDUCAOE ARTES CURSO DE HISTRIA

JONAS LEANDRO CASTILHO SILVA

ELUCIDANDO COMPORTAMENTOS ATRAVS DE CHARGES (1951-1970)

Relatrio final apresentado como parte das exigncias da disciplina. Trabalho de Graduao banca examinadora do Curso de Histria da Faculdade de Educao e Artes da Universidade do Vale do Paraba, sob a orientao da Prof. Dr. Valria Zanetti.

So Jos dos Campos 2008

DEDICATRIA

Dedico este trabalho primeiramente a Deus que me deu Fora, Sabedoria e Perseverana para enfrentar esta jornada rumo ao conhecimento; a Alessandra que foi minha companheira durante toda esta caminhada sustentando meus passos nas horas difceis, a minha famlia que foi o alicerce para esta conquista.

AGRADECIMENTOS

Agradeo

a

minha

esposa

pela

compreenso das horas que no dediquei a ela para tornar possvel este sonho. Agradeo a meus pais que me deram o dom da vida e me levaram pelas mos desde o incio desta caminhada. Agradeo aos meus irmos que ao convierem comigo emprestaram um

pouco de si que trago nestas linhas. Aos meus amigos que de alguma forma contriburam para que eu chegasse at aqui, aos professores, de forma especial a Prof. Dr. Valria Zanetti que me deu o arcabouo terico para desenvolver estas linhas, finalmente a Deus que voltou o seu olhar para mim dando condies para que eu no desistisse da caminhada.

COMO NOSSOS PAISNo quero lhe falar, Meu grande amor, Das coisas que aprendi, Nos discos...

Quero lhe contar como eu vivi, E tudo o que aconteceu comigo Viver melhor que sonhar, Eu sei que o amor, uma coisa boa Mas tambm sei, Que qualquer canto menor do que a vida De qualquer pessoa...

Por isso cuidado meu bem, H perigo na esquina Eles venceram e o sinal, Est fechado pr ns Que somos jovens...

Para abraar seu irmo, E beijar sua menina na rua que se fez o seu brao, O seu lbio e a sua voz...

Voc me pergunta, Pela minha paixo Digo que estou encantada, Com uma nova inveno Eu vou ficar nesta cidade, No vou voltar pro serto Pois vejo vir vindo no vento, Cheiro da nova estao Eu sei de tudo na ferida viva Do meu corao...

J faz tempo, Eu vi voc na rua Cabelo ao vento, Gente jovem reunida Na parede da memria, Essa lembrana o quadro que di mais...

Minha dor perceber, Que apesar de termos Feito tudo o que fizemos Ainda somos os mesmos, E vivemos Ainda somos os mesmos, E vivemos

Como os nossos pais...

Nossos dolos, Ainda so os mesmos E as aparncias, No enganam no Voc diz que depois deles No apareceu mais ningum Voc pode at dizer, Que eu t por fora Ou ento, Que eu t inventando...

Mas voc, Que ama o passado E que no v voc, Que ama o passado E que no v Que o novo sempre vem...

Hoje eu sei, Que quem me deu a idia De uma nova conscincia, E juventude T em casa, Guardado por Deus Contando vil metal...

Minha dor perceber, Que apesar de termos Feito tudo, tudo, Tudo o que fizemos Ns ainda somos Os mesmos e vivemos Ainda somos Os mesmos e vivemos Ainda somos Os mesmos e vivemos Como os nossos pais... Belchior

SUMRIORESUMO ..............................................................................................................................08 INTRODUO ....................................................................................................................09 CAPITULO I ........................................................................................................................10 A imagem documentando a histria ............................................................................10 A charge ......................................................................................................................13 CAPTULO II .......................................................................................................................17 A modernidade e o Brasil, o baro de Itarar ..............................................................17 Uma breve histria da dcada de 1950 ........................................................................17 O jornal ULTIMA HORA .............................................................................................18 Baro de Itarar, O Dom Quixote do Brasil ................................................................22 A charge do Baro de Itarar .......................................................................................26 O advento da modernidade e o comportamento da sociedade por meio de charges ...28 Outras charges da dcada de 1950 ..............................................................................37 CAPITULO III ......................................................................................................................44 O Brasil e a ps-modernidade, ou a alta modernidade ................................................44 A modernidade e o mecanicismo ................................................................................45 Segurana e Perigo, Confiana e Risco .......................................................................46 Uma breve histria da dcada de 1960 .......................................................................51 Ps-modernidade ou alta modernidade .......................................................................62 CONSIDERAES FINAIS ...............................................................................................71 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................74

RESUMOO trabalho Elucidando o comportamento atravs de charges, fala sobre as mudanas comportamentais e polticas, que ocorreram na sociedade brasileira entre 1951 e 1970, atravs de uma anlise iconogrfica, das charges que foram publicadas do jornal Ultima Hora do mesmo perodo. O objetivo do trabalho analisar estas mudanas procurando perceber a passagem do perodo moderno para o ps-moderno, alm das variaes polticas documentadas nas charges. As charges esto carregadas de subjetividade que na maioria dos casos tratam dos conflitos polticos da poca, entretanto algumas tambm abordam o tema comportamento, tornando possvel a este trabalho fazer algumas breves observaes sobre este tipo de mudana. Alm disso, o trabalho procura mostrar a industrializao e urbanizao como um fenmeno ligado s instituies modernas, mostrando com este influenciou as mudanas de mentalidade neste momento da histria no Brasil, para realizar tal anlise o trabalho fala um pouco sobre a histria do jornal Ultima Hora e sobre o Baro de Itarar, elucidado na figura 1 fazendo uma relao de sua postura diante dos acontecimentos que se sucederam. Por fim o trabalho trata de algumas caractersticas da ps-modernidade na sociedade brasileira da dcada de 60 e 70, as charges que foram utilizadas neste captulo falam de temas como os hippies, liberdade sexual e questes polticas, que no so observadas em publicaes anteriores, mostrando dessa forma, indcios de mudanas comportamentais.

Palavras-chave: Charges, Hippies, Histria, Ps-modernidade, Modernidade.

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INTRODUOFreqentemente nos deparamos com questes que esto envolvidas com mudana de mentalidade na sociedade, porm hoje temos cincia de que a forma de pensamento est diretamente relacionada com a realidade que ns produzimos em todas as esferas das relaes humanas. Entretanto para que possamos perceber as mudanas de mentalidade numa sociedade especfica, preciso conhecer em qual patamar que est se encontrava, por isso este trabalho tem por objetivo elucidar as mudanas de comportamento da sociedade brasileira, em especial paulista e carioca, entre anos de 1950 e 1970 atravs de uma anlise iconogrfica das charges que foram produzidas no mesmo perodo e publicadas no jornal Ultima Hora, veculo de comunicao fundado por Samuel Wainer no incio do segundo governo de Getlio Vargas em 1951.

A anlise de imagens faz se necessrio para observar este objeto de estudo, uma vez que o historiador que vai trabalhar com mudanas de mentalidade possui uma grande dificuldade para encontrar documentos que possibilitem uma anlise dessas mudanas, por isso no Capitulo I abordamos o papel da imagem documentando a histria, sendo ela um documento repleto de subjetividade, com isso esperamos obter algumas respostas para a problemtica levantada.

No Capitulo II iremos analisar a figura do Baro de Itarar, figura 1, para buscar a percepo da entrada do Brasil na modernidade, a charge publicada no jornal Ultima Hora, nos leva a necessidade de conhecer a histria do jornal, por isso devemos neste mesmo captulo falar brevemente sobre a construo do jornal e posteriormente sobre Apparcio Fernando de Brinkerhoff Torelly, o Baro de Itarar, para que em seguida possamos analisar a charge que no foi feita pelo Baro, mas sim por um autor no observado.

No Capitulo III, iremos trabalhar com as charges que foram publicadas no final da dcada de 50 durante a dcada de 60 e 70, a fim de procurarmos perceber mudana de mentalidade para o advento da ps-modernidade.

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CAPITULO IA imagem documentando a histriaTodo historiador que vai trabalhar com histria das mentalidades, eventualmente se defronta com vrios obstculos em sua caminhada rumo ao conhecimento, mas dentre todos, o que diz respeito falta de fonte, definitivamente o que mais dificulta uma pesquisa. O uso de imagem tambm pode ser uma fonte capaz de elucidar vrias questes que o discurso escrito ou falado muitas vezes no alcana. Francastel fala sobre a utilizao da imagem, uma vez que, ao mostrar uma coisa, fornece informao, tanto abstrata como sensveis, com uma preciso pelo menos igual, ainda que situada noutro plano, das informaes do discurso.1

A imagem, Segundo Francastel, traz ao mesmo tempo um discurso direto e subjetivo, com a mesma preciso ou talvez at maior ao do discurso escrito e falado. Michael Focault complementa esta idia que posteriormente Francastel conclui:

... admite-se que deve haver um nvel (to profundo quanto preciso imaginar) no qual a obra-se revela, em todos os seus fragmentos. 2 A obra de arte sempre heterognea, associando e combinando fragmentos que, ao nvel da representao, se inserem em conjuntos de experincias variadas. 3

Conforme Foucault e Francastel, as imagens podem ter vrios sentidos, no uma tarefa fcil identificar os componentes ocultos que constroem o discurso que a imagem quer transmitir. Por isso, faz-se necessrio compreender o momento histrico em que elas foram produzidas para que possamos enxergar estes componentes ocultos. Mas somente isto no basta para chegarmos ao cerne desta discusso, pois a imagem um smbolo que, junto das impresses de sua poca, tambm traz informaes da subjetividade de seus construtores, sendo assim uma linguagem que supera as suas antecessoras como expressa Teixeira:

A Imagem o veculo prprio para as representaes simblicas que a sociedade e a cultura forjam sobre si mesmas, o modo privilegiado para representaes do imaginrio coletivo. A partir da dcada de 1950, uma civilizao da imagem uma cultura marcada por uma comunicao cada vez mais visual comea a se afirmar1 2

FRANCASTEL, Pierre. A Imagem, a viso e a imaginao, p. 24. FOUCAULT, Michael. A arqueologia do saber, p.27. 3 FRANCASTEL, Pierre. idem, p. 27.

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em detrimento de uma sociedade dominada, at ento, pelas limitaes do discurso verbal baseada no texto como forma, se no exclusiva, pelo menos majoritria de expresso.4

justamente a partir da dcada 1950 que a imagem comea a se afirmar em relao a outras formas de expresso humana, atualmente podemos perceber como sua utilizao macia em nossa sociedade. Contudo, no meio acadmico, ainda hoje a imagem permanece em segundo plano frente utilizao do documento escrito ou oral como fontes histricas. As formas de linguagens verbais e as no verbais5, possui tratamento diferente no tocante a regras e padronizaes, pois as no verbais, pelo fato de no ter regras como as gramaticais, que possam padronizar sua compreenso, permanecem afastadas do meio de estudo acadmico, no entanto cada vez mais ela ganha espao como forma de saber direto, por expressar por si prpria um discurso, como diz aquela velha frase de autor desconhecido uma imagem vale mais do que mil palavras.

