sussurros de setima arte

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Page 1: Sussurros de setima arte
Page 2: Sussurros de setima arte
Page 3: Sussurros de setima arte

Cinema de Arte ...........................................................................................................… 02

O cinema Jalisco e seu mistério ...................................................................................... 03

Depoimento Lourenço ........................................................................................................... 03

Depoimento de Carlota ......................................................................................................... 04

Devaneio que ama, queima e é ......…...................................…...............................…...... 05

Depoimento da Eriberto ........................................................................................................ 05

Depoimento de Francisco Ramos ........................................................................................... 06

O reclamão da bilheteria ........................................................….................….…...……..... 07

Depoimento de Berenice .............……..........................................................................…........ 07

Depoimento de Dona Carochinha ......................................................................................... 08

Sumário:

Cinema Telefônico ...................………...............…….…...........……..... 09

Depoimento de Renatinha ..........…….......................................…........ 09

Depoimento de Roberto ..................................................................... 10

Depoimento de Dr. Ivan ..................................................................... 11

Resposta a G ...........….................................... 12

Depoimento de Roberval …...……….....………….... 12

Depoimento de Clodoaldo .……........…..….......... 13

Lumine .......................................................... 14

Depoimento de Beatriz ......................................14

Depoimento de Jurandir .................................. 15

Cinema de abandonar.................................... 16

Depoimento de Agenor ..……….....…................. 16

Editorial ....................................................... 17

Ficha Técnica.................................................. 18

Page 4: Sussurros de setima arte

Cinema de Arte

Senhor Redator: O objetivo desta é solicitar um esclarecimento à empresa exibidora de

filmes aqui em Fpolis, através desta coluna, a respeito da propalada sessão de “Cinema de

Arte” às 4ªs feiras no cinema Coral e às 5ªs feiras no cinema Jalisco.

Acontece que mais uma vez os programadores destas sessões estão fazendo

sensacionalismo gratuito e fugindo aos deveres e respeito aos apreciadores do bom cinema,

pois: 1º: o cinema Coral – bem como Ritz, São José, Rajá, Roxu, etc – carece de uma projeção

satisfatória (com os carvões sempre distantes...) e seu sistema de refrigeração (quando há) é

arcaico demais, chegando ao absurdo de o ruído dos ventiladores se igualarem ao volume do

som do filme;

2º: se a intenção é exibir “filme de arte”, sendo estes da bitola comum, deveriam

orientar aos senhores operadores da retirada da objetiva à frente dos aparelhos, o que

permite um alongamento vertical e horizontal à projeção, prejudicando sensivelmente ao

quadro original da imagem. Coisa que talvez os senhores exibidores achem supérfluo, mas que

é percebido por muitos que sentem o prazer da estética do quadrado de ouro...;

3º : a programação lançada quando surgiu a idéia – feliz idéia! – relacionava como

estréia ao filme “Mahler”, seguindo-se “Solaris”, “O Rosto”, “Cabiria”, “Les Guichets du

Louvre”. Uma programação que não se pode dizer que seja de “filme de arte”, com exceção de

“O Rosto” e “Cabiria”. E, para a sessão de 4ª feira, dia 15 passado, como se não dispusessem

de filmes que dignificassem a sessão, apresentavam o filme que havia sido lançado dia 11 no

cine São José, “A casa de Bonecas”. Ora, se a intenção é brindar aos apreciadores de Cinema,

deveriam tratar de programar antecipadamente estas sessões com cópias de filmes desta

natureza que circulam pelas capitais do país, menos em Florianópolis.

Grato. G. G.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

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Recorte do Jornal

O Estado

18 de fevereiro de 1978

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Page 5: Sussurros de setima arte

O cinema Jalisco e seu mistério

Como em todos os verões, mais uma vez o sol se colocava tardiamente atrás da Pedra

Branca. A rotina da cidade Florianopolitana era a de sempre: os senhores praticavam suas

jogatinas na Praça XV, que, por sua vez, andavam um tanto tranqüilas e mornas. Já que o

cenário futebolístico era amplamente dominado pelo Criciúma, até então tricampeão

Catarinense consecutivo, o futebol na ilha andava sem graça, ou seja, avaianos e alvinegros

não se provocavam.

As construções nas regiões de Chácara aconteciam a todo o vapor, os moradores já se

acostumavam com a beira-mar e seu novo formato - acho que aquilo tinha deixado de ser

região das chácaras há muito tempo. No continente, os sinos e cânticos militares podiam ser

escutados pontualmente, tanto no 63º Batalhão do Exército, como na Escola Aprendizes e

Marinheiros, sempre às 06h30 e às 18h00. De noite, a região continental ganhava um ar de

suspense. Além de algumas casas de luzes coloridas espalhadas em torno dos batalhões

militares, um certo lugar chamava muito a atenção dos jovens da época: o tal Cinema Jalisco,

onde eu também sempre tive curiosidades de ir, e por ser de menor não podia freqüentar.

Eu, como bom petiço, ficava na rua até no máximo seis horas da tarde; se passasse disso

a mãe já reinava, dizia que os homens viriam me pegar, mas eu sabia que os homens não

existiam já fazia uns 5 ou 6 anos. Então ela me ameaçava com castigos que estragariam meu

dia seguinte. Dentre as várias brincadeiras e afazeres da época de férias, fosse jogar bola,

brincar de pique-esconde, soltar pipa ou ficar mexendo com as meninas que passavam ali na

praça dos marujos, uma coisa deixava a cambada curiosa: o Jalisco, o tal cinema Jalisco.

