tão ogro quanto príncipe, uma análise do percurso gerativo...

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¹ Trabalho realizado na disciplina de Semiótica do curso de Comunicação Social Publicidade e Propaganda, ministrada pela professora Juliana Petermann e Magnus Casagrande ² Estudante de Graduação 4º semestre do Curso de Comunicação Social Publicidade e Propaganda da UFSM, email: [email protected] 1 Tão ogro quanto príncipe, uma análise do Percurso Gerativo acerca do filme Shrek, seu ethos e ironias. ¹ Alexia SÖRENSEN ² Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS RESUMO O presente artigo tem como objetivo estudar o percurso gerativo de sentido, em seus quatro níveis: fundamental, narrativo, discursivo e de manifestação de acordo com José Luis Fiorin (2005), aplicando-o no filme Shrek (2001) da Dream Works Pictures, que apresenta o personagem principal como características de anti-heroi, algo não muito comum em filmes infantis, mas que pode indicar uma humanização de personagens e uma possível crítica aos filmes tradicionais de contos de fadas. E, por fim, verificar como o nível discursivo, principalmente, influencia para que este personagem encaixe- se no papel de heroi. PALAVRAS-CHAVE: percurso gerativo; filme; análise de discurso. Introdução O sentido de um texto está intimamente ligado a sua produção e seu discurso, por isso, estudiosos, ao longo dos anos, vêm formulando diversas teorias do discurso para que assim possamos “com mais eficácia, interpretar e redigir textos” (FIORIN, 2005, p. 10). Segundo Fiorin (2005), um texto deve ser visto a partir de duas áreas complementares, sendo elas: “os mecanismos sintáticos e semânticos responsáveis p ela produção do sentido” (2005, p.10) e a compreensão do “discurso como objeto cultural, produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros textos” (2005, p.10). A par disso, este artigo propõe analisar o Percurso Gerativo de Sentido como forma de melhor interpretar aquilo que pensamos ser subjetivo, abstrato, e, assim mostrar “como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais

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¹ Trabalho realizado na disciplina de Semiótica do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda,

ministrada pela professora Juliana Petermann e Magnus Casagrande

² Estudante de Graduação 4º semestre do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da UFSM, email:

[email protected]

1

Tão ogro quanto príncipe, uma análise do Percurso Gerativo acerca do filme

Shrek, seu ethos e ironias. ¹

Alexia SÖRENSEN ²

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo estudar o percurso gerativo de sentido, em seus

quatro níveis: fundamental, narrativo, discursivo e de manifestação de acordo com José

Luis Fiorin (2005), aplicando-o no filme Shrek (2001) da Dream Works Pictures, que

apresenta o personagem principal como características de anti-heroi, algo não muito

comum em filmes infantis, mas que pode indicar uma humanização de personagens e

uma possível crítica aos filmes tradicionais de contos de fadas. E, por fim, verificar

como o nível discursivo, principalmente, influencia para que este personagem encaixe-

se no papel de heroi.

PALAVRAS-CHAVE: percurso gerativo; filme; análise de discurso.

Introdução

O sentido de um texto está intimamente ligado a sua produção e seu discurso, por

isso, estudiosos, ao longo dos anos, vêm formulando diversas teorias do discurso para

que assim possamos “com mais eficácia, interpretar e redigir textos” (FIORIN, 2005, p.

10). Segundo Fiorin (2005), um texto deve ser visto a partir de duas áreas

complementares, sendo elas: “os mecanismos sintáticos e semânticos responsáveis pela

produção do sentido” (2005, p.10) e a compreensão do “discurso como objeto cultural,

produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros

textos” (2005, p.10).