A iconografia carece de um lugar prprio na academia, a partir do qual se possa pensar as especificidades e as mltiplas significaes que as suas diversas linguagens produzem e proporcionam. De modo geral e a despeito de reflexes espordicas - a antropologia e a comunicao so excees de praxe, apesar de priorizarem sua tcnica -, as cincias humanas negligenciam a imagem como portadora de informaes capazes de se auto-expressar, de articular discursos prprios, autnomos e singulares. 6

A idia da lngua ser um meio de comunicao exclusivo e privilegiado deve-se a um condicionamento histrico que nos levou crena de que as nicas formas de conhecimento, de saber e de interpretao do mundo, so aquelas veiculadas pela lngua na sua manifestao oral, verbal e escrita.

No entanto, os grupos humanos sempre acharam formas variadas de manifestarem sua viso de mundo, sejam atravs de desenhos nas grutas de Lascaux, ou pelos rituais nas tribos, como a dana, cerimnias, msica e jogos, alm das formas de criao de linguagem que acabamos por chamar de arte: desenhos, pinturas, esculturas, cenografia etc. Coube, pois, semiologia, contemplar o estudo destes signos como sendo a cincia que estuda toda forma de linguagem, seja ela verbal ou no verbal.7 Embora a imagem continue a pertencer a um campo de estudo da histria da arte ou a um campo da semiologia, ela ainda reivindica um campo do4 5

TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodr. Sentidos do Humor, trapaas da razo, a charge, p.16. SANTAELLA, Lucia. O que semitica, 1994. 6 TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodr. Sentidos do Humor, trapaas da razo, a charge, p.56. 7 SANTAELLA, Lucia, Idem.

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saber especfico por ter uma inteligibilidade interna de seu discurso e estrutura narrativa autnoma.

Contudo, a manipulao constantemente um dos maiores argumentos que desqualifica a imagem como documento capaz de reproduzir fatos como fontes histricas. No entanto, segundo Teixeira, qualquer documento antes de registrar seu ponto de vista sofre uma manipulao:

A manipulao eventual do contedo da imagem o argumento que freqentemente a desqualifica e desautoriza como documento capaz de reproduzir fatos como fontes histricas. Entretanto, no h documento que no implique um ponto de vista, que no resulte de manipulao, uma vez que o que ele diz, e no diz, faz parte do que a histria conta, e no conta. Diz M. Ferro... 8

O documento iconogrfico no campo da histria visual possui uma riqueza de informao. Mapas, fotos, desenhos, pinturas e gravuras detm um poder de significar e informar que vai muito alm da unidade tradicional e linear do texto documental. Ele ultrapassa e conseqentemente renova as formas tradicionais de compreenso histricas inauguradas com a escola dos Annales na dcada de 1930. Dessa forma, o documento iconogrfico contempla transformaes que acontecem no campo das mentalidades ao ultrapassar um estruturalismo moderno rumo ao ps-moderno.

A histria visual incorpora contedos mltiplos que revigoram o discurso da histria, tal como o estruturalismo na dcada de 1970 renovou o discurso das cincias sociais, a metodologia e a epistemologia, fertilizando o campo da prpria histria. Ela se constri a margem da linearidade de narrativas textuais clssicas, dando conta das diversas rupturas que a ps-modernidade.9

Uma imagem antes uma imaginao. Ela foca um momento que vai alm dos limites espao-temporal, registrando objetos que passaram a ser encarados como condies de mentalidades. Com este trabalho pretendemos identificar elementos que evidenciem a passagem do perodo moderno para o ps-moderno, sendo o segundo encarada por alguns especialistas como uma decorrncia do primeiro. Anthony Giddens, em seu livro As conseqncias da Modernidade, apresenta o conceito de modernidade como sendo aquilo que se refere-se a estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a8 9

TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodr. Sentidos do Humor, trapaas da razo, a charge, p.65. TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodr.Idem, p.66.

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partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia. 10 Dessa forma, a charge o documento que, conforme visto anteriormente melhor pode evidenciar elementos que reflitam momentos histricos, tanto o perodo moderno quanto o ps-moderno, sendo este:

... caracterizada por uma evaporao da grand narrative o "enredo" dominante por meio do qual somos inseridos na histria como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizvel. A perspectiva ps-moderna v uma pluralidade de reivindicaes heterogneas de conhecimento, na qual a cincia no tem um lugar privilegiado. 11

A charge Nos jornais, normalmente vemos uma seo destinada s charges, representao pictrica, de carter burlesco e caricatural, em que se satiriza um fato especfico, em geral de carter poltico, de conhecimento pblico.12

De forma caricatural, os desenhos trazem

assuntos do cotidiano com traos de humor e inteligncia. A charge traz sempre a informao aliada reflexo, ela resume situaes polticas que a sociedade vive e os recria nos limites dos seus traos com uma dose considervel de humor. A forma produtiva que a linguagem da charge se move aponta para a negao da razo como nica forma de obteno de significao da realidade. Contudo, todo objeto representado em uma charge no faz uso necessariamente da semelhana, mesmo assim ela continua representando seu objeto junto ao mundo; algo que incrivelmente contrrio da linguagem oral que somente torna seu objeto reconhecvel aps descrever semanticamente traos de semelhana com aquilo que o representa. Foucault ressalta que:At o fim do sculo XVI, a semelhana desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretao dos textos: foi ela que organizou o jogo dos smbolos, permitiu o conhecimento das coisas visveis e invisveis, guiou a arte de represent-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o cu, o rosto mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo em suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espao. E a representao fosse ela festa ou saber - se dava como

10 11

GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.08. GIDDENS, Anthony. Idem, p.12. 12 RABAA, C. A. & BARBOSA, G. Dicionrio de Comunicao. Rio de Janeiro: Codecri, 1978, p.89.

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repetio: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o titulo de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar.13

Na linguagem oral, a semelhana o que torna assimilvel o discurso nos textos escritos ou nas representaes mesmo orais ou pictricas. J a charge transmite seu discurso sem apoiar-se neste alicerce da comunicao. Ao invs disso, ela se apia no sentido para transmitir sua mensagem quando aciona um mecanismo que produz sentido e verdade na imaginao. Dessa forma, veicula sua informao tangenciando os limites da fronteira da realidade e da razo. Ela produz personagens construindo uma identidade cujo produto resultado de um distanciamento crtico, dessa forma, seu desafio produzir um sujeito real num personagem fictcio, contudo consciente e verdico, revelando por meio do sentido uma verdade sobre ele. Na charge, o sentido tem a funo de recriar a identidade por meio da diferena criando assim uma co-relao diferena/identidade entre o sujeito e o personagem fazendo com que estes compartilhem algo em comum. Esta diferena diz respeito ao modo de ser imaginrio do seu sujeito, algo que no est aparente, mas sim implcito a sua imagem e explicito em uma situao real. Por isso, a charge cria seu discurso por meio de uma ruptura com o real e atravs de uma fissura com a razo, distanciando-se assim do modo Cartesiano de representar o mundo. Essa fissura na razo o que possibilita charge atribuir o sentido que ultrapassa o bom senso e o senso comum, sendo estes atributos unnimes na sociedade como forma capaz de significao. No obstante a isso, igualdade por diferena somente possvel quando ultrapassa os limites da razo tornando transparente e verdadeiro o que antes permanecia oculto implcito ao sujeito.

Contudo, o discurso que a charge veicula pode ser considerado agressivo, pois a crtica que ela representa atinge a rea mais obscura dos sujeitos que so submetidos a ela. Esta crtica uma parte funcional do trao a qual o sujeito decifrado e decodificado num personagem diferente que transparece suas aes antes encobertas por uma imagem criada para satisfazer o senso comum e o bom senso que a sociedade dita como regra de boa

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FOUCAULT, Michael. A palavra e as coisas, p.23.

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conduta. Ela transpassa a subjetividade de seus atos, alcanando as entrelinhas de suas aes objetivas, apontado dessa forma para o no evidente.

Apesar disso, a agressividade que a charge permeia, encontra credibilidade junto sociedade mesmo fugindo das regras sociais de convivncia. Por dizer algo que corresponde a um sentimento geral na sociedade, a ela permitido dizer aquilo que todo mundo pensa, mas no possvel ser dito por outros meios. Suas situaes de consenso social compartilhando sentimentos comuns com a sociedade sejam estes de perda, luto, de exaltao ou euforia, atribuem a charge nestes momentos de excees o bom senso e o senso comum, sendo por fim a porta voz privilegiada de um sentimento geral, consensual e coletivo.14

No entanto, as linhas e entrelinhas das charges mostram o momento que ela retrata. A histria das charges no Brasil mostra que os traos das charges sofrem alteraes ao longo dos anos juntamente com as mudanas que ocorriam na sociedade. As primeiras obras artsticas pictricas produzidas no Rio de Janeiro procuravam seguir certa padronizao, como o fato de sempre procurarem ser semelhantes aos seus representados, sem fugir das regras estticas. As de hoje j possuem um trao crtico, conforme nos diz Teixeira:

A rigor, os desenhos de humor desses pioneiros no se parecem com as charges tal como as conhecemos hoje: um produto singular fruto de progressivo amadurecimento de forma e contedo, cujo trao est ligado criticamente aos problemas da sociedade na qual se insere. De incio, ao contrrio, as charges se caracterizavam pela reproduo fidedigna de personagens a caricatura no havia sido ainda, incorporada ao grafismo de sua linguagem , pelo realismo das situaes que abordava fruto de uma sociedade condicionada por uma viso excessivamente cartesiana da realidade , e pela prolixidade de textos que menosprezavam a imagem como portadora de estrutura narrativa prpria.15

Teixeira quer dizer que as charges estavam presas ao padro Cartesiano. Podemos dizer que as charges estavam seguindo o paradigma do seu tempo. No entanto, ao lanarmos os olhares para as charges dos meados do sc. XX, o trao caracterstico que observamos de um enorme teor poltico associado com a crtica sagaz da sociedade em questo, com as linhas das obras sem necessariamente se preocupar com a reproduo fidedigna de seu objeto em questo. Sendo um produto de uma sociedade que passa pela mudana da modernidade para a

14 15

TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodr. Sentidos do Humor, trapaas da razo, a charge. TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodr. O trao como texto: A histria da charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930.

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ps-modernidade, as charges que compem este trabalho tem em seu trao uma veia psmoderna que foge das linhas corretas que significam algo pelas diferenas atingindo a subjetividade mais do que a objetividade, criando uma linguagem exclusiva que somente seria compreendida mesmo neste momento histrico.

