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algumas nótulas impressionistas sobre arqueologia e o mundo para mim ainda largamente desconhecido das “ciências da psique”, ou: algumas caretas que nos faz a realidade quando tentamos olhá-la de frente. Face da terra, Face do ser humano suplemento d’ ADRIANO RANGEL

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algumas nótulas impressionistas sobre arqueologia e o mundo para mim ainda largamente desconhecido das “ciências da psique”, ou: algumas caretas que nos faz a realidade quando tentamos olhá-la de frente.

Face da terra,Face do ser humano

suplemento d’

ADRIANO RANGEL

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Se me pedissem uma só palavra para definir a modernidade (o mun-do a que simbolicamente chegamos nos últimos séculos), elegeria a palavra paradoxo. Esse seria até, pelo seu carácter sintético, o título que escolheria para um livro: Paradoxo. É que tudo, na modernida-de, é feito de algo e do seu reverso. Duas faces contraditórias da mes-ma moeda que, depois, se multiplicam rizomaticamente por milhões de seus derivados. A complexidade é enorme, e todo aquele que sai do seu pequeno campo disciplinar (onde aliás às vezes nem está, porque se estivesse a fundo, iria encontrar muitas “saídas”, muitas aberturas em todas as direcções, a partir desse infinitamente circunscrito) lança-se numa aventura sem fim e sem etapas certas. Perde o pequeno caminho que o orientava, e nem sequer voga num espaço pluridimensional, mas ainda controlável por si: lança-se na mais radical das aventuras, orientando-se de quando em quando por ténues sugestões. A intui-ção é o seu guia.Confronto-me, entre múltiplos outros aspectos (como arqueólogo e como pessoa) com dois objectos, com duas realidades que (imagino que) estão perante mim (que de certo modo, reflectidamente, me fitam) e desejo perceber: a terra, o rosto. Ambos se me apresentam como “enigmas” (aparências com uma “es-pessura”, visibilidades que apontam para sombras, invisibilidades) e se tornaram, por qualquer razão, focos privilegiados da minha in-terrogação e curiosidade. Claro que as palavras utilizadas são con-vencionais: a terra ou o rosto são, na realidade, mesmo só para mim, muitíssimas coisas, que é impossível fixar numa imagem ou num milhão de imagens. Fazem parte do meio-ambiente em que estou imerso, meio esse percorrido por pequenas percepções ou imagens-nuas, para usar os termos de José Gil.Posso chamá-los objectos num duplo sentido: realidades que estão perante mim, sujeitas à minha observação (modo muito especial, já, de percepção), a qual, como tais, os institui; e, ao mesmo tempo, apresentam-se (aparentemente, à primeira vista, e de acordo com o senso comum) como aquilo a que se chama normalmente “mate-rialidades”, “fisicalidades”; são “corpos” expostos à vista e, eventual-mente, ao tacto (pelo menos). Fazem parte, em suma, da realidade objectual que me rodeia.Estão “ante” mim, mas este “mim” podia ser colectivo, isto é, o que visa é pensar o problema em abstracto: estão perante nós, se as en-cararmos com alguma atenção (a fixação do olhar, da atenção, não é nem inocente nem espontânea, nem depende do indivíduo – porque objectiva, segundo certas regras incorporadas, e assim sujeita (sub-juga), o observado – torna-o meu/nosso objecto – de acordo com determinados protocolos).Quero encontrar-lhes um nexo que escape às meras metáforas já gastas pelo uso do dia a dia, às analogias que não acrescentam nada, às ilusórias “relações” induzidas pelo discurso corrente (por exem-plo, projectando na terra os meus supostos “estados de alma”, ou entendendo o rosto como expressando supostos “estados de alma” do outro). Quero sair da especulação gratuita para poder partilhar com outros a minha subjectividade.Recuso, pois, uma pseudo-articulação ou identificação dos temas em termos de recursos retóricos correntes como seria, por exemplo, o de falar da “face da terra” e do que a ela subjaz; usando assim a palavra “face” no seu duplo sentido de superfície e de rosto, apelando para du-as realidades que, pelo facto de serem olhadas interrogativamente por mim, me devolvem um olhar e uma interrogação. Trata-se de uma estética de gosto discutível e sobretudo conceptualmente irrelevante. Que o título deste texto, pois, não engane o leitor, eis o que espero.

PORQUE ME INTERPELAM ESTAS REALIDADES?