A par disso, este artigo propõe analisar o Percurso Gerativo de Sentido como forma de

melhor interpretar aquilo que pensamos ser subjetivo, abstrato, e, assim mostrar “como

se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais

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complexo” (FIORIN, 2005, p. 20) aplicando-o no filme Shrek, da Dream Works

Pictures, produzido em 2001, que mostra um ogro como personagem principal. Cheio

de defeitos, características de anti-heroi, Shrek apresenta-se como a antítese do

“príncipe encantado”, mas, durante toda a narrativa do filme acaba por encaixar-se no

papel de mocinho. O objetivo que esse trabalho põe em pauta é analisar como o

discurso influencia e, de certa forma, manipula os personagens e uma breve visão de

como esses personagens podem estar sendo retratados atualmente indicando, talvez,

uma humanização dos mesmos e levantar reflexões acerca da crítica silenciosa que o

filme faz sobre os contos de fadas tradicionais.

Partindo do percurso gerativo como metodologia, o presente artigo analisará, então,

os quatro patamares do discurso, chamados de níveis, sendo eles: Fundamental,

Narrativo, Discursivo e de Manifestação, onde os três primeiros apresentam um

mecanismo sintático e outro semântico e o último nível, uma “união de um plano de

conteúdo com um plano de expressão” (FIORIN, 2005, p.45).

Nível Fundamental

Para Fiorin (2005), “a semântica e a sintaxe do nível fundamental representam a

instância inicial do percurso gerativo e procuram explicar os níveis mais abstratos da

produção, do funcionamento e da interpretação do discurso” (2005, p. 24).

Logo, nesse primeiro nível da análise de um discurso, a semântica do nível

fundamental “abriga categorias que estão na base da construção de um texto” (FIORIN,

2005, p. 21) e baseia-se na oposição de dois valores, x versus y. Fiorin (2005) ressalta

que para que esses valores ou termos possam ser opostos é preciso que tenham algo em

comum, que estejam sobre um mesmo domínio e, dentro desse domínio que se

estabelece a diferença. Além disso, cada valor recebe uma qualificação semântica que o

próprio texto impõe, e não o leitor, sendo ela /euforia/ versus /disforia/, onde a primeira

apresenta uma conotação positiva e a segunda, negativa.

Durante o filme, identificam-se como valores fundamentais opostos o estar

/solidão/ e o /companhia/, estes pertencentes ao domínio de família/amigos, ou seja, tê-

los ou não. O /solidão/ possui, no texto, uma conotação negativa, qualificando-se como

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/disforia/, já o /companhia/ recebe a qualificação de /euforia/ com uma conotação

positiva. Isso fica explicito durante o percurso do filme, quando analisado, em que no

início Shrek vivia sozinho em seu pântano, com placas de “fique longe”, era grosseiro e

acreditava que viver assim era melhor, como na passagem “eu gosto de ficar sozinho”

(SHREK, 2001, 10m25s) ou “só tem eu e meu pântano” (SHREK, 2001, 46m40s), já no

final do filme ele demonstra desgosto longe de seu melhor amigo – Burro – e seu amor

– Princesa Fiona – em uma sequencia de cenas e cortes de câmera e, quando esta com

eles novamente, mostra quem realmente é, está verdadeiramente feliz e encontra o

“felizes para sempre”.

Já a sintaxe do nível fundamental, firma-se em duas relações que ocorrem ao longo

do texto, baseadas nos valores da semântica – x versus y –, sendo elas:

a) Afirmação de x, negação de x, afirmação de y;

b) Afirmação de y, negação de y, afirmação de x;

Quanto à sintaxe no filme, com x igual à /solidão/ e y igual à /companhia/, vê-se

afirmação de x, negação de x e afirmação de y. Durante uma longa parte do filme e pré-

supomos, longa parte da vida, Shrek acreditava que viver em /solidão/ era melhor,

exaltava isso, mas há a negação dessa /solidão/ quando ele percebe que estava melhor

quando tinha seu amor e seu melhor amigo ao seu lado, e, por fim, há a afirmação,

exaltação de estar em /companhia/, com seu casamento no pântano, repleto de

personagens dos contos de fada.

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Nível Narrativo

Configura-se, fundamentalmente, de uma mudança de conteúdo, como explicita

Fiorin (2005), “a narratividade é uma transformação situada entre dois estados

sucessivos e diferentes” (2005, p.27). Ou seja, há a existência de um estado inicial, uma

transformação e um consequente estado final em toda e qualquer narrativa.