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Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Lourenço

Trabalhei no Jalisco por mais ou menos cinco anos. Eu gostava do trabalho e tinha a

vantagem de poder assistir filmes de graça. Não eram todos os que eu podia assistir, pois se

minha mulher descobrisse era problema na certa. Bem, você deve conhecer a fama do Jalisco – ela

é completamente verdadeira – alguns dias da semana o cinema exibia títulos da pornochanchada.

Até hoje juro para minha mulher que nunca assisti um desses – ela não vai ler isso, vai? Era

engraçado de ver como o público do cinema variava conforme o dia da semana. Nos fins de

semana, os casais apaixonados; segundas e quintas, a macharada com testosterona à flor da pele;

quartas e sextas, os amantes do cinema. Mas, no geral, nosso público era maior de idade –

nenhuma mãe era doida de largar os filhos sozinhos para frequentar o Jalisco.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 6: Sussurros de setima arte

Tinha cinemas do centro que a mãe e o pai me deixavam ir, mas ali no Jalisco que era

pertinho de casa, eles falavam que era proibido, mas nunca explicavam o porquê. No auge dos

meus 14 anos, éramos criados soltos eu e meus amigos, e ser criado solto era prever que um

dia nossos pais arrumariam coisa pra cabeça; e esse dia chegou.

Uma bela tarde de dezembro, aquela falta do que fazer das férias já começava a bater

antecipadamente. Confesso que ficar sem ir ao colégio me deixava um pouco inquieto, visto

que as brincadeiras se tornavam entediantes rapidamente. Só não ficavam quando o Pedroca

aparecia com sua bola de futebol. Depois de horas a fio sem ter o que fazer, eu e meus amigos

decidimos que deveríamos descobrir o que se passava no cine Jalisco, e por que nossos pais

ficavam tão bravos quando falávamos neste nome. Todos nós sabíamos que aquilo era um

cinema, mas não sabíamos o porquê da proibição e o porquê da irritação, principalmente das

nossas mães. A pernada da praça dos marujos, onde morávamos, até o Jalisco, que ficava no

lado do 63º, dava mais ou menos uns 30 minutos. Então agimos com cuidado para não nos

verem em nossa missão. Após várias rondas em volta do prédio que se encontrava somente

com a porta aberta, eu e Silva passamos sorrateiramente pela porta para espiar uns cartazes

de filme que tinham na sala do primeiro andar. Alguns desses cartazes tinham nomes bens

estranhos, tipo “A banana Mecânica”, “História que nossas babás não contavam” ou o que

parecia ser o mais engraçado “O homem de papel”.

Até hoje não entendi o porquê de não poder ver esses filmes engraçados, e agora já era!

O cinema fechou, espero que outros como Jalisco surjam, aí sim, quero ver se tenho a sorte de

acompanhar um bom filme.

Historieta narrada por Cevador de Solidões

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

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Depoimento de Carlota

Adoro cinema, a sétima arte corre pelas minhas veias e é somente por isso que eu ainda

aguento trabalhar nessa espelunca. Larguei meu currículo no Coral e no Ritz, mas até agora não

tive resposta. Foi-se o tempo em que se projetavam bons filmes aqui. Desde que mudaram a

gerência do cinema é que este lugar está em plena decadência. Fiquei sabendo que na quinta

passada um cara fez o maior escândalo na bilheteria. Eu acho bem feito, de repente a diretoria

percebe que estamos perdendo cada vez mais o padrão deste cinema. Se eu fosse importante,

telefonaria para o editor chefe do jornal O Estado em pessoa - quem sabe assim dariam atenção

para a situação degradante deste lugar. E para piorar a situação, já não basta eu ser obrigada a

fazer a limpeza das salas nas segundas e terças, ainda tenho que correr com os pirralhos que

tentam invadir o Jalisco.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 7: Sussurros de setima arte

Devaneio que ama, queima e é Quando ainda era jovem de idade, no final da década de setenta - e digo jovem de idade,

porque de alma sempre fui velho – trabalhei na bilheteria dum cinema. Nos dias chuvosos, em

que o cinema desertificava, garantia em minha companhia os intermináveis cigarros,

destilados e livros que, escondidos em pequenas carteiras, garrafas e gavetas, foram

salvadores do ocioso vazio que tomava minha mente e corpo.

Nunca mais conseguirei respirar sem antes lembrar aquele final de tarde. A sessão das

cinco acabara de começar e eu pude, finalmente, esconder-me no banheiro a fim de preencher

os pulmões com alguma coisa – fumaça, que fosse. Ouvi passos se dirigindo para a bilheteria e,

pela janela espiei. Ela vinha de roupa vermelha, com os cabelos claros deixados de lado, e seus

olhos de ponteiro procuravam por informação. Rapidamente, apaguei o cigarro e corri para

ajudá-la. Ela queria um ingresso para a próxima sessão – não sabia nem que horas eram – e, ao

perceber minha hipnose frente a cada milímetro de sua presença, indagou-me, sorrindo, se

não tinha doído. “Se doeu o quê?”- balbuciei com esforço. “O cigarro”, e apontou para meu

peito, “você apagou o cigarro na blusa e feriu a pele”, ela disse. Realmente, doía. Mas doía

mais a distância que media nossos lábios. Doía mais a gravidade que impedia minha mão de

acariciar sua nuca e puxá-la para perto. Doía estar tão vazio e, assim, de repente, encontrar a

inquietação que percorreria minhas veias dali em diante.