Por que me interpelam estas realidades, que querem de mim? Espera(m)-se que lhes confira um (ou vários) sentido(s), uma inter-pretação? À terra, que lhe dê um tempo, um passado, uma narrativa; ao rosto, que lhe confira uma intenção, um carácter, uma emoção, uma alma, uma biografia – em suma, que destape o véu da materia-lidade, a realidade tal como se me apresenta à primeira vista, para descobrir nela, nesse espaço do visível, um invisível insinuado, que apenas espera o meu trabalho de decifração, de observação, de de-capagem, de escavação, para vir à tona? Será assim tão fácil? As re-lações entre o visível e o invisível são, como se sabe, um antigo tema recorrente da nossa tradição filosófica, que eu evidentemente não tenho competência para abordar.Ver o “profundo” por detrás (por debaixo) do superficial, tentar cap-tar algo de originário, de inicial, de matricial (a verdade, por exem-plo) e revelá-lo inteiro aos outros – eis a mitologia corrente, o desejo mais espalhado, num jogo de insatisfação sem fim. Por isso se diz de tal ou tal autor que ele é mais ou menos “profundo”; mas, a contrapor a isso, haveria aquela frase célebre do poeta segun-do a qual o que há de mais profundo é a pele, fronteira do eu... na verdade, na intenção do saber, que parte da pergunta, está sempre o desejo da resposta. Só que as respostas tornaram-se sedutoras esqui-vas: fogem e deixam em seu lugar novas perguntas.Arqueólogo e psicólogo, ou arqueólogo e psicanalista – poder-lhes-ia (como aliás a qualquer um de nós enquanto cidadão interessado nessas formas de interpretar, ou por elas minimamente influencia-do) ser atribuída essa missão decifradora, pacificadora, até certo ponto domesticadora. Dizer o que quer dizer a terra, escondendo-o, dizer o que quer dizer a face, escondendo-o, eis o que tem a ver com o desejo de um segredo e com uma metafísica da sombra. Falar da sua pluralidade radical de sentidos, da fugacidade do meu encontro com ela(e)s, decifrar, contar histórias, fazer sentido (unívoco ou plu-ral, facilmente entendível, ou exigindo descodificação), e provocan-do finalmente aquiescência, convicção. Atribuir-lhes uma temporalidade, reconstituir-lhes uma “experiên-cia” passada, uma verdade arcaica, primordial, por forma a expli-car como podem ter acabado por se nos apresentar como realidades presentes, tal como parecem “estar aí”... – eis a missão suprema do sábio, ou cientista, ou artista, como sucedâneo do xamã, o comuta-dor, o que religa a vida corrente, as aparências, com a vida subjacen-te, ou transcendente – com o sentido, com o “Grande Outro”, com a ordem simbólica.É pelo menos na vivência habitual o que acontece, o que se nos pede: dizer o que “aquilo” é, perceber rapidamente o que aquela expressão significa, ver através de, tornar transparente (para guiar a nossa ac-ção; nesse sentido, todos nos travestimos de arqueólogos e de psicó-logos ou outros observadores da “psique”), decifrar a anomalia (o que resiste à explicação ou ao meu domínio) através do seu sintoma. E, apressados, exigentes (pede-se muito, se não tudo, ao que mes-sianicamente se apresenta como potencial portador da solução) os nossos interlocutores querem que nos expliquemos depressa e bem: uma solução clara e precisa, argumentativamente desenvolvida e chegando rapidamente a uma conclusão.

AS PERSONAGENS DOS “OUT-DOORS” PARECEM TER, AO SORRIR-ME, “MAIS VIDA” QUE EU

Estamos numa sociedade de flashes, de imagens e não de textos (ou então, se quiserem, também de textos que são quase-imagens): de slides que entram pelos olhos dentro. Sobre ela já se disse tudo, nu-ma dobragem sem fim; e no entanto há sempre novas abordagens, novas perspectivas, novas metáforas, parecendo que o novo se esgo-tou como anúncio do mesmo. O saber já não é uma coisa que está ali: o saber é toda a minha expe-riência, o latejar do meu corpo. Só que o meu corpo, “sentido de den-tro” por mim, tem um ruído subtil, quase imperceptível, de máquina (quando a dor não o vem afligir), apresenta-se-me por vezes como uma artificialidade estranha. As personagens dos “out-doors” parecem ter, ao sorrir-me, “mais vida” que muitas pessoas, mais vida que eu. Na verdade, a obsessão do corpo, nas suas infinitas aparições, como um objecto separado (o outro da alma) é bem moderna e ocidental.Estamos numa sociedade que voga mergulhada (no mito d) n(a) evi-dência, da transparência, do acesso, da horizontalidade, da fluidez.

“(...) o trabalho da verdadeira recordação (...) deve ser menos o de um relatório, e mais o da indicação exacta

do lugar onde o investigador se apoderou dessas recordações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica

e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório

arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros,

aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes.”

Walter Benjamin, “Imagens de Pensamento”, p. 220

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“Trazer para a frente” é um dos comandos de um programa qualquer de computador. A frente: o ecrã, o rosto, a superfície do ter-reno – o que terão escondido? O especta-dor compulsivo que somos passa o tempo a olhar, a monitorizar, a tentar captar peque-nos sinais, vive sob o regime da vigilância. É um monitor de vídeo-segurança virado para dentro de si.É também o que parece advir de tanto a arqueologia como a psicologia ou psicaná-lise (como em geral as ciências ou formas de saber) derivarem todas da mesma “epis-teme” moderna (bem nítida no séc. XIX, princípios do séc. XX) que consiste, entre múltiplos aspectos, numa valorização da profundidade “versus” a superfície (Tho-mas, 2004). Numa obsessão pela visão, tão patente na fenomenologia de um Merleau-Ponty, por exemplo.Mas não nos enganemos: o objectivo míti-co último seria, para muitos, desvelar essa “profundidade” ficcionada numa conclusão óbvia: a “descoberta” da interioridade radi-cal de cada ser, que vai a par da sua pro-gressiva “objectificação” – sou sujeito nos dois sentidos, isto é, sujeito como realidade individual e sujeito como objecto da obser-vação de um Estado implacável – teve tan-tas ramificações, que, hoje, falar em psica-nálise, por exemplo, é entrar num oceano de muitas correntes e derivas, onde (aos olhos do leigo) muitos parecem andar (ar-riscaria dizer: andam mesmo) perdidos. E ainda pagam (muito bem), testemunho do seu empenhamento: para serem analisados, eventualmente para poderem ser futuros analistas. A linguagem da psicanálise e das ciências “psi” está cheia de “economia”: é o investimento do desejo, é a economia libidi-nal, é a gestão do tempo da sessão, etc. A visão é então privilegiada em relação a outros sentidos, e tanto em medicina, como em arqueologia, o importante seria, a partir do “sintoma”, da aparência, do vestígio, ver a causa ou a realidade subjacente, contemplar a totalidade, tornar o opaco transparente, desmontar as peças e voltar a remonta-las, ver como funciona. É atrás disso que anda a inteligência artificial, a robótica, as neuro-ciências, a própria biologia com o mito da programação genética.Freud, por exemplo, foi um grande amante de arqueologia e coleccionador de objec-tos, como muitos homens do seu tempo. Mas também foi um dos homens que mais contribuíram para desmistificar essa visão intuitiva, corrente, do conhecimento como algo centrado de si a si mesmo, na consci-ência do indivíduo. Costuma-se a esse res-peito falar das feridas narcísicas que a mo-dernidade trouxe, e que seriam, além desta, a “revolução” de Darwin (o ser humano de-corre de um “jogo cego” da “natureza” e não de um “plano de Deus”) e a “revolução” de Marx (o que eu digo, faço, e sinto provém de uma “fonte” – a minha condição social – que eu estou longe de consciencializar ou de controlar, porque a maior parte das ve-zes é uma “falsa consciência”). Mas muitas outras se poderiam mencionar (segundo o estruturalismo de um Lévi-Strauss os mitos falam entre si, segundo Foucault o sujeito está inscrito numa ordem do discurso que fala por ele-sujeito, etc.).