Na sintaxe narrativa há três abordagens que devem ser analisadas, 1º dois tipos de

enunciados elementares; 2º duas espécies de narrativas mínimas e 3º seqüência canônica

com quatro fases. Nos dois tipos de enunciado elementares se têm os enunciados de

estado, que estabelecem relação disjunção ou conjunção entre um sujeito e um objeto,

onde tanto um quanto o outro são papeis da narrativa, e os enunciados de fazer que

demonstram as transformações propriamente ditas. No filme, percebe-se como

enunciado de estado a disjunção em Shrek está sem uma família e como enunciado de

fazer, Shrek ficou com sua família.

Como há dois tipos de enunciado de estado há também duas espécies de narrativas

mínimas, como retrata Fiorin (2005), a de privação com um estado inicial conjunto e

estado final disjunto e a de liquidação de uma privação com um estado inicial disjunto e

um estado final conjunto. Shrek apresenta uma narrativa mínima de liquidação de

privação, já que estava em disjunção com sua família e entrou em conjunção com ela.

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Para analisar a terceira abordagem da sintaxe narrativa, tem-se que ter em mente que

“os textos não são narrativas mínimas. Ao contrário, são narrativas complexas”

(FIORIN, 2005, p. 29), de cunho escrito, oral, audiovisual, entre outros. Logo, uma

narrativa possui uma sequência canônica com quatro fases, que podem ou não dar

preferência a uma das fases e ocultar outras, aparecer em uma sequencia ilógica, ou

ainda possuir mais de uma sequencia, sendo elas:

a) Manipulação: um sujeito age sobre outro para levá-lo a querer e/ou dever fazer

alguma coisa.

b) Competência: o sujeito que vai realizar a transformação central da narrativa é

dotado de um saber e/ou poder fazer.

c) Performance: fase em que se dá a transformação, a mudança de estado e de

conteúdo, é o ponto central da narrativa.

d) Sanção: é a constatação de que a performance se realizou e gera o

reconhecimento do sujeito que operou a transformação e a distribuição de

prêmios e castigos.

A complexidade de uma narrativa se dá pela quebra da sequencia, o que não ocorre

em Shrek, já de inicio temos a fase de manipulação, o personagem do Lorde diz “vá

nessa busca por mim e eu lhe devolvo o seu pântano” (SHREK, 2001, 25m58s),

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caracterizando uma tentação, “quando o manipulador propõe ao manipulado uma

recompensa, ou seja, um objeto de valor positivo, com a finalidade de levá-lo a fazer

alguma coisa” (FIORIN, 2005, p. 30). Na fase de competência, Burro faz Shrek

perceber que está infeliz sozinho, que são amigos e que devem ir atrás da princesa

(SHREK, 2001, 1h12m30s). Quanto à fase da performance temos Shrek se declarando

para Fiona e na sanção, o seu casamento, o Burro encontrando seu amor e os demais

personagens da trama em liberdade e felizes. A narrativa é comum, previsível, talvez se

fosse de outra forma, poderia causar desgosto em quem a visse, já que em contos de

fadas todos esperam um final feliz e se contentam com isso. A trama de Shrek apenas

apresenta algumas outras sequencias canônicas, como a da princesa, o do Burro e dos

personagens que estão sem um lar, entretanto inova apresentando um ogro no lugar de

mocinho.

A antítese perfeita do príncipe encantado, com má educação, um pouco egoísta e

muito solitário, Shrek tinha tudo para ser o vilão da história, mas como personagem é

manipulado pela narrativa, que trata de mostrar seu lado bom, como na comparação “há

mais do que se imagina nos ogros [...], ogros são como cebolas [...] as cebolas têm

camadas, os ogros têm camadas” (SHREK, 2001, 27m) ou ainda “eles me julgam antes

de me conhecerem” (SHEREK, 2001, 48m07s), que mostram que Shrek possui, na

verdade, sentimentos.