Passei a esperá-la todo dia. E ela chegava, com seu cheiro de flores do campo, sem hora

marcada, ilustrando sua feição de encantamento e, enquanto esperava pela próxima sessão,

contava-me sobre os filmes assistidos. Costurava os detalhes e, dos seus olhos, derramava o

brilho que tornavam fascinantes as tramas cinematográficas. Ela amava os filmes. E eu a

amava. Numa manhã, acordei antes do sol nascer e comprei um buquê com o que me restou

do dinheiro do mês.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

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Depoimento de Eriberto

No final dos anos 70, Florianópolis sofreu com uma série de problemas em relação aos seus

cinemas; a cidade nunca tivera grandes preocupações com a sétima arte. Apesar de que

antigamente os cinemas tinham mais estilo, pois tinham instalações próprias e algumas temáticas

– como o Jalisco, onde era apresentado a conhecida pornochanchada em dias específicos. Os

antigos cinemas acabaram se extinguindo e hoje em dia é preciso de um shopping-center para

conferir as novidades da telona. Eu vi de perto a sua decadência. Muitos a atribuíram a má

qualidade das instalações. Mas o que aconteceu foi um boicote de uma loira gostosona que

seduziu um a um os bilheteiros de todos os cinemas. Ela era dona de uma rede de cinema paulista

que estava interessada na concessão para Santa Catarina. Com os bilheteiros se demitindo em

massa ou prestando serviços cada vez mais precários, não tardou para que os cinemas falissem.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 8: Sussurros de setima arte

do dinheiro do mês. Abri o cinema e fiquei a imaginar as palavras certas a serem ditas.

Naquele dia, porém, só o sol veio. Fiquei a esperá-la desde o escuro da madrugada até o

badalo da meia-noite. Como se fosse noite passada, eu lembro permitir entregar-me ao sono

ali mesmo, com a cabeça apoiada nas flores e o pensamento ancorado nela.

Com esforço, ergui as pálpebras e constatei-me na poltrona do cinema. Os letreiros na

tela anunciavam o término do filme. Eu, o bilheteiro, não me recordava sobre ter vendido

ingressos para tal sessão. Na minha volta, cartazes anunciando lançamentos para o próximo

ano: 2011. Levantei-me e passei a andar, transtornado, pelos corredores iluminados e

barulhentos, quase não reconhecendo minhas pernas. Esbarrei em uma moça de uniforme e

crachá sentada às escadas ao meu lado. A ela, balbuciei desculpas e, aproveitando a situação,

consultei-a sobre o paradeiro de uma mulher de cabelos claros e roupa vermelha. “Olhe ao

redor, rapaz! São todas assim!” E eram. Com indiferença, ela ainda ponderou “Sua camisa está

queimada de cigarro.” Estagnado, continuei. Na saída, um aroma de flores do campo

adentrava minhas narinas e ordenava minhas pernas para que parassem. Avistei a bilheteria e,

rapidamente, espiei. Um rapaz de aproximados vinte anos fumava ali dentro trancafiado. Por

um segundo, pensei em chacoalhá-lo, a fim de entender o que estava acontecendo, mas, ao

cogitar essa possibilidade, senti uma de minhas mãos ocupadas por um cheiroso, porém

amassado, buquê. O cheiro vinha dali. Observei o ambiente, o furo na camisa, o bilheteiro e as

flores. Fosse tudo sonho ou realidade, não importava.

Sobre as certezas, que nunca fizeram parte de minha vida (vida?), tinha, agora, uma

única: eu a amava, e isso bastou para me fazer partir. Seguir o aroma das flores, talvez? Para

onde fui, entretanto, até hoje, não sei responder.

Historieta narrada por Ma. Epítoma

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Depoimento de Francisco Ramos

Eu era dono da franquia do Cine Rajá e também do Cine Roxu. Fiquei sabendo, sim, da

história da loirona do cinema. Tem gente que diz que ela nunca existiu e era papo de bilheteiro.

Ninguém sabe, não é?! O que eu sei é que meus funcionários, responsáveis pela bilheteria,

sofreram de alucinações (ou não) por sete dias. Primeiro foi o Jóca, do Cine Rajá: contou pra todo

mundo que tinha conhecido a mulher mais encantadora do mundo – loira, vestido vermelho,

cheiro de flores do campo. Depois foi o Jair, do Roxu, com a mesma história da mulher misteriosa,

a mesma descrição, os mesmos sete dias. Achei que era safadeza dos dois marmanjos, porque

ninguém via a tal da loira; mas os dois nunca tinham visto a fuça um do outro e a história era

exatamente a mesma. Sei que aconteceu a mesma coisa no Coral e no Jalisco, e assim como o Rajá

e o Roxu, os dois entraram em decadência depois da visita da loira.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Page 9: Sussurros de setima arte

O reclamão da bilheteria

Fazia um mês que eu queria sair com a Berenice, mas ela estava fazendo o maior jogo

duro. Para cada convite que eu fazia, ela inventava uma desculpa. Mas eu sou um cara

persistente e, finalmente, a convenci de ir ao cinema comigo. Os cinemas de Florianópolis

tinham elaborado uma programação em conjunto para exibir filmes premiados em dias

selecionados. Eu não entendia nada de cinema, mas a Berenice era fã dessas coisas e estava

super empolgada para ver um filme que tinha entrado em cartaz naquela semana.

Vi que era a minha oportunidade e a convidei para a sessão cinema de arte do Coral, que

acontecia nas quartas-feiras à tarde. Passei para buscá-la em casa e quando chegamos ao

cinema, quase me arrependi do programa. O filme que ela tanto queria ver era um tal de “A

casa de bonecas”. Imaginei que seria terrível pelo nome. Mas confesso que até hoje não sei do

que se tratava o filme, pois passei a sessão toda olhando para os lábios de Berenice e

imaginando quando poderia beijá-la.