Por tudo que foi apresentado, vemos que a charge a fonte mais completa para representar a evoluo dos comportamentos sociais no Brasil durante as dcadas de 1950, 1960 e 1970 elucidando dessa forma os comportamentos dos indivduos. Veremos, a seguir, a apreciao deste material como fonte primria, mais especificamente as charges que foram publicadas no jornal Ultima Hora do Rio de Janeiro e So Paulo de 1951 a 1970.

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Captulo IIA modernidade e o Brasil, o baro de ItararUma breve histria da dcada de 1950

A dcada de 50 presenciou uma srie de mudanas na sociedade brasileira, uma vez que medidas tomadas em meados da dcada de 40 finalmente possibilitaram ao pas, com algumas ressalvas, encontrar o caminho para a modernidade. Neste momento, o Brasil procurava compensar seu atraso ante as potncias mundiais. Para isso, enfrentou a qualquer custo um projeto de avano tecnolgico e industrial para deixar de ser um pas atrasado e passar a fazer parte do grupo de pases industrializados. Com isto, recebeu uma avalanche de investimentos estrangeiros como dos americanos, que nos exportaram no s tecnologia e capital, mas tambm cultura.

Neste sentido, os valores americanos foram a principal influncia para a mudana de mentalidade econmica, poltica e social. O modo de vida americano passou a ser apreciado e perseguido pela classe mdia emergente. Em So Paulo, o estado que mais avanou rumo industrializao, tambm virou a mais ntida vitrine do que podemos chamar de mudanas de comportamento em sua sociedade, com uma alterao to rpida dos costumes e modo de vida, sofreu fortes mudanas de comportamento.

Na poltica, a sada do poder de Getlio Vargas em 1945, reservava para a dcada de 50 sua volta pelas mos do povo. Entretanto, as mesmas pessoas que o reerguero no sero as mesmas do Brasil que Getlio viu do alto dos seus 15 anos no poder. Os acontecimentos que se sucederam no Brasil na dcada de 50 parecem se encaixar plenamente com as mudanas de mentalidade refletidas na sociedade. Por isso, neste captulo, iremos apresentar a charge do Baro de Itarar como um smbolo do que o Brasil almejou neste momento da histria: ser o pas do futuro. Contudo, tendo na figura do Baro uma representao de Dom Quixote que enxerga aquilo que as outras pessoas no so capazes de enxergar. O que ser apreciado a histria do Baro e sua trajetria e no ele como chargista uma vez que a charge dele no foi feita por ele, mas por um a autor no identificado.

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Esta como todas as outras charges foram publicadas no jornal Ultima Hora, por isso, faz-se necessrio conhecer brevemente a histria do jornal e a do Baro, para que possamos prosseguir.

O jornal Ultima Hora O jornal Ultima Hora, fundado em 12 de junho de 1951 no Estado do Rio de Janeiro, por trazer um rico acervo de imagens caricaturais da poca, foi escolhido como fonte primria para conduzirmos nosso entendimento sobre as questes acerca das mudanas de mentalidade. Este jornal, alm do seu rico acervo, passou a ser publicado tambm em sete cidades do Brasil, dentre elas So Paulo. Por conta da sua cobertura quase nacional, e por ser considerado pelo jornalista Carlos Lacerda como uma imprensa que servia aos interesses do Governo de Getlio Vargas, coube-nos entender melhor a funo e representao do referido jornal no cenrio poltico-cultural. Getlio Vargas, voltando ao poder pelo voto popular em 1951, encontrou fortes oposies por parte de diversas correntes polticas, assim como parte da grande imprensa. O jornalista Samuel Wainer, que conhecera Vargas em So Borja quando este estava na produo de uma srie de reportagens para os Dirios Associados, acabou estabelecendo um vnculo de amizade com Getlio, passando a freqentar seu ambiente familiar. Surgiu ento a idia de criar um jornal que fosse porta-voz das realizaes do governo. Dessa forma, foi fundado o jornal Ultima Hora, garantindo excelentes rendimentos e prestgios a Wainer nos crculos governamentais. O jornal Ultima Hora, desde sua fundao, foi tido como um veculo que revolucionou os peridicos cariocas (e posteriormente o paulista). Com uma nova forma de abordagem jornalstica, mquinas modernas e salrios mais altos do mercado, o jornal comeou a arregimentar, em pouco tempo, os melhores jornalistas da poca. Contudo, o sucesso inegvel do jornal no impediu que simultaneamente uma campanha contra seu fundador Samuel Wainer e ao grupo Wainer composto pela Companhia Paulista Editora e de Jornais S.A., pela Editora rica, pelo Rdio Clube e pela ltima Hora, fosse deferida por Carlos Lacerda, parlamentar da Unio Democrtica Nacional (UDN) e proprietrio do dirio Tribuna da Imprensa. Lacerda acusava Wainer de favoritismo por parte dos rgos oficiais, especificamente com relao ao Banco do Brasil, no tocante concesso de crditos ao grupo. Um dos pontos levantados nas denncias era a dvida quanto nacionalidade de Wainer, uma 18

vez que a lei brasileira no permitia que estrangeiros fossem proprietrios de empresas jornalsticas. Alvos de tantas acusaes, Samuel Wainer e Getlio enfrentaram uma forte onda de condenao por um comportamento amoral, este caso teve uma grande repercusso e em junho de 1953 a UDN conseguiu instaurar uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) pela primeira vez no Brasil. Este caso forneceu aos antigetulistas uma grande oportunidade de explorar os receios da classe mdia sobre a imoralidade e a corrupo existente no governo16, uma vez que sua forte ligao com Getlio alimentava toda a campanha liderada pela Tribuna da imprensa com a finalidade de averiguar as operaes de crdito realizadas entre o Grupo Wainer e o Banco do Brasil presidido naquele momento por Ricardo Jaffet. A CPI instaurouse a partir da resoluo n 313, de 3 de junho, juntamente com outra, esta oriunda da resoluo n 314, instaurada para investigar o montante de cruzeiros das operaes efetuadas entre o Banco do Brasil e as empresas jornalsticas no perodo 1943 a 1953. 17 Ambas CPIs foram presididas por Carlos Castilho Cabral. Durante os cinco meses de trabalho da CPI sobre a Ultima hora foram ouvidas 27 testemunhas. Samuel Wainer e Carlos Lacerda prestaram dois depoimentos, que se transformaram, respectivamente, nas publicaes Livro branco contra a imprensa amarela e Preto e branco. Wainer defendeu-se das acusaes declarando que sua ligao com Vargas certamente lhe trouxe algumas facilidades de contatos, como traria a qualquer pessoa, mas que jamais recebeu privilgios por parte do governo afirmou que seu sucesso deveu-se, basicamente, ajuda financeira recebida de amigos pessoais, como o conde Matarazzo, em So Paulo. Alm de ter um fundo muito grande antigetulistas esta investida da oposio tambm se deve a uma campanha contra o grupo Wainer para combater o sucesso do jornal Ultima Hora e a ameaa que este significa para os outros jornais, porm, antevendo que os resultados do inqurito sobre o jornal apontariam a culpa formal do governo, a oposio chegou mesmo a sugerir o impeachment do presidente da Repblica. No entanto, ao encerrarem seus trabalhos em novembro de 1953, as Comisses Parlamentares de Inqurito concluram que realmente havia a existncia de irregularidades nas transaes de crdito do Banco do Brasil com as empresas jornalsticas. Contudo, estas16 17

SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p.162. BUONICORE, Augusto. As peripcias de um Baro vermelho 33 anos da morte de Aparcio Torelly.

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transaes irregulares aconteciam de modo geral com todas as empresas, e no exclusivamente com as do grupo Wainer. A maioria das empresas jornalsticas do pas, de fato, gozava de concesses advindas desse banco, nada foi provado que pudesse propiciar oposio uma pea acusatria para o impeachment de Vargas. 18 No obstante, mesmo aps o incidente da CPI, as presses sobre Vargas intensificaram-se e com o assassinato do major-aviador Rubens Vaz, que acompanhava Carlos Lacerda na noite de 5 de agosto de 1954, Getlio viu-se obrigado a afastar-se para resolver. Contudo, Getlio pediu a Wainer, atravs de seu filho Manuel Vargas e de Danton Coelho, que publicasse em Ultima Hora a manchete "S morto sairei do Catete". Esta manchete seria publicada quando, no dia 24 de agosto, o presidente se suicidou. Rapidamente, Wainer acrescentou uma linha reportagem que j estava pronta: "Ele cumpriu sua palavra: s morto sairei do Catete. O jornal publicou ainda um editorial intitulado "Pela ordem", que conclamava o povo a manter a calma, pois era precisamente o desespero e a destruio que os inimigos de Getlio esperavam para esmagar qualquer reao popular. A tiragem de Ultima Hora nesse dia foi de setecentos mil exemplares. Foi o nico jornal a circular no Rio de Janeiro, pois os demais foram impedidos de faz-lo pela ao do povo. No entanto, no foi a morte de Getlio Vargas que eliminou a campanha contra o jornal. Carlos Lacerda retomou a intensiva ainda com mais fora. Iniciou-se um boicote de publicidade, que reduziu a tiragem do jornal para 12 mil exemplares. Nesse momento, Edmar Morel realizou uma srie de reportagens sobre as condies em que se encontravam os detentos nas prises cariocas. Graas a uma ordem de Tancredo Neves, ministro da Justia, ele conseguiu penetrar no que chamou de catacumbas policiais, e denunciou as condies precrias das cadeias atravs de fotos que chocaram a opinio pblica. As reportagens de Edmar Morel fizeram com que as tiragens do jornal dessem um salto para 330 mil exemplares. Na verdade, essa srie de reportagens iniciada por Morel foi apenas uma tentativa de trazer de volta os dias prsperos do jornal que, em 1955, deixou a luxuosa sede da avenida Presidente Vargas para um velho depsito de leite, na rua Sotero dos Reis, em So Cristvo. Contudo, Carlos Lacerda exigia o fechamento do jornal Ultima Hora, acusado de ser um dos principais rgos da imprensa comunista. Em virtude disto, foi convocada uma reunio qual compareceram os ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronutica, o chefe do Estado-Maior das Foras Armadas, o chefe do Gabinete Militar da Presidncia e o presidente do Banco do Brasil. No entanto, o fechamento do jornal no se consumou.

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SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964).