Todas estas “feridas narcísicas” vieram instalar inquietação na doce paz de um conhecimento centrado e doméstico, todo-poderoso: seja o que for que eu sou, ou faço, isso não é o que julgo ser ou fazer, o que é “evidente” decorre de algo de mais estrutural que está subja-cente, de algum modo, às aparências, e que por vezes frontalmente as contraria.

TODOS DEVERÍAMOS SENTIR A OBRIGAÇÃO DE “SER FILÓSOFOS”, ISTO É, DE INCORPORAR OS CONCEITOS BÁSICOS QUE, NA PERSPECTIVA DE CADA UM, LHE PERMITIRIAM ESCAPAR À TIRANIA DAS EVIDÊNCIAS

Face ao saber comum, temos a “era da suspeita”; a instalação da pergunta, da distância, como valor crucial, face à resposta ou acção imediata. O ser humano “descola-se” de si próprio, vê-se a si mesmo como um objecto, no sentido de algo exterior que pode analisar, e no sentido da carnalidade do seu corpo físico.Pois é claro que as coisas não são assim tão simples quanto mui-tas pessoas (incluindo os “utentes” ou destinatários do trabalho dos arqueólogos e dos multímodos “tratadores da psique”), na sua prá-tica corrente, imaginam, ou exigem. A vulgarização da actividade da psicanálise nos EU, tornada prática terapêutica consumista de tipo “ginásio”, é bem característica disso. Não é essa “psicanálise” terapêutica light, banalizada, que me interessa, nem a arqueologia comercial banalizada que me interessa – a psicanálise levanta pro-blemas básicos da filosofia, que interessam a todos, na medida em que todos deveríamos sentir a obrigação de “ser filósofos”, isto é, de incorporar os conceitos básicos que, na perspectiva de cada um, lhe permitiriam escapar à tirania das evidências, tanto mais tirânica quanto naturalizada, e portanto não problematizada. Este é um de-ver e um direito fundamental de cidadania: pensar, sair da preguiça, sobretudo quando se pode, quando se tem os meios para o fazer, e para ser útil, a si e aos outros. Há uma ética anti-hedonista que temos que “violentamente” contrapor à ética do “fique bem” desta socieda-de. Nesse aspecto subscrevo e aplaudo entusiasticamente muito do que escreve Slavoj Zizek.Há de qualquer modo, tanto em arqueologia (ou história) como em psicologia (ou psiquiatria, ou psicanálise, apesar das profundas di-vergências entre estes três últimos “campos”) uma vontade de sutu-rar feridas, inquietações, interrogações identitárias. Quem somos e de onde viemos, qual a razão de estarmos aqui e agora a sentir e a vivenciar assim, como conjugar a nossa individualidade e so-lidão radical com a necessidade profunda do outro, do que pode conter a explicação, a redenção, até como objecto do meu desejo? Como suportar o abismo entre esse desejo e a sua insatisfação, que permanentemente o alimenta, como querer continuar a precisar de um mito sabendo-o mito, como aliviar esta nostalgia da perda, do desencanto? É ela algo de especificamente ocidental, ou há uma in-terioridade reflexiva (“self-awareness”) em todo o ser humano, como parece acreditar, por exemplo, H. Moore (bibliografia, p. 33)?A ontologia ocidental é dualista; separa, desde os gregos, matéria e espírito, corpo e alma, biologia e cultura, forma e conteúdo, aparência e realidade (Ingold, 2002). Freud era obviamente dualista também, como escreve Pontalis: “(...) o pensamento freudiano, pensamento dualista por excelência, pensamento do conflito e do par de opostos”, acrescentando porém que “não se deixa encerrar num isto ou aquilo”. O nosso reino é o do entre-dois (...)” (ver bibliografia, p. 11).Aqueles pares de opostos desdobram-se em dezenas de outros – são estruturantes do nosso modo de pensar e de agir. Pertencem ao mundo da ilusão incontestável – daquilo que ainda alguns chamam a ideologia (ou seja, o que é tido e crido como natural, e portanto não se pode pôr sequer em dúvida; nomeadamente para o tal realis-mo espontâneo, que é o que reina na nossa experiência diária, o que se pensa coincide, ponto por ponto, com a realidade). É a falta de consciência da ordem simbólica em que estamos inscritos.Tal ocorre mesmo – e às vezes sobretudo – quando se insiste em que são aspectos inextricáveis, que se não podem apartar (nunca ninguém viu um corpo – pelo menos vivo – sem uma alma, ou vice-versa); esse discurso repete afinal, em sinal contrário, e por comple-mentaridades desejadas, oposições efectivas. A esta dicotomia poucos, pois, escapam, se é que é mesmo possível, utilizando a nossa linguagem, escapar-lhe. Obviamente que muitos autores não vêm qualquer interesse nesse esforço de superar tais di-

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cotomias, esforço que se tem notado mais na linha filosófica feno-menológica (Heidegger, Merleau-Ponty, etc.), cuja motivação prin-cipal é restituir, se possível, a experiência humana na sua totalidade vivida, imersa no mundo, e não apenas sobreposta a ele, ou actuando sobre ele. Há em Merleau-Ponty, por exemplo, ao valorizar a acti-vidade do fazer (por exemplo, a arte do pintor) sobre a do feito (o quadro pronto) uma espécie de recuperação de algo primordial, pré-linguístico. Algo que lembra a poesia, o seu radical paradoxo: dizer o indizível, dizer o silêncio que precisamente o dizer perturba.

A PSICANÁLISE PERMITIU-NOS PERCEBER COMO PERMANECEMOS INFANTIS AO LONGO DA VIDA

Em termos muito esquemáticos a perspectiva corrente – a que a fe-nomenologia se tem procurado contrapor, revalorizando a experi-ência sensível até ao seu mais ínfimo detalhe – a matéria, o mundo físico, o corpo, seriam realidades mais ou menos inertes (ou ani-madas, mas por factores mecânicos, repetitivos), sujeitas a leis, do domínio do quantitativo. A cultura seria um manto que viria cobrir com diferenças e especificidades esse universo indiferente. A natureza pertenceria ao tempo lento (universo, geologia, etc.) ou à evolução (das espécies); a cultura, o mundo humano, estaria na histó-ria, que seria a narração da evolução cultural, quer dizer, do progres-so, até à sociedade civilizada contemporânea (leia-se ocidental). É daqui que deriva a noção de “cultura material”, muito comum ain-da hoje no mundo anglo-saxónico (“material culture studies”): os objectos, sendo matéria (inerte) e cultura (gosto, estilo, tradição) sobrepostas, servem para entender a vida corrente e são por vezes mesmo motivo quase exclusivo da atenção dos arqueólogos. Um fe-tichismo banal ?...Medeiam entre o presente em que sobrevivem, fragmentados, trans-formados em vestígios (o vivo) e o passado que representam, e que a partir deles se pode extrair (reconstituir) e até fazer reviver (o morto ressuscitado). Neste sentido, a atitude “científica” tem um efeito securizante, que desemboca na paranóia patrimonial, compensadora do sentimento de perda, e particularmente no museu, o asilo do inútil-não funcio-nal para passar a ser útil-contemplativo (ver por exemplo Guillau-me, 2003). O passado pode ser recuperado no seu essencial, numa escatologia que evidentemente herda a ideologia judaico-cristã que nos é matricial. A forma e o conteúdo sobrepor-se-iam. Ao guardar tudo, preparamo-nos para uma espécie de dia do juízo final, em que as almas se juntarão aos corpos, num delírio universal da harmonia. Os objectos sairão das vitrinas e voltarão a encontrar os seus utentes, finalmente felizes para sempre, como no fim dos contos infantis. A psicanálise permitiu-nos perceber como permanecemos infantis ao longo da vida toda e, ao nível da sociedade, como esta se estrutura sobre um conjunto de forças que não são, afinal, muito diversas, des-de há milénios (pelo menos na “nossa civilização”).Durante muito tempo, e até praticamente hoje no senso comum ou nas práticas, certas realidades ocuparam um espaço de limbo, de limiar, entre o natural e o humano: por exemplo, a mulher, a crian-ça, o primitivo (selvagem ou pré-histórico). Foram todos formas de representar o Outro do pensante (ser masculino adulto, activo e educado). A mulher dá à luz, nutre a vida, gere o quotidiano domés-tico, tem um comportamento imprevisível, indecifrável ou temível, histérico; a criança é uma miniatura do adulto, sem grande estatuto ontológico; o primitivo ou selvagem faz a ponte entre nós e os ani-mais, estando submetido às leis naturais, as quais procura defrontar com uma tecnologia rudimentar e com formas mítico-mágicas de actuação, em tudo opostas ao racionalismo ocidental que começou a despontar no séc. XVII com Descartes ou Bacon, e veio a consumar-se na revolução francesa e nas suas sequelas, até agora.A psicanálise – tal aliás como a arqueologia – tem ainda hoje um es-tatuto um pouco ambíguo, ou diminuto, face à psiquiatria ou mesmo à psicologia (a arqueologia é também “parente pobre” relativamente à história, da qual, na visão de alguns, nunca se devia ter “separado”). Na verdade, tendo arrancado da medicina, e de todo o movimento de objectificação e de “saneamento” do corpo e alma que vem do século XIX, a psicanálise é uma prática que pode ser subversiva, e se funda numa relação muito particular entre observante (sujeito) e observado (objecto), na medida em que implica que, com o tempo, se dê uma transferência, conceito complexo do qual não estará ob-viamente isenta uma erótica relacional (confusão) entre os dois. De

facto, num ambiente ainda hipocritamente puritano (“vícios priva-dos, públicas virtudes”) um dos grandes méritos de Freud foi “ero-tizar” toda a perspectiva que temos do mundo relacional humano, desde a mais pequena infância. Por assim dizer, nenhum de nós é “inocente” – somos todos seres clivados.

TALVEZ SEM A PSICANÁLISE NÃO TIVESSE SIDO POSSÍVEL TODA A EMERGÊNCIA DA MULHER NO “PALCO DA HISTÓRIA”

O que há de mais interessante nesta abordagem é pois o seu estatuto ambíguo, vivo, sempre em desenvolvimento, desde a sua criação por Freud. Este, como é sabido, reformulou quase constantemente a sua teoria, e os seus “discípulos” (ou os que nele de algum modo se ins-piram, mesmo para o contradizer) constituem um universo muito heterogéneo, conflitual mesmo. Os grupos de psicanalistas, incluin-do Lacan e tantos outros, caracterizam-se precisamente pelas suas contínuas dissidências. O facto de cada um deles passar também pe-la situação de analisado antes de ser analista, e a relação muito espe-cial (oposta à da psicologia tradicional; da psiquiatra é melhor nem falar) que se estabelece entre analisante-analisado mostram bem o carácter, por assim dizer, subversivo deste saber e desta prática, a que já aludi (bem longe do panorama corrente, também atrás aflorado, perfeitamente corriqueiro e doméstico, tipicamente americano, de se frequentar o psicanalista, para a “alma”, como se vai ao ginásio, para o “corpo”). Com a “americanização” da sociedade estes hábitos tornaram-se típicos das classes médias ocidentais, como todos sabe-mos. É um sinal de distinção de classe.Ora tal atitude matricial da “boa” psicanálise é, ou era até há bem pouco tempo, absolutamente proibida pela ciência, que se baseia na divisão entre um sujeito neutro e um objecto distanciado, por forma a permitir o conhecimento objectivo, produzindo resultados independentemente do autor (é este carácter despersonalizado que sacraliza a ciência, e que tem como contraponto a personalização romântica do artista como génio, faces positiva e negativa da mesma realidade, própria das sociedades laicas, isto é, não governadas pelo Transcendente. Ou seja, trata-se de uma religião do humano como autor do seu destino, liberto dos projectos ou dos ditames de Deus). Por outro lado, a psicanálise introduz o desejo (no seu sentido mais geral, mas também sexual, como é bem sabido), factor perturbador de uma certa “ordem”, como elemento estruturante do humano. Em última análise, parte da assunção de que todos temos algo de neu-rótico ou de psicótico, porque o meu eu não é presentificável a mim próprio, nem eu sei, de facto, quem sou, uma vez que existe (para não irmos mais longe) a instância do inconsciente, que me descen-traliza de mim mesmo, que me obriga a “olhar de lado” (quer seja analisado, quer analista). Ninguém é “normal” apesar dos esforços de normalização higienista que, em regimes extremos, deram os re-sultados conhecidos. Talvez sem a psicanálise não tivesse sido possível toda a emergên-cia da mulher no “palco da história”, e a progressiva “legalização” de comportamentos que antes as leis se esforçavam por contrariar, como sejam todos os conceitos e práticas que ligam o sexo à procria-ção, à família, ao casal heterossexual, etc., como a norma social acei-tável, até para a própria reprodução da espécie (e portanto inscrita na ordem natural) e da sociedade. Feminismo, psicanálise, antropo-logia emergem coetaneamente, embora mantenham entre si muitas vezes relações conflituais, ambíguas, ou de rejeição.Ora, na modernidade, todos os saberes ou práticas “sérios” se pro-curam apresentar como desinteressados ou reportando-se a valores “elevados”, morais ou éticos, que os transcendem, que são o sustento da respectiva acção. Veja-se o caso do direito, que também se não pode considerar “ciência exacta” (é mais que todos um campo ób-vio de jogo de poderes), mas que visa alcançar o supremo bem de administrar a justiça, um direito intrínseco a uma realidade que a modernidade criou, o cidadão. Assim, a introdução do corpo, das suas pulsões e “materialidades” (simbolizadas, claro) no próprio co-ração das chamadas ciências sociais e humanas, não poderia deixar de causar algum mal-estar, que todavia é, como o interesse pelo pas-sado e pela terra que o “contém”, elemento típico da modernidade, toda feita de paradoxos, de contradições, como disse. A psicanálise não foge às regras desse saber moderno (muito ao contrário, visa sondar as profundezas do ser) mas desorienta as suas formas mais extremas e maquínicas, ultrapassando de longe a mera funcionali-

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dade de “curar”, isto é, de apaziguar, de acomodar o “desviante” à regras em vigor.Também aliás a antropologia (com a qual, repito, tanto a arqueo-logia como a psicanálise frequentemente se têm cruzado, desde os precursores) teve um papel algo contraditório (na linha do que direi a seguir), pois sempre oscilou entre as noções de bom e mau selva-gem, entre o colonialismo e a troca entre pares supostamente iguais (abertura ao outro para melhor, mais inteligentemente, o invaginar, absorver, e dissolver). Todo o poder perdurável foi sempre feito de tolerâncias para com as diferenças, subsumidas no seu poder maior. O neo-liberalismo contemporâneo e a libertação de costumes são sintoma disso: estamos todos bem controlados para nos poderem dar a liberdade (autonomia individual) como motivação e sonho.A modernidade – que, como já disse, se caracteriza por instalar uma série de paradoxos de difícil solução, como seja a do incremento pa-ralelo dos indivíduos, quer dizer, do princípio do prazer hedonista, e das regras sociais, ou seja, da necessidade de obedecer a normas cada vez mais estritas e controladas por via tecnológica – implicou uma reformulação global do mundo humano, e ainda hoje está em curso, não só devido ao processo de expansão mundial (globaliza-ção) da tecnologia ocidental, mas sobretudo devido às inúmeras re-modelações locais que esse processo despoleta (novas “localizações”, etc.). Por isso (como Latour) se afirma que não chegámos a ser “mo-dernos”, ou que a modernidade tardia (“pós-modernidade”) é ape-nas um momento de um processo de longo alcance.A arqueologia e a psicanálise de algum modo “nobilitaram”, trazen-do à visibilidade, muitas realidades que estavam recalcadas, reprimi-das, no saber e na prática (ou, melhor, que eram praticadas mas não tinham sido alvo de um processo de objectificação como saberes; sabemos mais uma vez, desde Foucault pelo menos, o carácter ambí-guo destas objectivações). Elas integram-se matricialmente (embora muitos praticantes digam que não) na lógica iluminista de tudo pre-sentificar, de tudo escavar, de tudo exumar.Ambas visam revelar, trazer à superfície, algo de “invisível” – na terra e no corpo, no ambiente e no ser humano. Algo que eventualmente poderia ser subversivo, isto é, produtor de novidade num sentido di-ferente da moral mais conservadora e da forma mais oportunista de desvalorização de bens tão importantes como o do meio ecológico e da felicidade dos indivíduos (“qualidade de vida”, como hoje se diz).Dez 2006/Fev. 2007

Vítor Oliveira JorgeDepartamento de Ciências e Técnicas do Património

da Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected]

Notas: (*) Não sendo o autor versado em psicanálise, muito agradece aos colegas os reparos

ou críticas que entendam fazer-lhe.

Os entretítulos são da responsabilidade do editor.

REFERÊNCIAS

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Lisboa, Relógio d’ Água.ADRIANO RANGEL

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A MORTE DE (JOSÉ) CRAVEIRINHA

Morreu Craveirinha. A maioria dos que com ele dividiram o sentimento dos ideais irrealizá-veis, que chamam a terra de ingrata pelo pão que não dá e se sustentam da beleza dos grandes espaços, talvez tenha sabido que um conterrâneo, o José, enfrentou o caminho temido que conduz à presença dos deuses. Parece que o José se antecipou ao destino da sua aldeia africa-na, tendo depositado as letras que esculpiu na berma da história, ignoradas, desmembradas, para dela conservar a réstia de esperança que em vida lhe manteve o sorriso. O sorriso que se abria com a arca oculta na imaginação para dela retirar a herança magra do pai, esse labirin-to de palavras de entre as quais surgiu o seu próprio nome sonhado há muito. Conforme se

alimentou dessas mesmas palavras também soube reparti-las em segredo pelos povos, num ritual em que não pôde saciar as crianças que tão pouco lhe pediam: as páginas de textos impressos sobre a dignidade sonegada. O luto reservou-se, breve como todos, para os que lhe descortinaram o olhar enquanto tentava dar forma à inspiração. Sobrevém a inquietação perante a possibilidade de que com a memória de Craveirinha venha também a morrer a identidade do José, e com eles os momentos que ambos legaram às gerações consoladas nas companhias privilegiadas pela própria natureza do seu nome. A inquietação da probabilidade de que lhe sigam o exemplo, de que abandonando a sua aldeia o rascunho de uma vida não seja suficiente para ilustrar o chão fértil reduzido a pó sobre as ossadas do império. A morte de Craveirinha sabe a mau presságio, como dia num crepúsculo sem regresso, como préstito fúnebre em que todos vão a jazer. À frente, vertendo prantos sinceros, as gerações que flores-cem sobre membros improvisados de pau, sem horizontes pelo olhar cerceado, com o medo espelhado na magreza dos corpos. À distância do seu estatuto, os que suportam as despesas das exéquias com o testemunho da vida exemplar do cadáver. Como se fosse possível o mi-lagre perante a realidade da morte. Ocultos, elevando orações de penitência, figuras sinistras cujo trajar despropositadamente vincado as denunciam, pago da cabeça aos pés pelos estilha-ços que povoam, num ensurdecedor cenário, a dor bem real daqueles a quem o José amou. E outros tantos, dedicados na tarefa de ensinar os nomes aos discípulos, de enxugar as lágrimas que têm por confidentes, de estancar o sangue das chagas e sarar feridas purulentas, de resga-tar as vítimas que os elementos inesperados desafiam, ao saberem da partida de Craveirinha prestam-lhe homenagem no quotidiano das suas missões. A poesia de Craveirinha irradiou do coração do José no palco belo que respira pobreza. Palco mal iluminado, de forma delibe-

AS TRAGÉDIAS OCULTAS

rada, para aliviar consciências, para manter na penumbra os actores viru-lentos que apenas dedicam a sua presença num outro palco. Dividem pre-ces pela redenção que não merecem nos intervalos de magras esmolas, sob a exaltação que lhes define a imagem propalada pelos detentores de poderes mediáticos. Quando se fizer história não haverá registos dos ín-timos desejos do José Craveirinha, talvez sobrevenha a condescendência pelas suas ousadias literárias e a fatalidade, como se de individualidade se trate, será a responsável oportuna pela negligência dos parentes afastados dos poetas africanos. A verdade relativa que permanece é a de que a nobi-litação de Craveirinha apaga a incapacidade para reconhecermos ao José

a dignidade de que não o podemos privar, a de que os interlocutores que gerem as vidas dessa aldeia distante, alheios às misérias dos que afirmam representar, foram talhados à medida da me-

diocridade que não admite a superioridade do pai emigrado do José, a de que já nem referência merecem, por parte dos arautos do lusitanismo, os que albergam no dia a dia resquícios de uma mesma e ancestral língua. A lusofonia não tem intérpretes, a selva não conhece actores; condoemo-nos com cidades destruídas e vazias, com as colheitas perdidas entre as raízes mais profundas e as bocas ávidas do pão; a dor é culpa alheia, culpa de uma cultura primitiva, a dor é menos intensa do que a nossa.

A MORTE DE (JONAS) SAVIMBI

Morreu Savimbi. O inimigo que morreu, ao longo das conversas e con-fidências que partilhou sob as estrelas que iluminam as noites da Jamba, era reconhecido pelos que também exprimem os valores da fidelidade como Jonas. Não raro, lhe terão ouvido palavras que, insistentes, apela-vam à violência como consequência do diálogo nunca reconhecido como possibilidade, à luz bem mais intensa de refúgios citadinos. Nesses ne-gros recantos de uma pátria dividida pela razão das armas, Savimbi não adivinhava o corpo inerte coberto de moscas como imagem primordial da paz desejada. Nem a sua morte serviu de benesse providencial, nem das estrelas caiu o pão sobre os refugiados de guerra em torrencial e pro-missora chuva que pudesse alimentar as fontes da paz. Nem os pachos

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de ouro negro sararam maleitas que o ódio recíproco sempre provoca. Savimbi saberia, destemido, que enfrentava exércitos sofisticados à custa de expressar, com a arma de uma sabedoria reconhecida com relutância, ideais que, sem serem letais, lhe conferiam o poder efémero, injustamen-te menosprezado. E Jonas morreu prisioneiro de um campo de batalha que tratava por tu, como ironia que reside na traição daqueles a quem amou. A distinção forjada que mereceu consiste na esperança de que à morte do Jonas sobrevive a capitulação dos soldados de Savimbi. Prenda inquinada dos protegidos de um clube anónimo, que joga e aposta na obediência aos interesses que relegam a vida destruída de um povo para o campo distante da ignorância. A padiola improvisada para o cadáver do inimigo não constitui encargo que prive os heróis da sua artesanal concepção da opulência em que vivem a sua vitória virtual. O Jonas teve honra de perseguição aturada, Savimbi devolveu, com o exemplo do es-tertor, a esperança no impossível. Como se tivesse em testamento aben-çoado os milhões de compatriotas que vivem o inferno bem terreno da doença, da mutilação, da privação dos entes queridos dizimados e enxo-tados nas veredas da vida para territórios estéreis e inóspitos. As moscas e o rejubilar pela morte de Savimbi, por parte de quem vive a ignorância do destino comum, terão sido a essência das condolências imperiosas e dos discursos com o estigma banalizado da demagogia. Jonas trazia con-sigo o brilho do olhar ao enxergar distantes paragens, palavras de difícil argumentação e umas botas que já não protegem os pés cansados de tão longa jornada. E reivindicou o brilho das pedras preciosas para todos, como reivindicou os demais tesouros em que a terra é pródiga. Savim-bi denunciou a verdade de um país, que podendo albergar com justiça todos os filhos, foi e é um país sem tecto que os proteja da expiação de crimes jamais cometidos. Mas Jonas Savimbi provou que, perante a in-justiça, o ódio brota sem esforço, em torrente contra a vaga que cobre os direitos elementares. O brilho do olhar adivinhava-se como herança dos meninos assustados, legado que se embrenha pela vida até se converter em expressão da determinação de adulto. Estrela cadente desintegrada na atmosfera densa dos conflitos, a luminosidade de criança transfigu-ra-se na tempestade de sentimentos com os raios impiedosos da revolta. Ainda hoje a borrasca preenche o vasto firmamento, único limite de mul-tidões entregues à inanição dos corpos e dos espíritos. E à distância do esquecimento vão sendo urdidos negócios e reflorestada a superioridade da cooperação, nos ermos campos a que os povos explorados não logram chegar, mitigando pedidos de perdão pelo passado de convivência. Os

oceanos são mais largos, divididas as cores dos astros e dos caminhos de afoitos marinheiros; nos campos minados sopram ventos de paz podre; soçobram os méritos dos pioneiros; ao sabor de óbitos providenciais pre-enchemos a agenda da informação.

AS TRAGÉDIAS OCULTAS

O tema da morte, da piedade despertada face ao anúncio público de epi-sódios que têm a marca individual ou colectiva das mortes anunciadas ou imprevistas, é um tema assíduo no quotidiano das páginas jornalísticas. Entre o acidente fortuito, a catástrofe humanitária e o epitáfio das figuras públicas, as fronteiras do impacto social que provocam não são tão níti-das quanto a forma incisiva que a veiculação destas constantes conhece. A morte do artista, do político, dos que se distinguiram na expressão social das suas actividades, tem efeitos de comiseração, impacto trágico na co-munidade, suscita o debate público no plano das relações comuns que não encontram paralelo na consciência dos cidadãos quando se trata de evocar um holocausto em permanente e latente actividade. A guerra é reconhe-cida como algo trágico, insensato, e em simultâneo como algo necessário ou inevitável. A violência das forças da natureza é espectáculo quando se manifesta. O óbito singular de um ídolo provoca o sentido luto. E com os ídolos mortos a história se encarrega de desvanecer os ideais que os iden-tificam ou consagrar a sua memória na luta persistente por esses mesmos ideais. Com a remoção dos estragos das catástrofes, com os corpos enter-rados ou a dúvida acerca do seu destino, sobeja a expressão da heroicidade da reconstrução da vida, da esperança em que a natureza seja benévola, da dor que os entes próximos possam viver, mas que é só deles. O significado próprio do fim da vida de personagens públicos merece a atenção mediá-tica em função do que a ocorrência possa suscitar. Morre o poeta louva-se a obra, morre o político, o militar, especula-se acerca da guerra e da paz. E como se não bastasse maltrata-se a notícia omitindo que com o poeta po-de estar a perecer a poesia ou que com o político a guerra ressuscita como aviltamento das suas intenções de paz. De acordo com estes tópicos se en-tendam os dois textos que abrem, em simbiose, as páginas que pretendem devolver à tragédia alguns dos lugares que ocupa no tempo presente.

Luís Miguel Brandão VendeirinhoEscritor

SUPLEMENTO março 2007 / VII

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VIII

São terríveis as imagens de Luanda sob as chuvas torrenciais que vimos nas notícias da semana passada.Parecia que um dilúvio fizera submergir o bairro do Cazengo. Gente de-sesperada tentava salvar os magros recursos das sanzalas.A trovoada e as grandes bátegas de água, encharcavam a pobre gente dos musseques, arrastando tudo numa impressionante voragem. E durante mais de uma semana as chuvas inundaram casas e as terras ficaram alagadas.Agora, os charcos pairam por todo o território e os detritos vindos dos esgotos desfeitos tornaram as águas pestilentas. Os mosquitos não tarda-ram quando o sol voltou, por isso está aí o perigo da malária e das desin-terias. É a morte que espreita sobre a cidade.Que medidas se podem adoptar para que, de um modo simples, se pos-sam prevenir futuras catástrofes deste tipo?Vamos explicitar, neste texto, algumas reflexões que apontam para pro-cessos capazes de contribuir para a melhoria de vida das populações, através de meios ecológicos e sustentáveis.A paisagem humanizada é um ecossistema natural que se interliga aos sistemas artificiais construídos pelo homem. Urbe e natureza constituem assim uma relação simbiótica originando o actual processo civilizacional em que vivemos. A sociosfera gerou um antagonismo com a biosfera devido ao aparecimento duma tecnosfera que esgota e contamina a na-tureza. Actualmente a biosfera tem um ritmo de regeneração inferior ao esgotamento e poluição gerados pela tecnosfera, baseada na energia fóssil e materiais não recicláveis.O metabolismo circular, específico dos processos ecossistémicos e biore-generativos, foi assim perturbado pelo metabolismo linear desta civiliza-ção esbanjadora e contaminante. Para retomar o metabolismo circular bioregenerativo dos ecossistemas naturais, será necessária uma mudança radical. Teremos de substituir as energias fósseis por energias renováveis e substituir a actual tecnosfera por uma ecotecnosfera reciclável e reutilizável.

Jardins filtrantes e a produção agro-ecológica

A água na paisagem do séc. XXI

A PRODUÇÃO AGRO-ECOLÓGICA PODE CRIAR UMA NOVA PAISAGEM ÚTIL E AGRADÁVEL

As lagunagens podem ser compósitas: micrófitas e macrófitas, podendo também povoar-se com peixes e patos, constituindo-se um ecossistema mais complexo, mais eficaz e também mais apra-zível. Assim procede-se à integração da produção agro-ecológi-ca com os jardins filtrantes, criando-se uma nova paisagem útil e agradável. Estes jardins filtrantes, quando utilizados para filtrar águas pluviais e domésticas, são locais de produção agro-ecológi-ca e permitem ainda a existência de um parque de recreio e lazer.Para uma melhor depuração das águas o solo desempenha um papel fundamental como factor de filtragem. O sistema depu-rador do solo pode organizar-se a nascente do processo biode-purativo da lagunagem.As águas usadas domésticas poderão, previamente, sofrer uma filtragem inicial através duma camada natural de argila. Essa camada natural de argila pode estar subterrada por um talude de terra na qual se plantaram choupos ou álamos. As raízes destas árvores são um sorvedouro dos nitratos que possam existir nas águas que escorrem ao longo do leito de argila, em declive, por onde a água vai sendo filtrada primeiro pelo solo de argila e depois pela fitodepuração e biodepuração.Podem também juntar-se aos choupos os salgueiros que, em-bora dotados de uma forte capacidade de evapotranspiração (consumindo bastante água), têm contudo uma grande capa-cidade de absorverem e consumirem azoto e fósforo que, even-tualmente, possam estar nas águas residuais e que são prejudi-ciais à saúde dos homens e dos animais.A estas macrófitas podem-se juntar muitas outras plantas úteis para a alimentação de animais assim como peixes, conforme

o uso das lagunagens e o grau de depuração conseguido nas bacias anteriores. Essas plantas úteis, para além das fragmitas comunis e dos ja-cintos de água, podem ser utilizadas na alimentação humana, como por exemplo ervilhas de água, agriões e alfaces de água, logo que se assegure uma boa filtragem tendo em vista a pota-bilização da água. Neste processo é importante estabelecer zo-nas nítidas de separação entre o processo agro-ecológico, em que podem coabitar animais, peixes e plantas e o processo em que se pretende tornar a água potável.Barreiras e cascatas, constituídas por pedras, argilas e plantas diversas, nomeadamente rizomas, são divisórias porosas do processo de lagunagem que permitem os meios eficazes para a obtenção de água cada vez mais potável.No percurso deste fluxo hídrico a água é assim filtrada e agi-tada de modo a ser cada vez mais oxigenada. Podem usar-se cascatas naturais entre os vários declives mas podem também ser usadas “flowforms” que, graças a um design especial, fazem circular a água. Essa água saltita sobre o relevo e os contornos artísticos dessas formas, especialmente concebidas para o efei-to revitalizador da água.

Jacinto RodriguesFaculdade de Arquitectura da Universidade do Porto

Assim, o metabolismo circular no paradigma ecológico deixará de ter lixos para ter nutrientes. Nutrientes orgânicos recicláveis no metabolismo rege-nerativo da biosfera e nutrientes técnicos, reutilizáveis na nova ecotécnica civilizacional baseada em materiais biodegradáveis e energias renováveis.É neste contexto global que teremos de encarar o ciclo da água.A produção agro-ecológica e os jardins filtrantes devem inserir-se numa nova visão da complexidade sistémica. Assim, as águas residuais que contêm fluxos de nutrientes, devem ficar sujeitas a processos de lagunagem para a reciclagem orgânica desses nu-trientes, permitindo a obtenção de águas reutilizáveis. Essas águas reuti-lizáveis podem mesmo vir a tornarem-se águas potáveis. Vamos descrever, duma forma sintética, o funcionamento dos processos de biofiltragem acoplados à produção agro-ecológica.É importante organizar bacias para este processo de biodepuração.Essas lagunagens, (funcionando de uma forma biodepurativa) podem permitir, graças a uma inclinação do terreno, um movimento da água por gravidade. Podem-se usar micrófitas (algas) para a filtragem da água.É sempre importante organizar 3 bacias, pois à decantação da primeira bacia, seguem-se outras formas mais eficazes de depuração.As macrófitas são usadas com eficácia para a filtragem da água (caniços, junquilhos, íris, etc.)Nestes casos procede-se a uma colheita dos vegetais, de tempos a tempos, para não haver uma infestação (a biomassa recolhida permite fertilizar a terra após feita uma compostagem).

/ SUPLEMENTO março 2007

[este suplemento é parte integrante do jornal a página da educação de março 2007 e não pode ser vendido separadamente]