Minha intenção era beijá-la durante o filme, mas ela não desgrudou os olhos da tela por

um minuto sequer. Depois de quase duas horas de sessão - contando os trailers, porque a

Berenice não podia perder os trailers - pensei que finalmente conseguiria o primeiro beijo. Já

estávamos até andando de mãos dadas quando chegamos à bilheteria. Mas tudo foi por água

abaixo.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Berenice

Se tivesse sido qualquer outra ocasião, eu teria ficado constrangida. Pensa bem: eu estava

saindo com o Betinho depois de um mês o enrolando e meu tio aparece fazendo maior barraco na

bilheteria do cinema. Mas, daquela vez, meu tio tinha toda a razão de reclamar. Era nítida a

distorção de dois centímetros que a imagem sofria, e sem contar aquele calor das salas do Coral. O

São José e o Ritz tinham melhores condições, mas as do Coral na época estavam terríveis. Na

semana seguinte, fui ao Cine Coral com intenção de assistir O Rosto – que meu tio disse que era

maravilhoso – e acredita que ainda não tinha estreado? Liguei para o tio Gilberto e sugeri que

escrevesse uma carta para O Estado em reclamação às condições dos cinemas de Florianópolis. Só

espero que o Betinho não tenha ficado chateado com o fim do nosso encontro.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 10: Sussurros de setima arte

Tava rolando a maior confusão! O bilheteiro discutia com um senhor que parecia estar

realmente irritado. Assim que a Berenice viu o reclamão, soltou minha mão e tratou de se

afastar de mim. Fiquei sem saber o que aconteceu, mas Berenice falou no meu ouvido que o

homem irritado era seu tio – entendi o afastamento dela. Nos aproximamos para entender o

que estava acontecendo.

O tio de Berenice berrava com o pobre do bilheteiro que já estava encolhido num canto.

Lembro-me de ouvir o homem berrar “esses programadores são uns marxistas” – até hoje

tento entender o que ele quis dizer com isso – mas os xingamentos não pararam por aí. Falou

várias vezes que era um absurdo o que estava acontecendo em Florianópolis, que a projeção

do filme estava horrível, que era um desaforo com os amantes do cinema e blábláblá. Eu não

entendi patavina do que ele estava dizendo, mas a Berenice concordou com o tio. Mais um

pouco ela estaria lá no meio da confusão também, xingando o pobre do bilheteiro que não

tinha nada a ver com o assunto.

No final, o tio reclamão saiu batendo a porta dizendo que escreveria para O Estado para

reclamar dessa pouca vergonha, e ainda levou Berenice pelo braço. Quem saiu perdendo nessa

história toda fui eu: esperei um mês para sair com a garota para ver meu encontro ir pelos ares

por conta de um tio que estava procurando chifre na cabeça de cavalo.

Historieta narrada por Maria Bonita

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Dona Carochinha

Eu assisti A casa de Bonecas no dia da confusão, então eu vi tudo acontecer. Fiquei com

pena do coitado do bilheteiro, que estava atrás do balcão com a maior cara de “mãe, não fui eu”.

Quando vi aquela pessoa daquele jeito, tratei de chegar mais perto para saber o que estava

acontecendo – não que eu seja fofoqueira, mas é que fiquei preocupada com o bilheteiro mesmo.

No início, não entendi nada do que o reclamão estava falando, pois ele berrava que o

“alongamento vertical da projeção está ruim”- ou algo parecido com isso. Depois, minha amiga me

explicou que ele estava falando que a tela estava deformada. Achei que o cara era um doido,

como que a tela vai estar deformada se todas elas tem um formato padrão – retangular. O povo

arranja cada coisa para reclamar, que eu vou te contar.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 11: Sussurros de setima arte

Cinema telefônico

Era tarde da noite quando recebi o telefonema. Estranhei muito, porque fazia apenas um

mês que eu tinha o aparelho em casa e pouquíssimas pessoas sabiam o número. Mas eu, como

editor do jornal O Estado, não podia me fazer de rogado: não atender a um telefonema

poderia se tornar um sacrilégio, dependendo da pessoa que estivesse do outro lado da linha.

Se fosse um furo de reportagem, estaria garantido para o ano inteiro. Se fosse minha mãe,

bem, eu poderia ao menos garantir meu almoço do dia seguinte – pensei. Os tempos eram

difíceis, o ano era 1978, a ditadura estava presente pelas ruas da cidade - ainda que muitos

pensem que em Florianópolis ela não aconteceu de fato. Depois de me perder e me achar de

novo em meus pensamentos, atendi à chamada. Achei que o telefone ainda estivesse com

problemas na conexão, porque logo que atendi ouvi uns sons estranhos. Vozes de diversas

pessoas falando o número 7. Sete? Que raios isso significava? Sete vidas? Sete dias? Desliguei.