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Com o governo de Juscelino Kubitschek, o jornal Ultima Hora iniciou uma fase de recuperao que, porm, no lhe devolveu o prestgio anterior. Durante a construo de Braslia, o jornal manteve um reprter na nova capital apoiando sua construo. Em maio de 1957, Danton Coelho deixou sua direo e foi substitudo por Srgio Lima e Silva, que permaneceu no cargo at abril de 1959. Nesse momento, Samuel Wainer reassumiu a direo de sua folha. Com o golpe militar de 31 de maro de 1964 o jornal foi apedrejado e cassado os direitos polticos de Samuel Wainer que teve tambm de fugir para a Europa, onde permaneceu at 1967. A direo do jornal passou ento ao advogado Heriberto de Miranda Jordo, que deixou a direo em 31 de janeiro de 1965, passando-a para Danton Jobim. Nessa fase, a cobertura internacional passou a contar com o direito de reproduo dos artigos e reportagens das maiores publicaes europias, como Le Monde, L'Express, L'Evnement e New Statesman. Ultima Hora lanava assim a seo "Jornal do mundo". Entretanto, o golpe militar produziu uma crise interna que foi se acentuando progressivamente. Com o boicote de publicidade, a equipe do jornal tentou manter a estrutura dos tempos iniciais. Jnio de Freitas assumiu a chefia da redao. Tentou reiniciar outra fase de recuperao do jornal, baseada na oposio da poltica do presidente Humberto Castelo Branco e chamada linha dura do Exrcito. Durante a presidncia de Artur da Costa e Silva, o jornal mostrou-se condescendente com a abertura pretendida, centrando sua oposio no questionamento do poder militar e na denncia de torturas a presos polticos. Nessa fase, o jornal parece ter se recuperado financeiramente, mas com a volta ao pas, Samuel Wainer que se desentendeu com Jnio de Freitas, o destino do jornal foi selado. Em 27 de abril de 1971, o ttulo do jornal Ultima Hora foi vendido por sete milhes e quinhentos mil cruzeiros a um grupo liderado por Maurcio Nunes de Alencar, que desde fins de 1969 havia arrendado o Correio da Manh e mantinha vnculos com a Companhia Metropolitana, considerada uma das maiores empreiteiras do pas. Samuel Wainer extinguiu a redao, o departamento fotogrfico, o arquivo e outros setores apenas trs dos antigos funcionrios foram contratados pela nova diretoria. No entanto o Jornal Ultima Hora s veio encerrar definitivamente suas atividades em 26 de julho de 1991, quando teve sua falncia decretada pela Justia, devido a uma dvida que chegava a 450 milhes de cruzeiros. 19

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BUONICORE, Augusto. As peripcias de um Baro vermelho 33 anos da morte de Aparcio Torelly.

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Baro de Itarar, o Dom Quixote do Brasil. O ttulo de Baro de Itarar foi criado por Apparcio Fernando de Brinkerhoff Torelly, que nasceu no interior do Rio Grande do Sul em 29 de janeiro de 1895, na cidade de Rio Grande. Apesar de ter tido uma infncia triste, isso no o influenciou a ponto dele deixar de ser o humorista talentoso que foi, sendo responsvel por fazer vrias geraes de brasileiros rirem. Apparcio perdeu a me logo cedo e seu pai era um homem de hbitos rude e calado. Foi internado aos nove anos em um internado num colgio dirigido por rspidos jesutas alemes. Aos 14 anos apesar do ambiente repressivo, formou seu primeiro jornaleco manuscrito, o Capim Seco, onde comeou a transparecer sua veia humorstica20. Terminou o colgio, a contragosto, logo depois foi cursar medicina em Porto Alegre. Contudo, Apparcio abandonou o curso de medicina no 4 ano. Buoncore Conta em um artigo Revista Espao Acadmico ao consultar almanaques de Apparcio que numa prova oral, um dos professores perguntou-lhe: Conhece esse osso? Ele disse ainda no e apertou-lhe dizendo: Muito prazer em conhec-lo. 21 Durante este perodo, produziu diversos poemas e artigos e publicou em vrias revistas, passando a se dedicar exclusivamente ao jornalismo. Neste perodo, fundou alguns jornais. Entre eles O Chico, um jornal dedicado ao humor. Foi casado pela primeira vez com Alzira Alves com quem teve trs filhos, em 1925. Por indicaes mdicas, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde conseguiu trabalho no jornal O Globo. Depois de alguns meses, se transferiu para o jornal A manh, no qual passou a publicar uma coluna humorstica diria intitulada A manh tem mais... Em menos de um ano deixou este jornal, para dedicar-se ao sonho de ter o seu prprio jornal. Fundou, no dia 13 de maio de 1926, um peridico intitulado ironicamente A Manha um rgo de ataque de risos, como ele mesmo o definia. O jornal foi um sucesso e transformou-se numa referncia do novo humorismo jornalstico. Pela primeira vez fez-se uso da fotomontagem para ridicularizar os governantes de planto e as elites brasileiras. Embora o jornal tivesse tido boa repercusso inicial, a situao financeira no era muito boa, vindo posteriormente se agravar. Por conta disso, durante dois anos (1929 e 1930), o jornal teve que circular como encarte do jornal pertencente a Assis Chateaubriand chamada Dirio da Noite. O momento era de crise poltica no Brasil,20 21

BUONICORE, Augusto. As peripcias de um Baro vermelho 33 anos da morte de Aparcio Torelly. BUONICORE, Augusto.Idem.

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por isso ele acabou colocando-se ao lado dos revoltosos da Aliana Liberal, que tinha como cabea Getlio Vargas. O ttulo de Baro de Itarar foi criado por Apparcio, para homenagear quela que deveria ter sido, e nunca foi a maior batalha da Revoluo de 1930 ele havia se autointitulou Duque de Itarar, mudando posteriormente para o ttulo de Baro, em referncia a uma cidade da regio do estado de So Paulo onde havia se concentrado a maior parte das tropas legalistas que deveriam deter as foras revolucionrias que vinham do sul. No entanto, os generais acabaram destituindo o presidente Washington Lus antes mesmo de haver uma batalha. Contudo, sua relao de cooperao com os revoltosos que viria a formar o novo governo, durou por pouco tempo. Apparcio, que agora j era Baro de Itarar, comeou a voltar suas crticas contra o governo revolucionrio de Vargas. Um Trocadilho com o nome do poderoso general Ges Monteiro para Gs Morteiro lhe custou a primeira priso, ainda em 1932. O Jornal do Povo fundado em 1934, de contedo antifascista e forte influncia comunista. Este jornal tornou-se o centro de um escndalo poltico. Por conta disso, durou apenas 10 dias. Em suas pginas, o Baro publicou uma srie de artigos sobre a vida de Joo Cndido22. Isto foi encarado como uma afronta Marinha de Guerra brasileira, uma vez que o Almirante negro havia comandado a revolta dos marinheiros em 1910. Nesta ocasio, a sede do jornal foi invadida, o Baro foi seqestrado e violentamente espancado e seus cabelos cortados por oficiais que faziam parte da marinha. Este incidente gerou protestos por todo o pas, inclusive na Cmara dos Deputados. No entanto, os agressores jamais foram punidos. Mesmo assim, o Baro sem perder o flego e o humor, achou aconselhvel mudar a tabuleta na entrada de seu escritrio, a nova inscrio dizia simplesmente: entre sem bater!. O historiador Buoncore apresenta este censo de humor em um artigo ao dizer que o baro de Itarar tinha como principal alvo os integralistas e a respeito disso ele menciona a seguinte passagem da vida do Baro:Joo Cndido Felisberto foi um militar brasileiro, lder da Revolta da Chibata 1910. No dia 22 de novembro de 1910, Joo Cndido deu incio ao levante, assumindo o comando do Minas Gerais, pleiteando a abolio dos castigos corporais na Marinha de Guerra brasileira. Foi designado poca, pela imprensa, como Almirante Negro. Por quatro dias, os navios de guerra Minas Gerais, So Paulo, Bahia e Deodoro apontaram os seus canhes para a Capital Federal. No ultimato dirigido ao Presidente Hermes da Fonseca, os revoltosos declararam: "Ns, marinheiros, cidados brasileiros e republicanos, no podemos mais suportar a escravido na Marinha brasileira". Embora a rebelio tenha terminado com o compromisso do governo federal em acabar com o emprego da chibata na Marinha e de conceder anistia aos revoltosos, Joo Cndido e os demais implicados foram detidos.22

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A principal vtima do Baro era os integralistas de Plnio Salgado. Gostava de dizer que, acidentalmente, quase entrou para as hostes dos camisas verdes, quando ouviu um deles gritando Deus, Ptria e Famlia, pois havia entendido: Adeus ptria e famlia. Ele era um inimigo do militarismo e do belicismo to em voga naqueles anos turbulentos, que j anunciavam uma segunda guerra mundial. Gostava de dizer: Como se chama o assassinato de uma criancinha? Infanticdio. E o assassinato de uma poro de criancinhas? Infantaria. 23

Suas crticas to sagazes a respeito do movimento Integralista. Contrrio aos movimentos nazi-fascistas e a uma guerra, o Baro foi um ativo organizador e militante da Aliana Nacional Libertadora. Participou tambm do levante armado, comandado por Prestes, ocorrido em novembro de 1935. Acabou preso no navio-presdio Dom Pedro I onde deixou crescer a barba, uma de suas marcas. Transferido para a Casa de Deteno do Rio de Janeiro permanecendo a at o final de 1936, aonde chegou a ter contato com o escritor Graciliano Ramos. A respeito desta passagem, tambm h que se destacar um fato interessante deste acontecimento ao qual Buoncore chama a ateno.Dizem que quando o juiz federal lhe perguntou por qual motivo acreditava ter sido preso, ele afirmou que, possivelmente, teria sido graas ao cafezinho. Diante do juiz perplexo explicou: sua falecida mezinha o havia avisado para tomar cuidado com o excesso de caf. Justamente naquele dia ele havia parado num bar e tomado oito xcaras e, assim, a polcia conseguiram prend-lo. O Baro era um daqueles que perdia um amigo (e a liberdade), mas no perdia uma boa piada. No seu livro Memrias do Crcere, o mestre alagoano, descreveu o convvio com o velho Baro. Sempre alegre, buscando animar seus companheiros de infortnio e aparentando um otimismo a toda prova. 24

Aps esta passagem, o Baro foi solto em dezembro de 1936. Mesmo passando por momentos difceis, resolveu reorganizar o jornal A manha, e continuou fazendo forte oposio contra o fascismo e seus representantes no pas. O golpe do Estado Novo, em dezembro de 1937 impediu a continuao do seu jornal. O Baro trabalhou no Dirio de Notcias, por cerca de seis anos, sempre vigiado pela represso poltica que continuava seguindo seus passos. Novamente, em janeiro de 1939, voltou a ser preso pela poltica de Censura de Vargas. Somente em 1945 voltou a editar o A manha com um clima poltico mais ameno. Neste momento, a democratizao do pas era amplamente favorvel a uma publicao daquele tipo. No incio de 1947, foi eleito vereador pela chapa comunista e passou a compor a maior bancada do legislativo municipal. seguinte afirmao: A respeito deste momento, Buonicore Prestes fez a

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BUONICORE, Augusto. As peripcias de um Baro vermelho 33 anos da morte de Aparcio Torelly. BUONICORE, Augusto.Idem.

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... o Baro com seu esprito no s fez a Cmara rir, como as lavadeiras e os trabalhadores. As favelas suspendiam as novelas para ouvir as sesses da Cmara que eram transmitidas pelo rdio. Naqueles dias memorveis, quando circulava pelos corredores do Senado, encontrou o ex-ditador, Getlio Vargas. Este, sorridente, se dirigindo a ele exclamou: At tu, Baro?, E ele, sem pestanejar, respondeu irnico: Tubaro o senhor, eu sou apenas o Baro de Itarar. Por outro lado, a oposio liberal-conservadora criticava a constante mudana de posio dos comunistas em relao a Vargas. Sem perder a compostura respondeu 25 aos crticos: No triste mudar de idias; triste no ter idias para muda.

As manobras polticas de 1947 cancelaram em maio o registro do PCB, em janeiro de 1948, os parlamentares comunistas foram cassados e com um ato arbitrrio entre as vtimas deste estava o Baro, mesmo com esta atitude o Baro ainda afirmou solenemente: ... saio da vida pblica para entrar na privada. Neste mesmo ano, devido represso poltica e a crise financeira, A manha deixou de circular. A situao ficou difcil para ele. Devo tanto que, seu chamar algum de meu bem o banco toma, escreveu. 26 Foi justamente por causa desse momento difcil que o baro uniu-se ao cartunista Guevara e lanou o Almanhaque ou Almanaque dA manha. Este sucesso o possibilitou reorganizar o jornal desta vez em So Paulo, mas, novamente deixou de circular dessa vez definitivamente em 1952. O fim de A manha no significou o fim da carreira do Baro. Ele passou a trabalhar com o jornal A ltima Hora. justamente aqui que sua histria se entrelaa deste trabalho. A respeito do final de sua vida e carreira Buonicore conclui:Em 1955 casou-se pela quarta vez. Pouco depois ocorreu uma nova tragdia. Sua esposa se suicidou. A morte parecia acompanh-lo, buscando retirar dele toda a alegria. J cansado e doente voltou para o Rio de Janeiro. Sua ltima velhice passou sozinho e doente num pequeno apartamento. Estava pobre e quase esquecido. Dedicava-se aos estudos matemticos e a numerologia. Parecia que tinha dificuldades a se adaptar as rpidas transformaes pelas quais passava seu pas. Seus olhos, possivelmente, viam com tristeza a constituio de uma modernidade capitalista associada misria e ao autoritarismo. Vivamos o auge ditadura militar. A boca pequena se dizia que ele enlouquecia dia-a-dia.Mais do que nunca uma de suas mximas favoritas traduziria seus sentimentos mais profundos e a trgica situao em que vivamos: Este mundo redondo, mas est ficando muito chato. No dia 27 de novembro de 1971 falecia o Baro de Itarar. Poucas pessoas compareceram ao seu enterro e um jornalista apressado afirmou, sem graa, que os tempos do velho Baro j haviam passado. Ser mesmo? Eu, ao contrrio, diria que talvez os tempos do velho Baro ainda no tenham chegado. 27

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BUONICORE, Augusto. As peripcias de um Baro vermelho 33 anos da morte de Aparcio Torelly. BUONICORE, Augusto.Idem. BUONICORE, Augusto.Idem.

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O Baro de Itarar se assemelha a outro grande personagem da histria, Dom Quixote, personagem da obra de Miguel Cervantes, um homem medieval que se deparava com uma mudana to drstica como o advento da modernidade, Cervantes satirizou os romances de cavalaria que, alis, continuaram desfrutando de prestgio na Espanha do sculo XVII. No entanto, Dom Quixote, mais do que uma stira faz profundas reflexes das mudanas em suas sociedades. Assim como o personagem de Miguel Cervantes, o Baro de Itarar um personagem criado por um homem que satiriza sua sociedade. Assim como Quixote, ele traz profundas impresses dela que passa por uma mudana de mentalidade ao qual Apparcio Fernando de Brinkerhoff Torelly j havia compreendido, deixando apenas evidente aquilo que ningum via. A charge do Baro de Itarar

Figura 1: Baro de Itarar Fonte: jornal Ultima Hora, 03/06/1951.

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Esta charge, figura 1, segundo consta nos arquivos, foi produzida em 195128 por um autor desconhecido, mas o que suas linhas representam? Quando observamos esta charge podemos ver a face de um homem barbudo sendo pincelada. Este desenho no est ali por acaso, e a folha que recebe a face deste homem tambm no. Decerto, eles esto para dar a impresso para quem olha de que a face de um homem est sendo desenhada na bandeira do Brasil. Ela foi selecionada pelo fato de sua significao atingir um dos assuntos que sero abordados neste captulo, o impacto da modernidade para alguns indivduos na sociedade, o autor desta figura desconhecido, mas isto no importa, pois a profundidade que a mesma atinge ser pertinente no decorrer de nossa discusso. Na dcada de 50, uma parcela dos brasileiros almejava ser um povo moderno. O que significa ser moderno para um brasileiro que vive em 1950 a 1959? De forma geral, as pessoas viam a modernidade como algo ligado ao processo de industrializao. Anthony Giddens, em seu livro As conseqncias da Modernidade, refere-se modernidade como sendo um ... estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia.29

No caso do Brasil, conforme nos apresenta Skidmore, este processo se deu entre os anos de

30 e 50 tendo maior nfase no centro-sul entre o estado de So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Contudo, Skidmore diz que, durante o incio do primeiro governo de Getlio Vargas, a sociedade brasileira ainda no apresentava uma estrutura de classe bem definida, algo que s vai acontecer com o processo de industrializao e urbanizao:Ao assumir a presidncia, em janeiro de 1951, Getulio se deparava com um Brasil muito diferente do pas que havia governado como presidente autoritrio de 1937 a 1945. A sociedade brasileira apresentava uma estrutura mais nitidamente diferenciada do que a do tempo do Estado Novo especialmente nos primeiros anos. O duplo processo de industrializao e urbanizao se ampliara e fortalecera em trs setores: os industriais, a classe operria e a classe mdia urbana. 30

Alcir Lenharo complementa esta idia:Ainda recentemente, no se costuma caracterizar a sociedade brasileira nos anos 30, como uma real sociedade de classes. Face a esse modo de pensar, o estudo da poltica tende a desvincular o que se passava no pas, dos conflitos capitais que tomavam conta do mundo naquele momento; por essa mesma razo fenmenos28

Est charge tem a data de sua produo alguns dias anterior a fundao do jornal, mas como o nosso objeto de estudo a mentalidade do brasileiro,e no a histria do jornal, ela foi mantida pois a mesma foi feita realmente na data pertinente a este trabalho. 29 GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.08. 30 SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p.111.

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polticos como o Estado Novo, ficavam distante, nesse quadro analtico, de uma aproximao com tendncia fascistizante que assolava o mundo capitalista. 31

Desta forma, podemos inferir que a sociedade brasileira passou por uma ntida modificao de seus valores herdados de anos anteriores a 1930. Esta mudana tornou-se mais ntida por volta dos anos 50 com uma sociedade que apresentava uma estrutura de classe mais bem definida, mas que, no entanto, ainda no possua uma orientao de classe autoconsciente, capaz de produzir uma poltica de lutas entre as classes existentes, ao contrrio a atmosfera poltica conciliatria ainda era nitidamente dominante como herana de um pas patriarcal. Lenharo fala ainda sobre a posio do Estado como sujeito histrico, fazendo uso das idias de Marilena Chau:Acresce que a expanso desmesurada do Estado percebida tambm pela sua funo modernizadora. O capitalismo brasileiro, atrasado, tardio ou desigual e combinado face ao capitalismo internacional, requeria um agente histrico capaz de suprir as ausncias das foras sociais incipientes. Por isso mesmo, fica implcito que o Estado assume o papel de sujeito histrico porque a luta de classe no chega a exprimir-se de maneira suficientemente ntida no interior da sociedade civil. 32

O Estado queria realmente introduzir o Brasil no cenrio moderno, segundo modelo das sociedades europias. Neste sentido, a nossa entrada na modernidade comeou com o advento do Estado Novo e teve medidas importantes com o governo de Eurico Gaspar Dutra e o segundo governo de Getlio Vargas. Mas esta modernidade estava restrita ao modo de produo capitalista, algo que propiciou o surgimento das classes antagnicas, burguesa e proletria. A classe operria que crescia, principalmente no estado paulista, ainda no tinha uma orientao poltica muito clara. Apesar do direito de voto, no tinha um posicionamento prprio. A classe mdia urbana que comeou a surgir estava compreendida entre dois grupos, o primeiro que era formada por burocratas e administradores cujo status econmico era mais fruto da urbanizao e do crescimento do governo do que da industrializao33

tinham seus

empregos e suas mentalidades ainda como herana de um mundo patriarcal, e a outra parte maior da classe mdia urbana que, segundo Skidmore,... era formada por administradores e profissionais liberais que encaravam a industrializao e a expanso dos mtodos tcnicos modernos como indispensveis para o futuro do Brasil. E o que igualmente importante, identificavam-se, bem com as suas prprias carreiras, com esse processo e viam

31 32

LENHARO, Alcir. Sacralizao da Poltica, p.19. LENHARO, Alcir.Idem, p.20. 33 SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964).

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com suspeitas, seno algumas vezes com hostilidades, os valores tradicionais prevalecentes na era anterior a 1930. 34

Estas so duas opinies controversas a respeito da entrada da modernidade no Brasil. Percebe-se que esta mudana interferiu radicalmente na vida cotidiana das pessoas. Por isso que, quando dizemos que uma parcela da sociedade queria ver o Brasil entrar na modernidade, ns falamos desta classe mdia que flerta constantemente com a modernidade. No entanto, a charge do Baro de Itarar mostra que outras no tinham este vislumbre com as mudanas que aconteciam no pas. A charge mostra o baro em meio ao pas que est sendo pintado, mesmo assim ele mantm os olhos fechados apesar de estar no meio dos acontecimentos, como se no quisesse enxergar o que se passa. Como vimos, o pseudnimo adotado por Apparcio auto-homenageia um heri de uma batalha que nunca aconteceu, assim como Dom Quixote que nunca lutou com gigantes. O baro era o representante daquela classe mdia urbana que tinham seus empregos e suas mentalidades ainda como herana de um mundo patriarcal. Conforme Skidmore, ele realmente como o cavaleiro de Cervantes que de tanto ler contos de cavalaria, acaba acreditando que ele mesmo tem que viver um conto. Ademar Marques, em seu livro Histria moderna atravs de texto refere-se sobre esta marca de Cervantes ao criar Dom Quixote:Miguel Cervantes (1547-1616) considerado um dos maiores importantes autores da poca renascentista. Na sua obra significativa Dom Quixote de la Mancha, Cervantes conta s aventuras de um certo fidalgo que tinha por habito a leitura e livros de cavalaria e tantos leu que se convenceu da necessidade de sagrar-se cavaleiro. Atravs das proezas tragicmicas do heri possvel perceber a inadequao das atitudes e comportamentos de Dom Quixote em relao poca moderna. 35

Buonicore completa o quadro dizendo queJ cansado e doente voltou para o Rio de Janeiro. Sua ltima velhice passou sozinho e doente num pequeno apartamento. Estava pobre e quase esquecido. Dedicava-se aos estudos matemticos e a numerologia. Parecia que tinha dificuldades a se adaptar as rpidas transformaes pelas quais passava seu pas. Seus olhos, possivelmente, viam com tristeza a constituio de uma modernidade capitalista associada misria e ao autoritarismo36. Expressa precisamente como difcil para alguns indivduos de uma sociedade se adaptar as mudanas que esta sofre. O baro de Itarar parece ser realmente o nosso Dom Quixote, que vive o grande conflito do advento da nossa modernidade, entretanto, sem perder a compostura.34 35

SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p.113. MARQUES, Adhemar, et ali.Histria moderna atravs de texto, p.16. 36 BUONICORE, Augusto. As peripcias de um Baro vermelho 33 anos da morte de Aparcio Torelly.

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Outras charges tambm nos apresentam a vivncia desta modernidade que devemos analisar a posteriori. Estas charges, assim como as do Baro, devero ser analisadas minuciosamente a fim de nos apresentar o discurso dos indivduos que viveram estes acontecimentos. O advento da modernidade e o comportamento da sociedade por meio de charges Cabe-me agora fazer um passeio pelos anos 30 e 50 observando nas charges as mudanas polticas e comportamentais da sociedade neste recorte temporal. A dcada de 50 inicia com uma forte expectativa do retorno de Getlio Vargas que, nos anos anteriores, havia promovido mudanas significativas na poltica e na economia do Brasil. As aes tomadas por Vargas durante o seu primeiro governo de 1930 a 1945, como a preocupao de criar uma indstria pesada como forma de garantir o desenvolvimento e a passagem de uma economia agro-exportadora para uma industrial, levou o estado a investir capital estatal para implantao das indstrias de base que se consolidaram nos anos 50. Esse programa possibilitou o crescimento industrial de forma autnomo e sustentvel, como reflexo disso h um crescimento substancial das cidades e o aumento da complexidade da sociedade, com emergncia de vrias classes sociais. O estilo poltico populista de Vargas gerou uma atmosfera onde sua sada do governo durante 1945 se deu sobre protestos da populao que o viam pela tica paternalista. Neste sentido, cabe observar que, segundo Anthony Giddens, as constituies de sociedades modernas esto ligadas constituio de estado-nao, algo que, segundo Giddens, faz parte da descontinuidade caracterstica da modernidade:Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que no tm precedentes... em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais ntimas e pessoais caractersticas de nossa existncia cotidiana.A histria "comea com culturas pequenas, isoladas, de caadores e coletores, se movimenta atravs do desenvolvimento de comunidades agrcolas e pastoris e da para a formao de estados agrrios, culminando na emergncia de sociedades modernas no Ocidente. 37 Uma terceira caracterstica diz respeito natureza intrnseca das instituies modernas. Algumas formas sociais modernas simplesmente no se encontram em perodos histricos precedentes tais como o sistema poltico do estado-nao, a dependncia por atacado da produo de fontes de energia inanimadas, ou a

37

GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade. So Paulo: Editora UNESP, 1991, p.14.

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completa transformao em mercadoria de produtos e trabalho assalariado. Outras tm apenas uma continuidade especiosa com ordens sociais pr-existentes. 38

Desta forma, interessante notar que no Brasil, tivemos esta continuidade. Nossa grand narrative se d com uma sociedade pr-moderna em um estado-agrrio que posteriormente evolui para uma sociedade industrial, que possibilitou importantes avanos na qualidade de vida das pessoas. Isso no ocorre de forma uniforme sendo mais identificado no centro-sul do pas. Evidentemente, no fazer parte da modernidade significava tambm no fazer parte de todos os benefcios que uma sociedade moderna implica para seus indivduos. No entanto, a modernidade um fenmeno de dois gumes39

, pois existe um lado

pouco enfatizado sobre ela que foram bem pouco discutido at mesmo pelos fundadores clssicos da sociologia Marx, Durkheim e Max Weber. Tanto Marx quanto Durkheim viam a era moderna como um perodo turbulento, porm ambos acreditavam que as possibilidades e os benefcios abertos pela modernidade superavam suas caractersticas negativas. 40 Marx Achava que a luta de classe seria um ponto de dissidncia na ordem capitalista, mas vislumbrava ao mesmo tempo o surgimento de um sistema mais humano. Durkheim acreditava que a expanso do industrialismo levaria a uma vida social harmoniosa e gratificante, integrada atravs de uma combinao da diviso do trabalho e do individualismo moral. Max Weber acreditava que o mundo moderno seria responsvel por uma situao paradoxal onde o progresso material seria obtido apenas custa de uma expanso da burocracia ocasionando o detrimento da criatividade e da autonomia individual, contudo nenhum deles antecipou o quo irrestrito seria o lado mais sombrio da modernidade. Sobre isto diz Giddens:Para dar um exemplo, todos os trs autores viram que o trabalho industrial moderno tinha conseqncias degradantes, submetendo muito seres humanos disciplina de um labor maante, repetitivo. Mas no se chegou a prever que o desenvolvimento das "foras de produo" teria um potencial destrutivo de larga escala em relao ao meio ambiente material. Preocupaes ecolgicas nunca tiveram muito espao nas tradies de pensamento incorporadas na sociologia, e no surpreendente que os socilogos hoje encontrem dificuldade em desenvolver uma avaliao sistemtica delas. 41

38 39

GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade. So Paulo: Editora UNESP, 1991, p.16. GIDDENS, Anthony.Idem. 40 GIDDENS, Anthony. Idem, p. 17. 41 GIDDENS, Anthony. Idem.

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Este ponto de vista mecanicista foi incorporado juntamente com o modo de vida moderno. Em 1950 Vargas tinha uma srie frmulas para fazer o Brasil crescer, baseada na poltica neoliberal, a desenvolvimentista-nacional e a nacionalista radical. Seu principal objetivo concentrava-se no desenvolvimento da indstria. Visava-se criar uma economia mista onde a iniciativa privada receberia novos incentivos em proporo a um determinado nmero de prioridade de investimentos. O Estado seria o regulador e interferiria na economia atravs de empresas estatais ou de capital misto para assegurar os investimentos nas reas que no fossem contempladas pela iniciativa privada. Este sistema tinha certa predileo dos militares, pois muitos oficiais do Exrcito achavam que o Brasil s poderia tornar-se uma grande potncia se desenvolvesse sua indstria. Alm disso, acreditavam que a segurana do pas exigia que a explorao de recursos naturais fosse feita para preserv-la das mos estrangeiras. A respeito disso Skidmore acrescenta que esta frmula de desenvolvimento atraa uma gerao mais jovem de tecnocratas e intelectuais que achavam que o Brasil poderia atingir padro de vida mais elevado e uma condio madura de nao moderna.42

No entanto, a exemplo de outras

naes, o que vemos um processo de degradao da natureza a custo do progresso. A modernidade provocou mudanas nos comportamentos no tocante s questes polticas, uma vez que um poder poltico consolidado uma marca das sociedades modernas. Entretanto, conforme Giddens o segundo lado sombrio da modernidade est justamente nesta questo:Um segundo exemplo o uso consolidado do poder poltico, particularmente como demonstrado em episdios de totalitarismo. O uso arbitrrio do poder poltico parecia aos fundadores sociolgicos pertencer primariamente ao passado (embora tendo s vezes eco no presente, como indicado na anlise de Marx sobre o governo de Lus Napoleo). O despotismo parecia ser principalmente caracterstico de estados pr-modernos. Na esteira da ascenso do fascismo, do Holocausto, do stalinismo e de outros episdios da histria do sculo XX, podemos ver que a possibilidade de totalitarismos contida dentro dos parmetros da modernidade ao invs de ser por eles excluda. O totalitarismo diferente do despotismo tradicional, mas muito mais aterrorizante como resultado. O governo totalitrio combina poder poltico, militar e ideolgico de forma mais concentrada do que jamais foi possvel antes da emergncia dos estados-nao modernos. 43

42 43

SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p.119. GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.17.

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No caso do Brasil dos anos 30, a tomada do poder por Getlio Vargas identifica muito bem este ponto. Depois deste perodo o que vemos uma escalada cada vez maior a uma indstria de Guerra como mostra a charge de Nassara 44 para o jornal Ultima Hora.

Figura 2: Winston Churchill Fonte: jornal ltima Hora. 01/11/1951. A figura 2 mostra que, em uma seqncia de acontecimentos onde cada vez mais estados altamente militarizados desenvolvem sua tecnologia de Guerra, o fim desta corrida44

Antnio Gabriel Nassara (Rio de Janeiro 1910 - 1996).,Caricaturista, e compositor. Em 1929, iniciou o curso de arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes e emprega-se como retocador de fotografias na seo de desenho do jornal A Crtica onde conhece o caricaturista Guevara (1904 - 1964), que influencia seu trao. Nesse mesmo ano, publica alguns trabalhos no jornal A Noite e funda o Conjunto da Enba com Jota Rui, Barata Ribeiro, Manuelito Xavier, Jaci Rosa e Luis Barbosa (1910 - 1938). Com esse grupo musical compe seus primeiros sambas. Em 1930, como paginador no jornal O Globo, conhece os modernos mtodos de impresso e ilustrao. Em 1931, abandona o curso de arquitetura e trabalha como paginador no jornal A Esquerda, no qual publica diversas caricaturas. No ano seguinte, Mrio Reis (1907 - 1981) e Francisco Alves (1898 - 1952) gravam o samba de sua autoria intitulado Formosa. A msica faz sucesso no carnaval carioca de 1933. Como compositor tem gravados aproximadamente 200 sambas e marchas de 1932 a 1970. De 1935 a 1952 colabora com diversas revistas cariocas como O Cruzeiro, onde publica, entre 1943 e 1945, uma srie de charges sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Revista Carioca, Vamos Ler e Diretrizes. Em 1950, convidado por Samuel Wainer (1912 - 1980), trabalha no jornal ltima Hora como paginador do 2 Caderno e realiza caricaturas dos polticos da poca. Posteriormente ilustra alguns livros e, em 1974, emprega-se no semanrio O Pasquim, onde trabalha com Jaguar (1932), Ziraldo (1932) e Millr Fernandes (1923) at 1983. Em 1996, um ms antes de falecer, conclui sua ltima obra, 30 desenhos para o livro infantil, Moa Perfumosa, Rapaz Pimpo, escrito por Daniela Chindler. / www.itaucultural.org.br,13/11/2008.19:30

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armamentista a bomba atmica onde as sociedades entram em um estgio industrial, associando o desenvolvimento tecnolgico indstria para a guerra. Giddens comenta sobre a questo:Pensadores sociais escrevendo no fim do sculo XIX e incio do sculo XX no poderiam ter previsto a inveno do armamento nuclear. Mas a conexo da organizao e inovao industrial com o poder militar um processo que remonta s origens da prpria industrializao moderna. Que isto tenha permanecido amplamente sem anlise em sociologia uma indicao da fora da concepo de que a recm-emergente ordem da modernidade seria essencialmente pacfica, em contraste com o militarismo que havia caracterizado as pocas precedentes. No apenas a ameaa de confronto nuclear, mas a realidade do conflito militar, forma uma parte bsica do "lado sombrio" da modernidade no sculo atual. O sculo XX o sculo da guerra, com um nmero de conflitos militares srios envolvendo perdas substanciais de vidas, consideravelmente mais alto do que em qualquer um os dois sculos precedentes. 45

Os quarenta anos que seguiram ao fim da 2 Guerra mundial foram marcados por uma ordem bipolar e pelo aumento de conflitos nas regies que estavam sobre a influncia das duas superpotncias que emergiram aps a 2 Guerra: Estados Unidos e Unio Sovitica. O nome dado a este confronto poltico, ideolgico, econmico e propagandista foi Guerra Fria, que influenciou fortemente a poltica do Brasil nos anos 50. Neste cenrio, Winston Churchill, ex - primeiro ministro do Reino Unido, teria tido um papel central ao discursar em 1946 na cidade de Fulton, localizada nos Estados Unidos sobre a sovietizao do leste Europeu libertada dos domnios Nazistas pelas tropas Soviticas. Contudo Churchill, ao sensibilizar a opinio pblica norte americana para o perigo representado pela influncia sovitica no leste europeu, convenientemente esclareceu que este seria o papel sovitico segundo o acordo de Yalta, feito em fevereiro de 1945, entre os Estados Unidos Reino Unido e Unio Sovitica, na cidade localizada na pennsula da Crimia.46 A posio do Brasil foi ficar ao lado dos Estados Unidos, posio quase que unnime na Amrica, se no fosse por Cuba que se tornou socialista aps a revoluo cubana em 1959. A charge feita por Nassara mostra em que direo caminhava a mentalidade dos brasileiros. As preocupaes por se posicionar nesta Guerra influenciaram bastante a poltica de comportamento ps-segunda guerra no Brasil. Como j foi mencionada, esta postura dos aliados dos americanos que j remonta desde a ajuda dos pracinhas na segunda guerra, fez com que o Brasil fosse inundado com os costumes as sries de TV e o modo de vida americano. Essa propaganda atinge de forma mais consistente as classes mdia e alta, na45 46

GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.19. MARQUES, Adhemar. Histria do Tempo presente.

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charge a seguir (Fig. 4) feita pelo chargista Vilmar, o que podemos ver esta idia implcita ao mostrar a ronda da meia noite:

Figura 3: John Wayne Fonte: jornal Ultima Hora. 01/01/1952. Esta idia que se formou acerca do capitalismo e do socialismo aproximou as famlias que pertenciam classe mdia do ideal capitalista. Comumente esse ideal era associado a um modo de vida com bons costumes, ordem e progresso, idia da mulher que fica em casa cuidando dos filhos, enquanto o marido trabalha, em geral, na Indstria, para trazer o provento. Ao mesmo passo, tudo que fosse desordem e atacasse os bons costumes, era visto com muito medo por essa classe e era associado ao socialismo. Nesta idia maniquesta, o capitalismo era o mocinho e o socialismo era o bandido. A Figura 4 mostra uma imagem de Stalin longe da idia do mocinho americano mostrada na charge anterior.

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Figura 4: Joseph Stalin Fonte: jornal Ultima Hora. 16/03/1953. Esta charge representa como o comunismo era visto na poca. O personagem, sentado mesa, busca se brindar contra qualquer investida que ameace o seu poder ditatorial. O interessante que Stalin responde ao discurso de Churchill dizendo que qualquer idia de ameaa contra a Unio Sovitica e aos pases que compartilham de sua postura ideolgica ser respondida com ameaa. Outro fato que a charge evidencia a indstria da guerra, pois este tipo de mesa j seria fruto do avano tecnolgico da Unio Sovitica. Pressionado, Getlio Vargas se suicidou em 1954. Vargas, na tentativa de avanar o pas a uma nova condio de industrializao desenvolvendo os setores da energia, da siderurgia e petrolfero, sofreu ameaas das classes tradicionais, de opositores polticos e de algumas alas militares. O cenrio poltico que se instaurou foi de completa desordem, o que 36

no agradava nem a classe mdia que tinha medo, nem as classes mais pobres, pois com o aumento do custo de vida, em virtude da inflao, as pessoas no podiam ter condies mnimas de vida. Os empresrios o viam como algum que tendia ao comunismo, graas ao seu ministro do trabalho que havia dado um aumento de cem por cento para os trabalhadores, os militares j no o apoiavam mais. Com o suicdio de Vargas seu vice assumiu, mas como nossa inteno no a de apenas contar a histria do Brasil, algo que j tem sido feito com propriedade, limitemos a identificar as mudanas de ordem comportamental na sociedade. As charges produzidas pssuicdio de Vargas, mostram conspiraes contra o seu possvel substituto, assim como mostram tentativas de Golpe. Centraremos ateno maior nas charges que foram produzidas nas dcadas 60 e 70. Outras Charges da dcada de 1950 Esta srie de charges que sero apresentadas da figura 5 a figura 9, acentua a figura de Adhemar de Barros, poltico de grande prestgio, que teve uma ativa vida pblica dos anos 30 aos anos 60. Dentre outras atuaes, participou da Revoluo de 1930 que abriu as portas para o Brasil entrar na era da modernidade. O Estado de So Paulo, onde havia maior disponibilidade de capital, foi o propulsor da industrializao que comea a se desenvolver e se estender at o final da dcada de 60. Nesse perodo, Adhemar de Barros foi, seno o principal, um dos mais importantes lderes polticos a conduzir esse processo no Estado. Governou So Paulo durante 12 anos: quatro como interventor de 1938 a 1941 e oito como governador (1947-1951 e 1963-1966); e eleito e reeleito pelo voto popular. E ainda foi deputado estadual (1935-1937) e Prefeito da capital, no perodo de 1957 a 1958. As charges que mostram Adhemar de Barros evidenciam a importncia de So Paulo na industrializao e modernizao do Pas. incontestvel a importncia do papel protagonizado por Adhemar de Barros nesse processo, o que justifica a necessidade de apresentar as charges que se seguem.

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Figura 5: Adhemar de Barros Fonte: jornal ltima Hora. 16/10/1951. Nesta figura 5, Adhemar aparece machucado no rosto e com garrafas e outros objetos que apresentam uma espcie de festa. No entanto, a imagem representa as eleies de 1950 onde aps retirar sua candidatura para apoiar Vargas com uma promessa de tornar-se presidente nas prximas eleies, viu o governo de So Paulo caminhar para as mos de Lucas Nogueira Garces, que rompeu com ele neste ano.

Figura 6: Adhemar de Barros Fonte: jornal Ultima Hora. 11/02/1952.

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Nesta charge, figura 6, Adhemar de Barros representado como um diabo, enquanto Jnio Quadros representado como um anjo. Fora ou no da charge, o certo que nas eleies de 1954, Adhemar perdeu a eleio por uma diferena bem pequena, menos de 1%.

Figura 7: Espelho mgico Fonte: jornal Ultima Hora. 31/03/1952. Com relao charge da figura 7, o chargista Augusto Rodrigues parece apresentar Adhemar como um Narcisista. Contudo, ele faz uma relao ao conto de fadas onde uma bruxa utilizava o espelho mgico para aconselhar-se como deveria proceder.

Figura 8: O filsofo do populismo Fonte: jornal Ultima Hora. 09/01/1952.

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Nesta charge, figura 8, produzida por Augusto Rodrigues, o que o chargista trata da tentativa de Adhemar de Barros de ser um populista. Para isso, ele tenta absorver os ensinamentos de vrios filsofos, pensadores e polticos. O interessante perceber que alm de nomes como Eva Pern, aparecem vrios pensadores como Karl Marx, Nietzche e Engels, sem esquecer-se do Baro de Itarar. Certamente, esta charge coloca Adhemar de Barros como algum que persegue o estilo de Jnio Quadros.

Figura 9: Adhemar de Barros Fonte: jornal Ultima Hora. 03/11/1954.

A figura 9 mostra Adhemar de Barros chorando a morte de Getlio Vargas, uma vez que com a morte dele, Adhemar no teria o apoio esperado para as prximas eleies presidenciais. Depois da morte de Getlio Vargas, e da posse de Caf Filho seu vice, outras charges muito interessantes foram publicadas no jornal Ultima Hora, dentre as quais estas:

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Figura 10: Caf Filho, Fogo na Canjica Fonte: jornal Ultima Hora. 20/01/1954.

A figura 10 foi publicada no incio do ano de 1954. Contudo, ela j reflete as presses que Getlio sofria no governo. Na charge, os impostos e o custo de vida so representados por uma massa que no pra de crescer, sendo observada pelo vice-presidente.

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Figura 11: Caf Filho Fonte: jornal Ultima Hora. 02/09/1954.

A figura 11 foi feita por Lan47, uma das mais repletas de subjetividade. Ela fala da posse de Caf Filho aps o suicdio, onde as presses no diminuram, mesmo com a morte de Vargas. Nesta imagem, Caf Filho tem, na cabea, um vcuo, representado pelo espao, e

Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini, ou apenas Lan. um chargista italiano nascido no ano de 1925 em Monte Varchi, prximo a Florena. Sua primeira caricatura profissional foi publicada em 1945 na revista Mundo Uruguaio, logo depois, acabou sendo contratado pelo jornal El Pas, de Montevidu, onde criou fama atravs de charges de jogadores de futebol. Em 1952, procurando capas para a revista argentina El Hagar no Rio de Janeiro, Lan acaba sendo entrevistado pelo ltima Hora. Samuel Wainer, proprietrio, logo que viu um dos trabalhos do artista - uma caricatura do jogador Baltazar, o cabecinha de ouro do Corinthians, dolo nacional - no resistiu cham-lo para fazer parte da equipe do jornal e o chargista no teve dvidas em aceitar. No jornal ltima Hora, Lan fez a nica caricatura que marcou um poltico para o resto da vida: O Corvo, personalizando Carlos Lacerda. http://www.comunitaitaliana.com.br/Entrevistas/Lan.htm

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vrios personagens continuam pedindo uma atitude por parte dele. Na imagem, o que mais se destaca a figura de um corvo, que passou a caracterizar Carlos Lacerda, forte opositor ao governo de Vargas. Outras imagens interessantes so representadas por pessoas que caminham ao fundo, cabisbaixas e desconsoladas.

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Captulo IIIO Brasil e a ps-modernidade, ou alta modernidadeA ps-modernidade ou alta modernidade

Neste terceiro e ltimo captulo devemos analisar as questes relativas aos indcios nas charges da passagem de uma era moderna para outra ps-moderna, no entanto vale ressaltar que conforme veremos, existe um impasse a respeito deste termo, pois alguns estudiosos do assunto apontam, como inexistente esta condio de ps-modernidade, onde o que realmente existiria, seria a alta modernidade, como este impasse est diretamente relacionado ao tema deste trabalho, importante iniciarmos vendo os dois lados desta moeda, para que no final, tenhamos condies de inferir, qual o termo mais apropriado para designar os acontecimentos encontrados entre as dcadas de 60 e 70.

Decerto, estas discusses se deram globalmente, onde nestas dcadas de grandes transformaes, a sociedade ocidental viu emergir fenmenos como a comunicao de massa que, em nenhum perodo da histria, se disseminou tanto. Nesta poca, j surgiam os germes de uma globalizao que parecia reduzir os limites geogrficos do planeta, que via crescer a indstria cultural e trans nacionais. Pode-se tambm dizer que foram dcadas de mudana de mentalidades, percebidas nas relaes polticas e culturais. Para alguns estudiosos, essas mudanas de mentalidade significam a passagem do perodo moderno para o ps-moderno.

Entretanto, no campo das mentalidades, as mudanas que so percebidas como novos valores e comportamentos atrelados dinmica cultural que o processo de globalizao impulsionou, podem apenas ser reflexo de um sistema de desencaixe encontrado nas sociedades modernas. Porm, tudo aquilo que caracterizou o perodo moderno, como a industrializao, a expanso dos limites do homem e o avano das cincias esto fortemente associado a um paradigma chamado mecanicista ou cientifico. Fritjof Capra o apresenta como uma mentalidade que est sendo superada por um novo paradigma que est por emergir, seria ele o paradigma ps-moderno?

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A modernidade e o mecanicismo.

Figura 12: Amor eletrnico Fonte: jornal Ultima Hora. 08/05/1969.

Esta charge amor eletrnico representa bem as aspiraes de uma parcela da sociedade que quer tornar-se mais moderna, onde a imagem de dois robs que mantm sentimentos humanos no representa uma espcie de Inteligncia Artificial, mas sim indivduos desta sociedade que se tornam mais mecanizados, ou seja, no o rob que se humaniza, mas sim o contrrio.

O que est nas entrelinhas deste desenho a idia de que o homem deve-se mecanizar, este tipo de idia prpria da sociedade moderna, convencionou-se chamar de idia mecanicista que dominou nossa sociedade ocidental a partir do sc. XVI. Fritjof Capra em seu livro o Ponto de mutao diz:

A viso do mundo e o sistema de valores que esto na base de nossa cultura, e que tm de ser cuidadosamente reexaminados, foram formulados em suas linhas essenciais nos sculos. XVI e XVII. Entre 1500 e 1700 houve uma mudana drstica na maneira como as pessoas descreviam o mundo em todas seu modo de

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pensar. A nova mentalidade e a nova percepo do cosmo propiciaram nossa civilizao ocidental aqueles aspectos que so caractersticos da era moderna. Eles tornaram-se a base do paradigma que dominou a nossa cultura nos ltimos trezentos anos e est agora prestes a mudar.48

Conforme Capra, esta sociedade que tem sua base no mecanicismo tem procedncia anterior fase de urbanizao e industrializao do Brasil, est remonta aos sculos XVI e XVII, no entanto Capra j acena para a mudana dela, e Capra ainda completa:A perspectiva medieval mudou radicalmente nos sculos XVI e XVII. A noo de um universo orgnico, vivo e espiritual foi substituda pela noo do mundo como se ele fosse uma mquina , e a maquina do mundo converteu-se na metfora dominante da era moderna. 49

A sociedade paulista da dcada de 50 por ser a que tinha, conforme Skidmore, a maior concentrao de operrios no Brasil a que melhor se aproxima desta charge e tambm, conforme Capra, a que melhor reproduz os moldes da sociedade metafrica mquina que teve maior crescimento nos anos 60, por isso podemos dizer que a dcada de 60 no Brasil viu dois fenmenos distintos acontecerem, um que solidificou a modernidade e outro que em um espao de tempo bem curto j a colocou em crise.

Segurana e Perigo, Confiana e Risco.

Antony Giddens diz que as sociedades modernas tm um carter especfico, o que ele chama de descontinuidade, pois romperam com formas de organizao tradicionais:

As concepes que devo desenvolver tm seu ponto de origem no que chamei em outro lugar de uma interpretao "descontinusta" do desenvolvimento social moderno. Com isto quero dizer que as instituies sociais modernas so, sob alguns aspectos, nicas diferentes em forma de todos os tipos de ordem tradicional 50

Segundo Giddens esta condio da modernidade est associada ao surgimento dos estados-nao que acabam por regular as relaes entre os indivduos e o Estado como forma de atingir o bem comum, para propiciar a estes melhores condies de existncia, do que nas sociedades pr-modernas, em conseqncia disso, tende a existir uma confiana no progresso.

48 49

CAPRA, Fritjof, O ponto de mutao. A cincia, a sociedade e a cultura emergente, p.49. CAPRA, Fritjof, idem. 50 GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.19.

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No entanto mesmo com o avano na melhoria da qualidade de vida da sociedade, em contra ponto outros tendem a piorarem assim como coloca Giddens:

O mundo em que vivemos hoje um mundo carregado e perigoso. Isto tem servido para fazer mais do que simplesmente enfraquecer ou nos forar a provar a suposio de que a emergncia da modernidade levaria formao de uma ordem social mais feliz e mais segura. A perda da crena no progresso, claro, um dos fatores que fundamentam a dissoluo de "narrativas" da histria. H, aqui, entretanto, muito mais em jogo do que a concluso de que a histria "vai a lugar nenhum". Temos que desenvolver uma anlise institucional do carter de dois gumes da modernidade. 51

A Segurana, o Perigo, a Confiana e o Risco, so fundamentalmente os componentes que esto intimamente ligados a sociedades modernas, eles regulam as relaes sociais entre os indivduos e o estado-nao. Um estado-nao oferece segurana ao seu indivduo quando lhe oferece um conjunto de direitos que ele como Estado tem que fornecer aos seus cidados, e o cidado devem retribuir cumprindo com suas obrigaes sociais que pagar os impostos e cumprir as leis e eleger seus representantes, este sistema chamado por Jean Jacques Rousseau de contrato social uma caracterstica moderna:

Essa soma de foras s pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a fora e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservao, como as empregar ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos. Encontrar uma forma de associao que defenda e proteja de toda a fora comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, no obedea, portanto seno a si mesmo, e permanea to livre como anteriormente.Tal o problema fundamental cuja soluo dada pelo contrato social. 52

O contrato social, esta totalmente alicerado no sistema de confiana, onde por meio dele todos acabam tendo segurana, uma pessoa tem liberdade na sociedade, at mesmo para matar, mas se matar, fere o direito do outro de viver, sendo assim o risco de algum matar, esta associado s sanes que sero tomadas pelo Estado a quem o fizer. Os estados modernos s puderam desenvolver est forma de organizao social graas ao o distanciamento tempoespao, segundo Giddens para compreender as ntimas conexes entre a modernidade e a transformao do tempo e do espao, temos que comear traando alguns contrastes com a

51 52

GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.13. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, p.24.

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relao tempo-espao no mundo pr-moderno. Entre as culturas pr-modernas, todas possuam maneiras de calcular o tempo.O calendrio, por exemplo, foi uma caracterstica to distintiva dos estados agrrios quanto a inveno da escrita. Mas o clculo do tempo que constitua a base da vida cotidiana, certamente para a maioria da populao, sempre vinculou tempo e lugar e era geralmente impreciso e varivel. 53

A inveno do relgio mecnico e sua difuso entre os membros da populao marcaram a mudana de um sistema ao qual ningum poderia dizer a hora do dia sem referncia a outros marcadores scio-espaciais, esta mudana foi essencial na separao entre o tempo e o espao.O relgio expressava uma dimenso uniforme de tempo "vazio" quantificado de uma maneira que permitisse a designao precisa de "zonas" do dia (a "jornada de trabalho", por exemplo).12 O tempo ainda estava conectado com o espao (e o lugar) at que a uniformidade de mensurao do tempo pelo relgio mecnico correspondeu uniformidade na organizao social do tempo. Esta mudana coincidiu com a expanso da modernidade 54

Por conta disso Giddens identificou um sistema que chamou de desencaixe, sendo este um deslocamento indefinido das relaes sociais no tempo e no espao, contido em dois tipos de mecanismos de desencaixe intrinsecamente envolvidos no desenvolvimento das instituies sociais modernas. Sendo o primeiro deles denominado de criao de fichas simblicas; o segundo chamado por Giddens de estabelecimento de sistemas peritos. Estes mecanismos funcionam em parceria com a confiana, pois no caso das fichas simblicas, que podem ser algum ttulo de crdito, vrios tipos de fichas simblicas podem ser distinguidos, tais como os meios de legitimao poltica; entretanto vejamos o caso da ficha do dinheiro. No caso do dinheiro temos a plena confiana de que ela vale aquilo que diz que vale, desta forma a confiana depositada no dinheiro, utiliza a certeza de que um sistema monetrio creditar o valor que ela simboliza em bens fsicos independente do lugar que voc esteja, dessa forma as relaes de troca no precisam se dar em um espao fsico prximo, nem de forma imediata. Com relao aos sistemas peritos ele tambm um mecanismo que se apia na confiana, segundo Giddens seria:

... sistemas de excelncia tcnica ou competncia profissional que organizam grandes reas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. A maioria das53 54

GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade, p.26. GIDDENS, Anthony. idem.

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pessoas leigas consulta "profissionais" advogados, arquitetos, mdicos etc., apenas de modo peridico ou irregular. Mas os sistemas nos quais est integrado o conhecimento dos peritos influencia muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contnua. Ao estar simplesmente em casa, estou envolvido num sistema perito, ou numa srie de tais sistemas, nos quais deposito minha confiana. No tenho nenhum medo especfico de subir as escadas da moradia, mesmo considerando que sei que em princpio a estrutura pode desabar. Conheo muito pouco os cdigos de conhecimento usados pelo arquiteto e pelo construtor no projeto e construo da casa, mas no obstante tenho "f" no que eles fizeram. Minha "f" no tanto neles, embora eu tenha que confiar em sua competncia, como na autenticidade do conhecimento perito que eles aplicam algo que no posso, em geral, conferir exaustivamente por mim mesmo 55

Assim sendo o sistema perito uma caracterstica fundamental das sociedades modernas, e o avano tecnolgico e cientifico est diretamente associado a ele, pois foi graas a estes avanos que podemos formar um crculo de confiana neste mecanismo, entretanto seu nvel de confiana est sempre em risco caso falhas sejam evidenciadas, como no caso de acidentes de avio, os avies so muito superiores no quesito segurana, e alm das estatsticas mostrar