Já a semântica no nível narrativo corresponde aos valores inscritos nos objetos,

sendo eles objetos modais – são os elementos cuja aquisição é necessária para realizar a

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performance – e objetos de valor – são os objetos que se entra em conjunção ou

disjunção no estado final da narrativa. “O objeto modal é aquele necessário para obter

outro objeto. O objeto valor é aquele cuja obtenção é o fim último de um sujeito”

(FIORIN, 2005, p. 37). Em Shrek, temos como objeto modal o Burro, a Dragão e a

força bruta de Shrek que o ajudam a impedir o casamento da princesa e dão a chance de

Shrek se declarar, e como objeto de valor a princesa e o Burro, que representam e

significam família para Shrek, ou como valor fundamental eufórico, /companhia/. Vale

lembrar que o pântano onde Shrek vive sozinho sustenta o valor disfórico de /solidão/,

assim como seu conjunto de cadeira desocupada.

Nível Discursivo

Esse elemento do percurso discursivo reveste de termos concretos as formas

abstratas do nível narrativo, como explica Fiorin (2005). É também neste nível que há a

produção de “variações de conteúdos narrativos invariantes.” (FIORIN, 2005, p. 41),

como por exemplo, no nível narrativo do filme Shrek há uma liquidação de privação de

conjunção com /companhia/, no nível do discurso essa liquidação dá-se entre um ogro e

uma princesa e não o tradicional príncipe encantado e princesa. “Mudam os

personagens, os espaços, os tempos, as circunstâncias” (FIORIN, 2005, p. 43), mas

pode não se alterar o nível narrativo quando comparamos dois filmes, por exemplo.

É nesse aspecto que a Dream Works inova em seu repertório, a escolha de revestir o

sujeito que entra em conjunção com /companhia/ de ogro e é nesse ogro que focamos a

sintaxe discursiva, que aborda aspectos estruturais do discurso, como pessoalização,

temporalização, espacialização relação enunciador/enunciatário e, trazemos para uma

melhor análise as considerações de Dominique Maingueneau (1989) acerca do Ethos.

Como pessoalização percebemos a identificação do enunciador, ou seja, Shrek, e do

enunciatário, qualquer um que assistir a história já que se trata de um discurso do

gênero filme, há toda uma narrativa que será transmitida a uma plateia, as escolhas dos

personagens e de seus respectivos ethos podem ter diversas razões, a principal delas é

causar identificação com o público-alvo. No filme, temporalização dá-se a partir de

certo momento da vida de Shrek até o seu casamento, não vemos como ele cresceu nem

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como viveu após sua união – pelo menos nesse filme, o artigo desconsidera a sequencia

da saga – e espacialização tem-se o pântano de Shrek, o castelo em que a princesa está

presa e o palácio do Lorde, todos esses localizados na terra dos contos de fadas, a

espacialização está em concordância com os personagens e suas histórias.

A relação entre enunciador e enunciatário é muito clara, por tratar-se de um filme

infantil, o enunciador Shrek conta sua história, baseada em acontecimentos de sua vida

pessoal e o enunciatário, ou seja, a quem se dirige a mensagem e faz o papel de

interlocutor ocupa o lugar de um observador onisciente, ele sabe de tudo, não só dos

fatos que ocorrem com o enunciador, mas com os demais personagens também, o

enunciatário é a plateia que assiste ao filme e que, neste caso não pode interferir na

trama.

Para Maingueneau (1989), “a linguagem é considerada como uma forma de ação:

cada ato de fala [...] é inseparável de uma instituição” (1989, p. 29), a própria linguagem

é a construção e representação do mundo em que estamos inseridos, e a análise

discursiva, observa e põe em primeiro plano “o caráter interativo da atividade de

linguagem, recompondo o conjunto da situação de enunciação”. Para o autor, a

enunciação é a realidade e deve ser levada em consideração no momento do estudo, há

um tempo, um lugar e um sujeito que influenciam na narrativa e que devem ser

analisados, entretanto “não basta falar de “lugares” ou de “dêixis”, a descrição dos

aparelhos não deve atrapalhar aquilo que poderíamos designar [...] de uma “voz””

(MAINGUENEAU, 1989, p. 45), tanto o que é dito como a voz qual a qual se enuncia

são igualmente importantes e inseparáveis.

Como ethos consideramos essa voz, que chamaremos de tom – marcado por gestos,

postura, entonação da voz, caracterização – que o papel social obriga o sujeito a se

revestir, e também um caráter e uma corporalidade. O ethos, então, é uma representação

e um corpo que se revela pelo modo de como se expressa, “não é o que diziam a

propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem”

(MAINGUENEAU, 1989, p. 45). Além disso, devemos ser sensíveis para perceber que

o receptor também participa da construção do ethos do enunciador com o caráter.

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Com o ethos podemos analisar melhor o personagem Shrek e sua colaboração no

segmento cinematográfico. A corporalidade indica claramente um ogro, feio para os

padrões humanos, tal quais seus hábitos, asquerosos, de tomar banho de lama, comer

insetos e ratos, além de morar em um pântano. O caráter também é demonstrado ao

longo do filme, algumas pessoas com medo e tentando expulsá-lo ou matá-lo

contribuem para sua vida solitária, como o próprio personagem retrata, “é o mundo que

parece ter um problema comigo, as pessoas olham pra mim e ah! Socorro! Corram! Um

ogro enorme e horrível! É por isso que estou melhor sozinho” (SHREK, 2001, 47m51s),

se a análise acabasse aqui, como já foi dito, Shrek seria o oposto de um príncipe e seu

ethos, exclusivamente de ogro. Mas percebemos que seu tom é mais profundo, como a

narrativa trata de mostrar, há a aparição de gestos gentis, como entregar uma flor à

princesa, procurar por um abrigo e cozinhar para ela, humildes, como pedir perdão ao

Burro e atitudes valentes como lutar pelo seu amor. O ethos no inicio do filme era

superficial e incompleto, não mostravam o real ethos de Shrek, sendo assim, antítese de

um príncipe encantado não seria o termo correto, mas um bom “ogro” com atitudes e

qualidades de príncipe somados alguns defeitos é uma melhor explicação. É justamente

esse ethos composto de diferentes segmentos, uma mistura, que fazem o personagem ser

cativante e criam identificação com o público, um tom de príncipe imperfeito em uma

corporalidade de ogro acabam por humanizar Shrek, para além de um personagem,

vemos características de pessoas que conhecemos se não da própria plateia.

Já sua contribuição para o ramo cinematográfico levanta algumas questões

pertinentes. Temos um ethos diversificado em uma narrativa pobre e conhecida que

poderia indicar tanto uma simples ideia de por um ogro no lugar do príncipe quanto uma

crítica silenciosa aos filmes de contos de fada com um amor “Hollywoodiano”. Em uma

análise semiótica, Shrek nada mais é do que o típico “os feios também amam”, tão

comum quanto a narrativa em que está inserida, mas talvez por tudo ser tão obvio,

explícito e batido é onde a ironia está inserida. Ironia essa contra a perfeição e

idealização de histórias, é certo que Shrek possui um final feliz, mas ressalta que ainda

permanecem os defeitos, querendo traduzir que para entrar em conjunção com uma

família e a euforia de /companhia/ não é necessário ser “lindo e maravilhoso”, na

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verdade pode ser normal. Shrek comprova que os feios, mais do que um conto de fadas,

podem ter uma história real, infelizmente isso está representado em um discurso um

tanto trivial e comum, como já foi retratado, por tratar-se de um filme de gênero infantil

e para esse público a narrativa realmente tem que ser bastante explícita. Não cabe a este

artigo discutir se Shrek é ou não um bom filme, mas observar e questionar se ele se

apresenta como algo mais do que uma comédia-romântica.

Se a Dream Works inovou e até criou certa graça com um ogro e uma humanização

bastante complexa, devido tanto pela aparência física, quanto pela personalidade forte,

ela não pôde ir muito longe, pois se trata de um filme infantil e os valores socialmente

aceitos ainda devem ser louvados. Shrek é sim, um filme que quebra certos paradigmas,

ironiza e critica os contos de fadas comuns, o personagem é mais humano, com defeitos

e que cresce psicologicamente ao longo do discurso, a princesa não é linda e o alazão é

um burro, mas mesmo que haja o final feliz, ele vem de forma uma forma bastante

provocativa: “e eles viveram feios para sempre. Fim.” (SHREK, 2001, 1h22m44s).

Partindo, então para a semântica discursiva que termina por dar concretude ao nível

narrativo através de dois processos, o de tematização e o de figurativização onde o

primeiro remete a elementos não observáveis no mundo natural, são os valores abstratos

ali encontrados e organizados em percursos enquanto que o segundo remete a elementos

do mundo natural especifica e particulariza o discurso, interessa os procedimentos para

figurativizar o percurso realizado pelo sujeito. Para Fiorin (1993) entender um discurso

figurativo é preciso, antes de tudo, apreende o discurso temático que subjaz a ele.

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Os processos de figurativização e de tematização estão intrinsecamente ligados, não

há um sem o outro, em Shrek vemos que os autores escolheram como temas e figuras:

Tema: solidão – Figura: Pântano;

Tema: amizade – Figura: Burro;

Tema: alma gêmea – Figura: Fiona;

Tema: companhia – Figura: Pântano repleto de amigos com a presença dos

considerados mais especiais;

Nível da Manifestação

O nível da manifestação trata da união do plano de conteúdo – percurso gerativo – a

um plano de expressão. “Não há conteúdo linguístico sem expressão linguística, pois

um plano de conteúdo precisa ser veiculado por um plano de expressão” (FIORIN,

2005, p. 44) é da conjunção de ambos os planos que resulta um texto. Observa-se que

um mesmo conteúdo pode se manifestar em diferentes tipos de expressões, cada uma

com deus “efeitos estilísticos da expressão e as coerções do material” (FIORIN, 2005,

P. 45), mas o nosso objeto consiste em apenas um plano de expressão, o filme.

Seus efeitos estilísticos são claros, consiste em uma trama expressa através de som

e imagem em movimento – animada ou filmada, “problematizando temáticas variadas

que passam pela posição do espectador em relação à ação narrada” (MORAIS; DIAS,

2011, p. 5), há ainda a presença de personagens e um tempo pré-determinado, sabe-se

que um filme vai acabar e diferente de uma novela – também audiovisual – ele não se

estende por longos períodos. Filme por si só é um plano de expressão culturalmente

difundido e uma mídia muito procurada. Shrek cumpre todos esses efeitos e ainda trata

de ser um filme bastante diferente, como já foi mencionado pela escolha pouco comum

dos personagens e trama “batida”. Este filme ainda faz referência a outro plano de

expressão, o verbal no formato de um livro tradicional de conto de fadas, querendo

induzir o espectador que o enredo do filme ocorre no livro.

Como coerções do material utilizado consideramos o filme como um plano de

expressão pictórico que “tem como característica básica a simultaneidade dos

elementos”, como som e imagem. Nos filmes, a sequencia temporal pode ser alterada,

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mas isso não ocorre em Shrek, não há “fleshsback”, o filme procede em plano linear,

uma cena após outra, sem quebras. O material filme ainda trabalha com cor e

sonoridade, que no filme são retratados da seguinte maneira: a cor, necessária para a

semiótica, já que é responsável por criar um ambiente mais aconchegante ou alegre, é

essencial e muito bem diversificada, vemos tons quentes muito utilizados em produções

infantis nas cenas da floresta e castelo do Duque, tons mais terrosos quando os

personagens se encontram no pântano e tons mais escuros e azulados no castelo em que

a princesa está aprisionada com o dragão, mas, mesmo onde o filme requer mais

seriedade, as cores permanecem brilhantes, mais uma vez devido ao público ao qual se

refere. Com relação aos personagens vê-se que Shrek é verde, caracterizando uma parte

de seu ethos, a princesa, quando ogro também é verde e quando está em forma humana

possui cabelos vermelhos – bem chamativo – e pele clara – tradicional; o Burro aparece

em suas cores normais de tons de cinza que causa um contraste com o fundo mais

quente e com o dragão de tons mais rosados, chamando atenção para si.

Enquanto isso, na abordagem de sonoridade existe outros dois elementos, a voz e a

trilha sonora, esta ultima muito bem explorada e sempre condizente com o cenário e a

cena, se é uma cena mais tensa, a música entra em concordância. Já a voz, a fala, dos

personagens temos que considerar, como Fiorin (2005), que “dois planos de expressão,

tais como duas línguas naturais diferentes, operem com o mesmo material [...], não são

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idênticos, [...] uma língua natural não usa exatamente os mesmo sons que a outra”

(2005, p. 49).

O filme, para esse artigo, foi analisado em sua versão traduzida para o português, e

sabe-se que “a coerção do material, de um lado, leva-nos a verificar que certos sentidos

são mais bem veiculados por um plano de expressão que por outro; de outro, explica a

dificuldade de tradução” (FIORIN, 2005, p. 49), para níveis de análise, não se encontrou

passagem em que a tradução não fosse bem compreendida e os tradutores realmente

conseguem ser condizentes com o momento em que o personagem vive, no caso,

quando Shrek briga com o Burro, suas vozes retratam raiva e mágoa, fazendo o sentido

ser completo e uniforme.

Considerações Gerais

Seguindo a análise do percurso gerativo de sentido, pode-se constatar que o filme

Shrek se utiliza de todos os níveis para fazer uma comédia-romântica com uma

narrativa bastante simples e previsível podendo ser uma forma de ironizar, justamente,

esses contos de fadas onde o mundo é perfeito e tudo termina bem, infelizmente o filme

não pode ser extremamente critico por dirigir-se a um publico infantil.

É evidente a contribuição da análise do discurso neste e em qualquer outro texto,

pois é responsável por desvendar mecanismos implícitos, partindo dos valores no nível

fundamental e recebendo concretude dos demais níveis que são utilizados pelo

enunciador do texto para produzir o sentido desejado no leitor-ouvinte. Dentre os níveis

e suas especificações, semânticas e sintáticas, vale ressaltar o ethos empregado em

Shrek, ponto primordial para a estruturação do filme, pois é ele o responsável pelo

carisma do personagem, com hábitos de ogro e coração de príncipe, Shrek é

humanizado com defeitos e qualidades, que possui seu final feliz e critica a perfeição

alheia. Se os feios também amam, Shrek prova que estes, mais do que um conto de

fadas, podem ter uma história real, mesmo em uma narrativa um tanto trivial e comum.

O discurso do filme estrutura-se de forma coerente, desde o nível fundamental, com

os valores /solidão/ versus /companhia/, com a euforia no último, no nível discursivo,

com a caracterização dos personagens e concretude do abstrato, até o nível da

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manifestação onde as imagens, sonoridade e trilha sonora mantêm o filme no tom leve

de comédia romântica, ou seja, mantêm um mesmo posicionamento do início ao fim. O

discurso encarrega-se de manipular e induzir os personagens e com seus cortes e cenas

dos níveis da manifestação e discursivo, induzindo a plateia a ver o lado bom de Shrek e

sua historia, e chegar ao sentido pretendido pelo enunciador.

Referências Bibliográficas

FIORIN, José. Percurso gerativo de sentido. Elementos da análise do discurso. São Paulo:

Contexto, 2005. MAINGUENEAU, Dominique. A cena enunciativa. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes/EDUSC, 1989. MORAIS, Julierme; DIAS, Rodrigo Francisco. Teoria contemporânea do cinema:

Documentário e narratividade ficcional, a estilística cinematografia em evidência. Fênix –

Revista de história e estudos culturais. Vol.8, nº 2, ano 8, p 1-7, mai/jun/jul/ago. 2011.