No dia seguinte, no mesmo horário, o telefone tocou novamente. Parece que as pessoas

não sabem o momento de respeitar o descanso dos outros. Acham que todos tem de estarem

prontos para atendê-los a qualquer hora do dia e da noite. Atendi e, novamente, os setes

invadiram minha cabeça. Mas a ligação durou menos. Dessa vez, antes que eu pudesse xingar

em pensamento e desligar o aparelho, a ação foi feita pelo outro lado da linha. Estranhei

muitíssimo, mas deixei de lado, assim que consegui me entreter com as sinopses de cinema do

jornal; achava aquilo um barato.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Renatinha

A Berenice tinha ficado fula da vida, porque o encontro dela com o Betinho tinha sido um

desastre. Todas nós sabemos que o Betinho não dá a mínima para cinema, mas a Berenice é tão

apaixonada pela Sétima Arte que ela acha que todo mundo nota os detalhes microscópios que ela

percebe. O fato é que ela ficou envergonhadíssima de ter ido ao cinema com o Betinho para ele

ver uma “projeção porca de A casa das Bonecas” – palavras dela. Então armamos um plano para

forçar o redator d’O Estado a publicar uma matéria de capa falando da situação dos cinemas da

capital. O tio dela já tinha mandado uma carta para o jornal que não tinha dado em nada, então

resolvemos pegar mais pesado. Por sete dias, ligamos para o editor chefe em horário suspeito e

sussurrávamos o número sete, ou as palavras “sete artes”, “sétima arte” no telefone. Foi ideia da

Berenice, acho que ela tirou de algum filme. Óbvio que não deu em nada, mas foi divertido.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 12: Sussurros de setima arte

No terceiro dia, no mesmo horário, mais um telefonema, da mesma maneira, com

diversas vozes - eram os únicos que eu recebia naquele primeiro mês de posse do aparelho.

Novos setes encenavam e se insinuavam nos meus ouvidos, quando, de repente, entendi: era

“Sete Artes”, “Sétima Arte”, o que me diziam ao telefone. Diversas vozes - que eu parecia

inclusive conhecer - falavam-me “Olhe a Sétima Arte” e riam. Eu perguntava, incessantemente,

o que aquilo significava, mas só ouvia risos. Um cheiro de flores murchas tomou conta da

minha sala e eu já estava ficando com medo daquilo.

No dia seguinte, na edição do jornal, ouvi falar de uma discussão que teve no cinema

Coral, no dia anterior, entre um senhor, tio de Berenice - minha vizinha - e o bilheteiro. Foi o

maior bafafá no meio cultural e me colocaram para averiguar isso mais afundo. Eu nem

precisei ir atrás, porque quem veio foi o próprio senhor. Deixei que meu estagiário editasse a

nota e passei o dia inteiro em frente ao Jalisco pensando sobre as ligações. Fui acertado pela

bola de alguns pivetes desengonçados que achavam que jogavam futebol, mas o que faziam

mesmo era espalhar o pânico pelos transeuntes com as investidas sem sucesso de seus pés

naquele objeto redondo, além de outras sem sucesso, ao tentar entrar no Jalisco – coitados.

No fim do dia, depois de tanto pensar, sabia apenas que a cidade precisava de uma

escolinha de futebol para meninos criados soltos. Estava disposto a sugerir pauta para a

redação, mas antes que eu pudesse sentar e escrever a respeito, eis que o telefone tocou de

novo. Dessa vez, uma música baixinha soava “Ela faz cinema! Ela faz cinema! Ela é a tal!”, uma

voz mais sensual pediu licença e perguntou se eu tinha um ingresso para a próxima sessão de

cinema. Eu não estava acreditando naquilo, que espécie de brincadeira era aquela?

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Roberto

Eu era um dos poucos que tinha o número pessoal de meu amigo Jorge Monteiro, que na

época exercia o cargo de editor chefe d ‘O Estado. Apesar de trabalhar num dos maiores jornais

de Santa Catarina, ele tinha certa aversão à tecnologia. Aquele número era restrito aos familiares

e amigos mais próximos, o que significava que eu não estava autorizado a divulgá-lo. Obviamente

a Berenice sabia que se alguém teria o telefone de Jorge, esse alguém seria eu; e como eu estava

enrabichado pela irmã mais velha da moça, resolvi fazer uma moral e dar o telefone. Mas para

garantir que não perderia um amigo, tratei de trocar alguns dígitos do número e passar o telefone

errado para a menina. Quando Jorge me falou que andava recebendo telefonemas estranhos

tarde da noite, achei que as meninas tinham conseguido o número certo e que eu estaria perdido.

Mas Berenice me garantiu que o número que tinha usado fora o que eu passei.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 13: Sussurros de setima arte

cinema. Eu não estava acreditando naquilo, que espécie de brincadeira era aquela? Antes que

eu pudesse reclamar, ela rio um riso doce, e o cheio de flores inundou novamente minha sala.

Eu, que fumava um cigarro, deixei-o de lado e comecei a ouvir seus devaneios sobre os filmes

que ela já tinha visto e sobre o próprio cinema – e a música ao fundo dava o tom “eu não sei se

ela agora está fora de si”. E assim, seguiram os sete dias da semana; ela sempre linda falando

dos filmes - ao menos o que eu imaginava dela - quem certamente tinha cabelos claros.

Na manhã de trabalho, vi a nota publicada sobre as reclamações do cinema Coral. Que

bom que as pessoas reclamam pelos seus direitos de entretenimento na cidade – pensei – e o

estagiário fez um ótimo trabalho, segurou as pontas enquanto eu me acabava em

pensamentos inconstantes. E eu, que nunca havia me preocupado com Cinema, passava a ver

aquilo tudo com admiração. Ora, quem nunca pára pra pensar nela - linda, loira, de roupas

vermelhas - não sabe quão bom é perder algumas horas de vida atribulada para entrar em

outras histórias e ouvir suas vozes. Sempre ouvi meus pais contarem de pessoas que diziam

receber correspondências da Sétima Arte, de se comunicar com ela. Agora eu acredito.

Até hoje quando falo disso para amigos, eles riem de mim, dizendo que andei fumando e

bebendo demais durante aquela semana, aqueles sete dias. No entanto, só sei que foram os

melhores sete dias da minha vida e que sempre que passo pela frente do Jalisco, o cheiro de

flores do campo me inunda e eu sorrio doce para aqueles mesmos moleques ladinos que

jogam bolas nas pessoas desavisadas. E essa sensação faz um bem que ninguém me faz.

Historieta narrada por H.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Dr. Ivan

Sinceramente, eu já estava achando que o meu amigo Jorge estava precisando de um bom

acompanhamento clínico. Sendo psiquiatra, era fácil para eu identificar um caso de neurose, mas,

sendo amigo, não era tão fácil assim dizer: “Meu amigo, tu tá ficando maluco!” Eu e o Jorge nos

conhecíamos de longa data, o cara sempre foi muito sério e competente, até que invocou que

estava recebendo ligações do cinema – como se a Sétima Arte tivesse se tornado uma entidade

capaz de se manifestar. Por sete dias, proclamou frases enigmáticas – que só ele entendia – e dizia

que sentia o cheiro de flores quando o cinema se aproximava dele. Depois desses sete dias, os

sintomas de neurose desapareceram. Cheguei à conclusão que deveria ter sido uma virose. Até

porque, naquela semana, atendi um paciente que jurava que a Sétima Arte tinha lhe escrito uma

carta.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 14: Sussurros de setima arte

Resposta a G.

Prezado G.G.,

Apresento-me sem demasiadas formalidades: depois de outras 6, torno-me 7ª. Mais

uma entre as sete. De vários lugares consigo ser vista, criticada e amada por diversas partes –

sou nova, sou velha, meio surrada, meio idolatrada. Chamam-me de 7ª, sétima arte. Prazer.

Um, para os cinéfilos, prazer.

Pelas precariedades dos cinemas mencionados por sua pessoa, aquilo a que já foi dito,

não posso argumentar; cabe, se cabe algo a alguém, àqueles que os administram. Afinal, as

condições dos cinemas de Santa Catarina fogem da minha alçada, como é público e notório.

O motivo pelo qual me nomeiam assim pode ser deduzido de diferentes jeitos: cada um com o

seu. Cada sistemático com seu sistema, cada lágrima chorada com o seu choro, cada destino

com o seu acaso. Minha alçada, como dizia, agora que ela pode ser trazida à baila, é além-

continente. Minha arte - como é notório e público - é feita por tantos, para tantos públicos,

outros quantos notórios... A junção das outras demais artes.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Roberval

Bravo? O Betinho queria arrancar a cabeça do primeiro que aparecesse na frente dele.

Imagina! Fazia um mês que o cara estava tentando sair com a Berenice. A Berenice é uma gata,

mas um mês xavecando a menina é demais, não acha? Mas o cara gostava mesmo dela. Aí,

quando finalmente ele consegue levá-la ao cinema, o tio da mina tá fazendo o maior barraco na

porta por causa de porcaria de 02 centímetros de deslocamento da tela – que por sinal só o

maluco percebia. Eu não sei o que teria feito, mas o Betinho é um cara tranqüilo, apesar de não

ter deixado barato pro tal do homem – o tio da Berenice. O Betinho escreveu uma carta pro tio

reclamão dizendo que ele era a Sétima Arte em pessoa – tu já viu cinema mandando carta? Pois é,

mas diz que o cara ficou uns sete dias doidão achando que tinha o dom de falar com o cinema.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 15: Sussurros de setima arte

No intento de ser muito entendida, formaram-se especialistas em Marilyn’s Monroe,

Sophia’s Louren, Anita’s Ekberg – a arte do contemplar. Também d’outros tantos mestres -

Fellini’s, Kurosawa’s, Costa’s-Gavras, Kieślowski’s - intelectuais, pseudos ou não, surgiram.

Para intentar ainda mais e saber por que sou arte, eu que sou e faço as diversas verdades, é

necessário aceitar o relativo – sou um dos sóis relativamente relevante. O que, poderia você

agora se perguntar, é a arte? Ou o que, se pensar nos dias de hoje, não é arte?

Pensar Mahler ou Les Guichets du Louvre como não sendo ‘’filmes de arte’’ não seria

pensar na sua arte? Ou, já me corrigindo, pensar no conceito – de signo e significado – daquilo

a que você considera arte? Assim como a História é feita através de outras histórias, composta

de outras versões, não seria o seu olhar artístico diferente de outro e feito por sua versão?

- Talvez eu tenha pensado tudo isso em voz alta e alguém – talvez nem público, talvez nem

notório – transcreveu o meu pensamento.

Att., Sétima arte .

Carta transcrita por L!

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Clodoaldo

A profissão de carteiro tem que ser valorizada neste país. Além de ter que aguentar

cachorro correndo atrás da gente – porque cachorro tem uma cisma com carteiro que vou te

contar - ainda tem aquele mal humorado que só recebe conta pra pagar e desconta no coitado

que entrega o boleto. E eu lá tenho culpa que o cara deve até os fundilhos? Ora! Mas o pior são

aqueles que querem virar amigo do carteiro, tu já viu? Faz mais de mês que o cara tá esperando a

carta da namorada que fugiu com o brigadiano, e sonha que o carteiro sabe dizer o paradeiro da

mulher - esses são os piores. Uma vez conheci um sujeito que disse que tinha recebido uma carta

do cinema – pensei comigo, e eu com isso? Mas tudo bem. Daí ele queria saber o endereço do

remetente da carta. Eu disse pra ele: o tal do cinema não é amigo teu?! Como que eu vou saber?!

Tem cada um que me aparece que vou te contar...

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Lumine

Sentava-me no banco que fica em frente à bilheteria próxima das portas das salas que

abrigam as grandes telas, e esperava os atrasados, para guiá-los aos seus lugares. Os atrasados

que esqueciam que no fim da tarde das primaveras um frio sutil enregela os corpos, e que

chove muitos dias no verão dessa ilha - e o relógio tique-taca mais dez ou quinze ou até

mesmo mais vinte minutos para os mais azarados que procuravam sem encontrar aquele

casaco que combinaria com as meias, o guarda-chuva tão bonito com desenhos geométricos, o

mais um pouco de perfume pra ser notado quando passasse pelos andarilhos de cabeça baixa

da rua. Eles sempre estavam muito arrumados, e eu entendia: no cinema eles poderiam

encontrar seu certo amor, personificado pela atriz inalcançável da tela enorme e brilhante ou

pelas damas que eles traziam consigo de outros lugares, com bafo de café e pérolas no

pescoço.

O cinema onde eu trabalhava ia mancando por um caminho meio torto (e mais tarde,

inclusive, eu veria suas luzes sendo desativadas e suas portas sendo fechadas - em 1980 pra ser

mais exata. Depois do Coral, eu comecei a trabalhar costurando pras madames daqui os tantos

modelos de vestidos que vi na tela enquanto iluminava as pequenas trilhas pros atrasados). Os

ventiladores andavam roncando demais e as salas esquentavam-se rapidamente, e – já aviso,

digo isso porque li em algum jornal, não porque assim penso – a tela ficava fora da forma

indicada pelos cantos e isso modificava a imagem do filme, além da sessão de arte começar a

um

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Beatriz

Todo mundo ficou sabendo do escândalo que o G.G. fez na porta do Coral e também da

carta que ele mandou para O Estado reclamando da situação dos cinemas florianopolitanos. É

verdade que a condição dos cinemas não estava lá grande coisa. Minha melhor amiga era

lanterninha do Cine Coral, então eu conseguia várias entradas grátis, além de conhecer o interior

do cinema – lá onde o espectador não tinha permissão de entrar. A verdade é que o sistema de

ventilação do Coral era precário, ouvíamos barulhos terríveis vindos das saídas de ar e ficávamos

imaginando monstros que teriam se instalado lá dentro. Isso tudo era muito divertido, pois

adorávamos aquele lugar apesar de todos os problemas. O dono do Coral ainda tentou frear seu

fechamento, trocando toda a ventilação, mas já era tarde demais. A prefeitura já tinha liberado a

concessão das telonas catarinenses para uma empresa paulista.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 17: Sussurros de setima arte

ser criticada. Esses últimos dois pontos não eram muito comentados, na verdade, pelo menos

não ali na minha frente. O que eu mais escutava era “Que horror de calor nesta sala” e

derivados.

Essas opiniões que o jornal publicou eram de um senhor que tinha reclamado através de

uma carta, não só das condições do Coral, mas do Cine Jalisco também. Eu desconhecia o calor

das salas, nem notava a falta de padrão da tela, sequer assistia a algum filme por inteiro. Eu

gostava de ficar sentada no meu banco, espiando a rua lá fora, lendo livros que me ajudavam a

conversar com quem se interessava pela lanterninha do Cine Coral, e prestava muito a atenção

pros vestidos das moças quando eu guiava algum atrasado. Eu sempre ali sentada, sem graça,

cabelos um tanto arrumados, maquiagem barata, mas caprichada, e a voz entoando canções e

canções da Janis Joplin e da Rita Lee.

O que aconteceu, afinal, foi que os problemas encontrados pelo senhor autor da carta

foram resolvidos. Pelos anos de 1990, o Jalisco fechou as suas portas. Dez anos antes, eu deixei

meus cabelos despenteados pra última sessão do Cine Coral. Ninguém chegou atrasado, tudo

estava muito bonito e iluminado, as salas não esquentaram, a tela estava perfeita, todos

sorriam. Mas era triste, era triste, era tão triste... E então a bilheteria foi desocupada, as

portas fecharam-se, e eu, pela última vez, apaguei a luz lânguida e vacilante da minha

lanterna.

Historieta narrada por Raio de Sol

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Jurandir

Eu fazia a assistência do sistema de ventilação do Cine Coral. O maquinário era realmente

muito antigo e precisava ser trocado com urgência. Informei o gerente do cinema já na primeira

vez que mexi naquela velharia. O gerente, Seu Rogério, era um senhor muito solícito e me deu

carta branca para fazer todas as melhorias necessárias para que o Coral voltasse a proporcionar

ótimas instalações aos seus clientes - eles eram realmente preocupados com essa coisa da sétima

arte por lá. O problema é que as peças que eu precisava trocar tinham que ser encomendadas de

São Paulo - e as peças não chegavam nunca, ou chegavam com defeito. Com a demora do

conserto o cinema foi perdendo popularidade e acabou fechando as portas – o que eu achei uma

pena. Anos depois, descobri que aquilo tinha sido golpe de uma empresa paulista para se

estabelecer no mercado catarinense.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 18: Sussurros de setima arte

Cinema de abandonar

Eu ria por dentro do barulho daqueles ventiladores - coisas desse tipo que me faziam rir naquela época. Ficava imaginando que tipo de boca ou olhos teria o sistema de ventilação do Cine Coral – pois certamente se tratava de um monstro. As pás preguiçosas movimentavam parcamente o ar abafado da sala quente e poeirenta, e era esse charme que me trazia – corpo e alma – àquele lugar que parecia triste, como uma moça que nunca se casou. Prestava atenção aos filmes e ficava em estado de transe com todos, sem exceção. Mesmo os mais chatos me cativavam. Ia até lá a pé, cantando bandas de rock e artistas da música brasileira. Era difícil conseguir discos por aqui; eram caros. Mas eu me beneficiava deles e de livros. E quando chegava ao cinema, sempre tinha algo a aprender e a dizer nas filas. Sempre tinha alguma menina largada sem sutiã, com os mamilos a se insinuarem sob a blusa fina; beldades de cabelos com permanentes e idéias loucas na cabeça, geralmente acompanhadas de caras de cabelo mais comprido do que suas mães gostariam de ver. Eu me perguntava que tipo de vida levavam, que tipo de vício tinham, que tipo de filme preferiam e por que freqüentavam aquele cinema.

O cinema não era o único, mas era o que eu preferia, porque ele era tão puído e desolado, e parecia precisar de atenção, especialmente depois da crítica que li no jornal. Depois daquilo, eu me forcei a ir a todas as sessões. Ninguém apegado ao “prazer da estética do quadrado de ouro” poderia entender meu amor por aquele lugar, por aquelas pessoas. Eu amava a lanterninha. Nós sempre conversávamos antes e depois do filme, quando ela não estava ocupada demais. Era sempre uma alegria vê-la cantarolar músicas que eu amava, e, na verdade, eu secretamente desejava vê-la quando ia para lá. Ela era tão apaixonada pelo cinema quanto eu. E ficou tão perdida quanto eu quando ele fechou. Saímos desorientados do cinema, e assistimos seu suspiro final em luzes apagadas. Nos demos as mãos e suspiramos pela última vez junto com ele. Sem palavra alguma, fomos andando pela rua na direção oposta dos últimos espectadores de nossa tão amada sala de cheiro de mofo e confeito - sala de tela gigante que contava histórias de longe daqui. Os dois estavam desnorteados, ainda que seguissem pelos mesmos caminhos todas as quartas-feiras, por amor à arte, por amor ao cinema, por amor aquele cinema. Era um Coral que se calava.

Historieta transcrita por de Belo-Mar.

Florianópolis - Outubro de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 06

Depoimento de Agenor

Posso me lembrar do Cine Coral por conta de um cheiro verdadeiramente característico. As

poltronas da derradeira fileira das salas 02 e 03 possuíam um leve aroma de mofo. Não era todo

mundo que conseguia perceber aquele cheiro, pois era algo realmente sutil. Sabe, o Coral era

muito bem cuidado – pelo menos antes de tudo começar, as alucinações dos bilheteiros com a

loira cinéfila, os problemas com a ventilação, enfim. O gerente do Coral era um cara muito

competente e é por isso que eu acredito nos boatos que o que fechou os cinemas

florianopolitanos foi um boicote de uma empresa de fora. Mas o que eu mais gostava no Coral era

a lanterninha. Ela era a mais bela lanterninha de todos os cinemas. Os marmanjos viviam babando

por ela. Mas ela tinha um namoradinho – pelo menos tinha um cara que vivia andando atrás dela.

Ah se ela soubesse dos suspiros que já dei por ela.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 19: Sussurros de setima arte

Olá! Nós somos a Revista Travessa em Três Tempos.

Ouve-se pelos corredores que o âmago desta idealização

nasceu despretensiosamente, em blog, com o objetivo de

três autores-amigos pass[e]arem pelos três tempos

históricos, tendo a travessa como cenário, sem ser

revisitada. De mais, “não sei, só sei que foi assim...”

Hoje, somos um projeto de extensão do Laboratório de

Imagem e Som da UDESC. Somos definidos como revista

histórico-literária com o objetivo de entretenimento do

público em geral, ao brincarmos com as diferentes

versões da história. Bem, concordamos com isso! Porque,

como bem sabemos, na história não existe uma verdade,

mas várias. E é por isso que a gente se propõe a colocar a

imaginação – histórica ou não - pra funcionar e criar

novas versões dos fatos trazidos prontos pelos

documentos históricos. Assim, a revista se forma, com

várias possibilidades para a história principal. Dizem que

dá um bom resultado. Confira!

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Editorial:

Page 20: Sussurros de setima arte

Atenção!

As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios.

Documento Base:

Recorte do Jornal O Estado - 18 de fevereiro de 1978, página 04

Textos de Redatores:

Ana Terra de Leon

Hellen Martins Rios

Luccas Neves Stangler

Taiane Santi Martins

Tainah Lunge

Autores Participantes:

Iulla Portillo

Thiago de Oliveira de Aguiar

Capa:

Arte e design: Taiane Santi Martins

Ficha Técnica:

Page 21: Sussurros de setima arte

Edição e Diagramação:

Taiane Santi Martins

Revisão:

Hellen Martins Rios

Idealização:

Taiane Santi Martins

Equipe Travessa em Três Tempos:

Ana Terra de Leon - Hellen Martins Rios

Luccas Neves Stangler - Mariana Rotili

Taiane Santi Martins - Tainah Lunge

Apoio e Orientação:

Prof° Márcia Ramos de Oliveira

Laboratório de Imagem e Som – LIS

Endereço para contato:

[email protected] - @revistatravessa

http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com

www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos

Ficha Técnica: