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Revista História & Luta de Classes Nº 14 – Setembro de 2012 SUMÁRIO Editor: Gilberto Calil (Unioeste) Comissão Editorial: Carlos Zacarias de Sena Júnior (BA), Diorge Konrad (RS), Gilberto Calil (PR), Lúcio Flávio de Almeida (SP), Marcelo Badaró Mattos (RJ), Tiago Bernardon (PB), Vicente Ribeiro (SC), Virgínia Fontes (RJ) Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (UFF), Andrea Lemos Xavier Galucio (UFF) Angélica Lovatto (UNESP), Antonio Cláudio Rabello (UNIR), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Aruã Silva de Lima (UFAL), Beatriz Loner (UFPEL), Caio Graco Cobério (USP), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Cláudia Trindade (UFF) Cláudio Lopes Maia (UFG), Danilo Martuscelli (UFFS), David Maciel (UFG), David Rehem (UNIJORGE), Demian Melo (UFRJ), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho Maciel (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UFF), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Guinter Tlaija Leipnitz (UNIPAMPA), Hélio Rodrigues (IESB/CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), José Ernesto Moura Knust (UFF), Juliana Lessa Vieira (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Larissa Costard (UFF), Leandro Galastri (UNIFAL), Lorene Figueiredo (UFF), Lucas Patschiki (PR), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Marques Pestana (UFF), Marcos Smaniotto (UFGD), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Goulart da Silva (IFSC), Muniz Ferreira (UFBA), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP), Paulo Henrique Pachá (UFF), Paulo Villaça (UFF), Paulo Zarth (UFSC), Pedro Leão da Costa Neto (TUIUTI), Pedro Marinho (MAST), Rafael Caruccio (RS), Rafael Rossi (RJ), Renata Gonçalves (UNIFESP), Renato Della Vecchia (UCPEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo da Gama Rosa Costa (FFSD), Ricardo Teixeira (UFF), Rodrigo Jurucê Gonçalves (UEG), Rômulo Costa Mattos (PUCRJ), Selma Martins Duarte (UNIOESTE), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Sydenham Lourenço Neto (UERJ); Tarcísio Carvalho (Pedro II), Tiago Bernardon (UEPB), Valerio Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ). Próximos Números: História e Memória. Envio de contribuições até 30.09.2012.Crises e Insurreições. Envio de contribuições até 30.03.2013. Ditadura. Envio de contribuições até 30.08.2013. Distribuição: [email protected]. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagens da Capa: 1. Arado Romano (mosaico); 2. Campesinas Bolivianas (Foto: Fábio Frizzo); 3. Tumba de Senedjem (pintura); 4. Arado Medieval (iluminura). Edição: Gilberto Calil. Revisão: Gilberto Calil e Carla Luciana Silva. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45) 3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR. Foram impressos 1.000 exemplares em Setembro de 2012. APRESENTAÇÃO RESUMOS / ABSTRACTS DOSSIÊ SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS HISTÓRIA, ATUALIZAÇÃO DO PASSADO E ESTILHAÇOS MESSIÂNICOS DE UMA REVOLTA POPULAR NO III° MILÊNIO A.C. Fábio Frizzo UM PASSADO ROMANO PARA UM PRESENTE CAPITALISTA: A ECONOMIA ROMANA EM DOIS SÉCULOS DE HISTÓRIA ECONÔMICA José Ernesto Moura Knust CAPITALISMO ROMANO, MODERNISMO E MARXISMO. A PROPÓSITO DE ALGUMAS IDEIAS DE JAIRUS BANAJI SOBRE O TRABALHO ASSALARIADO Carlos García Mac Gaw PAGAR COM DINHEIRO, PAGAR COM SANGUE: RESOLUÇÃO DE CONFLITOS, MODO DE PRODUÇÃO GERMÂNICO E A EXPERIÊNCIA GERMÂNICA DO MUNDO NA SAGA DE NJAL Diego Labra DISPUTAS POR LA RENTA: LA OBTENCIÓN DE LA TERCIA EPISCOPAL EN EL OBISPADO DE ZAMORA, SIGLOS XI-XIII Carla Cimino O CONFLITO SOCIAL NO FEUDALISMO Carlos Astarita A ÍNDIA NA OBRA DE MARX E ENGELS: ENTRE A FILOSOFIA DA HISTÓRIA E A POLÍTICA Camila Massaro de Góes REPRESENTAÇÃO DOS OPRIMIDOS NAS SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS: O ESCRAVISMO COLONIAL Mário Maestri ARTIGOS A LUTA DOS TRABALHADORES NO TEMPO DE MARX Antonio Elias Sobrinho O DIRETÓRIO ESTADUAL DE ESTUDANTES NO RIO GRANDE DO SUL E SEU PAPEL DE APARELHO IDEOLÓGICO DO REGIME MILITAR Renato da Silva Della Vechia OLAVO DE CARVALHO, O MÍDIA SEM MÁSCARAS E O ANTICOMUNISMO CONTRA GRAMSCI (2002-2011) Lucas Patschiki RESENHAS O PENSAMENTO DE MARX E OS PERSONAGENS DA HISTÓRIA DO MARXISMO Kaio Goulart O CONTEMPORÂNEO EXOTISMO INDO-AMERICANO DE ÁLVARO GARCÍA LINERA Deni Ireneu Alfaro Rubbo “QUE MUNDO TÃO PARVO QUE PARA SER ESCRAVO É PRECISO ESTUDAR”: A PÓS-GRADUAÇÃO COMO ESTRATÉGIA PARA O DESEMPREGO Antonio de Pádua Bosi NORMAS PARA AUTORES ............................................................................................................................................................................................................5 ...............................................................................................................................................................................................7 ...............11 ..................................................................................................................................................................................................................18 ........................................................................................................................................................................................23 .................................................................................................................................28 ..........................34 ....................................................................................................................................................................40 ............................................................................45 ................................................51 ..........................................................................................................................................57 ..........................................................................................................................................................................................................................63 ...............................................68 .............................................................................................74 ....................................................................................76 ............................................................................................................................................................................................................79 ...........................................................................................................................................................................................82

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Revista História & Luta de Classes Nº 14 – Setembro de 2012

SUMÁRIO

Editor: Gilberto Calil (Unioeste)Comissão Editorial: Carlos Zacarias de Sena Júnior (BA), Diorge Konrad (RS), Gilberto Calil (PR), Lúcio Flávio de Almeida (SP), Marcelo Badaró Mattos (RJ), Tiago Bernardon (PB), Vicente Ribeiro (SC), Virgínia Fontes (RJ)Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (UFF), Andrea Lemos Xavier Galucio

(UFF) Angélica Lovatto (UNESP), Antonio Cláudio Rabello (UNIR), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Aruã Silva de Lima (UFAL), Beatriz Loner (UFPEL), Caio Graco Cobério (USP), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Cláudia Trindade (UFF) Cláudio Lopes Maia (UFG), Danilo Martuscelli (UFFS), David Maciel (UFG), David Rehem (UNIJORGE), Demian Melo (UFRJ), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho Maciel (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UFF), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Guinter Tlaija Leipnitz (UNIPAMPA), Hélio Rodrigues (IESB/CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), José Ernesto Moura Knust (UFF), Juliana Lessa Vieira (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Larissa Costard (UFF), Leandro Galastri (UNIFAL), Lorene Figueiredo (UFF), Lucas Patschiki (PR), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Marques Pestana (UFF), Marcos Smaniotto (UFGD), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Goulart da Silva (IFSC), Muniz Ferreira (UFBA), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP), Paulo Henrique Pachá (UFF), Paulo Villaça (UFF), Paulo Zarth (UFSC), Pedro Leão da Costa Neto (TUIUTI), Pedro Marinho (MAST), Rafael Caruccio (RS), Rafael Rossi (RJ), Renata Gonçalves (UNIFESP), Renato Della Vecchia (UCPEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo da Gama Rosa Costa (FFSD), Ricardo Teixeira (UFF), Rodrigo Jurucê Gonçalves (UEG), Rômulo Costa Mattos (PUCRJ), Selma Martins Duarte (UNIOESTE), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sônia Regina Mendonça (UFF), Sydenham Lourenço Neto (UERJ); Tarcísio Carvalho (Pedro II), Tiago Bernardon (UEPB), Valerio Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ).

Próximos Números: História e Memória. Envio de contribuições até 30.09.2012.Crises e Insurreições. Envio de contribuições até 30.03.2013. Ditadura. Envio de contribuições até 30.08.2013.

Distribuição: [email protected]. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagens da Capa: 1. Arado Romano (mosaico); 2. Campesinas Bolivianas (Foto: Fábio Frizzo); 3. Tumba de

Senedjem (pintura); 4. Arado Medieval (iluminura). Edição: Gilberto Calil. Revisão: Gilberto Calil e Carla Luciana Silva. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45) 3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR.

Foram impressos 1.000 exemplares em Setembro de 2012.

APRESENTAÇÃO

RESUMOS / ABSTRACTS

DOSSIÊ SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS

HISTÓRIA, ATUALIZAÇÃO DO PASSADO E ESTILHAÇOS MESSIÂNICOS DE UMA REVOLTA POPULAR NO III° MILÊNIO A.C.Fábio Frizzo

UM PASSADO ROMANO PARA UM PRESENTE CAPITALISTA: A ECONOMIA ROMANA EM DOIS SÉCULOS DE HISTÓRIA ECONÔMICAJosé Ernesto Moura Knust

CAPITALISMO ROMANO, MODERNISMO E MARXISMO. A PROPÓSITO DE ALGUMAS IDEIAS DE JAIRUS BANAJI SOBRE O TRABALHO ASSALARIADOCarlos García Mac Gaw

PAGAR COM DINHEIRO, PAGAR COM SANGUE: RESOLUÇÃO DE CONFLITOS, MODO DE PRODUÇÃO GERMÂNICO E A EXPERIÊNCIA GERMÂNICA DO MUNDO NA SAGA DE NJALDiego Labra

DISPUTAS POR LA RENTA: LA OBTENCIÓN DE LA TERCIA EPISCOPAL EN EL OBISPADO DE ZAMORA, SIGLOS XI-XIIICarla Cimino

O CONFLITO SOCIAL NO FEUDALISMOCarlos Astarita

A ÍNDIA NA OBRA DE MARX E ENGELS: ENTRE A FILOSOFIA DA HISTÓRIA E A POLÍTICACamila Massaro de Góes

REPRESENTAÇÃO DOS OPRIMIDOS NAS SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS: O ESCRAVISMO COLONIALMário Maestri

ARTIGOS

A LUTA DOS TRABALHADORES NO TEMPO DE MARXAntonio Elias Sobrinho

O DIRETÓRIO ESTADUAL DE ESTUDANTES NO RIO GRANDE DO SUL E SEU PAPEL DE APARELHO IDEOLÓGICO DO REGIME MILITARRenato da Silva Della Vechia

OLAVO DE CARVALHO, O MÍDIA SEM MÁSCARAS E O ANTICOMUNISMO CONTRA GRAMSCI (2002-2011)Lucas Patschiki

RESENHAS

O PENSAMENTO DE MARX E OS PERSONAGENS DA HISTÓRIA DO MARXISMOKaio Goulart

O CONTEMPORÂNEO EXOTISMO INDO-AMERICANO DE ÁLVARO GARCÍA LINERADeni Ireneu Alfaro Rubbo

“QUE MUNDO TÃO PARVO QUE PARA SER ESCRAVO É PRECISO ESTUDAR”: A PÓS-GRADUAÇÃO COMO ESTRATÉGIA PARA O DESEMPREGOAntonio de Pádua Bosi

NORMAS PARA AUTORES

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Apresentação

APRESENTAÇÃO

E

SÍTIO ELETRÔNICOwww.projetoham.com.br

Ÿ Versão integral: nº 1 a nº 7Ÿ Capa, Sumário e Apresentação: nº 8 a nº 14Ÿ Ficha de AssinaturaŸ Chamada de Artigos

Sociedades Pré-Capitalistas

- 5

m tempos de domínio social da barbárie neoliberal e hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, o campo dos estudos pré-capitalistas – em especial a História Antiga e Medieval – vêm constituindo-se em abrigo seguro à reprodução de um amplo leque de posições teóricas reacionárias que abarcam desde o positivismo factual mais rasteiro e ultrapassado às mais irracionalistas e pós-modernas concepções do social fragmentado e aprisionado nas malhas do discurso.

Não é incomum nos depararmos com defensores de uma perspectiva de abordagem que rejeita toda e qualquer tentativa de análise que imponha, a uma temporalidade mais ou menos remota, conceitos e categorias que não tomem por base as “concepções” elaboradas pelas “sociedades” do período em questão. O recurso, afirmam, a qualquer instrumental analítico forjado pelo corpo das ciências humanas contemporâneas resultaria em uma deformação, senão profanação, do passado. E assim, orgulhosos de sua erudição e refugiados num passado distante, antiquistas e medievalistas cumprem a assumida função de reproduzir no presente os mitos e visões de mundo hegemônicas criados por elites que jazem em alguma fatia de duração do passado!

A anatomia do homem é, todavia, como dizia Marx, uma chave para a anatomia do macaco. Esta 1

célebre assertiva, que serve de mote para o coletivo que organizou este dossiê , significa que a estruturação da sociedade capitalista, forma historicamente mais desenvolvida da produção, constitui ponto de partida e referência essencial para a compreensão de todas as formas históricas outras que a sua emergência, enfim e por fim, sepultou.

É, portanto, a partir das nossas batalhas pelo futuro que observamos o passado pré-capitalista, que nos interessa pelas lutas dos homens contra a opressão e pela liberdade de existência, expressões de que somos, em grande parte, manifestação. Muito menos do que um passado perdido no tempo, era remota, objeto de curiosidade de “antiquários”, o que as sociedades pré-capitalistas nos ajudam a desvelar é o que temos de mais específico, distintivo e marcante em nossa contemporaneidade, a sua historicidade.

Nesta coletânea que o leitor tem em mãos, alguns artigos evidenciam a máxima insofismável de que toda história – mesmo aquela que parece remeter-se aos primórdios das sociedades humanas, a sua “noite dos tempos”! – é feita a partir das demandas do presente. Assim, Fábio Frizzo toma as manifestações populares de 2011, na Praça Tahir, no Cairo, uma das mais vigorosas expressões da Primavera Árabe, como marco de inflexão “benjaminiano” da abordagem de uma revolta social ocorrida do período do Egito faraônico, no IIIº Milênio a. C. José Knust e Carlos Mac Gaw apresentam-nos um vigoroso exemplo de que toda história é feita de maneira retrospectiva, de forma que o contexto(s) histórico(s) do(s) presente(s) exerce(m) uma força inevitável sobre as construções do passado. O primeiro nos demonstra, com uma crítica contundente, como algumas vertentes da história econômica romana assumem uma perspectiva claramente apologética do presente capitalista em curso, tendência que pode, e deve, ser superada. O segundo, por seu turno, concentrando-se na crítica à leitura de Jairus Banaji de algumas passagens de O Capital, de Karl Marx, aborda a concepção de capitalismo romano vinculada às posições modernistas de análise da economia antiga.

Quatro outros artigos deste número abordam o tema dos conflitos e lutas de classe em contextos pré-capitalistas diversos, pondo em xeque as apropriações idealizadoras que insistem em fazer daquelas formações sociais ambientes idílicos nos quais imperaria uma suposta harmonia social. Diego Labra recorre às sagas islandesas para analisar, naquela sociedade do século VIII, as diversas vias e mecanismos de resolução dos conflitos. Carla Cimino aborda o problema da redistribuição da renda do dízimo no interior da

1Niep-Marx PréK (“Seção Pré-Capitalista” do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo), composto pelos seguintes organizadores deste volume: Álvaro Ferreira, Eduardo Daflon, Fábio Frizzo, Gabriel Melo, José Ernesto Knust, Mário Jorge Bastos, Paulo Henrique Pachá e Renato Silva.

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Apresentação

APRESENTAÇÃO

E

SÍTIO ELETRÔNICOwww.projetoham.com.br

Ÿ Versão integral: nº 1 a nº 7Ÿ Capa, Sumário e Apresentação: nº 8 a nº 14Ÿ Ficha de AssinaturaŸ Chamada de Artigos

Sociedades Pré-Capitalistas

- 5

m tempos de domínio social da barbárie neoliberal e hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, o campo dos estudos pré-capitalistas – em especial a História Antiga e Medieval – vêm constituindo-se em abrigo seguro à reprodução de um amplo leque de posições teóricas reacionárias que abarcam desde o positivismo factual mais rasteiro e ultrapassado às mais irracionalistas e pós-modernas concepções do social fragmentado e aprisionado nas malhas do discurso.

Não é incomum nos depararmos com defensores de uma perspectiva de abordagem que rejeita toda e qualquer tentativa de análise que imponha, a uma temporalidade mais ou menos remota, conceitos e categorias que não tomem por base as “concepções” elaboradas pelas “sociedades” do período em questão. O recurso, afirmam, a qualquer instrumental analítico forjado pelo corpo das ciências humanas contemporâneas resultaria em uma deformação, senão profanação, do passado. E assim, orgulhosos de sua erudição e refugiados num passado distante, antiquistas e medievalistas cumprem a assumida função de reproduzir no presente os mitos e visões de mundo hegemônicas criados por elites que jazem em alguma fatia de duração do passado!

A anatomia do homem é, todavia, como dizia Marx, uma chave para a anatomia do macaco. Esta 1

célebre assertiva, que serve de mote para o coletivo que organizou este dossiê , significa que a estruturação da sociedade capitalista, forma historicamente mais desenvolvida da produção, constitui ponto de partida e referência essencial para a compreensão de todas as formas históricas outras que a sua emergência, enfim e por fim, sepultou.

É, portanto, a partir das nossas batalhas pelo futuro que observamos o passado pré-capitalista, que nos interessa pelas lutas dos homens contra a opressão e pela liberdade de existência, expressões de que somos, em grande parte, manifestação. Muito menos do que um passado perdido no tempo, era remota, objeto de curiosidade de “antiquários”, o que as sociedades pré-capitalistas nos ajudam a desvelar é o que temos de mais específico, distintivo e marcante em nossa contemporaneidade, a sua historicidade.

Nesta coletânea que o leitor tem em mãos, alguns artigos evidenciam a máxima insofismável de que toda história – mesmo aquela que parece remeter-se aos primórdios das sociedades humanas, a sua “noite dos tempos”! – é feita a partir das demandas do presente. Assim, Fábio Frizzo toma as manifestações populares de 2011, na Praça Tahir, no Cairo, uma das mais vigorosas expressões da Primavera Árabe, como marco de inflexão “benjaminiano” da abordagem de uma revolta social ocorrida do período do Egito faraônico, no IIIº Milênio a. C. José Knust e Carlos Mac Gaw apresentam-nos um vigoroso exemplo de que toda história é feita de maneira retrospectiva, de forma que o contexto(s) histórico(s) do(s) presente(s) exerce(m) uma força inevitável sobre as construções do passado. O primeiro nos demonstra, com uma crítica contundente, como algumas vertentes da história econômica romana assumem uma perspectiva claramente apologética do presente capitalista em curso, tendência que pode, e deve, ser superada. O segundo, por seu turno, concentrando-se na crítica à leitura de Jairus Banaji de algumas passagens de O Capital, de Karl Marx, aborda a concepção de capitalismo romano vinculada às posições modernistas de análise da economia antiga.

Quatro outros artigos deste número abordam o tema dos conflitos e lutas de classe em contextos pré-capitalistas diversos, pondo em xeque as apropriações idealizadoras que insistem em fazer daquelas formações sociais ambientes idílicos nos quais imperaria uma suposta harmonia social. Diego Labra recorre às sagas islandesas para analisar, naquela sociedade do século VIII, as diversas vias e mecanismos de resolução dos conflitos. Carla Cimino aborda o problema da redistribuição da renda do dízimo no interior da

1Niep-Marx PréK (“Seção Pré-Capitalista” do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo), composto pelos seguintes organizadores deste volume: Álvaro Ferreira, Eduardo Daflon, Fábio Frizzo, Gabriel Melo, José Ernesto Knust, Mário Jorge Bastos, Paulo Henrique Pachá e Renato Silva.

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Resumos

- 7Resumos e Abstracts6 - Apresentação

Fábio FrizzoMário Jorge Bastos

Coordenadores do DossiêGilberto CalilEditor

classe feudal após a formação do episcopado na cidade espanhola de Zamora, entre os séculos XI e XIII, elemento-chave das estratégias de reprodução da aristocracia. Carlos Astarita, por sua vez, propõe-se a desenvolver uma compreensão global da dinâmica do modo de produção feudal e das lutas sociais ocorridas na Europa ocidental do medievo, tendo por base as suas pesquisas sobre os movimentos burgueses do século XII. Já Camila de Góes aborda as visões marx-engelsianas do colonialismo europeu na Índia expressas em uma série de artigos publicados no New York Tribune, entre os anos de 1853 e 1859, relacionando-as à questão da possível identificação de uma filosofia da história intrínseca ao tratamento que Marx e Engels dão à questão nacional indiana. Encerrando o dossiê, Mário Maestri, em seu artigo, discute o problema geral da construção das justificativas dominantes da exploração nas sociedades pré-capitalistas – em que era tênue a comunidade simbólica entre explorados e exploradores – dedicando-se, em especial, à sociedade escravista colonial.

Para além do dossiê, três outros artigos e três resenhas completam a edição. Antonio Elias Sobrinho discute A luta dos trabalhadores no tempo de Marx, colocando em evidência elementos históricos que são fundamentais para a compreender o contexto da produção da teoria marxiana. Os dois últimos artigos discutem a articulação e organização da direita, em diferentes contextos. Renato Della Vechia, em O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de Aparelho Ideológico do Regime Militar, recupera a história de uma entidade estudantil constituída no contexto da ditadura no Rio Grande do Sul, como instrumento ideológico de controle político da juventude. Lucas Patschiki, em Olavo de Carvalho, o

Mídia Sem Máscara e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011), reflete sobre a disseminação de uma modalidade

particular de anticomunismo difundida pelo grupo organizado em torno do sítio eletrônico Mídia Sem Máscaras e cujo elemento central é crítica ao “gramscismo”, apontado como estratégia seguida pela esquerda para atingir o poder. A primeira resenha, de Kaio Goulart discute a importância do mais recente livro de Leandro Konder, Em torno de Marx. Deni Rubbo reflete sobre A potência plebeia, de Álvaro Garcia Linea, obra importante para a compreensão das perspectivas, limites e contradições do processo boliviano, escrita por um de seus dirigentes. Por sua vez, Antonio Bosi resenha a obra de Valéria Matos, Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho, que reflete sobre as decorrencias do capitalismo flexível para os jovens trabalhadores qualificados e suas implicações para a pós-graduação.

O lançamento desta edição coincide com a notícia do falecimento de Carlos Nelson Coutinho. Carlos Nelson ou simplismente Carlito, como era conhecido entre os seus amigos foi um incansável intelectual e um dos maiores divulgadores do marxismo e da obra de Gramsci e Lukács entre os brasileiros. Autor de uma das mais ricas, polêmicas e criativas obras produzidas no interior do pensamento marxista brasileiro, Carlos Nélson foi um pesquisador generoso, além de um debatedor franco e firme polemista. Coerente do princípio ao fim em sua militância comunista, Carlos Nélson foi sempre um homem de partido, tendo militado no PCB, onde foi parte do grupo dos jovens renovadores, saíndo depois para ingressar no PT, terminando seus dias nas fileiras do PSOL. O desaparecimento de Carlos Nélson Coutinho coloca para todos nós marxistas o desafio de seguir fomentando o debate, sempre propondo caminhos e perspectivas de discussão teórica e intervenção prática na realidade. A Comissão Editorial de História & Luta de Classes sente-se convidada a prosseguir estimulando as reflexões sobre o marxismo, inclusive o marxismo de Carlos Nélson Coutinho a quem este número é dedicado.

Setembro de 2012

Fábio Frizzo. História, Atualização do Passado e Estilhaços Messiânicos de uma Revolta Popular no III° Milênio a.C.. No contexto das revoltas de 2011, nomeadas genericamente como Primavera Árabe, o povo egípcio tornou-se protagonista de ações populares que chamaram a atenção do mundo para a Praça Tahir, no Cairo. Este movimento reavivou a memória da única revolta social bem documentada do período faraônico, ocorrida no IIIº Milênio a.C., e conhecida a partir de um texto chamado “Admoestações de Ipu-Ur”. O objetivo deste artigo é construir, a partir da obra de Walter Benjamin, uma ligação entre esses dois levantes sociais, partindo de uma crítica da historiografia e de um determinado conceito de progresso identificado ao avanço técnico e tecnológico. Palavras-chave: Walter Benjamin; Ipu-Ur; Revolta Social

José Ernesto Moura Knust. Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica. Este artigo pretende fazer uma discussão crítica sobre a relação entre determinadas posturas historiográficas presentes no estudo sobre a História Econômica da Roma Antiga e o contexto histórico no qual elas foram produzidas. Toda História é feita de maneira retrospectiva e, desta maneira, o contexto histórico do presente exerça uma força inevitável sobre as construções do passado que realizamos. Algumas das construções historiográficas sobre a História Econômica Romana tem um caráter extremamente apologético ao presente capitalista do qual elas partem, e é a crítica a essas posturas que este artigo desenvolve. Por fim, alguns apontamentos metodológicos são feitos para sugerir caminhos para uma História Econômica que, sem negar o caráter retrospectivo da História, não caia na mera apologia do presente. Palavras-chave: Economia Antiga; História Econômica; Usos da História.

Carlos García Mac Gaw. Capitalismo romano, modernismo e marxismo. A propósito de algumas ideias de Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado. Este artigo discute algumas ideias expressas por Jairus Banaji em uma recente publicação. Irei focar, em especial, nas críticas do autor a alguns fragmentos de O Capital de K. Marx sobre o trabalho assalariado, e na ideia de Capitalismo na Roma Antiga. Também discuto as pretensões da posição modernista na análise econômica. Palavras-chave: Trabalho assalariado; Roma Antiga; Capitalismo.

Diego Labra. Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal. Recorrendo à Saga de Njal, especialmente ao episódio que se refere ao conflito entre Hallgerd y Bergthora, como um meio de acesso ao mundo social da Islândia do século VIII, este artigo propõe-se a estabelecer relações entre as diferentes vias de resolução de conflito, a forma como são representadas na narrativa, e as determinações estruturais de que são, ao mesmo tempo, produto e reflexo. Palavras-chave: Associação; Resolução de Conflito; Propriedade.

Carla Cimino. Disputas por la renta: La obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII. Este artigo aborda o problema da redistribuição da renda do dízimo no interir da classe feudal após a formação do episcopado. Escolhemos o caso de Zamora, que dispõe de documentação das tensões envolvidas nesse processo. Analisamos o conflito entre os bispos e outros setores sociais, a fim de demonstrar que as relações de poder determinaram a via de entrada do episcopado nos recursos paroquiais. Palavras-chave: Conflitos; Dízimo; Episcopado.

Carlos Astarita. O conflito social no Feudalismo. O artigo aborda as lutas sociais que se desenvolveram na Europa ocidental no período medieval, tendo por base as pesquisas do autor sobre os movimentos burgueses do século XII. Trata-se, essencialmente, de propor uma compreensão global do fenômeno em questão e, na extensão, de caracterizar a própria dinâmica do modo de produção feudal. Palavras-chave: Idade Média; Modo de Produção Feudal; Conflitos Sociais.

Camila Massaro de Góes. A Índia na obra de Marx e Engels: entre a filosofia da história e a política. Esse artigo busca um entendimento acerca das visões de Marx e Engels sobre o mundo não-europeu, destacando a questão colonial indiana, na medida em que possui relevância tanto teórica quanto prática, pois coloca um desafio para o entendimento do marxismo como uma filosofia da história, ao mesmo tempo em que confronta um problema propriamente político e estratégico. As visões marx-engelsianas sobre o colonialismo europeu na Índia foram expressas em uma série de artigos no New York Tribune entre os anos de 1853 e 1859. O presente artigo, assentado nesses escritos, se desenvolverá em torno da seguinte questão – é possível identificar uma filosofia da história no tratamento que Marx e Engels dão à questão nacional na Índia? Palavras-chave: Índia; questão colonial; marxismo.

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Resumos

- 7Resumos e Abstracts6 - Apresentação

Fábio FrizzoMário Jorge Bastos

Coordenadores do DossiêGilberto CalilEditor

classe feudal após a formação do episcopado na cidade espanhola de Zamora, entre os séculos XI e XIII, elemento-chave das estratégias de reprodução da aristocracia. Carlos Astarita, por sua vez, propõe-se a desenvolver uma compreensão global da dinâmica do modo de produção feudal e das lutas sociais ocorridas na Europa ocidental do medievo, tendo por base as suas pesquisas sobre os movimentos burgueses do século XII. Já Camila de Góes aborda as visões marx-engelsianas do colonialismo europeu na Índia expressas em uma série de artigos publicados no New York Tribune, entre os anos de 1853 e 1859, relacionando-as à questão da possível identificação de uma filosofia da história intrínseca ao tratamento que Marx e Engels dão à questão nacional indiana. Encerrando o dossiê, Mário Maestri, em seu artigo, discute o problema geral da construção das justificativas dominantes da exploração nas sociedades pré-capitalistas – em que era tênue a comunidade simbólica entre explorados e exploradores – dedicando-se, em especial, à sociedade escravista colonial.

Para além do dossiê, três outros artigos e três resenhas completam a edição. Antonio Elias Sobrinho discute A luta dos trabalhadores no tempo de Marx, colocando em evidência elementos históricos que são fundamentais para a compreender o contexto da produção da teoria marxiana. Os dois últimos artigos discutem a articulação e organização da direita, em diferentes contextos. Renato Della Vechia, em O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de Aparelho Ideológico do Regime Militar, recupera a história de uma entidade estudantil constituída no contexto da ditadura no Rio Grande do Sul, como instrumento ideológico de controle político da juventude. Lucas Patschiki, em Olavo de Carvalho, o

Mídia Sem Máscara e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011), reflete sobre a disseminação de uma modalidade

particular de anticomunismo difundida pelo grupo organizado em torno do sítio eletrônico Mídia Sem Máscaras e cujo elemento central é crítica ao “gramscismo”, apontado como estratégia seguida pela esquerda para atingir o poder. A primeira resenha, de Kaio Goulart discute a importância do mais recente livro de Leandro Konder, Em torno de Marx. Deni Rubbo reflete sobre A potência plebeia, de Álvaro Garcia Linea, obra importante para a compreensão das perspectivas, limites e contradições do processo boliviano, escrita por um de seus dirigentes. Por sua vez, Antonio Bosi resenha a obra de Valéria Matos, Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho, que reflete sobre as decorrencias do capitalismo flexível para os jovens trabalhadores qualificados e suas implicações para a pós-graduação.

O lançamento desta edição coincide com a notícia do falecimento de Carlos Nelson Coutinho. Carlos Nelson ou simplismente Carlito, como era conhecido entre os seus amigos foi um incansável intelectual e um dos maiores divulgadores do marxismo e da obra de Gramsci e Lukács entre os brasileiros. Autor de uma das mais ricas, polêmicas e criativas obras produzidas no interior do pensamento marxista brasileiro, Carlos Nélson foi um pesquisador generoso, além de um debatedor franco e firme polemista. Coerente do princípio ao fim em sua militância comunista, Carlos Nélson foi sempre um homem de partido, tendo militado no PCB, onde foi parte do grupo dos jovens renovadores, saíndo depois para ingressar no PT, terminando seus dias nas fileiras do PSOL. O desaparecimento de Carlos Nélson Coutinho coloca para todos nós marxistas o desafio de seguir fomentando o debate, sempre propondo caminhos e perspectivas de discussão teórica e intervenção prática na realidade. A Comissão Editorial de História & Luta de Classes sente-se convidada a prosseguir estimulando as reflexões sobre o marxismo, inclusive o marxismo de Carlos Nélson Coutinho a quem este número é dedicado.

Setembro de 2012

Fábio Frizzo. História, Atualização do Passado e Estilhaços Messiânicos de uma Revolta Popular no III° Milênio a.C.. No contexto das revoltas de 2011, nomeadas genericamente como Primavera Árabe, o povo egípcio tornou-se protagonista de ações populares que chamaram a atenção do mundo para a Praça Tahir, no Cairo. Este movimento reavivou a memória da única revolta social bem documentada do período faraônico, ocorrida no IIIº Milênio a.C., e conhecida a partir de um texto chamado “Admoestações de Ipu-Ur”. O objetivo deste artigo é construir, a partir da obra de Walter Benjamin, uma ligação entre esses dois levantes sociais, partindo de uma crítica da historiografia e de um determinado conceito de progresso identificado ao avanço técnico e tecnológico. Palavras-chave: Walter Benjamin; Ipu-Ur; Revolta Social

José Ernesto Moura Knust. Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica. Este artigo pretende fazer uma discussão crítica sobre a relação entre determinadas posturas historiográficas presentes no estudo sobre a História Econômica da Roma Antiga e o contexto histórico no qual elas foram produzidas. Toda História é feita de maneira retrospectiva e, desta maneira, o contexto histórico do presente exerça uma força inevitável sobre as construções do passado que realizamos. Algumas das construções historiográficas sobre a História Econômica Romana tem um caráter extremamente apologético ao presente capitalista do qual elas partem, e é a crítica a essas posturas que este artigo desenvolve. Por fim, alguns apontamentos metodológicos são feitos para sugerir caminhos para uma História Econômica que, sem negar o caráter retrospectivo da História, não caia na mera apologia do presente. Palavras-chave: Economia Antiga; História Econômica; Usos da História.

Carlos García Mac Gaw. Capitalismo romano, modernismo e marxismo. A propósito de algumas ideias de Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado. Este artigo discute algumas ideias expressas por Jairus Banaji em uma recente publicação. Irei focar, em especial, nas críticas do autor a alguns fragmentos de O Capital de K. Marx sobre o trabalho assalariado, e na ideia de Capitalismo na Roma Antiga. Também discuto as pretensões da posição modernista na análise econômica. Palavras-chave: Trabalho assalariado; Roma Antiga; Capitalismo.

Diego Labra. Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal. Recorrendo à Saga de Njal, especialmente ao episódio que se refere ao conflito entre Hallgerd y Bergthora, como um meio de acesso ao mundo social da Islândia do século VIII, este artigo propõe-se a estabelecer relações entre as diferentes vias de resolução de conflito, a forma como são representadas na narrativa, e as determinações estruturais de que são, ao mesmo tempo, produto e reflexo. Palavras-chave: Associação; Resolução de Conflito; Propriedade.

Carla Cimino. Disputas por la renta: La obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII. Este artigo aborda o problema da redistribuição da renda do dízimo no interir da classe feudal após a formação do episcopado. Escolhemos o caso de Zamora, que dispõe de documentação das tensões envolvidas nesse processo. Analisamos o conflito entre os bispos e outros setores sociais, a fim de demonstrar que as relações de poder determinaram a via de entrada do episcopado nos recursos paroquiais. Palavras-chave: Conflitos; Dízimo; Episcopado.

Carlos Astarita. O conflito social no Feudalismo. O artigo aborda as lutas sociais que se desenvolveram na Europa ocidental no período medieval, tendo por base as pesquisas do autor sobre os movimentos burgueses do século XII. Trata-se, essencialmente, de propor uma compreensão global do fenômeno em questão e, na extensão, de caracterizar a própria dinâmica do modo de produção feudal. Palavras-chave: Idade Média; Modo de Produção Feudal; Conflitos Sociais.

Camila Massaro de Góes. A Índia na obra de Marx e Engels: entre a filosofia da história e a política. Esse artigo busca um entendimento acerca das visões de Marx e Engels sobre o mundo não-europeu, destacando a questão colonial indiana, na medida em que possui relevância tanto teórica quanto prática, pois coloca um desafio para o entendimento do marxismo como uma filosofia da história, ao mesmo tempo em que confronta um problema propriamente político e estratégico. As visões marx-engelsianas sobre o colonialismo europeu na Índia foram expressas em uma série de artigos no New York Tribune entre os anos de 1853 e 1859. O presente artigo, assentado nesses escritos, se desenvolverá em torno da seguinte questão – é possível identificar uma filosofia da história no tratamento que Marx e Engels dão à questão nacional na Índia? Palavras-chave: Índia; questão colonial; marxismo.

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Abstracts

8 - Resumos e Abstracts - 9Resumos e Abstracts

Mário Maestri. Representação dos Oprimidos nas Sociedades Pré-Capitalistas: O Escravismo Colonial. O artigo discute a construção das justificativas dominantes da exploração. Um processo historicamente determinado e condicionado nas sociedades pré-capitalistas, em geral, e escravista colonial, em especial, quando era tênue a comunidade simbólica entre explorados e exploradores. Destaca o esforço dos escravistas para soterrar as narrativas que impugnaram suas apologias, acirrando a dificuldade de conhecimento das representações dos oprimidos. Destaca o dialogismo das apologias do escravismo, meio de reconstituição das visões de mundo dos subalternizados. Palavras-chave: Sociedades pré-capitalistas; Ideologia e luta de classe; Escravidão e resistência.

Antonio Elias Sobrinho. A Luta dos Trabalhadores no Tempo de Marx. Apresenta-se, neste artigo, uma análise das lutas dos trabalhadores no século XIX, tendo como referência maior a Inglaterra. Para isso foram utilizados apenas alguns textos de Karl Marx, que, segundo nosso ponto de vista, foi um dos primeiros e principais teóricos a levantar e discutir essa questão, tirando dela as conseqüências adequadas, não só para a sua compreensão e aprofundamento, mas principalmente apresentando uma alternativa de transformação radical para estes conflitos; alternativa esta que até hoje apresenta-se, para o conjunto das sociedades, como algo consistente e promissor. Palavras-chave: Trabalho; Revolução; Marx.

Renato da Silva Della Vechia. O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de Aparelho Ideológico do Regime Militar. O presente artigo busca analisar uma especificidade do movimento estudantil universitário gaúcho durante o período militar que foi a existência, (mesmo que não reconhecida por lei), de uma entidade denominada de Diretório Estadual de Estudantes. O DEE cumpriu um papel de desarticulador de lutas estudantis e serviu como instrumento ideológico de controle político da juventude, transformando os Diretórios Centrais de Estudantes em espaços assistenciais e proporcionando cursos de formação visando a legitimação do regime vigente. Palavras-Cheve: Movimento Estudantil; Ideologias Estudantis; DEE.

Lucas Patschiki. Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscara e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011). Neste artigo discutiremos o “anticomunismo contra Gramsci”, elaboração disseminada pelo grupo formado em torno do website Mídia Sem Máscara, cujo principal articulador é o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho. Após apresentarmos o MSM, abordaremos as funções sociais do anticomunismo, e em seguida o “gramscismo”, variação específica formulada por estes intelectuais, que funciona como fio condutor de toda a sua ação política, assinalando seu posicionamento estratégico sob a forma da guerra de posições. Palavras chave: Anticomunismo; Mídia Sem Máscara; Olavo de Carvalho.

Fábio Frizzo. History, Actualization of the Past and Messianic Splinters of a Popular Uprising in the III Millennium B.C. In "Arab Spring" of 2011, the Egyptian people became protagonist of popular uprisings that attracted the world's attention to the Tahrir Square in Cairo. This movement revived the memory of the only well-documented social revolt of the Pharaonic period, which occurred in IIIth Millennium BC, and known from a text called "Admonitions of Ipu-Ur." The aim of this paper is to construct, from the work of Walter Benjamin, a link between these two social upheavals starting from a critique of both the historiography and a certain concept of progress identified with the technical and technological advancement. Keywords: Walter Benjamin - Ipw-Wr - Social Uprising

José Ernesto Moura Knust. A Roman past to a Capitalist present: The Roman economy in two centuries of Economic History. Abstract: This article aims a critical discussion of the relationship between certain views in the historiography on the Ancient Rome Economy and the historical context in which they were produced. All History is written retrospectively and the historical context has an inevitable force over our constructions of the past. Some of the historiographical constructions on Roman economic history are extremely apologetic to their capitalist present, and it is the criticism of these positions that this article develops. Finally, some methodological notes are meant to suggest ways for economic history that, without denying the retrospective nature of history, do not fall into the mere apology of the present. Keywords: Ancient Economy; Economic History; Uses of History.

Carlos García Mac Gaw. Roman capitalism, Marxism and Modernism. On some ideas of Jairus Banaji about wage labor. This article discusses some ideas expressed by Jairus Banaji in a recent publication. I will focus especially on criticism of the author on some fragments of Capital of K. Marx on wage labour, and on the idea of capitalism in the Ancient Rome. I also discuss the claims of the modernist position in the economic analysis. Keywords: Wage labour; Ancient Rome ; Capitalism.

Diego Labra. To pay with money, to pay with blood: conflict resolution, Germanic mode of production and the Germanic experience of the world in Njal's Saga. Using Njal´s Saga, and specially the episode that refers to the conflict that involves Hallgerd and Bergthora, as a mean through which enter the social world of eleventh century Iceland, this article is an intent to establish a relation between the different ways of resolution of feuds, the manner that they are represented in the narrative, and the structural determinations of which they are both product and reflection. Keywords: Association;-Conflict Resolution; Propriety

Carla Cimino. Struggles for Rent: Obtaining the tertia episcopal in the diocese of Zamora, XI-XIII centuries. This paper addresses the problem of income redistribution within the feudal class after the formation of the diocese. The disputes over tithes generated huge tensions and they are very well documented for Zamora. We analyze the conflict between the bishops and other social sectors in order to demonstrate that the balance of power between them determined the means of penetration of the episcopate in the parish resources. Keywords: Conflicts - Tithe – Episcopacy.

Carlos Astarita. Social conflict in Feudalism. This paper addresses the social struggles that took place in Western Europe throughout the Middle Ages, based on author's research on the bourgeois' struggles in the 12th Century. The article aims to bring to light a holistic comprehension of the presented phenomenon, thus characterizing the dynamics of the feudal mode of production. Keywords: Middle Ages; Feudal Mode of Production; Social Struggles.

Camila Massaro de Góes. India in Marx's and Engel's work: between philosophy of history and politics. This article has as its main objective an understanding of the Marx and Engels's views on the non-European world, highlighting the Indian colonial question, as it has both theoretical and practical relevance, once it is a challenge to our understanding of Marxism as a philosophy of history, while it confronts an issue specifically political and strategic. The Marx and Engel's views on European colonialism in India were expressed in a series of articles in the New York Tribune between the years 1853 and 1859. This article, seated in these writings, will be developed around the following question - is it possible to identify a philosophy of history on Marx and Engels's treatment about the national question in India? Keywords: India; colonial issue; Marxism.

Mário Maestri. Representation of the Oppressed in Pre-Capitalist Societies: The Colonial Slavery. This paper discusses the construction of dominant justifications of exploitation. That process was historically determined and conditioned in pre-capitalist societies, and more especially during the colonial slavery, when the symbolic community between exploited and exploiters was very tenuous. The present paper highlights the slaveholders' efforts to

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Abstracts

8 - Resumos e Abstracts - 9Resumos e Abstracts

Mário Maestri. Representação dos Oprimidos nas Sociedades Pré-Capitalistas: O Escravismo Colonial. O artigo discute a construção das justificativas dominantes da exploração. Um processo historicamente determinado e condicionado nas sociedades pré-capitalistas, em geral, e escravista colonial, em especial, quando era tênue a comunidade simbólica entre explorados e exploradores. Destaca o esforço dos escravistas para soterrar as narrativas que impugnaram suas apologias, acirrando a dificuldade de conhecimento das representações dos oprimidos. Destaca o dialogismo das apologias do escravismo, meio de reconstituição das visões de mundo dos subalternizados. Palavras-chave: Sociedades pré-capitalistas; Ideologia e luta de classe; Escravidão e resistência.

Antonio Elias Sobrinho. A Luta dos Trabalhadores no Tempo de Marx. Apresenta-se, neste artigo, uma análise das lutas dos trabalhadores no século XIX, tendo como referência maior a Inglaterra. Para isso foram utilizados apenas alguns textos de Karl Marx, que, segundo nosso ponto de vista, foi um dos primeiros e principais teóricos a levantar e discutir essa questão, tirando dela as conseqüências adequadas, não só para a sua compreensão e aprofundamento, mas principalmente apresentando uma alternativa de transformação radical para estes conflitos; alternativa esta que até hoje apresenta-se, para o conjunto das sociedades, como algo consistente e promissor. Palavras-chave: Trabalho; Revolução; Marx.

Renato da Silva Della Vechia. O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de Aparelho Ideológico do Regime Militar. O presente artigo busca analisar uma especificidade do movimento estudantil universitário gaúcho durante o período militar que foi a existência, (mesmo que não reconhecida por lei), de uma entidade denominada de Diretório Estadual de Estudantes. O DEE cumpriu um papel de desarticulador de lutas estudantis e serviu como instrumento ideológico de controle político da juventude, transformando os Diretórios Centrais de Estudantes em espaços assistenciais e proporcionando cursos de formação visando a legitimação do regime vigente. Palavras-Cheve: Movimento Estudantil; Ideologias Estudantis; DEE.

Lucas Patschiki. Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscara e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011). Neste artigo discutiremos o “anticomunismo contra Gramsci”, elaboração disseminada pelo grupo formado em torno do website Mídia Sem Máscara, cujo principal articulador é o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho. Após apresentarmos o MSM, abordaremos as funções sociais do anticomunismo, e em seguida o “gramscismo”, variação específica formulada por estes intelectuais, que funciona como fio condutor de toda a sua ação política, assinalando seu posicionamento estratégico sob a forma da guerra de posições. Palavras chave: Anticomunismo; Mídia Sem Máscara; Olavo de Carvalho.

Fábio Frizzo. History, Actualization of the Past and Messianic Splinters of a Popular Uprising in the III Millennium B.C. In "Arab Spring" of 2011, the Egyptian people became protagonist of popular uprisings that attracted the world's attention to the Tahrir Square in Cairo. This movement revived the memory of the only well-documented social revolt of the Pharaonic period, which occurred in IIIth Millennium BC, and known from a text called "Admonitions of Ipu-Ur." The aim of this paper is to construct, from the work of Walter Benjamin, a link between these two social upheavals starting from a critique of both the historiography and a certain concept of progress identified with the technical and technological advancement. Keywords: Walter Benjamin - Ipw-Wr - Social Uprising

José Ernesto Moura Knust. A Roman past to a Capitalist present: The Roman economy in two centuries of Economic History. Abstract: This article aims a critical discussion of the relationship between certain views in the historiography on the Ancient Rome Economy and the historical context in which they were produced. All History is written retrospectively and the historical context has an inevitable force over our constructions of the past. Some of the historiographical constructions on Roman economic history are extremely apologetic to their capitalist present, and it is the criticism of these positions that this article develops. Finally, some methodological notes are meant to suggest ways for economic history that, without denying the retrospective nature of history, do not fall into the mere apology of the present. Keywords: Ancient Economy; Economic History; Uses of History.

Carlos García Mac Gaw. Roman capitalism, Marxism and Modernism. On some ideas of Jairus Banaji about wage labor. This article discusses some ideas expressed by Jairus Banaji in a recent publication. I will focus especially on criticism of the author on some fragments of Capital of K. Marx on wage labour, and on the idea of capitalism in the Ancient Rome. I also discuss the claims of the modernist position in the economic analysis. Keywords: Wage labour; Ancient Rome ; Capitalism.

Diego Labra. To pay with money, to pay with blood: conflict resolution, Germanic mode of production and the Germanic experience of the world in Njal's Saga. Using Njal´s Saga, and specially the episode that refers to the conflict that involves Hallgerd and Bergthora, as a mean through which enter the social world of eleventh century Iceland, this article is an intent to establish a relation between the different ways of resolution of feuds, the manner that they are represented in the narrative, and the structural determinations of which they are both product and reflection. Keywords: Association;-Conflict Resolution; Propriety

Carla Cimino. Struggles for Rent: Obtaining the tertia episcopal in the diocese of Zamora, XI-XIII centuries. This paper addresses the problem of income redistribution within the feudal class after the formation of the diocese. The disputes over tithes generated huge tensions and they are very well documented for Zamora. We analyze the conflict between the bishops and other social sectors in order to demonstrate that the balance of power between them determined the means of penetration of the episcopate in the parish resources. Keywords: Conflicts - Tithe – Episcopacy.

Carlos Astarita. Social conflict in Feudalism. This paper addresses the social struggles that took place in Western Europe throughout the Middle Ages, based on author's research on the bourgeois' struggles in the 12th Century. The article aims to bring to light a holistic comprehension of the presented phenomenon, thus characterizing the dynamics of the feudal mode of production. Keywords: Middle Ages; Feudal Mode of Production; Social Struggles.

Camila Massaro de Góes. India in Marx's and Engel's work: between philosophy of history and politics. This article has as its main objective an understanding of the Marx and Engels's views on the non-European world, highlighting the Indian colonial question, as it has both theoretical and practical relevance, once it is a challenge to our understanding of Marxism as a philosophy of history, while it confronts an issue specifically political and strategic. The Marx and Engel's views on European colonialism in India were expressed in a series of articles in the New York Tribune between the years 1853 and 1859. This article, seated in these writings, will be developed around the following question - is it possible to identify a philosophy of history on Marx and Engels's treatment about the national question in India? Keywords: India; colonial issue; Marxism.

Mário Maestri. Representation of the Oppressed in Pre-Capitalist Societies: The Colonial Slavery. This paper discusses the construction of dominant justifications of exploitation. That process was historically determined and conditioned in pre-capitalist societies, and more especially during the colonial slavery, when the symbolic community between exploited and exploiters was very tenuous. The present paper highlights the slaveholders' efforts to

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A

10 - Resumos e Abstracts

História, atualização do passado e estilhaçosmessiânicos de uma revolta popular no III Milênio a. C.

Fábio Frizzo*

inda que não tivesse tido, em toda minha vida, mais do que um único momento de esperança, teria travado este combate. Inclusive, se hei de perdê-lo, outros o ganharão. Todos os outros.

Paul Eluard

Não deve ser novidade para nenhum dos leitores desta revista que o capitalismo não levou a humanidade a um caminho diferente daquele dominado pela barbárie. Apesar de extremamente desvalorizados em meio à selvageria – talvez, justamente pelo perigo apresentado por sua função – historiadores das mais diversas correntes teóricas têm trabalhado, conscientemente ou não, para a construção deste “admirável mundo novo”. O historiador catalão Josep Fontana afirma com razão a semelhança funcional entre a história de um grupo e a memória de um indivíduo, ambas dando aos seus donos um sentido de identidade e orientando suas ações. Como memória coletiva, a história hegemonicamente legitima a ordem político-social vigente, agindo em conjunto com uma racionalização das desigualdades do mundo presente, que aparece como uma sequência lógica da trajetória decorrida, e cuja culminância se dá com um projeto

1político de futuro .A racionalização é a atividade humana por

natureza e ela age no pensamento histórico sempre a posteriori, dando a Clio o título de dama do retrospecto. Desta maneira, a história pode ser representada como uma linha direta ligando todos os acontecimentos como necessários, naturalmente desembocando no mundo atual.

Clio, todavia, não é senhora de um homem só. A história se acosta com todos os que por ela nutrem algum tipo de interesse e aqueles que a manipulam não obedecem apenas a anseios individuais, já que:

... o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente determinada. (...) [Partir do indivíduo] trata-se (...) da antecipação da “sociedade burguesa”, que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade. Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado. [O indivíduo é visto] não como um resultado histórico, mas como

*Doutorando em História no PPGH-UFF e Professor de História Antiga e Medieval das Universidades Cândido Mendes e Estácio de Sá.1FONTANA, Josep. História. Análise do Passado e Projeto Social. Bauru: EDUSC, 1998. p. 9-13.

ponto de partida da história. (...) Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um

2todo maior.O mundo atual é justificado por uma linha de

progresso criada pela burguesia durante o processo de afirmação da sua ideologia como dominante, naturalizando o capitalismo como apoteose humana. Até o século XVIII, a ideia de progresso mantinha um caráter crítico em oposição à visão de mundo feudal. Entretanto, como apontou Walter Benjamin, no decorrer do século XIX, com a consolidação da hegemonia burguesa, o

3progresso perdeu suas funções críticas .

Partindo do pensamento de Benjamin, Fontana afirma que há uma “discordância entre um projeto de futuro socialista e sua fundamentação numa história – o que equivale a uma concepção de progresso – que

4corresponde em boa medida ao capitalismo” . Ou seja, uma concepção de progresso, influenciada pela teoria evolutiva da seleção natural, que a estendeu a todos os domínios da atividade humana na forma de um

5desenvolvimento automático . Soma-se a isto uma generalização das condições da revolução industrial, que identifica o progresso aos avanços técnicos e tecnológicos.

A vontade burguesa iluminista de ver a história como guiada por leis universais e imutáveis, que levaram inevitavelmente ao capitalismo moderno, fez com que todo o retrospecto civilizacional humano fosse marcado pela existência transistórica do mercado.

O conceito burguês de progresso foi interiorizado de tal forma que mesmo o marxismo a incorporou. Embora a obra de Marx seja marcada por conceitos fluídos, há muito se sabe que inúmeras correntes do marxismo – algumas extremamente poderosas – trataram de petrificar, entre outras, a concepção marxiana de história. Partindo do famoso prefácio de 1859 em que Marx ofereceu “o resultado geral que se lhe apresentou como fio condutor de sua

2MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos Econômicos de 1857-1858. Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 39-40.3BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007. p. 518-519.4FONTANA, op. cit., p. 251.5No marxismo um dos mais importantes pensadores a trabalharem sob a influência da teoria da evolução no desenvolvimento social foi o arqueólogo australiano Vere Gordon Childe, imortalizado naquela que talvez tenha sido sua obra mais célebre A Evolução Cultural do Homem. Rio de Janeiro: Zahar. 1986.

overwhelm every narrative that contest their apologies of slavery, exacerbating the difficulty of knowing oppressed people's representations. In the present paper we also emphasize the dialogism of slavery apologies, through which it is possible to reconstruct the worldviews of oppressed people. Keywords: Pre-capitalist societies; Ideology and class struggle; Slavery and resistance.

Antonio Elias Sobrinho. The Workers' Struggle in Marx's Time. This article presents an analysis of the of the XIX century worker struggles, having England as the major reference. Just some Karl Marx's text have been used as, from our point of view, he has been one of the first and maim theoreticians to raise and discuss the mentioned theme, taking from it the adequate consequences, not only for its comprehension and deepening, but mainly for bringing a radical transformation alternative to those conflicts; being this alternative something consistent an promising to the societies up to today. Keywords: Work; Revolution; Marx.

Renato da Silva Della Vechia.

Lucas Patschiki. Olavo de Carvalho, the “Mídia Sem Máscara” and the anticommunism against Gramsci (2002-2011). In this article we will discuss the “anticommunism against Gramsci”, elaboration disseminated by the group formed around the website Mídia Sem Máscara, whose main organizer is the self-titled philosopher Olavo de Carvalho. After introduce the MSM, we discuss the social functions of anticommunism, and then the “gramscism”, specific variation raised by these intellectuals, which works as a conducting wire throughout his political action, underlining its strategic positioning in the form of war of positions. Keywords: Anticommunism; Mídia Sem Máscara; Olavo de Carvalho.

The Rio Grande do Sul State Students Directory and its ideological apparatus role ofthe Military Regime. This paper aims to analyze a specificity of the gaucho university student movement during the military dictatorship. This specificity was the existence of an entity called State Student Directory, which was not recognized by the law. This Directory played a disarticulation role on student struggles and it was used as an ideological instrumentof youth political control, transforming the Central Directory of Students in healthcarespaces and providing training courses which aimed to legitimize the regime. Keywords: students movement; students ideologies; Students State Directory.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) - 11

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A

10 - Resumos e Abstracts

História, atualização do passado e estilhaçosmessiânicos de uma revolta popular no III Milênio a. C.

Fábio Frizzo*

inda que não tivesse tido, em toda minha vida, mais do que um único momento de esperança, teria travado este combate. Inclusive, se hei de perdê-lo, outros o ganharão. Todos os outros.

Paul Eluard

Não deve ser novidade para nenhum dos leitores desta revista que o capitalismo não levou a humanidade a um caminho diferente daquele dominado pela barbárie. Apesar de extremamente desvalorizados em meio à selvageria – talvez, justamente pelo perigo apresentado por sua função – historiadores das mais diversas correntes teóricas têm trabalhado, conscientemente ou não, para a construção deste “admirável mundo novo”. O historiador catalão Josep Fontana afirma com razão a semelhança funcional entre a história de um grupo e a memória de um indivíduo, ambas dando aos seus donos um sentido de identidade e orientando suas ações. Como memória coletiva, a história hegemonicamente legitima a ordem político-social vigente, agindo em conjunto com uma racionalização das desigualdades do mundo presente, que aparece como uma sequência lógica da trajetória decorrida, e cuja culminância se dá com um projeto

1político de futuro .A racionalização é a atividade humana por

natureza e ela age no pensamento histórico sempre a posteriori, dando a Clio o título de dama do retrospecto. Desta maneira, a história pode ser representada como uma linha direta ligando todos os acontecimentos como necessários, naturalmente desembocando no mundo atual.

Clio, todavia, não é senhora de um homem só. A história se acosta com todos os que por ela nutrem algum tipo de interesse e aqueles que a manipulam não obedecem apenas a anseios individuais, já que:

... o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente determinada. (...) [Partir do indivíduo] trata-se (...) da antecipação da “sociedade burguesa”, que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade. Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado. [O indivíduo é visto] não como um resultado histórico, mas como

*Doutorando em História no PPGH-UFF e Professor de História Antiga e Medieval das Universidades Cândido Mendes e Estácio de Sá.1FONTANA, Josep. História. Análise do Passado e Projeto Social. Bauru: EDUSC, 1998. p. 9-13.

ponto de partida da história. (...) Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um

2todo maior.O mundo atual é justificado por uma linha de

progresso criada pela burguesia durante o processo de afirmação da sua ideologia como dominante, naturalizando o capitalismo como apoteose humana. Até o século XVIII, a ideia de progresso mantinha um caráter crítico em oposição à visão de mundo feudal. Entretanto, como apontou Walter Benjamin, no decorrer do século XIX, com a consolidação da hegemonia burguesa, o

3progresso perdeu suas funções críticas .

Partindo do pensamento de Benjamin, Fontana afirma que há uma “discordância entre um projeto de futuro socialista e sua fundamentação numa história – o que equivale a uma concepção de progresso – que

4corresponde em boa medida ao capitalismo” . Ou seja, uma concepção de progresso, influenciada pela teoria evolutiva da seleção natural, que a estendeu a todos os domínios da atividade humana na forma de um

5desenvolvimento automático . Soma-se a isto uma generalização das condições da revolução industrial, que identifica o progresso aos avanços técnicos e tecnológicos.

A vontade burguesa iluminista de ver a história como guiada por leis universais e imutáveis, que levaram inevitavelmente ao capitalismo moderno, fez com que todo o retrospecto civilizacional humano fosse marcado pela existência transistórica do mercado.

O conceito burguês de progresso foi interiorizado de tal forma que mesmo o marxismo a incorporou. Embora a obra de Marx seja marcada por conceitos fluídos, há muito se sabe que inúmeras correntes do marxismo – algumas extremamente poderosas – trataram de petrificar, entre outras, a concepção marxiana de história. Partindo do famoso prefácio de 1859 em que Marx ofereceu “o resultado geral que se lhe apresentou como fio condutor de sua

2MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos Econômicos de 1857-1858. Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 39-40.3BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007. p. 518-519.4FONTANA, op. cit., p. 251.5No marxismo um dos mais importantes pensadores a trabalharem sob a influência da teoria da evolução no desenvolvimento social foi o arqueólogo australiano Vere Gordon Childe, imortalizado naquela que talvez tenha sido sua obra mais célebre A Evolução Cultural do Homem. Rio de Janeiro: Zahar. 1986.

overwhelm every narrative that contest their apologies of slavery, exacerbating the difficulty of knowing oppressed people's representations. In the present paper we also emphasize the dialogism of slavery apologies, through which it is possible to reconstruct the worldviews of oppressed people. Keywords: Pre-capitalist societies; Ideology and class struggle; Slavery and resistance.

Antonio Elias Sobrinho. The Workers' Struggle in Marx's Time. This article presents an analysis of the of the XIX century worker struggles, having England as the major reference. Just some Karl Marx's text have been used as, from our point of view, he has been one of the first and maim theoreticians to raise and discuss the mentioned theme, taking from it the adequate consequences, not only for its comprehension and deepening, but mainly for bringing a radical transformation alternative to those conflicts; being this alternative something consistent an promising to the societies up to today. Keywords: Work; Revolution; Marx.

Renato da Silva Della Vechia.

Lucas Patschiki. Olavo de Carvalho, the “Mídia Sem Máscara” and the anticommunism against Gramsci (2002-2011). In this article we will discuss the “anticommunism against Gramsci”, elaboration disseminated by the group formed around the website Mídia Sem Máscara, whose main organizer is the self-titled philosopher Olavo de Carvalho. After introduce the MSM, we discuss the social functions of anticommunism, and then the “gramscism”, specific variation raised by these intellectuals, which works as a conducting wire throughout his political action, underlining its strategic positioning in the form of war of positions. Keywords: Anticommunism; Mídia Sem Máscara; Olavo de Carvalho.

The Rio Grande do Sul State Students Directory and its ideological apparatus role ofthe Military Regime. This paper aims to analyze a specificity of the gaucho university student movement during the military dictatorship. This specificity was the existence of an entity called State Student Directory, which was not recognized by the law. This Directory played a disarticulation role on student struggles and it was used as an ideological instrumentof youth political control, transforming the Central Directory of Students in healthcarespaces and providing training courses which aimed to legitimize the regime. Keywords: students movement; students ideologies; Students State Directory.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) - 11

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obra”, entendeu-se que mais do que a luta de classes, o motor da história era o desenvolvimento das forças produtivas, que levaria a contradições com as relações de produção, criando o cenário revolucionário para a

6superação da estrutura econômica dada.

Não foram poucos os debates historiográficos afetados por concepções mecanicistas como esta, defendida pela ortodoxia da Segunda Internacional, que desembocou no stalinismo. Um dos casos mais prolíferos é aquele da transição do feudalismo para o capitalismo.

Segundo Ellen Wood, quase todas as explicações para a origem do capitalismo têm sido fundamentalmente circulares, assumindo sua pré-existência para explicar seu surgimento. Para elucidar a busca por lucro ligada à racionalidade capitalista, projeta-se ela no passado, como é feito, outrossim, com o impulso ao desenvolvimento dos

7meios técnicos, transformado, como visto, em lei natural.Com efeito, não são poucos os pesquisadores que

assumem posições similares, caracterizando uma corrente conhecida como circulacionista, propondo que a transição se deu por meio do incremento do comércio. Tal concepção dá ao capitalismo o título de estágio mais complexo e maduro das formas de troca, agora livres dos entraves políticos e culturais que impediam seu desenvolvimento. Em outras palavras, o espírito capitalista da troca de mercadorias guiada pela racionalidade econômica da maximização de benefícios é aistoricizado.

Além de implicar uma concepção burguesa de progresso, a corrente circulacionista de explicação da transição também contém um gérmen da visão tradicional – herdeira do Renascimento e reforçada com o Iluminismo – e preconceituosa em relação à Idade Média, vista como um período de trevas, ou seja, uma interrupção na linha de desenvolvimento seja das trocas ou do das forças produtivas que culmina no capitalismo. Seguindo esta linha, a Roma Antiga e seu mercado imperial que cruzava o Mare Nostrum tiveram sua transição para o capitalismo interrompida pela barbárie dos povos germânicos, incivilizados dentro da sua “economia natural”, levando o Ocidente a cerca de um milênio de atraso em sua evolução.

Mesmo um brilhante historiador marxista da economia romana, como Aldo Schiavone, acaba resvalando em sua interpretação em pressupostos semelhantes aos dos circulacionistas, deixando abertura para uma interpretação criticável. Segundo Schiavone, as relações econômicas na antiguidade latina estavam inseridas numa malha de fatos e relações de outros tipos, ou seja,

a economia romana em nenhum momento de sua história conseguiu manter-se com seus próprios pés, desencadeando aquele processo de instável autossustentação financeira e tecnológica que, no mundo moderno, “liberou Prometeu” sob a

8forma da revolução industrial e do capitalismo.

6MARX, Karl. “Prefácio à 'Contribuição à Crítica da Economia Política'”. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Textos. Vol. III. São Paulo: Edições Sociais, 1977. p. 300-303.7WOOD, Ellen. The Origin of Capitalism. Londres: Monthly Review Press, 1999. p. 8

Apesar de formalmente correta, uma afirmação como esta dá margem a um entendimento de que o capitalismo surgiria em Roma assim que os entraves políticos e culturais fossem removidos. Criticando esta posição no debate de transição do feudalismo para o capitalismo, Wood afirma que para os circulacionistas: “A mudança é mais no que acontece com as forças e instituições – políticas, legais, culturais e ideológicas, bem como tecnológicas – que impediam a evolução

9natural da troca e a maturidade dos mercados”.

Desta maneira, o capitalismo não é visto como o momento em que o mercado se tornou algo compulsório, através da instituição da lei do valor e da transformação nas relações de trabalho, mas sim – conforme a ideologia burguesa – aquele em que se tornou livre. Logo, a transição é vista como um processo quantitativo de acúmulo – ou desaparecimento – de condições e não como uma modificação qualitativa radical, que inaugura uma forma de dominação inédita na trajetória humana.

A naturalização das estruturas capitalistas na história gerou, desde o século XIX, um conhecido debate entre antiquistas e antropólogos, conhecido como contenda Bücher-Meyer. A primeira corrente, iniciada com os trabalhos de Karl Bücher, foi nomeada como primitivista por entender as estruturas econômicas da Antiguidade – grega, no caso específico – como diferentes das capitalistas e rudimentares em comparação a esta. Por outro lado, os modernistas creem, desde o trabalho de Eduard Meyer, que guardadas as devidas proporções quantitativas, a economia pré-capitalista obedece à mesma dinâmica de funcionamento daquela que a sucedeu.

Durante o século XX, a discussão tomou novos contornos a partir da Antropologia Econômica e da crítica feita por Karl Polanyi, que acusava os “modernistas” de formalismo, ou seja, identificar a racionalidade de maximização de benefícios como algo aistórico. Em oposição, Polanyi indicava o caminho do substantivismo, no qual as estruturas econômicas pré-capitalistas estavam encrustadas (embedded) em outras esferas da vida social, como a política ou a religião, determinando outros tipos de racionalidade. Desta maneira, os substantivistas só acreditam na centralidade da mercadoria e do lucro dentro da sociedade capitalista, legando às sociedades anteriores outras formas de circulação, como a redistribuição e reciprocidade.

No caso que nos interessa em particular, o da egiptologia, as discussões seguem o mesmo caminho, ainda que a economia faraônica, ao contrário da grega, não fosse monetarizada.

Jogando pela equipe dos modernistas/ formalistas, entram em campo o Barry Kemp e Christopher Eyre. O primeiro foi responsável por um famoso capítulo, intitulado “O Nascimento do Homem Econômico”, no qual critica a economia redistributiva que Polanyi encontra no Egito Antigo, identificando-a com a URSS e afirmando que estava influenciada pela

8SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 70.9WOOD, op. cit., p. 15-18.

visão de uma divisão igualitária da produção através da imbricação das relações econômicas em uma ideologia política. Kemp, contudo, afirma que a impossibilidade do Estado – moderno ou antigo – de atender todas as demandas individuais a contento geraria o mercado como

10uma “reação natural” . A palavra “natural” não é um simples descuido conceitual, ela representa mesmo uma ação inerente ao gênero humano, como se pode notar na seguinte citação:

O conceito abstrato de obter um benefício com uma venda é uma racionalização do que se consegue ao fazer uma transação proveitosa, de conseguir um bom preço. O último pertence ao reino das estratégias intuitivas de sobrevivência

11que formam parte do ser humano.

Eyre enverga o mesmo uniforme do time de Kemp, partindo também da crítica político-ideológica ao socialismo soviético. Em seu artigo sobre arrendamento de terras no Egito Faraônico, o egiptólogo formalista associa, outrossim, o modelo redistributivo do substantivismo a uma nefasta influência da estrutura econômica centralizada da URSS. Restaria, portanto, utilizar o paradigma da ação empreendedora privada, como se pode notar:

... elas [as fontes documentais] falam pela superioridade, também no período faraônico, de um modelo econômico dependente da empresa quase-comercial de trabalhadores camponeses individuais e intermediários rurais e não de uma burocracia quase socialista. (...) A empresa, uma avaliação do equilíbrio entre vantagem ou desvantagem, e a noção de lucro não eram desconhecidas no Egito Antigo, ainda que não fossem expressas em termos contábeis

12modernos.

Do outro lado da cancha no certame da economia faraônica, há a equipe de substantivistas encabeçada por J.J. Janssen e sua defesa do modelo redistributivo para o

13Antigo Egito. Ao seu lado, encontra-se atualmente o estadunidense Edward Bleiberg, que defende que não existia busca pelo lucro no escambo egípcio. Os bens eram adquiridos por seu valor de uso, não havendo, desta maneira, formação de capital. Ao desnaturalizar o lucro como motivador das trocas, Bleiberg pensa uma economia incrustada em outras estruturas, identificando a busca de prestígio como a principal motivação para o comércio, já que a vantagem pessoal passava por

14instituições reais e divinas.

Por fim, fora das duas equipes, há aqueles que pretendem ostentar uma posição imparcial, ou seja,

aqueles que acreditam que o debate entre formalistas e substantivistas já foi superado a partir de visões que mostram que nenhum dos dois lados está completamente certo ou errado. Um desses nomes na egiptologia é o de Stuart Smith. Todavia, o que ele acaba fazendo – como outros deste grupo – é fingir imparcialidade deixando transparecer, sem perceber, seu uniforme formalista, como fica claro nesta citação de Smith:

Já estes indivíduos [artesãos especializados] estavam claramente usando seu treinamento como especialistas funerários para maximizar suas rendas e acumular riqueza, tirando vantagem da demanda por bens de alta qualidade para tumbas estimulada por demonstrações mais ostentatórias ou modestas de riqueza nos

15funerais.

Isto nada mais é do que a naturalização da busca marginal pela maximização de benefícios em um mundo de recursos escassos. O que parece mais incrível é que mesmo extrapolando a realidade capitalista para todas as sociedades humanas e, desta maneira, projetando uma linha de progresso que desemboca no apogeu burguês do presente, os formalistas – declarados ou não – ainda assim criticam a ideia de evolução que leva à sociedade a qual defendem – consciente ou inconscientemente – como culminância humana. Não satisfeitos, usam o conceito de evolução e linearidade para criticar todos aqueles que pensam nas especificidades das relações pré-capitalistas. Vejamos dois rápidos exemplos.

O debate da economia antiga x economia moderna continua a valorizar a noção fora de moda de estágios históricos caracterizados por tipos sócio/econômico/políticos que sucedem

16um ao outro de forma linear.A divisão tudo-ou-nada primitivista/modernista, substantivista/formalista obscurece a real complexidade das economias antigas forçando-as em um quadro evolucionário artificial, privilegiando a emergência do capitalismo

17ocidental e o moderno sistema mundial.

O fundamental para uma crítica marxista da economia pré-capitalista é que ambos os lados do debate criado no século XIX mantém-se discutindo apenas a circulação, abandonando a esfera da produção e as relações conflituosas entre as classes nela envolvidas. Este é um erro similar àquele apontado em relação à vertente circulacionista – marxista ou não – da transição para o capitalismo. O que aponta Ellen Wood para a gênese do modo de produção capitalista e que pode ser extrapolado como método para outros momentos históricos é o enfoque nas formas históricas de exploração e resistência entre elites e classes

18subalternas.10KEMP, Barry. El Antiguo Egipto. Anatomía de una Civilización. Barcelona: Crítica, 2003. p. 29511Idem, p. 320.12EYRE, Christopher. “Peasants and “Modern” Leasing Strategies in Ancient Egypt.” Journal of the Economic and Social History of the Orient. Vol. 40, No. 4. Leiden: BRILL, 1997 p. 386. Destaque meu.13JANSSEN, J. J. “Prolegomena to the Study of Egypt's Economic History During the New Kingdom.” Studien zur Altägyptischen Kultur, Bd. 3. Helmut Buske Verlag GmbH, 1975. p. 127-18514BLEIBERG, Edward. The Official Gift in Ancient Egypt. Oklahoma: The University of Oklahoma Press, 1996. p. 11-27.

15SMITH, Stuart. Wretched Kush. Ethnic identities and boundaries in egypt's nubian empire. London e New York: Routhledge, 2003. p. 68.16LAMBERG-KARLOVSKY, C. C. In: FRANK, André Gunder et alii. “Bronze Age World System Cycles [and Comments and Reply]. In: Current Anthropology. Vol. 34. No. 4. Chicago: The University of Chicago Press, Ago-Out 1993. p. 383-429. A citação é da p. 416.17SMITH, op. cit., p. 67.18WOOD, op. cit.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

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obra”, entendeu-se que mais do que a luta de classes, o motor da história era o desenvolvimento das forças produtivas, que levaria a contradições com as relações de produção, criando o cenário revolucionário para a

6superação da estrutura econômica dada.

Não foram poucos os debates historiográficos afetados por concepções mecanicistas como esta, defendida pela ortodoxia da Segunda Internacional, que desembocou no stalinismo. Um dos casos mais prolíferos é aquele da transição do feudalismo para o capitalismo.

Segundo Ellen Wood, quase todas as explicações para a origem do capitalismo têm sido fundamentalmente circulares, assumindo sua pré-existência para explicar seu surgimento. Para elucidar a busca por lucro ligada à racionalidade capitalista, projeta-se ela no passado, como é feito, outrossim, com o impulso ao desenvolvimento dos

7meios técnicos, transformado, como visto, em lei natural.Com efeito, não são poucos os pesquisadores que

assumem posições similares, caracterizando uma corrente conhecida como circulacionista, propondo que a transição se deu por meio do incremento do comércio. Tal concepção dá ao capitalismo o título de estágio mais complexo e maduro das formas de troca, agora livres dos entraves políticos e culturais que impediam seu desenvolvimento. Em outras palavras, o espírito capitalista da troca de mercadorias guiada pela racionalidade econômica da maximização de benefícios é aistoricizado.

Além de implicar uma concepção burguesa de progresso, a corrente circulacionista de explicação da transição também contém um gérmen da visão tradicional – herdeira do Renascimento e reforçada com o Iluminismo – e preconceituosa em relação à Idade Média, vista como um período de trevas, ou seja, uma interrupção na linha de desenvolvimento seja das trocas ou do das forças produtivas que culmina no capitalismo. Seguindo esta linha, a Roma Antiga e seu mercado imperial que cruzava o Mare Nostrum tiveram sua transição para o capitalismo interrompida pela barbárie dos povos germânicos, incivilizados dentro da sua “economia natural”, levando o Ocidente a cerca de um milênio de atraso em sua evolução.

Mesmo um brilhante historiador marxista da economia romana, como Aldo Schiavone, acaba resvalando em sua interpretação em pressupostos semelhantes aos dos circulacionistas, deixando abertura para uma interpretação criticável. Segundo Schiavone, as relações econômicas na antiguidade latina estavam inseridas numa malha de fatos e relações de outros tipos, ou seja,

a economia romana em nenhum momento de sua história conseguiu manter-se com seus próprios pés, desencadeando aquele processo de instável autossustentação financeira e tecnológica que, no mundo moderno, “liberou Prometeu” sob a

8forma da revolução industrial e do capitalismo.

6MARX, Karl. “Prefácio à 'Contribuição à Crítica da Economia Política'”. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Textos. Vol. III. São Paulo: Edições Sociais, 1977. p. 300-303.7WOOD, Ellen. The Origin of Capitalism. Londres: Monthly Review Press, 1999. p. 8

Apesar de formalmente correta, uma afirmação como esta dá margem a um entendimento de que o capitalismo surgiria em Roma assim que os entraves políticos e culturais fossem removidos. Criticando esta posição no debate de transição do feudalismo para o capitalismo, Wood afirma que para os circulacionistas: “A mudança é mais no que acontece com as forças e instituições – políticas, legais, culturais e ideológicas, bem como tecnológicas – que impediam a evolução

9natural da troca e a maturidade dos mercados”.

Desta maneira, o capitalismo não é visto como o momento em que o mercado se tornou algo compulsório, através da instituição da lei do valor e da transformação nas relações de trabalho, mas sim – conforme a ideologia burguesa – aquele em que se tornou livre. Logo, a transição é vista como um processo quantitativo de acúmulo – ou desaparecimento – de condições e não como uma modificação qualitativa radical, que inaugura uma forma de dominação inédita na trajetória humana.

A naturalização das estruturas capitalistas na história gerou, desde o século XIX, um conhecido debate entre antiquistas e antropólogos, conhecido como contenda Bücher-Meyer. A primeira corrente, iniciada com os trabalhos de Karl Bücher, foi nomeada como primitivista por entender as estruturas econômicas da Antiguidade – grega, no caso específico – como diferentes das capitalistas e rudimentares em comparação a esta. Por outro lado, os modernistas creem, desde o trabalho de Eduard Meyer, que guardadas as devidas proporções quantitativas, a economia pré-capitalista obedece à mesma dinâmica de funcionamento daquela que a sucedeu.

Durante o século XX, a discussão tomou novos contornos a partir da Antropologia Econômica e da crítica feita por Karl Polanyi, que acusava os “modernistas” de formalismo, ou seja, identificar a racionalidade de maximização de benefícios como algo aistórico. Em oposição, Polanyi indicava o caminho do substantivismo, no qual as estruturas econômicas pré-capitalistas estavam encrustadas (embedded) em outras esferas da vida social, como a política ou a religião, determinando outros tipos de racionalidade. Desta maneira, os substantivistas só acreditam na centralidade da mercadoria e do lucro dentro da sociedade capitalista, legando às sociedades anteriores outras formas de circulação, como a redistribuição e reciprocidade.

No caso que nos interessa em particular, o da egiptologia, as discussões seguem o mesmo caminho, ainda que a economia faraônica, ao contrário da grega, não fosse monetarizada.

Jogando pela equipe dos modernistas/ formalistas, entram em campo o Barry Kemp e Christopher Eyre. O primeiro foi responsável por um famoso capítulo, intitulado “O Nascimento do Homem Econômico”, no qual critica a economia redistributiva que Polanyi encontra no Egito Antigo, identificando-a com a URSS e afirmando que estava influenciada pela

8SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 70.9WOOD, op. cit., p. 15-18.

visão de uma divisão igualitária da produção através da imbricação das relações econômicas em uma ideologia política. Kemp, contudo, afirma que a impossibilidade do Estado – moderno ou antigo – de atender todas as demandas individuais a contento geraria o mercado como

10uma “reação natural” . A palavra “natural” não é um simples descuido conceitual, ela representa mesmo uma ação inerente ao gênero humano, como se pode notar na seguinte citação:

O conceito abstrato de obter um benefício com uma venda é uma racionalização do que se consegue ao fazer uma transação proveitosa, de conseguir um bom preço. O último pertence ao reino das estratégias intuitivas de sobrevivência

11que formam parte do ser humano.

Eyre enverga o mesmo uniforme do time de Kemp, partindo também da crítica político-ideológica ao socialismo soviético. Em seu artigo sobre arrendamento de terras no Egito Faraônico, o egiptólogo formalista associa, outrossim, o modelo redistributivo do substantivismo a uma nefasta influência da estrutura econômica centralizada da URSS. Restaria, portanto, utilizar o paradigma da ação empreendedora privada, como se pode notar:

... elas [as fontes documentais] falam pela superioridade, também no período faraônico, de um modelo econômico dependente da empresa quase-comercial de trabalhadores camponeses individuais e intermediários rurais e não de uma burocracia quase socialista. (...) A empresa, uma avaliação do equilíbrio entre vantagem ou desvantagem, e a noção de lucro não eram desconhecidas no Egito Antigo, ainda que não fossem expressas em termos contábeis

12modernos.

Do outro lado da cancha no certame da economia faraônica, há a equipe de substantivistas encabeçada por J.J. Janssen e sua defesa do modelo redistributivo para o

13Antigo Egito. Ao seu lado, encontra-se atualmente o estadunidense Edward Bleiberg, que defende que não existia busca pelo lucro no escambo egípcio. Os bens eram adquiridos por seu valor de uso, não havendo, desta maneira, formação de capital. Ao desnaturalizar o lucro como motivador das trocas, Bleiberg pensa uma economia incrustada em outras estruturas, identificando a busca de prestígio como a principal motivação para o comércio, já que a vantagem pessoal passava por

14instituições reais e divinas.

Por fim, fora das duas equipes, há aqueles que pretendem ostentar uma posição imparcial, ou seja,

aqueles que acreditam que o debate entre formalistas e substantivistas já foi superado a partir de visões que mostram que nenhum dos dois lados está completamente certo ou errado. Um desses nomes na egiptologia é o de Stuart Smith. Todavia, o que ele acaba fazendo – como outros deste grupo – é fingir imparcialidade deixando transparecer, sem perceber, seu uniforme formalista, como fica claro nesta citação de Smith:

Já estes indivíduos [artesãos especializados] estavam claramente usando seu treinamento como especialistas funerários para maximizar suas rendas e acumular riqueza, tirando vantagem da demanda por bens de alta qualidade para tumbas estimulada por demonstrações mais ostentatórias ou modestas de riqueza nos

15funerais.

Isto nada mais é do que a naturalização da busca marginal pela maximização de benefícios em um mundo de recursos escassos. O que parece mais incrível é que mesmo extrapolando a realidade capitalista para todas as sociedades humanas e, desta maneira, projetando uma linha de progresso que desemboca no apogeu burguês do presente, os formalistas – declarados ou não – ainda assim criticam a ideia de evolução que leva à sociedade a qual defendem – consciente ou inconscientemente – como culminância humana. Não satisfeitos, usam o conceito de evolução e linearidade para criticar todos aqueles que pensam nas especificidades das relações pré-capitalistas. Vejamos dois rápidos exemplos.

O debate da economia antiga x economia moderna continua a valorizar a noção fora de moda de estágios históricos caracterizados por tipos sócio/econômico/políticos que sucedem

16um ao outro de forma linear.A divisão tudo-ou-nada primitivista/modernista, substantivista/formalista obscurece a real complexidade das economias antigas forçando-as em um quadro evolucionário artificial, privilegiando a emergência do capitalismo

17ocidental e o moderno sistema mundial.

O fundamental para uma crítica marxista da economia pré-capitalista é que ambos os lados do debate criado no século XIX mantém-se discutindo apenas a circulação, abandonando a esfera da produção e as relações conflituosas entre as classes nela envolvidas. Este é um erro similar àquele apontado em relação à vertente circulacionista – marxista ou não – da transição para o capitalismo. O que aponta Ellen Wood para a gênese do modo de produção capitalista e que pode ser extrapolado como método para outros momentos históricos é o enfoque nas formas históricas de exploração e resistência entre elites e classes

18subalternas.10KEMP, Barry. El Antiguo Egipto. Anatomía de una Civilización. Barcelona: Crítica, 2003. p. 29511Idem, p. 320.12EYRE, Christopher. “Peasants and “Modern” Leasing Strategies in Ancient Egypt.” Journal of the Economic and Social History of the Orient. Vol. 40, No. 4. Leiden: BRILL, 1997 p. 386. Destaque meu.13JANSSEN, J. J. “Prolegomena to the Study of Egypt's Economic History During the New Kingdom.” Studien zur Altägyptischen Kultur, Bd. 3. Helmut Buske Verlag GmbH, 1975. p. 127-18514BLEIBERG, Edward. The Official Gift in Ancient Egypt. Oklahoma: The University of Oklahoma Press, 1996. p. 11-27.

15SMITH, Stuart. Wretched Kush. Ethnic identities and boundaries in egypt's nubian empire. London e New York: Routhledge, 2003. p. 68.16LAMBERG-KARLOVSKY, C. C. In: FRANK, André Gunder et alii. “Bronze Age World System Cycles [and Comments and Reply]. In: Current Anthropology. Vol. 34. No. 4. Chicago: The University of Chicago Press, Ago-Out 1993. p. 383-429. A citação é da p. 416.17SMITH, op. cit., p. 67.18WOOD, op. cit.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

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Sem o foco na historicidade das lutas, resta apenas a visão de uma evolução automática de progresso, seja aquela burguesa do desenvolvimento e liberalização das leis universais do mercado, ou aquelas marxista que escondem a ação humana sob as estruturas do desenvolvimento das forças produtivas ou mesmo da

19reprodução do capital.

Contra esta visão de progresso, que torna a história uma apologia do presente baseada na continuidade, Walter Benjamin aprendeu a ver no tempo algo diferente de uma linha reta a qual o historicista preenche com uma massa de fatos. Para ele, o continuum temporal era pulsante e estava disponível ao materialista histórico para ser utilizado como uma citation à l'ordre du jour, conforme fica claro em sua sexta tese sobre o conceito de História:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. (...) Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado

20de vencer. (Tese 6)

Benjamin não se iludia com a existência de uma pretensa História atemporal, uma verdade estabelecida e acessível, como as vozes ouvidas por Michelet nos arquivos, esperando pelo resgate do historiador. O crítico alemão sabia que a História é refeita a cada presente e que cada tempo apropria-se dela como bem entende. Desta maneira, ele dizia que era preciso fazer “saltar pelos ares o continuum da história” e construiu um conceito de tempo no qual o passado não existiu, mas, sim, existe! Ou, em suas palavras, que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no

21momento em que é conhecido” (Tese 5). Desta maneira, Benjamin “(...) funda um conceito de presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do

22messiânico” (Apêndice 1). O materialista histórico (...) reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de o u t r o m o d o , d e u m a o p o r t u n i d a d e revolucionária de lutar por um passado

19Penso especialmente na teoria stalinista da evolução linear dos modos de produção ou, por outro lado, no trabalho de autores como Moishe Postone que afirmam que o pensamento marxiano não identificava o sujeito com o proletariado ou a humanidade, mas sim com o capital, esterilizando o poder revolucionário de um pensamento voltado para a ação. Ver POSTONE, Moishe. Rethinking Marx's Critical Theory In: ______ et Alii. History and Heteronomy. Critical Essays. Tóquio:UTCP, 2009. p. 31-48.20BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 224-225.21Idem, p. 224.22Idem, p. 232.

oprimido. Ele aproveita a oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história (...). O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas,

23mas insípidas. (Tese 17).

No que nos parece o ápice de sua percepção temporal, Walter Benjamin produz um encontro histórico entre gerações e gerações de oprimidos que se unem na luta pela redenção:

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista

24histórico sabe disso. (Teses 2)

Toda esta introdução acerca do caráter do conhecimento histórico me foi imposta pela necessária reflexão sobre os acontecimentos ocorridos durante o início do ano de 2011, no que se convencionou chamar de “Primavera Árabe”, que teve o Egito como centro gravitacional. Para as camadas populares egípcias, a Praça Tahir se tornou local do “encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa”.

Como egiptólogo esforçado e pretenso materialista histórico, foi impossível não buscar nos “estilhaços messiânicos” a fixação da imagem de um “sopro de ar que foi respirado” há mais de 4000 anos, na única revolta popular bem documentada do período faraônico.

A principal fonte para o estudo dos movimentos populares no Egito Antigo foi publicada, em 1909, por Alan Gardiner, sob o título de As Admoestações de um Sábio Egípcio, proveniente do texto do recto do Papiro Leiden 344, encontrado na região de Mênfis e datado do final do primeiro milênio a.C. Logo de início, entendeu-se, a partir das suas características gramaticais, tratar-se de uma cópia tardia de um texto anterior, que a maioria dos egiptólogos atualmente localiza no espaço de tempo conhecido como Primeiro Período Intermediário, no final do III° Milênio a.C..

O Primeiro Período Intermediário (2181-2055 a.C.) foi marcado pelo enfraquecimento da monarquia faraônica e a descentralização do governo egípcio como havia existido no Reino Antigo. Tais mudanças parecem ter sido causadas por uma revolta popular acompanhada da invasão de asiáticos no Delta, conforme referência do próprio Papiro Leiden 344. Para o egiptólogo Moreno Garcia: “O papel dos “períodos intermediários” para o historiador é o de lentes que ampliam e põem em

23Idem, p. 231.24Idem, p. 223.

evidência os elementos subjacentes de fratura, de crise, de transformação, presentes na sociedade, mas que

25aparecem citados raramente nas fontes oficiais”.Dez anos após sua primeira publicação, as

“Admoestações...” já começaram a passar por um processo de revisionismo que afirmava o caráter não-histórico do texto. Até o final do século passado, alguns egiptólogos, como Miriam Lichtheim, sustentavam que a obra era apenas um exercício puramente literário que refletia o par ordem/caos, central na concepção de mundo

26 egípcia. Tudo isto por tratar-se de um discurso de inversão social, incomum em uma sociedade em que uma classe dominante constituída por no máximo 1% da população produzia fontes escritas.

É importante fazer esta discussão, porque a gigantesca maioria dos documentos egípcios retrata um estado de ordem social a partir de uma perspectiva idealizada de continuidade ordeira, o que é explicado não somente por uma visão ideológica de classe, mas também por um fator conjunto: o fato de que as escrituras tinham caráter mágico. Para os egípcios escrever sobre a ordem era, também, uma forma de manter Maat, a deusa-conceito de ordem, justiça, verdade e medida, responsável pela continuidade do universo tal como existia.

O supramencionado processo de revisionismo historiográfico pelo qual passaram “As Admoestações...” nada mais é, portanto, do que algo corriqueiro no campo de História Antiga e Medieval, a saber, a confusão entre a escassez de fontes provenientes das camadas populares e a inexistência de qualquer manifestação destas. Nas palavras de Walter Benjamin, este tipo de pensamento cria uma imagem de passado apropriada pelo

27conformismo, vazia e homogênea (Tese 14).

Um materialista histórico interessado em 28“escovar a história a contrapelo” (Tese 7) não pode

aceitar a inexistência de conflitos sociais em uma civilização que durou cerca de 3000 anos, por mais forte que seja o poder do consenso criado pela ideologia religiosa. Tampouco é aceitável responsabilizar apenas agentes exógenos, como invasões estrangeiras, pelos períodos de intensa modificação social. Ademais, há argumentos suficientes para crer na veracidade dos eventos descritos no texto do Papiro Leiden 344,

29conforme foi demonstrado por Ciro Cardoso.Não é novidade que, a exemplo de qualquer outra

sociedade pré-capitalista, o Antigo Egito era eminentemente agrário. Com um meio ambiente altamente propício para o cultivo, a produção egípcia era marcada por um baixo nível de desenvolvimento técnico e tecnológico das forças produtivas, compensado pela abundância e intenso controle da força de trabalho.

Já há muito tempo, criticou-se devidamente o conceito de Modo de Produção Asiático conforme

30elaborado por Marx e Engels. A atividade estatal concentrava-se nos censos de terras e trabalhadores, bem como na tributação tanto do excedente de produção quanto de trabalho, que era feita de forma extremamente violenta e penosa para os camponeses. São comuns nas cenas de tumbas imagens de lavradores diante de escribas recebendo castigos físicos em caso de insuficiência no pagamento de cereais. Geralmente, as agressões consistiam em espancamento com bastões de madeira nas plantas dos pés ou nas costas.

Toda essa repressão terminou em rebelião popular no final do Reino Antigo. O texto das “Admoestações...” foi atribuído a um sábio egípcio conhecido como Ipu-Ur, que detinha o cargo de “chefe dos cantores”, a julgar por outro documento da mesma época, conhecido como “fragmento Daressy”.

As circunstâncias iniciais da revolta popular descrita no Papiro Leiden 344 não são relatadas. O egiptólogo José Carlos Reyes afirma que a perda de força do Estado perante os nobres locais, que abusavam dos privilégios sobre a população, teria levado, em conjunto

31com a crise econômica conjuntural, à rebelião.O texto das “Admoestações...” é composto por

trechos em prosa e outros em verso e se concentra em alguns eixos temáticos como, por exemplo: a oposição entre um passado glorioso e um presente em desordem; a questão da traição das forças mercenárias estrangeiras e a invasão da região do Delta; a inversão social entre ricos e pobres; o ataque às instituições; o vandalismo e a

32pilhagem.

O estado de violência e desordem fica bem expresso no trecho seguinte:

(...) o país está cheio de bandos (revoltosos),e para lavrar um homem leva o seu escudo.(...) Em verdade (...)o crime alastrou-se e não há homens como antigamente.Em verdade os ladrões [estão] por toda parte,os criados levam o que encontram.Em verdade o Nilo inunda (mas) ninguém lavra para si(pois) todos dizem “Não sabemos o que sucederá

33ao país”.

No caso do eixo de inversão social, que é mais importante para o propósito desta comunicação, há uma exaltação dos pobres em contraposição à humilhação dos ricos e à tomada de bens dos segundos pelos primeiros.

Em verdade os pobres passaram a exibir luxo, e o que não podia ter sandálias possui riqueza.Em verdade os criados estão vorazes

25MORENO GARCIA, Juan Carlos. El Egipto en el Imperio Antiguo. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2004. p. 12.26LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. Vol. 1. Berkley: University of California Press, 1975. p. 149-150.27BENJAMIN, op. cit., p. 14.28Idem, p. 225.29CARDOSO, Ciro. Violência e Política no Antigo Egito. Conferência apresentada no Ciclo de Debates do Laboratório de História Antiga da UFRJ. Rio de Janeiro: 2010.

30Um dos exemplos publicados em português é CARDOSO, Ciro, BOUZON, Emanuel & TUNES, Cássio. Modo de Produção Asiático. Nova Visita a um Velho Conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990.31REYES, José Carlos Castañeda. Sociedad Antigua y Respuesta Popular. Movimentos Sociales en Egipto Antiguo. Cidade do México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2003. p. 128-129.32Alguns destes eixos temáticos foram estudados, em seus aspectos literários, em JOÃO, Maria Thereza. “As Admoestações de Ipu-Ur: Reflexões sobre a Sociedade Egípcia do Primeiro Período Intermediário.”. NEARCO. N. 1. Ano II. Rio de Janeiro, 2009.33ARAÚJO, Emanuel (Org. e Trad). Escritos para a Eternidade. Brasília: Editora da UNB, 2000. p. 178-179.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

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- 1514 -

Sem o foco na historicidade das lutas, resta apenas a visão de uma evolução automática de progresso, seja aquela burguesa do desenvolvimento e liberalização das leis universais do mercado, ou aquelas marxista que escondem a ação humana sob as estruturas do desenvolvimento das forças produtivas ou mesmo da

19reprodução do capital.

Contra esta visão de progresso, que torna a história uma apologia do presente baseada na continuidade, Walter Benjamin aprendeu a ver no tempo algo diferente de uma linha reta a qual o historicista preenche com uma massa de fatos. Para ele, o continuum temporal era pulsante e estava disponível ao materialista histórico para ser utilizado como uma citation à l'ordre du jour, conforme fica claro em sua sexta tese sobre o conceito de História:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. (...) Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado

20de vencer. (Tese 6)

Benjamin não se iludia com a existência de uma pretensa História atemporal, uma verdade estabelecida e acessível, como as vozes ouvidas por Michelet nos arquivos, esperando pelo resgate do historiador. O crítico alemão sabia que a História é refeita a cada presente e que cada tempo apropria-se dela como bem entende. Desta maneira, ele dizia que era preciso fazer “saltar pelos ares o continuum da história” e construiu um conceito de tempo no qual o passado não existiu, mas, sim, existe! Ou, em suas palavras, que “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no

21momento em que é conhecido” (Tese 5). Desta maneira, Benjamin “(...) funda um conceito de presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do

22messiânico” (Apêndice 1). O materialista histórico (...) reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de o u t r o m o d o , d e u m a o p o r t u n i d a d e revolucionária de lutar por um passado

19Penso especialmente na teoria stalinista da evolução linear dos modos de produção ou, por outro lado, no trabalho de autores como Moishe Postone que afirmam que o pensamento marxiano não identificava o sujeito com o proletariado ou a humanidade, mas sim com o capital, esterilizando o poder revolucionário de um pensamento voltado para a ação. Ver POSTONE, Moishe. Rethinking Marx's Critical Theory In: ______ et Alii. History and Heteronomy. Critical Essays. Tóquio:UTCP, 2009. p. 31-48.20BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 224-225.21Idem, p. 224.22Idem, p. 232.

oprimido. Ele aproveita a oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história (...). O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas,

23mas insípidas. (Tese 17).

No que nos parece o ápice de sua percepção temporal, Walter Benjamin produz um encontro histórico entre gerações e gerações de oprimidos que se unem na luta pela redenção:

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista

24histórico sabe disso. (Teses 2)

Toda esta introdução acerca do caráter do conhecimento histórico me foi imposta pela necessária reflexão sobre os acontecimentos ocorridos durante o início do ano de 2011, no que se convencionou chamar de “Primavera Árabe”, que teve o Egito como centro gravitacional. Para as camadas populares egípcias, a Praça Tahir se tornou local do “encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa”.

Como egiptólogo esforçado e pretenso materialista histórico, foi impossível não buscar nos “estilhaços messiânicos” a fixação da imagem de um “sopro de ar que foi respirado” há mais de 4000 anos, na única revolta popular bem documentada do período faraônico.

A principal fonte para o estudo dos movimentos populares no Egito Antigo foi publicada, em 1909, por Alan Gardiner, sob o título de As Admoestações de um Sábio Egípcio, proveniente do texto do recto do Papiro Leiden 344, encontrado na região de Mênfis e datado do final do primeiro milênio a.C. Logo de início, entendeu-se, a partir das suas características gramaticais, tratar-se de uma cópia tardia de um texto anterior, que a maioria dos egiptólogos atualmente localiza no espaço de tempo conhecido como Primeiro Período Intermediário, no final do III° Milênio a.C..

O Primeiro Período Intermediário (2181-2055 a.C.) foi marcado pelo enfraquecimento da monarquia faraônica e a descentralização do governo egípcio como havia existido no Reino Antigo. Tais mudanças parecem ter sido causadas por uma revolta popular acompanhada da invasão de asiáticos no Delta, conforme referência do próprio Papiro Leiden 344. Para o egiptólogo Moreno Garcia: “O papel dos “períodos intermediários” para o historiador é o de lentes que ampliam e põem em

23Idem, p. 231.24Idem, p. 223.

evidência os elementos subjacentes de fratura, de crise, de transformação, presentes na sociedade, mas que

25aparecem citados raramente nas fontes oficiais”.Dez anos após sua primeira publicação, as

“Admoestações...” já começaram a passar por um processo de revisionismo que afirmava o caráter não-histórico do texto. Até o final do século passado, alguns egiptólogos, como Miriam Lichtheim, sustentavam que a obra era apenas um exercício puramente literário que refletia o par ordem/caos, central na concepção de mundo

26 egípcia. Tudo isto por tratar-se de um discurso de inversão social, incomum em uma sociedade em que uma classe dominante constituída por no máximo 1% da população produzia fontes escritas.

É importante fazer esta discussão, porque a gigantesca maioria dos documentos egípcios retrata um estado de ordem social a partir de uma perspectiva idealizada de continuidade ordeira, o que é explicado não somente por uma visão ideológica de classe, mas também por um fator conjunto: o fato de que as escrituras tinham caráter mágico. Para os egípcios escrever sobre a ordem era, também, uma forma de manter Maat, a deusa-conceito de ordem, justiça, verdade e medida, responsável pela continuidade do universo tal como existia.

O supramencionado processo de revisionismo historiográfico pelo qual passaram “As Admoestações...” nada mais é, portanto, do que algo corriqueiro no campo de História Antiga e Medieval, a saber, a confusão entre a escassez de fontes provenientes das camadas populares e a inexistência de qualquer manifestação destas. Nas palavras de Walter Benjamin, este tipo de pensamento cria uma imagem de passado apropriada pelo

27conformismo, vazia e homogênea (Tese 14).

Um materialista histórico interessado em 28“escovar a história a contrapelo” (Tese 7) não pode

aceitar a inexistência de conflitos sociais em uma civilização que durou cerca de 3000 anos, por mais forte que seja o poder do consenso criado pela ideologia religiosa. Tampouco é aceitável responsabilizar apenas agentes exógenos, como invasões estrangeiras, pelos períodos de intensa modificação social. Ademais, há argumentos suficientes para crer na veracidade dos eventos descritos no texto do Papiro Leiden 344,

29conforme foi demonstrado por Ciro Cardoso.Não é novidade que, a exemplo de qualquer outra

sociedade pré-capitalista, o Antigo Egito era eminentemente agrário. Com um meio ambiente altamente propício para o cultivo, a produção egípcia era marcada por um baixo nível de desenvolvimento técnico e tecnológico das forças produtivas, compensado pela abundância e intenso controle da força de trabalho.

Já há muito tempo, criticou-se devidamente o conceito de Modo de Produção Asiático conforme

30elaborado por Marx e Engels. A atividade estatal concentrava-se nos censos de terras e trabalhadores, bem como na tributação tanto do excedente de produção quanto de trabalho, que era feita de forma extremamente violenta e penosa para os camponeses. São comuns nas cenas de tumbas imagens de lavradores diante de escribas recebendo castigos físicos em caso de insuficiência no pagamento de cereais. Geralmente, as agressões consistiam em espancamento com bastões de madeira nas plantas dos pés ou nas costas.

Toda essa repressão terminou em rebelião popular no final do Reino Antigo. O texto das “Admoestações...” foi atribuído a um sábio egípcio conhecido como Ipu-Ur, que detinha o cargo de “chefe dos cantores”, a julgar por outro documento da mesma época, conhecido como “fragmento Daressy”.

As circunstâncias iniciais da revolta popular descrita no Papiro Leiden 344 não são relatadas. O egiptólogo José Carlos Reyes afirma que a perda de força do Estado perante os nobres locais, que abusavam dos privilégios sobre a população, teria levado, em conjunto

31com a crise econômica conjuntural, à rebelião.O texto das “Admoestações...” é composto por

trechos em prosa e outros em verso e se concentra em alguns eixos temáticos como, por exemplo: a oposição entre um passado glorioso e um presente em desordem; a questão da traição das forças mercenárias estrangeiras e a invasão da região do Delta; a inversão social entre ricos e pobres; o ataque às instituições; o vandalismo e a

32pilhagem.

O estado de violência e desordem fica bem expresso no trecho seguinte:

(...) o país está cheio de bandos (revoltosos),e para lavrar um homem leva o seu escudo.(...) Em verdade (...)o crime alastrou-se e não há homens como antigamente.Em verdade os ladrões [estão] por toda parte,os criados levam o que encontram.Em verdade o Nilo inunda (mas) ninguém lavra para si(pois) todos dizem “Não sabemos o que sucederá

33ao país”.

No caso do eixo de inversão social, que é mais importante para o propósito desta comunicação, há uma exaltação dos pobres em contraposição à humilhação dos ricos e à tomada de bens dos segundos pelos primeiros.

Em verdade os pobres passaram a exibir luxo, e o que não podia ter sandálias possui riqueza.Em verdade os criados estão vorazes

25MORENO GARCIA, Juan Carlos. El Egipto en el Imperio Antiguo. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2004. p. 12.26LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. Vol. 1. Berkley: University of California Press, 1975. p. 149-150.27BENJAMIN, op. cit., p. 14.28Idem, p. 225.29CARDOSO, Ciro. Violência e Política no Antigo Egito. Conferência apresentada no Ciclo de Debates do Laboratório de História Antiga da UFRJ. Rio de Janeiro: 2010.

30Um dos exemplos publicados em português é CARDOSO, Ciro, BOUZON, Emanuel & TUNES, Cássio. Modo de Produção Asiático. Nova Visita a um Velho Conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990.31REYES, José Carlos Castañeda. Sociedad Antigua y Respuesta Popular. Movimentos Sociales en Egipto Antiguo. Cidade do México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2003. p. 128-129.32Alguns destes eixos temáticos foram estudados, em seus aspectos literários, em JOÃO, Maria Thereza. “As Admoestações de Ipu-Ur: Reflexões sobre a Sociedade Egípcia do Primeiro Período Intermediário.”. NEARCO. N. 1. Ano II. Rio de Janeiro, 2009.33ARAÚJO, Emanuel (Org. e Trad). Escritos para a Eternidade. Brasília: Editora da UNB, 2000. p. 178-179.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

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e o poderoso não compartilha [de alegria] com sua gente. (…) Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam;Cada cidade diz: “Expulsemos os poderosos!” (…)Não há remédio para isso, As senhoras sofrem como criadas, (…)Eis que as senhoras dormem em tábuasE os notáveis no celeiro,[mas] o homem que nem dormia em cubículo possui uma cama.Eis que o rico se deita com sede,e o que esmolava sobras tem bilhas que

34transbordam de cerveja.

Ainda que o texto se refira em alguns momentos aos artesãos, aparentemente, os protagonistas do movimento popular foram os camponeses. Há menções à conquista de terras, à tomada de grãos e ao não pagamento de tributos.

Em verdade [desde] Elefantina [até] Tis [ ] não se paga imposto por causa do tumulto. Há falta de grãos, carvão e madeiras (...).Em verdade acabou o grão em toda parte, (...)

35Em verdade os escribas de esteiraTêm seus escritos destruídosO grão do Egito é [agora] de quem diz: “Chego e pego”. (...)Eis que o pobre em terra ficou ricoe o que tinha propriedades nada tem (...)Eis que aquele que não tinha pão possui celeiroe sua despensa está cheia de coisas dos outros. (...)Eis que aquele que não tinha grãos possui celeirose o que pedia grão emprestado [agora empresta] (...)[Eis que aquele que computava] a colheita nada

36sabe sobre ela, (...).

Como último eixo abordado neste artigo, cabem as menções aos ataques a instituições estatais, expressos no trecho abaixo:

Falta ouro, esgotaram-se as matérias-primas de todos os ofícios. O que pertencia ao Palácio foi saqueado. (...)Diz-se: “Maldito o Lugar dos Segredos!”[pois agora] pertence [tanto] aos que não o conheciam [quanto] aos que o conhecem (...)Em verdade os documentos do Grande

37Baluarte foram roubados,seus segredos revelados.Em verdade as fórmulas mágicas foram divulgadas,tornaram-se ineficazes porque são repetidas por todo mundo.Em verdade as repartições [públicas] foram abertase levados seus arquivos (...)

38Os mistérios da realeza, só conhecidos pelo faraó.39ARAÚJO, Emanuel. Op. Cit.40Sobre a teoria de um governo popular, ver REYES, op. cit., p. 139-145.41BENJAMIN, Passagens, op. cit. Ver especialmente as passagens N2,2; N9a,5; N9a, 6; N10a,1; N11a,1. p. 436-519.

34Idem, p. 177-191.35Funcionários responsáveis pelo cadastro das colheitas.36ARAÚJO, op. cit,37Ao que tudo indica tratava-se de um tribunal (talvez uma prisão também) destinado a casos ligados aos camponeses e escravos.

Em verdade as leis do Grande Baluarte são jogadas fora,As pessoas pisam-nas pelos lugares públicos e os mendigos rasgam-nas nas ruas. (...)Em verdade invade-se o Grande Baluarte,os mendigos entram e saem [à vontade] nas grandes casas [de Justiça]. (...)Eis agora que aconteceu algo jamais ocorrido:O rei foi pilhado por mendigos. (...)Eis que se chegou a privar o país da realezapor alguns aventureiros desvairados (...)

38Eis que o segredo do país , cujos limites eram desconhecidos,se tornou público e a Residência [pode] ser arrasada num instante. (...)Eis que a Residência tem medo da penúria,Os homens levantam-se em agitações e não há

39resistência.

A partir de alguns fragmentos supracitados, José Carlos Reyes vê como indubitável a existência de uma tomada popular do governo. Tal grupo popular parece ter se tornado dirigente de pelo menos uma parte do Egito, ainda que tenha entrado em crise logo em seguida, em decorrência da impossibilidade de resistir aos ataques dos nobres e funcionários provinciais do restante do país.

A primeira medida dos dirigentes do governo popular teria sido a divulgação dos “segredos do país”, ou seja, os mecanismos de administração pública e seus registros oficiais. Para isto, é possível que se tenha contado com a ajuda de funcionários menores, incorporados ao movimento.

A crise, todavia, não foi contida pelo governo popular, incapaz de resolver o problema da fome e da insegurança derivada dos conflitos internos e ataques estrangeiros. Estima-se, pelo contrário, que tenha produzido, aos poucos, a deserção de alguns grupos que apoiavam a insurreição, como artesãos, que viram piorar a sua situação com a escassez de matérias-primas e sem um governo investindo em grandes obras.

Ainda que seja muito difícil precisar o intervalo temporal ocupado por este governo popular, é provável que tenha durado entre 70 e 75 dias. Em seguida, sofreu com a

40repressão coordenada pelos normarcas e grandes nobres.

Como tentei demonstrar, a concepção de progresso tem levado os historiadores a uma defesa – consciente ou não – de uma ideologia burguesa. Atuando em conjunto, história, racionalização e justificativa do presente e projeto de futuro criam o mundo atual como apoteose do “fim da história”, naturalizando uma continuidade artificial que mostra todos os momentos de ruptura como barreiras superadas.

Como bem apontou Benjamin, o materialismo histórico deve demonstrar que não escolhe aleatoriamente seus objetos e abandonar o conceito de progresso em troca da idéia de uma “atualização”, explodindo a continuidade histórica reificada

41impregnando-a com o presente.

Durante as mobilizações populares na Praça Tahir e por todo o Egito, egiptólogos do mundo, cobertos pela mídia internacional, demonstraram acima de tudo suas preocupações com as “relíquias sagradas” do país, ou seja, os documentos arqueológicos da vasta cultura material faraônica. Condenou-se a invasão de museus e templos por desordeiros interessados em saquear o patrimônio histórico da humanidade. Foi com isso que os historicistas se preocuparam!

Enquanto isto, os materialistas históricos observavam com admiração o levantar de um povo oprimido. Não é uma questão de desprezo pelo patrimônio material, mas, sim, de uma valorização do patrimônio imaterial do qual aquela população se apoderava, sua verdadeira “relíquia sagrada”. Mais do que cacos de cerâmica milenares, tão valorizados pelos arqueólogos, as camadas populares demonstravam interesse nos “estilhaços messiânicos” descritos por Benjamin. Estes estão ao alcance de qualquer um, cabe a nós o trabalho cuidadoso de reuni-los na luta pela redenção daqueles homens e mulheres que derramaram sangue na mesma areia egípcia há mais de 4000 anos atrás.

Artigo recebido em 17.2.2012Aprovado em 30.5.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

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e o poderoso não compartilha [de alegria] com sua gente. (…) Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam;Cada cidade diz: “Expulsemos os poderosos!” (…)Não há remédio para isso, As senhoras sofrem como criadas, (…)Eis que as senhoras dormem em tábuasE os notáveis no celeiro,[mas] o homem que nem dormia em cubículo possui uma cama.Eis que o rico se deita com sede,e o que esmolava sobras tem bilhas que

34transbordam de cerveja.

Ainda que o texto se refira em alguns momentos aos artesãos, aparentemente, os protagonistas do movimento popular foram os camponeses. Há menções à conquista de terras, à tomada de grãos e ao não pagamento de tributos.

Em verdade [desde] Elefantina [até] Tis [ ] não se paga imposto por causa do tumulto. Há falta de grãos, carvão e madeiras (...).Em verdade acabou o grão em toda parte, (...)

35Em verdade os escribas de esteiraTêm seus escritos destruídosO grão do Egito é [agora] de quem diz: “Chego e pego”. (...)Eis que o pobre em terra ficou ricoe o que tinha propriedades nada tem (...)Eis que aquele que não tinha pão possui celeiroe sua despensa está cheia de coisas dos outros. (...)Eis que aquele que não tinha grãos possui celeirose o que pedia grão emprestado [agora empresta] (...)[Eis que aquele que computava] a colheita nada

36sabe sobre ela, (...).

Como último eixo abordado neste artigo, cabem as menções aos ataques a instituições estatais, expressos no trecho abaixo:

Falta ouro, esgotaram-se as matérias-primas de todos os ofícios. O que pertencia ao Palácio foi saqueado. (...)Diz-se: “Maldito o Lugar dos Segredos!”[pois agora] pertence [tanto] aos que não o conheciam [quanto] aos que o conhecem (...)Em verdade os documentos do Grande

37Baluarte foram roubados,seus segredos revelados.Em verdade as fórmulas mágicas foram divulgadas,tornaram-se ineficazes porque são repetidas por todo mundo.Em verdade as repartições [públicas] foram abertase levados seus arquivos (...)

38Os mistérios da realeza, só conhecidos pelo faraó.39ARAÚJO, Emanuel. Op. Cit.40Sobre a teoria de um governo popular, ver REYES, op. cit., p. 139-145.41BENJAMIN, Passagens, op. cit. Ver especialmente as passagens N2,2; N9a,5; N9a, 6; N10a,1; N11a,1. p. 436-519.

34Idem, p. 177-191.35Funcionários responsáveis pelo cadastro das colheitas.36ARAÚJO, op. cit,37Ao que tudo indica tratava-se de um tribunal (talvez uma prisão também) destinado a casos ligados aos camponeses e escravos.

Em verdade as leis do Grande Baluarte são jogadas fora,As pessoas pisam-nas pelos lugares públicos e os mendigos rasgam-nas nas ruas. (...)Em verdade invade-se o Grande Baluarte,os mendigos entram e saem [à vontade] nas grandes casas [de Justiça]. (...)Eis agora que aconteceu algo jamais ocorrido:O rei foi pilhado por mendigos. (...)Eis que se chegou a privar o país da realezapor alguns aventureiros desvairados (...)

38Eis que o segredo do país , cujos limites eram desconhecidos,se tornou público e a Residência [pode] ser arrasada num instante. (...)Eis que a Residência tem medo da penúria,Os homens levantam-se em agitações e não há

39resistência.

A partir de alguns fragmentos supracitados, José Carlos Reyes vê como indubitável a existência de uma tomada popular do governo. Tal grupo popular parece ter se tornado dirigente de pelo menos uma parte do Egito, ainda que tenha entrado em crise logo em seguida, em decorrência da impossibilidade de resistir aos ataques dos nobres e funcionários provinciais do restante do país.

A primeira medida dos dirigentes do governo popular teria sido a divulgação dos “segredos do país”, ou seja, os mecanismos de administração pública e seus registros oficiais. Para isto, é possível que se tenha contado com a ajuda de funcionários menores, incorporados ao movimento.

A crise, todavia, não foi contida pelo governo popular, incapaz de resolver o problema da fome e da insegurança derivada dos conflitos internos e ataques estrangeiros. Estima-se, pelo contrário, que tenha produzido, aos poucos, a deserção de alguns grupos que apoiavam a insurreição, como artesãos, que viram piorar a sua situação com a escassez de matérias-primas e sem um governo investindo em grandes obras.

Ainda que seja muito difícil precisar o intervalo temporal ocupado por este governo popular, é provável que tenha durado entre 70 e 75 dias. Em seguida, sofreu com a

40repressão coordenada pelos normarcas e grandes nobres.

Como tentei demonstrar, a concepção de progresso tem levado os historiadores a uma defesa – consciente ou não – de uma ideologia burguesa. Atuando em conjunto, história, racionalização e justificativa do presente e projeto de futuro criam o mundo atual como apoteose do “fim da história”, naturalizando uma continuidade artificial que mostra todos os momentos de ruptura como barreiras superadas.

Como bem apontou Benjamin, o materialismo histórico deve demonstrar que não escolhe aleatoriamente seus objetos e abandonar o conceito de progresso em troca da idéia de uma “atualização”, explodindo a continuidade histórica reificada

41impregnando-a com o presente.

Durante as mobilizações populares na Praça Tahir e por todo o Egito, egiptólogos do mundo, cobertos pela mídia internacional, demonstraram acima de tudo suas preocupações com as “relíquias sagradas” do país, ou seja, os documentos arqueológicos da vasta cultura material faraônica. Condenou-se a invasão de museus e templos por desordeiros interessados em saquear o patrimônio histórico da humanidade. Foi com isso que os historicistas se preocuparam!

Enquanto isto, os materialistas históricos observavam com admiração o levantar de um povo oprimido. Não é uma questão de desprezo pelo patrimônio material, mas, sim, de uma valorização do patrimônio imaterial do qual aquela população se apoderava, sua verdadeira “relíquia sagrada”. Mais do que cacos de cerâmica milenares, tão valorizados pelos arqueólogos, as camadas populares demonstravam interesse nos “estilhaços messiânicos” descritos por Benjamin. Estes estão ao alcance de qualquer um, cabe a nós o trabalho cuidadoso de reuni-los na luta pela redenção daqueles homens e mulheres que derramaram sangue na mesma areia egípcia há mais de 4000 anos atrás.

Artigo recebido em 17.2.2012Aprovado em 30.5.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

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18 - - 19

José Ernesto Moura Knust*

odas as comunidades e sociedades forjam na 2

construção da sua identidade uma Cultura Histórica , na qual mitos de origem exercem um papel fundamental. A (ass im reivindicada) Civi l ização Ocidental contemporânea não é exceção à regra – e em sua construção de mitos de origem, o mundo greco-romano desempenhou um papel fundamental. A relação entre esta visão da História Romana como parte constituinte das origens da sociedade moderna e a produção de análises históricas sobre a sociedade romana desde a profissionalização do ofício historiográfico no século XIX é tema de estudos bastante interessantes, e é dentro desta seara que o presente artigo busca se inserir.

Pretendo discutir como a História Econômica feita nos últimos séculos sobre o “período romano” da “história ocidental” se transformou em paralelo com o desenvolvimento de diferentes percepções sobre o mundo contemporâneo, e o papel que a História Romana desempenhou nestas percepções. Escolho a História Econômica porque acredito que ela exerce um papel bastante particular e fundamental na construção da Cultura Histórica em nossa sociedade, por esta ser, acima de tudo, uma sociedade marcada pelo desenvolvimento do Capitalismo.

Como toda reflexão, esta precisa definir seus objetivos e limites. Não serei exaustivo na análise de produções historiográficas dentro do recorte temporal que defino (meados do século XIX até os dias atuais). Tomo como ponto de partida outro mito de origem (desta vez da própria área dos estudos sobre a Economia Antiga), o debate oitocentista entre Primitivistas e Modernistas ocorrido na Alemanha. Em seguida, me volto para os desenvolvimentos a partir da década de 70 na historiografia anglo-saxã, em especial seus últimos quinze anos.

Mesmo dentro destes recortes, não serei exaustivo. A partir de alguns exemplos que considero significativos – e que muitas vezes terão um tratamento

1Uma versão preliminar deste texto foi apresentado no Colóquio Internacional “O Império Romano e suas províncias – a integração e seus limites”, realizado nos dias 28 e 29 de março de 2012 no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Agradeço aos organizadores Carlos Augusto Machado e Fábio Duate Joly pelo convite e pela oportunidade de expor estas minhas ideias. Agradeço também a Sônia Regina Rebel de Araújo, Paulo Henrique Pachá, Fábio Afonso Frizzo e Thiago Nascimento Krause, que leram, comentaram e fizeram importantes sugestões e correções ao texto. *Doutorando no PPGH-UFF e bolsista do CNPq. Membro do Niep-PréK/UFF. E-mail: [email protected]. 2Utilizo neste texto os conceitos de Cultura Histórica e Orientação Histórica como propostos por RÜSEN, Jorn. History: Narration, Interpretation, Orientation. Berghahn Books, 2005.

que poderá ser acusado de superficial – pretendo refletir sobre aspectos políticos de algumas posturas metodológicas. Isto é, mais do que um estudo historiográfico exaustivo este artigo tem em seu cerne uma pretensão crítica.

Visões do Capitalismo, Visões da Economia Romana

Símbolo da importância da História Econômica para a Cultura Histórica de nossa sociedade é o fato de a própria construção deste objeto específico da historiografia ter se realizado no contexto da emergência do Capitalismo na Europa Ocidental – quando o próprio significado da palavra Economia começou a ganhar os

3contornos pelos quais o reconhecemos hoje. Podemos dizer que, assim como o Imperialismo, a Teoria e História Econômicas são filhas do Capitalismo.

Os primeiros nomes da Economia Clássica já esboçavam ideias gerais de uma História Econômica, mas foram os economistas da Escola Histórica Alemã, no século XIX, os responsáveis pelo desenvolvimento das primeiras grandes narrativas sobre o desenvolvimento

4econômico na História. Diante do impacto da expansão econômica capitalista, economistas como Rodbertus e Bücher desenvolveram uma visão evolucionista sobre o desenvolvimento econômico, dividindo-o em estágios históricos específicos. O mundo Greco-Romano faria parte de um estágio inicial, nomeado Economia Doméstica, caracterizado por uma economia primitiva, baseada na produção de subsistência e centrada no Oikos, unidade familiar de produção e consumo.

Este estágio seria seguido por outros dois estágios, o da Economia da Cidade medieval e a Economia Nacional da época industrial. O presente capitalista tornava-se, assim, o cume de um milenar processo de desenvolvimento histórico da sociedade humana. Com esta grande narrativa, a Escola alemã unificava o ideal de progresso iluminista, o evolucionismo social eurocêntrico, e a apologia do capitalismo.

3FINLEY, Moses. A Economia Antiga. Porto: Afrontamento, 1981, p.19-24.4A análise sobre o debate primitivismo - modernismo que desenvolverei aqui segue de perto as análises propostas por BANG, Peter Fibiger. “Antiquity between "Primitivism" and "Modernism"”, Workpaper 53-97, Centre for Cultural Resarch, University of Aarhus, 1997, (www.hum.au.dk/ckulturf/pages/publications/pfb/antiquity.htm acessado em 30/03/2012) e SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. Roma Antiga e o Ocidente Moderno. São Paulo: Edusp, 2005, p. 75-84.

Neste esquema evolucionista, o passado romano reconstruído pelos economistas alemães para seu presente capitalista era primitivo: sua economia era caracterizada a partir da inexistência de elementos presentes no capitalismo. O passado romano desenhado pelos teóricos alemães era uma terra estrangeira para o capitalismo contemporâneo, servia como sua antítese na construção de uma Orientação Histórica apologética ao capitalismo.

Contudo, existia um limite importante para essa visão da Economia Romana. A caracterização primitivista engendrada pela teoria alemã dos estágios econômicos era incongruente com o papel de mito de origem que o mundo Greco-Romano exercia na Cultura Histórica ocidental. Classicistas alemães, em especial o helenista Eduard Meyer, empreenderam uma espécie de “defesa do mundo antigo” frente a tal “primitivização”. Eles pretendiam a construção de outro passado Greco-romano para o presente capitalista – um passado mais moderno, mais capitalista, pois afinal de contas seria impossível que a excelsa civilização ocidental tivesse nascido em outro berço que não o do dinamismo capitalista.

Para o mundo romano, a construção modernizante foi empreendida com bastante êxito por Michail Rostovtzeff. A partir de um importante trabalho de utilização de tipos de fontes até então ignoradas, o historiador russo reconstruiu um passado romano cuja vitalidade econômica se assemelhava em muitos aspectos ao presente capitalista, com burgueses empreendedores enriquecidos desempenhando importante papel nos momentos de maior dinamismo da História Romana, em

5especial entre o final da República e o início do Império.

Por sua vez, portanto, os modernistas associavam a mitificação do mundo Greco-romano com a apologia do capitalismo. E assim surgiu a famosa querela entre primitivistas e modernistas acerca da caracterização da Economia Antiga, tão marcante na Historiografia Econômica sobre o Mundo Romano – mas presente em formas similares nos debates sobre a caracterização de praticamente todas as economias pré-capitalistas, do

6Egito Antigo à Europa Medieval.O elemento central destes debates entre

primitivistas e modernistas – e aqui o caso romano é talvez o mais significativo, mas não único – é a contraposição entre o presente capitalista e o passado que se pretende construir. Identificar nossa realidade econômica como o ponto mais avançado de uma linha evolutiva ou como um aspecto imutável da natureza humana (ou ao menos presente em suas formações sociais mais notáveis na história) – este é o dilema de fundo na querela entre primitivistas e modernistas.

Pode-se dizer que este primeiro round do debate entre primitivistas e modernistas teve como vencedor o lado modernista. Entre o final do século XIX e a década de 60 do século passado, a visão modernista dominou os

5ROSTOVTZEFF, Michail. Social and Economic History of the Roman Empire. Biblo & Tannen Publishers, 1926.6PACHÁ, Paulo Henrique. Formas de Intercâmbio e Dominação: As relações de dependência pessoal no medievo ibérico (séculos IV-VIII). Niterói: PPGH-UFF (dissertação de mestrado), 2012, p.19.

estudos sobre a economia antiga – talvez por apresentar uma visão mais convergente com a visão geral que se tinha sobre o mundo Greco-romano, ou talvez por lidar melhor com as fontes históricas, abundantes no que pareciam exemplos de trocas comerciais e produções

7mercantilizadas.A partir da década de 60, porém, Moses Finley

iniciou uma releitura da história econômica greco-romana crítica ao modernismo, que visava recuperar muitos dos aspectos do primitivismo, especialmente do conceito de Oikos proposto por Karl Bücher. Influenciado também por Karl Polanyi e Max Weber, Finley afirmava que os antigos não possuíam uma economia autônoma da sociedade e que a cidade antiga era essencialmente um centro de consumo e não de

8produção.Como muito bem aponta Peter Bang, as teses de

Finley surgiam no contexto do choque pós-colonial, um período no qual ideias críticas ao Ocidente capitalista ganharam força. Nesta época, os povos não-europeus, que durante o período áureo do imperialismo neocolonialista haviam sido repetidamente taxados de primitivos, atrasados e bárbaros, passaram a ser analisados de maneira mais positiva e os estudos antropológicos sobre esses povos ganharam maior

9influência. Caracterizar as sociedades fundadoras do mundo ocidental, Grécia e Roma, a partir de insights produzidos por esses estudos deixou de ser algo tão assombroso ou reprovável dentro do senso comum historiográfico e as teses de Finley tiveram amplo espaço para circulação.

A partir da influência da obra de Finley, o modernismo perdeu muito espaço na História Econômica dedicada ao mundo antigo. Os historiadores da área passaram a ter mais atenção quanto à necessidade de criar modelos explicativos que fugissem de uma simples comparação quantitativa entre o passado romano e o presente capitalista.

“Por que voltar mais uma vez a este cansado e envelhecido debate?”, podem estar se perguntando alguns leitores a esta altura do texto. É uma pergunta pertinente. Propala-se aos quatro ventos que este é um debate superado (ou ao menos que se deveria superar), e que os elementos primitivistas ou modernistas cederam (ou deveriam ceder) lugar a novas abordagens. Concordo com os presentes do subjuntivo, mas tenho minhas reticências quanto aos presentes do indicativo.

Decerto que os termos atuais das reflexões sobre a História Econômica romana avançaram muito – e não só quando comparados aos debates oitocentistas entre Bücher e Meyer, mas mesmo se comparados com os termos do debate na época de Finley. Contudo, o ponto nodal do debate sobre a História Econômica romana (e toda historiografia, na verdade) permanece o mesmo, posto que inescapável. Ainda é, e sempre será, a relação entre o presente vivido e o passado reconstruído o ponto central de qualquer reflexão histórica. E quanto a este

7SCHIAVONE, op.cit., p.82.8FINLEY op.cit. passim.9BANG, op.cit..

T

Um passado romano para um presente capitalista:A Economia Romana em dois séculos

1de História Econômica

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (18-22) Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

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José Ernesto Moura Knust*

odas as comunidades e sociedades forjam na 2

construção da sua identidade uma Cultura Histórica , na qual mitos de origem exercem um papel fundamental. A (ass im reivindicada) Civi l ização Ocidental contemporânea não é exceção à regra – e em sua construção de mitos de origem, o mundo greco-romano desempenhou um papel fundamental. A relação entre esta visão da História Romana como parte constituinte das origens da sociedade moderna e a produção de análises históricas sobre a sociedade romana desde a profissionalização do ofício historiográfico no século XIX é tema de estudos bastante interessantes, e é dentro desta seara que o presente artigo busca se inserir.

Pretendo discutir como a História Econômica feita nos últimos séculos sobre o “período romano” da “história ocidental” se transformou em paralelo com o desenvolvimento de diferentes percepções sobre o mundo contemporâneo, e o papel que a História Romana desempenhou nestas percepções. Escolho a História Econômica porque acredito que ela exerce um papel bastante particular e fundamental na construção da Cultura Histórica em nossa sociedade, por esta ser, acima de tudo, uma sociedade marcada pelo desenvolvimento do Capitalismo.

Como toda reflexão, esta precisa definir seus objetivos e limites. Não serei exaustivo na análise de produções historiográficas dentro do recorte temporal que defino (meados do século XIX até os dias atuais). Tomo como ponto de partida outro mito de origem (desta vez da própria área dos estudos sobre a Economia Antiga), o debate oitocentista entre Primitivistas e Modernistas ocorrido na Alemanha. Em seguida, me volto para os desenvolvimentos a partir da década de 70 na historiografia anglo-saxã, em especial seus últimos quinze anos.

Mesmo dentro destes recortes, não serei exaustivo. A partir de alguns exemplos que considero significativos – e que muitas vezes terão um tratamento

1Uma versão preliminar deste texto foi apresentado no Colóquio Internacional “O Império Romano e suas províncias – a integração e seus limites”, realizado nos dias 28 e 29 de março de 2012 no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Agradeço aos organizadores Carlos Augusto Machado e Fábio Duate Joly pelo convite e pela oportunidade de expor estas minhas ideias. Agradeço também a Sônia Regina Rebel de Araújo, Paulo Henrique Pachá, Fábio Afonso Frizzo e Thiago Nascimento Krause, que leram, comentaram e fizeram importantes sugestões e correções ao texto. *Doutorando no PPGH-UFF e bolsista do CNPq. Membro do Niep-PréK/UFF. E-mail: [email protected]. 2Utilizo neste texto os conceitos de Cultura Histórica e Orientação Histórica como propostos por RÜSEN, Jorn. History: Narration, Interpretation, Orientation. Berghahn Books, 2005.

que poderá ser acusado de superficial – pretendo refletir sobre aspectos políticos de algumas posturas metodológicas. Isto é, mais do que um estudo historiográfico exaustivo este artigo tem em seu cerne uma pretensão crítica.

Visões do Capitalismo, Visões da Economia Romana

Símbolo da importância da História Econômica para a Cultura Histórica de nossa sociedade é o fato de a própria construção deste objeto específico da historiografia ter se realizado no contexto da emergência do Capitalismo na Europa Ocidental – quando o próprio significado da palavra Economia começou a ganhar os

3contornos pelos quais o reconhecemos hoje. Podemos dizer que, assim como o Imperialismo, a Teoria e História Econômicas são filhas do Capitalismo.

Os primeiros nomes da Economia Clássica já esboçavam ideias gerais de uma História Econômica, mas foram os economistas da Escola Histórica Alemã, no século XIX, os responsáveis pelo desenvolvimento das primeiras grandes narrativas sobre o desenvolvimento

4econômico na História. Diante do impacto da expansão econômica capitalista, economistas como Rodbertus e Bücher desenvolveram uma visão evolucionista sobre o desenvolvimento econômico, dividindo-o em estágios históricos específicos. O mundo Greco-Romano faria parte de um estágio inicial, nomeado Economia Doméstica, caracterizado por uma economia primitiva, baseada na produção de subsistência e centrada no Oikos, unidade familiar de produção e consumo.

Este estágio seria seguido por outros dois estágios, o da Economia da Cidade medieval e a Economia Nacional da época industrial. O presente capitalista tornava-se, assim, o cume de um milenar processo de desenvolvimento histórico da sociedade humana. Com esta grande narrativa, a Escola alemã unificava o ideal de progresso iluminista, o evolucionismo social eurocêntrico, e a apologia do capitalismo.

3FINLEY, Moses. A Economia Antiga. Porto: Afrontamento, 1981, p.19-24.4A análise sobre o debate primitivismo - modernismo que desenvolverei aqui segue de perto as análises propostas por BANG, Peter Fibiger. “Antiquity between "Primitivism" and "Modernism"”, Workpaper 53-97, Centre for Cultural Resarch, University of Aarhus, 1997, (www.hum.au.dk/ckulturf/pages/publications/pfb/antiquity.htm acessado em 30/03/2012) e SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. Roma Antiga e o Ocidente Moderno. São Paulo: Edusp, 2005, p. 75-84.

Neste esquema evolucionista, o passado romano reconstruído pelos economistas alemães para seu presente capitalista era primitivo: sua economia era caracterizada a partir da inexistência de elementos presentes no capitalismo. O passado romano desenhado pelos teóricos alemães era uma terra estrangeira para o capitalismo contemporâneo, servia como sua antítese na construção de uma Orientação Histórica apologética ao capitalismo.

Contudo, existia um limite importante para essa visão da Economia Romana. A caracterização primitivista engendrada pela teoria alemã dos estágios econômicos era incongruente com o papel de mito de origem que o mundo Greco-Romano exercia na Cultura Histórica ocidental. Classicistas alemães, em especial o helenista Eduard Meyer, empreenderam uma espécie de “defesa do mundo antigo” frente a tal “primitivização”. Eles pretendiam a construção de outro passado Greco-romano para o presente capitalista – um passado mais moderno, mais capitalista, pois afinal de contas seria impossível que a excelsa civilização ocidental tivesse nascido em outro berço que não o do dinamismo capitalista.

Para o mundo romano, a construção modernizante foi empreendida com bastante êxito por Michail Rostovtzeff. A partir de um importante trabalho de utilização de tipos de fontes até então ignoradas, o historiador russo reconstruiu um passado romano cuja vitalidade econômica se assemelhava em muitos aspectos ao presente capitalista, com burgueses empreendedores enriquecidos desempenhando importante papel nos momentos de maior dinamismo da História Romana, em

5especial entre o final da República e o início do Império.

Por sua vez, portanto, os modernistas associavam a mitificação do mundo Greco-romano com a apologia do capitalismo. E assim surgiu a famosa querela entre primitivistas e modernistas acerca da caracterização da Economia Antiga, tão marcante na Historiografia Econômica sobre o Mundo Romano – mas presente em formas similares nos debates sobre a caracterização de praticamente todas as economias pré-capitalistas, do

6Egito Antigo à Europa Medieval.O elemento central destes debates entre

primitivistas e modernistas – e aqui o caso romano é talvez o mais significativo, mas não único – é a contraposição entre o presente capitalista e o passado que se pretende construir. Identificar nossa realidade econômica como o ponto mais avançado de uma linha evolutiva ou como um aspecto imutável da natureza humana (ou ao menos presente em suas formações sociais mais notáveis na história) – este é o dilema de fundo na querela entre primitivistas e modernistas.

Pode-se dizer que este primeiro round do debate entre primitivistas e modernistas teve como vencedor o lado modernista. Entre o final do século XIX e a década de 60 do século passado, a visão modernista dominou os

5ROSTOVTZEFF, Michail. Social and Economic History of the Roman Empire. Biblo & Tannen Publishers, 1926.6PACHÁ, Paulo Henrique. Formas de Intercâmbio e Dominação: As relações de dependência pessoal no medievo ibérico (séculos IV-VIII). Niterói: PPGH-UFF (dissertação de mestrado), 2012, p.19.

estudos sobre a economia antiga – talvez por apresentar uma visão mais convergente com a visão geral que se tinha sobre o mundo Greco-romano, ou talvez por lidar melhor com as fontes históricas, abundantes no que pareciam exemplos de trocas comerciais e produções

7mercantilizadas.A partir da década de 60, porém, Moses Finley

iniciou uma releitura da história econômica greco-romana crítica ao modernismo, que visava recuperar muitos dos aspectos do primitivismo, especialmente do conceito de Oikos proposto por Karl Bücher. Influenciado também por Karl Polanyi e Max Weber, Finley afirmava que os antigos não possuíam uma economia autônoma da sociedade e que a cidade antiga era essencialmente um centro de consumo e não de

8produção.Como muito bem aponta Peter Bang, as teses de

Finley surgiam no contexto do choque pós-colonial, um período no qual ideias críticas ao Ocidente capitalista ganharam força. Nesta época, os povos não-europeus, que durante o período áureo do imperialismo neocolonialista haviam sido repetidamente taxados de primitivos, atrasados e bárbaros, passaram a ser analisados de maneira mais positiva e os estudos antropológicos sobre esses povos ganharam maior

9influência. Caracterizar as sociedades fundadoras do mundo ocidental, Grécia e Roma, a partir de insights produzidos por esses estudos deixou de ser algo tão assombroso ou reprovável dentro do senso comum historiográfico e as teses de Finley tiveram amplo espaço para circulação.

A partir da influência da obra de Finley, o modernismo perdeu muito espaço na História Econômica dedicada ao mundo antigo. Os historiadores da área passaram a ter mais atenção quanto à necessidade de criar modelos explicativos que fugissem de uma simples comparação quantitativa entre o passado romano e o presente capitalista.

“Por que voltar mais uma vez a este cansado e envelhecido debate?”, podem estar se perguntando alguns leitores a esta altura do texto. É uma pergunta pertinente. Propala-se aos quatro ventos que este é um debate superado (ou ao menos que se deveria superar), e que os elementos primitivistas ou modernistas cederam (ou deveriam ceder) lugar a novas abordagens. Concordo com os presentes do subjuntivo, mas tenho minhas reticências quanto aos presentes do indicativo.

Decerto que os termos atuais das reflexões sobre a História Econômica romana avançaram muito – e não só quando comparados aos debates oitocentistas entre Bücher e Meyer, mas mesmo se comparados com os termos do debate na época de Finley. Contudo, o ponto nodal do debate sobre a História Econômica romana (e toda historiografia, na verdade) permanece o mesmo, posto que inescapável. Ainda é, e sempre será, a relação entre o presente vivido e o passado reconstruído o ponto central de qualquer reflexão histórica. E quanto a este

7SCHIAVONE, op.cit., p.82.8FINLEY op.cit. passim.9BANG, op.cit..

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Um passado romano para um presente capitalista:A Economia Romana em dois séculos

1de História Econômica

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (18-22) Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

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ponto central, os termos da querela entre primitivistas e modernistas ainda reverberam em parte relevante da atual produção historiográfica.

Triunfalismo Capitalista e NeomodernismoPara exemplificar o que afirmo, nos voltemos

para a produção historiográfica da área neste início de século XXI. Chama à atenção a produção de alguns historiadores que acredito que possam ser chamados, sem qualquer receio de estar se cometendo uma injustiça, de neomodernistas. E, como veremos, esse retorno do modernismo está intimamente ligado ao contexto de transformações de nosso presente capitalista nas duas últimas décadas.

No início da década passada um dos mais importantes nomes da New Economic History, Peter Temin, começou a publicar algumas reflexões sobre a Economia Romana em uma série de artigos muito lida e citada entre historiadores que se dedicam ao tema. Em síntese, todos os artigos de Temin têm como objetivo mostrar que a Economia Romana era integrada em um sistema de mercado unificado, geograficamente centrado no mar Mediterrâneo. Para tentar demonstrar isso ele analisa o comportamento econômico da elite, o “mercado” de trabalho, a circulação de trigo, o sistema

10creditício entre outros elementos da Economia Romana.

O sucesso destes artigos de Temin entre alguns estudiosos da Economia Romana pode ser mais facilmente explicado pelo respeito à carreira de tão renomado pesquisador, ao entusiasmo ao vê-lo oferecendo reflexões sobre nossa área de pesquisa e a um contexto histórico e historiográfico favorável a interpretações apologéticas ao capitalismo. O conteúdo em si das reflexões de Temin é bastante contestável. Boa parte de suas proposições faz o debate recuar aos termos anteriores a Finley e, com muita razão, Jean Andreau afirmou recentemente que estes artigos de Temin são uma “volta a Rostovtzeff” (sem os méritos deste, cabe dizer).

O que fica claro nas entrelinhas dos artigos de Temin é a mesma incapacidade modernista de aceitar que o glorioso mundo antigo tivesse uma economia que não fosse pujante e eficiente – o que obviamente, para um economista neoclássico como Temin, só pode ser compatível com uma Economia de Mercado. E por isso Temin faz um esforço hercúleo – mas não muito bem sucedido – de tentar nos convencer que a Economia romana só poderia ser uma Economia de Mercado. As diferenças entre o passado romano e o presente capitalista seriam resultado de meros limites tecnológicos nos meios de transporte, que impediam uma circulação eficiente de bens e informações, limitando geograficamente o mundo inserido no grande mercado mediterrânico, o centro da economia romana.

Pode-se dizer, porém, que Temin é um caso isolado, e que apesar de citado e considerado por nomes

importantes da historiografia anglo-saxã especializada na Economia Romana, seu trabalho não reflete o atual estado da arte. O mesmo não se pode dizer, contudo, do neoinstitucionalismo. Muito influente entre economistas e historiadores econômicos nos Estados Unidos e na Inglaterra desde meados da década de 80, a partir dos trabalhos do ganhador do prêmio Nobel de Economia Douglass North, esta corrente da Teoria Econômica chegou com algum atraso aos estudiosos dedicados ao mundo antigo, mas há alguns anos tornou-se hegemônica no mundo anglo-saxão. Sua onipresença no Cambridge Economic History of Graeco-Roman World, lançado em

112008, mostra tal hegemonia.North e os entusiastas do neoinstitucionalismo

defendem a ênfase no estudo das Instituições para entender as diferentes configurações que a Economia conheceu em sua história. Segundo eles, as interações sociais seriam inviáveis sem a existência de instituições, pois os custos de transação seriam proibitivos – como interagir com uma pessoa sem saber as condições sob as quais tal interação ocorrerá? Por isso, os indivíduos criam instituições, que nada mais são do que constrangimentos informais e regras formais e suas características compulsórias para os agentes envolvidos. Estas instituições variam e se transformam ao longo do tempo, criando realidades econômicas diversas no tempo e no

12espaço.

Muitas pesquisas vêm utilizando este corpo teórico para analisar o problema do crescimento econômico no Império Romano – um tema recorrente no debate nos últimos anos que, vale a pena frisar, é uma herança direta do debate entre primitivistas e modernistas. O exemplo paradigmático deste uso é o trabalho de Dennis Kehoe sobre a relação entre o Direito Romano e a Economia Rural, no qual ele tenta mostrar como o desenvolvimento de instituições jurídicas para as relações agrárias permitia uma melhor performance

13econômica no mundo romano.Tanto os trabalhos de Temin quanto a onda

neoinstitucionalista são frutos de um mesmo contexto histórico. O período entre a queda do Muro de Berlim e a crise econômica de 2008 será lembrado na história pelo triunfalismo capitalista (e o pobre Fukuyama e seu fim da História que tão pouco durou). Como afirma Peter Fibiger Bang, o Ocidente se recuperara do choque pós-colonial e não acreditava mais em possíveis soluções vindas do terceiro mundo para os problemas da sociedade

14de mercado. Pelo contrário, a sociedade de mercado passou a ser apontada como a solução para os problemas do terceiro mundo – e referência inescapável para os historiadores.

11SCHEIDEL, Walter, MORRIS, Ian, SALLER, Richard (eds.). The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge University Press, 2008.12Os dois principais livros de Douglass North são: Structure and Change in Economic History. W.W.Norton & Company, 1981; e Institutions, Institutional Change and Economic Perfomance. Cambridge University Press, 1990.13KEHOE, Dennis, Law and the rural economy in the Roman empire, Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2007.14BANG, op.cit.

10Os artigos de Temin considerados nesta análise são: “A Market Economy in the Early Roman Empire,” Journal of Roman Studies, 91, 2001; “The Labor Market of the Early Roman Empire,” Journal of Interdisciplinary History, 34, 2004; “The Organization of the Grain Trade in the Early Roman Empire” (com David Kessler), Economic History Review, 60, 2007.

Ao nos lembrarmos do sentido original da teoria neoinstitucional, é fácil perceber tal contextualização histórica. A preocupação fundamental dos principais trabalhos de Douglass North é o estudo do problema do desenvolvimento histórico. Tanto o desenvolvimento econômico na história quanto o subdesenvolvimento do Terceiro Mundo são problemas fundamentais para North. Dentro desta problemática, sua questão fundadora é “como explicar as diferentes performances econômicas na história?”. A resposta de North a esta pergunta é: a eficiência de uma economia depende da capacidade de suas instituições diminuírem os custos de transação. Mas que tipo de instituição garante essa eficiência à economia? Como um bom marginalista não poderia deixar de pensar, a resposta de North é o funcionamento pleno do livre mercado. Por isso, segundo esse raciocínio, quando as instituições são eficientes, quando as condições sociais não impõem obstáculos, a economia de mercado tende a se sobrepor às outras formas de organização da vida econômica.

As análises que apontam o desenvolvimento e expansão do Direito Romano como um elemento institucional importante para a eficiência da Economia Romana se inserem neste contexto histórico de maneira particular. A análise da integração de regiões distantes e heterogêneas em um mercado mediterrânico a partir do desenvolvimento de instituições “supra-locais”, estabelece um paralelo bastante interessante com o próprio processo de globalização em nosso presente capitalista.

Assim, se o impacto da expansão econômica industrial marcava as análises modernistas e primitivistas da transição do século XIX para o XX, o impacto da globalização e do triunfalismo capitalista também o fazem com os historiadores neomodernistas da transição do século XX para o XXI. A relação entre presente e passado ensejada pela Teoria Neoinstitucionalista e pelas ideias de Peter Temin constroem uma Orientação Histórica que remete aos mesmos problemas da querela entre primitivistas e modernistas.

Não pretendo com esta análise menosprezar a i m p o r t â n c i a q u e p e s q u i s a s i n s p i r a d a s n o neoinstitucionalismo têm tido no avanço do debate sobre a caracterização da Economia Antiga. O próprio trabalho de Dennis Kehoe, por exemplo, é incontornável no debate sobre a realidade agrária e o comportamento econômico romanos. Porém, acho importante destacar estes problemas que identificam um importante limite para os benefícios do uso da teoria neoinstitucional nos estudos sobre a Economia Romana.

Acima de tudo, a Cultura Histórica construída pelas reflexões da Teoria Neoinstitucionalista se assemelha em aspectos fundamentais à Cultura Histórica que embasava o debate entre primitivistas e modernistas, cujo ponto nodal é sua relação entre passado e presente apologética ao capitalismo. Por um lado, os neoinstitucionalistas repetem os primitivistas, ao identificar o presente capitalista como auge de um desenvolvimento econômico e institucional, e por outro repetem os modernistas, ao apontar que aquilo que os romanos tiveram de desenvolvimento econômico foi

15BLOCH, Marc. Apologia da História. Ou o ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.66-67.16Idem, p.136.17MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial e Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2011, p.41.

permitido pelos aspectos em que eles conseguiram construir instituições que permitissem o surgimento de algo parecido com a Economia de Mercado do presente capitalista.

Por uma metodologia críticaToda esta reflexão crítica sobre a relação entre

certas correntes historiográficas e o capitalismo contemporâneo não pretende concluir pela defesa de uma história autônoma do presente – não só porque ela seria impossível, mas porque seria indesejável. É tal relação com o presente que dá sentido ao ofício historiográfico. Quero apenas chamar a atenção para a necessidade de considerações mais profundas sobre este problema e suas consequências metodológicas.

Marc Bloch, em A Apologia da História, já nos alertava que toda história é “feita às avessas”, que a bobina do filme da história só pode ser desenrolada no

15sentido inverso de suas sequências. Essa é uma conseqüência importante do fato pouco contestado, porém muito desconsiderado, de que “toda história é história contemporânea”. Se o presente vivido é sempre o ponto de partida da reflexão histórica, a forma como realizamos nosso ofício será determinada por esse fato.

Neste sentido, o historiador não pode querer meramente “identificar os conceitos de uma época” – uma saída encontrada por muitos historiadores para evitar o anacronismo, mas que pode ser extremamente enganosa. É claro que o estudo das estruturas conceituais do pensamento dos grupos sociais de uma época é um trabalho fundamental para todo o oficio historiográfico. Mas este não pode ser um primeiro (e muitas vezes único) passo na construção de conceitos e categorias explicativas. Como Bloch afirmou precisamente, o historiador que se deixa levar pela nomenclatura de uma época escreve sob o ditado de uma época distante, mas pensa, como não poderia deixar de ser, segundo as

16categorias de sua própria época. O historiador pensa estar dando voz ao passado, quando apenas traduz mal o presente para o estanho vocabulário de outra época.

Como realizar a construção de conceitos e categorias explicativas que não sejam meramente a imposição das categorias de nossa própria época ao passado estudado? Ao tratar do método de análise da Economia Política, na introdução dos Grundrisse, Marx enfatiza que “todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações em comum” e que “nenhuma produção seria concebível sem elas”, mas que “a diferença desse universal e comum é precisamente o que constitui seu desenvolvimento”. Isto é, “as determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da

17unidade (...) não seja esquecida a diferença essencial”.

É neste sentido que ele afirma que “a anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco”. O Capitalismo, por ser a organização histórica da produção

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (18-22) Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

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ponto central, os termos da querela entre primitivistas e modernistas ainda reverberam em parte relevante da atual produção historiográfica.

Triunfalismo Capitalista e NeomodernismoPara exemplificar o que afirmo, nos voltemos

para a produção historiográfica da área neste início de século XXI. Chama à atenção a produção de alguns historiadores que acredito que possam ser chamados, sem qualquer receio de estar se cometendo uma injustiça, de neomodernistas. E, como veremos, esse retorno do modernismo está intimamente ligado ao contexto de transformações de nosso presente capitalista nas duas últimas décadas.

No início da década passada um dos mais importantes nomes da New Economic History, Peter Temin, começou a publicar algumas reflexões sobre a Economia Romana em uma série de artigos muito lida e citada entre historiadores que se dedicam ao tema. Em síntese, todos os artigos de Temin têm como objetivo mostrar que a Economia Romana era integrada em um sistema de mercado unificado, geograficamente centrado no mar Mediterrâneo. Para tentar demonstrar isso ele analisa o comportamento econômico da elite, o “mercado” de trabalho, a circulação de trigo, o sistema

10creditício entre outros elementos da Economia Romana.

O sucesso destes artigos de Temin entre alguns estudiosos da Economia Romana pode ser mais facilmente explicado pelo respeito à carreira de tão renomado pesquisador, ao entusiasmo ao vê-lo oferecendo reflexões sobre nossa área de pesquisa e a um contexto histórico e historiográfico favorável a interpretações apologéticas ao capitalismo. O conteúdo em si das reflexões de Temin é bastante contestável. Boa parte de suas proposições faz o debate recuar aos termos anteriores a Finley e, com muita razão, Jean Andreau afirmou recentemente que estes artigos de Temin são uma “volta a Rostovtzeff” (sem os méritos deste, cabe dizer).

O que fica claro nas entrelinhas dos artigos de Temin é a mesma incapacidade modernista de aceitar que o glorioso mundo antigo tivesse uma economia que não fosse pujante e eficiente – o que obviamente, para um economista neoclássico como Temin, só pode ser compatível com uma Economia de Mercado. E por isso Temin faz um esforço hercúleo – mas não muito bem sucedido – de tentar nos convencer que a Economia romana só poderia ser uma Economia de Mercado. As diferenças entre o passado romano e o presente capitalista seriam resultado de meros limites tecnológicos nos meios de transporte, que impediam uma circulação eficiente de bens e informações, limitando geograficamente o mundo inserido no grande mercado mediterrânico, o centro da economia romana.

Pode-se dizer, porém, que Temin é um caso isolado, e que apesar de citado e considerado por nomes

importantes da historiografia anglo-saxã especializada na Economia Romana, seu trabalho não reflete o atual estado da arte. O mesmo não se pode dizer, contudo, do neoinstitucionalismo. Muito influente entre economistas e historiadores econômicos nos Estados Unidos e na Inglaterra desde meados da década de 80, a partir dos trabalhos do ganhador do prêmio Nobel de Economia Douglass North, esta corrente da Teoria Econômica chegou com algum atraso aos estudiosos dedicados ao mundo antigo, mas há alguns anos tornou-se hegemônica no mundo anglo-saxão. Sua onipresença no Cambridge Economic History of Graeco-Roman World, lançado em

112008, mostra tal hegemonia.North e os entusiastas do neoinstitucionalismo

defendem a ênfase no estudo das Instituições para entender as diferentes configurações que a Economia conheceu em sua história. Segundo eles, as interações sociais seriam inviáveis sem a existência de instituições, pois os custos de transação seriam proibitivos – como interagir com uma pessoa sem saber as condições sob as quais tal interação ocorrerá? Por isso, os indivíduos criam instituições, que nada mais são do que constrangimentos informais e regras formais e suas características compulsórias para os agentes envolvidos. Estas instituições variam e se transformam ao longo do tempo, criando realidades econômicas diversas no tempo e no

12espaço.

Muitas pesquisas vêm utilizando este corpo teórico para analisar o problema do crescimento econômico no Império Romano – um tema recorrente no debate nos últimos anos que, vale a pena frisar, é uma herança direta do debate entre primitivistas e modernistas. O exemplo paradigmático deste uso é o trabalho de Dennis Kehoe sobre a relação entre o Direito Romano e a Economia Rural, no qual ele tenta mostrar como o desenvolvimento de instituições jurídicas para as relações agrárias permitia uma melhor performance

13econômica no mundo romano.Tanto os trabalhos de Temin quanto a onda

neoinstitucionalista são frutos de um mesmo contexto histórico. O período entre a queda do Muro de Berlim e a crise econômica de 2008 será lembrado na história pelo triunfalismo capitalista (e o pobre Fukuyama e seu fim da História que tão pouco durou). Como afirma Peter Fibiger Bang, o Ocidente se recuperara do choque pós-colonial e não acreditava mais em possíveis soluções vindas do terceiro mundo para os problemas da sociedade

14de mercado. Pelo contrário, a sociedade de mercado passou a ser apontada como a solução para os problemas do terceiro mundo – e referência inescapável para os historiadores.

11SCHEIDEL, Walter, MORRIS, Ian, SALLER, Richard (eds.). The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge University Press, 2008.12Os dois principais livros de Douglass North são: Structure and Change in Economic History. W.W.Norton & Company, 1981; e Institutions, Institutional Change and Economic Perfomance. Cambridge University Press, 1990.13KEHOE, Dennis, Law and the rural economy in the Roman empire, Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2007.14BANG, op.cit.

10Os artigos de Temin considerados nesta análise são: “A Market Economy in the Early Roman Empire,” Journal of Roman Studies, 91, 2001; “The Labor Market of the Early Roman Empire,” Journal of Interdisciplinary History, 34, 2004; “The Organization of the Grain Trade in the Early Roman Empire” (com David Kessler), Economic History Review, 60, 2007.

Ao nos lembrarmos do sentido original da teoria neoinstitucional, é fácil perceber tal contextualização histórica. A preocupação fundamental dos principais trabalhos de Douglass North é o estudo do problema do desenvolvimento histórico. Tanto o desenvolvimento econômico na história quanto o subdesenvolvimento do Terceiro Mundo são problemas fundamentais para North. Dentro desta problemática, sua questão fundadora é “como explicar as diferentes performances econômicas na história?”. A resposta de North a esta pergunta é: a eficiência de uma economia depende da capacidade de suas instituições diminuírem os custos de transação. Mas que tipo de instituição garante essa eficiência à economia? Como um bom marginalista não poderia deixar de pensar, a resposta de North é o funcionamento pleno do livre mercado. Por isso, segundo esse raciocínio, quando as instituições são eficientes, quando as condições sociais não impõem obstáculos, a economia de mercado tende a se sobrepor às outras formas de organização da vida econômica.

As análises que apontam o desenvolvimento e expansão do Direito Romano como um elemento institucional importante para a eficiência da Economia Romana se inserem neste contexto histórico de maneira particular. A análise da integração de regiões distantes e heterogêneas em um mercado mediterrânico a partir do desenvolvimento de instituições “supra-locais”, estabelece um paralelo bastante interessante com o próprio processo de globalização em nosso presente capitalista.

Assim, se o impacto da expansão econômica industrial marcava as análises modernistas e primitivistas da transição do século XIX para o XX, o impacto da globalização e do triunfalismo capitalista também o fazem com os historiadores neomodernistas da transição do século XX para o XXI. A relação entre presente e passado ensejada pela Teoria Neoinstitucionalista e pelas ideias de Peter Temin constroem uma Orientação Histórica que remete aos mesmos problemas da querela entre primitivistas e modernistas.

Não pretendo com esta análise menosprezar a i m p o r t â n c i a q u e p e s q u i s a s i n s p i r a d a s n o neoinstitucionalismo têm tido no avanço do debate sobre a caracterização da Economia Antiga. O próprio trabalho de Dennis Kehoe, por exemplo, é incontornável no debate sobre a realidade agrária e o comportamento econômico romanos. Porém, acho importante destacar estes problemas que identificam um importante limite para os benefícios do uso da teoria neoinstitucional nos estudos sobre a Economia Romana.

Acima de tudo, a Cultura Histórica construída pelas reflexões da Teoria Neoinstitucionalista se assemelha em aspectos fundamentais à Cultura Histórica que embasava o debate entre primitivistas e modernistas, cujo ponto nodal é sua relação entre passado e presente apologética ao capitalismo. Por um lado, os neoinstitucionalistas repetem os primitivistas, ao identificar o presente capitalista como auge de um desenvolvimento econômico e institucional, e por outro repetem os modernistas, ao apontar que aquilo que os romanos tiveram de desenvolvimento econômico foi

15BLOCH, Marc. Apologia da História. Ou o ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.66-67.16Idem, p.136.17MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial e Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2011, p.41.

permitido pelos aspectos em que eles conseguiram construir instituições que permitissem o surgimento de algo parecido com a Economia de Mercado do presente capitalista.

Por uma metodologia críticaToda esta reflexão crítica sobre a relação entre

certas correntes historiográficas e o capitalismo contemporâneo não pretende concluir pela defesa de uma história autônoma do presente – não só porque ela seria impossível, mas porque seria indesejável. É tal relação com o presente que dá sentido ao ofício historiográfico. Quero apenas chamar a atenção para a necessidade de considerações mais profundas sobre este problema e suas consequências metodológicas.

Marc Bloch, em A Apologia da História, já nos alertava que toda história é “feita às avessas”, que a bobina do filme da história só pode ser desenrolada no

15sentido inverso de suas sequências. Essa é uma conseqüência importante do fato pouco contestado, porém muito desconsiderado, de que “toda história é história contemporânea”. Se o presente vivido é sempre o ponto de partida da reflexão histórica, a forma como realizamos nosso ofício será determinada por esse fato.

Neste sentido, o historiador não pode querer meramente “identificar os conceitos de uma época” – uma saída encontrada por muitos historiadores para evitar o anacronismo, mas que pode ser extremamente enganosa. É claro que o estudo das estruturas conceituais do pensamento dos grupos sociais de uma época é um trabalho fundamental para todo o oficio historiográfico. Mas este não pode ser um primeiro (e muitas vezes único) passo na construção de conceitos e categorias explicativas. Como Bloch afirmou precisamente, o historiador que se deixa levar pela nomenclatura de uma época escreve sob o ditado de uma época distante, mas pensa, como não poderia deixar de ser, segundo as

16categorias de sua própria época. O historiador pensa estar dando voz ao passado, quando apenas traduz mal o presente para o estanho vocabulário de outra época.

Como realizar a construção de conceitos e categorias explicativas que não sejam meramente a imposição das categorias de nossa própria época ao passado estudado? Ao tratar do método de análise da Economia Política, na introdução dos Grundrisse, Marx enfatiza que “todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações em comum” e que “nenhuma produção seria concebível sem elas”, mas que “a diferença desse universal e comum é precisamente o que constitui seu desenvolvimento”. Isto é, “as determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da

17unidade (...) não seja esquecida a diferença essencial”.

É neste sentido que ele afirma que “a anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco”. O Capitalismo, por ser a organização histórica da produção

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (18-22) Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

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mais complexa, permite a construção de categorias que possibilitam não apenas o estudo da própria economia capitalista, mas também dos sistemas econômicos anteriores a ele. Assim, “a economia burguesa serve de chave para a economia antiga”. Isto é, o fato de partirmos dos problemas e categorias do presente para estudar o passado não é um problema insolúvel para o historiador, pelo contrário, é o que possibilita seu estudo. Por outro lado, porém, não é pela sua imediata aplicação que tais categorias de análise do Capitalismo permitem o estudo dos períodos anteriores. Não podemos fazer uma identificação simples das realidades antigas com as categorias do presente capitalista. Isso é justamente o que Marx critica nos economistas de sua época, que “veem a

18sociedade burguesa em todas as formas de sociedade” (o que podemos dizer também da maioria dos economistas de nossa época).

Para Marx, as categorias de análise da sociedade capitalista servem de chave para o estudo do passado ao se identificar as diferenças essenciais entre as duas formas de economia em questão. Desta forma, essas sociedades do passado “podem conter tais categorias [capitalistas] de modo desenvolvido, atrofiado, caricato,

19etc., mas sempre com diferença essencial”. É neste sentido que o historiador italiano Aldo Schiavone utiliza a metodologia marxiana para estabelecer que o estudo histórico nada mais é que a construção de um conhecimento pelas diferenças – e não uma assimilação confusa e estéril entre elementos da sociedade do passado e da nossa sociedade. Desta forma, “o mais complexo não explica diretamente o mais simples, mas permite elaborar um quadro de categorias adequadas à sua

20interpretação”.Esta construção de categorias e conceitos

explicativos através de uma comparação que analise as diferenças essenciais (qualitativas, e não meramente quantitativas) entre o passado estudado e o presente vivido precisa ser qualificada. É uma postura crítica perante a sociedade do presente que permite tal metodologia. Como Bloch disse ter ouvido certa vez de Henri Pirenne, o erudito que escolhe passar pelo seu mundo de olhos vendados merecerá no máximo o título

21de útil antiquário – e deverá renunciar ao de historiador.

Artigo recebido em 10.2.2012Aprovado em 10.4.2012

18Todas as citações deste parágrafo estão em MARX, op.cit., p.58.19Idem, p.59.20SCHIAVONE, op.cit., p.71-72 n.30.21BLOCH, op.cit., p.66.

Capitalismo romano, modernismo e marxismo.A propósito de algumas ideias de

1Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado*

Carlos García Mac Gaw

nalisarei, neste breve artigo, algumas ideias expressas por Jairus Banaji em uma recente publicação, Theory as History. Essays on Modes of Production and Exploitation, em particular no seu quarto capítulo: “Workers before capitalism”. Irei concentrar-me especialmente na segunda parte do capítulo em que o autor critica alguns fragmentos d'O Capital sobre o trabalho assalariado e retoma a ideia da existência de um

2capitalismo no mundo antigo.Banaji reafirma, neste capítulo, a existência

maciça de trabalho assalariado na sociedade romana. Apoiando-se em documentação diversa, destaca sua importância durante o período imperial e até tardo-

3antigo. Numa conclusão preliminar relativa à primeira metade do capítulo, o autor afirma que a classe trabalhadora não é especificamente um produto do capitalismo e entende que as visões marxistas subestimaram radicalmente a extensão do trabalho assalariado nas sociedades pré-capitalistas. O argumento é que Marx não teve acesso à parte das informações de que dispomos hoje em dia, mas, fundamentalmente, o autor destaca que “a razão mais fundamental que o levou simplesmente a ignorar a existência de trabalhadores assalariados antes do capitalismo é a força do primitivismo na tradição marxista.” Banaji indica que o trabalho assalariado é percebido fundamentalmente como uma instituição moderna e, por consequência, o mundo antigo seria impermeável às instituições que caracterizam o capitalismo. Recorre a exemplos, especialmente do período tardo-antigo, ainda que também alguns da época anterior, para sustentar estas afirmações. Poder-se-ia estar de acordo com algumas destas ideias, especialmente as que tratam de deslocar o papel da escravidão como argumento básico para explicar a racionalidade da economia romana e, de fato, em termos gerais, concordo com estes postulados. Todavia, o autor utiliza estes argumentos para iniciar uma discussão de corte teórico mais profundo, em que, a partir dos elementos assinalados, afirma a existência de um capitalismo romano. Assim, apoia-se em Otto Rühle, que argumentou que a economia quase havia alcançado os umbrais do capitalismo sob o Império romano na Itália, bem como em Arthur Rosenverg, que fala de capitalistas e proletários no mundo greco-romano; e ainda em

A

1Tradução do original em espanhol por Fábio Afonso Frizzo e José E.M. Knust, revisão de Mário Jorge da Motta Bastos.*Universidad Nacional de La Plata / Universidad de Buenos Aires.2BANAJI, Jairus. Theory as History. Essays on Modes of Production and Exploitation. Leiden-Boston: Brill, 2010.3ID., op. cit.. p. 117 e ss.

4(…) “there has always been a modernist strand in left-wing thinking which we desperately need to salvage”.5Para um balance sobre a questão ver em geral SCHEIDEL, W; VON REDEN, S. The Anciente Economy. New York: Routledge, 2002; e, em particular, o capítulo de ANDREAU, Jean. “Twenty Years after The Ancient Economy. p. 33.49.6FINLEY, Moses. La Economía de la Antigüedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1974. p. 40-41. O livro em seu conjunto pode ser considerado como fundador das posições primitivistas.7MORLEY, Neville. Theories, Models and Concepts in Ancient History. London-New York: Routledge, 2004. p. 35.8MORLEY, op. cit.. p. 36. Para uma apresentação histórica sobre as perspectivas econômicas de primitivistas e modernistas ver, em geral, o capítulo 2. p. 33-50.

Feliciano Serrao, que assinala a existência de um capitalismo compatível com as condições históricas da Antiguidade.

Causa certa surpresa que Banaji argumente que “sempre houve uma vertente modernista no pensamento de esquerda que nós precisamos desesperadamente

4salvar”, porque, na realidade, o conflito entre as percepções modernistas e primitivistas tem sido progressivamente abandonado em razão das críticas profundamente elaboradas que permitem superar o

5impasse teórico que fundamentava a discussão. Em geral, a posição dos primitivistas apoiou-se especialmente na extensão reduzida da circulação mercantil e no papel limitado dos mercados na economia

6antiga, tal como assinalara Finley. Estas perspectivas foram uma reação aos historiadores que, como Mikhail Rostovtzeff e Tenney Frank, assumiram que as relações econômicas modernas proviam as ferramentas para entender a economia, independentemente do período que se estudasse. Como assinala Neville Morley, os primeiros economistas políticos consideraram que a organização do mundo antigo não era significativamente diferente do seu próprio, em parte porque não compreendiam completamente o alcance da Revolução industrial que

7ocorria ao seu redor. Todavia, pouco depois, Marx iria opor-se a esta visão simplista da compreensão dos fenômenos econômicos em sua dimensão histórica, e Karl Bücher apresentaria o desenvolvimento histórico europeu a partir de três estágios: a economia doméstica, a economia da cidade e a economia nacional, que correspondiam em geral às características da

8Antiguidade, da Idade Média e da modernidade. Estas ideias encontraram uma expressão mais orgânica na polêmica que Max Weber e Johannes Hasebroek mantiveram com Eduard Meyer. Talvez convenha destacar também que as diferentes percepções dos modernistas e primitivistas variaram de acordo com os elementos postos em foco para realizar as análises.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (23-27) Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

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mais complexa, permite a construção de categorias que possibilitam não apenas o estudo da própria economia capitalista, mas também dos sistemas econômicos anteriores a ele. Assim, “a economia burguesa serve de chave para a economia antiga”. Isto é, o fato de partirmos dos problemas e categorias do presente para estudar o passado não é um problema insolúvel para o historiador, pelo contrário, é o que possibilita seu estudo. Por outro lado, porém, não é pela sua imediata aplicação que tais categorias de análise do Capitalismo permitem o estudo dos períodos anteriores. Não podemos fazer uma identificação simples das realidades antigas com as categorias do presente capitalista. Isso é justamente o que Marx critica nos economistas de sua época, que “veem a

18sociedade burguesa em todas as formas de sociedade” (o que podemos dizer também da maioria dos economistas de nossa época).

Para Marx, as categorias de análise da sociedade capitalista servem de chave para o estudo do passado ao se identificar as diferenças essenciais entre as duas formas de economia em questão. Desta forma, essas sociedades do passado “podem conter tais categorias [capitalistas] de modo desenvolvido, atrofiado, caricato,

19etc., mas sempre com diferença essencial”. É neste sentido que o historiador italiano Aldo Schiavone utiliza a metodologia marxiana para estabelecer que o estudo histórico nada mais é que a construção de um conhecimento pelas diferenças – e não uma assimilação confusa e estéril entre elementos da sociedade do passado e da nossa sociedade. Desta forma, “o mais complexo não explica diretamente o mais simples, mas permite elaborar um quadro de categorias adequadas à sua

20interpretação”.Esta construção de categorias e conceitos

explicativos através de uma comparação que analise as diferenças essenciais (qualitativas, e não meramente quantitativas) entre o passado estudado e o presente vivido precisa ser qualificada. É uma postura crítica perante a sociedade do presente que permite tal metodologia. Como Bloch disse ter ouvido certa vez de Henri Pirenne, o erudito que escolhe passar pelo seu mundo de olhos vendados merecerá no máximo o título

21de útil antiquário – e deverá renunciar ao de historiador.

Artigo recebido em 10.2.2012Aprovado em 10.4.2012

18Todas as citações deste parágrafo estão em MARX, op.cit., p.58.19Idem, p.59.20SCHIAVONE, op.cit., p.71-72 n.30.21BLOCH, op.cit., p.66.

Capitalismo romano, modernismo e marxismo.A propósito de algumas ideias de

1Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado*

Carlos García Mac Gaw

nalisarei, neste breve artigo, algumas ideias expressas por Jairus Banaji em uma recente publicação, Theory as History. Essays on Modes of Production and Exploitation, em particular no seu quarto capítulo: “Workers before capitalism”. Irei concentrar-me especialmente na segunda parte do capítulo em que o autor critica alguns fragmentos d'O Capital sobre o trabalho assalariado e retoma a ideia da existência de um

2capitalismo no mundo antigo.Banaji reafirma, neste capítulo, a existência

maciça de trabalho assalariado na sociedade romana. Apoiando-se em documentação diversa, destaca sua importância durante o período imperial e até tardo-

3antigo. Numa conclusão preliminar relativa à primeira metade do capítulo, o autor afirma que a classe trabalhadora não é especificamente um produto do capitalismo e entende que as visões marxistas subestimaram radicalmente a extensão do trabalho assalariado nas sociedades pré-capitalistas. O argumento é que Marx não teve acesso à parte das informações de que dispomos hoje em dia, mas, fundamentalmente, o autor destaca que “a razão mais fundamental que o levou simplesmente a ignorar a existência de trabalhadores assalariados antes do capitalismo é a força do primitivismo na tradição marxista.” Banaji indica que o trabalho assalariado é percebido fundamentalmente como uma instituição moderna e, por consequência, o mundo antigo seria impermeável às instituições que caracterizam o capitalismo. Recorre a exemplos, especialmente do período tardo-antigo, ainda que também alguns da época anterior, para sustentar estas afirmações. Poder-se-ia estar de acordo com algumas destas ideias, especialmente as que tratam de deslocar o papel da escravidão como argumento básico para explicar a racionalidade da economia romana e, de fato, em termos gerais, concordo com estes postulados. Todavia, o autor utiliza estes argumentos para iniciar uma discussão de corte teórico mais profundo, em que, a partir dos elementos assinalados, afirma a existência de um capitalismo romano. Assim, apoia-se em Otto Rühle, que argumentou que a economia quase havia alcançado os umbrais do capitalismo sob o Império romano na Itália, bem como em Arthur Rosenverg, que fala de capitalistas e proletários no mundo greco-romano; e ainda em

A

1Tradução do original em espanhol por Fábio Afonso Frizzo e José E.M. Knust, revisão de Mário Jorge da Motta Bastos.*Universidad Nacional de La Plata / Universidad de Buenos Aires.2BANAJI, Jairus. Theory as History. Essays on Modes of Production and Exploitation. Leiden-Boston: Brill, 2010.3ID., op. cit.. p. 117 e ss.

4(…) “there has always been a modernist strand in left-wing thinking which we desperately need to salvage”.5Para um balance sobre a questão ver em geral SCHEIDEL, W; VON REDEN, S. The Anciente Economy. New York: Routledge, 2002; e, em particular, o capítulo de ANDREAU, Jean. “Twenty Years after The Ancient Economy. p. 33.49.6FINLEY, Moses. La Economía de la Antigüedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1974. p. 40-41. O livro em seu conjunto pode ser considerado como fundador das posições primitivistas.7MORLEY, Neville. Theories, Models and Concepts in Ancient History. London-New York: Routledge, 2004. p. 35.8MORLEY, op. cit.. p. 36. Para uma apresentação histórica sobre as perspectivas econômicas de primitivistas e modernistas ver, em geral, o capítulo 2. p. 33-50.

Feliciano Serrao, que assinala a existência de um capitalismo compatível com as condições históricas da Antiguidade.

Causa certa surpresa que Banaji argumente que “sempre houve uma vertente modernista no pensamento de esquerda que nós precisamos desesperadamente

4salvar”, porque, na realidade, o conflito entre as percepções modernistas e primitivistas tem sido progressivamente abandonado em razão das críticas profundamente elaboradas que permitem superar o

5impasse teórico que fundamentava a discussão. Em geral, a posição dos primitivistas apoiou-se especialmente na extensão reduzida da circulação mercantil e no papel limitado dos mercados na economia

6antiga, tal como assinalara Finley. Estas perspectivas foram uma reação aos historiadores que, como Mikhail Rostovtzeff e Tenney Frank, assumiram que as relações econômicas modernas proviam as ferramentas para entender a economia, independentemente do período que se estudasse. Como assinala Neville Morley, os primeiros economistas políticos consideraram que a organização do mundo antigo não era significativamente diferente do seu próprio, em parte porque não compreendiam completamente o alcance da Revolução industrial que

7ocorria ao seu redor. Todavia, pouco depois, Marx iria opor-se a esta visão simplista da compreensão dos fenômenos econômicos em sua dimensão histórica, e Karl Bücher apresentaria o desenvolvimento histórico europeu a partir de três estágios: a economia doméstica, a economia da cidade e a economia nacional, que correspondiam em geral às características da

8Antiguidade, da Idade Média e da modernidade. Estas ideias encontraram uma expressão mais orgânica na polêmica que Max Weber e Johannes Hasebroek mantiveram com Eduard Meyer. Talvez convenha destacar também que as diferentes percepções dos modernistas e primitivistas variaram de acordo com os elementos postos em foco para realizar as análises.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (23-27) Um passado romano para um presente capitalista: A Economia Romana em dois séculos de História Econômica

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Pleket, por exemplo, reconhece manter uma posição intermediária entre ambas correntes quando indica que, em linhas gerais, as características primitivas, pré-capitalistas, eram típicas da economia do Império Romano e da Idade Média Europeia, mas, ao mesmo tempo, em ambos os períodos houve nichos de uma economia capitalista, caracterizados pelo comércio estrutural, de longa distância, de artigos primários e de

9luxo, além de uma produção de tais bens para o mercado. Isto significa que, diferentemente de Banaji, que enfatiza o papel do trabalho assalariado e a existência do capital comercial, Pleket se apóia no comércio de longas distâncias e na produção de mercadorias para afirmar o caráter capitalista – mesmo que fragmentário – da economia romana. Mas, como indica Banaji, toda uma vertente do materialismo histórico tem contribuído fortemente para a constituição da perspectiva modernista na medida em que tem dado ênfase especial ao estudo da organização das relações de produção, analisando as formas adotadas pela relação entre produtores escravos e meios de produção e os proprietários escravistas no processo produtivo. A villa escravista cumpriu um papel

10central em tais enfoques. No que diz respeito à opinião de Banaji, eu estaria mais propenso a crer que, na realidade, a falta de atenção em relação ao trabalho livre – e incluiria aqui não apenas o trabalho assalariado mas especialmente o colonato agrário republicano e alto-imperial –, não é algo próprio dos marxistas, mas, em geral, dos historiadores da antiguidade que tenham centrado seu foco de atenção no escravismo – como feito

9PLEKET, H. W. “Agriculture in the Romam Empire in Comparative Perspective”. In: SANCISI-WEEDERNBURG, H; VAN DEER SPEK, R. J.; TEITLER, H. C.; WALLINGA, H.T. De Agricultura. In Memoriam Pieter Willem de Neeve (1945-1990). Amsterdan: J. C. Gieben Publisher, 1993. p. 317. O autor afirma também (ID. “Urban elites and Business in the Greek part of Roman empire. In: GARNSEY, P.; HOPKINS, K.; WHITTAKER, C. R. Trade in the Ancient Economy. London, 1983. p. 131-144.) que a ausência de uma burguesia comercial em Roma não é necessariamente um signo de que o comércio tinha um significado marginal em comparação a outras sociedades pré-industriais. Entende que existe uma carência de correspondência entre as classes sociais e as atividades econômicas, mais precisamente pela permanente disponibilidade de escravos e dependentes livres, libertos em particular, para a execução de empresas comerciais, em vez de uma diferença fundamental nas dimensões do setor não agrário em relação a outras sociedades. Crê que é necessário enfatizar uma diferença social fundamental entre, por um lado, uma burguesia diretamente comprometida com os negócios e, por outro, uma elite urbana e agrícola que investe em negócios delegando seus interesses a agentes.10O melhor exemplo é CARANDINI, A. “Columella's Vineyards and the Rationality od the Romam Economy. Opus, n. 2, 1983. p. 177-203; também DI PORTO, Andrea. Impresa collettiva e schiavo “manager”in Roma ântica (II sec. a.C.-II séc. d.C.). Milan: A. Giuffrè, 1984; com uma perspectiva principalmente jurídica sobre o papel de escravos e libertos no comércio (cf. supra nota 4). Cf. CARANDINI, A. “Pottery and the African Economy”. In: GARNSEY, P.; HOPKINS, K. WHITTAKER, C. R. Trade in the Ancient Economy. London. P. 145-162; onde o autor analisa a produção de cerâmica no norte africano, que não está baseada no trabalho escravo e diz que não foi somente o sistema escravista clássico no mundo antigo que foi exitoso produzindo bens para exportação em grande escala. A produção de valores de troca não havia estado ligada inevitavelmente ao fenômeno da escravidão (p. 155). Entre outros exemplos o autor recorda que a cerâmica do sul da Gália era produzida por artesãos camponeses de status livre.

pelo próprio Marx – independentemente das correntes teóricas a que pertençam.

Recuperando os preceitos modernistas, Banaji se associa à ideia da existência de um capitalismo romano. O ponto de partida para sua argumentação é uma nota de pé de página d'O Capital, em que Marx, estudando a compra e venda da força de trabalho no marco da transformação de dinheiro em capital, diz que

Nas enciclopédias referentes à antiguidade clássica pode-se ler a afirmação disparatada de que, no mundo antigo, o capital era plenamente desenvolvido, “mas que faltavam o trabalhador livre e o sistema de crédito”. Também Mommsen, em sua História romana, incorre

11numa série de quiproquós.

Banaji, diferentemente de Marx, retoma positivamente os argumentos de Mommsen. Reconhece que o interesse de seus comentários não se concentra na centralidade do trabalho livre para a acumulação de capital na economia moderna, mas sim em questionar a forma particular por meio da qual Marx argumenta que o uso do trabalho livre é um pressuposto lógico do capital. E agrega, “quando é claro que capitalistas individuais exploram o trabalho numa multiplicidade de formas, e isto não apenas quando o capital existe como manufatura

12na indústria doméstica”. Para exemplificá-lo, Banaji toma outra citação de Marx que transcrevo de forma completa:

Ela [a máquina] revoluciona radicalmente o contrato entre o trabalhador e o capitalista, contrato que estabelece formalmente suas relações mútuas. Tomando por base a troca de mercadorias, pressupuséramos, de início, que o capitalista e o trabalhador se confrontam como pessoas livres, como possuidores independentes de mercadorias, sendo um detentor do dinheiro e dos meios de produção e o outro o detentor da força de trabalho, mas agora o capital compra incapazes ou parcialmente incapazes, do ponto de vista jurídico. Antes, vendia o trabalhador sua própria força de trabalho, da qual dispunha formalmente como pessoa livre. Agora, vende mulher e filhos. Torna-se traficante de

13escravos.

Sobre este fragmento, Banaji diz que “É fascinante ver que Marx refere-se aqui ao Capítulo 6, mais de 200 páginas após, e reenfatiza a natureza hipotética da suposição relativa ao trabalhador livre. Mas foi essa suposição que levou a seu ataque a

14Mommsen”.

11MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Livro I, Vol. 1, p. 198, nota 39. Destaques e aspas como no original.12(…) “when it is clear that individual capitalists exploit labour in a multiplicity of forms, and this not just when capital exists as manufacture an domestic industry”, BANAJI, op. cit., p. 128.13MARX, op. cit., L. I, p. 452-453.14(…) “It is fascinating to see Marx referring back to Chapter 6 here, over 200 pages later, and re-emphasising the hypothetical nature of the assumption about the free worker. But it was that assumption that prompted his attack on Mommsen.”, BANAJI, op. cit., p. 128-9.

É necessário observar o contexto d'O Capital no qual se inscreve a citação de Marx. A mesma se encontra no marco da análise do papel da maquinaria na grande indústria e, em particular, trata-se do capítulo no qual Marx estuda as consequências da indústria mecanizada para o trabalhador, em que existe um subtítulo específico chamado “Apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares. O trabalho das mulheres e das

15crianças”. Torna-se óbvio, de acordo com este contexto, que o que Marx está analisando é a forma em que o capital aplicado à grande maquinaria modifica as condições de exploração dos trabalhadores, barateando o custo da força de trabalho através da incorporação do conjunto da unidade doméstica na indústria, estendendo a exploração às mulheres e crianças. Apresenta, assim, casos distintos a partir de informes de inspetores fabris e de anúncios de jornais solicitando crianças para ocupar postos de trabalho. Se continuarmos transcrevendo a citação, veremos o verdadeiro sentido da frase, já que Marx diz ali: “A procura de trabalho infantil lembra, às vezes, a procura de escravos através de anúncios que

16costumávamos ler nos jornais americanos”. Quer dizer que Marx tinha perfeitamente claro que as crianças inglesas não eram vendidas como escravos por seus pais, mas que eram incorporadas como assalariados nas fábricas. Por isso assinala que “A procura de trabalho

17infantil lembra [...] a procura de escravos”.Agora, se analisarmos a frase na qual se insere a

nota de pé de página em que Marx critica Mommsen, veremos que o enfoque proposto por Banaji pode ser entendido, na verdade, de outra maneira. Nela, Marx diz que:

A fim de o possuidor de dinheiro encontrar no mercado a força de trabalho como mercadoria, é mister que se preencham certas condições. Por si mesma, a troca de mercadorias não implica outras relações de dependência além daquelas que decorrem de sua própria natureza. Assim, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado enquanto for e por ser oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. A fim de que seu possuidor a venda como mercadoria, é mister que ele possa dispor dela, que seja proprietário livre de sua

18capacidade de trabalho, de sua pessoa.

Pode se observar que Marx destaca o fato necessário de que os agentes econômicos que intervêm na produção atuem como possuidores de mercadorias, posto que a condição fundamental para o funcionamento do modo de produção capitalista é que o mesmo se organize sob esta lógica. Desta forma, uns possuem capital e meios de trabalho, enquanto outros só dispõem se sua força de trabalho para trocar no mercado. Marx não diz que não podem existir outras formas de exploração da força de trabalho no modo de produção capitalista, porém assinala na citação anterior, da página 452, que “tomando por base

15MARX, op. cit., L. I. p. 451-460.16MARX, op. cit., L. I. p. 453.17Grifo meu.18MARX, op.cit., L. I., p. 198.

a troca de mercadorias, pressupuséramos, de início, que o capitalista e o trabalhador se confrontam como pessoas livres, como possuidores independentes de mercadorias”, e isto segue sendo verdade mesmo que possam existir capitalistas que tenham escravos, ou outros produtores dependentes, como no caso da peonaje na América Latina. Estes escravos e peones submetidos podem ser funcionais à existência das relações capitalistas, e o capital poderá, muito bem, comprar suas pessoas ao invés de suas forças de trabalho. Porém, é claro que a lógica econômica sob a qual funciona o modo de produção capitalista é a concorrência no mercado entre os capitalistas e os trabalhadores.

Banaji transmite a falsa ideia de que Marx parece 19desdizer-se passadas duzentas páginas em sua obra, em

relação ao que ele chama de “a natureza hipotética do 20

pressuposto acerca do trabalho livre”, natureza hipotética que o próprio Marx poria em questão ao assumir a “compra” das mulheres e crianças pelos capitalistas. Isto permite a Banaji retomar a defesa de Mommsen, que “pode ser defendido nos termos de sua caracterização da economia da República Romana como

21«baseada nas massas de capital e especulação»”, ideia que – por outra parte – estaria presente também em Marx, quando classifica os escravistas americanos de capitalistas ou Catão de “proprietário de terras

22capitalista”, etc.Banaji sustenta, além disso, que o fragmento de

Marx da página 121, na qual há a referência crítica a Mommsen, “é um dos menos bem construídos em O

23Capital”. Ao contrário de Banaji, que parece não compreender totalmente o marco no qual se inserem estes recortes discursivos, considero que podem ser extraídas desses conclusões diferentes. A ênfase de Marx neste fragmento concentra-se claramente na questão do controle da força de trabalho por parte do trabalhador, como livre proprietário de seu trabalho, por meio de sua pessoa, para oferecê-la como mercadoria no mercado. Por isso, Marx assinala pouco antes que a troca de mercadorias não implica relações de dependência, salvo as que decorrem de seu próprio caráter. Porém, nas sociedades pré-capitalistas, os trabalhadores normalmente se encontram imersos em redes de dependência que não os constituem como legítimos possuidores de sua força de trabalho. Pelo contrário, quando isto ocorre legitimamente, como no caso dos pobres de origem livre na sociedade romana, sua condição é assimilada à servidão por aqueles que contratam sua capacidade de trabalho. Esta é a relação de locatio-conductio, que não é uma relação de venda da força de trabalho, mas de aluguel da mesma ou de sua

19MARX, op.cit., L. I., p. 452-453.20(…) “the hypothetical nature of the assumption about the free worker”.21(…) “can be defended in terms of his characterisation of the economy of the Roman Republic as «based on masses of capital and on speculation»”.22BANAJI, op. cit., p. 129. O destacado na citação de Banaji faz referência a MOMMSEN, T. (1866), Römische Geschichte Bd. 3 (4ta ed.), Berlin. p. 504.23(…) “is one of the least well constructed in Capital”, BANAJI, op. cit., p. 127-8.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (23-27) Capitalismo romano, modernismo e marxismo. A propósito de algumas ideias de Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado

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Pleket, por exemplo, reconhece manter uma posição intermediária entre ambas correntes quando indica que, em linhas gerais, as características primitivas, pré-capitalistas, eram típicas da economia do Império Romano e da Idade Média Europeia, mas, ao mesmo tempo, em ambos os períodos houve nichos de uma economia capitalista, caracterizados pelo comércio estrutural, de longa distância, de artigos primários e de

9luxo, além de uma produção de tais bens para o mercado. Isto significa que, diferentemente de Banaji, que enfatiza o papel do trabalho assalariado e a existência do capital comercial, Pleket se apóia no comércio de longas distâncias e na produção de mercadorias para afirmar o caráter capitalista – mesmo que fragmentário – da economia romana. Mas, como indica Banaji, toda uma vertente do materialismo histórico tem contribuído fortemente para a constituição da perspectiva modernista na medida em que tem dado ênfase especial ao estudo da organização das relações de produção, analisando as formas adotadas pela relação entre produtores escravos e meios de produção e os proprietários escravistas no processo produtivo. A villa escravista cumpriu um papel

10central em tais enfoques. No que diz respeito à opinião de Banaji, eu estaria mais propenso a crer que, na realidade, a falta de atenção em relação ao trabalho livre – e incluiria aqui não apenas o trabalho assalariado mas especialmente o colonato agrário republicano e alto-imperial –, não é algo próprio dos marxistas, mas, em geral, dos historiadores da antiguidade que tenham centrado seu foco de atenção no escravismo – como feito

9PLEKET, H. W. “Agriculture in the Romam Empire in Comparative Perspective”. In: SANCISI-WEEDERNBURG, H; VAN DEER SPEK, R. J.; TEITLER, H. C.; WALLINGA, H.T. De Agricultura. In Memoriam Pieter Willem de Neeve (1945-1990). Amsterdan: J. C. Gieben Publisher, 1993. p. 317. O autor afirma também (ID. “Urban elites and Business in the Greek part of Roman empire. In: GARNSEY, P.; HOPKINS, K.; WHITTAKER, C. R. Trade in the Ancient Economy. London, 1983. p. 131-144.) que a ausência de uma burguesia comercial em Roma não é necessariamente um signo de que o comércio tinha um significado marginal em comparação a outras sociedades pré-industriais. Entende que existe uma carência de correspondência entre as classes sociais e as atividades econômicas, mais precisamente pela permanente disponibilidade de escravos e dependentes livres, libertos em particular, para a execução de empresas comerciais, em vez de uma diferença fundamental nas dimensões do setor não agrário em relação a outras sociedades. Crê que é necessário enfatizar uma diferença social fundamental entre, por um lado, uma burguesia diretamente comprometida com os negócios e, por outro, uma elite urbana e agrícola que investe em negócios delegando seus interesses a agentes.10O melhor exemplo é CARANDINI, A. “Columella's Vineyards and the Rationality od the Romam Economy. Opus, n. 2, 1983. p. 177-203; também DI PORTO, Andrea. Impresa collettiva e schiavo “manager”in Roma ântica (II sec. a.C.-II séc. d.C.). Milan: A. Giuffrè, 1984; com uma perspectiva principalmente jurídica sobre o papel de escravos e libertos no comércio (cf. supra nota 4). Cf. CARANDINI, A. “Pottery and the African Economy”. In: GARNSEY, P.; HOPKINS, K. WHITTAKER, C. R. Trade in the Ancient Economy. London. P. 145-162; onde o autor analisa a produção de cerâmica no norte africano, que não está baseada no trabalho escravo e diz que não foi somente o sistema escravista clássico no mundo antigo que foi exitoso produzindo bens para exportação em grande escala. A produção de valores de troca não havia estado ligada inevitavelmente ao fenômeno da escravidão (p. 155). Entre outros exemplos o autor recorda que a cerâmica do sul da Gália era produzida por artesãos camponeses de status livre.

pelo próprio Marx – independentemente das correntes teóricas a que pertençam.

Recuperando os preceitos modernistas, Banaji se associa à ideia da existência de um capitalismo romano. O ponto de partida para sua argumentação é uma nota de pé de página d'O Capital, em que Marx, estudando a compra e venda da força de trabalho no marco da transformação de dinheiro em capital, diz que

Nas enciclopédias referentes à antiguidade clássica pode-se ler a afirmação disparatada de que, no mundo antigo, o capital era plenamente desenvolvido, “mas que faltavam o trabalhador livre e o sistema de crédito”. Também Mommsen, em sua História romana, incorre

11numa série de quiproquós.

Banaji, diferentemente de Marx, retoma positivamente os argumentos de Mommsen. Reconhece que o interesse de seus comentários não se concentra na centralidade do trabalho livre para a acumulação de capital na economia moderna, mas sim em questionar a forma particular por meio da qual Marx argumenta que o uso do trabalho livre é um pressuposto lógico do capital. E agrega, “quando é claro que capitalistas individuais exploram o trabalho numa multiplicidade de formas, e isto não apenas quando o capital existe como manufatura

12na indústria doméstica”. Para exemplificá-lo, Banaji toma outra citação de Marx que transcrevo de forma completa:

Ela [a máquina] revoluciona radicalmente o contrato entre o trabalhador e o capitalista, contrato que estabelece formalmente suas relações mútuas. Tomando por base a troca de mercadorias, pressupuséramos, de início, que o capitalista e o trabalhador se confrontam como pessoas livres, como possuidores independentes de mercadorias, sendo um detentor do dinheiro e dos meios de produção e o outro o detentor da força de trabalho, mas agora o capital compra incapazes ou parcialmente incapazes, do ponto de vista jurídico. Antes, vendia o trabalhador sua própria força de trabalho, da qual dispunha formalmente como pessoa livre. Agora, vende mulher e filhos. Torna-se traficante de

13escravos.

Sobre este fragmento, Banaji diz que “É fascinante ver que Marx refere-se aqui ao Capítulo 6, mais de 200 páginas após, e reenfatiza a natureza hipotética da suposição relativa ao trabalhador livre. Mas foi essa suposição que levou a seu ataque a

14Mommsen”.

11MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Livro I, Vol. 1, p. 198, nota 39. Destaques e aspas como no original.12(…) “when it is clear that individual capitalists exploit labour in a multiplicity of forms, and this not just when capital exists as manufacture an domestic industry”, BANAJI, op. cit., p. 128.13MARX, op. cit., L. I, p. 452-453.14(…) “It is fascinating to see Marx referring back to Chapter 6 here, over 200 pages later, and re-emphasising the hypothetical nature of the assumption about the free worker. But it was that assumption that prompted his attack on Mommsen.”, BANAJI, op. cit., p. 128-9.

É necessário observar o contexto d'O Capital no qual se inscreve a citação de Marx. A mesma se encontra no marco da análise do papel da maquinaria na grande indústria e, em particular, trata-se do capítulo no qual Marx estuda as consequências da indústria mecanizada para o trabalhador, em que existe um subtítulo específico chamado “Apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares. O trabalho das mulheres e das

15crianças”. Torna-se óbvio, de acordo com este contexto, que o que Marx está analisando é a forma em que o capital aplicado à grande maquinaria modifica as condições de exploração dos trabalhadores, barateando o custo da força de trabalho através da incorporação do conjunto da unidade doméstica na indústria, estendendo a exploração às mulheres e crianças. Apresenta, assim, casos distintos a partir de informes de inspetores fabris e de anúncios de jornais solicitando crianças para ocupar postos de trabalho. Se continuarmos transcrevendo a citação, veremos o verdadeiro sentido da frase, já que Marx diz ali: “A procura de trabalho infantil lembra, às vezes, a procura de escravos através de anúncios que

16costumávamos ler nos jornais americanos”. Quer dizer que Marx tinha perfeitamente claro que as crianças inglesas não eram vendidas como escravos por seus pais, mas que eram incorporadas como assalariados nas fábricas. Por isso assinala que “A procura de trabalho

17infantil lembra [...] a procura de escravos”.Agora, se analisarmos a frase na qual se insere a

nota de pé de página em que Marx critica Mommsen, veremos que o enfoque proposto por Banaji pode ser entendido, na verdade, de outra maneira. Nela, Marx diz que:

A fim de o possuidor de dinheiro encontrar no mercado a força de trabalho como mercadoria, é mister que se preencham certas condições. Por si mesma, a troca de mercadorias não implica outras relações de dependência além daquelas que decorrem de sua própria natureza. Assim, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado enquanto for e por ser oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. A fim de que seu possuidor a venda como mercadoria, é mister que ele possa dispor dela, que seja proprietário livre de sua

18capacidade de trabalho, de sua pessoa.

Pode se observar que Marx destaca o fato necessário de que os agentes econômicos que intervêm na produção atuem como possuidores de mercadorias, posto que a condição fundamental para o funcionamento do modo de produção capitalista é que o mesmo se organize sob esta lógica. Desta forma, uns possuem capital e meios de trabalho, enquanto outros só dispõem se sua força de trabalho para trocar no mercado. Marx não diz que não podem existir outras formas de exploração da força de trabalho no modo de produção capitalista, porém assinala na citação anterior, da página 452, que “tomando por base

15MARX, op. cit., L. I. p. 451-460.16MARX, op. cit., L. I. p. 453.17Grifo meu.18MARX, op.cit., L. I., p. 198.

a troca de mercadorias, pressupuséramos, de início, que o capitalista e o trabalhador se confrontam como pessoas livres, como possuidores independentes de mercadorias”, e isto segue sendo verdade mesmo que possam existir capitalistas que tenham escravos, ou outros produtores dependentes, como no caso da peonaje na América Latina. Estes escravos e peones submetidos podem ser funcionais à existência das relações capitalistas, e o capital poderá, muito bem, comprar suas pessoas ao invés de suas forças de trabalho. Porém, é claro que a lógica econômica sob a qual funciona o modo de produção capitalista é a concorrência no mercado entre os capitalistas e os trabalhadores.

Banaji transmite a falsa ideia de que Marx parece 19desdizer-se passadas duzentas páginas em sua obra, em

relação ao que ele chama de “a natureza hipotética do 20

pressuposto acerca do trabalho livre”, natureza hipotética que o próprio Marx poria em questão ao assumir a “compra” das mulheres e crianças pelos capitalistas. Isto permite a Banaji retomar a defesa de Mommsen, que “pode ser defendido nos termos de sua caracterização da economia da República Romana como

21«baseada nas massas de capital e especulação»”, ideia que – por outra parte – estaria presente também em Marx, quando classifica os escravistas americanos de capitalistas ou Catão de “proprietário de terras

22capitalista”, etc.Banaji sustenta, além disso, que o fragmento de

Marx da página 121, na qual há a referência crítica a Mommsen, “é um dos menos bem construídos em O

23Capital”. Ao contrário de Banaji, que parece não compreender totalmente o marco no qual se inserem estes recortes discursivos, considero que podem ser extraídas desses conclusões diferentes. A ênfase de Marx neste fragmento concentra-se claramente na questão do controle da força de trabalho por parte do trabalhador, como livre proprietário de seu trabalho, por meio de sua pessoa, para oferecê-la como mercadoria no mercado. Por isso, Marx assinala pouco antes que a troca de mercadorias não implica relações de dependência, salvo as que decorrem de seu próprio caráter. Porém, nas sociedades pré-capitalistas, os trabalhadores normalmente se encontram imersos em redes de dependência que não os constituem como legítimos possuidores de sua força de trabalho. Pelo contrário, quando isto ocorre legitimamente, como no caso dos pobres de origem livre na sociedade romana, sua condição é assimilada à servidão por aqueles que contratam sua capacidade de trabalho. Esta é a relação de locatio-conductio, que não é uma relação de venda da força de trabalho, mas de aluguel da mesma ou de sua

19MARX, op.cit., L. I., p. 452-453.20(…) “the hypothetical nature of the assumption about the free worker”.21(…) “can be defended in terms of his characterisation of the economy of the Roman Republic as «based on masses of capital and on speculation»”.22BANAJI, op. cit., p. 129. O destacado na citação de Banaji faz referência a MOMMSEN, T. (1866), Römische Geschichte Bd. 3 (4ta ed.), Berlin. p. 504.23(…) “is one of the least well constructed in Capital”, BANAJI, op. cit., p. 127-8.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (23-27) Capitalismo romano, modernismo e marxismo. A propósito de algumas ideias de Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado

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24aplicação a uma obra determinada. Esta prestação era considerada própria de pessoas servis, posto que no mundo antigo o fato de se trabalhar para terceiros por um salário era visto como um fato indigno. Em um sistema econômico cujo fundamento está no intercâmbio de mercadorias, deve dar-se como pressuposto que os indivíduos disponham livremente de sua força de trabalho para poder vendê-la como tal. É por isso que Marx destaca, então, que, “partindo desta premissa” (isto é, de que o intercâmbio não implica em relações de dependência) a força de trabalho pode aparecer no mercado como uma mercadoria oferecida pelo seu

26próprio possuidor. Banaji, pelo contrário, entende que “se a predominância do trabalho livre é meramente uma premissa, que sentido faz arrastar a história para o cenário

27e contestar um retrato histórico da realidade?” O autor entende que esta “premissa” (“assumption”) não tem nenhum efeito teórico no raciocínio, já que a toma como um pressuposto que contradiz a realidade, a saber, uma realidade na qual o trabalho assalariado coexiste com outras formas. Além disso, Banaji (2010:128) argumenta que:

Acima de tudo, mesmo a afirmação “Com base neste pressuposto, a força de trabalho pode aparecer no mercado como uma mercadoria apenas se, e na medida em que, seu possuidor, o indivíduo no qual está a força de trabalho, oferece-a para venda ou a vende como uma mercadoria” deixa de ser uma dedução válida por que ignora a escravidão. A força de trabalho pode aparecer no mercado como uma mercadoria, e de fato o fez, até mesmo quando trabalhadores livres eram escassos ou

28inexistentes.

Desta maneira, estranhamente, equipara-se a posição do trabalhador livre com a do escravo, pois este atende às necessidades do “mercado” que demanda força de trabalho. Banaji parece negar, portanto, toda diferença entre o livre possuidor de sua força de trabalho como mercadoria, o assalariado, e o escravo, cuja pessoa é comprada pelo senhor para cobrir a demanda da força de

24É a diferença existente entre locatio conductio operis faciendi e locatio conductio operarum. Ver DE NEEVE, P.W. Colonus. Amsterdam: J.C. Gieben Publisher, 1984. p. 4 ss.25Estas percepções parecem remontar ao mundo grego. PLATÃO, República, 346b-d, afirma que a peculiaridade da arte do mercenário é receber um salário, diferenciando-o dos ofícios: “a medicina produz a saúde, a arte do mercenário produz um salário, e o da arquitetura uma casa”.26MARX, op.cit., L. I., p. 198.27(…) “if the predominance of free labour is merely an assumption, what sense does it make to drag history into the picture and contest a historical depiction of reality?”. O fragmento citado por Banaji da edição inglesa de O Capital é o seguinte: “[o]n this assumption, labour-power can appear on the market as a commodity only if, and in so far as, its possessor, the individual whose labour-power it is, offers it for sale or sells it as a commodity”.28(…) “Moreover, even the statement 'On this assumption, labour-power can appear on the market as a commodity only if, and in so far as, its possessor, the individual whose labour-power it is, offers it for sale or sells it as a commodity' fails to be a valid deduction because it ignores slavery. Labour-power can appear on the market as a commodity, indeed did, even when free labourers are scarce or non-existent.”, BANAJI, op. cit., p. 128.

trabalho. Como bem ressalta o próprio Banaji, a força de trabalho pode aparecer como uma mercadoria no mercado mesmo quando os trabalhadores livres são escassos ou inexistentes. O que se deveria destacar, em primeiro lugar, nesta afirmação é que o “mercado” não é “o” mercado, sobretudo nas sociedades pré-capitalistas, nas quais as condições de existência dos mercados são radicalmente distintas daquelas características das sociedades capitalistas, nas quais todos os bens se intercambiam como mercadorias, ao passo que, em uma sociedade como a romana, apenas uma pequena parte de tudo o que era produzido ingressava na esfera de intercâmbio. Por isso, seria conveniente ressaltar a distinção entre o mercado capitalista e os diferentes tipos

29de mercados pré-capitalistas. Em segundo lugar, deveria ser ressaltado o fato de que as afirmações de Marx pretendem destacar a lógica que organiza o funcionamento do modo de produção. No capitalismo esta lógica se fundamenta na apropriação de mais-valor no processo de trabalho, um aspecto marginal na sociedade romana cuja acumulação de excedentes provém basicamente da extração de renda por critérios extraeconômicos. Banaji assinala que: “O ponto destas observações não é negar a centralidade do “trabalho livre” para a acumulação de capital na economia moderna (formas modernas de capitalismo), mas para minar a forma particular como Marx tenta construir a

30ligação entre trabalho assalariado e capital”.Estou de acordo com a ênfase de Banaji na

questão teórica que pretende desvencilhar os distintos modos de produção da relação com as formas de exploração do trabalho (o que nos levaria à cômoda existência de três modos de produção em correspondência à escravidão, à servidão e ao trabalho assalariado). Entendo perfeitamente a vontade teórica de romper com essa ilusão. Porém, isso não quer dizer que se suponha uma regra que determine que em todos os casos deva ocorrer o mesmo e que, necessariamente, em todos os modos de produção o sistema econômico se organiza de maneira independente das formas de exploração do trabalho. O nexo entre trabalho assalariado e capital pode ser questionado em termos relativos, porém não a partir do critério teórico que supõe as reflexões invalidadas por Marx. Depreende-se logicamente que nas sociedades capitalistas existiram (existem) outras formas de trabalho para além do assalariado, porém não se pode negar a necessidade da relação com o mesmo. Se nós passamos do longo capítulo XIII, “A maquinaria e a indústria moderna”, do Livro I de O Capital, ao seguinte, “Mais-valia absoluta e mais-valia relativa”, poderemos apreciar mais claramente esta necessidade teórica à qual se faz referência. Marx diz ali que:

29Ver BANG, Peter F. The Roman Bazaar. A comparative Study of Trade and Markets in a Tributary Empire. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2008. O autor apresenta nesse livro condições históricas próprias do mundo antigo para entender o alcance de seus mercados a partir de aspectos comparativos com a economia da Índia Mugal.30(…) “The point of these remarks is not to deny the centrality of 'free labour' to the accumulation of capital in the modern economy (modern forms of capitalism) but to undermine the particular way Marx attempts to construe the link between wage-labour and capital.”, BANAJI, op. cit., p. 128.

A produção da mais-valia absoluta se realiza com o prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador produz apenas um equivalente ao valor de sua força de trabalho e com a apropriação pelo capital desse trabalho excedente. Ela constitui o fundamento do sistema capitalista e o ponto de partida da produção da mais-valia relativa. Esta pressupõe que a jornada de trabalho já esteja dividida em duas partes: trabalho necessário e trabalho excedente. Para prolongar o trabalho excedente, encurta-se o trabalho necessário com métodos que permitem produzir-se em menos tempo o equivalente ao salário. A produção da mais-valia absoluta gira exclusivamente em torno da duração da jornada e trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinações sociais.A produção da mais-valia relativa pressupõe, p o r t a n t o , u m m o d o d e p r o d u ç ã o especificamente capitalista, que, com seus métodos, meios e condições, surge e se desenvolve, de início, na base da subordinação formal do trabalho ao capital. No curso desse desenvolvimento, essa subordinação formal é substituída pela sujeição real do trabalho ao

31capital.

O funcionamento do sistema capitalista e o processo de acumulação baseado na produção de mais-valor relativo se fundam justamente na forma em que se organiza o processo de trabalho, no qual este está subsumido ao capital. Esta lógica não poderia funcionar sem assalariados que dependem do mercado no qual trocam seus salários por mercadorias, salário que ao menos devem ser equivalentes ao trabalho necessário. A produção do mais-valor relativo depende da existência desse sistema capitalista sem o qual o mecanismo não pode funcionar, e que consiste na diminuição do tempo de trabalho necessário em relação ao tempo excedente, através, por exemplo, do aumento da produtividade. Se o mais-valor absoluto tem um limite físico, que é o tempo de trabalho necessário que o trabalhador precisa para reproduzir a força de trabalho que a produção voltará a demandar, ao contrário, o mais-valor relativo tem uma tendência ao crescimento que depende do processo produtivo em si mesmo e está relacionado com a capacidade de reinvestir o capital e conseguir baratear o custo do tempo necessário ao trabalhador. Assim, Marx continua,

I n d i c a r e m o s , d e p a s s a g e m , f o r m a s intermediárias em que o trabalho excedente não é extorquido por coação direta ao produtor, ainda não estando este formalmente sujeito ao capital. Nessas formas, o capital ainda não se apossou diretamente do processo de trabalho. Ao lado dos produtores independentes, que exercem seus ofícios ou lavram a terra com métodos tradicionais e antigos, encontramos o usurário ou o comerciante, o capital usurário ou o capital comercial, que os suga parasitariamente. A predominância dessa forma de exploração numa

sociedade exclui o modo capitalista de produção, para o qual pode servir de transição,

32como ocorreu nos fins da Idade Média.

Pode-se observar aqui que Marx fala de “capital” com dois critérios teóricos distintos. Um é o capital comercial ou usurário, que, no mesmo sentido que pode reconhecer Banaji, ou mesmo Mommsen, existia no mundo antigo. O problema é estender este conceito de capital comercial ou usurário ao conceito de capital resultante das interações socioeconômicas próprias do modo de produção capitalista. Quando o capital comercial não se apropria do processo de trabalho, não pode ser identificado teoricamente com o conceito de capital que emana do modo de produção capitalista, no qual existe uma subsunção formal do trabalho ao capital ou uma subsunção real do trabalhador ao capitalista. Por isso é que Marx indica que “A predominância dessa forma de exploração [isto é, o capital comercial ou usurário] numa sociedade exclui o modo capitalista de produção”. Obviamente que, para que isto ocorra, também deve existir trabalho assalariado. Porém, a existência do capital usurário e de assalariados não pressupõe que o sistema econômico terminará inexoravelmente na subsunção dos assalariados aos capitalistas. Mais precisamente, o que Marx destaca é que o regime de produção capitalista, neste último caso, está excluído. Por outro lado, estabelecer a partir de um ponto de vista contrafactual que isso poderia ter chegado a acontecer no Império Romano tem o mesmo estatuto científico que a teoria do éter, mas isto é outra discussão. Talvez fosse conveniente manter o critério formal de chamar o “capital comercial” com o adjetivo de maneira permanente, ou chamá-lo “capital de tipo antigo”, o que permitiria uma clareza conceitual. De todas as maneiras, quando se opera com tal licença e se fala de “capitalismo romano”, chega-se a um erro teórico que supõe outorgar ao capital comercial a subsunção do processo de trabalho,

33coisa que não ocorre na economia romana.

Artigo recebido em 15.1.2012Aprovado em 30.4.2012

31MARX, op. cit., L. 1, p. 578-579.

32MARX, op. cit., L. 1, p. 579.33Obviamente, isto implica em matizes. WEBER, Max. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1987. p. 1025-27 e também 1033-4; utiliza o conceito de “capitalismo antigo” justamente como uma forma de marcar a diferença com as condições econômicas do mundo moderno. Ver GARCÍA MAC GAW, Carlos. La ciudad antigua: aspectos económicos e historiográficos. Studia Historica - Historia Antigua, Vol. 26, 2008, p. 237-69. p. 242.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (23-27) Capitalismo romano, modernismo e marxismo. A propósito de algumas ideias de Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado

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26 - - 27

24aplicação a uma obra determinada. Esta prestação era considerada própria de pessoas servis, posto que no mundo antigo o fato de se trabalhar para terceiros por um salário era visto como um fato indigno. Em um sistema econômico cujo fundamento está no intercâmbio de mercadorias, deve dar-se como pressuposto que os indivíduos disponham livremente de sua força de trabalho para poder vendê-la como tal. É por isso que Marx destaca, então, que, “partindo desta premissa” (isto é, de que o intercâmbio não implica em relações de dependência) a força de trabalho pode aparecer no mercado como uma mercadoria oferecida pelo seu

26próprio possuidor. Banaji, pelo contrário, entende que “se a predominância do trabalho livre é meramente uma premissa, que sentido faz arrastar a história para o cenário

27e contestar um retrato histórico da realidade?” O autor entende que esta “premissa” (“assumption”) não tem nenhum efeito teórico no raciocínio, já que a toma como um pressuposto que contradiz a realidade, a saber, uma realidade na qual o trabalho assalariado coexiste com outras formas. Além disso, Banaji (2010:128) argumenta que:

Acima de tudo, mesmo a afirmação “Com base neste pressuposto, a força de trabalho pode aparecer no mercado como uma mercadoria apenas se, e na medida em que, seu possuidor, o indivíduo no qual está a força de trabalho, oferece-a para venda ou a vende como uma mercadoria” deixa de ser uma dedução válida por que ignora a escravidão. A força de trabalho pode aparecer no mercado como uma mercadoria, e de fato o fez, até mesmo quando trabalhadores livres eram escassos ou

28inexistentes.

Desta maneira, estranhamente, equipara-se a posição do trabalhador livre com a do escravo, pois este atende às necessidades do “mercado” que demanda força de trabalho. Banaji parece negar, portanto, toda diferença entre o livre possuidor de sua força de trabalho como mercadoria, o assalariado, e o escravo, cuja pessoa é comprada pelo senhor para cobrir a demanda da força de

24É a diferença existente entre locatio conductio operis faciendi e locatio conductio operarum. Ver DE NEEVE, P.W. Colonus. Amsterdam: J.C. Gieben Publisher, 1984. p. 4 ss.25Estas percepções parecem remontar ao mundo grego. PLATÃO, República, 346b-d, afirma que a peculiaridade da arte do mercenário é receber um salário, diferenciando-o dos ofícios: “a medicina produz a saúde, a arte do mercenário produz um salário, e o da arquitetura uma casa”.26MARX, op.cit., L. I., p. 198.27(…) “if the predominance of free labour is merely an assumption, what sense does it make to drag history into the picture and contest a historical depiction of reality?”. O fragmento citado por Banaji da edição inglesa de O Capital é o seguinte: “[o]n this assumption, labour-power can appear on the market as a commodity only if, and in so far as, its possessor, the individual whose labour-power it is, offers it for sale or sells it as a commodity”.28(…) “Moreover, even the statement 'On this assumption, labour-power can appear on the market as a commodity only if, and in so far as, its possessor, the individual whose labour-power it is, offers it for sale or sells it as a commodity' fails to be a valid deduction because it ignores slavery. Labour-power can appear on the market as a commodity, indeed did, even when free labourers are scarce or non-existent.”, BANAJI, op. cit., p. 128.

trabalho. Como bem ressalta o próprio Banaji, a força de trabalho pode aparecer como uma mercadoria no mercado mesmo quando os trabalhadores livres são escassos ou inexistentes. O que se deveria destacar, em primeiro lugar, nesta afirmação é que o “mercado” não é “o” mercado, sobretudo nas sociedades pré-capitalistas, nas quais as condições de existência dos mercados são radicalmente distintas daquelas características das sociedades capitalistas, nas quais todos os bens se intercambiam como mercadorias, ao passo que, em uma sociedade como a romana, apenas uma pequena parte de tudo o que era produzido ingressava na esfera de intercâmbio. Por isso, seria conveniente ressaltar a distinção entre o mercado capitalista e os diferentes tipos

29de mercados pré-capitalistas. Em segundo lugar, deveria ser ressaltado o fato de que as afirmações de Marx pretendem destacar a lógica que organiza o funcionamento do modo de produção. No capitalismo esta lógica se fundamenta na apropriação de mais-valor no processo de trabalho, um aspecto marginal na sociedade romana cuja acumulação de excedentes provém basicamente da extração de renda por critérios extraeconômicos. Banaji assinala que: “O ponto destas observações não é negar a centralidade do “trabalho livre” para a acumulação de capital na economia moderna (formas modernas de capitalismo), mas para minar a forma particular como Marx tenta construir a

30ligação entre trabalho assalariado e capital”.Estou de acordo com a ênfase de Banaji na

questão teórica que pretende desvencilhar os distintos modos de produção da relação com as formas de exploração do trabalho (o que nos levaria à cômoda existência de três modos de produção em correspondência à escravidão, à servidão e ao trabalho assalariado). Entendo perfeitamente a vontade teórica de romper com essa ilusão. Porém, isso não quer dizer que se suponha uma regra que determine que em todos os casos deva ocorrer o mesmo e que, necessariamente, em todos os modos de produção o sistema econômico se organiza de maneira independente das formas de exploração do trabalho. O nexo entre trabalho assalariado e capital pode ser questionado em termos relativos, porém não a partir do critério teórico que supõe as reflexões invalidadas por Marx. Depreende-se logicamente que nas sociedades capitalistas existiram (existem) outras formas de trabalho para além do assalariado, porém não se pode negar a necessidade da relação com o mesmo. Se nós passamos do longo capítulo XIII, “A maquinaria e a indústria moderna”, do Livro I de O Capital, ao seguinte, “Mais-valia absoluta e mais-valia relativa”, poderemos apreciar mais claramente esta necessidade teórica à qual se faz referência. Marx diz ali que:

29Ver BANG, Peter F. The Roman Bazaar. A comparative Study of Trade and Markets in a Tributary Empire. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2008. O autor apresenta nesse livro condições históricas próprias do mundo antigo para entender o alcance de seus mercados a partir de aspectos comparativos com a economia da Índia Mugal.30(…) “The point of these remarks is not to deny the centrality of 'free labour' to the accumulation of capital in the modern economy (modern forms of capitalism) but to undermine the particular way Marx attempts to construe the link between wage-labour and capital.”, BANAJI, op. cit., p. 128.

A produção da mais-valia absoluta se realiza com o prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador produz apenas um equivalente ao valor de sua força de trabalho e com a apropriação pelo capital desse trabalho excedente. Ela constitui o fundamento do sistema capitalista e o ponto de partida da produção da mais-valia relativa. Esta pressupõe que a jornada de trabalho já esteja dividida em duas partes: trabalho necessário e trabalho excedente. Para prolongar o trabalho excedente, encurta-se o trabalho necessário com métodos que permitem produzir-se em menos tempo o equivalente ao salário. A produção da mais-valia absoluta gira exclusivamente em torno da duração da jornada e trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinações sociais.A produção da mais-valia relativa pressupõe, p o r t a n t o , u m m o d o d e p r o d u ç ã o especificamente capitalista, que, com seus métodos, meios e condições, surge e se desenvolve, de início, na base da subordinação formal do trabalho ao capital. No curso desse desenvolvimento, essa subordinação formal é substituída pela sujeição real do trabalho ao

31capital.

O funcionamento do sistema capitalista e o processo de acumulação baseado na produção de mais-valor relativo se fundam justamente na forma em que se organiza o processo de trabalho, no qual este está subsumido ao capital. Esta lógica não poderia funcionar sem assalariados que dependem do mercado no qual trocam seus salários por mercadorias, salário que ao menos devem ser equivalentes ao trabalho necessário. A produção do mais-valor relativo depende da existência desse sistema capitalista sem o qual o mecanismo não pode funcionar, e que consiste na diminuição do tempo de trabalho necessário em relação ao tempo excedente, através, por exemplo, do aumento da produtividade. Se o mais-valor absoluto tem um limite físico, que é o tempo de trabalho necessário que o trabalhador precisa para reproduzir a força de trabalho que a produção voltará a demandar, ao contrário, o mais-valor relativo tem uma tendência ao crescimento que depende do processo produtivo em si mesmo e está relacionado com a capacidade de reinvestir o capital e conseguir baratear o custo do tempo necessário ao trabalhador. Assim, Marx continua,

I n d i c a r e m o s , d e p a s s a g e m , f o r m a s intermediárias em que o trabalho excedente não é extorquido por coação direta ao produtor, ainda não estando este formalmente sujeito ao capital. Nessas formas, o capital ainda não se apossou diretamente do processo de trabalho. Ao lado dos produtores independentes, que exercem seus ofícios ou lavram a terra com métodos tradicionais e antigos, encontramos o usurário ou o comerciante, o capital usurário ou o capital comercial, que os suga parasitariamente. A predominância dessa forma de exploração numa

sociedade exclui o modo capitalista de produção, para o qual pode servir de transição,

32como ocorreu nos fins da Idade Média.

Pode-se observar aqui que Marx fala de “capital” com dois critérios teóricos distintos. Um é o capital comercial ou usurário, que, no mesmo sentido que pode reconhecer Banaji, ou mesmo Mommsen, existia no mundo antigo. O problema é estender este conceito de capital comercial ou usurário ao conceito de capital resultante das interações socioeconômicas próprias do modo de produção capitalista. Quando o capital comercial não se apropria do processo de trabalho, não pode ser identificado teoricamente com o conceito de capital que emana do modo de produção capitalista, no qual existe uma subsunção formal do trabalho ao capital ou uma subsunção real do trabalhador ao capitalista. Por isso é que Marx indica que “A predominância dessa forma de exploração [isto é, o capital comercial ou usurário] numa sociedade exclui o modo capitalista de produção”. Obviamente que, para que isto ocorra, também deve existir trabalho assalariado. Porém, a existência do capital usurário e de assalariados não pressupõe que o sistema econômico terminará inexoravelmente na subsunção dos assalariados aos capitalistas. Mais precisamente, o que Marx destaca é que o regime de produção capitalista, neste último caso, está excluído. Por outro lado, estabelecer a partir de um ponto de vista contrafactual que isso poderia ter chegado a acontecer no Império Romano tem o mesmo estatuto científico que a teoria do éter, mas isto é outra discussão. Talvez fosse conveniente manter o critério formal de chamar o “capital comercial” com o adjetivo de maneira permanente, ou chamá-lo “capital de tipo antigo”, o que permitiria uma clareza conceitual. De todas as maneiras, quando se opera com tal licença e se fala de “capitalismo romano”, chega-se a um erro teórico que supõe outorgar ao capital comercial a subsunção do processo de trabalho,

33coisa que não ocorre na economia romana.

Artigo recebido em 15.1.2012Aprovado em 30.4.2012

31MARX, op. cit., L. 1, p. 578-579.

32MARX, op. cit., L. 1, p. 579.33Obviamente, isto implica em matizes. WEBER, Max. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1987. p. 1025-27 e também 1033-4; utiliza o conceito de “capitalismo antigo” justamente como uma forma de marcar a diferença com as condições econômicas do mundo moderno. Ver GARCÍA MAC GAW, Carlos. La ciudad antigua: aspectos económicos e historiográficos. Studia Historica - Historia Antigua, Vol. 26, 2008, p. 237-69. p. 242.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (23-27) Capitalismo romano, modernismo e marxismo. A propósito de algumas ideias de Jairus Banaji sobre o trabalho assalariado

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Pagar com dinheiro, pagar com sangue:resolução de conflitos, modo de produção germânicoe a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

1

*Diego Labra

cada inverno, Njal e Gunnar costumam receber um ao outro com um festim a fim de fortalecer o já firme laço de amizade que os une. Ambos são homens ilustres, o primeiro, grande orador e conhecedor da lei; o segundo, bravo guerreiro e grande matador de homens. Mas, para além das convenções, na narrativa vemos um genuíno apreço entre eles. Neste ano em particular, era a vez de Njal servir de anfitrião, razão pela qual Gunnar, junto à esposa, se dirigiu à casa dele. Chegado o momento de dispor os assentos para o jantar, Bergthora, a senhora da casa, aproximou-se a Hallgerd, já sentada, e exigiu-lhe que cedesse o lugar à nora, Thorhalla, esposa de Helgi. A isso respondeu a conviva: “A ninguém darei lugar, pois

2não serei posta de lado por quem quer que seja”. No entanto, a senhora da casa afirmou os seus direitos no próprio lar e Thorhalla sentou-se onde devia. Se na Saga de Njal há algo que aprendemos sobre Hallgerd é que ela não tolerava um desafio. A língua rápida, quase bífida: “Não há, contudo, muita diferença entre vós dois. Crias

3caso por qualquer coisa e Njal é imberbe”. O tom das palavras eleva-se rapidamente, o discurso afia-se: “'É verdade', diz Bergthora, 'ainda assim, nenhum de nós culpa o outro por isso; mas Thorwald, teu marido, não

4era imberbe e, entretanto, tramaste-lhe a morte”. “Deixa-me em má posição ter o homem mais bravo da

5Islândia se não vingares isso, Gunnar!” Embora este último coloque panos quentes sobre o conflito, pois, afinal, não vai sacar a espada na casa de Njal, a quem deve tanta honra, a festa gorou. Ambos partem, não sem que antes Hallegard prometa à dona da casa que o caso não havia de passar em branco. Não se enganou. Esse duelo verbal foi apenas o começo de um enfrentamento entre duas mulheres que ceifaria um punhado de vidas.

A dinâmica que sucedeu ao confronto foi a seguinte: Hallgerd mandou que Kol, homem da sua linhagem, matasse Swart, criado de Njal, sob o pretexto de um problema acerca dos bosques que os maridos possuíam em comum. O assassinato foi levado a cabo e a

1Tradução de Álvaro Mendes Ferreira e revisão de Mário Jorge da Motta Bastos.*Professor de Historia na Universidade Nacional de La Plata. 2“To no one will I give place, for I will not be driven into the corner for any one”.3“There's not much to choose, though, between you two. Thou hast hangnails on every finger, and Njal is beardless”.4“'That's true', says Bergthora, 'yet neither of us finds fault with the other for it; but Thorwald, thy husband, was not beardless, and yet thou plottedst his death'”.5“It stands me in little stead to have the bravest man in Iceland if thou dost not avenge this, Gunnar!” ANONIMO, The Story of Burnt Njal, trad. George W. DaSent [1861], en Icelandic Saga Database [on-line] [Consultado: 15 de outubro de 2011], p. 41. (Doravante Nj.).

notícia chegou aos ouvidos de Gunnar, quem, de bom grado e com pesar, compensou Njal pelo homem da sua casa que havia sido morto. Mas de pouca valia eram as doze onças de prata para Bergthora, quem ordena a Atli, seu novo serviçal, o assassinato de Kol, o qual foi, por sua vez, indenizado por Njal com a mesma quantia de prata. Atli morreu às mãos de Brynjolf, e este nas de Thord, e ele nas de Sigmund e Skiolld. Assim o conflito escalou, tanto na importância dos homens mortos como no calibre das indenizações, até que os últimos dois assassinos fossem mortos pelas mãos dos próprios filhos de Njal, pois Thord

6era seu padrinho e por ele muito estimado. Até aqui chegou o conflito, pelo menos na sequência imediata do episódio, pois o ódio entre as duas linhagens persistiu profundamente durante gerações. Apesar de tudo, Njal e Gunnar nunca romperam a cordialidade que reinava entre eles, “e esse acordo foi bem mantido para sempre, e eles foram sempre amigos”

O relato é uma versão abreviada, uma de muitas existentes, daquele descrito na já citada Saga de Njal, texto anônimo islandês, sendo esta em particular classificada entre as chamadas sagas de família, que descrevem a vida social de “homens comuns” em contraste com, por exemplo, as sagas de reis. A saga em tela relata feitos acontecidos por volta do ano 1000 d.C., embora tenham sido registrados por escrito apenas no século XIII, supostamente de maneira fidedigna a partir

8de uma fornida tradição oral. Não é minha intenção discutir a veracidade da fonte, adotando posição similar à exporta por Miller (“Mesmo essas ficções são limitadas pelo escopo do possível na cultura e, portanto, têm

9informação social importante a revelar” ), mas chamarei a atenção para o episódio do conflito em particular, já

10analisado noutras obras, para pensá-lo a partir de uma possível leitura dual acerca das vias de resolução de conflito. Opções contraditórias, porém não opostas, como se provará no desenvolvimento do artigo.

6A dinâmica do conflito encontra-se representada num claro gráfico no texto de MILLER, William Ian. Bloodtaking and peacemaking: Feud, law, and society in Saga Iceland, Chicago: The University of Chicago Press, 1996.7“and this pledge was well kept ever after, and they were always friends”. Nj., p. 598EGGER de IÖLSTER, Nelly, “Mujeres en la Saga de Njal”, Temas Medievales [versão on-line], Vol. 12, No.1, enero/diciembre 2004, p. 1. http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0327-509420040001000029“Even these fictions are constrained by the ranges of the possible in the culture and hence have useful social information to reveal”. William Ian Miller, Óp. Cit., p. 46.10Prominentemente no já citado trabalho de Miller y en BYOCK, Jesse. Feud in the Icelandic Saga. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1982.

Por um lado, há o que chamaremos provisoriamente a via pública de resolução do conflito. Tal opção está encarnada pela Assembleia (Althing ou Thing na saga), espaço social e físico de litígio, onde, com regularidade, provavelmente nos meses estivais, os homens livres da região se encontram para resolver conflitos, propor ações, encontrar uma esposa e, em geral, estabelecer laços sociais com seus pares, quer mediante o pagamento de cauções ou de outras opções. Embora os participantes façam-no na qualidade de iguais, é nessa arena que se põem em jogo as diferenças de hierarquia, sendo a maioria representada pelo chefe local (Goði ou goðar no plural), os quais, por sua vez, podem alinhar-se a um homem de maior poder. Mais importante ainda, esse espaço não é apenas onde se tornam visíveis as diferenças hierárquicas, mas é aí mesmo onde elas são construídas pela defesa de terceiros a cooptar-se, pelo uso exemplar da lei e da palavra em geral. O que quero dizer com isso, como veremos mais adiante em detalhe, é que o Althing não é “apenas” a esfera mais importante da vida comunitária islandesa, mas a sua totalidade. Localizado num espaço físico fixo, ladeado por cabanas semifixas onde os homens se hospedam enquanto durar a reunião, é o ponto espacial e temporal mais importante onde se congregam os homens para debater. Essa mesma estrutura, num nível inferior, é replicada pelos tribunais locais. Como se pode apreciar na série de eventos em causa, uma segunda opção de resolução dá-se à margem da Assembleia na medida em que os homens, como Njal e Gunnar, chegam a um acordo privado. Para fins analíticos englobo tais acordos, pelos quais se evita incorrer no juízo propriamente dito no qual a solução seria dada por um mediador e um jurado designado pelo Althing, aqueles que na literatura especializada se chamam self-judgment, na esfera do provisoriamente público, por razões que explicarei mais abaixo. Por último, depreende-se também que essa esfera de ação está restrita aos homens, pois são os únicos que acedem a tal instância de participação.

A segunda via de resolução, que chamaremos por ora privada, é a do sangue, da vingança direta, a qual inevitavelmente degenera numa cadeia de assassinatos sem fim, de vinganças e contravinganças, razão pela qual se erige a instância pública para encerrar um ciclo que põe em perigo a própria existência biológica da comunidade. O assassinato, violento, como se lê na saga, permanece fora das possibilidades da mulher nesse mundo onde a força bruta aparece, embora discursivamente, como a única maneira de matar. Isso faria dessa esfera de participação e de todo ato de caráter político-social exclusividade masculina. Todavia, na saga, a mulher mata. Seja por omissão, como no episódio da mecha de cabelo que termina com o fim de Gunnar, ou por meio doutros homens, como em nosso capítulo. Hallgerd e Bergthora, em resposta à debilidade dos esposos, que travam acordo em vez de exigir o sangue a elas devido, decidem elas mesmas valer-se de outros homens, que, por uma razão ou outra, lhes deviam serviço.

Isso não quer dizer que os homens não optem pelo sangue, como os filhos de Njal ante a morte do

11“There have been good housewives before now, though they never set their hearts on manslaughter”. Nj., p. 42.12MAUSS, Marcel. Ensayo sobre el don. Forma y función del intercambio en las sociedades arcaicas, Madrid: Katz Editores, 2009.13“Bergthora spoke and said, when men sate down to the board, "Gifts have been given to all of you, father and sons, and ye will be no true men unless ye repay them somehow". "What gifts are these?" asks Skarphedinn. "You, my sons," says Bergthora, "have got one gift between you all. Ye are nick-named 'Dung-beardlings,' but my husband 'the beardless carle'”. Nj., p. 56.

padrinho Thord. Mas deve-se ter em conta que a vingança direta é representada como um valor negativo. Não se deve confundir com uma pregação contra a violência, pois esta se encontra exaltada nos casos de expedições de saque ou outros “atos heroicos”. A diferença entre “violências” separa um herói como Gunnar de assassinos como Kol ou Sigmund. Da mesma forma, o recurso do sangue por parte das mulheres não aparece justificado dentro do texto. A mãe de Gunnar, ao ouvir as intenções de Hallgerd diz, “Tem havido boas esposas até hoje, mas

11 elas jamais desejaram massacres”. Trata-se, de qualquer maneira, do lugar que ocupam e que exercem.

A oposição entre ambas as vias de resolução é construída discursivamente no relato por meio do simples contraste entre as ações. Conquanto ao final do episódio a via conciliatória pareça vencer em forma alegórica na amizade de Njal e Gunnar, a vingança transbordará o conflito em particular, desencadeando muito mais derramamento de sangue ao longo da saga. Para sermos precisos, o ódio entre as famílias antecede, inclusive, o capítulo, tendo raiz mais profunda. Mas, em realidade, esses mecanismos podem ser entendidos como contraditórios num sentido dialético, dinâmico. Um alimenta o outro (sobretudo, a via do sangue em relação à via da resolução pública, embora na saga, como se vê no episódio, a resolução monetária insatisfatória degenera, por seu turno, em vingança) e ambos compõem a totalidade da arena onde o poder, instável como o é numa sociedade hierarquizada que não o institucionalizou, é obtido e perdido. Trata-se de uma esfera inteiramente masculina, como veremos mais à frente, por determinações estruturais, ainda que algumas mulheres possam nela intervir.

Destarte, o assassinato e a afronta circulam como 12um dom, no sentido que lhe dá Mauss como parte de um

“sistema de prestações totais”, dinamizando os intercâmbios de caráter político e social. O dom gera a circulação em sociedades pré-capitalistas, onde a mercadoria e o comércio não são fins em si mesmos, porque há obrigatoriedade em aceitá-lo e sua recepção obriga à devolução, instaurando no intercâmbio algo mais do que o elemento material aparente, o objeto carregado por uma força sobrenatural (hau entre os maoris), especialmente comum no intercâmbio de mortos.

Bergthora falou e disse, quando os homens se sentaram à mesa, "Presentes têm sido dados a vós todos, pais e filhos, e não sereis homens de verdade a menos que os retribuais de alguma forma". "Que presentes são esses?" pergunta Skarphedinn. "Meus filhos," diz Bergthora, "recebestes um presente para vós todos. Sois chamados de 'Barba de esterco', mas meu marido

13'o vilão imberbe'”.

A

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (28-33) Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

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Pagar com dinheiro, pagar com sangue:resolução de conflitos, modo de produção germânicoe a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

1

*Diego Labra

cada inverno, Njal e Gunnar costumam receber um ao outro com um festim a fim de fortalecer o já firme laço de amizade que os une. Ambos são homens ilustres, o primeiro, grande orador e conhecedor da lei; o segundo, bravo guerreiro e grande matador de homens. Mas, para além das convenções, na narrativa vemos um genuíno apreço entre eles. Neste ano em particular, era a vez de Njal servir de anfitrião, razão pela qual Gunnar, junto à esposa, se dirigiu à casa dele. Chegado o momento de dispor os assentos para o jantar, Bergthora, a senhora da casa, aproximou-se a Hallgerd, já sentada, e exigiu-lhe que cedesse o lugar à nora, Thorhalla, esposa de Helgi. A isso respondeu a conviva: “A ninguém darei lugar, pois

2não serei posta de lado por quem quer que seja”. No entanto, a senhora da casa afirmou os seus direitos no próprio lar e Thorhalla sentou-se onde devia. Se na Saga de Njal há algo que aprendemos sobre Hallgerd é que ela não tolerava um desafio. A língua rápida, quase bífida: “Não há, contudo, muita diferença entre vós dois. Crias

3caso por qualquer coisa e Njal é imberbe”. O tom das palavras eleva-se rapidamente, o discurso afia-se: “'É verdade', diz Bergthora, 'ainda assim, nenhum de nós culpa o outro por isso; mas Thorwald, teu marido, não

4era imberbe e, entretanto, tramaste-lhe a morte”. “Deixa-me em má posição ter o homem mais bravo da

5Islândia se não vingares isso, Gunnar!” Embora este último coloque panos quentes sobre o conflito, pois, afinal, não vai sacar a espada na casa de Njal, a quem deve tanta honra, a festa gorou. Ambos partem, não sem que antes Hallegard prometa à dona da casa que o caso não havia de passar em branco. Não se enganou. Esse duelo verbal foi apenas o começo de um enfrentamento entre duas mulheres que ceifaria um punhado de vidas.

A dinâmica que sucedeu ao confronto foi a seguinte: Hallgerd mandou que Kol, homem da sua linhagem, matasse Swart, criado de Njal, sob o pretexto de um problema acerca dos bosques que os maridos possuíam em comum. O assassinato foi levado a cabo e a

1Tradução de Álvaro Mendes Ferreira e revisão de Mário Jorge da Motta Bastos.*Professor de Historia na Universidade Nacional de La Plata. 2“To no one will I give place, for I will not be driven into the corner for any one”.3“There's not much to choose, though, between you two. Thou hast hangnails on every finger, and Njal is beardless”.4“'That's true', says Bergthora, 'yet neither of us finds fault with the other for it; but Thorwald, thy husband, was not beardless, and yet thou plottedst his death'”.5“It stands me in little stead to have the bravest man in Iceland if thou dost not avenge this, Gunnar!” ANONIMO, The Story of Burnt Njal, trad. George W. DaSent [1861], en Icelandic Saga Database [on-line] [Consultado: 15 de outubro de 2011], p. 41. (Doravante Nj.).

notícia chegou aos ouvidos de Gunnar, quem, de bom grado e com pesar, compensou Njal pelo homem da sua casa que havia sido morto. Mas de pouca valia eram as doze onças de prata para Bergthora, quem ordena a Atli, seu novo serviçal, o assassinato de Kol, o qual foi, por sua vez, indenizado por Njal com a mesma quantia de prata. Atli morreu às mãos de Brynjolf, e este nas de Thord, e ele nas de Sigmund e Skiolld. Assim o conflito escalou, tanto na importância dos homens mortos como no calibre das indenizações, até que os últimos dois assassinos fossem mortos pelas mãos dos próprios filhos de Njal, pois Thord

6era seu padrinho e por ele muito estimado. Até aqui chegou o conflito, pelo menos na sequência imediata do episódio, pois o ódio entre as duas linhagens persistiu profundamente durante gerações. Apesar de tudo, Njal e Gunnar nunca romperam a cordialidade que reinava entre eles, “e esse acordo foi bem mantido para sempre, e eles foram sempre amigos”

O relato é uma versão abreviada, uma de muitas existentes, daquele descrito na já citada Saga de Njal, texto anônimo islandês, sendo esta em particular classificada entre as chamadas sagas de família, que descrevem a vida social de “homens comuns” em contraste com, por exemplo, as sagas de reis. A saga em tela relata feitos acontecidos por volta do ano 1000 d.C., embora tenham sido registrados por escrito apenas no século XIII, supostamente de maneira fidedigna a partir

8de uma fornida tradição oral. Não é minha intenção discutir a veracidade da fonte, adotando posição similar à exporta por Miller (“Mesmo essas ficções são limitadas pelo escopo do possível na cultura e, portanto, têm

9informação social importante a revelar” ), mas chamarei a atenção para o episódio do conflito em particular, já

10analisado noutras obras, para pensá-lo a partir de uma possível leitura dual acerca das vias de resolução de conflito. Opções contraditórias, porém não opostas, como se provará no desenvolvimento do artigo.

6A dinâmica do conflito encontra-se representada num claro gráfico no texto de MILLER, William Ian. Bloodtaking and peacemaking: Feud, law, and society in Saga Iceland, Chicago: The University of Chicago Press, 1996.7“and this pledge was well kept ever after, and they were always friends”. Nj., p. 598EGGER de IÖLSTER, Nelly, “Mujeres en la Saga de Njal”, Temas Medievales [versão on-line], Vol. 12, No.1, enero/diciembre 2004, p. 1. http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0327-509420040001000029“Even these fictions are constrained by the ranges of the possible in the culture and hence have useful social information to reveal”. William Ian Miller, Óp. Cit., p. 46.10Prominentemente no já citado trabalho de Miller y en BYOCK, Jesse. Feud in the Icelandic Saga. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1982.

Por um lado, há o que chamaremos provisoriamente a via pública de resolução do conflito. Tal opção está encarnada pela Assembleia (Althing ou Thing na saga), espaço social e físico de litígio, onde, com regularidade, provavelmente nos meses estivais, os homens livres da região se encontram para resolver conflitos, propor ações, encontrar uma esposa e, em geral, estabelecer laços sociais com seus pares, quer mediante o pagamento de cauções ou de outras opções. Embora os participantes façam-no na qualidade de iguais, é nessa arena que se põem em jogo as diferenças de hierarquia, sendo a maioria representada pelo chefe local (Goði ou goðar no plural), os quais, por sua vez, podem alinhar-se a um homem de maior poder. Mais importante ainda, esse espaço não é apenas onde se tornam visíveis as diferenças hierárquicas, mas é aí mesmo onde elas são construídas pela defesa de terceiros a cooptar-se, pelo uso exemplar da lei e da palavra em geral. O que quero dizer com isso, como veremos mais adiante em detalhe, é que o Althing não é “apenas” a esfera mais importante da vida comunitária islandesa, mas a sua totalidade. Localizado num espaço físico fixo, ladeado por cabanas semifixas onde os homens se hospedam enquanto durar a reunião, é o ponto espacial e temporal mais importante onde se congregam os homens para debater. Essa mesma estrutura, num nível inferior, é replicada pelos tribunais locais. Como se pode apreciar na série de eventos em causa, uma segunda opção de resolução dá-se à margem da Assembleia na medida em que os homens, como Njal e Gunnar, chegam a um acordo privado. Para fins analíticos englobo tais acordos, pelos quais se evita incorrer no juízo propriamente dito no qual a solução seria dada por um mediador e um jurado designado pelo Althing, aqueles que na literatura especializada se chamam self-judgment, na esfera do provisoriamente público, por razões que explicarei mais abaixo. Por último, depreende-se também que essa esfera de ação está restrita aos homens, pois são os únicos que acedem a tal instância de participação.

A segunda via de resolução, que chamaremos por ora privada, é a do sangue, da vingança direta, a qual inevitavelmente degenera numa cadeia de assassinatos sem fim, de vinganças e contravinganças, razão pela qual se erige a instância pública para encerrar um ciclo que põe em perigo a própria existência biológica da comunidade. O assassinato, violento, como se lê na saga, permanece fora das possibilidades da mulher nesse mundo onde a força bruta aparece, embora discursivamente, como a única maneira de matar. Isso faria dessa esfera de participação e de todo ato de caráter político-social exclusividade masculina. Todavia, na saga, a mulher mata. Seja por omissão, como no episódio da mecha de cabelo que termina com o fim de Gunnar, ou por meio doutros homens, como em nosso capítulo. Hallgerd e Bergthora, em resposta à debilidade dos esposos, que travam acordo em vez de exigir o sangue a elas devido, decidem elas mesmas valer-se de outros homens, que, por uma razão ou outra, lhes deviam serviço.

Isso não quer dizer que os homens não optem pelo sangue, como os filhos de Njal ante a morte do

11“There have been good housewives before now, though they never set their hearts on manslaughter”. Nj., p. 42.12MAUSS, Marcel. Ensayo sobre el don. Forma y función del intercambio en las sociedades arcaicas, Madrid: Katz Editores, 2009.13“Bergthora spoke and said, when men sate down to the board, "Gifts have been given to all of you, father and sons, and ye will be no true men unless ye repay them somehow". "What gifts are these?" asks Skarphedinn. "You, my sons," says Bergthora, "have got one gift between you all. Ye are nick-named 'Dung-beardlings,' but my husband 'the beardless carle'”. Nj., p. 56.

padrinho Thord. Mas deve-se ter em conta que a vingança direta é representada como um valor negativo. Não se deve confundir com uma pregação contra a violência, pois esta se encontra exaltada nos casos de expedições de saque ou outros “atos heroicos”. A diferença entre “violências” separa um herói como Gunnar de assassinos como Kol ou Sigmund. Da mesma forma, o recurso do sangue por parte das mulheres não aparece justificado dentro do texto. A mãe de Gunnar, ao ouvir as intenções de Hallgerd diz, “Tem havido boas esposas até hoje, mas

11 elas jamais desejaram massacres”. Trata-se, de qualquer maneira, do lugar que ocupam e que exercem.

A oposição entre ambas as vias de resolução é construída discursivamente no relato por meio do simples contraste entre as ações. Conquanto ao final do episódio a via conciliatória pareça vencer em forma alegórica na amizade de Njal e Gunnar, a vingança transbordará o conflito em particular, desencadeando muito mais derramamento de sangue ao longo da saga. Para sermos precisos, o ódio entre as famílias antecede, inclusive, o capítulo, tendo raiz mais profunda. Mas, em realidade, esses mecanismos podem ser entendidos como contraditórios num sentido dialético, dinâmico. Um alimenta o outro (sobretudo, a via do sangue em relação à via da resolução pública, embora na saga, como se vê no episódio, a resolução monetária insatisfatória degenera, por seu turno, em vingança) e ambos compõem a totalidade da arena onde o poder, instável como o é numa sociedade hierarquizada que não o institucionalizou, é obtido e perdido. Trata-se de uma esfera inteiramente masculina, como veremos mais à frente, por determinações estruturais, ainda que algumas mulheres possam nela intervir.

Destarte, o assassinato e a afronta circulam como 12um dom, no sentido que lhe dá Mauss como parte de um

“sistema de prestações totais”, dinamizando os intercâmbios de caráter político e social. O dom gera a circulação em sociedades pré-capitalistas, onde a mercadoria e o comércio não são fins em si mesmos, porque há obrigatoriedade em aceitá-lo e sua recepção obriga à devolução, instaurando no intercâmbio algo mais do que o elemento material aparente, o objeto carregado por uma força sobrenatural (hau entre os maoris), especialmente comum no intercâmbio de mortos.

Bergthora falou e disse, quando os homens se sentaram à mesa, "Presentes têm sido dados a vós todos, pais e filhos, e não sereis homens de verdade a menos que os retribuais de alguma forma". "Que presentes são esses?" pergunta Skarphedinn. "Meus filhos," diz Bergthora, "recebestes um presente para vós todos. Sois chamados de 'Barba de esterco', mas meu marido

13'o vilão imberbe'”.

A

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (28-33) Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

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30 - - 31

Assim é forçada a visibilização da esfera social numa comunidade de caráter germânico, como o entende Marx, na qual “A comunidade, por conseguinte, aparece como uma associação, não como união; como um acordo [Einigung], cujos sujeitos independentes são os terratenentes e não como uma unidade. Portanto, de fato, a comunidade não tem existência como Estado, como entidade política, como sucedia entre os antigos, porque

14 não tem existência como cidade.” Por isso não se deve presumir que o intercâmbio de dons gere a esfera social, a associação, pois, como diz Marx, a comunidade, o social, sempre é pré-existente e pensar o contrário “... é tolice, embora possa ser correto do ponto de vista de certa entidade tribal ou comunal, porque considera o homem

15 isolado como ponto de partida”. O dom, a circulação só torna visível a comunidade, concretiza-a.

Antes, porém, de entrar a fundo na análise, gostaria de aclarar que quando falo de público/privado de nenhuma maneira me refiro à concepção atual desses termos. Razão pela qual há de pôr-se em dúvida, para o caso presente, o seu emprego, procurando não cometer o erro do anacronismo, no qual incorre Nelly Egger de Iölster ao discutir, por exemplo, a existência de amor num sentido claramente moderno para os matrimônios

16islandeses do século XI. Como procurei provar mais acima, as duas vias de ação, a da resolução por acordo num sentido amplo e a do sangue, não aparecem como opostos perfeitos, mas como contraditórios complementares. Isso se pode ver plasmado inclusive no relato, no qual a tensão que surge da oposição entre os acordos entre os homens e a vingança direta instigada pelas mulheres não desemboca na dissolução dos matrimônios nem em outras consequências para o casal. Gunnar é mostrado como capaz de levantar a mão contra

17a esposa, raiz de outro episódio, mas no caso em tela não decide fazê-lo.

Não podemos falar, então, do público/privado no sentido pleno e moderno dos termos. Utilizo o binômio como uma maneira de implicar a oposição entre o privado, que concerne mais à propriedade particular dos meios de produção do que à sua posse – característica do modo de produção germânico e de suas relações de produção específicas –, e aquela esfera que, por consequência, é concebida como oposta e, pois, como eletiva ou voluntária, na qual interagem os membros da comunidade. Uma esfera na qual poderíamos dizer que impera mais a lógica inclusiva do que a excludente (como o é a lógica da propriedade), mas onde ela aparece como requisito insuperável para o pertencimento à comunidade.

A partir daqui trabalharei com o pressuposto de que o modo de produção descrito por Marx se ajusta à sociedade islandesa do século XI referida pela Saga de Njal, deixando qualquer debate a tal respeito fora do campo de competência do artigo. Como já se mencionou acima, a sociedade do modo de produção germânico tem

a peculiaridade de ser mais uma associação do que uma união, pois não existe como unidade no sentido das sociedades “asiáticas” ou “clássicas”. Isso é expressão direta dum fato estrutural: os germanos são proprietários da terra na qual produzem e não possuidores de um fragmento de uma propriedade comunal maior, como é o

18caso das sociedades “asiáticas”. Partilhando a opinião de que o tipo de propriedade e as relações de produção que se constroem em torno àquela são, em última instância, produto do nível do desenvolvimento das forças produtivas, digo, por conseguinte, que o contraste que aparece entre o modo de produção germânico e seus antecessores deve-se à capacidade de as sociedades apropriarem-se, produzirem a natureza objetiva que as rodeia com o fim de alcançar a reprodução social. O nível histórico concreto das forças produtivas nas sociedades “asiáticas” e “clássicas” demandava que, caso se pretendesse alcançar a reprodução social de si mesmas, a produção deveria dar-se em termos coletivos, algo expresso, por exemplo, na propriedade coletiva dos meios de produção, do solo. Na sociedade germânica isso muda. “Na antiguidade clássica, a cidade, com seu território adjacente, era o todo econômico; no mundo germânico, é a empresa individual, que em si mesma aparece apenas como um pequeno ponto na terra que lhe pertence; não há concentração de uma multiplicidade de proprietários, mas da família como núcleo

19 independente.” Ou seja, cada lar familiar opera como centro de produção independente. O desenvolvimento das forças produtivas (seja por desenvolvimento tecnológico quanto às capacidades agrárias; por determinações geográficas e demográficas específicas e relacionadas entre si, parte integral da fórmula das forças produtivas em sociedades pré-capitalistas, onde a terra, ainda incertamente dominada, é o principal meio de produção; ou mesmo por uma forma diferente de pensar a produção, um desenvolvimento dos meios de produção “intelectuais”, caso se queira, que necessariamente estaria associado aos fatos mencionados anteriormente) permite que a reprodução social possa ser garantida mediante a produção em unidades produtivas de menor escala, traduzindo-se num regime de propriedade privada da terra.

Ao mesmo tempo, esse regime de produção habilita a um modo de ocupar o território descentrado, disperso, oposto à cidade clássica, na ausência da necessidade de coordenar a produção de forma concentrada. Daí segue que a sociedade apareça como “uma associação, não como uma união” e a partir dessa afirmação é possível pensar o mundo político islandês, instável e flutuante como era, onde o poder se encontrava constantemente em disputa e fugia à institucionalização, pois cada unidade familiar era, por seu canto, uma unidade de produção que não necessitava da intervenção de qualquer organização superior para lhe garantir a reprodução, o que se traduzia em certo grau de liberdade política. Entretanto não se devem extrapolar tais conclusões, levar o raciocínio demasiadamente longe, 14MARX, Karl, Formaciones económicas precapitalistas, Buenos

Aires: Ateneo, 1974, ps. 19/20.15Idem, p. 38-39.16EGGER de IÖLSTER, op. cit., p. 8.17ANONIMO, op. cit., p. 61.

18MARX, op. cit., p. 15-16.19Idem, p. 20-21.

sempre atentos a não cair na “tolice” que menciona Marx. “Um indivíduo isolado não poderia ser proprietário da terra, da mesma maneira que não poderia falar.” Isso significa que “a relação com o solo como propriedade surge sempre pela ocupação, pacífica ou violenta, da terra por parte da tribo ou comunidade nalguma forma mais ou menos primitiva ou já historicamente

20desenvolvida.” O proprietário, mesmo quando componha com o grupo familiar e a propriedade uma unidade de produção independente, apenas é proprietário a partir do reconhecimento dialético dos outros proprietários e, até mais importante, dos não-proprietários, além da afirmação da propriedade, na sua forma comunal, em face de terceiros (invasores e invadidos).

É nessa esfera de existência comunal, nesta “expressão superestrutural” – que delimitamos como necessária na medida em que permita a simples existência da propriedade, mas na qual o indivíduo não aparece

21como “acidente” da “substância” que é a comunidade, mas sim como fator independente em livre associação –, no qual se inserem as duas vias de ação em face do conflito apresentadas no episódio da Saga de Njal que estamos analisando. A via de resolução acordada pelos homens e a via do sangue, escolhida por Hallgerd e Bergthora. Minha tese é que a oposição discursiva dentro do relato nasce como possível expressão da determinação estrutural que contrapõe o doméstico e a associação, entendendo o primeiro como aquilo que concerne à reprodução social dos homens (a casa na qualidade de unidade de produção) e tido como “natural”, “animal”; e o segundo como aquilo que excede essa esfera de necessidade e que, portanto, aparece diante aos homens como vontade, como associação, como puramente humano no sentido de oposto ao natural e ao animal. O que é mais importante, proponho que a associação das vias de resolução dos conflitos com determinados sexos seja uma extensão dessa lógica.

22Zoe Borovsky sustenta a ocorrência de uma

associação s imi lar ent re homem/públ ico e mulher/privado, combatendo a interpretação, instaurada pelos estudos de gênero, da “mulher forte” islandesa. Enfatizando o binômio oral/escrito, com uma leitura centrada na linguagem/lei, a autora rastreia como o triunfo da segunda lógica sobre a primeira, a partir da chegada do cristianismo à ilha, reforçou o lugar da mulher no espaço privado. Pois o escrito permite um maior controle da esfera pública que o oral. Os lugares rel igiosos (ou não-rel igiosos, porém ainda performáticos) que estavam franqueados às mulheres em tempos pagãos foram fechados pela Igreja. Ao mesmo tempo, o devir entre as duas lógicas também está cruzado pela passagem da independência à dependência ante o poder norueguês. Nesse sentido, pode-se interpretar a valorização discursiva na saga da reconciliação diante da

vingança como uma afirmação do cristão sobre o pagão e da dependência sobre a independência. A saga passaria a ser uma releitura do passado em função da afirmação do presente, o qual coincidiria tanto com episódios da saga onde se afirma a certeza de que “Deus é fiel” (capítulo 99; capítulo 105) bem como no tom geral do texto, que se poderia interpretar como uma visão pejorativa do passado, pois o valor negativo, a vingança de sangue, acaba por impor-se à via de resolução por acordo e, como um vírus implacável, devora a sociedade islandesa por dentro. Depois de tudo, o eixo da saga, como demonstra o título e a narrativa, é Njal e aquilo que representa, ambos encontrando um malogrado (e resignado) final à mercê do fogo, alimentado pelo rancor sem limites que devorou Bergthorsknoll.

Regressando à nossa argumentação, todo o concernente à produção, à reprodução social, aparece ao homem islandês e a todo homem de uma sociedade pré-capitalista como uma “condição natural da produção,

23 que o homem trata como seu próprio ser inorgânico”. Aparece como tudo aquilo que não é humano nele, porém mais próximo ao animal e cuja possibilidade de existência deve ser suprimida. Aparece como o necessário em face do que se opõe a ele, aquilo que aparece como vontade, ou seja, os laços sociais que se estendem para além da unidade de produção, que encontram sua expressão por antonomásia no Althing. Aparece como o espaço onde os homens expressamente se reúnem para travar relações entre si, alianças, quer diante de terceiros dentro da comunidade, como vemos na Saga de Njal, na sempre presente necessidade de engrossar os números para dar maior “convicção” aos argumentos judiciais; quer diante de terceiros externos, como na configuração de expedições de saque, das quais há muitos exemplos no texto. Por essa razão, incluo os self-judgments dentro da categoria, pois são tratos que se fazem fora da esfera estritamente pública, porém ainda assim se dão entre unidades domésticas num espaço de associação no sentido empregado por Marx. Sobretudo esses espaços são consagrados à resolução dos atritos no interior da comunidade, os quais põem em perigo a sua própria existência, donde ser ela uma associação e não uma união. Por isso, equivoca-se Nelly Egger de Iölster quando afirma que, por trás “da necessidade de preservar a honra, o prestígio e a fama” dos homens, operam os

24 “motivos econômicos das ações”. Os homens perseguem a honra como algo puramente humano no sentido do que entendemos até aqui em direta contraposição ao econômico, o que nessa sociedade remete àquilo que concerne à reprodução social, à extensão inorgânica dos homens e não a uma anacrônica sede de aquisição em termos capitalistas.

Em lado oposto aparece a via do sangue, que, como assinalei acima, é a maior ameaça à associação dos homens, dando lugar a sequências intermináveis de prestações e contraprestações nas quais a moeda corrente são os mortos. Uma via que é negação do humano e, portanto, necessariamente associada ao doméstico, pois o

20Idem, p. 23.21Idem, p. 21.22BOROVSKY, Zoe. Never in Public: Women and Performance in Old Norse Literature. The Journal of American Folklore [on-line], Vol. 112, No. 443, 1999, p. 6-39 [Consultado: 21 de mayo de 2008]. http://www.jstor.org/stable/541400

23MARX, op. cit., p. 40.24EGGER de IÖLSTER, op. cit., p. 4.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (28-33) Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

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Assim é forçada a visibilização da esfera social numa comunidade de caráter germânico, como o entende Marx, na qual “A comunidade, por conseguinte, aparece como uma associação, não como união; como um acordo [Einigung], cujos sujeitos independentes são os terratenentes e não como uma unidade. Portanto, de fato, a comunidade não tem existência como Estado, como entidade política, como sucedia entre os antigos, porque

14 não tem existência como cidade.” Por isso não se deve presumir que o intercâmbio de dons gere a esfera social, a associação, pois, como diz Marx, a comunidade, o social, sempre é pré-existente e pensar o contrário “... é tolice, embora possa ser correto do ponto de vista de certa entidade tribal ou comunal, porque considera o homem

15 isolado como ponto de partida”. O dom, a circulação só torna visível a comunidade, concretiza-a.

Antes, porém, de entrar a fundo na análise, gostaria de aclarar que quando falo de público/privado de nenhuma maneira me refiro à concepção atual desses termos. Razão pela qual há de pôr-se em dúvida, para o caso presente, o seu emprego, procurando não cometer o erro do anacronismo, no qual incorre Nelly Egger de Iölster ao discutir, por exemplo, a existência de amor num sentido claramente moderno para os matrimônios

16islandeses do século XI. Como procurei provar mais acima, as duas vias de ação, a da resolução por acordo num sentido amplo e a do sangue, não aparecem como opostos perfeitos, mas como contraditórios complementares. Isso se pode ver plasmado inclusive no relato, no qual a tensão que surge da oposição entre os acordos entre os homens e a vingança direta instigada pelas mulheres não desemboca na dissolução dos matrimônios nem em outras consequências para o casal. Gunnar é mostrado como capaz de levantar a mão contra

17a esposa, raiz de outro episódio, mas no caso em tela não decide fazê-lo.

Não podemos falar, então, do público/privado no sentido pleno e moderno dos termos. Utilizo o binômio como uma maneira de implicar a oposição entre o privado, que concerne mais à propriedade particular dos meios de produção do que à sua posse – característica do modo de produção germânico e de suas relações de produção específicas –, e aquela esfera que, por consequência, é concebida como oposta e, pois, como eletiva ou voluntária, na qual interagem os membros da comunidade. Uma esfera na qual poderíamos dizer que impera mais a lógica inclusiva do que a excludente (como o é a lógica da propriedade), mas onde ela aparece como requisito insuperável para o pertencimento à comunidade.

A partir daqui trabalharei com o pressuposto de que o modo de produção descrito por Marx se ajusta à sociedade islandesa do século XI referida pela Saga de Njal, deixando qualquer debate a tal respeito fora do campo de competência do artigo. Como já se mencionou acima, a sociedade do modo de produção germânico tem

a peculiaridade de ser mais uma associação do que uma união, pois não existe como unidade no sentido das sociedades “asiáticas” ou “clássicas”. Isso é expressão direta dum fato estrutural: os germanos são proprietários da terra na qual produzem e não possuidores de um fragmento de uma propriedade comunal maior, como é o

18caso das sociedades “asiáticas”. Partilhando a opinião de que o tipo de propriedade e as relações de produção que se constroem em torno àquela são, em última instância, produto do nível do desenvolvimento das forças produtivas, digo, por conseguinte, que o contraste que aparece entre o modo de produção germânico e seus antecessores deve-se à capacidade de as sociedades apropriarem-se, produzirem a natureza objetiva que as rodeia com o fim de alcançar a reprodução social. O nível histórico concreto das forças produtivas nas sociedades “asiáticas” e “clássicas” demandava que, caso se pretendesse alcançar a reprodução social de si mesmas, a produção deveria dar-se em termos coletivos, algo expresso, por exemplo, na propriedade coletiva dos meios de produção, do solo. Na sociedade germânica isso muda. “Na antiguidade clássica, a cidade, com seu território adjacente, era o todo econômico; no mundo germânico, é a empresa individual, que em si mesma aparece apenas como um pequeno ponto na terra que lhe pertence; não há concentração de uma multiplicidade de proprietários, mas da família como núcleo

19 independente.” Ou seja, cada lar familiar opera como centro de produção independente. O desenvolvimento das forças produtivas (seja por desenvolvimento tecnológico quanto às capacidades agrárias; por determinações geográficas e demográficas específicas e relacionadas entre si, parte integral da fórmula das forças produtivas em sociedades pré-capitalistas, onde a terra, ainda incertamente dominada, é o principal meio de produção; ou mesmo por uma forma diferente de pensar a produção, um desenvolvimento dos meios de produção “intelectuais”, caso se queira, que necessariamente estaria associado aos fatos mencionados anteriormente) permite que a reprodução social possa ser garantida mediante a produção em unidades produtivas de menor escala, traduzindo-se num regime de propriedade privada da terra.

Ao mesmo tempo, esse regime de produção habilita a um modo de ocupar o território descentrado, disperso, oposto à cidade clássica, na ausência da necessidade de coordenar a produção de forma concentrada. Daí segue que a sociedade apareça como “uma associação, não como uma união” e a partir dessa afirmação é possível pensar o mundo político islandês, instável e flutuante como era, onde o poder se encontrava constantemente em disputa e fugia à institucionalização, pois cada unidade familiar era, por seu canto, uma unidade de produção que não necessitava da intervenção de qualquer organização superior para lhe garantir a reprodução, o que se traduzia em certo grau de liberdade política. Entretanto não se devem extrapolar tais conclusões, levar o raciocínio demasiadamente longe, 14MARX, Karl, Formaciones económicas precapitalistas, Buenos

Aires: Ateneo, 1974, ps. 19/20.15Idem, p. 38-39.16EGGER de IÖLSTER, op. cit., p. 8.17ANONIMO, op. cit., p. 61.

18MARX, op. cit., p. 15-16.19Idem, p. 20-21.

sempre atentos a não cair na “tolice” que menciona Marx. “Um indivíduo isolado não poderia ser proprietário da terra, da mesma maneira que não poderia falar.” Isso significa que “a relação com o solo como propriedade surge sempre pela ocupação, pacífica ou violenta, da terra por parte da tribo ou comunidade nalguma forma mais ou menos primitiva ou já historicamente

20desenvolvida.” O proprietário, mesmo quando componha com o grupo familiar e a propriedade uma unidade de produção independente, apenas é proprietário a partir do reconhecimento dialético dos outros proprietários e, até mais importante, dos não-proprietários, além da afirmação da propriedade, na sua forma comunal, em face de terceiros (invasores e invadidos).

É nessa esfera de existência comunal, nesta “expressão superestrutural” – que delimitamos como necessária na medida em que permita a simples existência da propriedade, mas na qual o indivíduo não aparece

21como “acidente” da “substância” que é a comunidade, mas sim como fator independente em livre associação –, no qual se inserem as duas vias de ação em face do conflito apresentadas no episódio da Saga de Njal que estamos analisando. A via de resolução acordada pelos homens e a via do sangue, escolhida por Hallgerd e Bergthora. Minha tese é que a oposição discursiva dentro do relato nasce como possível expressão da determinação estrutural que contrapõe o doméstico e a associação, entendendo o primeiro como aquilo que concerne à reprodução social dos homens (a casa na qualidade de unidade de produção) e tido como “natural”, “animal”; e o segundo como aquilo que excede essa esfera de necessidade e que, portanto, aparece diante aos homens como vontade, como associação, como puramente humano no sentido de oposto ao natural e ao animal. O que é mais importante, proponho que a associação das vias de resolução dos conflitos com determinados sexos seja uma extensão dessa lógica.

22Zoe Borovsky sustenta a ocorrência de uma

associação s imi lar ent re homem/públ ico e mulher/privado, combatendo a interpretação, instaurada pelos estudos de gênero, da “mulher forte” islandesa. Enfatizando o binômio oral/escrito, com uma leitura centrada na linguagem/lei, a autora rastreia como o triunfo da segunda lógica sobre a primeira, a partir da chegada do cristianismo à ilha, reforçou o lugar da mulher no espaço privado. Pois o escrito permite um maior controle da esfera pública que o oral. Os lugares rel igiosos (ou não-rel igiosos, porém ainda performáticos) que estavam franqueados às mulheres em tempos pagãos foram fechados pela Igreja. Ao mesmo tempo, o devir entre as duas lógicas também está cruzado pela passagem da independência à dependência ante o poder norueguês. Nesse sentido, pode-se interpretar a valorização discursiva na saga da reconciliação diante da

vingança como uma afirmação do cristão sobre o pagão e da dependência sobre a independência. A saga passaria a ser uma releitura do passado em função da afirmação do presente, o qual coincidiria tanto com episódios da saga onde se afirma a certeza de que “Deus é fiel” (capítulo 99; capítulo 105) bem como no tom geral do texto, que se poderia interpretar como uma visão pejorativa do passado, pois o valor negativo, a vingança de sangue, acaba por impor-se à via de resolução por acordo e, como um vírus implacável, devora a sociedade islandesa por dentro. Depois de tudo, o eixo da saga, como demonstra o título e a narrativa, é Njal e aquilo que representa, ambos encontrando um malogrado (e resignado) final à mercê do fogo, alimentado pelo rancor sem limites que devorou Bergthorsknoll.

Regressando à nossa argumentação, todo o concernente à produção, à reprodução social, aparece ao homem islandês e a todo homem de uma sociedade pré-capitalista como uma “condição natural da produção,

23 que o homem trata como seu próprio ser inorgânico”. Aparece como tudo aquilo que não é humano nele, porém mais próximo ao animal e cuja possibilidade de existência deve ser suprimida. Aparece como o necessário em face do que se opõe a ele, aquilo que aparece como vontade, ou seja, os laços sociais que se estendem para além da unidade de produção, que encontram sua expressão por antonomásia no Althing. Aparece como o espaço onde os homens expressamente se reúnem para travar relações entre si, alianças, quer diante de terceiros dentro da comunidade, como vemos na Saga de Njal, na sempre presente necessidade de engrossar os números para dar maior “convicção” aos argumentos judiciais; quer diante de terceiros externos, como na configuração de expedições de saque, das quais há muitos exemplos no texto. Por essa razão, incluo os self-judgments dentro da categoria, pois são tratos que se fazem fora da esfera estritamente pública, porém ainda assim se dão entre unidades domésticas num espaço de associação no sentido empregado por Marx. Sobretudo esses espaços são consagrados à resolução dos atritos no interior da comunidade, os quais põem em perigo a sua própria existência, donde ser ela uma associação e não uma união. Por isso, equivoca-se Nelly Egger de Iölster quando afirma que, por trás “da necessidade de preservar a honra, o prestígio e a fama” dos homens, operam os

24 “motivos econômicos das ações”. Os homens perseguem a honra como algo puramente humano no sentido do que entendemos até aqui em direta contraposição ao econômico, o que nessa sociedade remete àquilo que concerne à reprodução social, à extensão inorgânica dos homens e não a uma anacrônica sede de aquisição em termos capitalistas.

Em lado oposto aparece a via do sangue, que, como assinalei acima, é a maior ameaça à associação dos homens, dando lugar a sequências intermináveis de prestações e contraprestações nas quais a moeda corrente são os mortos. Uma via que é negação do humano e, portanto, necessariamente associada ao doméstico, pois o

20Idem, p. 23.21Idem, p. 21.22BOROVSKY, Zoe. Never in Public: Women and Performance in Old Norse Literature. The Journal of American Folklore [on-line], Vol. 112, No. 443, 1999, p. 6-39 [Consultado: 21 de mayo de 2008]. http://www.jstor.org/stable/541400

23MARX, op. cit., p. 40.24EGGER de IÖLSTER, op. cit., p. 4.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (28-33) Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

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lar é a extensão inorgânica do homem na sua qualidade de unidade de produção na qual se garante a sua reprodução social, a satisfação de necessidades que aparecem como animais. Ainda que essa via de resolução traga também alguns ganhos (em especial, a honra, que se traduz em hierarquia), ao menos discursivamente ela é construída como negativa, já que o texto, em última instância, obedece ao fim didático de afirmar a superioridade da resolução do conflito pelo Althing em face da animalidade da vingança direta. A mulher, cuja totalidade da vida decorre no âmbito doméstico, dedicada à tarefa da reprodução social, à qual aparece ligada pela diferenciação sexual das funções no ato de procriação, é irremediavelmente associada a essa via. A oposição entre esses dois “valores” na forma discursiva pode ser pensada como mise en scène dum “social drama” como o faz Zoe Borovsky, “uma forma de resolver conflitos dentro das

25sociedades e entre elas” , donde há choque de paradigmas.

Essa associação entre a mulher e a vingança de sangue é, pois, também produto da divisão sexual do trabalho, que restringe de forma exclusiva a mulher ao mundo doméstico. Um reino onde tem poder suficiente para anular as vontades dos homens e fazer valer a sua, influindo, inclusive, no âmbito político. A isso se refere Borovsky quando traz à baila o exemplo de Bergthora. “[Sua] habilidade em influenciar os filhos (privadamente, extra-oficialmente, ainda que persistentemente) é o que efetivamente desestabiliza os esforços de Njall para negociar um fim para o conflito

26usando meios oficiais, públicos.” O mesmo pode-se provar pela boca de Bergthora. Quando ela introduz Atli na casa do marido, esperando que se encarregue de Kol, afirma: “Eu sou a mulher de Njal," ela diz, "e eu tenho

27tanto a dizer para nossa linhagem quanto ele.”

Mais ainda: a posição que ocupa a mulher nessa divisão do trabalho necessariamente aproxima-a do que é entendido pelo homem como sua extensão inorgânica, como aquilo que garante a sua reprodução social, tanto na procriação como na produção do necessário para a subsistência. Nesse sentido, ela pode ser pensada como numa relação de algum modo próxima à escravidão, onde “o próprio trabalhador aparece entre as condições

28naturais de produção…” , embora com o cuidado de não equiparar os termos por completo. Por tal razão, não me atrevo a falar com segurança de uma dicotomia nítida entre proprietário e propriedade para pensar o binômio homem/mulher. Porém o eixo da propriedade não deixa de ser interessante para analisar o problema. Podemos pensar, inclusive, numa “zona cinzenta” que não compete nem aos proprietários (homens livres) nem estritamente à propriedade, na qual encontramos as mulheres, os menores de idade e os homens com estatutos inferiores

29aos livres, ou seja, os piores homens, os quais, através da saga, são mais fortemente associados às ações que carecem de honra. São homens que jazem fora do circuito de reconhecimento dialético que compreende a propriedade, que necessariamente decorre da comunidade. Aquele que não é proprietário dos

30“requisitos da sua própria existência”, depende de outro para assegurá-la para si. Sem propriedade não há liberdade. Sem propriedade não se é, por completo, homem.

A complexa relação entre mulher e propriedade aparece plasmada no momento do matrimônio, quando ela representa pouco mais que um objeto que se transfere

31por um acordo, sem que se leve em conta a sua opinião. Mesmo assim, da dupla relação entabulada na saga, que tanto associa a vingança de sangue à mulher quanto a condena moralmente como a via “equivocada” da resolução de conflitos, nasce a caracterização do feminino como valor negativo. Daí que os piores insultos proferidos a um homem estejam associados à ausência da pilosidade facial ou atitudes que se estereotipam como “de mulheres”. Ante os ditos de Sigmund, que o caracterizavam como alguém cuja barba só cresceria com a aplicação de esterco no rosto, replica Skarphedinn, filho de Njal “Nossa natureza não é a das mulheres, […] que

32devamos nos enfurecer por qualquer coisinha.”

O que foi dito acima acerca da relação entre associação/homem e doméstico/feminino não significa que o gênero masculino se tenha completamente divorciado da produção. Muito pelo contrário. Dentro do modo de produção germânico, como fica claro a partir da saga, na Islândia de cerca do século XI, a maioria dos homens dedica-se a tarefas de produção, principalmente pastoris e pesqueiras por conta das condições geográficas da ilha. O caráter instável do poder político, que, como se disse antes, pode relacionar-se ao regime de propriedade e às relações de produção imperantes, além de a consequente configuração de um sistema de dom e contradom com o fim de angariar influência – no qual o mais poderoso é quem dá mais –, impossibilitam um processo de acumulação pelo qual um personagem possa ver-se eximido de participar na produção da sua própria subsistência. Se chegaram a existir na Islândia homens com uma vasta quantidade de riquezas, de subordinados e de escravos, como afirma a saga de Gudmund, o

33Poderoso , decerto tratava-se de uma pequena minoria da sociedade.

Mas a saga, como aparato discursivo, é prova da escala de importância que se atribuía aos assuntos da vida. Ela está totalmente consagrada aos sucessos “públicos”, saltando na narração de Althing em Althing conquanto entre eles se interpusessem temporadas ou anos inteiros. Apenas se descrevem os homens trabalhando circunstancialmente, como plano de fundo de um feito de ressonância pública, usualmente um 25BOROVSKY, Zoe, op. Cit., 10.

26BOROVSKY, Zoe, op. cit., 15: “[Hers] ability to influence her sons (privately, unofficially, yet persistently) that effectively undermines Njall's efforts to negotiate an end to the feud using official, public means.”27“I am Njal's wife," she says, "and I have as much to say to our housefolk as he.” Nj., p. 44.28MARX, op. cit., p. 38.

29ANONIMO, op. cit., p. 42.30MARX, op. cit., p. 32.31EGGER de IÖLSTER, op. cit., p. 8.32“Ours is no woman's nature, […] that we should fly into a rage at every little thing.” Nj., p. 56.33ANONIMO, op. cit., p. 151.

assassinato. Da mesma maneira, as mulheres só são enfatizadas quando apresentam alguma relevância nessa esfera, como a rainha da Noruega no início do relato ou Hellgerd e Bergthora, as quais fazem parte da narrativa (consoante nos informa a mãe de Gunnar), por transgredir os deveres de uma “boa esposa”. Portanto, a exposição das relações aqui apresentadas, que circunscrevem o masculino ao mundo da associação e o feminino ao mundo doméstico/natural, não é mais que um intento de vislumbrar o que poderíamos chamar de uma experiência germânica, de uma forma concreta de ser-no-mundo, de vê-lo, de compreendê-lo e, por conseguinte, atuar nele. Uma experiência determinada pelas relações estruturais que atravessam os sujeitos, neste caso relações de caráter germânico como as entendeu Marx em seus Grundrisse, nas quais os islandeses aparecem como proprietários de seus próprios meios de reprodução e nas quais os laços sociais se apresentam como uma associação antes do que como uma união. Experiência para a qual as sagas, na sua qualidade de complexos produtos culturais, oferecem um rico acesso que ainda está por ser explorado.

Artigo recebido em 9.2.2012Aprovado em 30.4.2012

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lar é a extensão inorgânica do homem na sua qualidade de unidade de produção na qual se garante a sua reprodução social, a satisfação de necessidades que aparecem como animais. Ainda que essa via de resolução traga também alguns ganhos (em especial, a honra, que se traduz em hierarquia), ao menos discursivamente ela é construída como negativa, já que o texto, em última instância, obedece ao fim didático de afirmar a superioridade da resolução do conflito pelo Althing em face da animalidade da vingança direta. A mulher, cuja totalidade da vida decorre no âmbito doméstico, dedicada à tarefa da reprodução social, à qual aparece ligada pela diferenciação sexual das funções no ato de procriação, é irremediavelmente associada a essa via. A oposição entre esses dois “valores” na forma discursiva pode ser pensada como mise en scène dum “social drama” como o faz Zoe Borovsky, “uma forma de resolver conflitos dentro das

25sociedades e entre elas” , donde há choque de paradigmas.

Essa associação entre a mulher e a vingança de sangue é, pois, também produto da divisão sexual do trabalho, que restringe de forma exclusiva a mulher ao mundo doméstico. Um reino onde tem poder suficiente para anular as vontades dos homens e fazer valer a sua, influindo, inclusive, no âmbito político. A isso se refere Borovsky quando traz à baila o exemplo de Bergthora. “[Sua] habilidade em influenciar os filhos (privadamente, extra-oficialmente, ainda que persistentemente) é o que efetivamente desestabiliza os esforços de Njall para negociar um fim para o conflito

26usando meios oficiais, públicos.” O mesmo pode-se provar pela boca de Bergthora. Quando ela introduz Atli na casa do marido, esperando que se encarregue de Kol, afirma: “Eu sou a mulher de Njal," ela diz, "e eu tenho

27tanto a dizer para nossa linhagem quanto ele.”

Mais ainda: a posição que ocupa a mulher nessa divisão do trabalho necessariamente aproxima-a do que é entendido pelo homem como sua extensão inorgânica, como aquilo que garante a sua reprodução social, tanto na procriação como na produção do necessário para a subsistência. Nesse sentido, ela pode ser pensada como numa relação de algum modo próxima à escravidão, onde “o próprio trabalhador aparece entre as condições

28naturais de produção…” , embora com o cuidado de não equiparar os termos por completo. Por tal razão, não me atrevo a falar com segurança de uma dicotomia nítida entre proprietário e propriedade para pensar o binômio homem/mulher. Porém o eixo da propriedade não deixa de ser interessante para analisar o problema. Podemos pensar, inclusive, numa “zona cinzenta” que não compete nem aos proprietários (homens livres) nem estritamente à propriedade, na qual encontramos as mulheres, os menores de idade e os homens com estatutos inferiores

29aos livres, ou seja, os piores homens, os quais, através da saga, são mais fortemente associados às ações que carecem de honra. São homens que jazem fora do circuito de reconhecimento dialético que compreende a propriedade, que necessariamente decorre da comunidade. Aquele que não é proprietário dos

30“requisitos da sua própria existência”, depende de outro para assegurá-la para si. Sem propriedade não há liberdade. Sem propriedade não se é, por completo, homem.

A complexa relação entre mulher e propriedade aparece plasmada no momento do matrimônio, quando ela representa pouco mais que um objeto que se transfere

31por um acordo, sem que se leve em conta a sua opinião. Mesmo assim, da dupla relação entabulada na saga, que tanto associa a vingança de sangue à mulher quanto a condena moralmente como a via “equivocada” da resolução de conflitos, nasce a caracterização do feminino como valor negativo. Daí que os piores insultos proferidos a um homem estejam associados à ausência da pilosidade facial ou atitudes que se estereotipam como “de mulheres”. Ante os ditos de Sigmund, que o caracterizavam como alguém cuja barba só cresceria com a aplicação de esterco no rosto, replica Skarphedinn, filho de Njal “Nossa natureza não é a das mulheres, […] que

32devamos nos enfurecer por qualquer coisinha.”

O que foi dito acima acerca da relação entre associação/homem e doméstico/feminino não significa que o gênero masculino se tenha completamente divorciado da produção. Muito pelo contrário. Dentro do modo de produção germânico, como fica claro a partir da saga, na Islândia de cerca do século XI, a maioria dos homens dedica-se a tarefas de produção, principalmente pastoris e pesqueiras por conta das condições geográficas da ilha. O caráter instável do poder político, que, como se disse antes, pode relacionar-se ao regime de propriedade e às relações de produção imperantes, além de a consequente configuração de um sistema de dom e contradom com o fim de angariar influência – no qual o mais poderoso é quem dá mais –, impossibilitam um processo de acumulação pelo qual um personagem possa ver-se eximido de participar na produção da sua própria subsistência. Se chegaram a existir na Islândia homens com uma vasta quantidade de riquezas, de subordinados e de escravos, como afirma a saga de Gudmund, o

33Poderoso , decerto tratava-se de uma pequena minoria da sociedade.

Mas a saga, como aparato discursivo, é prova da escala de importância que se atribuía aos assuntos da vida. Ela está totalmente consagrada aos sucessos “públicos”, saltando na narração de Althing em Althing conquanto entre eles se interpusessem temporadas ou anos inteiros. Apenas se descrevem os homens trabalhando circunstancialmente, como plano de fundo de um feito de ressonância pública, usualmente um 25BOROVSKY, Zoe, op. Cit., 10.

26BOROVSKY, Zoe, op. cit., 15: “[Hers] ability to influence her sons (privately, unofficially, yet persistently) that effectively undermines Njall's efforts to negotiate an end to the feud using official, public means.”27“I am Njal's wife," she says, "and I have as much to say to our housefolk as he.” Nj., p. 44.28MARX, op. cit., p. 38.

29ANONIMO, op. cit., p. 42.30MARX, op. cit., p. 32.31EGGER de IÖLSTER, op. cit., p. 8.32“Ours is no woman's nature, […] that we should fly into a rage at every little thing.” Nj., p. 56.33ANONIMO, op. cit., p. 151.

assassinato. Da mesma maneira, as mulheres só são enfatizadas quando apresentam alguma relevância nessa esfera, como a rainha da Noruega no início do relato ou Hellgerd e Bergthora, as quais fazem parte da narrativa (consoante nos informa a mãe de Gunnar), por transgredir os deveres de uma “boa esposa”. Portanto, a exposição das relações aqui apresentadas, que circunscrevem o masculino ao mundo da associação e o feminino ao mundo doméstico/natural, não é mais que um intento de vislumbrar o que poderíamos chamar de uma experiência germânica, de uma forma concreta de ser-no-mundo, de vê-lo, de compreendê-lo e, por conseguinte, atuar nele. Uma experiência determinada pelas relações estruturais que atravessam os sujeitos, neste caso relações de caráter germânico como as entendeu Marx em seus Grundrisse, nas quais os islandeses aparecem como proprietários de seus próprios meios de reprodução e nas quais os laços sociais se apresentam como uma associação antes do que como uma união. Experiência para a qual as sagas, na sua qualidade de complexos produtos culturais, oferecem um rico acesso que ainda está por ser explorado.

Artigo recebido em 9.2.2012Aprovado em 30.4.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (28-33) Pagar com dinheiro, pagar com sangue: resolução de conflitos, modo de produção germânico e a experiência germânica do mundo na Saga de Njal

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Disputas por la renta: la obtención de la terciaepiscopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

*Carla Cimino

Las parroquias rurales han recibido mucha atención por parte del medievalismo de un tiempo a esta parte. Las propuestas historiográficas de Robert Fossier han contribuido a la valorización de estos espacios del

1ámbito aldeano. Dicho historiador resaltó su rol en la articulación del marco local, señalando su importancia en el anclaje definitivo de la comunidad de los vivos a través

2del control del lugar de reposo de los muertos. Su propuesta del “enceldamiento” tuvo y tiene amplia acogida entre los medievalistas dado que otorga herramientas para explicar el proceso de subordinación del campesinado. En el ámbito ibérico, muy influenciado por los trabajos que realizara García de Cortázar sobre la organización del espacio, esta problemática tuvo una gran recepción por parte de algunos estudiosos interesados en la dimensión territorial del ámbito

4parroquial, tema que sigue en plena vigencia hoy en día.Más allá de estos novedosos enfoques, también

es cierto que las parroquias aparecen desde temprano como espacios de acumulación de excedentes y, por ende, fueron escenario de enconadas disputas durante todo el período. Esto se verifica especialmente en relación a la principal renta eclesiástica, el diezmo. Tras una Alta Edad Media signada por la preeminencia de los monasterios y las iglesias de particulares, las transformaciones derivadas de la reforma gregoriana propiciaron una mayor jerarquización de las diócesis al tiempo que pretendieron limitar la influencia de los laicos sobre las

I parroquias. A pesar de que estos temas ya son clásicos, no es tan sencillo encontrar planteos que revelen la naturaleza conflictiva del proceso por el cual la jerarquía

5eclesiástica logró participar en los diezmos parroquiales. Fossier, sostuvo que la “restitución” de tercias se explicaba por motivos religiosos, por simples razones venales o por la pacificación del año mil y no muchos

6estudios se apartaron de dichas sugerencias. Nuestro trabajo pretende, por el contrario, enfatizar el carácter progresivo y localizado de la penetración de los obispos en las parroquias y sus rentas. Al suponer una redistribución de los recursos parroquiales, la imposición de la tercia episcopal generó múltiples conflictos entre los obispos y otros actores locales. Pretendemos demostrar que son las relaciones de fuerza entre ambos las que explican las estrategias desplegadas y la vía de incorporación de las parroquias a la red territorial episcopal. Es notable que hasta ahora no se haya

7analizado el tema en el área zamorana cuya documentación es abundante y explícita. Los

8documentos del Archivo Catedralicio de Zamora permitirán ilustrar el proceso por el cual las parroquias se insertan en la estructura eclesiástica como instancias de base, esenciales a la reproducción del señorío episcopal.

IITanto las comunidades campesinas como los

poderes locales -laicos y eclesiásticos- administraban iglesias en las villas y aldeas de Zamora en la Edad Media. Los campesinos podían ejercer controles colectivos sobre aspectos y lugares de culto considerados elementales para la comunidad. Tal es el caso de Santa Eulalia, donde los parroquianos tenían potestad sobre el

9sacerdote y el tesoro parroquial, o de Riego del Camino, donde subsistían vestigios de dichos controles aún a

*CEHSE (IdIHCS) – Universidad Nacional de La Plata. Becária CONICET.1Ver por ejemplo las referencias que proporcionan IOGNA-PRAT, Dominique y ZADORA-RIO, Elisabeth: “Formation et transformations des territoires paroissiaux.” En: Médiévales. Nº 49. Automne 2005. http://medievales.revues.org/12002FOSSIER, Robert: La infancia de Europa. Siglos X - XII. Aspectos económicos y sociales. Barcelona: Labor. 1984. p. 242 y ss.3GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel (ed.): Del Cantábrico al Duero: trece estudios sobre organización social del espacio. Santander: Universidad de Cantabria. 1999.4LÓPEZ ALSINA, Fernando: “El encuadramiento eclesiástico como espacio de poder: de la parroquia al obispado.” En: de la Iglesia Duarte, José Ignacio (coord.) y Martín Rodríguez, José Luis (dir.): Los espacios de poder en la España medieval: XII° Semana de Estudios Medievales. Nájera: Instituto de Estudios Riojanos. 2002; y el trabajo del mismo autor en: GARCÍA DE CORTÁZAR, op. Cit. También: CALLEJA PUERTA, Miguel: La formación de la red parroquial de la diócesis de Oviedo en la Edad Media. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos. 2000. Del mismo autor: “Eclesiología episcopal y organización del espacio en las ciudades y villas del noroeste peninsular (1100-1250).” En: de la Iglesia Duarte, José Ignacio (coord): Monasterios, espacio y sociedad en la España cristiana medieval: XX° Semana de Estudios Medievales. Nájera: Instituto de Estudios Riojanos. 2010.

5Constituyen notables excepciones: D'EMILIO, James: “La formación de la parroquia en la Galicia medieval” en: Relaciones. Nº 72. Vol. XVIII. Otoño 1997; y AMARAL, Luis Carlos: “Organização eclesiástica de Entre-Douro-E-Minho: o caso da diocese de Braga (Sécs. IX-XII)” en GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., 6FOSSIER, op. cit., p. 240-241.7No se han realizado nuevos trabajos sobre el tema después de los aportes de José Luis Martín: “Fuentes y estudios zamoranos” y “Diezmos eclesiásticos” ambos en MARTÍN, José Luis: Amor, cuestión de señorío y otros estudios. Zamora: UNED, 1993.8SÁNCHEZ RODRÍGUEZ, Marciano: Tumbo Blanco de Zamora. Salamanca. 1985. MARTIN, José Luis: Documentos Zamoranos I. Documentos del Archivo Catedralicio de Zamora, primera parte (1128-1261). Salamanca: Universidad de Salamanca. 1982. (En adelante citados TBZ y ACZ respectivamente, seguidas del número de documento).9Santa Eulalia: ACZ 22 y TBZ 261.

10Riego del Camino: TBZ 396 y 397. Aquí el colectivo campesino aún decidía cómo administrar los recursos de la fábrica parroquial. Similar situación en Villalbarba. TBZ 403.11ALFONSO, Isabel: “Iglesias rurales en el norte de Castilla: una dimensión religiosa de las luchas campesinas durante la Edad Media.” En: Garrabou, Ramón y Robledo, Ricardo (ed.): Sombras del progreso. Las huellas de la historia agraria. Barcelona: Crítica. 2010.12Las aldeas episcopales son: Santa María de Valle, Venialbo, Fradejas, Moraleja, Morales de Toro y San Martín de Bamba (incorporadas durante el siglo XII); Manganeses de la Lampreana, Fermoselle, Villalcampo, Bamba, Sanzoles y Santa Clara de Avedillo (incorporadas durante el siglo XIII). TBZ 154, 168, 281, 204/205, 299, 142, 277, 245/246, 209 y 150.13TBZ 8 y ACZ 11 y 13.14TBZ 150 y 290.15Elvira, hija del conde Osorio, poseía algunas parroquias en el término de Toro: TBZ 398 y ACZ 12 y 14. Son igualmente importantes para algunos monasterios del área: TBZ 439 y ACZ 58. Ver infra, sección siguiente.16Una síntesis bibliográfica actual en: DÍAZ DE DURANA, José Ramón y GUINOT, Enric: “La dîme dans l'Espagne médiévale.” En:

es La dîme dans l'Europe médiévale et moderne. Actes des XXXJournées Internationales d'Histoire de l'Abbaye de Flaran. Presses Universitaires du Mirail. 2010.17Donaciones de divisas de iglesias en TBZ 300, 301 y 398 y en ACZ 21, 27, 29, 32, 33 y 39.18Ventas de divisas en ACZ 24, 25 y 30 y TBZ 421.19TBZ 402, 411, 318 y 320. ACZ 19, 38, 53 y 106.

10principios del siglo XIII. Aunque no puede afirmarse que la lucha en torno al espacio de culto y el pago de

11diezmos sea específica de un momento determinado, a partir de la reforma gregoriana y tras la formación de nuevos obispados al sur del río Duero progresivamente se favorece la intrusión de las autoridades diocesanas en las parroquias comunales y de particulares. Nada entorpeció el avance episcopal en las aldeas cuya jurisdicción

12controlaba desde su repoblación. Tampoco se evidenciaron problemas cuando las tercias y derechos se

13obtuvieron por donación de los monarcas o, 14simplemente, por compra. Sin embargo, la intromisión

episcopal en otros lugares no fue tan sencilla: magnates, monasterios y órdenes tenían especial interés en las

15parroquias, que desde temprano aparecían como centros de acumulación de excedentes agrícolas gracias al pago

16de los diezmos. Para los laicos, las parroquias se administraban como cualquier otro bien perteneciente al patrimonio familiar y estaban, asimismo, sujetas a divisiones hereditarias. Las divisas individuales, participación de los miembros de las familias en el

17beneficio de las iglesias, eran la forma de tenencia más frecuente durante el período estudiado. Las mismas podían ser donadas o vendidas y es usual encontrar indicios de este tipo de transacciones, que solían engrosar

18el patrimonio de los monasterios.Pese a que podría intuirse lo contrario, la

progresiva imposición de la jurisdicción episcopal a partir del siglo XII no implicó la desaparición de la posibilidad de que los laicos, órdenes o monasterios erigieran y patrocinaran parroquias. De hecho, una de las formas menos conflictivas de adquisición de tercias residía en las autorizaciones que durante todo el período otorgó el obispo a dichas construcciones, reservándose

19los derechos correspondientes. El reconocimiento de la tercia decimal, de la jurisdicción episcopal y la promesa

de obediencia canónica, verdadero pacto de fidelidad que contribuía a estructurar las jerarquías eclesiásticas, eran condiciones sine qua non para obtener dicha autorización. Los patronos obtenían dos tercios de los diezmos y el derecho de presentación del sacerdote y adquirían la responsabilidad de mantener el edificio de culto, sustentar al cura y cumplir con los deberes hacia la

20sede diocesana.La construcción de iglesias suponía la capacidad

21de dotarlas con cierta cantidad de bienes, la correcta administración de los mismos era una parte central de estos acuerdos. En el caso de los laicos, dicho patrimonio inicial quedaba bajo control de la autoridad catedralicia tras la muerte del benefactor o, en el peor de los casos, de

22sus descendientes directos. Los obispos no dudaron en ofrecer buenas condiciones y condonar temporalmente los tributos, esperando el momento en que los templos

23pudieran sustentar una cantidad mayor de parroquianos. La construcción de iglesias parroquiales aparece, entonces, como un elemento más del muy estudiado problema de la repoblación, como ilustra el caso de Omezos, lugar del monasterio de Moreruela en donde los monjes pretendían construir una puebla nueva en 1269, a

24la que debían dotar del correspondiente espacio de culto.Las rentas parroquiales eran tentadoras para

algunos sectores locales, por este motivo constituyeron un importante recurso de negociación en manos de los

25obispos durante todo el período. Tan importante era el beneficio que, en algunos casos, pareció necesario a las partes dejar asentado que no podrían construirse iglesias competidoras en el lugar y que el obispo castigaría a

26quienes pretendieran acudir a otros lugares de culto. De modo que la proliferación de las parroquias se vinculó,

20Un ejemplo típico en TBZ 409.21El obispo Martín I autoriza a D. Peláez a construir una iglesia con la condición de: “...quod ipse det hereditatem in qua possit iugum boum laborare sufficienter et duas aranzadas vinearum...” TBZ 318.22Ciertamente existen casos de transmisión familiar de las iglesias de particulares, pero la documentación zamorana refleja también que en esta época las mismas pasan a control de la catedral luego de la segunda generación. Por ejemplo Juan Salvador de Toro, que había logrado retener de hecho la iglesia edificada por su pariente, se ve obligado a conceder: “...medietatem prenominate ecclesie, quam Lupus, quondam archipresbyter, cognatus meus relinquit capitulo Sancti Salvatoris, ab canonicis cum medietate domorum que aderent prefate ecclesie, tali conditione adiecta: ut non liceat mihi predictam medietatem vel in persona aliquam vel in locum religiosum transferre...” TBZ 319. En algunos casos esta capacidad está reconocida por fuero: ver, por ejemplo, el de Castrotorafe en: RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ, Justiniano: Los fueros locales de la provincia de Zamora. Salamanca: Junta de Castilla y León. 1990. Doc. 22, p. 298.23“...ab ipsa ecclesia episcopus zamorensis in foro quatuor quartas tritici et quatuor ordei habeant. Si autem numerus parrochianorum creverit in ecclesia, ut consuetudo est in aliis ecclesiis, tercia pars episcopo tribuatur.” TBZ 318.24El obispo Suero autorizó a los monjes de Moreruela: “…populent locum suum (…) et ibidem fundent et construant ecclesiam baptismalem…” Si el lugar se despoblaba volvería a ser granja, TBZ 423.25“...et esse mismo don Suero, bispo de Zamora, por si et por sus successores, por esta donation et por esta gratia quel fazien Pelay Perez et su fiyo Ruy Pelayz, dioles las dos partes de los diezmos de las tercias que el bispo ha en las eglisias de Peniella, cerca Toro, que las tengan et las ayan en aprestamo en todos sus dias...” TBZ 374.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (34-39) Disputas por la renta: la obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

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Disputas por la renta: la obtención de la terciaepiscopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

*Carla Cimino

Las parroquias rurales han recibido mucha atención por parte del medievalismo de un tiempo a esta parte. Las propuestas historiográficas de Robert Fossier han contribuido a la valorización de estos espacios del

1ámbito aldeano. Dicho historiador resaltó su rol en la articulación del marco local, señalando su importancia en el anclaje definitivo de la comunidad de los vivos a través

2del control del lugar de reposo de los muertos. Su propuesta del “enceldamiento” tuvo y tiene amplia acogida entre los medievalistas dado que otorga herramientas para explicar el proceso de subordinación del campesinado. En el ámbito ibérico, muy influenciado por los trabajos que realizara García de Cortázar sobre la organización del espacio, esta problemática tuvo una gran recepción por parte de algunos estudiosos interesados en la dimensión territorial del ámbito

4parroquial, tema que sigue en plena vigencia hoy en día.Más allá de estos novedosos enfoques, también

es cierto que las parroquias aparecen desde temprano como espacios de acumulación de excedentes y, por ende, fueron escenario de enconadas disputas durante todo el período. Esto se verifica especialmente en relación a la principal renta eclesiástica, el diezmo. Tras una Alta Edad Media signada por la preeminencia de los monasterios y las iglesias de particulares, las transformaciones derivadas de la reforma gregoriana propiciaron una mayor jerarquización de las diócesis al tiempo que pretendieron limitar la influencia de los laicos sobre las

I parroquias. A pesar de que estos temas ya son clásicos, no es tan sencillo encontrar planteos que revelen la naturaleza conflictiva del proceso por el cual la jerarquía

5eclesiástica logró participar en los diezmos parroquiales. Fossier, sostuvo que la “restitución” de tercias se explicaba por motivos religiosos, por simples razones venales o por la pacificación del año mil y no muchos

6estudios se apartaron de dichas sugerencias. Nuestro trabajo pretende, por el contrario, enfatizar el carácter progresivo y localizado de la penetración de los obispos en las parroquias y sus rentas. Al suponer una redistribución de los recursos parroquiales, la imposición de la tercia episcopal generó múltiples conflictos entre los obispos y otros actores locales. Pretendemos demostrar que son las relaciones de fuerza entre ambos las que explican las estrategias desplegadas y la vía de incorporación de las parroquias a la red territorial episcopal. Es notable que hasta ahora no se haya

7analizado el tema en el área zamorana cuya documentación es abundante y explícita. Los

8documentos del Archivo Catedralicio de Zamora permitirán ilustrar el proceso por el cual las parroquias se insertan en la estructura eclesiástica como instancias de base, esenciales a la reproducción del señorío episcopal.

IITanto las comunidades campesinas como los

poderes locales -laicos y eclesiásticos- administraban iglesias en las villas y aldeas de Zamora en la Edad Media. Los campesinos podían ejercer controles colectivos sobre aspectos y lugares de culto considerados elementales para la comunidad. Tal es el caso de Santa Eulalia, donde los parroquianos tenían potestad sobre el

9sacerdote y el tesoro parroquial, o de Riego del Camino, donde subsistían vestigios de dichos controles aún a

*CEHSE (IdIHCS) – Universidad Nacional de La Plata. Becária CONICET.1Ver por ejemplo las referencias que proporcionan IOGNA-PRAT, Dominique y ZADORA-RIO, Elisabeth: “Formation et transformations des territoires paroissiaux.” En: Médiévales. Nº 49. Automne 2005. http://medievales.revues.org/12002FOSSIER, Robert: La infancia de Europa. Siglos X - XII. Aspectos económicos y sociales. Barcelona: Labor. 1984. p. 242 y ss.3GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel (ed.): Del Cantábrico al Duero: trece estudios sobre organización social del espacio. Santander: Universidad de Cantabria. 1999.4LÓPEZ ALSINA, Fernando: “El encuadramiento eclesiástico como espacio de poder: de la parroquia al obispado.” En: de la Iglesia Duarte, José Ignacio (coord.) y Martín Rodríguez, José Luis (dir.): Los espacios de poder en la España medieval: XII° Semana de Estudios Medievales. Nájera: Instituto de Estudios Riojanos. 2002; y el trabajo del mismo autor en: GARCÍA DE CORTÁZAR, op. Cit. También: CALLEJA PUERTA, Miguel: La formación de la red parroquial de la diócesis de Oviedo en la Edad Media. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos. 2000. Del mismo autor: “Eclesiología episcopal y organización del espacio en las ciudades y villas del noroeste peninsular (1100-1250).” En: de la Iglesia Duarte, José Ignacio (coord): Monasterios, espacio y sociedad en la España cristiana medieval: XX° Semana de Estudios Medievales. Nájera: Instituto de Estudios Riojanos. 2010.

5Constituyen notables excepciones: D'EMILIO, James: “La formación de la parroquia en la Galicia medieval” en: Relaciones. Nº 72. Vol. XVIII. Otoño 1997; y AMARAL, Luis Carlos: “Organização eclesiástica de Entre-Douro-E-Minho: o caso da diocese de Braga (Sécs. IX-XII)” en GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., 6FOSSIER, op. cit., p. 240-241.7No se han realizado nuevos trabajos sobre el tema después de los aportes de José Luis Martín: “Fuentes y estudios zamoranos” y “Diezmos eclesiásticos” ambos en MARTÍN, José Luis: Amor, cuestión de señorío y otros estudios. Zamora: UNED, 1993.8SÁNCHEZ RODRÍGUEZ, Marciano: Tumbo Blanco de Zamora. Salamanca. 1985. MARTIN, José Luis: Documentos Zamoranos I. Documentos del Archivo Catedralicio de Zamora, primera parte (1128-1261). Salamanca: Universidad de Salamanca. 1982. (En adelante citados TBZ y ACZ respectivamente, seguidas del número de documento).9Santa Eulalia: ACZ 22 y TBZ 261.

10Riego del Camino: TBZ 396 y 397. Aquí el colectivo campesino aún decidía cómo administrar los recursos de la fábrica parroquial. Similar situación en Villalbarba. TBZ 403.11ALFONSO, Isabel: “Iglesias rurales en el norte de Castilla: una dimensión religiosa de las luchas campesinas durante la Edad Media.” En: Garrabou, Ramón y Robledo, Ricardo (ed.): Sombras del progreso. Las huellas de la historia agraria. Barcelona: Crítica. 2010.12Las aldeas episcopales son: Santa María de Valle, Venialbo, Fradejas, Moraleja, Morales de Toro y San Martín de Bamba (incorporadas durante el siglo XII); Manganeses de la Lampreana, Fermoselle, Villalcampo, Bamba, Sanzoles y Santa Clara de Avedillo (incorporadas durante el siglo XIII). TBZ 154, 168, 281, 204/205, 299, 142, 277, 245/246, 209 y 150.13TBZ 8 y ACZ 11 y 13.14TBZ 150 y 290.15Elvira, hija del conde Osorio, poseía algunas parroquias en el término de Toro: TBZ 398 y ACZ 12 y 14. Son igualmente importantes para algunos monasterios del área: TBZ 439 y ACZ 58. Ver infra, sección siguiente.16Una síntesis bibliográfica actual en: DÍAZ DE DURANA, José Ramón y GUINOT, Enric: “La dîme dans l'Espagne médiévale.” En:

es La dîme dans l'Europe médiévale et moderne. Actes des XXXJournées Internationales d'Histoire de l'Abbaye de Flaran. Presses Universitaires du Mirail. 2010.17Donaciones de divisas de iglesias en TBZ 300, 301 y 398 y en ACZ 21, 27, 29, 32, 33 y 39.18Ventas de divisas en ACZ 24, 25 y 30 y TBZ 421.19TBZ 402, 411, 318 y 320. ACZ 19, 38, 53 y 106.

10principios del siglo XIII. Aunque no puede afirmarse que la lucha en torno al espacio de culto y el pago de

11diezmos sea específica de un momento determinado, a partir de la reforma gregoriana y tras la formación de nuevos obispados al sur del río Duero progresivamente se favorece la intrusión de las autoridades diocesanas en las parroquias comunales y de particulares. Nada entorpeció el avance episcopal en las aldeas cuya jurisdicción

12controlaba desde su repoblación. Tampoco se evidenciaron problemas cuando las tercias y derechos se

13obtuvieron por donación de los monarcas o, 14simplemente, por compra. Sin embargo, la intromisión

episcopal en otros lugares no fue tan sencilla: magnates, monasterios y órdenes tenían especial interés en las

15parroquias, que desde temprano aparecían como centros de acumulación de excedentes agrícolas gracias al pago

16de los diezmos. Para los laicos, las parroquias se administraban como cualquier otro bien perteneciente al patrimonio familiar y estaban, asimismo, sujetas a divisiones hereditarias. Las divisas individuales, participación de los miembros de las familias en el

17beneficio de las iglesias, eran la forma de tenencia más frecuente durante el período estudiado. Las mismas podían ser donadas o vendidas y es usual encontrar indicios de este tipo de transacciones, que solían engrosar

18el patrimonio de los monasterios.Pese a que podría intuirse lo contrario, la

progresiva imposición de la jurisdicción episcopal a partir del siglo XII no implicó la desaparición de la posibilidad de que los laicos, órdenes o monasterios erigieran y patrocinaran parroquias. De hecho, una de las formas menos conflictivas de adquisición de tercias residía en las autorizaciones que durante todo el período otorgó el obispo a dichas construcciones, reservándose

19los derechos correspondientes. El reconocimiento de la tercia decimal, de la jurisdicción episcopal y la promesa

de obediencia canónica, verdadero pacto de fidelidad que contribuía a estructurar las jerarquías eclesiásticas, eran condiciones sine qua non para obtener dicha autorización. Los patronos obtenían dos tercios de los diezmos y el derecho de presentación del sacerdote y adquirían la responsabilidad de mantener el edificio de culto, sustentar al cura y cumplir con los deberes hacia la

20sede diocesana.La construcción de iglesias suponía la capacidad

21de dotarlas con cierta cantidad de bienes, la correcta administración de los mismos era una parte central de estos acuerdos. En el caso de los laicos, dicho patrimonio inicial quedaba bajo control de la autoridad catedralicia tras la muerte del benefactor o, en el peor de los casos, de

22sus descendientes directos. Los obispos no dudaron en ofrecer buenas condiciones y condonar temporalmente los tributos, esperando el momento en que los templos

23pudieran sustentar una cantidad mayor de parroquianos. La construcción de iglesias parroquiales aparece, entonces, como un elemento más del muy estudiado problema de la repoblación, como ilustra el caso de Omezos, lugar del monasterio de Moreruela en donde los monjes pretendían construir una puebla nueva en 1269, a

24la que debían dotar del correspondiente espacio de culto.Las rentas parroquiales eran tentadoras para

algunos sectores locales, por este motivo constituyeron un importante recurso de negociación en manos de los

25obispos durante todo el período. Tan importante era el beneficio que, en algunos casos, pareció necesario a las partes dejar asentado que no podrían construirse iglesias competidoras en el lugar y que el obispo castigaría a

26quienes pretendieran acudir a otros lugares de culto. De modo que la proliferación de las parroquias se vinculó,

20Un ejemplo típico en TBZ 409.21El obispo Martín I autoriza a D. Peláez a construir una iglesia con la condición de: “...quod ipse det hereditatem in qua possit iugum boum laborare sufficienter et duas aranzadas vinearum...” TBZ 318.22Ciertamente existen casos de transmisión familiar de las iglesias de particulares, pero la documentación zamorana refleja también que en esta época las mismas pasan a control de la catedral luego de la segunda generación. Por ejemplo Juan Salvador de Toro, que había logrado retener de hecho la iglesia edificada por su pariente, se ve obligado a conceder: “...medietatem prenominate ecclesie, quam Lupus, quondam archipresbyter, cognatus meus relinquit capitulo Sancti Salvatoris, ab canonicis cum medietate domorum que aderent prefate ecclesie, tali conditione adiecta: ut non liceat mihi predictam medietatem vel in persona aliquam vel in locum religiosum transferre...” TBZ 319. En algunos casos esta capacidad está reconocida por fuero: ver, por ejemplo, el de Castrotorafe en: RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ, Justiniano: Los fueros locales de la provincia de Zamora. Salamanca: Junta de Castilla y León. 1990. Doc. 22, p. 298.23“...ab ipsa ecclesia episcopus zamorensis in foro quatuor quartas tritici et quatuor ordei habeant. Si autem numerus parrochianorum creverit in ecclesia, ut consuetudo est in aliis ecclesiis, tercia pars episcopo tribuatur.” TBZ 318.24El obispo Suero autorizó a los monjes de Moreruela: “…populent locum suum (…) et ibidem fundent et construant ecclesiam baptismalem…” Si el lugar se despoblaba volvería a ser granja, TBZ 423.25“...et esse mismo don Suero, bispo de Zamora, por si et por sus successores, por esta donation et por esta gratia quel fazien Pelay Perez et su fiyo Ruy Pelayz, dioles las dos partes de los diezmos de las tercias que el bispo ha en las eglisias de Peniella, cerca Toro, que las tengan et las ayan en aprestamo en todos sus dias...” TBZ 374.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (34-39) Disputas por la renta: la obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

Page 34: SUMÁRIO - projetoham.com.br · olavo de carvalho, o mÍdia sem mÁscaras e o anticomunismo ... “que mundo tÃo parvo que para ser escravo É preciso estudar”: a pÓs-graduaÇÃo

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muchas veces, no tanto a la iniciativa episcopal, como a la ambición de nobles, caballeros, eclesiásticos de baja alcurnia, etc.

La expansión de la red parroquial en el espacio resultaba vital, pues contribuía a ampliar la jurisdicción señorial frente a instancias competidoras. El ingreso de las iglesias rurales a la órbita episcopal terminó de definir los márgenes de la diócesis, bastante difusos en las áreas de frontera. Para Zamora, por ejemplo, fue central el control de algunas parroquias pertenecientes al término de Ledesma, las cuales sirvieron para “negociar” la línea divisoria con la sede salmantina. En 1185 los obispos de Zamora y Salamanca fijaron los límites entre ambas diócesis apoyándose en las parroquias que ya

27controlaban.

IIIEl control de las parroquias no quedó librado

siempre a la existencia de sectores dispuestos a aceptar este tipo de acuerdos, después de todo, implicaba importantes consecuencias. Estaban en juego, por un lado, el posicionamiento del obispo en la cima de la jerarquía local, por sobre otras fracciones de la clase de poder que reivindicaban derechos patrimoniales sobre las parroquias; por otro lado, el control de las mismas facilitaba el acceso a ciertos sectores intermedios y, a través de ellos, a las comunidades de base; esto posibilitaba, por último, la participación episcopal en la principal forma de renta eclesiástica. El conflicto se manifestó especialmente en torno al derecho a percibir la tercia decimal y a la potestad de instituir sacerdotes. En estos casos conflictivos, la injerencia episcopal en las parroquias se construyó en un proceso lento que puede observarse en Zamora durante los siglos XII y XIII.

Los monasterios y las órdenes militares fueron los que mejor rechazaron los intentos episcopales de subordinar a las parroquias a la autoridad diocesana. Son casos que permiten constatar el importante trabajo que representó para la sede el reconocimiento de su autoridad, así como verificar el abanico de estrategias instrumentadas por los obispos en la confrontación. De las numerosas disputas de desigual intensidad que enfrentaron a los obispos con órdenes y monasterios durante el período que aquí estudiamos desarrollaremos sólo algunas, las mejor documentadas, que permiten tanto ilustrar las acciones señoriales, como esclarecer otros aspectos que hasta ahora sólo hemos esbozado.

En 1202, por ejemplo, el obispo Martín puso fin a la “insolencia” del abad y monjes de Hornija, que se negaban a reconocer los derechos episcopales; logró someter a los frailes construyendo en el burgo de Hornija una parroquia que, al competir con el monasterio, lo

28perjudicaba. El obispo accedió a destruir la iglesia

nueva y a no reedificarla nunca más a cambio de obtener un censo anual perpetuo en especie “in signum subiectionis et reverencie”. No conforme con eso, reivindicó el derecho a instituir los curas párrocos (los cuales deberían acudir a los sínodos provinciales como cualquier otro de la diócesis), el pago de procuraciones en la visita pastoral anual y el reconocimiento de los derechos episcopales en materia propiamente religiosa:

29consagración de altares, ordenación de sacerdotes, etc. El ejemplo demuestra claramente el carácter estructurante que tenía la resolución de las disputas en relación al reordenamiento de la clase feudal. A los monjes insolentes se les impuso, además de los derechos usuales, un tributo de obediencia hacia la autoridad episcopal. Su situación difería, por ejemplo, de la de los caballeros de la Orden del Sepulcro, a quienes el obispo

30condonó el pago de procuraciones reconociendo que siempre han sido “humiles et devotos” hacia la sede

31zamorana.

La estructuración de la clase feudal, sea a través de pactos amigables o del conflicto abierto, tenía como resultado final el perfeccionamiento de la explotación del campesinado. Los reiterados desacuerdos entre la clase de poder, por el contrario, podían relajar la vigilancia y la opresión, permitiendo márgenes de evasión tributaria perniciosos para la clase noble en su conjunto. Esto se comprueba, por ejemplo, en la composición de 1249 entre los canónigos de Zamora y los caballeros templarios, donde se vislumbra en qué medida tanto los patronos parroquiales como las autoridades diocesanas se perjudicaban por estas disputas. Años de sede vacante y

32de sucesivos litigios sobre los diezmos de Pajares habían generalizado la evasión decimal entre los campesinos de

33esta aldea.

Muy pocos patronos pudieron oponer resistencia a los obispos cuando éstos lograron imponer sanciones efectivas sobre ellos y sus parroquias. La documentación relativa a las órdenes de Alcántara y Santiago permite observar el funcionamiento del recurso más importante en manos de las autoridades diocesanas: la sentencia de excomunión y el entredicho. En razón del pleito de 1261 sobre los derechos episcopales en las iglesias que poseía la orden de Alcántara en la ciudad de Zamora, el prelado había puesto sentencias de excomunión, entredicho y suspensión sobre iglesias, capellanes, hombres y vasallos de la misma. Los caballeros reclamaban que las mismas

34habían tenido graves consecuencias sobre sus derechos, sin duda afectados por la imposibilidad de celebrar el culto y recibir diezmos, ofrendas, enterramientos, etc. Hacia la segunda mitad del siglo XIII las sentencias y entredichos episcopales aparecían como recursos

26“Item placuit, pro bono pacis, quod non edificetur alique ecclesia de novo in villa de Belver in periudicium dictarum ecclesiarum (...) et si aliquis de populo ibi morante ad aliam ecclesiam tamquam parrochianus ire voluerit, episcopus iusticia faciat de eodem.” TBZ 437. 27Composición de 1185 entre la sede salmantina y la zamorana: TBZ 446 y 447. También hubo disputas con las sedes de Santiago y Palencia: ACZ 74, 154 y 155.28ACZ 58 y TBZ 439.

29TBZ 439.30TBZ 415.31ACZ 47 y 111. TBZ 303 y 416. Son acuerdos amistosos entre el episcopado zamorano y la Orden.32TBZ 403 indica conflictos previos.33“…[hereditarii] se de una ecclesia ad aliam, pro sue voluntatis arbitrio transfferentes, quandoque in toto quandoque in parte, ecclesias de Paiares decimis et iuribus aliis enormiter defraudabant…” TBZ 405.34TBZ 413.

35Ibid., “…super dampnis et interesse que dicti magister et fratres dicebant se incurrisse occasione quarumdam sententiarum excommunionibus, interdicti et suspensionis…”36Cerca de 1231, por ejemplo, el maestre de la orden de Santiago acudía enfermo a suplicar al obispo que levantase el entredicho. ACZ 108.37TBZ 274, 407, 438 y 439.38“…ut terciam partem omnium decimarum quecumque ad ecclesiam illam pervenerint, videlicet, panis et vini et omnium leguminum, similiter omnium fructuum et creancie necnon casei, lane, lactis et mantece et omnium olerum, ollarum queque et cantarorum integre et sine omni diminutione ecclesia Sancti Salvatoris recipiat.” TBZ 411.39El abad de Sahagún estipula: “...vero anno quo episcopus zamorensis visitaverit predictas ecclesias, archidiaconus non visitet, nisi forte ex honesta et neccesaria causa fuerit invitatus. Et, nec episcopus nec archidiaconus maneat ibi nisi per unam diem et noctem, et sequenti die recedat...” TBZ 437. Otro documento revela: “Episcopus vero, dum prefatas ecclesias visitaverit, ultra viginti equitaturas non ducat in suo comitatu. Si autem plures duxerit, non teneantur pluribus fratres quam viginti ministrare annonam.” TBZ 407.40Ibid.: “Et si populus eiusdem loci voluerit quod episcopus in sequenti die ibi maneat ad confirmandum vel alia christianitatis misteria exhibenda, placeat fratri vel fratribus qui pro tempore, ut dictum est, fuerint et ab ipso populo procuratione recipiat.”41TBZ 274, 407 y 438.42“Pro hospitalitate autem singulis annis in festo Sancti Martini unum aureum episcopus recipiat. Vicarii vero eius si ecclesiam visitaverint hospitalitatem in ecclesia habeant.” TBZ 438.

35punitivos efectivos más allá de las preocupaciones espirituales que debieron poseer cierta importancia y de

36las cuales nos han llegado noticias.

Claro que no siempre dispusieron los obispos de estos medios de sanción. Durante mucho tiempo el reconocimiento de la jurisdicción episcopal en las parroquias rurales se garantizó sólo mediante la visita personal al lugar. Al acudir a cada parroquia el obispo y su

37comitiva debían ser hospedados y alimentados. La diversidad que presentan los recursos decimales tenía entonces un sentido muy concreto: debía satisfacer la

38alimentación del señor. Lejos de la comercialización de los productos, en esta etapa interesaba su variedad y abundancia para el consumo episcopal. Al recaer sobre los recursos de las parroquias y no sólo sobre los parroquianos como colectivo, el hospedaje afectaba los beneficios de los patronos. El mejor indicio surge de sus protestas: el monasterio de Sahagún, por ejemplo, poseía cierta parroquia en Belver de los Montes en la cual logró

39limitar las pretensiones episcopales. Del mismo modo, los caballeros de la Orden del Hospital desalentaban la permanencia del obispo estableciendo que los parroquianos deberían alimentarlo si deseaban prolongar

40su estadía.

Las visitaciones siguieron siendo la mejor forma de ejercer el poder local hasta las primeras décadas del siglo XIII. A veces la función recaía en vicarios episcopales que seguían consumiendo los productos en

4 1el lugar, aunque también podían aparecer

42conmutaciones. La inevitable conclusión que surge de lo expuesto es que no basta con estudiar la reconstrucción de las diócesis “desde arriba”, ya que el poder jurisdiccional se concretaba en el ámbito local. En las parroquias que poseían patronos poderosos los obispos no podían percibir las rentas si no acudían con su comitiva a la aldea a ejercer in situ el poder.

Progresivamente las visitas pudieron distanciarse en el tiempo, pero para que esto sucediera la percepción de la renta decimal debía garantizarse por otros medios.

La confrontación entre el señor episcopal y los actores locales que detentaban derechos sobre las parroquias también ofrece indicios sobre las condiciones locales que, en definitiva, garantizaron la percepción del diezmo. Una de las facetas más importantes del conflicto residía en la pugna sobre la designación de curas párrocos y “terceros”. Dichos personajes poseían una inmensa responsabilidad en la percepción de los diezmos. De los sacerdotes se esperaba una prédica constante sobre la necesidad de contribuir al culto y restituir en la

43decimación los frutos que Dios había ofrecido. Pese a esta importante función, muchas veces el estilo de vida del cura estaba más cerca del de sus vecinos de la aldea que de la situación privilegiada de un rentista. Su sustento dependía del aporte de los parroquianos, del trabajo de algunos yugueros en las tierras de la parroquia o de la

44soldada que los patronos les atribuyeran. Reyna Pastor los consideró por esta razón como un “proletariado clerical” proclive a incorporarse en las luchas campesinas

45contra los señores. Allí donde se podía dudar de la fidelidad clerical, o donde existían patronos competidores con derechos de presentación de sacerdotes, era esencial el rol de los terceros. Los mismos provenían preferentemente del ámbito local y estaban encargados de velar por la correcta repartición de los diezmos de cada iglesia. Entre sus funciones se hallaba la indagación de la cantidad y calidad de los productos, la elección de una casa donde se almacenasen y su ulterior

46distribución entre los patronos y el obispo.Tanto clérigos parroquiales como terceros

pueden comprenderse como verdaderos “sectores 47intermedios” : establecían vínculos entre la instancia

señorial y las comunidades de base y eran responsables tanto de evaluar las posibilidades locales de tributación, como del aumento del volumen de esta renta, sujeta al progresivo desarrollo económico de la aldea. Por eso el obispo Suero instruía a los clérigos de la diócesis acerca de los castigos que pesarían sobre quienes no fueran

48celosos al exigir los diezmos a sus parroquianos. La

43Para un análisis sobre prácticas religiosas propiciatorias en clave antropológica: GODELIER, Maurice: Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas. Madrid: Siglo XXI. 1974.44En Santa María de la Horta, por ejemplo, el salario del cura consistía en quince cargas de trigo y dos puercos al año, cuatro azumbres de vino por día, tres sueldos diarios para carne o pescado, 110 maravedís para vestido, 20 maravedís para leña y otras cosas menores. MARTÍN, op. cit., p. 61.45PASTOR, Reyna: Resistencias y luchas campesinas en la época de crecimiento y consolidación de la formación feudal. Castilla y León, siglos X-XIII. Madrid: Siglo XXI. 1980, p. 156.46“Tota decima panis (...) que spectant ad episcopus et abbatem in simul colligatur et deferatur ad ipsiis terciariis positis per episcopum et abbatem in unam domum quam ipsi terciarii elegerint, in qua postea proportionaliter dividantur. Et ipsi terciarii promittant bona fide quod decimas omnes fideliter requirant, colligant et conservent et dividant inter episcopum et abbatem.” TBZ 437.47Empleamos este concepto con la acepción que recibiera en PASTOR, Reyna et al.: Transacciones sin mercado: instituciones, propiedad y redes sociales en la Galicia monástica. 1200-1300. Madrid: CSIC. 1999.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (34-39) Disputas por la renta: la obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

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muchas veces, no tanto a la iniciativa episcopal, como a la ambición de nobles, caballeros, eclesiásticos de baja alcurnia, etc.

La expansión de la red parroquial en el espacio resultaba vital, pues contribuía a ampliar la jurisdicción señorial frente a instancias competidoras. El ingreso de las iglesias rurales a la órbita episcopal terminó de definir los márgenes de la diócesis, bastante difusos en las áreas de frontera. Para Zamora, por ejemplo, fue central el control de algunas parroquias pertenecientes al término de Ledesma, las cuales sirvieron para “negociar” la línea divisoria con la sede salmantina. En 1185 los obispos de Zamora y Salamanca fijaron los límites entre ambas diócesis apoyándose en las parroquias que ya

27controlaban.

IIIEl control de las parroquias no quedó librado

siempre a la existencia de sectores dispuestos a aceptar este tipo de acuerdos, después de todo, implicaba importantes consecuencias. Estaban en juego, por un lado, el posicionamiento del obispo en la cima de la jerarquía local, por sobre otras fracciones de la clase de poder que reivindicaban derechos patrimoniales sobre las parroquias; por otro lado, el control de las mismas facilitaba el acceso a ciertos sectores intermedios y, a través de ellos, a las comunidades de base; esto posibilitaba, por último, la participación episcopal en la principal forma de renta eclesiástica. El conflicto se manifestó especialmente en torno al derecho a percibir la tercia decimal y a la potestad de instituir sacerdotes. En estos casos conflictivos, la injerencia episcopal en las parroquias se construyó en un proceso lento que puede observarse en Zamora durante los siglos XII y XIII.

Los monasterios y las órdenes militares fueron los que mejor rechazaron los intentos episcopales de subordinar a las parroquias a la autoridad diocesana. Son casos que permiten constatar el importante trabajo que representó para la sede el reconocimiento de su autoridad, así como verificar el abanico de estrategias instrumentadas por los obispos en la confrontación. De las numerosas disputas de desigual intensidad que enfrentaron a los obispos con órdenes y monasterios durante el período que aquí estudiamos desarrollaremos sólo algunas, las mejor documentadas, que permiten tanto ilustrar las acciones señoriales, como esclarecer otros aspectos que hasta ahora sólo hemos esbozado.

En 1202, por ejemplo, el obispo Martín puso fin a la “insolencia” del abad y monjes de Hornija, que se negaban a reconocer los derechos episcopales; logró someter a los frailes construyendo en el burgo de Hornija una parroquia que, al competir con el monasterio, lo

28perjudicaba. El obispo accedió a destruir la iglesia

nueva y a no reedificarla nunca más a cambio de obtener un censo anual perpetuo en especie “in signum subiectionis et reverencie”. No conforme con eso, reivindicó el derecho a instituir los curas párrocos (los cuales deberían acudir a los sínodos provinciales como cualquier otro de la diócesis), el pago de procuraciones en la visita pastoral anual y el reconocimiento de los derechos episcopales en materia propiamente religiosa:

29consagración de altares, ordenación de sacerdotes, etc. El ejemplo demuestra claramente el carácter estructurante que tenía la resolución de las disputas en relación al reordenamiento de la clase feudal. A los monjes insolentes se les impuso, además de los derechos usuales, un tributo de obediencia hacia la autoridad episcopal. Su situación difería, por ejemplo, de la de los caballeros de la Orden del Sepulcro, a quienes el obispo

30condonó el pago de procuraciones reconociendo que siempre han sido “humiles et devotos” hacia la sede

31zamorana.

La estructuración de la clase feudal, sea a través de pactos amigables o del conflicto abierto, tenía como resultado final el perfeccionamiento de la explotación del campesinado. Los reiterados desacuerdos entre la clase de poder, por el contrario, podían relajar la vigilancia y la opresión, permitiendo márgenes de evasión tributaria perniciosos para la clase noble en su conjunto. Esto se comprueba, por ejemplo, en la composición de 1249 entre los canónigos de Zamora y los caballeros templarios, donde se vislumbra en qué medida tanto los patronos parroquiales como las autoridades diocesanas se perjudicaban por estas disputas. Años de sede vacante y

32de sucesivos litigios sobre los diezmos de Pajares habían generalizado la evasión decimal entre los campesinos de

33esta aldea.

Muy pocos patronos pudieron oponer resistencia a los obispos cuando éstos lograron imponer sanciones efectivas sobre ellos y sus parroquias. La documentación relativa a las órdenes de Alcántara y Santiago permite observar el funcionamiento del recurso más importante en manos de las autoridades diocesanas: la sentencia de excomunión y el entredicho. En razón del pleito de 1261 sobre los derechos episcopales en las iglesias que poseía la orden de Alcántara en la ciudad de Zamora, el prelado había puesto sentencias de excomunión, entredicho y suspensión sobre iglesias, capellanes, hombres y vasallos de la misma. Los caballeros reclamaban que las mismas

34habían tenido graves consecuencias sobre sus derechos, sin duda afectados por la imposibilidad de celebrar el culto y recibir diezmos, ofrendas, enterramientos, etc. Hacia la segunda mitad del siglo XIII las sentencias y entredichos episcopales aparecían como recursos

26“Item placuit, pro bono pacis, quod non edificetur alique ecclesia de novo in villa de Belver in periudicium dictarum ecclesiarum (...) et si aliquis de populo ibi morante ad aliam ecclesiam tamquam parrochianus ire voluerit, episcopus iusticia faciat de eodem.” TBZ 437. 27Composición de 1185 entre la sede salmantina y la zamorana: TBZ 446 y 447. También hubo disputas con las sedes de Santiago y Palencia: ACZ 74, 154 y 155.28ACZ 58 y TBZ 439.

29TBZ 439.30TBZ 415.31ACZ 47 y 111. TBZ 303 y 416. Son acuerdos amistosos entre el episcopado zamorano y la Orden.32TBZ 403 indica conflictos previos.33“…[hereditarii] se de una ecclesia ad aliam, pro sue voluntatis arbitrio transfferentes, quandoque in toto quandoque in parte, ecclesias de Paiares decimis et iuribus aliis enormiter defraudabant…” TBZ 405.34TBZ 413.

35Ibid., “…super dampnis et interesse que dicti magister et fratres dicebant se incurrisse occasione quarumdam sententiarum excommunionibus, interdicti et suspensionis…”36Cerca de 1231, por ejemplo, el maestre de la orden de Santiago acudía enfermo a suplicar al obispo que levantase el entredicho. ACZ 108.37TBZ 274, 407, 438 y 439.38“…ut terciam partem omnium decimarum quecumque ad ecclesiam illam pervenerint, videlicet, panis et vini et omnium leguminum, similiter omnium fructuum et creancie necnon casei, lane, lactis et mantece et omnium olerum, ollarum queque et cantarorum integre et sine omni diminutione ecclesia Sancti Salvatoris recipiat.” TBZ 411.39El abad de Sahagún estipula: “...vero anno quo episcopus zamorensis visitaverit predictas ecclesias, archidiaconus non visitet, nisi forte ex honesta et neccesaria causa fuerit invitatus. Et, nec episcopus nec archidiaconus maneat ibi nisi per unam diem et noctem, et sequenti die recedat...” TBZ 437. Otro documento revela: “Episcopus vero, dum prefatas ecclesias visitaverit, ultra viginti equitaturas non ducat in suo comitatu. Si autem plures duxerit, non teneantur pluribus fratres quam viginti ministrare annonam.” TBZ 407.40Ibid.: “Et si populus eiusdem loci voluerit quod episcopus in sequenti die ibi maneat ad confirmandum vel alia christianitatis misteria exhibenda, placeat fratri vel fratribus qui pro tempore, ut dictum est, fuerint et ab ipso populo procuratione recipiat.”41TBZ 274, 407 y 438.42“Pro hospitalitate autem singulis annis in festo Sancti Martini unum aureum episcopus recipiat. Vicarii vero eius si ecclesiam visitaverint hospitalitatem in ecclesia habeant.” TBZ 438.

35punitivos efectivos más allá de las preocupaciones espirituales que debieron poseer cierta importancia y de

36las cuales nos han llegado noticias.

Claro que no siempre dispusieron los obispos de estos medios de sanción. Durante mucho tiempo el reconocimiento de la jurisdicción episcopal en las parroquias rurales se garantizó sólo mediante la visita personal al lugar. Al acudir a cada parroquia el obispo y su

37comitiva debían ser hospedados y alimentados. La diversidad que presentan los recursos decimales tenía entonces un sentido muy concreto: debía satisfacer la

38alimentación del señor. Lejos de la comercialización de los productos, en esta etapa interesaba su variedad y abundancia para el consumo episcopal. Al recaer sobre los recursos de las parroquias y no sólo sobre los parroquianos como colectivo, el hospedaje afectaba los beneficios de los patronos. El mejor indicio surge de sus protestas: el monasterio de Sahagún, por ejemplo, poseía cierta parroquia en Belver de los Montes en la cual logró

39limitar las pretensiones episcopales. Del mismo modo, los caballeros de la Orden del Hospital desalentaban la permanencia del obispo estableciendo que los parroquianos deberían alimentarlo si deseaban prolongar

40su estadía.

Las visitaciones siguieron siendo la mejor forma de ejercer el poder local hasta las primeras décadas del siglo XIII. A veces la función recaía en vicarios episcopales que seguían consumiendo los productos en

4 1el lugar, aunque también podían aparecer

42conmutaciones. La inevitable conclusión que surge de lo expuesto es que no basta con estudiar la reconstrucción de las diócesis “desde arriba”, ya que el poder jurisdiccional se concretaba en el ámbito local. En las parroquias que poseían patronos poderosos los obispos no podían percibir las rentas si no acudían con su comitiva a la aldea a ejercer in situ el poder.

Progresivamente las visitas pudieron distanciarse en el tiempo, pero para que esto sucediera la percepción de la renta decimal debía garantizarse por otros medios.

La confrontación entre el señor episcopal y los actores locales que detentaban derechos sobre las parroquias también ofrece indicios sobre las condiciones locales que, en definitiva, garantizaron la percepción del diezmo. Una de las facetas más importantes del conflicto residía en la pugna sobre la designación de curas párrocos y “terceros”. Dichos personajes poseían una inmensa responsabilidad en la percepción de los diezmos. De los sacerdotes se esperaba una prédica constante sobre la necesidad de contribuir al culto y restituir en la

43decimación los frutos que Dios había ofrecido. Pese a esta importante función, muchas veces el estilo de vida del cura estaba más cerca del de sus vecinos de la aldea que de la situación privilegiada de un rentista. Su sustento dependía del aporte de los parroquianos, del trabajo de algunos yugueros en las tierras de la parroquia o de la

44soldada que los patronos les atribuyeran. Reyna Pastor los consideró por esta razón como un “proletariado clerical” proclive a incorporarse en las luchas campesinas

45contra los señores. Allí donde se podía dudar de la fidelidad clerical, o donde existían patronos competidores con derechos de presentación de sacerdotes, era esencial el rol de los terceros. Los mismos provenían preferentemente del ámbito local y estaban encargados de velar por la correcta repartición de los diezmos de cada iglesia. Entre sus funciones se hallaba la indagación de la cantidad y calidad de los productos, la elección de una casa donde se almacenasen y su ulterior

46distribución entre los patronos y el obispo.Tanto clérigos parroquiales como terceros

pueden comprenderse como verdaderos “sectores 47intermedios” : establecían vínculos entre la instancia

señorial y las comunidades de base y eran responsables tanto de evaluar las posibilidades locales de tributación, como del aumento del volumen de esta renta, sujeta al progresivo desarrollo económico de la aldea. Por eso el obispo Suero instruía a los clérigos de la diócesis acerca de los castigos que pesarían sobre quienes no fueran

48celosos al exigir los diezmos a sus parroquianos. La

43Para un análisis sobre prácticas religiosas propiciatorias en clave antropológica: GODELIER, Maurice: Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas. Madrid: Siglo XXI. 1974.44En Santa María de la Horta, por ejemplo, el salario del cura consistía en quince cargas de trigo y dos puercos al año, cuatro azumbres de vino por día, tres sueldos diarios para carne o pescado, 110 maravedís para vestido, 20 maravedís para leña y otras cosas menores. MARTÍN, op. cit., p. 61.45PASTOR, Reyna: Resistencias y luchas campesinas en la época de crecimiento y consolidación de la formación feudal. Castilla y León, siglos X-XIII. Madrid: Siglo XXI. 1980, p. 156.46“Tota decima panis (...) que spectant ad episcopus et abbatem in simul colligatur et deferatur ad ipsiis terciariis positis per episcopum et abbatem in unam domum quam ipsi terciarii elegerint, in qua postea proportionaliter dividantur. Et ipsi terciarii promittant bona fide quod decimas omnes fideliter requirant, colligant et conservent et dividant inter episcopum et abbatem.” TBZ 437.47Empleamos este concepto con la acepción que recibiera en PASTOR, Reyna et al.: Transacciones sin mercado: instituciones, propiedad y redes sociales en la Galicia monástica. 1200-1300. Madrid: CSIC. 1999.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (34-39) Disputas por la renta: la obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

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severidad de los sacerdotes era esencial ya que constituía prácticamente el único reaseguro contra las prácticas evasivas del campesinado. Sabiendo que la forma usual de evadir diezmos consistía en trasladarse entre

49parroquias vecinas, dicho obispo indicaba a los curas el procedimiento a seguir para no perder los diezmos y los

50amonestaba sobre el incumplimiento de sus deberes.A partir de la constitución de la diócesis los

obispos buscaron controlar al clero parroquial a través de las atribuciones de institución, corrección y destitución. Dicho control nunca fue completo: generalmente se respetó la potestad de los patrones de presentar clérigos y también hemos observado casos en que los parroquianos, como colectivo, conservaron atribuciones sobre el responsable del culto. No obstante, tampoco faltaron intentos episcopales de vulnerar estos derechos preexistentes. En este sentido no parecen existir tendencias generales: la relación de fuerzas que en cada caso enfrentara a la sede con los patrones o los campesinos locales determinó el grado de injerencia que el obispo lograría sobre el clero local. A veces la jerarquía episcopal intervenía indagando sobre la satisfacción de los curas párrocos respecto a la soldada que los patrones les asignaban. Ofrecía así una vía de expresión al posible descontento clerical e introducía una cuña en la relación antes directa entre los patronos y los responsables del

51culto. En otros casos los derechos de presentación parecen directamente olvidados, como en Villalbarba donde pese a que el derecho de presentación correspondía a los parroquianos y a la Orden del Hospital a medias, el obispo había instituido a un cura a quien protegió durante

52toda su vida.Algo similar podemos comprobar en el caso de la

designación de terceros: la documentación indica que los mismos cumplieron diferentes funciones según el contexto en el que actuaron. Los terceros podían ser designados de común acuerdo entre patronos y obispo o

53por cada una de las partes por separado. En el primer caso, actuaban como representantes de los señores frente al campesinado; en el segundo caso, indicativo de relaciones intraseñoriales más tensas, los terceros

garantizaban además el derecho de la parte a la que 54

respondieran. Conservaron siempre el carácter de ejecutores de la renta, que subyace en los testimonios de reacciones violentas contra ellos en el ejercicio de su

55función.

IVEl ingreso de cada parroquia a la órbita del

episcopado se conjugó, en cada caso, entre la negociación y la imposición. No obstante, la correlación de fuerzas también sufrió variaciones relacionadas con la progresiva consolidación jurisdiccional del obispo. Quizás el mejor indicador sea el grado de flexibilidad en aspectos que, según vimos, poseyeron una importancia estratégica en la cristalización del poder episcopal. Se observan importantes diferencias en el comportamiento de los obispos zamoranos antes y después de principios del siglo XIII: antes de esa fecha es más frecuente encontrar concesiones episcopales tales como porciones de los

56 57diezmos - a veces la tercia íntegra - o exenciones, 58liberalidad en la elección de sacerdotes o la

participación episcopal en su sustento (liberando la porción del diezmo correspondiente al patrón de la

59parroquia de parte de la carga). Dichas concesiones se vinculaban con la necesidad de contemplar la posición de poderes locales preexistentes. La contrapartida de esta política “laxa” residía en la garantía de la obediencia de dichos poderes a los que, invariablemente, se exigía el compromiso de respetar la autoridad episcopal, principalmente la observancia de las sentencias y entredichos episcopales. Los mismos monjes de Hornija que, según señalamos, fueron tan duramente combatidos por el obispo Martín, habían pactado previamente con el obispo Guillermo sobre los diezmos de Villafranca del Duero: el prelado accedió a donarles su parte en los diezmos a cambio del compromiso de obediencia y del

60pago de procuraciones. Asimismo, vimos que en esta etapa las parroquias nuevas sólo se autorizaron bajo

61promesa de obediencia canónica.

Una vez cruzada la mencionada bisagra del siglo XIII, la concesión de diezmos es menos frecuente y posee

62casi siempre carácter temporal. Del mismo modo, las exenciones sólo perduraron en relación a los bienes anexos a las iglesias o al patrimonio liberado en la etapa

63previa. El derecho a la tercia y la obligación de respetar

48“Item moneant parrochianos in diebus dominicis et festivis ut dent decimas deo debitas (...) et ipsi clerici, in requirendis et exigendis decimis et iuribus ecclesiarum suarum, non sint negligentes aliquatenus vel remissi, alias pena debita puniantur.” TBZ 455.49Como en Pajares, ver supra nota 33. Esta forma de evasión era usual en parroquias cercanas a los límites diocesanos. Aún en 1286 la denunciaban los obispos de Zamora y Palencia: TBZ 466.50“Item, cum parrochiani frequenter et malitiose de una ecclesia ad aliam se transferant (...) clericus, ad cuius parrochiam se transtulerit parrochianus ex malicia vel alterius clerici odio manifesta, teneatur per iuramentum et fidelitatem petere decimas et cetera iura. (...) Si vero clericus, ad cuius parrochiam taliter se transtulerit, decimas exigere a talibus neglexerit, de propio reddere compellantur, iuxta extimationem archipresbyteri vel trium clericorum a partibus electorum.” TBZ 455.51En la concordia con la Orden del Temple se explicita: “Item, si clerici a magistro et fratribus presentati ad eorum ecclesias quas habent in diocesi zamorensi recognoverint in presencia episcopi vel archidiaconi zamorensis se contentos esse provisione quas magister et fratres eis duxerint assignandam, idem episcopus vel archidiaconus, super maiori provisione eisdem clericis assignandam, dictos magistrum et fratres non compellat vel molestet.” TBZ 403.52Ibid.

53En el caso de las iglesias del valle de Guareña el obispo y la Orden del Hospital acordaron que se eligirían tres vasallos de la Orden, residentes en la aldea conocidos y solventes, entre los cuales el obispo nombraría uno para realizar la tarea. El tercero podría ser relevado del cargo ante la simple queja de cualquiera de las partes: TBZ 406.54Ver supra, nota 46. En Villafranca de la Ribera el obispo designa un tercero propio: TBZ 438.55En 1255 el rey ampara a los terceros del concejo de Toro: TBZ 05.56Se ceden a Sahagún algunas tercias episcopales en 1209. TBZ 274.57Se exime algunas parroquias del Hospital en 1186. TBZ 406.58Se concede que un fraile de la orden de Santiago podrá celebrar misa en TBZ 411.59“Capellanus eligatur a fratre per eandem obedientiam quam supra diximus et episcopus solvat terciam partem soldade.” TBZ 406.60TBZ 438.61Ver secciones anteriores. También TBZ 411, 444 y 416.62TBZ 441 y 445.63TBZ 403, 412, 421, 442 y 443.

64Con expresiones como “...sicut alii parrochiales clerici zamorensis episcopatus faciunt...” TBZ 409.65Imposición de procuraciones en TBZ 436 y fuero en TBZ 442.66En 1237 el abad de Mataplana cede el derecho de patronato. TBZ 79 y 80 y ACZ 128.67En algunos casos aún se presenta la posibilidad de que los sacerdotes no sean seculares, pero la tendencia ya es firme: “Predicti magister et fratres deben presentare clericos perpetuos ydoneos, seculares vel religiosos sui ordinis ad ecclesias quas habent in diocesi zamorensi, exceptis ecclesiis de Villalvarva et Sancti Marie de Thauro et Sancti Michaelis de Zamora, ad quas presentare debent tantum clericos seculares.” TBZ 403.

las sentencias y entredichos episcopales se mencionaban 64

como derechos usuales, “costumbres” de toda la diócesis y es más usual encontrar disputas sobre la imposición de nuevos tributos, como las procuraciones,

65el fuero y el catedrático. La absorción de parroquias en esta etapa podía suponer, incluso, la donación del derecho

66de patronato. En cuanto al derecho de presentación e institución de sacerdotes, el obispo logró excluir definitivamente a los miembros de órdenes monásticas de

67la cura de almas, reafirmando su capacidad de recusar clérigos considerados no aptos.

Como cualquier ámbito de recolección de rentas, las parroquias fueron un espacio de confrontación. La constitución de las jerarquías eclesiásticas no fue un proceso exento de tensiones ya que implicó la redistribución de los excedentes agrarios, ahora orientados parcialmente hacia el polo episcopal. Este aspecto es determinante, creemos, tanto al estudiar la significación de las parroquias en el ámbito rural medieval, como al analizar la consolidación de la red territorial del obispo.

Artigo recebido em 01.3.2012Aprovado em 30.5.2012

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severidad de los sacerdotes era esencial ya que constituía prácticamente el único reaseguro contra las prácticas evasivas del campesinado. Sabiendo que la forma usual de evadir diezmos consistía en trasladarse entre

49parroquias vecinas, dicho obispo indicaba a los curas el procedimiento a seguir para no perder los diezmos y los

50amonestaba sobre el incumplimiento de sus deberes.A partir de la constitución de la diócesis los

obispos buscaron controlar al clero parroquial a través de las atribuciones de institución, corrección y destitución. Dicho control nunca fue completo: generalmente se respetó la potestad de los patrones de presentar clérigos y también hemos observado casos en que los parroquianos, como colectivo, conservaron atribuciones sobre el responsable del culto. No obstante, tampoco faltaron intentos episcopales de vulnerar estos derechos preexistentes. En este sentido no parecen existir tendencias generales: la relación de fuerzas que en cada caso enfrentara a la sede con los patrones o los campesinos locales determinó el grado de injerencia que el obispo lograría sobre el clero local. A veces la jerarquía episcopal intervenía indagando sobre la satisfacción de los curas párrocos respecto a la soldada que los patrones les asignaban. Ofrecía así una vía de expresión al posible descontento clerical e introducía una cuña en la relación antes directa entre los patronos y los responsables del

51culto. En otros casos los derechos de presentación parecen directamente olvidados, como en Villalbarba donde pese a que el derecho de presentación correspondía a los parroquianos y a la Orden del Hospital a medias, el obispo había instituido a un cura a quien protegió durante

52toda su vida.Algo similar podemos comprobar en el caso de la

designación de terceros: la documentación indica que los mismos cumplieron diferentes funciones según el contexto en el que actuaron. Los terceros podían ser designados de común acuerdo entre patronos y obispo o

53por cada una de las partes por separado. En el primer caso, actuaban como representantes de los señores frente al campesinado; en el segundo caso, indicativo de relaciones intraseñoriales más tensas, los terceros

garantizaban además el derecho de la parte a la que 54

respondieran. Conservaron siempre el carácter de ejecutores de la renta, que subyace en los testimonios de reacciones violentas contra ellos en el ejercicio de su

55función.

IVEl ingreso de cada parroquia a la órbita del

episcopado se conjugó, en cada caso, entre la negociación y la imposición. No obstante, la correlación de fuerzas también sufrió variaciones relacionadas con la progresiva consolidación jurisdiccional del obispo. Quizás el mejor indicador sea el grado de flexibilidad en aspectos que, según vimos, poseyeron una importancia estratégica en la cristalización del poder episcopal. Se observan importantes diferencias en el comportamiento de los obispos zamoranos antes y después de principios del siglo XIII: antes de esa fecha es más frecuente encontrar concesiones episcopales tales como porciones de los

56 57diezmos - a veces la tercia íntegra - o exenciones, 58liberalidad en la elección de sacerdotes o la

participación episcopal en su sustento (liberando la porción del diezmo correspondiente al patrón de la

59parroquia de parte de la carga). Dichas concesiones se vinculaban con la necesidad de contemplar la posición de poderes locales preexistentes. La contrapartida de esta política “laxa” residía en la garantía de la obediencia de dichos poderes a los que, invariablemente, se exigía el compromiso de respetar la autoridad episcopal, principalmente la observancia de las sentencias y entredichos episcopales. Los mismos monjes de Hornija que, según señalamos, fueron tan duramente combatidos por el obispo Martín, habían pactado previamente con el obispo Guillermo sobre los diezmos de Villafranca del Duero: el prelado accedió a donarles su parte en los diezmos a cambio del compromiso de obediencia y del

60pago de procuraciones. Asimismo, vimos que en esta etapa las parroquias nuevas sólo se autorizaron bajo

61promesa de obediencia canónica.

Una vez cruzada la mencionada bisagra del siglo XIII, la concesión de diezmos es menos frecuente y posee

62casi siempre carácter temporal. Del mismo modo, las exenciones sólo perduraron en relación a los bienes anexos a las iglesias o al patrimonio liberado en la etapa

63previa. El derecho a la tercia y la obligación de respetar

48“Item moneant parrochianos in diebus dominicis et festivis ut dent decimas deo debitas (...) et ipsi clerici, in requirendis et exigendis decimis et iuribus ecclesiarum suarum, non sint negligentes aliquatenus vel remissi, alias pena debita puniantur.” TBZ 455.49Como en Pajares, ver supra nota 33. Esta forma de evasión era usual en parroquias cercanas a los límites diocesanos. Aún en 1286 la denunciaban los obispos de Zamora y Palencia: TBZ 466.50“Item, cum parrochiani frequenter et malitiose de una ecclesia ad aliam se transferant (...) clericus, ad cuius parrochiam se transtulerit parrochianus ex malicia vel alterius clerici odio manifesta, teneatur per iuramentum et fidelitatem petere decimas et cetera iura. (...) Si vero clericus, ad cuius parrochiam taliter se transtulerit, decimas exigere a talibus neglexerit, de propio reddere compellantur, iuxta extimationem archipresbyteri vel trium clericorum a partibus electorum.” TBZ 455.51En la concordia con la Orden del Temple se explicita: “Item, si clerici a magistro et fratribus presentati ad eorum ecclesias quas habent in diocesi zamorensi recognoverint in presencia episcopi vel archidiaconi zamorensis se contentos esse provisione quas magister et fratres eis duxerint assignandam, idem episcopus vel archidiaconus, super maiori provisione eisdem clericis assignandam, dictos magistrum et fratres non compellat vel molestet.” TBZ 403.52Ibid.

53En el caso de las iglesias del valle de Guareña el obispo y la Orden del Hospital acordaron que se eligirían tres vasallos de la Orden, residentes en la aldea conocidos y solventes, entre los cuales el obispo nombraría uno para realizar la tarea. El tercero podría ser relevado del cargo ante la simple queja de cualquiera de las partes: TBZ 406.54Ver supra, nota 46. En Villafranca de la Ribera el obispo designa un tercero propio: TBZ 438.55En 1255 el rey ampara a los terceros del concejo de Toro: TBZ 05.56Se ceden a Sahagún algunas tercias episcopales en 1209. TBZ 274.57Se exime algunas parroquias del Hospital en 1186. TBZ 406.58Se concede que un fraile de la orden de Santiago podrá celebrar misa en TBZ 411.59“Capellanus eligatur a fratre per eandem obedientiam quam supra diximus et episcopus solvat terciam partem soldade.” TBZ 406.60TBZ 438.61Ver secciones anteriores. También TBZ 411, 444 y 416.62TBZ 441 y 445.63TBZ 403, 412, 421, 442 y 443.

64Con expresiones como “...sicut alii parrochiales clerici zamorensis episcopatus faciunt...” TBZ 409.65Imposición de procuraciones en TBZ 436 y fuero en TBZ 442.66En 1237 el abad de Mataplana cede el derecho de patronato. TBZ 79 y 80 y ACZ 128.67En algunos casos aún se presenta la posibilidad de que los sacerdotes no sean seculares, pero la tendencia ya es firme: “Predicti magister et fratres deben presentare clericos perpetuos ydoneos, seculares vel religiosos sui ordinis ad ecclesias quas habent in diocesi zamorensi, exceptis ecclesiis de Villalvarva et Sancti Marie de Thauro et Sancti Michaelis de Zamora, ad quas presentare debent tantum clericos seculares.” TBZ 403.

las sentencias y entredichos episcopales se mencionaban 64

como derechos usuales, “costumbres” de toda la diócesis y es más usual encontrar disputas sobre la imposición de nuevos tributos, como las procuraciones,

65el fuero y el catedrático. La absorción de parroquias en esta etapa podía suponer, incluso, la donación del derecho

66de patronato. En cuanto al derecho de presentación e institución de sacerdotes, el obispo logró excluir definitivamente a los miembros de órdenes monásticas de

67la cura de almas, reafirmando su capacidad de recusar clérigos considerados no aptos.

Como cualquier ámbito de recolección de rentas, las parroquias fueron un espacio de confrontación. La constitución de las jerarquías eclesiásticas no fue un proceso exento de tensiones ya que implicó la redistribución de los excedentes agrarios, ahora orientados parcialmente hacia el polo episcopal. Este aspecto es determinante, creemos, tanto al estudiar la significación de las parroquias en el ámbito rural medieval, como al analizar la consolidación de la red territorial del obispo.

Artigo recebido em 01.3.2012Aprovado em 30.5.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (34-39) Disputas por la renta: la obtención de la tercia episcopal en el obispado de Zamora, siglos XI-XIII

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1O conflito social no Feudalismo

*Carlos Astarita

1Tradução de Eduardo Cardoso Daflon e revisão de Mário Jorge da Motta Bastos.*IdIHCS – Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales, Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. 2Para a Alta Idade Média, um resumo em ASTARITA, Carlos. Peasant-Based Societies. In Chris Wickham's Thought, Historical Materialism. Research in Critical Marxist Theory, v. 19.1, 2011, p. 190–216; Para o período baixo-medieval, idem. Del feudalismo al capitalismo. Cambio social y político en Castilla y Europa occidental. 1250-1520. Valencia: Universitat de València, 2005. A pesquisa em curso é sobre os movimentos burgueses do século XII, estudo centrado na documentação de Sahagún, ainda que se recorra a outros casos para estabelecer comparações. Este artigo também se apoia em ASTARITA, Carlos. Desarrollo desigual en los orígenes del capitalismo, Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1992.

objetivo deste artigo é apresentar um panorama das lutas sociais que se desenvolveram na Europa Ocidental no período Medieval. As bases da presente sistematização estão dadas por pesquisas já concluídas e outras em curso sobre os movimentos

2burgueses do século XII. Por razões óbvias de espaço, a documentação e bibliografia mencionada será uma reduzida amostra do fundamento das análises realizadas. No que diz respeito à forma de exposição, optou-se por enunciar pontos-chave que em seu conjunto tecem o que poderia ser uma gramática que, desde o ponto de vista do materialismo histórico, permite uma compreensão global do fenômeno, que é também uma apreensão de questões decisivas sobre a dinâmica do modo de produção.

Período InicialEntre os séculos V e finais do VII, durante o que

se denomina o começo da Idade Média, desenvolveu-se uma situação específica marcada pela queda do Estado burocrático baixo-imperial romano que havia se organizado desde Diocleciano e Constantino, e com essa queda debilitou-se o controle sobre as populações. Deixando de lado áreas de escassa romanização, como a Inglaterra, isto se deveu tanto a problemas de funcionamento do mecanismo de arrecadação, expresso na crise dos agentes de tributação, os curiales, que renunciavam de maneira crescente a cumprir as suas tarefas, bem como às convulsões que provocou a irrupção dos povos germânicos. Pode-se avançar como hipótese geral que a burocracia estatal que se organizou no século IV foi incompatível com o ager privatus dos curiales, proprietários médios encarregados da arrecadação fiscal. Quando os germanos conquistadores tentaram se apoiar no princípio estatal encontraram uma máquina burocrática em retrocesso. Esta debilidade não foi compensada por outro poder político, surgindo com isso

um vazio que determinou as características do período, que pode ser compreendido com base no conceito cunhado por Chris Wickham de sociedade de base camponesa: aristocracias locais que estabeleceram um controle mais ou menos frouxo sobre os assentamentos de

3produtores. O quadro geral característico desta situação era marcado por populações que não pagavam os impostos, escravos e servos fugitivos, sabotagens por parte dos que permaneciam sob o controle aristocrático, resistências a qualquer tipo de dependência, e a existência de comunidades livres que se defendiam dos ataques dessas aristocracias. Em suma, havia uma débil exploração do trabalho e uma classe de poder pobre, o que se constata no registro arqueológico pelo predomínio da construção em madeira e ausência de edifícios monumentais.

A Luta Social na Expansão do FeudalismoApenas com o tempo, e de maneira gradual, em

princípios do século IX, ou quando muito cerca de 750 em alguma região precoce como a área de Paris, o modo de produção feudal assumiu a dominância ou, dito em outras palavras impôs-se a extração sistemática de excedente campesino por parte dos senhores. Iniciava-se, então, a expansão do feudalismo, que conheceria por sua vez dois subperíodos: (a) entre o século IX e XI estamos diante do que hoje se denomina o primeiro despertar da economia europeia; (b) entre os séculos XI e XIII ocorreu a fase mais ativa de sua expansão, caracterizada pela reprodução espacial do sistema sobre antigas fronteiras (marcha para o Leste eslavo, ocupação da Irlanda e da zona Báltica, Reconquista espanhola etc.). No que diz respeito ao tema deste artigo, produziu-se uma forte retração da luta de classes, ou, para expressá-lo mais precisamente, as lutas dos camponeses, que constituíam a maioria da população, não tiveram, salvo casos isolados, manifestações políticas deflagradas. A situação levou autores como Rodney Hilton a proclamar a existência de

4uma consciência de classe negativa.

Este declínio da luta social coincidiu com a imposição do senhorio e com uma intensa exploração do campesinato. A materialização dessa mais-valia primitiva em castelos e igrejas mostra as características do ciclo, tanto como o mostram os pequenos produtores

O

3WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean, 400-800. Oxford: Oxford University Press, 2005.4HILTON, Rodney. Siervos liberados. Los movimientos campesinos medievales y el levantamiento inglés de 1381. Madrid: Alianza, 1978; HILTON, Rodney. Conflicto de clases y crisis del feudalismo. Barcelona: Crítica, 1988.

que se instalaram nas fronteiras e que caiam progressivamente na dependência senhorial. A aristocracia laica e eclesiástica acompanhou este movimento de expansão para instalar novos domínios. Em certos lugares e momentos, estabeleceu-se com anterioridade, permitindo que primeiro fosse gerado um campesinato livre, como ocorreu na Estremadura Histórica castelhano-leonesa nos séculos X e XI, campesinato que cairia posteriormente na sujeição dos reis ou de senhores particulares. Em outros casos, os senhores mobilizaram seus dependentes para fundar novas unidades produtivas, o que ocorreu com frequência na expansão em direção à fronteira oriental.

Observe-se que este deslocamento de trabalhadores para as fronteiras, onde se tornavam proprietários pelo desbravamento e cultivo de das terras (ato denominado presura ou aprisio), pode ser interpretado como uma expressão das tensões sociais, como uma resposta espontânea do campesinato das zonas feudalizadas que fugia para as zonas livres do poder senhorial.

As Revoluções BurguesasAs revoltas mais notáveis ocorridas no período

de crescimento do feudalismo foram movimentos urbanos que se desenvolveram na segunda metade do século XI e nas primeiras décadas do século XII, movimentos que em certos casos continuaram em períodos posteriores. Precisamente por sua notável transcendência, cativaram a atenção dos historiadores clássicos que, influenciados pela concepção “smithiana” do mercado, consideraram que com estas lutas

5inaugurava-se a biografia moderna do capitalismo.

Em estudos posteriores, em que foram decisivos os conceitos de Marx, a questão foi reavaliada, concluindo-se que o capital comercial da Idade Média não buscou a destruição do sistema dominante, mas tratou apenas de participar de uma parte da renda feudal

6operando a partir do intercâmbio de não-equivalentes. A situação objetiva do mercador, unindo polos de produção e de consumo, determinou a sua consciência social, dada por seu interesse em manter as condições pré-capitalistas em que se fundamentava o seu lucro, condições que estavam dadas pelo papel dos bens de prestígio no consumo senhorial, pelo regime corporativista da produção artesanal nos grêmios, pelo fracionamento da soberania política e pelo monopólio comercial. Assim, os historiadores concluíram que os burgueses que se rebelaram no ano de 1100 não alteraram o modo de produção, mas inscreviam-se nos parâmetros de reprodução do sistema feudal dominante. A mudança de perspectiva redundou no abandono deste tema clássico de estudo, o das revoluções no mundo feudal, desinteresse, contudo, injustificável.

Antes de mais, é preciso esclarecer que o termo “burguês” não denominava neste período apenas o mercador. Num primeiro momento o termo designou o

5Por exemplo, ROMERO, José Luis. La revolución burguesa en el mundo feudal. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1967.6Foi fundamental nessa interpretação DOBB, Maurice. Estudios sobre el desarrollo del capitalismo. Buenos Aires: Siglo XXI, 1971.

habitante do burgo, ou seja, dos núcleos de povoadores que surgiam junto a um mosteiro ou a uma torre senhorial, e com o tempo passou a designar a parcela social e economicamente mais elevada destes aglomerados. O burguês do século XII era, por conseguinte, um setor heterogêneo, constituído por artesãos prósperos, camponeses ricos que haviam se mudado para um recinto amuralhado, ou comerciantes, que muitas vezes mantinham sua propriedade rústica original ou investiam seus lucros na compra de terras ou vinhedos no entorno urbano. Em alguns casos, este setor desenvolveu-se em cidades mais ou menos consolidadas, originando-se destes habitantes enriquecidos o patriciado da baixa Idade Média; em outros casos, o segmento enriquecido da comunidade permaneceu nos aglomerados rurais, nos quais preservou seu caráter agrário, o que corresponderia à consolidação de camponeses ricos (setor que na Inglaterra seria composto pelos yeomen, que tiveram um importante papel na transição ao capitalismo). Assim, o burguês apareceria antes como estamento do que como classe, adaptando as suas demandas a este perfil.

De fato, procurou organizar-se em concelhos urbanos ou rurais, de acordo com as denominações correntes na Espanha, ou em comunas ou comunidades, segundo a terminologia adotada na Itália, com o intuito de consolidar a sua posição (por exemplo, fiscalizando o “mercado de trabalho”, o que lhes permitia contratar vantajosamente os seus trabalhadores assalariados). Este objetivo foi atingido em muitos lugares sem demasiados transtornos, inclusive encorajados pelo poder senhorial, que se apoiou nestas oligarquias urbanas para consolidar o seu domínio político na região. Esse foi o caso da Estremadura Histórica castelhano-leonesa, região na qual o monarca aliou-se aos cavaleiros vilãos, que constituíam a oligarquia concelhia, para organizar o seu sistema de governo, baseado num intercâmbio de dons: o rei garantiu a isenção de tributos aos cavaleiros vilãos que, por seu turno, constituíram o domínio régio na área em questão. Porém, em outras regiões os senhores opuseram-se à organização institucional dos burgueses, e com essa oposição surgiram as lutas.

Na realidade, foram os senhores eclesiásticos das cidades, geralmente os bispos, os que ofereceram a mais obstinada resistência à organização burguesa. Esta conduta pode ser explicada no contexto da chamada reforma gregoriana, isto é, do movimento da Igreja pelo qual o papado buscou afirmar a sua primazia sobre qualquer poder concorrente. Tal trajetória ascendente da Igreja ocorreu em um contexto marcado pelo combate aos hereges e às minorias religiosas (judeus e muçulmanos), atividade na qual os bispos desempenhariam um papel de destaque. Com a pretensão de controlar todas as engrenagens urbanas, ou seja, do local onde proliferavam os seus inimigos ideológicos, não acataram a demanda dos burgueses que consistia, essencialmente, em uma relativa delegação de poder. Com esta objeção, a luta teve início em várias cidades episcopais, inclusive em Roma, e teve episódios de muita violência. Concentremos nossa atenção nos conflitos que envolveram os burgueses de Sahagún, centro submetido ao domínio do mosteiro de mesmo nome, situado na região “leonesa” espanhola,

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (40-44) O conflito social no Feudalismo

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1O conflito social no Feudalismo

*Carlos Astarita

1Tradução de Eduardo Cardoso Daflon e revisão de Mário Jorge da Motta Bastos.*IdIHCS – Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales, Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. 2Para a Alta Idade Média, um resumo em ASTARITA, Carlos. Peasant-Based Societies. In Chris Wickham's Thought, Historical Materialism. Research in Critical Marxist Theory, v. 19.1, 2011, p. 190–216; Para o período baixo-medieval, idem. Del feudalismo al capitalismo. Cambio social y político en Castilla y Europa occidental. 1250-1520. Valencia: Universitat de València, 2005. A pesquisa em curso é sobre os movimentos burgueses do século XII, estudo centrado na documentação de Sahagún, ainda que se recorra a outros casos para estabelecer comparações. Este artigo também se apoia em ASTARITA, Carlos. Desarrollo desigual en los orígenes del capitalismo, Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1992.

objetivo deste artigo é apresentar um panorama das lutas sociais que se desenvolveram na Europa Ocidental no período Medieval. As bases da presente sistematização estão dadas por pesquisas já concluídas e outras em curso sobre os movimentos

2burgueses do século XII. Por razões óbvias de espaço, a documentação e bibliografia mencionada será uma reduzida amostra do fundamento das análises realizadas. No que diz respeito à forma de exposição, optou-se por enunciar pontos-chave que em seu conjunto tecem o que poderia ser uma gramática que, desde o ponto de vista do materialismo histórico, permite uma compreensão global do fenômeno, que é também uma apreensão de questões decisivas sobre a dinâmica do modo de produção.

Período InicialEntre os séculos V e finais do VII, durante o que

se denomina o começo da Idade Média, desenvolveu-se uma situação específica marcada pela queda do Estado burocrático baixo-imperial romano que havia se organizado desde Diocleciano e Constantino, e com essa queda debilitou-se o controle sobre as populações. Deixando de lado áreas de escassa romanização, como a Inglaterra, isto se deveu tanto a problemas de funcionamento do mecanismo de arrecadação, expresso na crise dos agentes de tributação, os curiales, que renunciavam de maneira crescente a cumprir as suas tarefas, bem como às convulsões que provocou a irrupção dos povos germânicos. Pode-se avançar como hipótese geral que a burocracia estatal que se organizou no século IV foi incompatível com o ager privatus dos curiales, proprietários médios encarregados da arrecadação fiscal. Quando os germanos conquistadores tentaram se apoiar no princípio estatal encontraram uma máquina burocrática em retrocesso. Esta debilidade não foi compensada por outro poder político, surgindo com isso

um vazio que determinou as características do período, que pode ser compreendido com base no conceito cunhado por Chris Wickham de sociedade de base camponesa: aristocracias locais que estabeleceram um controle mais ou menos frouxo sobre os assentamentos de

3produtores. O quadro geral característico desta situação era marcado por populações que não pagavam os impostos, escravos e servos fugitivos, sabotagens por parte dos que permaneciam sob o controle aristocrático, resistências a qualquer tipo de dependência, e a existência de comunidades livres que se defendiam dos ataques dessas aristocracias. Em suma, havia uma débil exploração do trabalho e uma classe de poder pobre, o que se constata no registro arqueológico pelo predomínio da construção em madeira e ausência de edifícios monumentais.

A Luta Social na Expansão do FeudalismoApenas com o tempo, e de maneira gradual, em

princípios do século IX, ou quando muito cerca de 750 em alguma região precoce como a área de Paris, o modo de produção feudal assumiu a dominância ou, dito em outras palavras impôs-se a extração sistemática de excedente campesino por parte dos senhores. Iniciava-se, então, a expansão do feudalismo, que conheceria por sua vez dois subperíodos: (a) entre o século IX e XI estamos diante do que hoje se denomina o primeiro despertar da economia europeia; (b) entre os séculos XI e XIII ocorreu a fase mais ativa de sua expansão, caracterizada pela reprodução espacial do sistema sobre antigas fronteiras (marcha para o Leste eslavo, ocupação da Irlanda e da zona Báltica, Reconquista espanhola etc.). No que diz respeito ao tema deste artigo, produziu-se uma forte retração da luta de classes, ou, para expressá-lo mais precisamente, as lutas dos camponeses, que constituíam a maioria da população, não tiveram, salvo casos isolados, manifestações políticas deflagradas. A situação levou autores como Rodney Hilton a proclamar a existência de

4uma consciência de classe negativa.

Este declínio da luta social coincidiu com a imposição do senhorio e com uma intensa exploração do campesinato. A materialização dessa mais-valia primitiva em castelos e igrejas mostra as características do ciclo, tanto como o mostram os pequenos produtores

O

3WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean, 400-800. Oxford: Oxford University Press, 2005.4HILTON, Rodney. Siervos liberados. Los movimientos campesinos medievales y el levantamiento inglés de 1381. Madrid: Alianza, 1978; HILTON, Rodney. Conflicto de clases y crisis del feudalismo. Barcelona: Crítica, 1988.

que se instalaram nas fronteiras e que caiam progressivamente na dependência senhorial. A aristocracia laica e eclesiástica acompanhou este movimento de expansão para instalar novos domínios. Em certos lugares e momentos, estabeleceu-se com anterioridade, permitindo que primeiro fosse gerado um campesinato livre, como ocorreu na Estremadura Histórica castelhano-leonesa nos séculos X e XI, campesinato que cairia posteriormente na sujeição dos reis ou de senhores particulares. Em outros casos, os senhores mobilizaram seus dependentes para fundar novas unidades produtivas, o que ocorreu com frequência na expansão em direção à fronteira oriental.

Observe-se que este deslocamento de trabalhadores para as fronteiras, onde se tornavam proprietários pelo desbravamento e cultivo de das terras (ato denominado presura ou aprisio), pode ser interpretado como uma expressão das tensões sociais, como uma resposta espontânea do campesinato das zonas feudalizadas que fugia para as zonas livres do poder senhorial.

As Revoluções BurguesasAs revoltas mais notáveis ocorridas no período

de crescimento do feudalismo foram movimentos urbanos que se desenvolveram na segunda metade do século XI e nas primeiras décadas do século XII, movimentos que em certos casos continuaram em períodos posteriores. Precisamente por sua notável transcendência, cativaram a atenção dos historiadores clássicos que, influenciados pela concepção “smithiana” do mercado, consideraram que com estas lutas

5inaugurava-se a biografia moderna do capitalismo.

Em estudos posteriores, em que foram decisivos os conceitos de Marx, a questão foi reavaliada, concluindo-se que o capital comercial da Idade Média não buscou a destruição do sistema dominante, mas tratou apenas de participar de uma parte da renda feudal

6operando a partir do intercâmbio de não-equivalentes. A situação objetiva do mercador, unindo polos de produção e de consumo, determinou a sua consciência social, dada por seu interesse em manter as condições pré-capitalistas em que se fundamentava o seu lucro, condições que estavam dadas pelo papel dos bens de prestígio no consumo senhorial, pelo regime corporativista da produção artesanal nos grêmios, pelo fracionamento da soberania política e pelo monopólio comercial. Assim, os historiadores concluíram que os burgueses que se rebelaram no ano de 1100 não alteraram o modo de produção, mas inscreviam-se nos parâmetros de reprodução do sistema feudal dominante. A mudança de perspectiva redundou no abandono deste tema clássico de estudo, o das revoluções no mundo feudal, desinteresse, contudo, injustificável.

Antes de mais, é preciso esclarecer que o termo “burguês” não denominava neste período apenas o mercador. Num primeiro momento o termo designou o

5Por exemplo, ROMERO, José Luis. La revolución burguesa en el mundo feudal. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1967.6Foi fundamental nessa interpretação DOBB, Maurice. Estudios sobre el desarrollo del capitalismo. Buenos Aires: Siglo XXI, 1971.

habitante do burgo, ou seja, dos núcleos de povoadores que surgiam junto a um mosteiro ou a uma torre senhorial, e com o tempo passou a designar a parcela social e economicamente mais elevada destes aglomerados. O burguês do século XII era, por conseguinte, um setor heterogêneo, constituído por artesãos prósperos, camponeses ricos que haviam se mudado para um recinto amuralhado, ou comerciantes, que muitas vezes mantinham sua propriedade rústica original ou investiam seus lucros na compra de terras ou vinhedos no entorno urbano. Em alguns casos, este setor desenvolveu-se em cidades mais ou menos consolidadas, originando-se destes habitantes enriquecidos o patriciado da baixa Idade Média; em outros casos, o segmento enriquecido da comunidade permaneceu nos aglomerados rurais, nos quais preservou seu caráter agrário, o que corresponderia à consolidação de camponeses ricos (setor que na Inglaterra seria composto pelos yeomen, que tiveram um importante papel na transição ao capitalismo). Assim, o burguês apareceria antes como estamento do que como classe, adaptando as suas demandas a este perfil.

De fato, procurou organizar-se em concelhos urbanos ou rurais, de acordo com as denominações correntes na Espanha, ou em comunas ou comunidades, segundo a terminologia adotada na Itália, com o intuito de consolidar a sua posição (por exemplo, fiscalizando o “mercado de trabalho”, o que lhes permitia contratar vantajosamente os seus trabalhadores assalariados). Este objetivo foi atingido em muitos lugares sem demasiados transtornos, inclusive encorajados pelo poder senhorial, que se apoiou nestas oligarquias urbanas para consolidar o seu domínio político na região. Esse foi o caso da Estremadura Histórica castelhano-leonesa, região na qual o monarca aliou-se aos cavaleiros vilãos, que constituíam a oligarquia concelhia, para organizar o seu sistema de governo, baseado num intercâmbio de dons: o rei garantiu a isenção de tributos aos cavaleiros vilãos que, por seu turno, constituíram o domínio régio na área em questão. Porém, em outras regiões os senhores opuseram-se à organização institucional dos burgueses, e com essa oposição surgiram as lutas.

Na realidade, foram os senhores eclesiásticos das cidades, geralmente os bispos, os que ofereceram a mais obstinada resistência à organização burguesa. Esta conduta pode ser explicada no contexto da chamada reforma gregoriana, isto é, do movimento da Igreja pelo qual o papado buscou afirmar a sua primazia sobre qualquer poder concorrente. Tal trajetória ascendente da Igreja ocorreu em um contexto marcado pelo combate aos hereges e às minorias religiosas (judeus e muçulmanos), atividade na qual os bispos desempenhariam um papel de destaque. Com a pretensão de controlar todas as engrenagens urbanas, ou seja, do local onde proliferavam os seus inimigos ideológicos, não acataram a demanda dos burgueses que consistia, essencialmente, em uma relativa delegação de poder. Com esta objeção, a luta teve início em várias cidades episcopais, inclusive em Roma, e teve episódios de muita violência. Concentremos nossa atenção nos conflitos que envolveram os burgueses de Sahagún, centro submetido ao domínio do mosteiro de mesmo nome, situado na região “leonesa” espanhola,

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (40-44) O conflito social no Feudalismo

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7para examinar as características do movimento.Começou com uma reivindicação muito modesta

dos seus habitantes, que requisitaram o direito de usar o forno individual, rechaçando o que impunha o mosteiro. Desta reclamação menor os burgueses passaram a exigir o governo concelhio, e de fato, na primeira grande insurreição, entre 1110 e 1116, conseguiram expulsar o abade, senhor da vila, organizaram-se em concelho, e redigiram seu próprio foral. Isso levou a reação do poder (o abade foi ajudado pela monarquia), e a primeira medida tomada logo que a revolta foi vencida consistiu na supressão da organização comunitária e na anulação do foral. Em meio à derrota manifestou-se uma circunstância interessante para a caracterização do movimento: a rainha expulsou os personagens mais radicais, identificados como segmentos plebeus, e requisitou a permanência dos mais ricos, já que precisava do apoio destes para viver em harmonia. Era esse também o projeto do abade. A aceitação da elite por parte dos senhores nos mostra que não se tratou de um movimento contra o sistema, o que se confirma pela demanda dos burgueses, que não desejavam livrar-se do regime feudal, mas passar do senhorio eclesiástico para o do rei, com a convicção de que sob esse último podiam obter o reconhecimento legal (foral) da comunidade.

Por conseguinte, o patriciado, desde seus primórdios, buscava não uma autonomia total, que somente alcançaria em poderosas cidades mercantis como as que existiram na Itália (nas quais dominou o contado, o campo circundante), mas sim a condição de elite local articulada aos poderes feudais. Em suma, os burgueses de uma pequena “cidade rural” como Sahagún pretendiam apenas equiparar-se a outras oligarquias urbanas que gozavam de um respeitável nível de independência sob a dominação feudal.

Avaliar esses movimentosA afirmação acima reafirma a crítica feita à

interpretação tradicional destes movimentos urbanos. Seus protagonistas não pretendiam mudar o modo de produção, e nos lugares em que triunfaram não fizeram mais que adaptar-se às normas do senhorio. No entanto, deve-se destacar que seus efeitos não foram neutros em termos da dinâmica social, e que inclusive produziram efeitos em nosso presente. Vejamos, então, certas características essenciais destas rebeliões.

A primeira delas manifesta-se no fato de que, ainda que a direção do movimento coubesse à elite da aldeia, um extenso número de artesãos pobres participou da revolta, aos quais as crônicas atribuem uma condição vil (menestréis, bandidos, curtidores, sapateiros, ferreiros, alfaiates e trabalhadores de curtumes), além de

7A informação básica em PUYOL Y ALONSO, Julio. Crónicas Anónimas de Sahagún. Boletín de la Real Academia de la Historia, n. 76, 1920, p. 7-26; 111-126; 242-257; 339-356; 395-419; 512-519; N° 77, p. 51-59; 161; PUYOL Y ALONSO, Julio. Segunda Crónica, p. 162-192. Por sua vez a documentação monástica está disponível na Colección Diplomática del Monasterio de Sahagún (MÍNGUEZ FERNÁNDEZ, José María, años de 1074-1109; HERRERO DE LA FUENTE, Marta, años 1000-1073; idem, 1074-1109; FERNÁNDEZ FLÓREZ, José Antonio, años de 1110-1199; Idem, años de 1200-1300). León: Centro de Estudios e Investigación San Isidoro, 1976.

8MIGNE, Jacques-Paul. Historia Compostellana. Patrologia Latina, v. 170, Paris: 1854, col. 889-1235.9"([Que] entrem [assumam a função] pela [por intermédio da] mão do abade e pela autoridade do concelho).

oficiais e aprendizes (“homens mancebos”), que exerciam seus ofícios em porões. A luta mobilizou, portanto, o povoado, ou pelo menos uma grande parte dele, o que também se observa em outros movimentos, como o que se deu em Santiago de Compostela contra o

8bispo, em 1116 e 1117. Durante os anos em que mantiveram afastado o abade, ou reduziram o seu poder, os burgueses de Sahagún não somente utilizaram a autonomia conquistada na luta para redigir suas normas, como também utilizaram livremente o monte para apropriar-se da madeira que necessitavam para seus ofícios, e nesta radicalização o grupo de artesãos pobres cumpriu o papel de protagonistas. Em suma, foram vivenciadas experiências de luta e de organização coletiva. Entretanto, deve-se destacar que os burgueses ricos nunca deixaram de comandar o movimento, e devido ao fato de que procuraram apenas assegurar sua posição sociopolítica, estes enfrentamentos não devem ser considerados como luta de classes, mas sim como lutas estamentais.

Uma segunda característica consistiu na continuidade dos conflitos ao longo do tempo. Ainda que as autoridades eclesiásticas de Sahagún tenham proibido inicialmente a organização concelhia, com o tempo não tiveram alternativa a não ser admiti-la, e em 1152 foi estabelecido um novo foral, que substituiu o antigo, do ano de 1085, e finalmente reconhecida a formação do concelho. Contudo, a iniciativa não suprimiu as lutas, já que o abade tratou de restringir a influência do concelho intervindo na nomeação de seus oficiais (proclamava-se, nessa norma de meados do século XII, que intrent per

9 manum abbatis et auctoritate concilii). A luta prosseguiu e voltou a ter picos de grande intensidade na Baixa Idade Média, uma persistência que demonstra a seriedade da demanda.

Uma terceira característica é que os combates pelas autonomias urbanas contra as autoridades eclesiásticas ensejaram um amplo repertório de estratégias anticlericais que aproximaram estes movimentos das heresias ocorridas a partir do ano mil. Todas estas manifestações contra a Igreja estavam unidas em pontos fundamentais, já que da crítica ao poder absoluto do bispo ou do abade podia-se passar à crítica das riquezas da Igreja ou ao questionamento da autoridade dos sacramentos. Neste sentido, deve-se ter em mente que as heresias da segunda Idade Média se diferenciam das que ocorreram na Antiguidade tardia e no começo do Medievo. Estas últimas questionavam o dogma da natureza de Cristo; as outras, pelo contrário, não atacaram pontos dogmáticos, mas sim sociais ou as práticas eclesiásticas, e por essa via se fundiram com muitos movimentos burgueses. Podemos referir aqui à figura de Arnaldo de Brescia, que foi um intelectual e um agitador social vinculado a posições heréticas, quer dizer, um veemente crítico das riquezas da Igreja, e que participou do movimento comunal em sua cidade natal,

sendo por fim executado por participar de uma revolução 10

burguesa que havia começado em Roma, em 1143.Uma quarta característica, problemática,

vincula-se à caracterização deste anticlericalismo. Para os historiadores tradicionais, no enfrentamento com a Igreja forjava-se o gérmen que levaria à Ilustração e à crítica racionalista da religião. Contudo, tal ponto de vista deve ser superado, já que a esta altura tinha início a religiosidade moderna e não o caminho para o ateísmo (os primeiros ateus surgiriam no século XVI e foram intelectuais excepcionais). Este é um ponto de extraordinária importância, ao qual Marx já havia se referido tomando Lutero como referência: o homem deixava de depender do padre para passar a depender de

11sua alma padresca. Com esta expressão Marx se referia ao processo de interiorização religiosa que, na verdade, havia se iniciado nas cidades medievais e no meio social dos artesãos. Lutero não fez mais do que refletir, teológica e organizativamente, com uma nova Igreja, este processo social. Justamente pelo fato de que Deus fora interiorizado, quer dizer, pelo fato de que vivia no homem, o que representa uma valorização do Novo Testamento, os artesãos insurretos podiam prescindir, sem maiores transtornos, da intermediação sacerdotal. As causas e circunstâncias que levaram a este processo são muito complexas para serem abordadas nos limites deste artigo, mas é importante destacar que, com esta subjetivação de Deus, impunha-se o problema da alienação religiosa.

O último aspecto a destacar é a incidência destes movimentos no sistema político moderno. Isto quer dizer que, ainda que não tenham promovido mudança no modo de produção, tiveram uma estreita relação com o surgimento do que, na linguagem de Gramsci, denomina-se sociedade civil, incidindo também na prática revolucionária da burguesia. Sem esta longa experiência de lutas, que tiveram início entre meados do século XI e princípios do XII, prolongando-se pela Baixa Idade Média – quando novos setores enriquecidos disputavam o poder com o antigo patriciado, ou ainda quando os acumuladores capitalistas propugnaram transformações econômicas profundas –, o ciclo das revoluções burguesas seria incompreensível.

Os CamponesesDestacamos, anteriormente, que as lutas

camponesas perderam sua expressão política aberta entre o século IX e a baixa Idade Média. Só com a chamada crise do século XIV teriam lugar expressões significativas das lutas de classe, dentre as quais uma das mais importantes foi a revolução inglesa de 1381. Porém, como demonstraram Rodney Hilton e outros, esta luta já não foi conduzida pelo campesinato típico da Idade Média, mas sim pelos yeomen, isto é, por proprietários capitalistas que enfrentaram abertamente o regime senhorial, o que se deveu a uma dinâmica estrutural.

10Pode-se consultar FRUGONI, Arsenio. Arnaldo da Brescia nelle fonti del secolo XII. Roma: Einaudi, 1954.11MARX, K. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke, 1. Berlin-RDA, 1976, p. 378-391.

Nos séculos XIV e XV surgiu, um pouco por todos os lados da Europa, um novo sistema econômico, a indústria rural a domicílio capitalista, que entrou em contradição com o sistema dominante. Os empresários deste novo regime de produção, nascido nas aldeias, e que, portanto, eram alheios ao controle dos grêmios das grandes cidades têxteis, entraram em choque com os interesses econômicos dos senhores. Um dos níveis da oposição consistia no imposto cobrado à circulação mercantil, já que os feudais autorizavam a instalação de teares em seus domínios, que eram operados pelos camponeses pobres, tendo em vista que a venda de produtos permitia-lhes arrecadar impostos sobre a circulação. De fato, o imposto sobre as vendas do produto têxtil ampliou-se nas regiões espanholas onde havia se instalado esta protoindústria. Mas, justamente por isso, esse tributo interferiu no desenvolvimento da indústria rural a domicílio e os empresários buscaram livrar-se de todas as restrições que dificultavam a ampliação do mercado, entrando em aberto conflito com o regime imperante. Foi o que ocorreu, em 1381, na Inglaterra, e em Castela na revolução das comunidades, em 1520-1521. Nesses episódios, os camponeses pobres e remediados enfrentaram abertamente o regime feudal.

No entanto, é preciso destacar que esta luta de classes não surgiu ex nihilo nos últimos séculos medievais. Ainda que na fase de expansão do feudalismo tenha sido incomum a ocorrência de revoltas camponesas de cunho regional, ocorreram diversos conflitos cotidianos protagonizados por indivíduos isolados, por grupos ou por aldeias. Uma documentação como a do arquivo de Sahagún fornece-nos um amplo repertório de combates cotidianos que se prolongaram por toda a baixa Idade Média, como se pode observar em muitos outros documentos. Os camponeses enfrentavam o senhor que chegava às suas casas exigindo o direito de refeição, faziam a colheita do dízimo à noite e as escondidas para pagarem menos, deslocavam-se de sua jurisdição quando chegava o arrecadador, rompiam as barragens dos rios, onde se situavam os moinhos dos senhores, para poderem pescar, incendiavam os campos senhoriais, viviam em concubinato para não formalizarem uma família e evitar, assim, a carga tributária, atrasavam-se nas convocações das corveias e caminhavam lentamente para o trabalho, ao qual dispensavam toda a sua má vontade. Poderíamos seguir enunciando diversas formas de luta que desmentem as teses de Hilton sobre a consciência de classe negativa do campesinato. Apenas os camponeses ricos, que costumavam controlar a representação da aldeia e eram agentes do senhor, manifestaram uma consciência pró-senhorial, exceto quando, na condição de empresários capitalistas, partiram para o enfrentamento para defender seus interesses.

Por fim, ressalte-se que em circunstâncias excepcionais desencadearam-se revoltas camponesas de caráter regional. Foi o que ocorreu à sombra do movimento burguês de Sahagún em princípios do século XII. Entre os anos de 1110 e 1116, os camponeses leoneses percorreram um extenso território, assaltando as casas senhoriais, negaram-se à prestação de serviços e promoveram uma greve geral de rendas. Esta revolta

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (40-44) O conflito social no Feudalismo

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7para examinar as características do movimento.Começou com uma reivindicação muito modesta

dos seus habitantes, que requisitaram o direito de usar o forno individual, rechaçando o que impunha o mosteiro. Desta reclamação menor os burgueses passaram a exigir o governo concelhio, e de fato, na primeira grande insurreição, entre 1110 e 1116, conseguiram expulsar o abade, senhor da vila, organizaram-se em concelho, e redigiram seu próprio foral. Isso levou a reação do poder (o abade foi ajudado pela monarquia), e a primeira medida tomada logo que a revolta foi vencida consistiu na supressão da organização comunitária e na anulação do foral. Em meio à derrota manifestou-se uma circunstância interessante para a caracterização do movimento: a rainha expulsou os personagens mais radicais, identificados como segmentos plebeus, e requisitou a permanência dos mais ricos, já que precisava do apoio destes para viver em harmonia. Era esse também o projeto do abade. A aceitação da elite por parte dos senhores nos mostra que não se tratou de um movimento contra o sistema, o que se confirma pela demanda dos burgueses, que não desejavam livrar-se do regime feudal, mas passar do senhorio eclesiástico para o do rei, com a convicção de que sob esse último podiam obter o reconhecimento legal (foral) da comunidade.

Por conseguinte, o patriciado, desde seus primórdios, buscava não uma autonomia total, que somente alcançaria em poderosas cidades mercantis como as que existiram na Itália (nas quais dominou o contado, o campo circundante), mas sim a condição de elite local articulada aos poderes feudais. Em suma, os burgueses de uma pequena “cidade rural” como Sahagún pretendiam apenas equiparar-se a outras oligarquias urbanas que gozavam de um respeitável nível de independência sob a dominação feudal.

Avaliar esses movimentosA afirmação acima reafirma a crítica feita à

interpretação tradicional destes movimentos urbanos. Seus protagonistas não pretendiam mudar o modo de produção, e nos lugares em que triunfaram não fizeram mais que adaptar-se às normas do senhorio. No entanto, deve-se destacar que seus efeitos não foram neutros em termos da dinâmica social, e que inclusive produziram efeitos em nosso presente. Vejamos, então, certas características essenciais destas rebeliões.

A primeira delas manifesta-se no fato de que, ainda que a direção do movimento coubesse à elite da aldeia, um extenso número de artesãos pobres participou da revolta, aos quais as crônicas atribuem uma condição vil (menestréis, bandidos, curtidores, sapateiros, ferreiros, alfaiates e trabalhadores de curtumes), além de

7A informação básica em PUYOL Y ALONSO, Julio. Crónicas Anónimas de Sahagún. Boletín de la Real Academia de la Historia, n. 76, 1920, p. 7-26; 111-126; 242-257; 339-356; 395-419; 512-519; N° 77, p. 51-59; 161; PUYOL Y ALONSO, Julio. Segunda Crónica, p. 162-192. Por sua vez a documentação monástica está disponível na Colección Diplomática del Monasterio de Sahagún (MÍNGUEZ FERNÁNDEZ, José María, años de 1074-1109; HERRERO DE LA FUENTE, Marta, años 1000-1073; idem, 1074-1109; FERNÁNDEZ FLÓREZ, José Antonio, años de 1110-1199; Idem, años de 1200-1300). León: Centro de Estudios e Investigación San Isidoro, 1976.

8MIGNE, Jacques-Paul. Historia Compostellana. Patrologia Latina, v. 170, Paris: 1854, col. 889-1235.9"([Que] entrem [assumam a função] pela [por intermédio da] mão do abade e pela autoridade do concelho).

oficiais e aprendizes (“homens mancebos”), que exerciam seus ofícios em porões. A luta mobilizou, portanto, o povoado, ou pelo menos uma grande parte dele, o que também se observa em outros movimentos, como o que se deu em Santiago de Compostela contra o

8bispo, em 1116 e 1117. Durante os anos em que mantiveram afastado o abade, ou reduziram o seu poder, os burgueses de Sahagún não somente utilizaram a autonomia conquistada na luta para redigir suas normas, como também utilizaram livremente o monte para apropriar-se da madeira que necessitavam para seus ofícios, e nesta radicalização o grupo de artesãos pobres cumpriu o papel de protagonistas. Em suma, foram vivenciadas experiências de luta e de organização coletiva. Entretanto, deve-se destacar que os burgueses ricos nunca deixaram de comandar o movimento, e devido ao fato de que procuraram apenas assegurar sua posição sociopolítica, estes enfrentamentos não devem ser considerados como luta de classes, mas sim como lutas estamentais.

Uma segunda característica consistiu na continuidade dos conflitos ao longo do tempo. Ainda que as autoridades eclesiásticas de Sahagún tenham proibido inicialmente a organização concelhia, com o tempo não tiveram alternativa a não ser admiti-la, e em 1152 foi estabelecido um novo foral, que substituiu o antigo, do ano de 1085, e finalmente reconhecida a formação do concelho. Contudo, a iniciativa não suprimiu as lutas, já que o abade tratou de restringir a influência do concelho intervindo na nomeação de seus oficiais (proclamava-se, nessa norma de meados do século XII, que intrent per

9 manum abbatis et auctoritate concilii). A luta prosseguiu e voltou a ter picos de grande intensidade na Baixa Idade Média, uma persistência que demonstra a seriedade da demanda.

Uma terceira característica é que os combates pelas autonomias urbanas contra as autoridades eclesiásticas ensejaram um amplo repertório de estratégias anticlericais que aproximaram estes movimentos das heresias ocorridas a partir do ano mil. Todas estas manifestações contra a Igreja estavam unidas em pontos fundamentais, já que da crítica ao poder absoluto do bispo ou do abade podia-se passar à crítica das riquezas da Igreja ou ao questionamento da autoridade dos sacramentos. Neste sentido, deve-se ter em mente que as heresias da segunda Idade Média se diferenciam das que ocorreram na Antiguidade tardia e no começo do Medievo. Estas últimas questionavam o dogma da natureza de Cristo; as outras, pelo contrário, não atacaram pontos dogmáticos, mas sim sociais ou as práticas eclesiásticas, e por essa via se fundiram com muitos movimentos burgueses. Podemos referir aqui à figura de Arnaldo de Brescia, que foi um intelectual e um agitador social vinculado a posições heréticas, quer dizer, um veemente crítico das riquezas da Igreja, e que participou do movimento comunal em sua cidade natal,

sendo por fim executado por participar de uma revolução 10

burguesa que havia começado em Roma, em 1143.Uma quarta característica, problemática,

vincula-se à caracterização deste anticlericalismo. Para os historiadores tradicionais, no enfrentamento com a Igreja forjava-se o gérmen que levaria à Ilustração e à crítica racionalista da religião. Contudo, tal ponto de vista deve ser superado, já que a esta altura tinha início a religiosidade moderna e não o caminho para o ateísmo (os primeiros ateus surgiriam no século XVI e foram intelectuais excepcionais). Este é um ponto de extraordinária importância, ao qual Marx já havia se referido tomando Lutero como referência: o homem deixava de depender do padre para passar a depender de

11sua alma padresca. Com esta expressão Marx se referia ao processo de interiorização religiosa que, na verdade, havia se iniciado nas cidades medievais e no meio social dos artesãos. Lutero não fez mais do que refletir, teológica e organizativamente, com uma nova Igreja, este processo social. Justamente pelo fato de que Deus fora interiorizado, quer dizer, pelo fato de que vivia no homem, o que representa uma valorização do Novo Testamento, os artesãos insurretos podiam prescindir, sem maiores transtornos, da intermediação sacerdotal. As causas e circunstâncias que levaram a este processo são muito complexas para serem abordadas nos limites deste artigo, mas é importante destacar que, com esta subjetivação de Deus, impunha-se o problema da alienação religiosa.

O último aspecto a destacar é a incidência destes movimentos no sistema político moderno. Isto quer dizer que, ainda que não tenham promovido mudança no modo de produção, tiveram uma estreita relação com o surgimento do que, na linguagem de Gramsci, denomina-se sociedade civil, incidindo também na prática revolucionária da burguesia. Sem esta longa experiência de lutas, que tiveram início entre meados do século XI e princípios do XII, prolongando-se pela Baixa Idade Média – quando novos setores enriquecidos disputavam o poder com o antigo patriciado, ou ainda quando os acumuladores capitalistas propugnaram transformações econômicas profundas –, o ciclo das revoluções burguesas seria incompreensível.

Os CamponesesDestacamos, anteriormente, que as lutas

camponesas perderam sua expressão política aberta entre o século IX e a baixa Idade Média. Só com a chamada crise do século XIV teriam lugar expressões significativas das lutas de classe, dentre as quais uma das mais importantes foi a revolução inglesa de 1381. Porém, como demonstraram Rodney Hilton e outros, esta luta já não foi conduzida pelo campesinato típico da Idade Média, mas sim pelos yeomen, isto é, por proprietários capitalistas que enfrentaram abertamente o regime senhorial, o que se deveu a uma dinâmica estrutural.

10Pode-se consultar FRUGONI, Arsenio. Arnaldo da Brescia nelle fonti del secolo XII. Roma: Einaudi, 1954.11MARX, K. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke, 1. Berlin-RDA, 1976, p. 378-391.

Nos séculos XIV e XV surgiu, um pouco por todos os lados da Europa, um novo sistema econômico, a indústria rural a domicílio capitalista, que entrou em contradição com o sistema dominante. Os empresários deste novo regime de produção, nascido nas aldeias, e que, portanto, eram alheios ao controle dos grêmios das grandes cidades têxteis, entraram em choque com os interesses econômicos dos senhores. Um dos níveis da oposição consistia no imposto cobrado à circulação mercantil, já que os feudais autorizavam a instalação de teares em seus domínios, que eram operados pelos camponeses pobres, tendo em vista que a venda de produtos permitia-lhes arrecadar impostos sobre a circulação. De fato, o imposto sobre as vendas do produto têxtil ampliou-se nas regiões espanholas onde havia se instalado esta protoindústria. Mas, justamente por isso, esse tributo interferiu no desenvolvimento da indústria rural a domicílio e os empresários buscaram livrar-se de todas as restrições que dificultavam a ampliação do mercado, entrando em aberto conflito com o regime imperante. Foi o que ocorreu, em 1381, na Inglaterra, e em Castela na revolução das comunidades, em 1520-1521. Nesses episódios, os camponeses pobres e remediados enfrentaram abertamente o regime feudal.

No entanto, é preciso destacar que esta luta de classes não surgiu ex nihilo nos últimos séculos medievais. Ainda que na fase de expansão do feudalismo tenha sido incomum a ocorrência de revoltas camponesas de cunho regional, ocorreram diversos conflitos cotidianos protagonizados por indivíduos isolados, por grupos ou por aldeias. Uma documentação como a do arquivo de Sahagún fornece-nos um amplo repertório de combates cotidianos que se prolongaram por toda a baixa Idade Média, como se pode observar em muitos outros documentos. Os camponeses enfrentavam o senhor que chegava às suas casas exigindo o direito de refeição, faziam a colheita do dízimo à noite e as escondidas para pagarem menos, deslocavam-se de sua jurisdição quando chegava o arrecadador, rompiam as barragens dos rios, onde se situavam os moinhos dos senhores, para poderem pescar, incendiavam os campos senhoriais, viviam em concubinato para não formalizarem uma família e evitar, assim, a carga tributária, atrasavam-se nas convocações das corveias e caminhavam lentamente para o trabalho, ao qual dispensavam toda a sua má vontade. Poderíamos seguir enunciando diversas formas de luta que desmentem as teses de Hilton sobre a consciência de classe negativa do campesinato. Apenas os camponeses ricos, que costumavam controlar a representação da aldeia e eram agentes do senhor, manifestaram uma consciência pró-senhorial, exceto quando, na condição de empresários capitalistas, partiram para o enfrentamento para defender seus interesses.

Por fim, ressalte-se que em circunstâncias excepcionais desencadearam-se revoltas camponesas de caráter regional. Foi o que ocorreu à sombra do movimento burguês de Sahagún em princípios do século XII. Entre os anos de 1110 e 1116, os camponeses leoneses percorreram um extenso território, assaltando as casas senhoriais, negaram-se à prestação de serviços e promoveram uma greve geral de rendas. Esta revolta

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (40-44) O conflito social no Feudalismo

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assumiu, ainda, uma conotação particular – a ocorrência de um surto antissemita –, questão que requer um tratamento específico.

ConclusõesSistematizando esta abordagem, concluímos

com o quadro seguinte:Entre os séculos V e VIII, houve um movimento

social multifacetado que marcou a crise do antigo sistema e a primeira transição. Pode-se falar de uma luta de classes sem classes, em um contexto de dissolução do Estado antigo, e de precondições do feudalismo, que gerou uma sociedade de base camponesa.

A partir do ano 800, aproximadamente, impôs-se a lógica do modo de produção feudal em regiões como França, Espanha, Itália e outras. Entre os séculos IX e XIV, predominaram os pequenos conflitos cotidianos entre senhores e camponeses, e houve notáveis confrontos entre os burgueses e a Igreja. Estes últimos caracterizaram-se como lutas de caráter estamental que teriam influência na evolução política posterior. Sob a proteção destes conflitos urbanos ocorreram alguns poucos levantamentos camponeses de importância.

Entre os séculos XIV-XVI, os movimentos por status continuaram, agora protagonizados, em geral, por setores urbanos enriquecidos que tratavam de obter um lugar no patriciado para participar do governo das cidades. A par destas lutas, surgiram revoluções de outra natureza que, pela primeira vez, questionavam o modo de produção feudal. Foram dirigidas por “empresários” capitalistas e junto a elas tiveram lugar as lutas camponesas. Com estas manifestações teve início o longo ciclo de revoluções burguesas da Idade Moderna.

Artigo recebido em 21.3.2012Aprovado em 22.5.2012

A Índia na obra de Marx e Engels:entre a filosofia da história e a política

*Camila Massaro de Góes

ntroduçãoMarx e Engels ao assumir o desafio de uma nova

1escrita da história apresentam como característica inerente ao desenvolvimento de suas argumentações a oscilação entre posições mais próximas, de um lado, à filosofia clássica hegeliana e, de outro, à ciência empírica inglesa. É possível observar uma movimentação entre essas posições na argumentação desses autores no que concerne à questão colonial. Em alguns momentos, os autores chegaram até mesmo a adotar uma visada eurocêntrica que repercutia uma filosofia da história de corte hegeliano, embora seja necessário destacar que Engels permaneceu mais preso a essa filosofia, o que se evidencia nas repetidas vezes em que este fez referência aos “povos sem história” – ela não deixa de se fazer

2igualmente presente, entretanto, no autor d'O Capital.

Como outros pós-hegelianos, Marx começou por uma “teoria da revolução alemã”. Suas investigações, entretanto, tomaram direções distintas da geração hegeliana. Em 1843, suas pesquisas já o convenciam que a delimitação dos problemas políticos como “puramente alemães” era mal orientada – Marx notava que “as fronteiras dos estados raramente coincidem com as

3 fronteiras dos processos históricos”. O que acontecia na Alemanha era parte de um processo mais amplo tanto em termos políticos quanto em termos econômicos. A transformação econômica que se dava nesse país era parte de um processo estruturado de transformação europeia que embora apresentasse sequências particulares em países particulares, era também parte de uma estrutura

4maior de transição histórica para o capitalismo.Tanto Marx como Hegel viam a história como

organizada em períodos ou formas sociais nas quais a experiência histórica recorria a certos princípios de organização, embora esses princípios em ambos os casos sejam vastamente distintos. A filosofia da história hegeliana provia um valor especulativo sobre o processo histórico, enquanto o programa de pesquisa de Marx se distinguia por seu aspecto empírico. Tais periodizações não eram distintas apenas por mostrarem a diferença

I entre uma visão idealista e materialista da história – tratava-se de dois tipos diferentes que se desenvolviam de

5formas diferentes.Com relação à dominação britânica na Índia, é

possível localizar traços de uma posição eurocêntrica em Marx e Engels principalmente em escritos de inícios dos anos 1850. É importante destacar, contudo, a existência de uma mudança na argumentação marx-engelsiana e um distanciamento dessa visada ao longo dos anos e principalmente a partir de 1857, com a Guerra dos

6Cipaios.Os estudos de Marx sobre a Índia têm início no

começo da década de 1840, antes mesmo de contribuir para o New York Daily Tribune (NYDT) – enquanto Engels se detinha com mais tenacidade à questão irlandesa. Após alcançarem uma compreensão extensa e mais nuançada dos acontecimentos irlandeses em meados dos anos 1850, Marx e Engels passam a oferecer um julgamento mais apurado sobre a situação colonial indiana. Somaram no total 33 artigos sobre o tema, expedidos para o NYDT – 12 deles em 1853, 15 em 1857 e 6 em 1858.

Os primeiros artigos apresentam uma maior inclinação a amplas generalizações, inexatidões, assim como em desinformações. Marx sabia pouco obre a Índia quando começou a escrever, o que fica claro quando se atenta ao fato de que ele pensava que todos os direitos de posse sobre a região agrícola indiana eram de estrangeiros mesmo antes da dominação britânica; sendo essa a ideia que as autoridades inglesas propagavam visto que eram eles os novos reguladores e que amavam a ideia de convencer a população indiana de que possuíam naturalmente esse direito sobre a terra. Apenas quatro anos depois, quando começou a escrever a segunda seção de artigos sobre a Índia, Marx percebeu que esse fato poderia ser visto no máximo como uma espécie de “ficção legal”, embora tenha permanecido ainda sem compreender completamente o complexo sistema agrícola da Índia pré-britânica, tendo adquirido algum senso de tamanha complexidade só muito depois, quando a Índia passa a figurar em seus escritos apenas como caso

7comparativo.*Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP).1BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.2BIANCHI, Alvaro. O marxismo fora do lugar. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 9, n. 16, Abril 2010, p.178.3KAVIRAJ, Sudipta. On the status of Marx's Writings on India. Social Scientist, Vol.11, n° 9, Setembro 1983, p.29.4Idem, p.30.

5Idem, p.30.6A Guerra dos Cipaios de 1857 foi um período prolongado de levantes armados e rebeliões contra a ocupação britânica. Pequenos incidentes de descontentamento envolvendo incêndios criminosos em acantonamentos foram os precursores da rebelião. Posteriormente, uma revolta em grande escala estalou e tornou-se uma guerra aberta nas regiões afetadas. O conflito causou o fim do governo da Companhia Britânica das Índias Orientais e o início da administração direta de grande parte do território indiano pela coroa britânica.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (45-51) O conflito social no Feudalismo

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assumiu, ainda, uma conotação particular – a ocorrência de um surto antissemita –, questão que requer um tratamento específico.

ConclusõesSistematizando esta abordagem, concluímos

com o quadro seguinte:Entre os séculos V e VIII, houve um movimento

social multifacetado que marcou a crise do antigo sistema e a primeira transição. Pode-se falar de uma luta de classes sem classes, em um contexto de dissolução do Estado antigo, e de precondições do feudalismo, que gerou uma sociedade de base camponesa.

A partir do ano 800, aproximadamente, impôs-se a lógica do modo de produção feudal em regiões como França, Espanha, Itália e outras. Entre os séculos IX e XIV, predominaram os pequenos conflitos cotidianos entre senhores e camponeses, e houve notáveis confrontos entre os burgueses e a Igreja. Estes últimos caracterizaram-se como lutas de caráter estamental que teriam influência na evolução política posterior. Sob a proteção destes conflitos urbanos ocorreram alguns poucos levantamentos camponeses de importância.

Entre os séculos XIV-XVI, os movimentos por status continuaram, agora protagonizados, em geral, por setores urbanos enriquecidos que tratavam de obter um lugar no patriciado para participar do governo das cidades. A par destas lutas, surgiram revoluções de outra natureza que, pela primeira vez, questionavam o modo de produção feudal. Foram dirigidas por “empresários” capitalistas e junto a elas tiveram lugar as lutas camponesas. Com estas manifestações teve início o longo ciclo de revoluções burguesas da Idade Moderna.

Artigo recebido em 21.3.2012Aprovado em 22.5.2012

A Índia na obra de Marx e Engels:entre a filosofia da história e a política

*Camila Massaro de Góes

ntroduçãoMarx e Engels ao assumir o desafio de uma nova

1escrita da história apresentam como característica inerente ao desenvolvimento de suas argumentações a oscilação entre posições mais próximas, de um lado, à filosofia clássica hegeliana e, de outro, à ciência empírica inglesa. É possível observar uma movimentação entre essas posições na argumentação desses autores no que concerne à questão colonial. Em alguns momentos, os autores chegaram até mesmo a adotar uma visada eurocêntrica que repercutia uma filosofia da história de corte hegeliano, embora seja necessário destacar que Engels permaneceu mais preso a essa filosofia, o que se evidencia nas repetidas vezes em que este fez referência aos “povos sem história” – ela não deixa de se fazer

2igualmente presente, entretanto, no autor d'O Capital.

Como outros pós-hegelianos, Marx começou por uma “teoria da revolução alemã”. Suas investigações, entretanto, tomaram direções distintas da geração hegeliana. Em 1843, suas pesquisas já o convenciam que a delimitação dos problemas políticos como “puramente alemães” era mal orientada – Marx notava que “as fronteiras dos estados raramente coincidem com as

3 fronteiras dos processos históricos”. O que acontecia na Alemanha era parte de um processo mais amplo tanto em termos políticos quanto em termos econômicos. A transformação econômica que se dava nesse país era parte de um processo estruturado de transformação europeia que embora apresentasse sequências particulares em países particulares, era também parte de uma estrutura

4maior de transição histórica para o capitalismo.Tanto Marx como Hegel viam a história como

organizada em períodos ou formas sociais nas quais a experiência histórica recorria a certos princípios de organização, embora esses princípios em ambos os casos sejam vastamente distintos. A filosofia da história hegeliana provia um valor especulativo sobre o processo histórico, enquanto o programa de pesquisa de Marx se distinguia por seu aspecto empírico. Tais periodizações não eram distintas apenas por mostrarem a diferença

I entre uma visão idealista e materialista da história – tratava-se de dois tipos diferentes que se desenvolviam de

5formas diferentes.Com relação à dominação britânica na Índia, é

possível localizar traços de uma posição eurocêntrica em Marx e Engels principalmente em escritos de inícios dos anos 1850. É importante destacar, contudo, a existência de uma mudança na argumentação marx-engelsiana e um distanciamento dessa visada ao longo dos anos e principalmente a partir de 1857, com a Guerra dos

6Cipaios.Os estudos de Marx sobre a Índia têm início no

começo da década de 1840, antes mesmo de contribuir para o New York Daily Tribune (NYDT) – enquanto Engels se detinha com mais tenacidade à questão irlandesa. Após alcançarem uma compreensão extensa e mais nuançada dos acontecimentos irlandeses em meados dos anos 1850, Marx e Engels passam a oferecer um julgamento mais apurado sobre a situação colonial indiana. Somaram no total 33 artigos sobre o tema, expedidos para o NYDT – 12 deles em 1853, 15 em 1857 e 6 em 1858.

Os primeiros artigos apresentam uma maior inclinação a amplas generalizações, inexatidões, assim como em desinformações. Marx sabia pouco obre a Índia quando começou a escrever, o que fica claro quando se atenta ao fato de que ele pensava que todos os direitos de posse sobre a região agrícola indiana eram de estrangeiros mesmo antes da dominação britânica; sendo essa a ideia que as autoridades inglesas propagavam visto que eram eles os novos reguladores e que amavam a ideia de convencer a população indiana de que possuíam naturalmente esse direito sobre a terra. Apenas quatro anos depois, quando começou a escrever a segunda seção de artigos sobre a Índia, Marx percebeu que esse fato poderia ser visto no máximo como uma espécie de “ficção legal”, embora tenha permanecido ainda sem compreender completamente o complexo sistema agrícola da Índia pré-britânica, tendo adquirido algum senso de tamanha complexidade só muito depois, quando a Índia passa a figurar em seus escritos apenas como caso

7comparativo.*Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP).1BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.2BIANCHI, Alvaro. O marxismo fora do lugar. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 9, n. 16, Abril 2010, p.178.3KAVIRAJ, Sudipta. On the status of Marx's Writings on India. Social Scientist, Vol.11, n° 9, Setembro 1983, p.29.4Idem, p.30.

5Idem, p.30.6A Guerra dos Cipaios de 1857 foi um período prolongado de levantes armados e rebeliões contra a ocupação britânica. Pequenos incidentes de descontentamento envolvendo incêndios criminosos em acantonamentos foram os precursores da rebelião. Posteriormente, uma revolta em grande escala estalou e tornou-se uma guerra aberta nas regiões afetadas. O conflito causou o fim do governo da Companhia Britânica das Índias Orientais e o início da administração direta de grande parte do território indiano pela coroa britânica.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (45-51) O conflito social no Feudalismo

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A propósito do que os escritos de Marx e Engels sobre a Índia significam, existem duas opiniões comuns entre os historiadores – e ambas são, de certo modo,

8inapropriadas e incompletas. A primeira maneira é aquela em que se seleciona nas observações de Marx sobre a história indiana uma série de proposições empíricas sobre a estrutura das formas sociais tradicionais na Índia. Nessa visão, a sociedade indiana tradicional é vista apenas como uma forma de feudalismo. A outra visão, contrária, defende que as observações de Marx são casuais, episódicas, ocasionais; e não haveria, nesse sentido, uma necessidade lógica por

9trás delas. Para entender a análise colonial de Marx e Engels, entretanto, é crucial perceber as orientações teóricas e os contextos históricos sobre os quais esses autores se debruçaram – notavelmente identificado na influência da ciência empírica inglesa e da filosofia clássica alemã.

É possível entender Marx, ainda, não como o fundador de um sistema fechado, mas antes como o instaurador de um modelo de pesquisa que se estende à modernidade. Estabelece-se, portanto, como pano de fundo para as considerações marx-egelsianas acerca da questão indiana a busca mais abrangente por uma compreensão do capitalismo. Marx teria iniciado seus estudos, então, a fim de verificar a possibilidade de ter ocorrido uma forma econômico-social distinta das que ocorreram na Europa Ocidental. No entanto, notou que com a inserção da Índia no mercado internacional a partir da fixação britânica, houve uma dissolução das antigas relações sociais de modo drástico – tendo oscilado de um juízo mais “positivo” sobre essa interferência inglesa como força civilizatória para um mais “negativo” pós 1857 com a denúncia das atrocidades britânicas na Índia como justificativa para a Revolta dos Cipaios. Busco aqui compreender a análise que Marx e Engels fazem desse contexto, com o objetivo de destacar as inconstâncias e oscilações presentes na concepção marx-engelsiana a respeito da questão colonial indiana.

Inglaterra como força civilizatóriaMarx e Engels certamente pensaram a destruição

co lon ia l da an t iga o rdem como e lemento “revolucionário” da sociedade indiana, tanto quanto consideraram “revolucionário” o desenvolvimento do capitalismo e a consequente destruição da ordem feudal

10 na Europa. Em seu artigo The British Rule in India publicado no Tribune no dia 10 de junho de 1853, Marx conclui que o colonialismo britânico servia como “ferramenta inconsciente da história” na Índia, embora tenha escrito em carta para Engels quatro dias depois, em 14 de junho de 1853, caracterizando a dominação inglesa como “porca”:

Eu continuo esta luta oculta num primeiro artigo sobre a Índia, no qual a destruição da indústria

nativa pela Inglaterra é apresentada como revolucionária. Isto deve chocá-los muito. Pelo que respeita ao resto, todo o domínio britânico

11na Índia foi porco, como o é até hoje.

A interpretação de Marx não pode ser considerada, portanto, como entusiasta da colonização. A destruição da estrutura nativa da Índia pela Inglaterra, para ele, concede um particular tipo de melancolia para a

12miséria indiana da época. Para Marx, ainda que os ingleses possam ter lançado o país na hibernação, a derrocada das formas estereotipadas primitivas era condição sine qua non para a sua europeização – a destruição de sua indústria arcaica era necessária para

13privar as aldeias de seu caráter de autossuficiência Aqui, através da noção de “europeização”, depara-se claramente com uma posição eurocêntrica na argumentação de Marx.

Antes da dominação inglesa na Índia, houve apenas três departamentos de Governo na Ásia. O primeiro era o das Finanças, ou “pilhagem do interior”, o segundo da Guerra, ou “pilhagem do exterior” e,

14 finalmente, o terceiro dos Negócios Públicos. Em carta endereçada a Marx, de seis de junho de 1853, Engels afirma que o Governo Britânico na Índia administrou os departamentos primeiro e segundo com um espírito “bastante tacanho” e negligenciou inteiramente o

15terceiro, pelo qual a agricultura indiana arruinou-se.A fertilização artificial da terra, que terminou

logo que o sistema de irrigação entrou em decadência, explica o fato de grandes extensões outrora completamente cultivadas passarem a se encontrar então

16abandonadas e desertas. A fertilização artificial dependente do Governo Central, descuidada de irrigação e drenagem, explica o estranho fato de tais territórios, antes brilhantemente cultivados, passarem a se encontrar abandonados. A livre competição desacredita-se por

17completo e a si própria nesta região.

Os ingleses na Índia aceitaram de seus predecessores os departamentos das finanças e o da guerra, mas omitiram completamente o dos negócios públicos. Como consequência, se deu a deterioração de uma agricultura que não tinha condições de ser conduzida através do princípio britânico da livre competição – o laissez-faire e o laissez-aller. No entanto, é comum aos impérios asiáticos, como destaca Marx, vermos a deterioração da agricultura num governo e a sua restauração em outro. As colheitas determinam bons ou maus governos, tanto quanto na Europa eles mudam em

18função de boas ou más estações.A opressão e a negligência da agricultura,

embora sejam graves, não podem ser vistas como as principais características que saltam aos olhos na análise

7AHMAD, Aijaz. Introduction. In: MARX, Karl; ENGELS, Frederick. On the National and Colonial Questions (ed. AHMAD, Aijaz). New Delhi: LeftWord Books, 2001, p.16-17.8KAVIRAJ, op. cit., p.27.9Idem, p.27.10AHMAD, op. cit., p.18.

11MARX, Karl. Sobre o Colonialismo. Lisboa: Estampa, 1978, p.184.12ENGELS, Frederick. On the National and Colonial Questions (ed. AHMAD, Aijaz). New Delhi: LeftWord Books, 2001, p.62.13MARX, op.cit., p.186.14ENGELS, op. cit., p.62.15MARX, op. cit., p. 182. 16ENGELS, op. cit., p.63.17Idem, p.63.18Idem., p.63.

19Idem., p.64.20MARX,, op. cit., p.184.21ENGELS, op. cit., p. 65.22Idem, p.66.

dos efeitos da dominação britânica na Índia, na medida em que foram acompanhadas por uma circunstância verdadeiramente importante, de inovação da história de todo o mundo asiático. Para Marx, foi apenas no primeiro decênio do século XIX que a condição social indiana foi alterada, tendo permanecido por tempos imemoráveis de forma imperturbada. O declínio das cidades indianas, que haviam sido célebres por seus tecidos, não pode ser considerado, portanto, como a principal consequência da dominação inglesa, mas sim o fato de o vapor e a ciência britânica ter destruído a união entre agricultura e a

19 indústria artesanal. Duas circunstâncias caracterizaram esse sistema social de feições particulares:

1) as obras públicas estavam dentro do âmbito do governo central; 2) para além disto, todo o império, não contando as poucas cidades consideradas grandes, estava dividido em aldeias, cada uma das quais possuía uma organização completamente separada e formava

20um pequeno mundo em si mesma.

Mesmo sendo lamentável do ponto de vista humano, segundo Marx, ver como se desorganizaram essas formas de organismo social patriarcais, e por mais triste que tenha sido vê-las desaparecerem em um mar de dor, com cada um de seus membros individuais perdendo ao mesmo tempo as suas velhas formas de civilização e seus meios hereditários de subsistência – essas aldeias, embora pareçam inofensivas, formaram a sólida fundação do despotismo oriental, que restringiu o intelecto humano aos seus limites mais estreitos, convertendo-o num incansável elemento de superstição, submetendo-o à escravidão das regras tradicionais e os

21privando de todas as grandes energias históricas.O caso da Índia leva Marx, portanto, a uma

situação extrema, paradoxal. De um lado, o autor vê a dominação da Inglaterra como agente do progresso. Por outro lado, não se omite frente à miséria total – o custo humano desse progresso – que caracterizava, então, a população indiana na época. Como conclusão, Marx afirma que a Inglaterra, ao causar uma revolução social no “Indostão”, agiu apenas de acordo com os seus interesses mais vis e foi tola na maneira como os impôs, mas essa não era a questão naquele momento: “A questão é, a humanidade pode cumprir seu destino sem uma revolução fundamental no estado social da Ásia? Se não, quaisquer sejam os crimes da Inglaterra, ela foi o instrumento

22inconsciente da história ao realizar tal revolução”.Em 22 de julho de 1853, Marx publica no NYDT

o artigo The Future of the British Rule in India. Esse importante texto abrange suas previsões acerca do futuro da situação indiana sob domínio inglês. Marx, aqui, se encontra ainda de modo harmonioso com a argumentação desenvolvida em seu artigo de junho, entendendo o domínio britânico de modo positivo e se colocando esperançoso a respeito da presença europeia no terreno oriental indiano como uma espécie de “missão

civilizatória”. Logo no início, Marx se questiona sobre como a supremacia inglesa foi estabelecida na Índia, levando-se em consideração que se trata de um país não só dividido entre muçulmanos e hindus, mas entre tribos e castas – uma sociedade que era baseada no equilíbrio resultado de uma repulsão geral e de uma exclusividade

23constitucional entre seus membros.

Para Marx, a Índia era um país predestinado para a conquista e a sua história não era senão a história dos sucessivos invasores que fundaram seus impérios em sua base passiva, considerada como incansável e imutável. A questão a ser colocada, então, seria se é preferível à Índia ser conquistada pelos Turcos, Persas, Russos ou Bretões, em vez de questionar se a Inglaterra tinha ou não o direito de conquistá-la. Marx via na dominação britânica duas missões que deveriam ser cumpridas na Índia, a primeira era destrutiva – a aniquilação da antiga sociedade asiática – e a outra, regenerativa – estabelecer as fundações

24materiais de uma sociedade Ocidental na Ásia.A primeira condição estabelecida por Marx para

a regeneração da Índia era a sua unidade política. Essa unidade imposta pela espada britânica seria fortalecida e perpetuada pelo telégrafo elétrico. O exército nativo organizado e treinado pelos sargentos britânicos, era visto como condição sine qua non para a auto-emancipação da Índia e para cessar sua insistência em ser vítima do primeiro país que a invadisse. A imprensa livre introduzida pela primeira vez na sociedade asiática era considerada como outro importante agente da reconstrução. Nesse sentido, para Marx, não estava longínquo o dia em que “a distância entre a Inglaterra e a Índia, medida pelo tempo, seria diminuída a oito dias e

25 tal fabuloso país seria anexado ao mundo Ocidental”.As forças reguladoras britânicas haviam tido, até então, segundo sua argumentação, interesses acidentais, transitórios e excepcionais no progresso da Índia.

A questão das castas seria resolvida através da moderna indústria, resultante do sistema de ferrovias, que dissolveria as divisões hereditárias do trabalho, sobre quais se assentam as castas indianas consideradas por Marx como “impedimentos decisivos para o progresso e

26poder indiano”. O autor destaca, ainda nesse texto, a profunda hipocrisia e barbárie inerentes à civilização burguesa que embora permaneça velada em seu próprio território, onde assume respeitáveis formas, nas colônias

27se dá de modo intenso e desnudo. Os devastadores efeitos da indústria inglesa na Índia são considerados como palpáveis e desconcertantes. No entanto, Marx volta a afirmar que não se pode esquecer que se tratavam apenas de resultados orgânicos de todo o sistema de produção constituído até então. Essa produção descansa sobre o domínio supremo do capital:

O período burguês da história deve criar as bases materiais para um novo mundo – por um lado, para desenvolver um intercâmbio universal fundado sob a mútua dependência do gênero humano, e por

23Idem, p.70.24Idem, p.70.25Idem, p.71.26Idem, p.73.27Idem, p.74.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (45-51) A Índia na obra de Marx e Engels: entre a filosofia da história e a política

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A propósito do que os escritos de Marx e Engels sobre a Índia significam, existem duas opiniões comuns entre os historiadores – e ambas são, de certo modo,

8inapropriadas e incompletas. A primeira maneira é aquela em que se seleciona nas observações de Marx sobre a história indiana uma série de proposições empíricas sobre a estrutura das formas sociais tradicionais na Índia. Nessa visão, a sociedade indiana tradicional é vista apenas como uma forma de feudalismo. A outra visão, contrária, defende que as observações de Marx são casuais, episódicas, ocasionais; e não haveria, nesse sentido, uma necessidade lógica por

9trás delas. Para entender a análise colonial de Marx e Engels, entretanto, é crucial perceber as orientações teóricas e os contextos históricos sobre os quais esses autores se debruçaram – notavelmente identificado na influência da ciência empírica inglesa e da filosofia clássica alemã.

É possível entender Marx, ainda, não como o fundador de um sistema fechado, mas antes como o instaurador de um modelo de pesquisa que se estende à modernidade. Estabelece-se, portanto, como pano de fundo para as considerações marx-egelsianas acerca da questão indiana a busca mais abrangente por uma compreensão do capitalismo. Marx teria iniciado seus estudos, então, a fim de verificar a possibilidade de ter ocorrido uma forma econômico-social distinta das que ocorreram na Europa Ocidental. No entanto, notou que com a inserção da Índia no mercado internacional a partir da fixação britânica, houve uma dissolução das antigas relações sociais de modo drástico – tendo oscilado de um juízo mais “positivo” sobre essa interferência inglesa como força civilizatória para um mais “negativo” pós 1857 com a denúncia das atrocidades britânicas na Índia como justificativa para a Revolta dos Cipaios. Busco aqui compreender a análise que Marx e Engels fazem desse contexto, com o objetivo de destacar as inconstâncias e oscilações presentes na concepção marx-engelsiana a respeito da questão colonial indiana.

Inglaterra como força civilizatóriaMarx e Engels certamente pensaram a destruição

co lon ia l da an t iga o rdem como e lemento “revolucionário” da sociedade indiana, tanto quanto consideraram “revolucionário” o desenvolvimento do capitalismo e a consequente destruição da ordem feudal

10 na Europa. Em seu artigo The British Rule in India publicado no Tribune no dia 10 de junho de 1853, Marx conclui que o colonialismo britânico servia como “ferramenta inconsciente da história” na Índia, embora tenha escrito em carta para Engels quatro dias depois, em 14 de junho de 1853, caracterizando a dominação inglesa como “porca”:

Eu continuo esta luta oculta num primeiro artigo sobre a Índia, no qual a destruição da indústria

nativa pela Inglaterra é apresentada como revolucionária. Isto deve chocá-los muito. Pelo que respeita ao resto, todo o domínio britânico

11na Índia foi porco, como o é até hoje.

A interpretação de Marx não pode ser considerada, portanto, como entusiasta da colonização. A destruição da estrutura nativa da Índia pela Inglaterra, para ele, concede um particular tipo de melancolia para a

12miséria indiana da época. Para Marx, ainda que os ingleses possam ter lançado o país na hibernação, a derrocada das formas estereotipadas primitivas era condição sine qua non para a sua europeização – a destruição de sua indústria arcaica era necessária para

13privar as aldeias de seu caráter de autossuficiência Aqui, através da noção de “europeização”, depara-se claramente com uma posição eurocêntrica na argumentação de Marx.

Antes da dominação inglesa na Índia, houve apenas três departamentos de Governo na Ásia. O primeiro era o das Finanças, ou “pilhagem do interior”, o segundo da Guerra, ou “pilhagem do exterior” e,

14 finalmente, o terceiro dos Negócios Públicos. Em carta endereçada a Marx, de seis de junho de 1853, Engels afirma que o Governo Britânico na Índia administrou os departamentos primeiro e segundo com um espírito “bastante tacanho” e negligenciou inteiramente o

15terceiro, pelo qual a agricultura indiana arruinou-se.A fertilização artificial da terra, que terminou

logo que o sistema de irrigação entrou em decadência, explica o fato de grandes extensões outrora completamente cultivadas passarem a se encontrar então

16abandonadas e desertas. A fertilização artificial dependente do Governo Central, descuidada de irrigação e drenagem, explica o estranho fato de tais territórios, antes brilhantemente cultivados, passarem a se encontrar abandonados. A livre competição desacredita-se por

17completo e a si própria nesta região.

Os ingleses na Índia aceitaram de seus predecessores os departamentos das finanças e o da guerra, mas omitiram completamente o dos negócios públicos. Como consequência, se deu a deterioração de uma agricultura que não tinha condições de ser conduzida através do princípio britânico da livre competição – o laissez-faire e o laissez-aller. No entanto, é comum aos impérios asiáticos, como destaca Marx, vermos a deterioração da agricultura num governo e a sua restauração em outro. As colheitas determinam bons ou maus governos, tanto quanto na Europa eles mudam em

18função de boas ou más estações.A opressão e a negligência da agricultura,

embora sejam graves, não podem ser vistas como as principais características que saltam aos olhos na análise

7AHMAD, Aijaz. Introduction. In: MARX, Karl; ENGELS, Frederick. On the National and Colonial Questions (ed. AHMAD, Aijaz). New Delhi: LeftWord Books, 2001, p.16-17.8KAVIRAJ, op. cit., p.27.9Idem, p.27.10AHMAD, op. cit., p.18.

11MARX, Karl. Sobre o Colonialismo. Lisboa: Estampa, 1978, p.184.12ENGELS, Frederick. On the National and Colonial Questions (ed. AHMAD, Aijaz). New Delhi: LeftWord Books, 2001, p.62.13MARX, op.cit., p.186.14ENGELS, op. cit., p.62.15MARX, op. cit., p. 182. 16ENGELS, op. cit., p.63.17Idem, p.63.18Idem., p.63.

19Idem., p.64.20MARX,, op. cit., p.184.21ENGELS, op. cit., p. 65.22Idem, p.66.

dos efeitos da dominação britânica na Índia, na medida em que foram acompanhadas por uma circunstância verdadeiramente importante, de inovação da história de todo o mundo asiático. Para Marx, foi apenas no primeiro decênio do século XIX que a condição social indiana foi alterada, tendo permanecido por tempos imemoráveis de forma imperturbada. O declínio das cidades indianas, que haviam sido célebres por seus tecidos, não pode ser considerado, portanto, como a principal consequência da dominação inglesa, mas sim o fato de o vapor e a ciência britânica ter destruído a união entre agricultura e a

19 indústria artesanal. Duas circunstâncias caracterizaram esse sistema social de feições particulares:

1) as obras públicas estavam dentro do âmbito do governo central; 2) para além disto, todo o império, não contando as poucas cidades consideradas grandes, estava dividido em aldeias, cada uma das quais possuía uma organização completamente separada e formava

20um pequeno mundo em si mesma.

Mesmo sendo lamentável do ponto de vista humano, segundo Marx, ver como se desorganizaram essas formas de organismo social patriarcais, e por mais triste que tenha sido vê-las desaparecerem em um mar de dor, com cada um de seus membros individuais perdendo ao mesmo tempo as suas velhas formas de civilização e seus meios hereditários de subsistência – essas aldeias, embora pareçam inofensivas, formaram a sólida fundação do despotismo oriental, que restringiu o intelecto humano aos seus limites mais estreitos, convertendo-o num incansável elemento de superstição, submetendo-o à escravidão das regras tradicionais e os

21privando de todas as grandes energias históricas.O caso da Índia leva Marx, portanto, a uma

situação extrema, paradoxal. De um lado, o autor vê a dominação da Inglaterra como agente do progresso. Por outro lado, não se omite frente à miséria total – o custo humano desse progresso – que caracterizava, então, a população indiana na época. Como conclusão, Marx afirma que a Inglaterra, ao causar uma revolução social no “Indostão”, agiu apenas de acordo com os seus interesses mais vis e foi tola na maneira como os impôs, mas essa não era a questão naquele momento: “A questão é, a humanidade pode cumprir seu destino sem uma revolução fundamental no estado social da Ásia? Se não, quaisquer sejam os crimes da Inglaterra, ela foi o instrumento

22inconsciente da história ao realizar tal revolução”.Em 22 de julho de 1853, Marx publica no NYDT

o artigo The Future of the British Rule in India. Esse importante texto abrange suas previsões acerca do futuro da situação indiana sob domínio inglês. Marx, aqui, se encontra ainda de modo harmonioso com a argumentação desenvolvida em seu artigo de junho, entendendo o domínio britânico de modo positivo e se colocando esperançoso a respeito da presença europeia no terreno oriental indiano como uma espécie de “missão

civilizatória”. Logo no início, Marx se questiona sobre como a supremacia inglesa foi estabelecida na Índia, levando-se em consideração que se trata de um país não só dividido entre muçulmanos e hindus, mas entre tribos e castas – uma sociedade que era baseada no equilíbrio resultado de uma repulsão geral e de uma exclusividade

23constitucional entre seus membros.

Para Marx, a Índia era um país predestinado para a conquista e a sua história não era senão a história dos sucessivos invasores que fundaram seus impérios em sua base passiva, considerada como incansável e imutável. A questão a ser colocada, então, seria se é preferível à Índia ser conquistada pelos Turcos, Persas, Russos ou Bretões, em vez de questionar se a Inglaterra tinha ou não o direito de conquistá-la. Marx via na dominação britânica duas missões que deveriam ser cumpridas na Índia, a primeira era destrutiva – a aniquilação da antiga sociedade asiática – e a outra, regenerativa – estabelecer as fundações

24materiais de uma sociedade Ocidental na Ásia.A primeira condição estabelecida por Marx para

a regeneração da Índia era a sua unidade política. Essa unidade imposta pela espada britânica seria fortalecida e perpetuada pelo telégrafo elétrico. O exército nativo organizado e treinado pelos sargentos britânicos, era visto como condição sine qua non para a auto-emancipação da Índia e para cessar sua insistência em ser vítima do primeiro país que a invadisse. A imprensa livre introduzida pela primeira vez na sociedade asiática era considerada como outro importante agente da reconstrução. Nesse sentido, para Marx, não estava longínquo o dia em que “a distância entre a Inglaterra e a Índia, medida pelo tempo, seria diminuída a oito dias e

25 tal fabuloso país seria anexado ao mundo Ocidental”.As forças reguladoras britânicas haviam tido, até então, segundo sua argumentação, interesses acidentais, transitórios e excepcionais no progresso da Índia.

A questão das castas seria resolvida através da moderna indústria, resultante do sistema de ferrovias, que dissolveria as divisões hereditárias do trabalho, sobre quais se assentam as castas indianas consideradas por Marx como “impedimentos decisivos para o progresso e

26poder indiano”. O autor destaca, ainda nesse texto, a profunda hipocrisia e barbárie inerentes à civilização burguesa que embora permaneça velada em seu próprio território, onde assume respeitáveis formas, nas colônias

27se dá de modo intenso e desnudo. Os devastadores efeitos da indústria inglesa na Índia são considerados como palpáveis e desconcertantes. No entanto, Marx volta a afirmar que não se pode esquecer que se tratavam apenas de resultados orgânicos de todo o sistema de produção constituído até então. Essa produção descansa sobre o domínio supremo do capital:

O período burguês da história deve criar as bases materiais para um novo mundo – por um lado, para desenvolver um intercâmbio universal fundado sob a mútua dependência do gênero humano, e por

23Idem, p.70.24Idem, p.70.25Idem, p.71.26Idem, p.73.27Idem, p.74.

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outro, para criar os meios para o desenvolvimento das forças produtivas do homem e a transformação da produção material em uma dominação científica

28sobre as forças da natureza.

Assim, a partir desses dois artigos publicados no Tribune em 1853, fica claro como a abordagem de Marx sobre a dominação colonial europeia na Índia se desenvolve atrelado a uma posição mais próxima de uma filosofia da história. No entanto, a partir de 1857, a argumentação de Marx e Engels sobre a questão indiana sofre uma mudança completa, como será analisado no item seguinte.

A Guerra dos Cipaios Em The Revolt in the Indian Army, publicado no

NYDT em 15 de julho de 1857, Marx continua a considerar a unidade política na Índia como o princípio vital da supremacia britânica, isto é, o antagonismo das várias raças, tribos, castas, crenças e nacionalidades – o agregado que forma a sua unidade geográfica. As condições de tal supremacia, entretanto, haviam se alterado e o império anglo-indiano havia não somente alcançado seus limites naturais, como havia esmagado os últimos vestígios de independência dos Estados Indianos

29com a conquista de “Scinde e de Punjab”.

Com isso, os exércitos não deveriam mais buscar estender o domínio britânico, mas deveriam simplesmente mantê-lo. Com isso, os soldados passam a exercer a função de policiais. Marx elucida esse contexto com dados do período: consistiam em 200 milhões de nativos sendo controlados por 200 mil homens, que eram comandados por ingleses; e o exército nativo, por sua vez, sendo mantido apenas por 40 mil ingleses. À primeira vista, era evidente para Marx que a fidelidade do povo indiano se assentasse na fidelidade do exército nativo, ou seja, na criação do que a Inglaterra simultaneamente organizou como o primeiro centro geral de resistência

30que o povo indiano jamais havia possuído.

Em que medida o exército nativo poderia ser considerado como “confiável” ficou claramente apontado através dos motins que irromperam tão rápido quanto a guerra da Pérsia que quase despiu a presidência de Bengali de seus soldados europeus. A mudança na argumentação de Marx e de sua interpretação acerca da dominação britânica na Índia se dá a partir de suas análises sobre essa revolta, pois para o autor é:

A primeira vez que regimentos cipaios assassinam seus comandantes europeus; que muçulmanos e hindus renunciam a mutuais antipatias e se combinam contra seus mestres comuns; que 'distúrbios iniciados com os Hindus terminam colocando no trono de Delhi um imperador muçulmano'; que o motim não ficou restrito à poucas localidades; e finalmente, que uma revolta no exército anglo-indiano coincide com uma desafeição geral exibida contra a supremacia inglesa na parte das grandes nações Asiáticas. A revolta do exército bengalês está, sem dúvida, intimamente

31conectada com as guerras persa e chinesa.

Antes disso já haviam existido motins no exército indiano, mas para Marx tal revolta é distinta por suas feições fatais. A alegada causa de desafeição, difundida nos quatro meses anteriores à revolta do exército bengalês fora a apreensão necessária aos nativos, a fim de não permitir que o governo britânico continuasse a interferir em suas religiões. A situação critica que se desencadearia com a Guerra dos Cipaios se caracterizava por combinar motivações de cunho religioso à questão militar.

No dia 22 de janeiro de 1857, o fogo incendiário arrebentou nos postos militares próximos à Calcutá, e em 25 do mesmo mês, o 19º Regimento Nativo amotinou-se em Berhampore. Em fins de março, tal regimento debandou e o Regimento Cipaio localizado em Barrackpore permitiu que um de seus homens avançasse com um mosquete carregado à frente da linha do campo de batalha e após chamar seus camaradas para o motim, foi permitido a ele que atacasse e golpeasse o Ajudante e Sargento-Maior de seu regimento. Ao longo do conflito, milhares de cipaios observaram passivamente, enquanto outros participavam da luta e atacavam os oficiais com seus mosquetes. Subsequentemente, o Regimento Cipaio também debandou. O mês de abril foi marcado por fogos incendiários em diversos postos militares do exército bengalês em Allahabad, Agra e Ambala, por um motim do 3º Regimento da Cavalaria em Meerut, e por aparências similares de desafeição nos exércitos de Madras e Bombay.

Embora a parte britânica da brigada envolvesse um regimento de infantaria, outro de cavalaria, e uma opressiva força de artilharia de cavalos e pés, ela não conseguiu se movimentar antes do anoitecer. Tendo conferido pouco dano aos rebeldes, a parte britânica permitiu que eles se direcionassem para o campo aberto e para Delhi. Em Delhi, eles se juntaram a outros três regimentos de infantaria, e a uma companhia de artilharia nativa – oficiais britânicos foram atacados, assim como todos os ingleses que estavam sob alcance dos rebeldes foram assassinados. Marx, no entanto, não está iludido com o fu tu ro dessa revo l ta e p revê que independentemente dos obstáculos, os rebeldes em Delhi sucumbiriam sem resistência prolongada – “trata-se do prólogo de uma tragédia mais terrível que será

32decretada”.Em The Revolt in India, de 8 de junho de 1857,

havia passado um mês que Delhi estava tomada pelos cipaios e Marx considerava como precipitado afirmar que os rebeldes manteriam a velha capital da Índia contra a forças britânicas. O único ponto questionável, nessa ocasião, era a lentidão das operações britânicas – que poderiam ser explicadas em certo nível pelos horrores da estação e pela necessidade de meios de transporte.

Os excessos cometidos pelos cipaios revoltosos na Índia de fato são considerados como apavorantes, horríveis e indescritíveis – tal qual apenas se é esperado encontrar em guerras de insurreições, de nacionalidades,

28Idem, p.74.29Idem, p.76.30Idem, p.76.

31Idem, p.76 -77.32Idem, p.78.

de raças e, sobretudo, de religião. Em The Indian Revolt de setembro de 1857, Marx afirma que:

Embora seja infame a conduta dos cipaios, é apenas o reflexo, de forma concentrada, da própria conduta da Inglaterra na Índia, não somente na época da fundação do Império Oriental, mas durante os dez anos de longo estabelecimento de sua dominação. Para caracterizar tal dominação, é suficiente dizer que a tortura formou uma instituição orgânica na prática de cobrança financeira. Há na história humana algo como a retribuição; e é regra da retribuição histórica que seus instrumentos sejam forjados não pelos

33ofendidos, mas pelos próprios ofensores.

Marx denuncia as atrocidades britânicas na Índia, como o uso da tortura como meio de cobrança tributária. Esse posicionamento se caracteriza por denunciar a dominação inglesa como justificativa da revolta no exército indiano. A revolta indiana não começa com os camponeses, torturados, desonrados, e despidos pelos britânicos, mas com os cipaios, vestidos, alimentados, afagados, engordados e mimados por eles. Para encontrar paralelos às atrocidades dos cipaios, não é necessário, como os jornais ingleses apontam, segundo Marx, retornar à Idade Média, não é preciso ir além da Inglaterra contemporânea. Os soldados ingleses cometeram abominações apenas por diversão; suas paixões não foram nem santificadas pelo fanatismo religioso, nem provocadas por uma resistência externa ou por um inimigo heróico. Marx considera como grave erro supor que toda a crueldade está do lado dos cipaios, enquanto todo o leite da gentileza humana flui no lado da Inglaterra – “os reguladores britânicos não são tais benfeitores do povo indiano como gostariam que o

34mundo acreditasse”.

Ainda em setembro de 1857, o NYDT publica Investigation of Tortures in India. Marx, aqui, busca a partir do relatório da Comissão de Torturas de Madras, expor as condições através das quais as torturas se davam na Índia por parte dos ingleses. Nesse relatório, estabelece-se que diversas pessoas eram anualmente submetidas à violência por cobranças criminais, assim como por não pagamento de impostos.

A existência universal da tortura como instituição financeira da Índia sob domínio britânico é oficialmente admitida, mas essa admissão foi feita de tal forma que funcionou como proteção do governo britânico de si mesmo. Marx afirma que a conclusão alcançada pela Comissão de Madras é que a prática da tortura fora inteiramente culpa dos baixos oficiais hindus, enquanto os servidores ingleses do governo tiveram sempre, embora sem sucesso, feito o seu melhor para

35 preveni-la. Marx tenta nesse artigo mostrar um capítulo breve sobre a real história da dominação britânica na Índia. Ao observar tais fatos, um homem racional poderia talvez ser induzido a se perguntar se um povo não está justificado na tentativa de expulsar os conquistadores estrangeiros que abusaram de seus súditos – “se os

ingleses puderam fazer tais coisas a sangue frio, é surpreendente que os insurgentes hindus sejam culpados, na fúria da revolta e do conflito, dos crimes e crueldades

36 alegados contra eles?”. Engels afirma não existir na Europa ou na América um exército tão brutal quanto o britânico – “pilhagens, violência, massacre – coisas que em todo lugar são estritamente e completamente banidas – são privilégios honrados, investidos de justiça pelos

37soldados ingleses”.Marx se coloca a seguinte questão, em British

Incomes in India de setembro de 1857 – “qual é o real valor da dominação indiana para a nação e povo

38 britânico?”. Diretamente, esse valor está na forma de tributos, de excedentes das receitas indianas sobre as despesas indianas, absolutamente nada que atinja o

39 Tesouro Britânico. Desde o momento em que a Companhia das Índias Orientais entrou extensivamente na ocupação da conquista, suas fianças caíram numa condição perplexa, e eles foram repetidamente compelidos a solicitar o Parlamento, não somente para ajuda militar para assisti-los na conquista de territórios,

40 mas para ajuda financeira para salvá-los da falência. É evidente, portanto, para Marx, que a vantagem da Inglaterra frente a seu Império Indiano deva ser limitada aos lucros e benefícios gerados à sujeitos britânicos individuais – lucros e benefícios intensamente

41consideráveis.Nesse sentido, identifica-se no discurso de Marx

e Engels a protagonização de uma análise do conflito social. Quando o conflito ganha as ruas na Índia, a ideia de progresso é abandonada.

ConclusãoMarx e Engels simpatizaram com a insurreição

do exército indiano, mas anteviram também seu fracasso, devido à ausência na sociedade indiana do que Engels chamou de “elemento científico”, que inclui os aspectos básicos dos movimentos liberais modernos: uma liderança política centralizada e um comando militar

42unificado. A real mudança no pensamento de Marx ao longo desse período consistiu no fato de ele ter se tornado notavelmente menos entusiasta do papel “inconsciente” do colonialismo. No período em que começou a formular a genesis do capitalismo industrial em O Capital, Marx apenas mencionou as pilhagens na Índia e as conectou com o papel central da colonização no processo da acumulação primitiva. Quando os resultados da colonização passaram a ser de seu conhecimento, Marx abandona suas esperanças de que o colonialismo pudesse desempenhar um papel “construtivo”, como fica claro na carta à Danielson em 1881:

Na Índia preparam-se sérias complicações, se não mesmo uma erupção geral, para o Governo britânico. Aquilo que os ingleses lhe roubam todos

33Idem, p.82.34Idem, p.86. 35Idem, p.87.

36Idem, p.90.37ENGELS, op. cit., p.98.38MARX, op. cit., p.91.39Idem, p.91.40Idem, p.91.41Idem, p.91.42AHMAD, op. cit., p.19.

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outro, para criar os meios para o desenvolvimento das forças produtivas do homem e a transformação da produção material em uma dominação científica

28sobre as forças da natureza.

Assim, a partir desses dois artigos publicados no Tribune em 1853, fica claro como a abordagem de Marx sobre a dominação colonial europeia na Índia se desenvolve atrelado a uma posição mais próxima de uma filosofia da história. No entanto, a partir de 1857, a argumentação de Marx e Engels sobre a questão indiana sofre uma mudança completa, como será analisado no item seguinte.

A Guerra dos Cipaios Em The Revolt in the Indian Army, publicado no

NYDT em 15 de julho de 1857, Marx continua a considerar a unidade política na Índia como o princípio vital da supremacia britânica, isto é, o antagonismo das várias raças, tribos, castas, crenças e nacionalidades – o agregado que forma a sua unidade geográfica. As condições de tal supremacia, entretanto, haviam se alterado e o império anglo-indiano havia não somente alcançado seus limites naturais, como havia esmagado os últimos vestígios de independência dos Estados Indianos

29com a conquista de “Scinde e de Punjab”.

Com isso, os exércitos não deveriam mais buscar estender o domínio britânico, mas deveriam simplesmente mantê-lo. Com isso, os soldados passam a exercer a função de policiais. Marx elucida esse contexto com dados do período: consistiam em 200 milhões de nativos sendo controlados por 200 mil homens, que eram comandados por ingleses; e o exército nativo, por sua vez, sendo mantido apenas por 40 mil ingleses. À primeira vista, era evidente para Marx que a fidelidade do povo indiano se assentasse na fidelidade do exército nativo, ou seja, na criação do que a Inglaterra simultaneamente organizou como o primeiro centro geral de resistência

30que o povo indiano jamais havia possuído.

Em que medida o exército nativo poderia ser considerado como “confiável” ficou claramente apontado através dos motins que irromperam tão rápido quanto a guerra da Pérsia que quase despiu a presidência de Bengali de seus soldados europeus. A mudança na argumentação de Marx e de sua interpretação acerca da dominação britânica na Índia se dá a partir de suas análises sobre essa revolta, pois para o autor é:

A primeira vez que regimentos cipaios assassinam seus comandantes europeus; que muçulmanos e hindus renunciam a mutuais antipatias e se combinam contra seus mestres comuns; que 'distúrbios iniciados com os Hindus terminam colocando no trono de Delhi um imperador muçulmano'; que o motim não ficou restrito à poucas localidades; e finalmente, que uma revolta no exército anglo-indiano coincide com uma desafeição geral exibida contra a supremacia inglesa na parte das grandes nações Asiáticas. A revolta do exército bengalês está, sem dúvida, intimamente

31conectada com as guerras persa e chinesa.

Antes disso já haviam existido motins no exército indiano, mas para Marx tal revolta é distinta por suas feições fatais. A alegada causa de desafeição, difundida nos quatro meses anteriores à revolta do exército bengalês fora a apreensão necessária aos nativos, a fim de não permitir que o governo britânico continuasse a interferir em suas religiões. A situação critica que se desencadearia com a Guerra dos Cipaios se caracterizava por combinar motivações de cunho religioso à questão militar.

No dia 22 de janeiro de 1857, o fogo incendiário arrebentou nos postos militares próximos à Calcutá, e em 25 do mesmo mês, o 19º Regimento Nativo amotinou-se em Berhampore. Em fins de março, tal regimento debandou e o Regimento Cipaio localizado em Barrackpore permitiu que um de seus homens avançasse com um mosquete carregado à frente da linha do campo de batalha e após chamar seus camaradas para o motim, foi permitido a ele que atacasse e golpeasse o Ajudante e Sargento-Maior de seu regimento. Ao longo do conflito, milhares de cipaios observaram passivamente, enquanto outros participavam da luta e atacavam os oficiais com seus mosquetes. Subsequentemente, o Regimento Cipaio também debandou. O mês de abril foi marcado por fogos incendiários em diversos postos militares do exército bengalês em Allahabad, Agra e Ambala, por um motim do 3º Regimento da Cavalaria em Meerut, e por aparências similares de desafeição nos exércitos de Madras e Bombay.

Embora a parte britânica da brigada envolvesse um regimento de infantaria, outro de cavalaria, e uma opressiva força de artilharia de cavalos e pés, ela não conseguiu se movimentar antes do anoitecer. Tendo conferido pouco dano aos rebeldes, a parte britânica permitiu que eles se direcionassem para o campo aberto e para Delhi. Em Delhi, eles se juntaram a outros três regimentos de infantaria, e a uma companhia de artilharia nativa – oficiais britânicos foram atacados, assim como todos os ingleses que estavam sob alcance dos rebeldes foram assassinados. Marx, no entanto, não está iludido com o fu tu ro dessa revo l ta e p revê que independentemente dos obstáculos, os rebeldes em Delhi sucumbiriam sem resistência prolongada – “trata-se do prólogo de uma tragédia mais terrível que será

32decretada”.Em The Revolt in India, de 8 de junho de 1857,

havia passado um mês que Delhi estava tomada pelos cipaios e Marx considerava como precipitado afirmar que os rebeldes manteriam a velha capital da Índia contra a forças britânicas. O único ponto questionável, nessa ocasião, era a lentidão das operações britânicas – que poderiam ser explicadas em certo nível pelos horrores da estação e pela necessidade de meios de transporte.

Os excessos cometidos pelos cipaios revoltosos na Índia de fato são considerados como apavorantes, horríveis e indescritíveis – tal qual apenas se é esperado encontrar em guerras de insurreições, de nacionalidades,

28Idem, p.74.29Idem, p.76.30Idem, p.76.

31Idem, p.76 -77.32Idem, p.78.

de raças e, sobretudo, de religião. Em The Indian Revolt de setembro de 1857, Marx afirma que:

Embora seja infame a conduta dos cipaios, é apenas o reflexo, de forma concentrada, da própria conduta da Inglaterra na Índia, não somente na época da fundação do Império Oriental, mas durante os dez anos de longo estabelecimento de sua dominação. Para caracterizar tal dominação, é suficiente dizer que a tortura formou uma instituição orgânica na prática de cobrança financeira. Há na história humana algo como a retribuição; e é regra da retribuição histórica que seus instrumentos sejam forjados não pelos

33ofendidos, mas pelos próprios ofensores.

Marx denuncia as atrocidades britânicas na Índia, como o uso da tortura como meio de cobrança tributária. Esse posicionamento se caracteriza por denunciar a dominação inglesa como justificativa da revolta no exército indiano. A revolta indiana não começa com os camponeses, torturados, desonrados, e despidos pelos britânicos, mas com os cipaios, vestidos, alimentados, afagados, engordados e mimados por eles. Para encontrar paralelos às atrocidades dos cipaios, não é necessário, como os jornais ingleses apontam, segundo Marx, retornar à Idade Média, não é preciso ir além da Inglaterra contemporânea. Os soldados ingleses cometeram abominações apenas por diversão; suas paixões não foram nem santificadas pelo fanatismo religioso, nem provocadas por uma resistência externa ou por um inimigo heróico. Marx considera como grave erro supor que toda a crueldade está do lado dos cipaios, enquanto todo o leite da gentileza humana flui no lado da Inglaterra – “os reguladores britânicos não são tais benfeitores do povo indiano como gostariam que o

34mundo acreditasse”.

Ainda em setembro de 1857, o NYDT publica Investigation of Tortures in India. Marx, aqui, busca a partir do relatório da Comissão de Torturas de Madras, expor as condições através das quais as torturas se davam na Índia por parte dos ingleses. Nesse relatório, estabelece-se que diversas pessoas eram anualmente submetidas à violência por cobranças criminais, assim como por não pagamento de impostos.

A existência universal da tortura como instituição financeira da Índia sob domínio britânico é oficialmente admitida, mas essa admissão foi feita de tal forma que funcionou como proteção do governo britânico de si mesmo. Marx afirma que a conclusão alcançada pela Comissão de Madras é que a prática da tortura fora inteiramente culpa dos baixos oficiais hindus, enquanto os servidores ingleses do governo tiveram sempre, embora sem sucesso, feito o seu melhor para

35 preveni-la. Marx tenta nesse artigo mostrar um capítulo breve sobre a real história da dominação britânica na Índia. Ao observar tais fatos, um homem racional poderia talvez ser induzido a se perguntar se um povo não está justificado na tentativa de expulsar os conquistadores estrangeiros que abusaram de seus súditos – “se os

ingleses puderam fazer tais coisas a sangue frio, é surpreendente que os insurgentes hindus sejam culpados, na fúria da revolta e do conflito, dos crimes e crueldades

36 alegados contra eles?”. Engels afirma não existir na Europa ou na América um exército tão brutal quanto o britânico – “pilhagens, violência, massacre – coisas que em todo lugar são estritamente e completamente banidas – são privilégios honrados, investidos de justiça pelos

37soldados ingleses”.Marx se coloca a seguinte questão, em British

Incomes in India de setembro de 1857 – “qual é o real valor da dominação indiana para a nação e povo

38 britânico?”. Diretamente, esse valor está na forma de tributos, de excedentes das receitas indianas sobre as despesas indianas, absolutamente nada que atinja o

39 Tesouro Britânico. Desde o momento em que a Companhia das Índias Orientais entrou extensivamente na ocupação da conquista, suas fianças caíram numa condição perplexa, e eles foram repetidamente compelidos a solicitar o Parlamento, não somente para ajuda militar para assisti-los na conquista de territórios,

40 mas para ajuda financeira para salvá-los da falência. É evidente, portanto, para Marx, que a vantagem da Inglaterra frente a seu Império Indiano deva ser limitada aos lucros e benefícios gerados à sujeitos britânicos individuais – lucros e benefícios intensamente

41consideráveis.Nesse sentido, identifica-se no discurso de Marx

e Engels a protagonização de uma análise do conflito social. Quando o conflito ganha as ruas na Índia, a ideia de progresso é abandonada.

ConclusãoMarx e Engels simpatizaram com a insurreição

do exército indiano, mas anteviram também seu fracasso, devido à ausência na sociedade indiana do que Engels chamou de “elemento científico”, que inclui os aspectos básicos dos movimentos liberais modernos: uma liderança política centralizada e um comando militar

42unificado. A real mudança no pensamento de Marx ao longo desse período consistiu no fato de ele ter se tornado notavelmente menos entusiasta do papel “inconsciente” do colonialismo. No período em que começou a formular a genesis do capitalismo industrial em O Capital, Marx apenas mencionou as pilhagens na Índia e as conectou com o papel central da colonização no processo da acumulação primitiva. Quando os resultados da colonização passaram a ser de seu conhecimento, Marx abandona suas esperanças de que o colonialismo pudesse desempenhar um papel “construtivo”, como fica claro na carta à Danielson em 1881:

Na Índia preparam-se sérias complicações, se não mesmo uma erupção geral, para o Governo britânico. Aquilo que os ingleses lhe roubam todos

33Idem, p.82.34Idem, p.86. 35Idem, p.87.

36Idem, p.90.37ENGELS, op. cit., p.98.38MARX, op. cit., p.91.39Idem, p.91.40Idem, p.91.41Idem, p.91.42AHMAD, op. cit., p.19.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (45-51) A Índia na obra de Marx e Engels: entre a filosofia da história e a política

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os anos sob a forma de rendas, dividendos dos caminhos de ferro sem utilidade para os hindus; para as pensões dos funcionários civis e militares; para a guerra do Afeganistão e para outras guerras, etc., etc., aquilo que lhes roubam sem qualquer compensação e muito para além daquilo de que se apropriam em seu próprio benefício, no decorrer do ano, no interior da Índia – falando apenas do calor das mercadorias que os indianos dão gratuita e anualmente para serem mandadas para a Inglaterra – ascende a mais do que a soma total dos salários anuais dos 60 milhões de trabalhadores agrícolas e industriais da Índia! Isto é um processo

43de extorsão desenfreada!

São notáveis três importantes expectativas em Marx – uma revolução socialista na Inglaterra, uma revolução nacionalista na Índia e o aniquilamento do sistema de castas – como pré-condições para “as massas” começassem a colher qualquer “benefício dos novos

44 elementos da sociedade”. Esses novos elementos da sociedade foram adquiridos através do capitalismo colonial – a dominação do capital na Índia se torna clara através da fixação em seu território da Companhia das Índias Orientais.

Marx e Engels passam a conceber também um programa político no que tange à independência da Índia. Com o passar dos anos e ao observar os desenvolvimentos da própria Inglaterra, Marx se volta mais para a visão de que as forças que liberariam a Índia

45estavam se desenvolvendo em seu próprio território. Esse aspecto se torna claro em uma carta de Engels escrita a Kautsky em 12 de setembro de 1882:

Perguntou-me o que pensam os operários ingleses da política colonial. Ora, exatamente o mesmo que pensam da política em geral: o mesmo que os burgueses pensam. Sabe que aqui não existe um partido operário: há apenas conservadores e liberais-radicais, e os operários partilham alegremente no festim do monopólio da Inglaterra no mercado mundial e nas colônias. Em minha opinião, as colônias propriamente ditas, isto é, os países ocupados por uma população europeia – o Canadá, o Cabo, a Austrália – tornar-se-ão independentes; por outro lado, os países habitados por uma população nativa, que estão simplesmente subjugados – a Índia, a Argélia, as possessões holandesas, espanholas e portuguesas –, tomarão a iniciativa, e o proletariado, quando chegar a altura, conduzi-los-á tão rapidamente quanto possível para a independência. O modo como este processo se desenvolverá é difícil de prever. Talvez, e muito provavelmente, a Índia venha a fazer uma revolução, mas como o proletariado, que se encontra num processo de autoemancipação, não pode envolver-se em quaisquer guerras coloniais, ela terá que seguir o seu curso; é evidente que isto não acontecerá sem que haja toda a espécie de destruições, mas estas coisas são inseparáveis de

46todas as revoluções.

43MARX, op. cit., p.212.44Id., 2001, p. 20.45CHOPRA, Suneet. The Approach of Karl Marx to the Study of Indian Society. Social Scientist, Vol.11, n.° 3, Marx Centenary Number, Março1983, p.70.

46ENGELS, op. cit., p216.47CHOPRA, op. cit., p.71.48Idem., p.71.49Idem., p.72.50BENSAÏD, op. cit., p.38.51Idem., p. 38.52Idem., p.41.53Idem, p.43.54Idem., p.44.

Depara-se aqui com uma figura distinta daquela generalizadamente associada à abordagem marxista

47 como eurocêntrica no que se refere à questão colonial. É exatamente porque Marx e Engels viram a interconexão e interdependência entre o conflito do povo colonial por independência e o estabelecimento do socialismo na Europa, que eram não somente simpáticos às irrupções dos povos coloniais, mas também estudiosos dos motins que tomaram lugar com grande prudência e também de modo cada vez mais profundo de acordo com o que os fatos contemporâneos permitiram. De fato, não seria errado dizer que o alcance da condição colonial em Marx e Engels estava também em posição de vantagem em relação aos analistas acadêmicos, que os seguiram por

48 mais de meio século. É precisamente com a base de informações econômicas, militares, topográficas, climáticas, sociológicas e políticas que Marx e Engels foram capazes não só de organizar compreensivelmente a realidade de 1857, como também puderam mostrar suas

49interconexões com os desenvolvimentos internacionais.A história em Marx universaliza-se não porque

tenda à realização de sua Ideia ou porque seja aspirada para um fim de onde tiraria retrospectivamente sua unidade significativa, mas sim, pura e simplesmente, em

50 função de um processo de universalização efetiva.Desde 1847, Marx já tinha virado a página da História universal tão do agrado da filosofia especulativa. Consciente do que rejeitou, ele o é igualmente da tarefa que resulta disso – “nada menos do que a invenção de

51uma outra escrita da história. A contradição presente nos textos marx-engelsianos, o contratempo, é o modo real da história, e a política é exatamente o encontro entre

52 esses pontos discordes. O desenvolvimento desigual entre as esferas sociais, jurídicas e culturais obriga a pensar um progresso que não seja nem automático nem

53 uniforme – “a história não é um longo rio tranquilo”. A história não é de modo algum universal por natureza e em todo o tempo. Ela se torna universal por um processo de universalização real e somente então pode começar a ser

54pensada como universalidade em devir.

Buscar um melhor entendimento da obra de Marx e Engels não implica em fragmentá-la, mas em assumi-la em sua completude. A questão colonial indiana torna clara a oscilação entre a filosofia da história alemã e a ciência empírica inglesa. A mudança de posição e o afastamento de uma visada eurocêntrica estão claramente apontados em seus escritos quando a partir de 1857 passam a privilegiar a política e a representação histórica do conflito social.

Artigo recebido em 17.2.2012Aprovado em 30.5.2012

A Índia na obra de Marx e Engels: entre a filosofia da história e a política - 51História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (51-56)

Representação dos oprimidos nas sociedades1

pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

*Mário Maestri

m O escravismo colonial, Jacob Gorender lembra que o trabalhador escravizado ocupou, nas ciências sociais, antes da Abolição e décadas após ela, em forma mais ou menos completa, status correspondente à situação social que conhecera na escravidão. Sempre foi abismal a discrepância entre o papel social objetivo do cativo na antiga formação social brasileira e as representações sobre ele. Essa assertiva pode ser estendida à pré-história e à proto-história da

2historiografia brasileira.Foi igualmente profunda a desqualificação do

trabalhador escravizado na historiografia lusitana, que rara e escassamente referiu-se à contribuição do negro-africano escravizado e à importância do tráfico negreiro na história de Portugal. É sintomático que as duas obras de referência sobre o tema, Os negros em Portugal: uma presença silenciosa, e História social dos escravos e libertos negros em Portugal: 1441-1555, foram escritas, respectivamente, por um brasileiro, José Ramos

3Tinhorão, e por um inglês, A.C. de C.M. Saunders.As narrativas historiográficas brasileiras, até

praticamente os anos 1960, e lusitanas, até há poucos anos, desconheceram ou minimizaram a contribuição do trabalhador escravizado nas respectivas formações sociais. Paradoxo que se agrava no caso do Brasil, onde o papel social objetivo do cativo, primeiro americano, a seguir negro-africano, foi essencial. Mesmo quando participa nas reconstruções historiográficas lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras tradicionais, o cativo é no geral por elas explicado, sem jamais as explicar. Quando muito, como já foi dito, surge como uma espécie de figurante mudo de um drama que jamais protagoniza.

Facilmente observável na historiografia, esse fenômeno foi mais ou menos comum a praticamente todos os outros grandes domínios de expressão da cultura lusitana, luso-brasileira e brasileira – ficção em prosa; ficção em verso; dramaturgia; artes plásticas; música; sociologia; arqueologia; arquitetura, etc. Nos fatos, tratou-se de fenômeno cultural unitário, articulado no

E

1Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni, do curso de Letras da UFRGS.*Doutor em história pela Université Catolique de Louvain, professor titular do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. E-mail: [email protected], Jacob. O escravismo colonial. 6 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2011. p. 10.3TINHORÃO, José Ramos. O negro em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988; SAUNDERS, A.C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. [Ed. orig. University of Cambridge, 1982.]

tempo e no espaço. No relativo ao Brasil, exemplificam tal fenômeno os fatos de que não tenhamos, até hoje, romances históricos clássicos sobre a escravidão e que quase inexistam levantamentos arqueológicos sistemáticos referentes ao escravismo – de quilombos, de

4senzalas, de charqueadas, de “cemitérios de negros”, etc.

No Brasil, até a Abolição, em 1888, as representações sobre a escravidão foram essencialmente justificações ideológico-culturais de realidades sociais pré-existentes e existentes, produto de processo no qual, através de mediações mais ou menos complexas, as práticas sociais organizam em forma tendencial o mundo das representações sociais. Sobre esse processo, lembravam os lingüistas soviéticos M. Bakhtine e V. Volochinov: “A realidade ideológica é uma superestrutura situada diretamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um locatário habitando o edifício social dos signos

5ideológicos.”

A representação e o representadoAs representações descrevem determinações

essenciais ou arranham a superfície do fenômeno representado? “Um signo não existe apenas como parte da realidade, ele reflete uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser fiel a ela, ou ainda a perceber de um

6ponto de vista especial, etc.” Porém, no mundo das expressões ideológicas, as distorções entre o ser e sua representação não são arbitrárias, mas prenhes de conteúdos, mais ou menos substancialmente ligados à essência negada. No domínio de contradições sociais antagônicas, as narrativas textuais, orais e escritas, registrando representações ideológicas hegemônicas, expressam, refletem e consolidam as relações sociais dominantes, possuindo funções justificadoras, solidificadoras e integradoras.

As representações dominantes sobre a ordem escravista expressavam as necessidades das classes escravizadoras de subordinarem os produtores escravizados. Eram visões de mundo interpretando as necessidades de produção e reprodução das relações

4CONFORTO, Marília. O escravo de papel: O quotidiano escravista no romance brasileiro do século XIX.. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.5BAKTHINE, Mikhail & VOLOCHINOV, V.N. Le marxisme et la philosophie du langage: essai d´application de la méthode sociologique en linguistique. Paris: Minuit, 1977. p.31. Traduzimos as citações em francês.6Idem, p.27.

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os anos sob a forma de rendas, dividendos dos caminhos de ferro sem utilidade para os hindus; para as pensões dos funcionários civis e militares; para a guerra do Afeganistão e para outras guerras, etc., etc., aquilo que lhes roubam sem qualquer compensação e muito para além daquilo de que se apropriam em seu próprio benefício, no decorrer do ano, no interior da Índia – falando apenas do calor das mercadorias que os indianos dão gratuita e anualmente para serem mandadas para a Inglaterra – ascende a mais do que a soma total dos salários anuais dos 60 milhões de trabalhadores agrícolas e industriais da Índia! Isto é um processo

43de extorsão desenfreada!

São notáveis três importantes expectativas em Marx – uma revolução socialista na Inglaterra, uma revolução nacionalista na Índia e o aniquilamento do sistema de castas – como pré-condições para “as massas” começassem a colher qualquer “benefício dos novos

44 elementos da sociedade”. Esses novos elementos da sociedade foram adquiridos através do capitalismo colonial – a dominação do capital na Índia se torna clara através da fixação em seu território da Companhia das Índias Orientais.

Marx e Engels passam a conceber também um programa político no que tange à independência da Índia. Com o passar dos anos e ao observar os desenvolvimentos da própria Inglaterra, Marx se volta mais para a visão de que as forças que liberariam a Índia

45estavam se desenvolvendo em seu próprio território. Esse aspecto se torna claro em uma carta de Engels escrita a Kautsky em 12 de setembro de 1882:

Perguntou-me o que pensam os operários ingleses da política colonial. Ora, exatamente o mesmo que pensam da política em geral: o mesmo que os burgueses pensam. Sabe que aqui não existe um partido operário: há apenas conservadores e liberais-radicais, e os operários partilham alegremente no festim do monopólio da Inglaterra no mercado mundial e nas colônias. Em minha opinião, as colônias propriamente ditas, isto é, os países ocupados por uma população europeia – o Canadá, o Cabo, a Austrália – tornar-se-ão independentes; por outro lado, os países habitados por uma população nativa, que estão simplesmente subjugados – a Índia, a Argélia, as possessões holandesas, espanholas e portuguesas –, tomarão a iniciativa, e o proletariado, quando chegar a altura, conduzi-los-á tão rapidamente quanto possível para a independência. O modo como este processo se desenvolverá é difícil de prever. Talvez, e muito provavelmente, a Índia venha a fazer uma revolução, mas como o proletariado, que se encontra num processo de autoemancipação, não pode envolver-se em quaisquer guerras coloniais, ela terá que seguir o seu curso; é evidente que isto não acontecerá sem que haja toda a espécie de destruições, mas estas coisas são inseparáveis de

46todas as revoluções.

43MARX, op. cit., p.212.44Id., 2001, p. 20.45CHOPRA, Suneet. The Approach of Karl Marx to the Study of Indian Society. Social Scientist, Vol.11, n.° 3, Marx Centenary Number, Março1983, p.70.

46ENGELS, op. cit., p216.47CHOPRA, op. cit., p.71.48Idem., p.71.49Idem., p.72.50BENSAÏD, op. cit., p.38.51Idem., p. 38.52Idem., p.41.53Idem, p.43.54Idem., p.44.

Depara-se aqui com uma figura distinta daquela generalizadamente associada à abordagem marxista

47 como eurocêntrica no que se refere à questão colonial. É exatamente porque Marx e Engels viram a interconexão e interdependência entre o conflito do povo colonial por independência e o estabelecimento do socialismo na Europa, que eram não somente simpáticos às irrupções dos povos coloniais, mas também estudiosos dos motins que tomaram lugar com grande prudência e também de modo cada vez mais profundo de acordo com o que os fatos contemporâneos permitiram. De fato, não seria errado dizer que o alcance da condição colonial em Marx e Engels estava também em posição de vantagem em relação aos analistas acadêmicos, que os seguiram por

48 mais de meio século. É precisamente com a base de informações econômicas, militares, topográficas, climáticas, sociológicas e políticas que Marx e Engels foram capazes não só de organizar compreensivelmente a realidade de 1857, como também puderam mostrar suas

49interconexões com os desenvolvimentos internacionais.A história em Marx universaliza-se não porque

tenda à realização de sua Ideia ou porque seja aspirada para um fim de onde tiraria retrospectivamente sua unidade significativa, mas sim, pura e simplesmente, em

50 função de um processo de universalização efetiva.Desde 1847, Marx já tinha virado a página da História universal tão do agrado da filosofia especulativa. Consciente do que rejeitou, ele o é igualmente da tarefa que resulta disso – “nada menos do que a invenção de

51uma outra escrita da história. A contradição presente nos textos marx-engelsianos, o contratempo, é o modo real da história, e a política é exatamente o encontro entre

52 esses pontos discordes. O desenvolvimento desigual entre as esferas sociais, jurídicas e culturais obriga a pensar um progresso que não seja nem automático nem

53 uniforme – “a história não é um longo rio tranquilo”. A história não é de modo algum universal por natureza e em todo o tempo. Ela se torna universal por um processo de universalização real e somente então pode começar a ser

54pensada como universalidade em devir.

Buscar um melhor entendimento da obra de Marx e Engels não implica em fragmentá-la, mas em assumi-la em sua completude. A questão colonial indiana torna clara a oscilação entre a filosofia da história alemã e a ciência empírica inglesa. A mudança de posição e o afastamento de uma visada eurocêntrica estão claramente apontados em seus escritos quando a partir de 1857 passam a privilegiar a política e a representação histórica do conflito social.

Artigo recebido em 17.2.2012Aprovado em 30.5.2012

A Índia na obra de Marx e Engels: entre a filosofia da história e a política - 51História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (51-56)

Representação dos oprimidos nas sociedades1

pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

*Mário Maestri

m O escravismo colonial, Jacob Gorender lembra que o trabalhador escravizado ocupou, nas ciências sociais, antes da Abolição e décadas após ela, em forma mais ou menos completa, status correspondente à situação social que conhecera na escravidão. Sempre foi abismal a discrepância entre o papel social objetivo do cativo na antiga formação social brasileira e as representações sobre ele. Essa assertiva pode ser estendida à pré-história e à proto-história da

2historiografia brasileira.Foi igualmente profunda a desqualificação do

trabalhador escravizado na historiografia lusitana, que rara e escassamente referiu-se à contribuição do negro-africano escravizado e à importância do tráfico negreiro na história de Portugal. É sintomático que as duas obras de referência sobre o tema, Os negros em Portugal: uma presença silenciosa, e História social dos escravos e libertos negros em Portugal: 1441-1555, foram escritas, respectivamente, por um brasileiro, José Ramos

3Tinhorão, e por um inglês, A.C. de C.M. Saunders.As narrativas historiográficas brasileiras, até

praticamente os anos 1960, e lusitanas, até há poucos anos, desconheceram ou minimizaram a contribuição do trabalhador escravizado nas respectivas formações sociais. Paradoxo que se agrava no caso do Brasil, onde o papel social objetivo do cativo, primeiro americano, a seguir negro-africano, foi essencial. Mesmo quando participa nas reconstruções historiográficas lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras tradicionais, o cativo é no geral por elas explicado, sem jamais as explicar. Quando muito, como já foi dito, surge como uma espécie de figurante mudo de um drama que jamais protagoniza.

Facilmente observável na historiografia, esse fenômeno foi mais ou menos comum a praticamente todos os outros grandes domínios de expressão da cultura lusitana, luso-brasileira e brasileira – ficção em prosa; ficção em verso; dramaturgia; artes plásticas; música; sociologia; arqueologia; arquitetura, etc. Nos fatos, tratou-se de fenômeno cultural unitário, articulado no

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1Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni, do curso de Letras da UFRGS.*Doutor em história pela Université Catolique de Louvain, professor titular do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. E-mail: [email protected], Jacob. O escravismo colonial. 6 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2011. p. 10.3TINHORÃO, José Ramos. O negro em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988; SAUNDERS, A.C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. [Ed. orig. University of Cambridge, 1982.]

tempo e no espaço. No relativo ao Brasil, exemplificam tal fenômeno os fatos de que não tenhamos, até hoje, romances históricos clássicos sobre a escravidão e que quase inexistam levantamentos arqueológicos sistemáticos referentes ao escravismo – de quilombos, de

4senzalas, de charqueadas, de “cemitérios de negros”, etc.

No Brasil, até a Abolição, em 1888, as representações sobre a escravidão foram essencialmente justificações ideológico-culturais de realidades sociais pré-existentes e existentes, produto de processo no qual, através de mediações mais ou menos complexas, as práticas sociais organizam em forma tendencial o mundo das representações sociais. Sobre esse processo, lembravam os lingüistas soviéticos M. Bakhtine e V. Volochinov: “A realidade ideológica é uma superestrutura situada diretamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um locatário habitando o edifício social dos signos

5ideológicos.”

A representação e o representadoAs representações descrevem determinações

essenciais ou arranham a superfície do fenômeno representado? “Um signo não existe apenas como parte da realidade, ele reflete uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser fiel a ela, ou ainda a perceber de um

6ponto de vista especial, etc.” Porém, no mundo das expressões ideológicas, as distorções entre o ser e sua representação não são arbitrárias, mas prenhes de conteúdos, mais ou menos substancialmente ligados à essência negada. No domínio de contradições sociais antagônicas, as narrativas textuais, orais e escritas, registrando representações ideológicas hegemônicas, expressam, refletem e consolidam as relações sociais dominantes, possuindo funções justificadoras, solidificadoras e integradoras.

As representações dominantes sobre a ordem escravista expressavam as necessidades das classes escravizadoras de subordinarem os produtores escravizados. Eram visões de mundo interpretando as necessidades de produção e reprodução das relações

4CONFORTO, Marília. O escravo de papel: O quotidiano escravista no romance brasileiro do século XIX.. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.5BAKTHINE, Mikhail & VOLOCHINOV, V.N. Le marxisme et la philosophie du langage: essai d´application de la méthode sociologique en linguistique. Paris: Minuit, 1977. p.31. Traduzimos as citações em francês.6Idem, p.27.

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sociais escravistas. Estavam ligadas diretamente às condições gerais de produção e reprodução da existência que lhes deram origem. As representações do trabalhador escravizado negro-africano, registradas pela pré-historiografia, proto-historiografia e historiografia lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras abarcam mais de quinhentos e cinqüenta anos, se tomamos como marco inicial da gênese desse discurso a chegada dos primeiros negro-africanos em Portugal, em 1444. Um período cronológico cem anos mais longo do que a vigência da ordem escravista brasileira, com início em 1532 e fim em

71888.

De 1444 até os dias de hoje, as formações sociais portuguesa, luso-brasileira e brasileira conhecerem transformações políticas e sociais de qualidade. Classes dominantes e dominadas surgiram, desenvolveram-se, entraram em crise, extinguiram-se, metamorfosearam-se, gerando novas representações ideológicas sobre as novas formas dominantes de trabalho. Paradoxalmente, a análise da produção historiográfica, daquela primeira data até hoje, demonstra, na aparente descontinuidade, profunda unidade essencial e, até mesmo, formal, das narrativas sobre o cativo e sobre a escravidão negro-africana. Mesmo quando, após 1888, o trabalhador escravizado conquistou um mais significativo espaço nessas narrativas, ele permaneceu, como já proposto, sendo explicado pelas operações interpretativas, sem jamais apoiar substancialmente estas últimas.

A profunda unidade dos relatos sobre o negro-africano e seus descendentes escravizados sugere que as aparentes metamorfoses de forma e a profunda permanência de conteúdo nasceram da solidez e permanência dos fenômenos que as produziram. Essa continuidade sugeriria a ausência de rupturas profundas das estruturas das sociedades em questão, o que determinaria ausência de transformações de forma e de conteúdo naquelas representações. Ou a eventual articulação não necessária entre o representado, o representante e a representação. O que negaria a proposta de que transformação de qualidade na organização social determinaria necessariamente modificação também

8essencial nas suas representações.

Visões de mundoA profunda homogeneidade essencial das

narrativas sobre a escravidão no referido pouco mais de meio milênio daquela instituição sugeriria domínio total das representações nascidas das classes dominantes e a incapacidade essencial das classes escravizadas de gerarem narrativas ideológico-culturais expressando suas visões de mundo e necessidades ou de criarem as condições gerais para a sua expressão por segmentos sociais exteriores a elas.

Em 1889, em O que fazer?, V.I. Lenin analisou a gênese do pensamento revolucionário como processo necessariamente exterior ao movimento operário moderno, que propunha incapaz de elevar-se, por si só, à

"consciência da oposição irredutível de seus interesses com toda a ordem política e social existente", ou seja, de alçar-se ao nível de "consciência social-democrata" [socialista revolucionária]. Para ele, a consciência revolucionária elaborada podia chegar apenas desde “fora" da classe operária. Ela seria produto de "intelectuais burgueses", que se antagonizavam teoricamente com os interesses das classes a que pertenciam ou estavam próximas, para interpretar cientificamente o mundo, desde o ponto de vista dos oprimidos, a partir das contradições econômicas e sociais

9postas pela ordem capitalista. Um processo sempre dependente da construção pelos trabalhadores das condições sociais para esse movimento genético.

Investigação histórica mais detida comprova que, desde a gênese do escravismo negro-africano, em meados do século 15, geraram-se narrativas que dissolviam essencialmente os relatos justificadores da exploração escravista. As performances argumentativas dessas representações, provenientes desde afora das classes escravizadas, aproximaram-se em forma crescentemente essencial do objeto representado, expressando as visões de mundo das classes escravizadas. No entanto, essas visões jamais alcançaram a frutificar e, sobretudo, legitimar-se como explicações performativas dos fenômenos abordados, conhecendo

10marginalização, silenciamento e esquecimento.

O sentido da aparente homogeneidade das narrativas sobre o trabalhador escravizado, durante a gênese, consolidação, crise e superação da ordem escravista é questão que não foi ainda suficientemente elucidada. Não foi igualmente discutida e explicada a contento a incapacidade das negações das justificativas do escravismo de alcançar repercussão social, mesmo secundária, desdobrando-se em genealogias explicativas.

No mundo Ibérico, a consolidação do tráfico de trabalhadores africanos escravizados pôs em questão a justiça ou a injustiça, não da escravidão como instituição, mas de sua aplicação aos negro-africanos livres capturados na costa do Continente Negro. A pré-existente servidão do mouro era compreendida como merecido castigo da derrota em “guerra justa” ou da rejeição, em conhecimento de causa, da fé verdadeira, isto é, do cristianismo. Era o justo castigo terrestre a graves ofensas

11contra o iracundo Criador.O negro-africano era um pagão, mas não um

infiel. Era um rústico que, jamais tendo conhecido a Palavra Divina, não podia ser acusado e castigado por negar-se a aceitá-la. Não pecava contra um Verbo que não se manifestara, ao não se fazer ouvir. No mínimo, devia conhecer e rejeitar a doutrina reta para, apenas então, conhecer a servidão como castigo do pecado inaceitável.

9LENIN, V.I. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1978. p. 25.10MAESTRI, Mário. Filhos de Cã, filhos do cão: o trabalhador escravizado e a historiografia. O período colonial. História: Debates e Tendências. PPGH UPF, Passo Fundo, v. 4, n. 1, p. 80-98, 2003.11MAESTRI, Mário. Mouriscos em Portugal: triste história, triste historiografia. Contra Relatos desde el Sur. Apuntes sobre Africa y Medio Oriente, II, 3. CEA-UNC, CLACSO, Córdoba, Argentina. Dic. 2006 1669-953X. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/ argentina/cea/contra/3/maestri.

7MAESTRI, Mário. O escravismo no Brasil. 8 ed. São Paulo: Atual, 2003.8BAKTHINE & VOLOCHINOV, V.N, op. cit., p. 41.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (52-57) 52 - Representação dos oprimidos nas sociedades pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

A discrepância entre teoria e realidade, entre doutrina e prática, colocava-se na plenitude de sua contradição também para a cristianíssima coroa lusitana, primeira grande envolvida e exploradora dos negócios africanos. A escravidão do negro-africano não podia ser justificada com os mesmos critérios que apoiavam a servidão do mouro.

Justificações necessáriasEm O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl

Marx lembrava que, sobre “as diferentes formas de propriedade e as condições sociais de existência levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de pensar e de concepções filosóficas, com expressões infinitamente variadas, que a classe, como um todo, cria e modela a partir de seus fundamentos

12materiais e das condições sociais correspondentes.” Com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor criatividade, as contradições − entre as justificativas consolidadas de uma forma de exploração e as realidades objetivas que a superam − geram novas construções apologéticas condizentes com as últimas, em geral a partir da adaptação dos signos e enunciações produzidos e estruturados nos discursos estabelecidos na vigência das realidades superadas. Essa transição é ainda menos dramática quando as rupturas não são essenciais, como no caso da transição da escravidão moura à negra, na qual apenas variaram a etnia e a cultura do produtor escravizado.

A produção de narrativas apologéticas não se dá em forma linear, imediata, mecânica e consciente, ainda que a consciência da necessidade dessa produção não seja jamais inexistente. A construção e a consolidação das novas justificativas processam-se através de uma seleção dos materiais existentes e da avaliação relativa de sua recepção pelos grupos sociais a que se destinam, por parte das classes que as originam. Entre os destinatários das narrativas justificadoras encontram-se em destaque os subordinados, o que exige intercomunicação entre dominados e dominadores mais ou menos limitada na escravidão. Mikhail Bakhtin lembra que “o signo e a situação social onde se insere são indissoluvelmente ligados”, sendo que o signo constitui momento de confronto permanente de “interesses sociais contraditórios”, sempre e quando as comunidades

13pertençam a uma “única comunidade semântica”.O analista desavisado pode cobrir com conteúdos

semânticos anacrônicos relatos produzidos em contextos histórico-sociais diversos. O caráter socialmente dirigido e excludente das narrativas do passado dificulta comumente a compreensão de sua funcionalidade profunda por contemporâneos habituados à enunciação de pressupostos de conteúdos universalistas e atemporais. No passado, comumente, discursos justificadores visavam às camadas sociais que reconheciam como possuidoras de essência plena, marginalizando ou ignorando, em forma mais ou menos

ampla, grupos sociais subalternizados que, mesmo fora da esfera de abrangência das narrativas, as motivavam e as determinavam.

A ordem escravista baseava-se não raro substancialmente no estabelecimento de contatos entre grupos sociais dominantes e dominados pertencentes a comunidades semióticas diversas. O que contribuiu para que a violência física constituísse fator de coesão social escravista primordial, considerando-se a baixa capacidade coesiva das narrativas ideológicas na ausência substancial da referida identidade semiótica. Para melhor consecução das necessidades dos escravizadores, impunha-se que os escravizados fossem introduzidos no campo ideológico-semiótico dos escravizadores, na medida suficiente para facilitar a produção material e a dominação social. Para tanto, reprimiam-se os códigos lingüísticos, culturais, simbólicos, religiosos, etc. dos subalternizados, em favor da extensão, sempre chã e aproximativa, do campo ideológico-semiótico dos dominadores. A dissolução e empobrecimento do universo semântico dos subalternizados eram igualmente formas de restrição de sua capacidade de resistência. A civilização do rústico era

14vetor de sua redução à barbárie.

Comunidade semiótica A construção de comunidade comunicacional

única, ainda que jamais democrática e igualitária, permitia que as narrativas dominantes abrangessem, em forma mais ou menos ampla, também as classes subalternizadas, mesmo e sobretudo quando eram objeto da desqualificação apologética. A inclusão dos excluídos nas narrativas justificadoras ampliava-se na medida em que se expandia a construção de comunidade semiótica envolvendo opressores e oprimidos. No novo contexto, a gestão ideológica dos subalternizados assumia função crescente, mesmo quando a compulsão física se

15mantivesse como essencial.

Nos mais de quinhentos anos sucessivos à captura dos primeiros negro-africanos na Costa Ocidental, as classes dominantes escravistas produziram narrativas racionalizadoras do tráfico de trabalhadores, adaptadas às flutuações históricas do longo período, até que, com a derrota do sul escravista dos EUA, em 1865, o comércio transatlântico de homens perdeu seu último apoio substantivo, impondo-se então o abolicionismo do

16 tráfico. Também a defesa dos proprietários luso-brasileiros e brasileiros do tráfico e da ordem escravista processou-se através de adaptações e metamorfoses determinadas pelo contexto histórico, até a definitiva

12MARX, Karl. Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. In. Id. Les luttes de classes en France. Suivi [...]. Paris: Gallimard, 1994. P. 211.13BAKTHINE & VOLOCHINOV, op. cit., p. 63, 43.

14CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. A Linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005. P. 57-103.15MAESTRI, Mário. A reabilitação historiográfica da ordem escravista: determinação, autonomia, totalidade e parcialidade na história. Mário Maestri; Helen Ortiz. (Org.). Grilhão negro: ensaios sobre a escravidão colonial n no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2009. p. 21-42.16MARQUES, João Pedro. Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a abolição do tráfico de escravos. Lisboa: ICS, 1999. p. 1; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975.

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sociais escravistas. Estavam ligadas diretamente às condições gerais de produção e reprodução da existência que lhes deram origem. As representações do trabalhador escravizado negro-africano, registradas pela pré-historiografia, proto-historiografia e historiografia lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras abarcam mais de quinhentos e cinqüenta anos, se tomamos como marco inicial da gênese desse discurso a chegada dos primeiros negro-africanos em Portugal, em 1444. Um período cronológico cem anos mais longo do que a vigência da ordem escravista brasileira, com início em 1532 e fim em

71888.

De 1444 até os dias de hoje, as formações sociais portuguesa, luso-brasileira e brasileira conhecerem transformações políticas e sociais de qualidade. Classes dominantes e dominadas surgiram, desenvolveram-se, entraram em crise, extinguiram-se, metamorfosearam-se, gerando novas representações ideológicas sobre as novas formas dominantes de trabalho. Paradoxalmente, a análise da produção historiográfica, daquela primeira data até hoje, demonstra, na aparente descontinuidade, profunda unidade essencial e, até mesmo, formal, das narrativas sobre o cativo e sobre a escravidão negro-africana. Mesmo quando, após 1888, o trabalhador escravizado conquistou um mais significativo espaço nessas narrativas, ele permaneceu, como já proposto, sendo explicado pelas operações interpretativas, sem jamais apoiar substancialmente estas últimas.

A profunda unidade dos relatos sobre o negro-africano e seus descendentes escravizados sugere que as aparentes metamorfoses de forma e a profunda permanência de conteúdo nasceram da solidez e permanência dos fenômenos que as produziram. Essa continuidade sugeriria a ausência de rupturas profundas das estruturas das sociedades em questão, o que determinaria ausência de transformações de forma e de conteúdo naquelas representações. Ou a eventual articulação não necessária entre o representado, o representante e a representação. O que negaria a proposta de que transformação de qualidade na organização social determinaria necessariamente modificação também

8essencial nas suas representações.

Visões de mundoA profunda homogeneidade essencial das

narrativas sobre a escravidão no referido pouco mais de meio milênio daquela instituição sugeriria domínio total das representações nascidas das classes dominantes e a incapacidade essencial das classes escravizadas de gerarem narrativas ideológico-culturais expressando suas visões de mundo e necessidades ou de criarem as condições gerais para a sua expressão por segmentos sociais exteriores a elas.

Em 1889, em O que fazer?, V.I. Lenin analisou a gênese do pensamento revolucionário como processo necessariamente exterior ao movimento operário moderno, que propunha incapaz de elevar-se, por si só, à

"consciência da oposição irredutível de seus interesses com toda a ordem política e social existente", ou seja, de alçar-se ao nível de "consciência social-democrata" [socialista revolucionária]. Para ele, a consciência revolucionária elaborada podia chegar apenas desde “fora" da classe operária. Ela seria produto de "intelectuais burgueses", que se antagonizavam teoricamente com os interesses das classes a que pertenciam ou estavam próximas, para interpretar cientificamente o mundo, desde o ponto de vista dos oprimidos, a partir das contradições econômicas e sociais

9postas pela ordem capitalista. Um processo sempre dependente da construção pelos trabalhadores das condições sociais para esse movimento genético.

Investigação histórica mais detida comprova que, desde a gênese do escravismo negro-africano, em meados do século 15, geraram-se narrativas que dissolviam essencialmente os relatos justificadores da exploração escravista. As performances argumentativas dessas representações, provenientes desde afora das classes escravizadas, aproximaram-se em forma crescentemente essencial do objeto representado, expressando as visões de mundo das classes escravizadas. No entanto, essas visões jamais alcançaram a frutificar e, sobretudo, legitimar-se como explicações performativas dos fenômenos abordados, conhecendo

10marginalização, silenciamento e esquecimento.

O sentido da aparente homogeneidade das narrativas sobre o trabalhador escravizado, durante a gênese, consolidação, crise e superação da ordem escravista é questão que não foi ainda suficientemente elucidada. Não foi igualmente discutida e explicada a contento a incapacidade das negações das justificativas do escravismo de alcançar repercussão social, mesmo secundária, desdobrando-se em genealogias explicativas.

No mundo Ibérico, a consolidação do tráfico de trabalhadores africanos escravizados pôs em questão a justiça ou a injustiça, não da escravidão como instituição, mas de sua aplicação aos negro-africanos livres capturados na costa do Continente Negro. A pré-existente servidão do mouro era compreendida como merecido castigo da derrota em “guerra justa” ou da rejeição, em conhecimento de causa, da fé verdadeira, isto é, do cristianismo. Era o justo castigo terrestre a graves ofensas

11contra o iracundo Criador.O negro-africano era um pagão, mas não um

infiel. Era um rústico que, jamais tendo conhecido a Palavra Divina, não podia ser acusado e castigado por negar-se a aceitá-la. Não pecava contra um Verbo que não se manifestara, ao não se fazer ouvir. No mínimo, devia conhecer e rejeitar a doutrina reta para, apenas então, conhecer a servidão como castigo do pecado inaceitável.

9LENIN, V.I. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1978. p. 25.10MAESTRI, Mário. Filhos de Cã, filhos do cão: o trabalhador escravizado e a historiografia. O período colonial. História: Debates e Tendências. PPGH UPF, Passo Fundo, v. 4, n. 1, p. 80-98, 2003.11MAESTRI, Mário. Mouriscos em Portugal: triste história, triste historiografia. Contra Relatos desde el Sur. Apuntes sobre Africa y Medio Oriente, II, 3. CEA-UNC, CLACSO, Córdoba, Argentina. Dic. 2006 1669-953X. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/ argentina/cea/contra/3/maestri.

7MAESTRI, Mário. O escravismo no Brasil. 8 ed. São Paulo: Atual, 2003.8BAKTHINE & VOLOCHINOV, V.N, op. cit., p. 41.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (52-57) 52 - Representação dos oprimidos nas sociedades pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

A discrepância entre teoria e realidade, entre doutrina e prática, colocava-se na plenitude de sua contradição também para a cristianíssima coroa lusitana, primeira grande envolvida e exploradora dos negócios africanos. A escravidão do negro-africano não podia ser justificada com os mesmos critérios que apoiavam a servidão do mouro.

Justificações necessáriasEm O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl

Marx lembrava que, sobre “as diferentes formas de propriedade e as condições sociais de existência levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de pensar e de concepções filosóficas, com expressões infinitamente variadas, que a classe, como um todo, cria e modela a partir de seus fundamentos

12materiais e das condições sociais correspondentes.” Com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor criatividade, as contradições − entre as justificativas consolidadas de uma forma de exploração e as realidades objetivas que a superam − geram novas construções apologéticas condizentes com as últimas, em geral a partir da adaptação dos signos e enunciações produzidos e estruturados nos discursos estabelecidos na vigência das realidades superadas. Essa transição é ainda menos dramática quando as rupturas não são essenciais, como no caso da transição da escravidão moura à negra, na qual apenas variaram a etnia e a cultura do produtor escravizado.

A produção de narrativas apologéticas não se dá em forma linear, imediata, mecânica e consciente, ainda que a consciência da necessidade dessa produção não seja jamais inexistente. A construção e a consolidação das novas justificativas processam-se através de uma seleção dos materiais existentes e da avaliação relativa de sua recepção pelos grupos sociais a que se destinam, por parte das classes que as originam. Entre os destinatários das narrativas justificadoras encontram-se em destaque os subordinados, o que exige intercomunicação entre dominados e dominadores mais ou menos limitada na escravidão. Mikhail Bakhtin lembra que “o signo e a situação social onde se insere são indissoluvelmente ligados”, sendo que o signo constitui momento de confronto permanente de “interesses sociais contraditórios”, sempre e quando as comunidades

13pertençam a uma “única comunidade semântica”.O analista desavisado pode cobrir com conteúdos

semânticos anacrônicos relatos produzidos em contextos histórico-sociais diversos. O caráter socialmente dirigido e excludente das narrativas do passado dificulta comumente a compreensão de sua funcionalidade profunda por contemporâneos habituados à enunciação de pressupostos de conteúdos universalistas e atemporais. No passado, comumente, discursos justificadores visavam às camadas sociais que reconheciam como possuidoras de essência plena, marginalizando ou ignorando, em forma mais ou menos

ampla, grupos sociais subalternizados que, mesmo fora da esfera de abrangência das narrativas, as motivavam e as determinavam.

A ordem escravista baseava-se não raro substancialmente no estabelecimento de contatos entre grupos sociais dominantes e dominados pertencentes a comunidades semióticas diversas. O que contribuiu para que a violência física constituísse fator de coesão social escravista primordial, considerando-se a baixa capacidade coesiva das narrativas ideológicas na ausência substancial da referida identidade semiótica. Para melhor consecução das necessidades dos escravizadores, impunha-se que os escravizados fossem introduzidos no campo ideológico-semiótico dos escravizadores, na medida suficiente para facilitar a produção material e a dominação social. Para tanto, reprimiam-se os códigos lingüísticos, culturais, simbólicos, religiosos, etc. dos subalternizados, em favor da extensão, sempre chã e aproximativa, do campo ideológico-semiótico dos dominadores. A dissolução e empobrecimento do universo semântico dos subalternizados eram igualmente formas de restrição de sua capacidade de resistência. A civilização do rústico era

14vetor de sua redução à barbárie.

Comunidade semiótica A construção de comunidade comunicacional

única, ainda que jamais democrática e igualitária, permitia que as narrativas dominantes abrangessem, em forma mais ou menos ampla, também as classes subalternizadas, mesmo e sobretudo quando eram objeto da desqualificação apologética. A inclusão dos excluídos nas narrativas justificadoras ampliava-se na medida em que se expandia a construção de comunidade semiótica envolvendo opressores e oprimidos. No novo contexto, a gestão ideológica dos subalternizados assumia função crescente, mesmo quando a compulsão física se

15mantivesse como essencial.

Nos mais de quinhentos anos sucessivos à captura dos primeiros negro-africanos na Costa Ocidental, as classes dominantes escravistas produziram narrativas racionalizadoras do tráfico de trabalhadores, adaptadas às flutuações históricas do longo período, até que, com a derrota do sul escravista dos EUA, em 1865, o comércio transatlântico de homens perdeu seu último apoio substantivo, impondo-se então o abolicionismo do

16 tráfico. Também a defesa dos proprietários luso-brasileiros e brasileiros do tráfico e da ordem escravista processou-se através de adaptações e metamorfoses determinadas pelo contexto histórico, até a definitiva

12MARX, Karl. Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. In. Id. Les luttes de classes en France. Suivi [...]. Paris: Gallimard, 1994. P. 211.13BAKTHINE & VOLOCHINOV, op. cit., p. 63, 43.

14CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. A Linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005. P. 57-103.15MAESTRI, Mário. A reabilitação historiográfica da ordem escravista: determinação, autonomia, totalidade e parcialidade na história. Mário Maestri; Helen Ortiz. (Org.). Grilhão negro: ensaios sobre a escravidão colonial n no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2009. p. 21-42.16MARQUES, João Pedro. Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a abolição do tráfico de escravos. Lisboa: ICS, 1999. p. 1; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975.

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abolição do comércio atlântico de africanos, em 1850, e da escravatura, em 1888. Como todas as narrativas justificadoras da realidade social, essa apologia foi profundamente determinada pela história.

Mikhail Bakhtine lembrava: “Uma inscrição, como qualquer enunciação-monólogo, é prevista para ser compreendida; ela é orientada para uma leitura no contexto da vida cientifica ou da realidade literária do momento, ou seja, no quadro da evolução da esfera

17ideológica da qual é parte integrante”. Produzidas em contexto sócio-cultural superado, as apologias necessitam ser contextualizadas historicamente, para que os signos desvelem seus conteúdos essenciais quando da enunciação, revelando o sentido exato na época de sua produção. A “concretização da palavra se dá através da sua inclusão no contexto histórico real de sua realização

18primitiva”.

É exemplo da realidade proposta a defesa do padre António Brásio, erudito africanista lusitano, do caráter pretensamente não racista da cultura e da sociedade dominante portuguesas. Em 1944, o jesuíta lembrava que, em Portugal, o “preto era, não um escravo à maneira dos matos do Brasil, das Antilhas, da Reunião,

19dos estados meridionais da América do Norte”. No que tinha plena razão, ainda que não devido às razões que supunha. A escravidão em Portugal era forma de produção subordinada, doméstica e pequeno-mercantil. Devido a esse seu caráter, ensejava aos produtores diretos condições de vida médias superiores às do escravismo das colônias mercantis lusitanas. Fato do qual não se pode deduzir qualquer benignidade e humanismo português, já que também eram lusitanos, os escravistas dos “matos do

20Brasil”.

Como exemplo da pretensa benevolência lusitana, o bom sacerdote lembrava que, em 13 de novembro de 1515, ao saber que “escravos que em Lisboa faleciam não eram suficientemente soterrados”, “o que levava os cães vadios a devorá-los”, visto que a “maioria deles se atirava ao monturo”, o rei dom Manuel mandou abrir um “poço” – na futura rua do Poço dos Negros – para que “se atirassem os ditos escravos” à cova e, de “tempos a tempos”, se lançassem sobre eles “alguma quantidade de cal virgem”.

Um leitor contemporâneo desprevenido interpretará certamente o exemplo como meta-discurso do padre Brásio sobre a violência das classes dominantes renascentistas lusitanas para com o trabalhador escravizado. Entretanto, o sacerdote servia-se dele para demonstrar a magnanimidade da ordem portuguesa de então. No frigir dos ovos, como lembrou A. C. Saunders em sua História social dos escravos e libertos negros em Portugal, o rei dom Manuel assim procedera em defesa da salubridade de Lisboa, já que “os mais grosseiros dos comerciantes e donos de escravos deixavam pura e simplesmente” seus cativos “mortos a apodrecer em

estrumeiras e monturos, ou [...] os enterravam em sepultura tão à superfície que os cães facilmente

21escavavam e comiam os cadáveres”.

Negro e negroAntónio Brásio escrevia nos anos 1940, quando,

sob o prestígio das teorias racistas européias, o salazarismo vivia embriagado pelo sonho do domínio lusitano necessário sobre suas colônias e seus habitantes. Como intelectual orgânico da dominação colonial portuguesa, sua avaliação do ato do soberano era positiva, pois se assentava na desqualificação do negro de sua

22época, tida como realidade objetiva indiscutível. Para Brásio, “negro” descrevia não apenas um homo sapiens sapiens de pele negra e cultura africana, mas também um ser social objetivamente desprovido de atributos essenciais, se comparado ao homo sapiens sapiens europeu, em geral, e português, em especial. Providenciar um “poço” com algumas pás de cal episodicamente, era visto como uma ação meritória do soberano.

Em 1515 e 1940, do ponto de vista das classes dominantes lusitanas, um poço e um pouco de cal eram sepulturas dignas e exemplo de comiseração para com um preto. O que não quer dizer que existisse simetria plena entre as visões de uma e de outra época sobre o preto-africano, já que uma e outra visão expressavam, há séculos de distância, realidades diversas. O preto de dom Manuel não era certamente o preto de Brásio. Porém, apesar dos conteúdos diversos da categoria preto, as relações de exploração, no século 16 e no 20, permitiam que a visão expressa por Brásio sobre o preto livre, no século 20, recuperasse conteúdos essenciais e, portanto, se identificasse, fortemente, sem se confundir, com a visão manuelina do preto escravo, no século 16. As representações do presente consolidavam-se, fortemente, com a identidade aparente entre as visões do passado e presente, em processo de verdadeira naturalização.

O processo de soldadura de discursos separados por um espaço cronológico de séculos é facilitado pelo fato de que a nova justificativa sobre a dominação apóia-se comumente em discursos anteriores, historicamente superados, mas que se mantêm, mais ou menos ativos, nos estratos freáticos do mundo ideológico dominante. A ressemantização parcial dos conceitos efetua-se com maior facilidade quando o deslocamento e a precisão dos sentidos, do antigo ao novo, dão-se sobre uma base geral comum, por além das determinações históricas. O novo explorador pode servir-se da produção semiótica de seu ancestral social devido à unidade-identidade que eles mantêm, na diversidade, no que se refere à oposição ao explorado.

Ainda que a dominação de fato das classes subalternizadas pelas classes exploradoras objetive-se igualmente na sua dominação cultural e ideológica, os segmentos subalternizados tendem a desenvolver incessantemente visões próprias sobre as realidades que vivem, tendencialmente antitéticas e antagônicas às

17BAKTHINE & VOLOCHINOV, op. cit., p.106 Idem., p.112.19BRASIO, António. Os pretos em Portugal. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1944. p. 9.20Cf. MAESTRI, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

21SAUNDERS, op. cit., p. 147.22BRASIO, op.cit. p. 9.

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narrativas hegemônicas. Realidades que permitem sua eventual captação/interpretação/refinamento por segmentos capazes de constituí-las como visões de mundo elaboradas segundo os próprios códigos semânticos dos exploradores.

A frustração, determinação e sufocação das interpretações das classes exploradas e de suas vozes autônomas constituem condição fundamental para o bom funcionamento da sociedade de classe. Fato que determina, por um lado, a incessante repressão da formação, consolidação, registro e reprodução dessa produção e, por outro, dificulta o seu reconhecimento como depoimento e documento histórico daquela realidade. As comunidades escravizadas provenientes da África praticavam códigos lingüísticos e concepções e experiências de mundo diversas das dos escravizadores. A identidade relativa entre valores das duas formações – dominação das mulheres, servidão, etc. − foi sempre um

23facilitador da submissão dos africanos nas Américas.

A penetração, registro e domínio dos campos lingüísticos e simbólicos das classes exploradas pelas classes dominantes davam-se em forma aproximativa e incompleta, sobretudo enquanto durou o tráfico transatlântico de cativos. As classes dominantes preferiam introduzir rusticamente os trabalhadores no seu mundo simbólico, devido à maior facilidade desse processo e aos conteúdos classistas que ele comportava. Esse processo e a resistência a ele determinaram diversos níveis de sincretismo cultural.

Vimos que também devido ao caráter limitado da interlocução entre explorados e exploradores, a compulsão física teve função essencial na manutenção e reprodução do escravismo, desempenhando a submissão cultural-ideológica papel acessório. Os segmentos superiores das classes subalternizadas serviam prioritariamente de correia de transmissão das visões das classes dominantes entre as classes exploradas. Os limites objetivos da interlocução social na escravidão, no passado, contrapõem-se objetivamente à apresentação, nos dias de hoje, de muitos autores sobre a dominância ideológica como elemento central de consolidação do escravismo. Nesse mundo de múltiplos estratos semânticos, a inexistência da coerção física impediria sumariamente a manutenção das relações escravistas.

Vozes silenciadasNa ordem pré-capitalista, com destaque para a

escravidão clássica e, sobretudo, colonial, temos ricas informações sobre as interpretações das classes exploradoras sobre a sociedade de classes, registradas na linguagem, na literatura, na poética, na historiografia, na iconografia, na arquitetura, etc. Ao contrário, conhecemos frágeis traços das visões dos oprimidos sobre os dominadores e as realidades que viveram. Em 1979, em La libération médiévale, Pierre Dockes

lembrava que são raros os registros das visões dos trabalhadores escravizados sobre a escravidão, em geral fortemente alienada e profundamente determinada pelo mundo e pelas representações das classes hegemônicas: “A ideologia dos escravos é profundamente contraditória, difícil de ser conhecida e, além de tudo,

24ainda pouco estudada.”

Parte substancial dos raros e frágeis traços do mundo ideológico-cultural dos oprimidos encontra-se incrustado nos registros literários, judiciários, jornalísticos, historiográficos, etc. das classes dominantes. Em forma positiva, através da anatematização e condenação diretas dessas narrativas. Em forma negativa, através da determinação dos discursos dos exploradores pela produção social e ideológica dos subalternizados. O mundo espiritual e comportamental invisível dos trabalhadores escravizados pode ser penetrado através da pressão-deformação, em geral não explícita, que imprime nas representações dos exploradores, um pouco como os corpos celestes que são descobertos devido à força gravitacional que exercem sobre os conhecidos.

Mikhail Bakhtine lembrava que “todas as linguagens do plurilingüismo [...] são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas de sua interpretação verbal, perspectivas objetais semânticas”. O discurso de uma época é determinado profundamente pela história, evocando “cada palavra e cada articulação de palavras uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra precisa, um homem preciso, uma geração, uma idade, um dia, uma hora”, como igualmente já

25assinalado.O texto comumente visto pela historiografia

como monocórdio e rígido constitui registro social e histórico dialógico e plurilíngüe. As expressões e os registros verbais das visões de mundo das diversas classes de locutores, em uma época e em um espaço dados, são profundamente determinados pelas próprias contradições entre essas classes. “As relações de produção – [...] − determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, todas as formas e todos os

26modos de comunicação verbal [...].”

Nesse universo dialógico, nenhuma “enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou”, já que, nos fatos, ela é “o produto da interação entre falantes”. Ou seja, produto da “situação social em que [...] surgiu”. Assim sendo, “todo produto da linguagem do homem, do simples enunciado a uma complexa obra literária, em todos os momentos essenciais, é determinado não pela vivência subjetiva do falante, mas pela situação social em que se dá a

27 enunciação.” Querendo ou não querendo, sabendo ou não sabendo, ao falar de si e de seu mundo, o escravista falava também do escravizado e de seu universo, segundo a sua ótica de classe.

23MEILLASSOUX, Claude. L´esclavage en Afrique précoloniale: dix-sept études présentées par. Paris: François Maspero, 1975; MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, celeiros & capitais. Porto: Afrontamento, 1977; MIERS, Suzanne & KOPYTOFF, Igor. Slavery in Africa: historical and anthropological perspectives. Wisconsin: University of Wisconsin, 1977

24DOCKES,op.cit. p. 27.25BAKHTINE, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. France: Gallimard, 1978. p. 113, 114. 26BAKTHINE & VOLOCHINOV, V.N, op. cit., p, 38.27BAKHTIN, Mikhail. [VOLOCHÍNOV, V.N.]. O freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (51-56) Representação dos oprimidos nas sociedades pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

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abolição do comércio atlântico de africanos, em 1850, e da escravatura, em 1888. Como todas as narrativas justificadoras da realidade social, essa apologia foi profundamente determinada pela história.

Mikhail Bakhtine lembrava: “Uma inscrição, como qualquer enunciação-monólogo, é prevista para ser compreendida; ela é orientada para uma leitura no contexto da vida cientifica ou da realidade literária do momento, ou seja, no quadro da evolução da esfera

17ideológica da qual é parte integrante”. Produzidas em contexto sócio-cultural superado, as apologias necessitam ser contextualizadas historicamente, para que os signos desvelem seus conteúdos essenciais quando da enunciação, revelando o sentido exato na época de sua produção. A “concretização da palavra se dá através da sua inclusão no contexto histórico real de sua realização

18primitiva”.

É exemplo da realidade proposta a defesa do padre António Brásio, erudito africanista lusitano, do caráter pretensamente não racista da cultura e da sociedade dominante portuguesas. Em 1944, o jesuíta lembrava que, em Portugal, o “preto era, não um escravo à maneira dos matos do Brasil, das Antilhas, da Reunião,

19dos estados meridionais da América do Norte”. No que tinha plena razão, ainda que não devido às razões que supunha. A escravidão em Portugal era forma de produção subordinada, doméstica e pequeno-mercantil. Devido a esse seu caráter, ensejava aos produtores diretos condições de vida médias superiores às do escravismo das colônias mercantis lusitanas. Fato do qual não se pode deduzir qualquer benignidade e humanismo português, já que também eram lusitanos, os escravistas dos “matos do

20Brasil”.

Como exemplo da pretensa benevolência lusitana, o bom sacerdote lembrava que, em 13 de novembro de 1515, ao saber que “escravos que em Lisboa faleciam não eram suficientemente soterrados”, “o que levava os cães vadios a devorá-los”, visto que a “maioria deles se atirava ao monturo”, o rei dom Manuel mandou abrir um “poço” – na futura rua do Poço dos Negros – para que “se atirassem os ditos escravos” à cova e, de “tempos a tempos”, se lançassem sobre eles “alguma quantidade de cal virgem”.

Um leitor contemporâneo desprevenido interpretará certamente o exemplo como meta-discurso do padre Brásio sobre a violência das classes dominantes renascentistas lusitanas para com o trabalhador escravizado. Entretanto, o sacerdote servia-se dele para demonstrar a magnanimidade da ordem portuguesa de então. No frigir dos ovos, como lembrou A. C. Saunders em sua História social dos escravos e libertos negros em Portugal, o rei dom Manuel assim procedera em defesa da salubridade de Lisboa, já que “os mais grosseiros dos comerciantes e donos de escravos deixavam pura e simplesmente” seus cativos “mortos a apodrecer em

estrumeiras e monturos, ou [...] os enterravam em sepultura tão à superfície que os cães facilmente

21escavavam e comiam os cadáveres”.

Negro e negroAntónio Brásio escrevia nos anos 1940, quando,

sob o prestígio das teorias racistas européias, o salazarismo vivia embriagado pelo sonho do domínio lusitano necessário sobre suas colônias e seus habitantes. Como intelectual orgânico da dominação colonial portuguesa, sua avaliação do ato do soberano era positiva, pois se assentava na desqualificação do negro de sua

22época, tida como realidade objetiva indiscutível. Para Brásio, “negro” descrevia não apenas um homo sapiens sapiens de pele negra e cultura africana, mas também um ser social objetivamente desprovido de atributos essenciais, se comparado ao homo sapiens sapiens europeu, em geral, e português, em especial. Providenciar um “poço” com algumas pás de cal episodicamente, era visto como uma ação meritória do soberano.

Em 1515 e 1940, do ponto de vista das classes dominantes lusitanas, um poço e um pouco de cal eram sepulturas dignas e exemplo de comiseração para com um preto. O que não quer dizer que existisse simetria plena entre as visões de uma e de outra época sobre o preto-africano, já que uma e outra visão expressavam, há séculos de distância, realidades diversas. O preto de dom Manuel não era certamente o preto de Brásio. Porém, apesar dos conteúdos diversos da categoria preto, as relações de exploração, no século 16 e no 20, permitiam que a visão expressa por Brásio sobre o preto livre, no século 20, recuperasse conteúdos essenciais e, portanto, se identificasse, fortemente, sem se confundir, com a visão manuelina do preto escravo, no século 16. As representações do presente consolidavam-se, fortemente, com a identidade aparente entre as visões do passado e presente, em processo de verdadeira naturalização.

O processo de soldadura de discursos separados por um espaço cronológico de séculos é facilitado pelo fato de que a nova justificativa sobre a dominação apóia-se comumente em discursos anteriores, historicamente superados, mas que se mantêm, mais ou menos ativos, nos estratos freáticos do mundo ideológico dominante. A ressemantização parcial dos conceitos efetua-se com maior facilidade quando o deslocamento e a precisão dos sentidos, do antigo ao novo, dão-se sobre uma base geral comum, por além das determinações históricas. O novo explorador pode servir-se da produção semiótica de seu ancestral social devido à unidade-identidade que eles mantêm, na diversidade, no que se refere à oposição ao explorado.

Ainda que a dominação de fato das classes subalternizadas pelas classes exploradoras objetive-se igualmente na sua dominação cultural e ideológica, os segmentos subalternizados tendem a desenvolver incessantemente visões próprias sobre as realidades que vivem, tendencialmente antitéticas e antagônicas às

17BAKTHINE & VOLOCHINOV, op. cit., p.106 Idem., p.112.19BRASIO, António. Os pretos em Portugal. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1944. p. 9.20Cf. MAESTRI, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

21SAUNDERS, op. cit., p. 147.22BRASIO, op.cit. p. 9.

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narrativas hegemônicas. Realidades que permitem sua eventual captação/interpretação/refinamento por segmentos capazes de constituí-las como visões de mundo elaboradas segundo os próprios códigos semânticos dos exploradores.

A frustração, determinação e sufocação das interpretações das classes exploradas e de suas vozes autônomas constituem condição fundamental para o bom funcionamento da sociedade de classe. Fato que determina, por um lado, a incessante repressão da formação, consolidação, registro e reprodução dessa produção e, por outro, dificulta o seu reconhecimento como depoimento e documento histórico daquela realidade. As comunidades escravizadas provenientes da África praticavam códigos lingüísticos e concepções e experiências de mundo diversas das dos escravizadores. A identidade relativa entre valores das duas formações – dominação das mulheres, servidão, etc. − foi sempre um

23facilitador da submissão dos africanos nas Américas.

A penetração, registro e domínio dos campos lingüísticos e simbólicos das classes exploradas pelas classes dominantes davam-se em forma aproximativa e incompleta, sobretudo enquanto durou o tráfico transatlântico de cativos. As classes dominantes preferiam introduzir rusticamente os trabalhadores no seu mundo simbólico, devido à maior facilidade desse processo e aos conteúdos classistas que ele comportava. Esse processo e a resistência a ele determinaram diversos níveis de sincretismo cultural.

Vimos que também devido ao caráter limitado da interlocução entre explorados e exploradores, a compulsão física teve função essencial na manutenção e reprodução do escravismo, desempenhando a submissão cultural-ideológica papel acessório. Os segmentos superiores das classes subalternizadas serviam prioritariamente de correia de transmissão das visões das classes dominantes entre as classes exploradas. Os limites objetivos da interlocução social na escravidão, no passado, contrapõem-se objetivamente à apresentação, nos dias de hoje, de muitos autores sobre a dominância ideológica como elemento central de consolidação do escravismo. Nesse mundo de múltiplos estratos semânticos, a inexistência da coerção física impediria sumariamente a manutenção das relações escravistas.

Vozes silenciadasNa ordem pré-capitalista, com destaque para a

escravidão clássica e, sobretudo, colonial, temos ricas informações sobre as interpretações das classes exploradoras sobre a sociedade de classes, registradas na linguagem, na literatura, na poética, na historiografia, na iconografia, na arquitetura, etc. Ao contrário, conhecemos frágeis traços das visões dos oprimidos sobre os dominadores e as realidades que viveram. Em 1979, em La libération médiévale, Pierre Dockes

lembrava que são raros os registros das visões dos trabalhadores escravizados sobre a escravidão, em geral fortemente alienada e profundamente determinada pelo mundo e pelas representações das classes hegemônicas: “A ideologia dos escravos é profundamente contraditória, difícil de ser conhecida e, além de tudo,

24ainda pouco estudada.”

Parte substancial dos raros e frágeis traços do mundo ideológico-cultural dos oprimidos encontra-se incrustado nos registros literários, judiciários, jornalísticos, historiográficos, etc. das classes dominantes. Em forma positiva, através da anatematização e condenação diretas dessas narrativas. Em forma negativa, através da determinação dos discursos dos exploradores pela produção social e ideológica dos subalternizados. O mundo espiritual e comportamental invisível dos trabalhadores escravizados pode ser penetrado através da pressão-deformação, em geral não explícita, que imprime nas representações dos exploradores, um pouco como os corpos celestes que são descobertos devido à força gravitacional que exercem sobre os conhecidos.

Mikhail Bakhtine lembrava que “todas as linguagens do plurilingüismo [...] são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas de sua interpretação verbal, perspectivas objetais semânticas”. O discurso de uma época é determinado profundamente pela história, evocando “cada palavra e cada articulação de palavras uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra precisa, um homem preciso, uma geração, uma idade, um dia, uma hora”, como igualmente já

25assinalado.O texto comumente visto pela historiografia

como monocórdio e rígido constitui registro social e histórico dialógico e plurilíngüe. As expressões e os registros verbais das visões de mundo das diversas classes de locutores, em uma época e em um espaço dados, são profundamente determinados pelas próprias contradições entre essas classes. “As relações de produção – [...] − determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, todas as formas e todos os

26modos de comunicação verbal [...].”

Nesse universo dialógico, nenhuma “enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou”, já que, nos fatos, ela é “o produto da interação entre falantes”. Ou seja, produto da “situação social em que [...] surgiu”. Assim sendo, “todo produto da linguagem do homem, do simples enunciado a uma complexa obra literária, em todos os momentos essenciais, é determinado não pela vivência subjetiva do falante, mas pela situação social em que se dá a

27 enunciação.” Querendo ou não querendo, sabendo ou não sabendo, ao falar de si e de seu mundo, o escravista falava também do escravizado e de seu universo, segundo a sua ótica de classe.

23MEILLASSOUX, Claude. L´esclavage en Afrique précoloniale: dix-sept études présentées par. Paris: François Maspero, 1975; MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, celeiros & capitais. Porto: Afrontamento, 1977; MIERS, Suzanne & KOPYTOFF, Igor. Slavery in Africa: historical and anthropological perspectives. Wisconsin: University of Wisconsin, 1977

24DOCKES,op.cit. p. 27.25BAKHTINE, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. France: Gallimard, 1978. p. 113, 114. 26BAKTHINE & VOLOCHINOV, V.N, op. cit., p, 38.27BAKHTIN, Mikhail. [VOLOCHÍNOV, V.N.]. O freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (51-56) Representação dos oprimidos nas sociedades pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

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28CARBONI, & MAESTRI, , op.cit. p. 130.29Cf. DOUGLASS, Frederick. Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave. Houdston: Penguin Classics, 1982; BARNET, Miguel. Memórias de um cimarrón. São Paulo: Marco Zero. 1986; MAESTRI, Mário. Depoimentos de escravos brasileiros. São Paulo: Ícone, 1988.30DOCKES, op. cit. p. 28.

A ruptura com a falsa consciência sobre o caráter aleatório da linguagem escrita e oral permite que a historiografia avance substancialmente na solução de questões cruciais. Entre elas destaca-se o pretenso silêncio que encobriria, no passado, a palavra fraca do explorado, devido à voz altissonante e única do explorador. Um silêncio construído devido ao hábito de se ver no texto apenas o timbre da linguagem única. O resultado desse desconhecimento é a incrustação da voz de um outro na fala do autor, não raro impregnando fortemente sua narrativa com conteúdos em oposição frontal às suas visões de

28mundo.

Porém, se signos dos explorados encontram-se incrustados no discurso dos exploradores, apenas quando eles expressam sua oposição em forma explícita – e sobretudo quando conquistam apoios entre os segmentos médios e, até mesmo, superiores – suas visões alternativas de mundo materializam-se, organizam-se, fortalecem-se, transformando-se em discurso registrado. Os raros depoimentos e memórias são algumas dessas expressões diretas – e sempre parcialmente alienadas −

29das visões de mundo das classes escravizadas.

Pierre Dockes lembrava: “Descobre-se o aspecto anti-ideologia oficial quando, temporariamente vitoriosos, os escravos se organizam, tentam fundar uma comunidade […], reencontrar uma ligação com a terra,

30com uma linhagem, ser membros de uma cidade […].” No mundo pré-capitalista, por um lado, a fragilidade dos registros das visões de mundo dos oprimidos valoriza a necessidade da exegese das narrativas dos opressores para encontrar neles os segredos internos que cimentaram essas formas de opressão. Por outro, essa fragilidade impõe a difícil mas possível captura dos tênues depoimentos diretos dessas comunidades, não destruídos pelo esforço dos opressores em apresentar a história como eterna reiteração da sociedade de classes.

Artigo recebido em 16.1.2012Aprovado em 27.3.2012

Representação dos oprimidos nas sociedades pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

A luta dos trabalhadores no tempo de Marx

*Antonio Elias Sobrinho

presentaçãoO objetivo fundamental deste artigo é fazer um

levantamento inicial das resistências dos trabalhadores contra as manobras das classes dominantes no período de afirmação e consolidação do modo de produçãocapitalista. A referência é a Revolução Industrial na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, que culminou com a desapropriação de grandes contingentes populacionais e a submissão deles às relações capitalistas de trabalho.

Por outro lado, assinalo que este é um levantamento inicial e panorâmico, baseado apenas em alguns escritos de Karl Marx, como indicativo de que a visão deste pensador, com relação às possibilidades de transformação do capitalismo para o socialismo, era um processo que tinha, no próprio desenvolvimento do capitalismo as suas raízes fundamentais.

A Resistência dos Trabalhadores A luta dos homens, desde os primórdios da

História, tem como meta fundamental a conquista das condições materiais para a manutenção de sua existência e de seus familiares. O processo histórico para a realização desse objetivo é o trabalho, onde, a partir do qual, o homem começa a submeter a natureza para a realização de suas necessidades num processo de

1interação no qual ambos se modificam. Assim, os homens, para poderem pensar, lutar pelos aspectos ideológicos e pelas formas de organização e aperfeiçoamento da sociedade, primeiro precisam

2garantir suas formas materiais de existência.

Marx partia da premissa de que os trabalhadores não possuíam, a princípio, qualquer plano geral que pudesse projetar alguma situação nova com possíveis desdobramentos. Aliás, os operários nem escolheram ser operários. Foram submetidos ao poder do capital através de um processo forçado, chamado por Marx no Livro Primeiro, Capítulo XXIV, de O Capital, de processo de acumulação de capitais ou acumulação primitiva que culminou com a desapropriação dos trabalhadores. Assim, sua luta, sua resistência, foi se desenvolvendo pelo próprio instinto de sobrevivência, o que possibilitou

A a intensificação dos conflitos entre o capital e o trabalho até o ponto desse conflito se generalizar e adquirir a

3dimensão de uma luta de classes.A reação dos trabalhadores contra a exploração e

as precárias condições de vida começa, efetivamente, e, de forma mais vigorosa, quando descobrem que quanto mais trabalham mais aumentam a riqueza e o poder dos exploradores e que se tornam mais difíceis suas condições de existência. Verificam também que os

4salários se tornam cada vez mais aviltados devido, por um lado, à própria dinâmica do capitalismo, sujeito cada vez mais a um processo de concentração e de crises e, por outro lado, à concorrência cada vez maior no mercado de trabalho. Isto porque, devido ao desenvolvimento das forças produtivas e aos investimentos em tecnologias, forma-se uma camada imensa de desempregados que contribuem para aumentar a concorrência entre os próprios trabalhadores.

Assim, as riquezas tendem a se concentrar cada vez mais. Este processo, longo e violento, culmina com a

5desapropriação dos camponeses e artesãos. A partir daí, o conflito entre as classes sociais adquiriu uma nova dimensão. O proletariado, pressionado pela violência da exploração, passou a lutar contra a permanência dessas condições. Segundo Marx,

A produção capitalista, que é essencialmente produção de mais-valia, absorção de mais t r a b a l h o , p r o d u z , p o r t a n t o , c o m o prolongamento da jornada de trabalho não apenas a atrofia da força de trabalho, a qual é roubada de suas condições normais, morais e físicas de desenvolvimento e atividade. Ela produz a exaustão prematura e o aniquilamento da própria força de trabalho. Ela prolonga o tempo de produção do trabalhador num prazo determinado mediante o encurtamento de seu

6tempo de vida.

A reação dos operários começa das mais variadas formas, inclusive articulando associações para encaminhar suas demandas, dando origem aos sindicatos

*Professor de História pela UFF e Mestre em Serviço Social pela UFRJ.1Para aprofundar essa questão ver: MARX, Karl, O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Primeiro, Capítulo V. São Paulo: Nova Cultural, 1985-a, p.149-1552Ver na Ideologia Alemã. MARX, Karl; ENGELS, Frierdrich. A Ideologia Alemã, São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.31. 3Ver MARX, Karl; ENGELS, Frierdrich Manifesto do Partido Comunista. In. REIS FILHO, Daniel Aarão. O Manifesto do Partido Comunista, 150 Anos depois. Rio de Janeiro, 1998.

4MARX, Karl. Salário, preço e lucro.. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Dialética do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 57 a 100.5Ver o estudo sobre os chamados “cercamentos” dos campos ingleses, no qual Marx argumenta que grande parte dos grandes proprietários, movidos pela perspectiva de exploração de suas terras para fins de acumulação, tanto para produção agrícola visando o mercado, como para criação de ovelhas, afim de produzir lã, expulsam os camponeses e se apropriam plenamente das terras. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Volume I, Livro Primeiro, Capítulo XXIV. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1985-b.6MARX, op. cit., 1985-a. p. 214.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (57-62)

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28CARBONI, & MAESTRI, , op.cit. p. 130.29Cf. DOUGLASS, Frederick. Narrative of the life of Frederick Douglass, an American slave. Houdston: Penguin Classics, 1982; BARNET, Miguel. Memórias de um cimarrón. São Paulo: Marco Zero. 1986; MAESTRI, Mário. Depoimentos de escravos brasileiros. São Paulo: Ícone, 1988.30DOCKES, op. cit. p. 28.

A ruptura com a falsa consciência sobre o caráter aleatório da linguagem escrita e oral permite que a historiografia avance substancialmente na solução de questões cruciais. Entre elas destaca-se o pretenso silêncio que encobriria, no passado, a palavra fraca do explorado, devido à voz altissonante e única do explorador. Um silêncio construído devido ao hábito de se ver no texto apenas o timbre da linguagem única. O resultado desse desconhecimento é a incrustação da voz de um outro na fala do autor, não raro impregnando fortemente sua narrativa com conteúdos em oposição frontal às suas visões de

28mundo.

Porém, se signos dos explorados encontram-se incrustados no discurso dos exploradores, apenas quando eles expressam sua oposição em forma explícita – e sobretudo quando conquistam apoios entre os segmentos médios e, até mesmo, superiores – suas visões alternativas de mundo materializam-se, organizam-se, fortalecem-se, transformando-se em discurso registrado. Os raros depoimentos e memórias são algumas dessas expressões diretas – e sempre parcialmente alienadas −

29das visões de mundo das classes escravizadas.

Pierre Dockes lembrava: “Descobre-se o aspecto anti-ideologia oficial quando, temporariamente vitoriosos, os escravos se organizam, tentam fundar uma comunidade […], reencontrar uma ligação com a terra,

30com uma linhagem, ser membros de uma cidade […].” No mundo pré-capitalista, por um lado, a fragilidade dos registros das visões de mundo dos oprimidos valoriza a necessidade da exegese das narrativas dos opressores para encontrar neles os segredos internos que cimentaram essas formas de opressão. Por outro, essa fragilidade impõe a difícil mas possível captura dos tênues depoimentos diretos dessas comunidades, não destruídos pelo esforço dos opressores em apresentar a história como eterna reiteração da sociedade de classes.

Artigo recebido em 16.1.2012Aprovado em 27.3.2012

Representação dos oprimidos nas sociedades pré-capitalistas: o Escravismo Colonial

A luta dos trabalhadores no tempo de Marx

*Antonio Elias Sobrinho

presentaçãoO objetivo fundamental deste artigo é fazer um

levantamento inicial das resistências dos trabalhadores contra as manobras das classes dominantes no período de afirmação e consolidação do modo de produçãocapitalista. A referência é a Revolução Industrial na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, que culminou com a desapropriação de grandes contingentes populacionais e a submissão deles às relações capitalistas de trabalho.

Por outro lado, assinalo que este é um levantamento inicial e panorâmico, baseado apenas em alguns escritos de Karl Marx, como indicativo de que a visão deste pensador, com relação às possibilidades de transformação do capitalismo para o socialismo, era um processo que tinha, no próprio desenvolvimento do capitalismo as suas raízes fundamentais.

A Resistência dos Trabalhadores A luta dos homens, desde os primórdios da

História, tem como meta fundamental a conquista das condições materiais para a manutenção de sua existência e de seus familiares. O processo histórico para a realização desse objetivo é o trabalho, onde, a partir do qual, o homem começa a submeter a natureza para a realização de suas necessidades num processo de

1interação no qual ambos se modificam. Assim, os homens, para poderem pensar, lutar pelos aspectos ideológicos e pelas formas de organização e aperfeiçoamento da sociedade, primeiro precisam

2garantir suas formas materiais de existência.

Marx partia da premissa de que os trabalhadores não possuíam, a princípio, qualquer plano geral que pudesse projetar alguma situação nova com possíveis desdobramentos. Aliás, os operários nem escolheram ser operários. Foram submetidos ao poder do capital através de um processo forçado, chamado por Marx no Livro Primeiro, Capítulo XXIV, de O Capital, de processo de acumulação de capitais ou acumulação primitiva que culminou com a desapropriação dos trabalhadores. Assim, sua luta, sua resistência, foi se desenvolvendo pelo próprio instinto de sobrevivência, o que possibilitou

A a intensificação dos conflitos entre o capital e o trabalho até o ponto desse conflito se generalizar e adquirir a

3dimensão de uma luta de classes.A reação dos trabalhadores contra a exploração e

as precárias condições de vida começa, efetivamente, e, de forma mais vigorosa, quando descobrem que quanto mais trabalham mais aumentam a riqueza e o poder dos exploradores e que se tornam mais difíceis suas condições de existência. Verificam também que os

4salários se tornam cada vez mais aviltados devido, por um lado, à própria dinâmica do capitalismo, sujeito cada vez mais a um processo de concentração e de crises e, por outro lado, à concorrência cada vez maior no mercado de trabalho. Isto porque, devido ao desenvolvimento das forças produtivas e aos investimentos em tecnologias, forma-se uma camada imensa de desempregados que contribuem para aumentar a concorrência entre os próprios trabalhadores.

Assim, as riquezas tendem a se concentrar cada vez mais. Este processo, longo e violento, culmina com a

5desapropriação dos camponeses e artesãos. A partir daí, o conflito entre as classes sociais adquiriu uma nova dimensão. O proletariado, pressionado pela violência da exploração, passou a lutar contra a permanência dessas condições. Segundo Marx,

A produção capitalista, que é essencialmente produção de mais-valia, absorção de mais t r a b a l h o , p r o d u z , p o r t a n t o , c o m o prolongamento da jornada de trabalho não apenas a atrofia da força de trabalho, a qual é roubada de suas condições normais, morais e físicas de desenvolvimento e atividade. Ela produz a exaustão prematura e o aniquilamento da própria força de trabalho. Ela prolonga o tempo de produção do trabalhador num prazo determinado mediante o encurtamento de seu

6tempo de vida.

A reação dos operários começa das mais variadas formas, inclusive articulando associações para encaminhar suas demandas, dando origem aos sindicatos

*Professor de História pela UFF e Mestre em Serviço Social pela UFRJ.1Para aprofundar essa questão ver: MARX, Karl, O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Primeiro, Capítulo V. São Paulo: Nova Cultural, 1985-a, p.149-1552Ver na Ideologia Alemã. MARX, Karl; ENGELS, Frierdrich. A Ideologia Alemã, São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.31. 3Ver MARX, Karl; ENGELS, Frierdrich Manifesto do Partido Comunista. In. REIS FILHO, Daniel Aarão. O Manifesto do Partido Comunista, 150 Anos depois. Rio de Janeiro, 1998.

4MARX, Karl. Salário, preço e lucro.. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Dialética do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 57 a 100.5Ver o estudo sobre os chamados “cercamentos” dos campos ingleses, no qual Marx argumenta que grande parte dos grandes proprietários, movidos pela perspectiva de exploração de suas terras para fins de acumulação, tanto para produção agrícola visando o mercado, como para criação de ovelhas, afim de produzir lã, expulsam os camponeses e se apropriam plenamente das terras. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Volume I, Livro Primeiro, Capítulo XXIV. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1985-b.6MARX, op. cit., 1985-a. p. 214.

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e mais tarde aos partidos políticos. Esse conflito, que a princípio era localizado, geralmente em torno das fábricas, aos poucos foi tomando dimensões enormes. Como as intermediações por meio de negociações eram quase inexistentes, devido à ausência de interlocutores consistentes e a precariedade de representatividade das classes sociais, capazes de construir qualquer tipo de consenso, eles degeneravam, não raro, em confrontos violentos. Aos poucos, este conflito foi crescendo e agregando cada vez mais segmentos diversos. De um lado, o Estado foi se tornando mais complexo, assumindo de forma cada vez mais sofisticada os interesses de uma classe, ao ponto de Marx e Engels afirmarem o seguinte: “O poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como

7um todo.”

Assim, como os grandes proprietários foram se agregando em corporações cada vez mais poderosas, com uma abrangência econômica e territorial crescentes, por outro lado, os trabalhadores foram também se agregando em torno de suas entidades representativas e avançando, conseguindo vitórias, mas sofrendo também derrotas. O próprio Marx, por exemplo, presenciou e participou de algumas dessas derrotas, como as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris, em 1871.

A característica fundamental deste conflito representava o esforço das classes dominantes para preservar o funcionamento do poder sob seu controle, e dos trabalhadores, tentando socializar as decisões políticas. As dificuldades eram derivadas da tenaz resistência da burguesia, como também da dificuldade dos trabalhadores para formular um projeto democrático, que unificasse não só os diversos interesses corporativos sociais, como também os diversos projetos políticos. Para isso, contribuía o grande poder de atração que exerciam, sobre os diversos quadros, as benesses do poder e dos cargos públicos.

Os trabalhadores procuravam utilizar diversas estratégias, inclusive a violência e paralisações na produção. Entretanto, a burguesia, além do poder econômico, contava com a participação da força pública. Ela tinha, também, o poder de encaminhar e votar as leis no Parlamento, como também possibilidades de sabotar as que beneficiavam aos trabalhadores. A Inglaterra foi o

8cenário principal para esses primeiros conflitos.

Rosa Luxemburgo, no final do século XIX e início do século XX, em sua polêmica com os moderados da social democracia alemã, demonstrava ceticismo com relação à questão das leis, que possam favorecer a classe operária. As leis podem, no máximo, representar vitórias eventuais. No fundo, a questão legal sempre foi uma estratégia utilizada pelas classes dominantes, para

7No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels não só fazem uma sintética descrição do progresso da luta dos trabalhadores, como também, assinalam a posição que o Estado assume nesse confronto. MARX, Karl; ENGELS Friedrich, op. cit. 1998. p. 10. 8Em Os Trabalhadores, Hobsbawm apresenta, numa descrição muito abrangente, tendo como cenário a Inglaterra, aspectos da luta de resistência dos trabalhadores, bem como suas principais formas de organização, desde fins do século XVIII até começos do século XX. Ver: HOBSBAWM, Eric, Os Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1981.

moderar o ímpeto do movimento dos trabalhadores. Porém, nas próximas oportunidades, quando o clima se acalma, tudo volta ao estado anterior. Para ela, a burguesia não cede um milímetro de seus privilégios, se isso significar a redução de seus lucros, sendo que o essencial no capitalismo é a relação de trabalho assalariado. A legalidade é apenas o elemento que mascara e justifica essa relação. Assim, o que distingue, segundo Luxemburgo, o capitalismo das sociedades anteriores é que nestas a exploração e a extração de um excedente era feito por instrumentos de coação política, onde predominava o exercício da força, enquanto que no capitalismo os direitos ficam subordinados, prioritariamente, às relações econômicas. Portanto, os trabalhadores não se tornaram operários por questões legais. O Estado interferiu, é certo, estabelecendo leis para coagir a mão-de-obra, forçou as pessoas a se incorporar ao mercado de trabalho, porém foi a incapacidade de garantir a sobrevivência, de forma independente, que obrigou muitos a trabalhar em troca de

9salários.

Porém, se Rosa não dava muita importância à luta dos trabalhadores via parlamento, ela também não descartava a importância desse instrumento, sobretudo como forma de propaganda, que poderia ser usado pelos representantes da classe operária como uma tribuna para denunciar as formas de exploração, como também o comportamento dos poderes públicos nas ações repressivas aos movimentos dos trabalhadores; em suma, ela sabia que a questão decisiva não se encontrava ai, na questão legal, mas sabia também que era em função da lei que no capitalismo as relações funcionavam e é geralmente, em função dela que, em primeira instância, os trabalhadores se mobilizam. Isto é, eles não incorporam, nos seus embates cotidianos com o capital, propostas muito genéricas ou abstratas, como o socialismo.

Porém, a posição de Rosa Luxemburgo só pode ser compreendida, de forma satisfatória, vista no contexto em que ela viveu, e no seu confronto com a máquina moderada do Partido Social Democrata Alemão em torno das questões sobre reforma ou revolução. Naquele momento, o movimento dos trabalhadores crescia, assim como também se fortaleciam tanto os partidos como também os sindicatos ligados à classe operária. Esta tendência favoreceu o aparecimento e o fortalecimento de um reformismo que renegava elementos fundamentais da teoria de Marx, como a questão da validade da revolução para alcançar o

10socialismo.

Acima de qualquer divergência, o certo é que as pessoas que foram expulsas das suas antigas formas de sobrevivência, procuraram sobreviver de acordo com as

9Ver LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução. São Paulo: Expressão Popular, 1999, p. 94-105.10Esse quadro animador, que se manifestava nos processos eleitorais e nas mobilizações de trabalhadores é descrito por Engels na sua Introdução de 1995. ENGELS, Friedrich, Introdução ao livro Marx: As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850. In.MARX, Karl, A Revolução Antes da Revolução. São Paulo: Expressão Popular. Cf p.37-62.

circunstâncias, resistindo a um enquadramento na nova ordem, que requeria deles uma nova forma de comportamento e uma disciplina com a qual não tinham a menor intimidade. Isto porque, com a introdução da máquina, todas aquelas habilidades manuais foram substituídas pela força mecânica e por novos processos de trabalho.

Temos de considerar, também, o fato de que o processo de desapropriação foi extremamente rápido e que as condições criadas na nova sociedade industrial para absorvê-los não se desenvolveram no mesmo ritmo. Assim, diante dessas circunstâncias, entrou em ação o Estado com a função de fazer um enquadramento

11forçado. A Inglaterra, país pioneiro nesse processo devastador e onde a situação social apresentava-se mais grave, foi também onde a legislação nesse sentido foi criada e usada com maior rigor. Marx esclarece seguinte maneira: “Assim, o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária ao

12sistema de trabalho assalariado”. Além do enquadramento forçado, no sentido de obrigar as pessoas ao trabalho nas fábricas, a burguesia, através do Estado, também promoveu uma regulação do salário para evitar não só uma concorrência entre os capitalistas, como também evitar os movimentos de reivindicações através de ações políticas. Assim,

a burguesia nascente precisa e emprega a força do Estado para 'regular' o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites convenientes à extração de mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada

13acumulação primitiva.

Esses conflitos, entre burgueses e trabalhadores, que a princípio ocorriam entre indivíduos ou entre pequenos grupos, aos poucos foram assumindo cada vez mais um choque entre as classes sociais. Mesmo sendo ainda precário o grau de unidade e sua consciência, o que existia de fato era a luta econômica, que mesmo se explicitando apenas em torno de aumento de salários e das melhorias das condições de existência, não deixaram de ter também uma significação política muito forte e de apontar para um futuro promissor. Assim, como diziam Marx e Engels, “os trabalhadores começam a formar associações contra a burguesia; lutam juntos para assegurar seu salário. Fundam organizações permanentes, de modo a se prepararem para a ocorrência de ondas esporádicas de sublevações. Em

14alguns lugares a luta explode em revolta”.A maioria dessas lutas, desencadeadas,

sobretudo, nas décadas de 1830 e 1840, estimuladas pelas precárias condições de trabalho e pelas organizações de trabalhadores, tendo à frente o movimento cartista inglês,

alcançou vitórias significativas, inclusive vitórias formais ao nível do Parlamento. Quando esses movimentos assumiram proporções inesperadas pela classe dominante, ultrapassando inclusive os limites de simples reivindicações corporativas, e se espalhou pelos principais centros econômicos e políticos da Europa, todos os setores das classes dominantes se uniram, em defesa dos princípios liberais, e esmagaram todas as iniciativas do movimento operário, que se concentrou em 1848. Sobre esses acontecimentos, esse trecho de O Capital é o suficiente para dar uma pequena demonstração do episódio:

A campanha preliminar do capital havia fracassado e a lei das 10 horas entrou em vigor em 1º de maio de 1848. Entrementes, o fiasco do partido cartista, com seus chefes na cadeia e sua organização arrebentada, tinha abalado a autoconfiança da classe trabalhadora inglesa. Logo em seguida, a insurreição parisiense de junho e seu afogamento em sangue uniram, tanto na Inglaterra quanto na Europa continental, todas as frações das classes dominantes[...]! A classe trabalhadora foi por toda parte proscrita, anatemizada, colocada sob a loi des suspects. Os senhores fabricantes já não precisavam, portanto, de constranger. Rebelaram-se [...}contra toda a legislação que a partir de 1833 procurava, de certa forma, refrear a “livre”

15exploração da força de trabalho.

A luta pela regulamentação da jornada de trabalho certamente era um dos aspectos cruciais para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores principalmente porque os meios de produção tinham ainda uma baixa incorporação de tecnologia e, portanto, a utilização da mão-de-obra em quantidade era fundamental para o processo de acumulação. Assim, a jornada de trabalho se estendia até o limite da resistência física do trabalhador, não lhe sobrando nenhum tempo para o lazer nem para a convivência com a família. Mesmo nas fábricas que partiam na frente com relação aos investimentos em novos instrumentos de trabalho, a jornada não diminuía porque o capitalista almejava recuperar o investimento feito o mais rápido possível, para aumentar sua taxa de lucro. Nessas condições, a resistência dos trabalhadores tendia a ser precária, devido à falta de planejamento nas articulações políticas que pudessem congregar um conjunto maior de trabalhadores.

Além disso, existia uma defasagem acentuada entre as vanguardas e as grandes massas de trabalhadores. Mesmo assim, Marx acatava essas iniciativas como elementos de experiência e acumulação de forças, porém assinalando, que a conquista de uma jornada de trabalho que possa ser considerada normal só era possível com a mobilização de amplas massas, transformando o movimento numa luta duradoura. Só assim era possível, segundo ele, transformar as demandas dos trabalhadores numa proposta e em ações que ultrapassassem o nível do

16imediatismo e do corporativo.11MARX, Karl, op. cit., 1985-b, cf. p. 263-272. 12Ibid. p. 277.13Idem, p. 277.14MARX e ENGELS, op. cit.,1998, p. 16.

15MARX, op. cit.,1985-a, p. 226)16Maiores detalhes sobre essa questão ver: MARX, Karl, op.cit., Capítulo VIII 1985-a, p. 211-220

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e mais tarde aos partidos políticos. Esse conflito, que a princípio era localizado, geralmente em torno das fábricas, aos poucos foi tomando dimensões enormes. Como as intermediações por meio de negociações eram quase inexistentes, devido à ausência de interlocutores consistentes e a precariedade de representatividade das classes sociais, capazes de construir qualquer tipo de consenso, eles degeneravam, não raro, em confrontos violentos. Aos poucos, este conflito foi crescendo e agregando cada vez mais segmentos diversos. De um lado, o Estado foi se tornando mais complexo, assumindo de forma cada vez mais sofisticada os interesses de uma classe, ao ponto de Marx e Engels afirmarem o seguinte: “O poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como

7um todo.”

Assim, como os grandes proprietários foram se agregando em corporações cada vez mais poderosas, com uma abrangência econômica e territorial crescentes, por outro lado, os trabalhadores foram também se agregando em torno de suas entidades representativas e avançando, conseguindo vitórias, mas sofrendo também derrotas. O próprio Marx, por exemplo, presenciou e participou de algumas dessas derrotas, como as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris, em 1871.

A característica fundamental deste conflito representava o esforço das classes dominantes para preservar o funcionamento do poder sob seu controle, e dos trabalhadores, tentando socializar as decisões políticas. As dificuldades eram derivadas da tenaz resistência da burguesia, como também da dificuldade dos trabalhadores para formular um projeto democrático, que unificasse não só os diversos interesses corporativos sociais, como também os diversos projetos políticos. Para isso, contribuía o grande poder de atração que exerciam, sobre os diversos quadros, as benesses do poder e dos cargos públicos.

Os trabalhadores procuravam utilizar diversas estratégias, inclusive a violência e paralisações na produção. Entretanto, a burguesia, além do poder econômico, contava com a participação da força pública. Ela tinha, também, o poder de encaminhar e votar as leis no Parlamento, como também possibilidades de sabotar as que beneficiavam aos trabalhadores. A Inglaterra foi o

8cenário principal para esses primeiros conflitos.

Rosa Luxemburgo, no final do século XIX e início do século XX, em sua polêmica com os moderados da social democracia alemã, demonstrava ceticismo com relação à questão das leis, que possam favorecer a classe operária. As leis podem, no máximo, representar vitórias eventuais. No fundo, a questão legal sempre foi uma estratégia utilizada pelas classes dominantes, para

7No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels não só fazem uma sintética descrição do progresso da luta dos trabalhadores, como também, assinalam a posição que o Estado assume nesse confronto. MARX, Karl; ENGELS Friedrich, op. cit. 1998. p. 10. 8Em Os Trabalhadores, Hobsbawm apresenta, numa descrição muito abrangente, tendo como cenário a Inglaterra, aspectos da luta de resistência dos trabalhadores, bem como suas principais formas de organização, desde fins do século XVIII até começos do século XX. Ver: HOBSBAWM, Eric, Os Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1981.

moderar o ímpeto do movimento dos trabalhadores. Porém, nas próximas oportunidades, quando o clima se acalma, tudo volta ao estado anterior. Para ela, a burguesia não cede um milímetro de seus privilégios, se isso significar a redução de seus lucros, sendo que o essencial no capitalismo é a relação de trabalho assalariado. A legalidade é apenas o elemento que mascara e justifica essa relação. Assim, o que distingue, segundo Luxemburgo, o capitalismo das sociedades anteriores é que nestas a exploração e a extração de um excedente era feito por instrumentos de coação política, onde predominava o exercício da força, enquanto que no capitalismo os direitos ficam subordinados, prioritariamente, às relações econômicas. Portanto, os trabalhadores não se tornaram operários por questões legais. O Estado interferiu, é certo, estabelecendo leis para coagir a mão-de-obra, forçou as pessoas a se incorporar ao mercado de trabalho, porém foi a incapacidade de garantir a sobrevivência, de forma independente, que obrigou muitos a trabalhar em troca de

9salários.

Porém, se Rosa não dava muita importância à luta dos trabalhadores via parlamento, ela também não descartava a importância desse instrumento, sobretudo como forma de propaganda, que poderia ser usado pelos representantes da classe operária como uma tribuna para denunciar as formas de exploração, como também o comportamento dos poderes públicos nas ações repressivas aos movimentos dos trabalhadores; em suma, ela sabia que a questão decisiva não se encontrava ai, na questão legal, mas sabia também que era em função da lei que no capitalismo as relações funcionavam e é geralmente, em função dela que, em primeira instância, os trabalhadores se mobilizam. Isto é, eles não incorporam, nos seus embates cotidianos com o capital, propostas muito genéricas ou abstratas, como o socialismo.

Porém, a posição de Rosa Luxemburgo só pode ser compreendida, de forma satisfatória, vista no contexto em que ela viveu, e no seu confronto com a máquina moderada do Partido Social Democrata Alemão em torno das questões sobre reforma ou revolução. Naquele momento, o movimento dos trabalhadores crescia, assim como também se fortaleciam tanto os partidos como também os sindicatos ligados à classe operária. Esta tendência favoreceu o aparecimento e o fortalecimento de um reformismo que renegava elementos fundamentais da teoria de Marx, como a questão da validade da revolução para alcançar o

10socialismo.

Acima de qualquer divergência, o certo é que as pessoas que foram expulsas das suas antigas formas de sobrevivência, procuraram sobreviver de acordo com as

9Ver LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução. São Paulo: Expressão Popular, 1999, p. 94-105.10Esse quadro animador, que se manifestava nos processos eleitorais e nas mobilizações de trabalhadores é descrito por Engels na sua Introdução de 1995. ENGELS, Friedrich, Introdução ao livro Marx: As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850. In.MARX, Karl, A Revolução Antes da Revolução. São Paulo: Expressão Popular. Cf p.37-62.

circunstâncias, resistindo a um enquadramento na nova ordem, que requeria deles uma nova forma de comportamento e uma disciplina com a qual não tinham a menor intimidade. Isto porque, com a introdução da máquina, todas aquelas habilidades manuais foram substituídas pela força mecânica e por novos processos de trabalho.

Temos de considerar, também, o fato de que o processo de desapropriação foi extremamente rápido e que as condições criadas na nova sociedade industrial para absorvê-los não se desenvolveram no mesmo ritmo. Assim, diante dessas circunstâncias, entrou em ação o Estado com a função de fazer um enquadramento

11forçado. A Inglaterra, país pioneiro nesse processo devastador e onde a situação social apresentava-se mais grave, foi também onde a legislação nesse sentido foi criada e usada com maior rigor. Marx esclarece seguinte maneira: “Assim, o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária ao

12sistema de trabalho assalariado”. Além do enquadramento forçado, no sentido de obrigar as pessoas ao trabalho nas fábricas, a burguesia, através do Estado, também promoveu uma regulação do salário para evitar não só uma concorrência entre os capitalistas, como também evitar os movimentos de reivindicações através de ações políticas. Assim,

a burguesia nascente precisa e emprega a força do Estado para 'regular' o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites convenientes à extração de mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada

13acumulação primitiva.

Esses conflitos, entre burgueses e trabalhadores, que a princípio ocorriam entre indivíduos ou entre pequenos grupos, aos poucos foram assumindo cada vez mais um choque entre as classes sociais. Mesmo sendo ainda precário o grau de unidade e sua consciência, o que existia de fato era a luta econômica, que mesmo se explicitando apenas em torno de aumento de salários e das melhorias das condições de existência, não deixaram de ter também uma significação política muito forte e de apontar para um futuro promissor. Assim, como diziam Marx e Engels, “os trabalhadores começam a formar associações contra a burguesia; lutam juntos para assegurar seu salário. Fundam organizações permanentes, de modo a se prepararem para a ocorrência de ondas esporádicas de sublevações. Em

14alguns lugares a luta explode em revolta”.A maioria dessas lutas, desencadeadas,

sobretudo, nas décadas de 1830 e 1840, estimuladas pelas precárias condições de trabalho e pelas organizações de trabalhadores, tendo à frente o movimento cartista inglês,

alcançou vitórias significativas, inclusive vitórias formais ao nível do Parlamento. Quando esses movimentos assumiram proporções inesperadas pela classe dominante, ultrapassando inclusive os limites de simples reivindicações corporativas, e se espalhou pelos principais centros econômicos e políticos da Europa, todos os setores das classes dominantes se uniram, em defesa dos princípios liberais, e esmagaram todas as iniciativas do movimento operário, que se concentrou em 1848. Sobre esses acontecimentos, esse trecho de O Capital é o suficiente para dar uma pequena demonstração do episódio:

A campanha preliminar do capital havia fracassado e a lei das 10 horas entrou em vigor em 1º de maio de 1848. Entrementes, o fiasco do partido cartista, com seus chefes na cadeia e sua organização arrebentada, tinha abalado a autoconfiança da classe trabalhadora inglesa. Logo em seguida, a insurreição parisiense de junho e seu afogamento em sangue uniram, tanto na Inglaterra quanto na Europa continental, todas as frações das classes dominantes[...]! A classe trabalhadora foi por toda parte proscrita, anatemizada, colocada sob a loi des suspects. Os senhores fabricantes já não precisavam, portanto, de constranger. Rebelaram-se [...}contra toda a legislação que a partir de 1833 procurava, de certa forma, refrear a “livre”

15exploração da força de trabalho.

A luta pela regulamentação da jornada de trabalho certamente era um dos aspectos cruciais para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores principalmente porque os meios de produção tinham ainda uma baixa incorporação de tecnologia e, portanto, a utilização da mão-de-obra em quantidade era fundamental para o processo de acumulação. Assim, a jornada de trabalho se estendia até o limite da resistência física do trabalhador, não lhe sobrando nenhum tempo para o lazer nem para a convivência com a família. Mesmo nas fábricas que partiam na frente com relação aos investimentos em novos instrumentos de trabalho, a jornada não diminuía porque o capitalista almejava recuperar o investimento feito o mais rápido possível, para aumentar sua taxa de lucro. Nessas condições, a resistência dos trabalhadores tendia a ser precária, devido à falta de planejamento nas articulações políticas que pudessem congregar um conjunto maior de trabalhadores.

Além disso, existia uma defasagem acentuada entre as vanguardas e as grandes massas de trabalhadores. Mesmo assim, Marx acatava essas iniciativas como elementos de experiência e acumulação de forças, porém assinalando, que a conquista de uma jornada de trabalho que possa ser considerada normal só era possível com a mobilização de amplas massas, transformando o movimento numa luta duradoura. Só assim era possível, segundo ele, transformar as demandas dos trabalhadores numa proposta e em ações que ultrapassassem o nível do

16imediatismo e do corporativo.11MARX, Karl, op. cit., 1985-b, cf. p. 263-272. 12Ibid. p. 277.13Idem, p. 277.14MARX e ENGELS, op. cit.,1998, p. 16.

15MARX, op. cit.,1985-a, p. 226)16Maiores detalhes sobre essa questão ver: MARX, Karl, op.cit., Capítulo VIII 1985-a, p. 211-220

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (57-62)

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A princípio, os movimentos, apesar de significativos, não possuíam, ainda, a organização e a articulação entre as vanguardas e o conjunto dos trabalhadores. A importância deles residia no fato de que abriram os caminhos e demonstraram, para toda a sociedade, sobretudo para as camadas populares, não só o grau e o nível de exploração como também assumiram as responsabilidades pelos riscos, demonstrando, com isso, que a reação não só era possível como necessária. Essa bravura, porém, mostrou os limites da capacidade dos trabalhadores para um enfrentamento de grandes proporções. Não só as condições materiais eram muito precárias, devido ao pequeno grau de articulação e de cultura política, como a própria relação de trabalho no capitalismo era também embrionária. Tudo isso dificultava não só a realização das ações, como também a compreensão do que realmente se queria mudar. Muitas vezes, por exemplo, dirigiam seus ataques “contra os próprios instrumentos de produção” destruindo “as mercadorias concorrentes vindas de fora”, depredando as máquinas, incendiando as fábricas, procurando “reconquistar a posição perdida do trabalhador na

17Idade Média”. Os movimentos, não raro, não possuíam uma noção aproximada das reais possibilidades, por isso, buscavam uma espécie de paraíso igualitário perdido. De qualquer maneira, Marx estava convencido de que, qualquer resultado favorável “...não seria alcançado por acordos particulares entre os operários e os capitalistas. É a necessidade de uma ação política geral que demonstra claramente que, na luta puramente

18econômica, o capital é a parte mais forte”.

Os primeiros movimentos da classe operária que podemos considerar com alguma consistência só reapareceram a partir da década de 1860, com a rearticulação após os movimentos revolucionários de 1848. Isto porque, as conseqüências das derrotas daqueles movimentos, provocaram um grande retrocesso. De um lado, as organizações foram destruídas; e por outro, o capitalismo começou um período de desenvolvimento e de expansão que favoreciam as posições e reações da burguesia. Porém, apesar das derrotas, os trabalhadores aprenderam e se convenceram de que suas lutas não podiam ficar atreladas nem ao passado e nem aos interesses das classes dominantes. A rearticulação do movimento demorou décadas e, mesmo assim, com articulações de cúpulas, sem muita correspondência com o movimento real.

Podemos mencionar, por exemplo, a existência de várias iniciativas, nos principais centros do capitalismo, porém, iniciativas formais, cheias de nobres intenções, mas que não exprimiam a realidade dos locais de trabalho e nem mobilizavam as bases efetivas da classe operária. Porém, elas contribuíram para um revigoramento da luta, inclusive com um peso forte para as conquistas democráticas. Nos Estados Unidos da América, em agosto de 1866, “O congresso geral dos trabalhadores de Baltimore” tirou uma resolução, transcrita por Marx que dizia o seguinte; “A primeira e

mais importante exigência dos tempos presentes para libertar o trabalhador da escravidão capitalista é a promulgação de uma lei, pela qual deve ser estabelecida uma jornada normal de trabalho de oito horas (...) Estamos decididos a empregar todas as nossas forças até

19termos alcançado esse glorioso resultado”.Marx transcreve outra resolução dos

trabalhadores num congresso internacional, realizado em Genebra, apresentada pelo Conselho Geral de Londres, onde dizia o seguinte: “Declaramos a limitação da jornada de trabalho uma condição preliminar, sem a qual todas as demais tentativas para a emancipação devem necessariamente fracassar (...) Propomos oito horas de

20trabalho como limite legal da jornada de trabalho”. Em função dessas declarações, é importante considerar que os Estados Unidos tinham saído, um ano antes, de uma guerra civil, quando as forças dos estados do Norte impuseram uma derrota aos estados escravistas do Sul, trazendo como consequência a libertação dos escravos e o início de uma expansão extraordinária do capitalismo naquele país, criando as condições para que os trabalhadores melhorassem sua influência nesse processo. Por outro lado, na Inglaterra, os trabalhadores procuravam aproveitar uma situação em que este país consolidava sua hegemonia num processo internacional do trabalho e se apresentava perante o mundo como um país defensor dos direitos, combatendo inclusive todas as formas de escravidão e servidão em todas as partes do mundo.

Observamos, por essas manifestações de solidariedade dos trabalhadores, em várias partes do mundo, através de suas entidades representativas, uma perspectiva verdadeiramente promissora para o movimento internacional dos trabalhadores. Isso foi muito importante no sentido de apontar um caminho para o futuro. No entanto, comparado ao movimento do capital, tanto no sentido da expansão econômica como no sentido da propagação dos conflitos armados entre as nações, observamos a desproporção de forças. Nesse sentido, não podemos descartar as influências culturais da época, marcadas por uma dosagem de romantismo. Este movimento, que permeava todos os traços da civilização do século XIX, que se caracterizava pelos grandes feitos realizados por personagens emblemáticos ou por pequenos grupos convencidos de uma grande superioridade moral, influenciava aquelas lideranças que possuíam pouca representatividade entre os trabalhadores, porém se inspiravam neles e acreditavam poder mudar a realidade existente sem eles. Visualizavam uma libertação e uma democracia sem nenhuma estratégia política, sem partidos e sem confrontos práticos. Marx não era um romântico, porém, como homem do seu tempo e “absorvido apaixonadamente pela nobre vontade de transformar uma sociedade injusta e substituí-la rapidamente por uma outra melhor, Marx foi levado a privilegiar... os movimentos históricos

21que se realizam em ritmos mais ou menos acelerados.”

17MARX & ENGELS, op. cit., 1998, p. 16.18MARX, op. cit., 2004, p. 94-95.

19MARX, 1985-a, op. cit., , p. 237.20Idem, p. 23721KONDER, Leandro, O Futuro de filosofia da Práxis: O pensamento de Marx no século XXI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 46.

ARTIGO - A luta dos trabalhadores no tempo de Marx

Assim, podemos concluir que a resistência dos trabalhadores contra as manobras das classes dominantes era ainda muito precária, principalmente nos momentos de grandes conflitos armados, envolvendo grandes potências. Eles prejudicavam profundamente a vida dos trabalhadores, não só pelas devastações que provocavam, como também pelas destruições na produção, quando os pobres tornavam-se as grandes vítimas, como também pelos processos de mobilizações que recrutavam grande parte dos trabalhadores, obrigando-os a abandonar seus trabalhos e suas famílias. Antes da guerra que envolveu a França e a Alemanha, lideranças importantes estavam convencidas que podiam interferir ou até mudar o rumo dos acontecimentos quando afirmam:

A classe operária estende uma mão fraterna aos trabalhadores da França e da Alemanha. [...] Enquanto a França e a Alemanha oficiais se precipitam numa luta fratricida, os operários da França e da Alemanha trocam mensagens de paz e de amizade. Este fato único, sem paralelo na história do passado, abre a via a um futuro mais luminoso. Ele prova que, em oposição à velha sociedade, com as suas misérias econômicas e o seu delírio político, está a nascer uma nova sociedade, cuja regra internacional será a Paz, porque em cada nação reinará o mesmo princípio: o Trabalho! O pioneiro desta nova sociedade é a Associação Internacional dos

22Trabalhadores.

Esse comunicado não contribuiu, de forma significativa, para preservar a paz porque sua representação estava muito aquém do que era necessário. O poder dos Estados, que conseguiam aglutinar em torno de si as principais forças econômicas, era imensamente superior às pretensões dos grupos pacifistas e revolucionários. Até porque as guerras, naquelas circunstâncias, exatamente quando se iniciavam as grandes disputas entre as potências imperialistas, tendiam a sensibilizar multidões em função da questão nacional que acenava com a possibilidade da grandeza da pátria e a melhoria das condições de vida da população que podiam vir através das conquistas. De qualquer maneira, mesmo em grande desvantagem, os operários tomaram consciência de que a luta era essencial para que a tragédia não se aprofundasse; e a luta imediata, corporativa, aquela que ele trava todos os dias, regra geral, tem duas alternativas, que são concomitantes: uma, é a redução da jornada de trabalho; outra, o aumento nominal dos salários. O objetivo era encontrar um equilíbrio, porque sabiam que, se as condições de trabalho continuassem dependentes da vontade dos capitalistas, a exploração alcançaria o limite máximo das possibilidades físicas dos trabalhadores e suas condições se degradariam ao nível do trabalho escravo.

A argumentação de Marx refletia as condições dos trabalhadores no momento e tornava-se imprescindível para a mobilização em torno da modificação das condições imediatas, assim como também sinalizavam para a possibilidade de conquistas

22MARX, Karl. A Guerra Civil em França. Lisboa: Ed. Estampa, 1976. Biblioteca do Socialismo Científico.

maiores. Era esse processo de acumulação de forças, que provocava em Marx e Engels uma convicção de que o modo de produção capitalista era um modelo de sociedade historicamente condenado a desaparecer a partir de suas próprias contradições; e o proletariado seria o agente fundamental desta transformação porque ele não tinha nada a perder e o futuro para ganhar. Assim, mesmo reconhecendo, circunstancialmente, a superioridade da burguesia, não só pelo seu poder econômico, mas também pela possibilidade de mobilizar as forças do Estado, porém, esta capacidade que a classe operária possuía de, resistir à exploração e a opressão, levaria, segundo Marx e Engels, a um desfecho mais definitivo, quando afirmam que: “Ao delinear as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, descrevemos a guerra civil mais ou menos oculta que se trava no interior da sociedade atual, até o ponto em que ela explode em revolução aberta e o proletariado funda seu domínio

23através da derrubada violenta da burguesia”.

Porém, esses confrontos , puramente corporativos, motivados apenas pelos interesses imediatos, quando desvinculados de qualquer estratégia de futuro, tendiam geralmente ao fracasso. As possibilidades dos trabalhadores aumentavam de forma significativa quando os interesses específicos casavam com os interesses mais gerais da política. E, nesse caso, a luta pela democracia apresentava uma motivação expressiva. Para Marx, os operários “Não deve[m] se esquecer que a luta é contra os efeitos, mas não contra as causas dos efeitos (...) A classe operária deve saber que o sistema atual (...) engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para

24uma reconstrução econômica da sociedade.”Para o revolucionário alemão, essa resistência

dos trabalhadores, por mais importante que fosse não podia abandonar o que era central no seu objetivo maior, que era a luta política contra a exploração do capital sobre o trabalho. Para ele, os sindicatos eram entidades que cumpriam um papel muito importante na organização dos trabalhadores, no seu embate contra o patronato no sentido de resistirem contra os efeitos da exploração. Porém, deviam, “ao mesmo tempo, se esforçarem para transformá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do

25sistema de trabalho assalariado”.

26Lênin, principalmente no seu livro Que fazer?

trata dessa questão de maneira importante. Para ele, nem os trabalhadores na sua luta cotidiana contra os capitalistas nem os sindicatos de representação corporativa, tinham a capacidade e nem o entendimento suficiente para liderar uma luta contra o sistema em seu conjunto. A luta política, com essa tarefa, não podia desenvolver-se por ai. Ela podia, no entanto, ser o começo. Porém, a luta política, em seu sentido mais geral, com objetivo transformador só podia ser empreendida

23MARX & ENGELS, op. cit. 1998,p. 19.24MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: ANTUNES, Ricardo (org.), op. cit., 2004, p. 98)25Idem. p. 99. 26LÊNIN, Vladimir Ilich, Que Fazer? São Paulo: Hucitec, 1978, p. 23-26.

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A princípio, os movimentos, apesar de significativos, não possuíam, ainda, a organização e a articulação entre as vanguardas e o conjunto dos trabalhadores. A importância deles residia no fato de que abriram os caminhos e demonstraram, para toda a sociedade, sobretudo para as camadas populares, não só o grau e o nível de exploração como também assumiram as responsabilidades pelos riscos, demonstrando, com isso, que a reação não só era possível como necessária. Essa bravura, porém, mostrou os limites da capacidade dos trabalhadores para um enfrentamento de grandes proporções. Não só as condições materiais eram muito precárias, devido ao pequeno grau de articulação e de cultura política, como a própria relação de trabalho no capitalismo era também embrionária. Tudo isso dificultava não só a realização das ações, como também a compreensão do que realmente se queria mudar. Muitas vezes, por exemplo, dirigiam seus ataques “contra os próprios instrumentos de produção” destruindo “as mercadorias concorrentes vindas de fora”, depredando as máquinas, incendiando as fábricas, procurando “reconquistar a posição perdida do trabalhador na

17Idade Média”. Os movimentos, não raro, não possuíam uma noção aproximada das reais possibilidades, por isso, buscavam uma espécie de paraíso igualitário perdido. De qualquer maneira, Marx estava convencido de que, qualquer resultado favorável “...não seria alcançado por acordos particulares entre os operários e os capitalistas. É a necessidade de uma ação política geral que demonstra claramente que, na luta puramente

18econômica, o capital é a parte mais forte”.

Os primeiros movimentos da classe operária que podemos considerar com alguma consistência só reapareceram a partir da década de 1860, com a rearticulação após os movimentos revolucionários de 1848. Isto porque, as conseqüências das derrotas daqueles movimentos, provocaram um grande retrocesso. De um lado, as organizações foram destruídas; e por outro, o capitalismo começou um período de desenvolvimento e de expansão que favoreciam as posições e reações da burguesia. Porém, apesar das derrotas, os trabalhadores aprenderam e se convenceram de que suas lutas não podiam ficar atreladas nem ao passado e nem aos interesses das classes dominantes. A rearticulação do movimento demorou décadas e, mesmo assim, com articulações de cúpulas, sem muita correspondência com o movimento real.

Podemos mencionar, por exemplo, a existência de várias iniciativas, nos principais centros do capitalismo, porém, iniciativas formais, cheias de nobres intenções, mas que não exprimiam a realidade dos locais de trabalho e nem mobilizavam as bases efetivas da classe operária. Porém, elas contribuíram para um revigoramento da luta, inclusive com um peso forte para as conquistas democráticas. Nos Estados Unidos da América, em agosto de 1866, “O congresso geral dos trabalhadores de Baltimore” tirou uma resolução, transcrita por Marx que dizia o seguinte; “A primeira e

mais importante exigência dos tempos presentes para libertar o trabalhador da escravidão capitalista é a promulgação de uma lei, pela qual deve ser estabelecida uma jornada normal de trabalho de oito horas (...) Estamos decididos a empregar todas as nossas forças até

19termos alcançado esse glorioso resultado”.Marx transcreve outra resolução dos

trabalhadores num congresso internacional, realizado em Genebra, apresentada pelo Conselho Geral de Londres, onde dizia o seguinte: “Declaramos a limitação da jornada de trabalho uma condição preliminar, sem a qual todas as demais tentativas para a emancipação devem necessariamente fracassar (...) Propomos oito horas de

20trabalho como limite legal da jornada de trabalho”. Em função dessas declarações, é importante considerar que os Estados Unidos tinham saído, um ano antes, de uma guerra civil, quando as forças dos estados do Norte impuseram uma derrota aos estados escravistas do Sul, trazendo como consequência a libertação dos escravos e o início de uma expansão extraordinária do capitalismo naquele país, criando as condições para que os trabalhadores melhorassem sua influência nesse processo. Por outro lado, na Inglaterra, os trabalhadores procuravam aproveitar uma situação em que este país consolidava sua hegemonia num processo internacional do trabalho e se apresentava perante o mundo como um país defensor dos direitos, combatendo inclusive todas as formas de escravidão e servidão em todas as partes do mundo.

Observamos, por essas manifestações de solidariedade dos trabalhadores, em várias partes do mundo, através de suas entidades representativas, uma perspectiva verdadeiramente promissora para o movimento internacional dos trabalhadores. Isso foi muito importante no sentido de apontar um caminho para o futuro. No entanto, comparado ao movimento do capital, tanto no sentido da expansão econômica como no sentido da propagação dos conflitos armados entre as nações, observamos a desproporção de forças. Nesse sentido, não podemos descartar as influências culturais da época, marcadas por uma dosagem de romantismo. Este movimento, que permeava todos os traços da civilização do século XIX, que se caracterizava pelos grandes feitos realizados por personagens emblemáticos ou por pequenos grupos convencidos de uma grande superioridade moral, influenciava aquelas lideranças que possuíam pouca representatividade entre os trabalhadores, porém se inspiravam neles e acreditavam poder mudar a realidade existente sem eles. Visualizavam uma libertação e uma democracia sem nenhuma estratégia política, sem partidos e sem confrontos práticos. Marx não era um romântico, porém, como homem do seu tempo e “absorvido apaixonadamente pela nobre vontade de transformar uma sociedade injusta e substituí-la rapidamente por uma outra melhor, Marx foi levado a privilegiar... os movimentos históricos

21que se realizam em ritmos mais ou menos acelerados.”

17MARX & ENGELS, op. cit., 1998, p. 16.18MARX, op. cit., 2004, p. 94-95.

19MARX, 1985-a, op. cit., , p. 237.20Idem, p. 23721KONDER, Leandro, O Futuro de filosofia da Práxis: O pensamento de Marx no século XXI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 46.

ARTIGO - A luta dos trabalhadores no tempo de Marx

Assim, podemos concluir que a resistência dos trabalhadores contra as manobras das classes dominantes era ainda muito precária, principalmente nos momentos de grandes conflitos armados, envolvendo grandes potências. Eles prejudicavam profundamente a vida dos trabalhadores, não só pelas devastações que provocavam, como também pelas destruições na produção, quando os pobres tornavam-se as grandes vítimas, como também pelos processos de mobilizações que recrutavam grande parte dos trabalhadores, obrigando-os a abandonar seus trabalhos e suas famílias. Antes da guerra que envolveu a França e a Alemanha, lideranças importantes estavam convencidas que podiam interferir ou até mudar o rumo dos acontecimentos quando afirmam:

A classe operária estende uma mão fraterna aos trabalhadores da França e da Alemanha. [...] Enquanto a França e a Alemanha oficiais se precipitam numa luta fratricida, os operários da França e da Alemanha trocam mensagens de paz e de amizade. Este fato único, sem paralelo na história do passado, abre a via a um futuro mais luminoso. Ele prova que, em oposição à velha sociedade, com as suas misérias econômicas e o seu delírio político, está a nascer uma nova sociedade, cuja regra internacional será a Paz, porque em cada nação reinará o mesmo princípio: o Trabalho! O pioneiro desta nova sociedade é a Associação Internacional dos

22Trabalhadores.

Esse comunicado não contribuiu, de forma significativa, para preservar a paz porque sua representação estava muito aquém do que era necessário. O poder dos Estados, que conseguiam aglutinar em torno de si as principais forças econômicas, era imensamente superior às pretensões dos grupos pacifistas e revolucionários. Até porque as guerras, naquelas circunstâncias, exatamente quando se iniciavam as grandes disputas entre as potências imperialistas, tendiam a sensibilizar multidões em função da questão nacional que acenava com a possibilidade da grandeza da pátria e a melhoria das condições de vida da população que podiam vir através das conquistas. De qualquer maneira, mesmo em grande desvantagem, os operários tomaram consciência de que a luta era essencial para que a tragédia não se aprofundasse; e a luta imediata, corporativa, aquela que ele trava todos os dias, regra geral, tem duas alternativas, que são concomitantes: uma, é a redução da jornada de trabalho; outra, o aumento nominal dos salários. O objetivo era encontrar um equilíbrio, porque sabiam que, se as condições de trabalho continuassem dependentes da vontade dos capitalistas, a exploração alcançaria o limite máximo das possibilidades físicas dos trabalhadores e suas condições se degradariam ao nível do trabalho escravo.

A argumentação de Marx refletia as condições dos trabalhadores no momento e tornava-se imprescindível para a mobilização em torno da modificação das condições imediatas, assim como também sinalizavam para a possibilidade de conquistas

22MARX, Karl. A Guerra Civil em França. Lisboa: Ed. Estampa, 1976. Biblioteca do Socialismo Científico.

maiores. Era esse processo de acumulação de forças, que provocava em Marx e Engels uma convicção de que o modo de produção capitalista era um modelo de sociedade historicamente condenado a desaparecer a partir de suas próprias contradições; e o proletariado seria o agente fundamental desta transformação porque ele não tinha nada a perder e o futuro para ganhar. Assim, mesmo reconhecendo, circunstancialmente, a superioridade da burguesia, não só pelo seu poder econômico, mas também pela possibilidade de mobilizar as forças do Estado, porém, esta capacidade que a classe operária possuía de, resistir à exploração e a opressão, levaria, segundo Marx e Engels, a um desfecho mais definitivo, quando afirmam que: “Ao delinear as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado, descrevemos a guerra civil mais ou menos oculta que se trava no interior da sociedade atual, até o ponto em que ela explode em revolução aberta e o proletariado funda seu domínio

23através da derrubada violenta da burguesia”.

Porém, esses confrontos , puramente corporativos, motivados apenas pelos interesses imediatos, quando desvinculados de qualquer estratégia de futuro, tendiam geralmente ao fracasso. As possibilidades dos trabalhadores aumentavam de forma significativa quando os interesses específicos casavam com os interesses mais gerais da política. E, nesse caso, a luta pela democracia apresentava uma motivação expressiva. Para Marx, os operários “Não deve[m] se esquecer que a luta é contra os efeitos, mas não contra as causas dos efeitos (...) A classe operária deve saber que o sistema atual (...) engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para

24uma reconstrução econômica da sociedade.”Para o revolucionário alemão, essa resistência

dos trabalhadores, por mais importante que fosse não podia abandonar o que era central no seu objetivo maior, que era a luta política contra a exploração do capital sobre o trabalho. Para ele, os sindicatos eram entidades que cumpriam um papel muito importante na organização dos trabalhadores, no seu embate contra o patronato no sentido de resistirem contra os efeitos da exploração. Porém, deviam, “ao mesmo tempo, se esforçarem para transformá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do

25sistema de trabalho assalariado”.

26Lênin, principalmente no seu livro Que fazer?

trata dessa questão de maneira importante. Para ele, nem os trabalhadores na sua luta cotidiana contra os capitalistas nem os sindicatos de representação corporativa, tinham a capacidade e nem o entendimento suficiente para liderar uma luta contra o sistema em seu conjunto. A luta política, com essa tarefa, não podia desenvolver-se por ai. Ela podia, no entanto, ser o começo. Porém, a luta política, em seu sentido mais geral, com objetivo transformador só podia ser empreendida

23MARX & ENGELS, op. cit. 1998,p. 19.24MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: ANTUNES, Ricardo (org.), op. cit., 2004, p. 98)25Idem. p. 99. 26LÊNIN, Vladimir Ilich, Que Fazer? São Paulo: Hucitec, 1978, p. 23-26.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (57-62)

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27O capital constante, que são os meios de produção – matérias primas, matérias auxiliares e instrumentos de trabalho - , não se alteram ao participar do processo; enquanto o capital variável – a força do trabalho se altera. “Reproduz o seu próprio equivalente acrescido de um excedente, uma mais-valia...” MARX, Karl, Textos Econômicos, Lisboa, Ed. Estampa, 1973, p. 69.

por algo que viesse de fora dessa relação e se concretizasse na organização de um partido político que fosse capaz de congregar em torno de si as demandas sociais de uma maneira geral e articulá-las num projeto político global. Portanto, para Lênin, numa compreensão extraordinariamente atual, o processo revolucionário não nascia das lutas dos operários porque estas não produziam uma consciência socialista. Esta nascia e crescia evidentemente no próprio seio de funcionamento do capitalismo, porém, não era algo natural; ela era algo que se desenvolvia, segundo Lênin, baseada em fundamentos teóricos e que se efetivava numa prática política em relação com o movimento operário.

Lênin, portanto, queria dizer que sem uma teoria revolucionária não era possível a revolução e essa teoria não era uma produção puramente empírica, produzida pelas relações imediatas de trabalho, mas isso não quer dizer que delas prescindisse. A teoria era uma produção intelectual que, segundo ele, era realizada por vanguardas, teóricos, que articulavam a teoria, a organização e a estratégia com a prática dos homens nas suas relações sociais.

Logo, só um partido político revolucionário seria capaz de conceber um projeto de caráter realmente universal, que a partir das posições de uma classe fosse capaz de superar todos os interesses particulares. Nesta fase do capitalismo, que estamos descrevendo, quando as transformações ainda estavam provocando um grande impacto social e a organização da classe operária era ainda muito incipiente, a existência de um partido, conforme ele previu mais adiante, era quase impossível.

As formas de produção, na grande indústria, com a sua concentração cada vez mais acelerada, agravavam cada vez mais as contradições e os antagonismos, primeiro porque com a introdução da máquina, grande parte das formas de produção anteriores ou eram submetidas e perdiam a autonomia ou desapareciam pela concorrência, deixando um rastro de misérias; segundo, porque ao racionalizar a produção e aumentar a

27proporção do capital constante sobre o capital variável, um grande contingente sobrava e tornava-se excedente. Isto resultava na formação de uma multidão de desempregados, aumentando a concorrência entre os próprios trabalhadores, provocando cada vez mais um agravamento da situação, devido ao aumento da exploração e da opressão, assim como também dificultando as estratégias e as possibilidades de mudança. Porém, apesar de todas as dificuldades, para Marx,

a construção do futuro procura ligar passado e p r e s en t e , como des dob ramen to da s possibilidades neles contidas, através da ação humana. É sua capacidade de identificar as tensões principais, o cerne da manutenção das classes dominantes, que permite imaginar um futuro radicalmente transformado. Mas é ela que

permite acumular lutas, reagir e resistir, alterando o padrão do conflito e construindo –

28abrindo – mais possibilidades.

Assim, é diante desse quadro que a classe operária, a partir do século XIX, vai se debater para encontrar uma alternativa com direção à construção de um regime verdadeiramente democrático.

Considerações FinaisA primeira conclusão que devo tirar do texto

acima é que, no século XIX, mesmo sendo a exploração num grau muito acentuado, a capacidade da classe trabalhadora de impor uma resistência de forma mais organizada que pudesse ameaçar seriamente o domínio do capital, era ainda muito reduzida. O movimento, regra geral, ocorria de maneira muito fragmentada, com respostas tópicas a determinadas situações específicas e com reivindicações, no essencial, muito corporativas.

A segunda é que os conflitos geralmente degeneravam em violência, na medida em que, naquelas circunstâncias, a política era algo exclusiva dos grupos dominantes, que estendiam seus interesses privados à esfera dos interesses públicos e tinham no Estado como o e lemento de sua represen tação exc lus iva , impossibilitando ou dificultando processos de negociações.

Artigo recebido em 16.9.2011Aprovado em 14.11.2011

28FONTES, Virginia. O Manifesto Comunista e o pensamento histórico. In: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.), op.cit., p. 167.

ARTIGO - A luta dos trabalhadores no tempo de Marx

*Renato da Silva Della Vechia

O Diretório Estadual de Estudantes noRio Grande do Sul e seu papel de aparelho

ideológico do Regime Militar

*Professor de Ciência Política na UCPEL; mestre e doutor em Ciência Política pela UFRGS.1Entenda-se aqui DCE livre como aqueles não controlados política e ideologicamente pelas reitorias.2João Carlos Gastal Junior foi estudante de Direito e filho do ex prefeito de Pelotas e ex deputado estadual João Carlos Gastal. Foi o primeiro estudante preso em Pelotas em uma manifestação (19 de maio de 1977) contra o chamado Pacote de Abril. Hoje trabalha como técnico do quadro permanente do Senado Federal.3Rogério Dornelles era estudante de Medicina na UFRGS, militante do MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado e foi vice-presidente da UEE Livre gestão 1980/81.4Paulo Cézar da Rosa era estudante de Comunicação Social na UFRGS, foi membro da direção do DCE da UFRGS em 1979, membro da comissão pró UNE e da diretoria da UEE Livre gestão 1981/82.

presença de uma entidade nos moldes do Diretório Estadual de Estudantes (DEE), no Rio Grande do Sul, torna mais clara a existência de uma direita organizada e disposta a disputar ideologicamente suas posições. Diferente de outros estados, onde

1simplesmente não existiam DCEs livres ou então havia algum tipo de trabalho assistencialista (que tanto podia ser fruto de uma concepção de direita como de um processo de despolitização), no Rio Grande do Sul havia outras variáveis.

Para João Carlos Gastal Junior, militante na época, sua opinião é que:

(...) a existência do DEE no RS era reflexo fiel da presença de uma direita estudantil mais organizada, atuante e influente em nosso estado do que nos demais. Assim, parece-me que somente no RS o processo de reconstrução das entidades e do movimento envolveu uma disputa mais significativa com a direita (...) A percepção que eu tinha, na época, é de que, em outros estados, o esforço dos militantes de esquerda era no sentido de chamar o conjunto dos estudantes para o movimento, de organizá-los, não sendo o enfrentamento de uma direita estudantil, de modo geral, uma questão colocada (Entrevista por email com João Carlos Gastal Junior –

2janeiro de 2011).

3Na opinião de Rogério Dornelles, essa direita organizada não só existia na época como ainda se mantém. Para ele: “o DEE só se manteve em nosso Estado porque aqui existe uma direita ideológica e organizada que no atual momento se unifica no anti-petismo e no movimento sindical tem seu expoente nas entidades médicas” (entrevista feita por email em fevereiro de 2011). Pensamento parecido com o de Paulo Cézar da

4Rosa, representante do DCE UFRGS na comissão pró

UNE e na comissão de DCEs que constituíram a UEE Livre. Para ele,

O DEE existiu no RS porque aqui - como até hoje - tínhamos uma direita militante, que fazia a disputa política no dia a dia. O DEE foi um obstáculo a mais no processo de reconstrução. Gastou-se muitas horas de discussão sobre o que fazer com o DEE: ocupar ou destruir? (Entrevista por email com Paulo Cezar da Rosa – janeiro de 2011).

Para que possamos entender o porque do DEE do RS ter sido o único no país a se manter enquanto tal, mesmo após o surgimento do Decreto Lei 477 que acabou com o DNE (1969) e demais DEEs do país, é necessário uma pequena retrospectiva.

5A UEE do RS surgiu em 1934, antes, portanto, do próprio surgimento da UNE. Quando Leonel Brizola se elegeu governador do Rio Grande do Sul (gestão 1958/62) doou uma sede à entidade, a qual se situava na rua Senhor dos Passos, nº 235, 3º andar, em Porto Alegre. A partir do período militar, com o surgimento da lei 4.464 em 1964 (também conhecida como Lei Suplicy de Lacerda), a UNE é extinta juntamente com as UEEs, e em seu lugar é criado o Diretório Nacional de Estudantes (DNE) e os Diretórios Estaduais de Estudantes (DEEs). No Rio Grande do Sul os estudantes mantiveram a UEE ainda por algum tempo.

Na última eleição direta para a UEE/RS, em 1966, venceu uma chapa de direita, denominada Decisão. A partir desse momento, em função da lei que acabava com as UEEs, esse grupo simplesmente mudou o nome

6para DEE. Como havia o problema legal da sede que estava em nome da UEE, criaram então a sigla DEE/UEE, sendo que ao mesmo tempo atendiam às regras do regime e mantinham o patrimônio que originalmente era da UEE. Foi excluída dos estatutos a condição de entidade representativa e esta passou a ser uma entidade de cunho cultural e assistencial dos universitários.

Na medida em que era uma entidade que estava alinhada ao regime, e que criou um mecanismo de sucessão controlada ideologicamente, sem nenhuma possibilidade da esquerda retomar a entidade; as autoridades públicas sempre apoiaram explicitamente o DEE, inclusive participando de suas atividades e frequentemente recebendo dirigentes do DEE e liberando recursos públicos para seus projetos.

5Informação do jornal O Minuano, ano III, nº 9, março/abril de 1977.6Em um congresso do DEE realizado em 1967 em Santa Maria (jornal O Minuano).

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (63-67)

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27O capital constante, que são os meios de produção – matérias primas, matérias auxiliares e instrumentos de trabalho - , não se alteram ao participar do processo; enquanto o capital variável – a força do trabalho se altera. “Reproduz o seu próprio equivalente acrescido de um excedente, uma mais-valia...” MARX, Karl, Textos Econômicos, Lisboa, Ed. Estampa, 1973, p. 69.

por algo que viesse de fora dessa relação e se concretizasse na organização de um partido político que fosse capaz de congregar em torno de si as demandas sociais de uma maneira geral e articulá-las num projeto político global. Portanto, para Lênin, numa compreensão extraordinariamente atual, o processo revolucionário não nascia das lutas dos operários porque estas não produziam uma consciência socialista. Esta nascia e crescia evidentemente no próprio seio de funcionamento do capitalismo, porém, não era algo natural; ela era algo que se desenvolvia, segundo Lênin, baseada em fundamentos teóricos e que se efetivava numa prática política em relação com o movimento operário.

Lênin, portanto, queria dizer que sem uma teoria revolucionária não era possível a revolução e essa teoria não era uma produção puramente empírica, produzida pelas relações imediatas de trabalho, mas isso não quer dizer que delas prescindisse. A teoria era uma produção intelectual que, segundo ele, era realizada por vanguardas, teóricos, que articulavam a teoria, a organização e a estratégia com a prática dos homens nas suas relações sociais.

Logo, só um partido político revolucionário seria capaz de conceber um projeto de caráter realmente universal, que a partir das posições de uma classe fosse capaz de superar todos os interesses particulares. Nesta fase do capitalismo, que estamos descrevendo, quando as transformações ainda estavam provocando um grande impacto social e a organização da classe operária era ainda muito incipiente, a existência de um partido, conforme ele previu mais adiante, era quase impossível.

As formas de produção, na grande indústria, com a sua concentração cada vez mais acelerada, agravavam cada vez mais as contradições e os antagonismos, primeiro porque com a introdução da máquina, grande parte das formas de produção anteriores ou eram submetidas e perdiam a autonomia ou desapareciam pela concorrência, deixando um rastro de misérias; segundo, porque ao racionalizar a produção e aumentar a

27proporção do capital constante sobre o capital variável, um grande contingente sobrava e tornava-se excedente. Isto resultava na formação de uma multidão de desempregados, aumentando a concorrência entre os próprios trabalhadores, provocando cada vez mais um agravamento da situação, devido ao aumento da exploração e da opressão, assim como também dificultando as estratégias e as possibilidades de mudança. Porém, apesar de todas as dificuldades, para Marx,

a construção do futuro procura ligar passado e p r e s en t e , como des dob ramen to da s possibilidades neles contidas, através da ação humana. É sua capacidade de identificar as tensões principais, o cerne da manutenção das classes dominantes, que permite imaginar um futuro radicalmente transformado. Mas é ela que

permite acumular lutas, reagir e resistir, alterando o padrão do conflito e construindo –

28abrindo – mais possibilidades.

Assim, é diante desse quadro que a classe operária, a partir do século XIX, vai se debater para encontrar uma alternativa com direção à construção de um regime verdadeiramente democrático.

Considerações FinaisA primeira conclusão que devo tirar do texto

acima é que, no século XIX, mesmo sendo a exploração num grau muito acentuado, a capacidade da classe trabalhadora de impor uma resistência de forma mais organizada que pudesse ameaçar seriamente o domínio do capital, era ainda muito reduzida. O movimento, regra geral, ocorria de maneira muito fragmentada, com respostas tópicas a determinadas situações específicas e com reivindicações, no essencial, muito corporativas.

A segunda é que os conflitos geralmente degeneravam em violência, na medida em que, naquelas circunstâncias, a política era algo exclusiva dos grupos dominantes, que estendiam seus interesses privados à esfera dos interesses públicos e tinham no Estado como o e lemento de sua represen tação exc lus iva , impossibilitando ou dificultando processos de negociações.

Artigo recebido em 16.9.2011Aprovado em 14.11.2011

28FONTES, Virginia. O Manifesto Comunista e o pensamento histórico. In: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.), op.cit., p. 167.

ARTIGO - A luta dos trabalhadores no tempo de Marx

*Renato da Silva Della Vechia

O Diretório Estadual de Estudantes noRio Grande do Sul e seu papel de aparelho

ideológico do Regime Militar

*Professor de Ciência Política na UCPEL; mestre e doutor em Ciência Política pela UFRGS.1Entenda-se aqui DCE livre como aqueles não controlados política e ideologicamente pelas reitorias.2João Carlos Gastal Junior foi estudante de Direito e filho do ex prefeito de Pelotas e ex deputado estadual João Carlos Gastal. Foi o primeiro estudante preso em Pelotas em uma manifestação (19 de maio de 1977) contra o chamado Pacote de Abril. Hoje trabalha como técnico do quadro permanente do Senado Federal.3Rogério Dornelles era estudante de Medicina na UFRGS, militante do MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado e foi vice-presidente da UEE Livre gestão 1980/81.4Paulo Cézar da Rosa era estudante de Comunicação Social na UFRGS, foi membro da direção do DCE da UFRGS em 1979, membro da comissão pró UNE e da diretoria da UEE Livre gestão 1981/82.

presença de uma entidade nos moldes do Diretório Estadual de Estudantes (DEE), no Rio Grande do Sul, torna mais clara a existência de uma direita organizada e disposta a disputar ideologicamente suas posições. Diferente de outros estados, onde

1simplesmente não existiam DCEs livres ou então havia algum tipo de trabalho assistencialista (que tanto podia ser fruto de uma concepção de direita como de um processo de despolitização), no Rio Grande do Sul havia outras variáveis.

Para João Carlos Gastal Junior, militante na época, sua opinião é que:

(...) a existência do DEE no RS era reflexo fiel da presença de uma direita estudantil mais organizada, atuante e influente em nosso estado do que nos demais. Assim, parece-me que somente no RS o processo de reconstrução das entidades e do movimento envolveu uma disputa mais significativa com a direita (...) A percepção que eu tinha, na época, é de que, em outros estados, o esforço dos militantes de esquerda era no sentido de chamar o conjunto dos estudantes para o movimento, de organizá-los, não sendo o enfrentamento de uma direita estudantil, de modo geral, uma questão colocada (Entrevista por email com João Carlos Gastal Junior –

2janeiro de 2011).

3Na opinião de Rogério Dornelles, essa direita organizada não só existia na época como ainda se mantém. Para ele: “o DEE só se manteve em nosso Estado porque aqui existe uma direita ideológica e organizada que no atual momento se unifica no anti-petismo e no movimento sindical tem seu expoente nas entidades médicas” (entrevista feita por email em fevereiro de 2011). Pensamento parecido com o de Paulo Cézar da

4Rosa, representante do DCE UFRGS na comissão pró

UNE e na comissão de DCEs que constituíram a UEE Livre. Para ele,

O DEE existiu no RS porque aqui - como até hoje - tínhamos uma direita militante, que fazia a disputa política no dia a dia. O DEE foi um obstáculo a mais no processo de reconstrução. Gastou-se muitas horas de discussão sobre o que fazer com o DEE: ocupar ou destruir? (Entrevista por email com Paulo Cezar da Rosa – janeiro de 2011).

Para que possamos entender o porque do DEE do RS ter sido o único no país a se manter enquanto tal, mesmo após o surgimento do Decreto Lei 477 que acabou com o DNE (1969) e demais DEEs do país, é necessário uma pequena retrospectiva.

5A UEE do RS surgiu em 1934, antes, portanto, do próprio surgimento da UNE. Quando Leonel Brizola se elegeu governador do Rio Grande do Sul (gestão 1958/62) doou uma sede à entidade, a qual se situava na rua Senhor dos Passos, nº 235, 3º andar, em Porto Alegre. A partir do período militar, com o surgimento da lei 4.464 em 1964 (também conhecida como Lei Suplicy de Lacerda), a UNE é extinta juntamente com as UEEs, e em seu lugar é criado o Diretório Nacional de Estudantes (DNE) e os Diretórios Estaduais de Estudantes (DEEs). No Rio Grande do Sul os estudantes mantiveram a UEE ainda por algum tempo.

Na última eleição direta para a UEE/RS, em 1966, venceu uma chapa de direita, denominada Decisão. A partir desse momento, em função da lei que acabava com as UEEs, esse grupo simplesmente mudou o nome

6para DEE. Como havia o problema legal da sede que estava em nome da UEE, criaram então a sigla DEE/UEE, sendo que ao mesmo tempo atendiam às regras do regime e mantinham o patrimônio que originalmente era da UEE. Foi excluída dos estatutos a condição de entidade representativa e esta passou a ser uma entidade de cunho cultural e assistencial dos universitários.

Na medida em que era uma entidade que estava alinhada ao regime, e que criou um mecanismo de sucessão controlada ideologicamente, sem nenhuma possibilidade da esquerda retomar a entidade; as autoridades públicas sempre apoiaram explicitamente o DEE, inclusive participando de suas atividades e frequentemente recebendo dirigentes do DEE e liberando recursos públicos para seus projetos.

5Informação do jornal O Minuano, ano III, nº 9, março/abril de 1977.6Em um congresso do DEE realizado em 1967 em Santa Maria (jornal O Minuano).

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7Utilizando o conceito de Gramsci sobre estado, poderíamos afirmar que o DEE se constituiu enquanto um instrumento privado de hegemonia. Enquanto o regime dispunha da força como mecanismo de coerção, também construiu instrumentos de disputa ideológica no seio da sociedade. No caso do movimento estudantil os DEEs. Como vingou apenas no RS, aqui obteve o apoio oficial a despeito de sua falta de legalidade perante as próprias leis do regime.

O alinhamento ao regime é facilmente percebido em suas ações. Em um artigo de seu jornal O Minuano, a direção do DEE lamenta, tristemente, não a repressão política aos estudantes em nosso país, mas exatamente a reação por parte dos mesmos. Afirmam que:

O período de silêncio estava imposto à universidade diante do difícil quadro político que vivia o Brasil. O Movimento Estudantil radicalizou-se como um todo. Tristemente estão registrados em nossa memória os fatos agudos do período onde a guerrilha urbana irrompia-se através de assaltos a bancos, seqüestros, a toda uma gama de terrorismo político que recrutou exatamente os líderes estudantis mais ativos e muitos até idealistas, pois esses reagiam contra o governo e não contra o sistema. Mas, a indução subreptícia do comunismo internacional e seus partidos clandestinos, acabaram municiando toda aquela juventude, usando-a para interesses internacionais e redundando num quadro que foi o mais triste do período: o saldo de prisões, banimentos e mortes (jornal O Minuano, março/abril de 1977).

Em síntese, a responsabilidade pelas conseqüências da repressão é do “comunismo internacional” e as autoridades estavam apenas tentando controlar o “difícil quadro político” que o país vivia.

Se é verdade que havia a preocupação com o controle de uma estrutura de poder importante (sede do DEE com todos os serviços prestados) e talvez com benefícios pessoais (viagens, contatos, projeção política), também havia uma preocupação com a disputa de DCEs e uma disputa ideológica, manifesta na realização de inúmeras atividades como Seminários, Fóruns, etc, bem como atividades esportivas, festivas e culturais. Todas elas financiadas com recursos públicos e sempre convidando palestrantes de alguma forma comprometidos ideologicamente com o regime da época.

Da parte do regime havia uma aposta nas chamadas “maiorias silenciosas”. O Decreto Lei 228 obrigava todos os estudantes universitários a votarem nas eleições dos diretórios acadêmicos. Quem não votasse poderia ser suspenso por até 30 dias. Por trás dessa lei, havia o entendimento de que se a imensa maioria dos estudantes fosse obrigada a votar, diminuiria o peso da militância mais ativa dentro das universidades. Não é por acaso que na primeira eleição para a UNE em 1979 a chapa da direita denominou-se de Maioria (e ironicamente foi uma das menos votadas das 5 chapas que

7Para maiores referências sobre o conceito de Estado ampliado para Gramsci, ver PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1977.

disputaram as eleições). Otávio Monteiro, presidente do DCE da UFSM

em 1977 se reportou aos “estudantes profissionais”. Referindo-se ao Decreto Lei 228, disse que “foi muito importante, porque eliminou o monopólio das entidades estudantis por parte dos chamados ´estudantes profissionais´”. O curioso da afirmação é que o próprio jornal oficial do DEE (O Minuano), afirmava, na mesma matéria, que Otávio tinha 31 anos e que a 14 anos se

8dedicava à atividade estudantil.

Enquanto a disputa se dava por dentro dos Diretórios Acadêmicos (eram eles que elegiam os DCEs), havia uma preocupação em convidá-los para participar das atividades gerais do DEE e controlá-los do ponto de vista político e ideológico. Na medida em que começam a surgir eleições diretas para os DCEs, o DEE passa a deslocar seus quadros políticos para os municípios em disputa para apoiar as chapas de direita.

Segundo o jornal Correio do Sul, de Bagé, o presidente do DEE (João Gallardo), foi à cidade nas vésperas das eleições para o DCE FUNBA em 1982 e afirmou que: “acredito no bom senso dos estudantes da FUNBA. Certamente eles optarão por manter no DCE aqueles representantes que, através do equilíbrio e do diálogo, tem conduzido as reivindicações e lutas da comunidade estudantil bageense” (Jornal Correio do Sul, 06/06/82).

Também afirmou na ocasião que 5 DCEs e 60 DAs no estado estavam filiados ao DEE (sem especificar quais). Em outra oportunidade, em declaração para o mesmo jornal, Gallardo afirmou que o DEE teria representação em Bagé, Cruz Alta, Santa Maria,

9Uruguaiana, Caxias, São Leopoldo e Santa Cruz do Sul.A imensa maioria de seus dirigentes eram de

DCEs do interior do Estado, na medida em que na capital havia uma maior participação por parte dos estudantes e uma maior base político-ideológica para posições de esquerda. Com exceção do DCE da UCS e UFRGS, todos os demais tinham vínculos (com maior ou menor organicidade) com o DEE.

Analisando a trajetória do DEE, é possível percebermos a manutenção, ao longo das gestões, de uma política assistencialista (assistência médica e odontológica em sua sede; criação de uma livraria com descontos nos preços, convênio com seguradora para caso de acidentes pessoais, etc). Como também a preocupação em organizar atividades esportivas e festivas (escolha das mais belas estudantes, etc.), além de atividades de formação política em que sempre tiveram uma preocupação ideológica na seleção dos palestrantes.

Esse tipo de serviço ocorria não apenas na sede central do DEE, na rua Senhor dos Passos, em Porto Alegre. Os DCEs que se alinhavam à essa entidade, sempre tiveram uma preocupação grande com o assistencialismo. Da mesma forma que o movimento

8Jornal O Minuano, pg. 12, ano III, nº 9, março/abril 77.9Jornal O Correio do Sul, em 11/12/81. Na mesma nota do jornal, Romeu Ramos, secretário de Minas, Comunicações e Energia pedia apoio ao DEE para que realizasse um seminário para discutir problemas ambientais – oferecendo recursos financeiros para a organização do evento.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (63-67)

sindical, controlado pelo regime, tinha se transformado em grandes “máquinas” assistencialistas, o mesmo aconteceu com as entidades estudantis controladas pelos setores de direita. Algumas falas de parte de dirigentes desses DCEs comprovam sua forte vinculação ideológica com a direita. Em Santa Maria, o candidato à presidência do DCE da UFSM em 1979 (e presidente da Arena Jovem na cidade), Clébio Calegaro da Silveira, elaborou e tornou pública uma carta da Arena Jovem afirmando que o vice reitor era um traidor da UFSM por defender um processo de eleições diretas para o DCE (Jornal A Razão, 13/10/79). Também foi feita uma crítica, por parte do DCE, ao fim do decreto lei 477. Segundo o jornal A Razão:

Para os dirigentes do Diretório Central da UFSM, que não raras vezes evocaram o 228 como sendo o meio legal para serem feitas eleições estudantis, a revogação dos decretos os deixa um pouco confusos, chegando a considerar o 477 “necessário”, pois é como o código civil para os brasileiros” (jornal A Razão 26/06/69, p. 4).

Elias Pontelli, presidente do DCE UFSM nesse período, ainda afirmou que sua preocupação era que “os estudantes não tenham consciência para escolher suas lideranças” (ibidem). O mesmo Elias, na eleição para presidência do DCE/UFSM, afirmava em relação à chapa de situação, que “somos pessoas de idéias brasileiras” e criticava o presidente da UNE, dizendo que “o presidente da UNE tem íntimo relacionamento com organismos internacionais voltados para o socialismo e o marxismo”. No mesmo processo eleitoral, o então presidente do DCE UFSM gestão 78/79, Elias Pontelli, afirmou que:

O presidente do DCE nunca concordou com a participação dos estudantes nos problemas de outras classes. Ele defende a política estudantil voltada ao ensino, a pesquisa e a extensão. Ele alerta que o estudante não deve se alienar do problema das classes de operários mas que deve participar da política nacional como brasileiro (Jornal A Razão, 26/06/09, p. 16).

A política de defesa do regime, das reitorias e da “ordem” era facilmente identificável nas ações dos dirigentes dos DCEs vinculados à direita. Na UCPEL, em 1979 e em 1980, a direção do DCE se colocou contra a mobilização dos estudantes contra os aumentos de anuidades, lançando nota à imprensa e à reitoria. Em outra ocasião mandou ofício à Liga de Defesa Nacional se desculpando por não ter comparecido à uma solenidade na Semana da Pátria e outro à reitoria se desculpando pelo fato. Em Rio Grande, foram inúmeros os ofícios às autoridades convidando para coquetéis e solicitando recursos para assistência, inclusive um deles parabenizando o interventor da cidade por sua recondução ao cargo de prefeito por parte do presidente

10Médici. Na UFPEL, existem inúmeras atas, tanto de reuniões de diretoria do DCE como do Conselho de Representantes, onde os encontros foram realizados no

10Na época, como Rio Grande era considerada área de segurança nacional, não havia eleições, sendo o prefeito municipal nomeado./

gabinete do reitor. Uma delas inclusive onde constava na ata que o próprio reitor foi quem coordenou a reunião. Na PUC, até 1975 havia uma tradição do DCE organizar um vôo fretado com estudantes para uma visita ao Papa, sendo que o presidente do DCE recebia uma passagem cortesia da empresa organizadora do evento. O discurso contra os “radicais”, a fala a respeito dos “jovens sadios”, a preocupação com as “ideologias estranhas ao povo brasileiro”, e um conjunto de expressões que manifestavam claramente um perfil conservador e anticomunista presente, de forma constante, em documentos, jornais e falas dos dirigentes ligados ao DEE.

Essa preocupação permanente de centrar suas ações em questões específicas dos estudantes (e mesmo assim sem nunca se contrapor aos interesses das reitorias), e denunciar as reivindicações não corporativas como fruto de interesses políticos externos à universidade, sempre foi uma marca muito forte da direita estudantil. A partir de certo momento começa a diminuir o espaço para esse tipo de discurso. Para Abner Jandir Pífero Gomes,

Tentando colocar-se como representantes dos "verdadeiros estudantes", eles disputavam as migalhas (privilégios) da elite da ditadura em decadência. Viviam a contradição de - sem espaço hegemônico - esconderem-se, não podiam mostrar-se como eram. Articulavam por baixo dos panos. Não tinham poder de atração público - quem defendia a ditadura já não fazia publicamente. Por isso o campo deles era o do estudantismo. Mas este não prosperava. Onde estavam nas grandes mobilizações e greves? Quais chapas apoiavam para UNE e UEE? Tempos difíceis para estes seres (Entrevista por email com Abner Jandir Pífero Gomes – janeiro

112011).

No entanto, a despeito dessa marca de continuidade, também podemos perceber que na medida em que o regime vai abrandando, o discurso dos representantes desse setor começa a abrandar. Aqui, entendemos não apenas o discurso dos dirigentes oficiais da entidade, mas também dos DCEs que publicamente se alinhavam ao DEE. Isso tanto poderia ser um processo natural de retomada de posicionamento e/ou surgimento de novas lideranças, como também poderia ser uma forma de readaptação à uma nova realidade dada.

No Regimento do DEE, aprovado em 1979, consta que “o Estado de direito pressupõe uma constituição legítima; elaboração democrática das leis, através de um Parlamento livremente eleito; a existência de um poder judiciário independente; e principalmente o respeito aos diretos da pessoa” (Regimento DEE).

A concepção liberal que passa a aparecer nos documentos do DEE tem dois eixos: o liberalismo político na medida em que passa a defender um estado de direito por um lado, e por outro, com mais ênfase ainda, a defesa de um liberalismo econômico e um combate à

11Abner Jandir Pífero Gomes foi militante do movimento estudantil secundarista no final dos anos 1970 e universitário nos primeiros anos da década de 80, em Pelotas. Hoje é Secretário Municipal da Prefeitura de Santa Vitória do Palmar.

ARTIGO - O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de aparelho ideológico do Regime Militar

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7Utilizando o conceito de Gramsci sobre estado, poderíamos afirmar que o DEE se constituiu enquanto um instrumento privado de hegemonia. Enquanto o regime dispunha da força como mecanismo de coerção, também construiu instrumentos de disputa ideológica no seio da sociedade. No caso do movimento estudantil os DEEs. Como vingou apenas no RS, aqui obteve o apoio oficial a despeito de sua falta de legalidade perante as próprias leis do regime.

O alinhamento ao regime é facilmente percebido em suas ações. Em um artigo de seu jornal O Minuano, a direção do DEE lamenta, tristemente, não a repressão política aos estudantes em nosso país, mas exatamente a reação por parte dos mesmos. Afirmam que:

O período de silêncio estava imposto à universidade diante do difícil quadro político que vivia o Brasil. O Movimento Estudantil radicalizou-se como um todo. Tristemente estão registrados em nossa memória os fatos agudos do período onde a guerrilha urbana irrompia-se através de assaltos a bancos, seqüestros, a toda uma gama de terrorismo político que recrutou exatamente os líderes estudantis mais ativos e muitos até idealistas, pois esses reagiam contra o governo e não contra o sistema. Mas, a indução subreptícia do comunismo internacional e seus partidos clandestinos, acabaram municiando toda aquela juventude, usando-a para interesses internacionais e redundando num quadro que foi o mais triste do período: o saldo de prisões, banimentos e mortes (jornal O Minuano, março/abril de 1977).

Em síntese, a responsabilidade pelas conseqüências da repressão é do “comunismo internacional” e as autoridades estavam apenas tentando controlar o “difícil quadro político” que o país vivia.

Se é verdade que havia a preocupação com o controle de uma estrutura de poder importante (sede do DEE com todos os serviços prestados) e talvez com benefícios pessoais (viagens, contatos, projeção política), também havia uma preocupação com a disputa de DCEs e uma disputa ideológica, manifesta na realização de inúmeras atividades como Seminários, Fóruns, etc, bem como atividades esportivas, festivas e culturais. Todas elas financiadas com recursos públicos e sempre convidando palestrantes de alguma forma comprometidos ideologicamente com o regime da época.

Da parte do regime havia uma aposta nas chamadas “maiorias silenciosas”. O Decreto Lei 228 obrigava todos os estudantes universitários a votarem nas eleições dos diretórios acadêmicos. Quem não votasse poderia ser suspenso por até 30 dias. Por trás dessa lei, havia o entendimento de que se a imensa maioria dos estudantes fosse obrigada a votar, diminuiria o peso da militância mais ativa dentro das universidades. Não é por acaso que na primeira eleição para a UNE em 1979 a chapa da direita denominou-se de Maioria (e ironicamente foi uma das menos votadas das 5 chapas que

7Para maiores referências sobre o conceito de Estado ampliado para Gramsci, ver PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1977.

disputaram as eleições). Otávio Monteiro, presidente do DCE da UFSM

em 1977 se reportou aos “estudantes profissionais”. Referindo-se ao Decreto Lei 228, disse que “foi muito importante, porque eliminou o monopólio das entidades estudantis por parte dos chamados ´estudantes profissionais´”. O curioso da afirmação é que o próprio jornal oficial do DEE (O Minuano), afirmava, na mesma matéria, que Otávio tinha 31 anos e que a 14 anos se

8dedicava à atividade estudantil.

Enquanto a disputa se dava por dentro dos Diretórios Acadêmicos (eram eles que elegiam os DCEs), havia uma preocupação em convidá-los para participar das atividades gerais do DEE e controlá-los do ponto de vista político e ideológico. Na medida em que começam a surgir eleições diretas para os DCEs, o DEE passa a deslocar seus quadros políticos para os municípios em disputa para apoiar as chapas de direita.

Segundo o jornal Correio do Sul, de Bagé, o presidente do DEE (João Gallardo), foi à cidade nas vésperas das eleições para o DCE FUNBA em 1982 e afirmou que: “acredito no bom senso dos estudantes da FUNBA. Certamente eles optarão por manter no DCE aqueles representantes que, através do equilíbrio e do diálogo, tem conduzido as reivindicações e lutas da comunidade estudantil bageense” (Jornal Correio do Sul, 06/06/82).

Também afirmou na ocasião que 5 DCEs e 60 DAs no estado estavam filiados ao DEE (sem especificar quais). Em outra oportunidade, em declaração para o mesmo jornal, Gallardo afirmou que o DEE teria representação em Bagé, Cruz Alta, Santa Maria,

9Uruguaiana, Caxias, São Leopoldo e Santa Cruz do Sul.A imensa maioria de seus dirigentes eram de

DCEs do interior do Estado, na medida em que na capital havia uma maior participação por parte dos estudantes e uma maior base político-ideológica para posições de esquerda. Com exceção do DCE da UCS e UFRGS, todos os demais tinham vínculos (com maior ou menor organicidade) com o DEE.

Analisando a trajetória do DEE, é possível percebermos a manutenção, ao longo das gestões, de uma política assistencialista (assistência médica e odontológica em sua sede; criação de uma livraria com descontos nos preços, convênio com seguradora para caso de acidentes pessoais, etc). Como também a preocupação em organizar atividades esportivas e festivas (escolha das mais belas estudantes, etc.), além de atividades de formação política em que sempre tiveram uma preocupação ideológica na seleção dos palestrantes.

Esse tipo de serviço ocorria não apenas na sede central do DEE, na rua Senhor dos Passos, em Porto Alegre. Os DCEs que se alinhavam à essa entidade, sempre tiveram uma preocupação grande com o assistencialismo. Da mesma forma que o movimento

8Jornal O Minuano, pg. 12, ano III, nº 9, março/abril 77.9Jornal O Correio do Sul, em 11/12/81. Na mesma nota do jornal, Romeu Ramos, secretário de Minas, Comunicações e Energia pedia apoio ao DEE para que realizasse um seminário para discutir problemas ambientais – oferecendo recursos financeiros para a organização do evento.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (63-67)

sindical, controlado pelo regime, tinha se transformado em grandes “máquinas” assistencialistas, o mesmo aconteceu com as entidades estudantis controladas pelos setores de direita. Algumas falas de parte de dirigentes desses DCEs comprovam sua forte vinculação ideológica com a direita. Em Santa Maria, o candidato à presidência do DCE da UFSM em 1979 (e presidente da Arena Jovem na cidade), Clébio Calegaro da Silveira, elaborou e tornou pública uma carta da Arena Jovem afirmando que o vice reitor era um traidor da UFSM por defender um processo de eleições diretas para o DCE (Jornal A Razão, 13/10/79). Também foi feita uma crítica, por parte do DCE, ao fim do decreto lei 477. Segundo o jornal A Razão:

Para os dirigentes do Diretório Central da UFSM, que não raras vezes evocaram o 228 como sendo o meio legal para serem feitas eleições estudantis, a revogação dos decretos os deixa um pouco confusos, chegando a considerar o 477 “necessário”, pois é como o código civil para os brasileiros” (jornal A Razão 26/06/69, p. 4).

Elias Pontelli, presidente do DCE UFSM nesse período, ainda afirmou que sua preocupação era que “os estudantes não tenham consciência para escolher suas lideranças” (ibidem). O mesmo Elias, na eleição para presidência do DCE/UFSM, afirmava em relação à chapa de situação, que “somos pessoas de idéias brasileiras” e criticava o presidente da UNE, dizendo que “o presidente da UNE tem íntimo relacionamento com organismos internacionais voltados para o socialismo e o marxismo”. No mesmo processo eleitoral, o então presidente do DCE UFSM gestão 78/79, Elias Pontelli, afirmou que:

O presidente do DCE nunca concordou com a participação dos estudantes nos problemas de outras classes. Ele defende a política estudantil voltada ao ensino, a pesquisa e a extensão. Ele alerta que o estudante não deve se alienar do problema das classes de operários mas que deve participar da política nacional como brasileiro (Jornal A Razão, 26/06/09, p. 16).

A política de defesa do regime, das reitorias e da “ordem” era facilmente identificável nas ações dos dirigentes dos DCEs vinculados à direita. Na UCPEL, em 1979 e em 1980, a direção do DCE se colocou contra a mobilização dos estudantes contra os aumentos de anuidades, lançando nota à imprensa e à reitoria. Em outra ocasião mandou ofício à Liga de Defesa Nacional se desculpando por não ter comparecido à uma solenidade na Semana da Pátria e outro à reitoria se desculpando pelo fato. Em Rio Grande, foram inúmeros os ofícios às autoridades convidando para coquetéis e solicitando recursos para assistência, inclusive um deles parabenizando o interventor da cidade por sua recondução ao cargo de prefeito por parte do presidente

10Médici. Na UFPEL, existem inúmeras atas, tanto de reuniões de diretoria do DCE como do Conselho de Representantes, onde os encontros foram realizados no

10Na época, como Rio Grande era considerada área de segurança nacional, não havia eleições, sendo o prefeito municipal nomeado./

gabinete do reitor. Uma delas inclusive onde constava na ata que o próprio reitor foi quem coordenou a reunião. Na PUC, até 1975 havia uma tradição do DCE organizar um vôo fretado com estudantes para uma visita ao Papa, sendo que o presidente do DCE recebia uma passagem cortesia da empresa organizadora do evento. O discurso contra os “radicais”, a fala a respeito dos “jovens sadios”, a preocupação com as “ideologias estranhas ao povo brasileiro”, e um conjunto de expressões que manifestavam claramente um perfil conservador e anticomunista presente, de forma constante, em documentos, jornais e falas dos dirigentes ligados ao DEE.

Essa preocupação permanente de centrar suas ações em questões específicas dos estudantes (e mesmo assim sem nunca se contrapor aos interesses das reitorias), e denunciar as reivindicações não corporativas como fruto de interesses políticos externos à universidade, sempre foi uma marca muito forte da direita estudantil. A partir de certo momento começa a diminuir o espaço para esse tipo de discurso. Para Abner Jandir Pífero Gomes,

Tentando colocar-se como representantes dos "verdadeiros estudantes", eles disputavam as migalhas (privilégios) da elite da ditadura em decadência. Viviam a contradição de - sem espaço hegemônico - esconderem-se, não podiam mostrar-se como eram. Articulavam por baixo dos panos. Não tinham poder de atração público - quem defendia a ditadura já não fazia publicamente. Por isso o campo deles era o do estudantismo. Mas este não prosperava. Onde estavam nas grandes mobilizações e greves? Quais chapas apoiavam para UNE e UEE? Tempos difíceis para estes seres (Entrevista por email com Abner Jandir Pífero Gomes – janeiro

112011).

No entanto, a despeito dessa marca de continuidade, também podemos perceber que na medida em que o regime vai abrandando, o discurso dos representantes desse setor começa a abrandar. Aqui, entendemos não apenas o discurso dos dirigentes oficiais da entidade, mas também dos DCEs que publicamente se alinhavam ao DEE. Isso tanto poderia ser um processo natural de retomada de posicionamento e/ou surgimento de novas lideranças, como também poderia ser uma forma de readaptação à uma nova realidade dada.

No Regimento do DEE, aprovado em 1979, consta que “o Estado de direito pressupõe uma constituição legítima; elaboração democrática das leis, através de um Parlamento livremente eleito; a existência de um poder judiciário independente; e principalmente o respeito aos diretos da pessoa” (Regimento DEE).

A concepção liberal que passa a aparecer nos documentos do DEE tem dois eixos: o liberalismo político na medida em que passa a defender um estado de direito por um lado, e por outro, com mais ênfase ainda, a defesa de um liberalismo econômico e um combate à

11Abner Jandir Pífero Gomes foi militante do movimento estudantil secundarista no final dos anos 1970 e universitário nos primeiros anos da década de 80, em Pelotas. Hoje é Secretário Municipal da Prefeitura de Santa Vitória do Palmar.

ARTIGO - O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de aparelho ideológico do Regime Militar

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concepções coletivistas e ou socialistas. Novamente o regimento do DEE é bastante elucidativo: “Nos encontramos eqüidistantes das posições tradicionais e conservadoras que não absorveram as transformações do mundo; e dos coletivismos utópicos de alguns socialismos que só podem ser efetivados com imensos sacrifícios da perda das liberdades individuais” (Regimento DEE).

Nesse aspecto, (liberalismo econômico), buscam preservar e defender

O direito à propriedade, como direito natural e como fundamento da personalidade humana, com as restrições requeridas pela sua função social.A empresa privada, o esforço e a capacidade pessoal valorizados e usados conscientemente pela sua inconteste eficiência, e, pela valorização da sociedade civil.A economia de mercado, corrigida, forma de garantir justiça social e igualdade de oportunidades (Regimento DEE).

Não só nos documentos do DEE começou a aparecer a defesa dos preceitos liberais. A chapa de situação para o DCE UCPEL nas eleições de 1980, por exemplo, também defendia a livre iniciativa como forma de organização econômica da sociedade. Para eles, “procuramos reunir em nossa chapa, todos aqueles colegas que participam de um pensamento positivista, liberal e democrático, onde a livre iniciativa coordenada pelo bom senso, fará de nossos dias uma luta constante” (chapa Gênesis – DCE UCPEL/1980).

Na mesma eleição de 1980 na UCPEL, a chapa Novo Tempo, dissidência da chapa oficial do DCE, mas também de direita, tem seu material de campanha pago pelo CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) tendo inclusive o slogan do CIEE como propaganda no seu panfleto de programa.

Também em outros municípios a direita buscou aparecer como desvinculada do passado. Em Passo Fundo, na primeira eleição direta para o DCE, o grupo de situação não apresentou chapa. Mas a chapa Renovação, que criticava a gestão anterior, também se preocupava em atacar a esquerda. Embora alegassem defender a UNE, se reportavam a uma “UNE livre, isenta de ideologias

12estranhas”, discurso esse de viés anticomunista.Dentro dessa perspectiva de “renovação”, o DEE

se articulou para participar da fundação da UNE em 1979. A atuação dessa entidade no Congresso em Salvador foi acompanhada de diversas acusações por parte da imprensa e outras correntes políticas. Organizaram uma caminhada pelas ruas da cidade com um caixão coberto com a bandeira da UNE, - existem fotos comprovando essa atividade. Também existem acusações de sabotagem em que ainda não está elucidado se houve a participação do pessoal do DEE ou se apenas de membros das forças ligadas aos órgãos de informação do regime que atuavam na época. O corte de energia elétrica em determinado momento do Congresso e a disseminação de um pó que foi atirado das arquibancadas que gerou irritação na pele

de diversos estudantes, depois identificado como pó-de-mico, inofensivo mas que gera uma irritação muito grande.

De qualquer forma, a direita se organizou para disputar a direção da UNE e lançou uma chapa nas eleições de 1979. Nessa disputa, o DEE teve um papel importante na articulação, tendo João Gallardo como vice sul da chapa denominada de “Maioria”. O vice nacional da chapa foi Ciro Gomes, político originário da ARENA no Ceará e, posteriormente, candidato à Presidência da República em 2002 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). O processo de esgotamento do regime militar arrastou consigo a crise também para esse discurso de direita. A chapa Maioria (a despeito do nome) teve uma baixíssima votação.

No contexto gaúcho, quando alguns DCEs começaram a movimentação para constituir a UEE Livre, o DEE resolveu, em um primeiro momento, tomar a iniciativa de chamar eleições diretas para a entidade. Buscavam com isso realizar eleições sobre seu controle, ainda de acordo com a crença de que “as maiorias silenciosas” estavam de seu lado. Chegaram a distribuir cartazes pelas entidades chamando eleições diretas. Os órgãos de informação inclusive mandaram para as

13delegacias de polícia documento sigiloso onde constava que:

O atual Presidente do DEE/RS (Diretório Estadual de Estudantes/RS) pretenderia fazer uma campanha em todas as Universidades e Faculdades do RS, visando forma direta para as próximas eleições, pois assim, segundo ele, pode rá se r ob t ida uma ma io r i a de aproximadamente 80%. A referida campanha, teria também como objetivo, uma antecipação à organização e atuação de elementos de esquerda nesse setor (Documento confidencial do DOPS).

Porém, esse documento não mostrava preocupação alguma com o DEE, ao contrário, sua intenção era buscar mais informações sobre os movimentos que visavam a constituição da UEE Livre. Os órgãos repressivos tinham a informação de que ”até 20 de abril de 1979, seria realizada uma reunião de estudantes politicamente ligados à esquerda, com o objetivo de reativar a UEE/RS (União Estadual de Estudantes/RS)”. E o documento, que citava as informações provenientes do DEE, ao final solicitava às DRPs (delegacias regionais de polícia), “Apurar local da reunião e acompanhamento da mesma, bem como identificação de líderes políticos e estudantes presentes, temas tratados e repercussão do evento entre os presentes”.

O DEE não só recuou da organização de eleições diretas para a entidade, como tentou em um primeiro momento participar do processo de constituição da UEE/Livre. No entanto, todas suas ações foram no sentido de implodir a articulação em andamento, sendo que em nenhum momento participaram de forma séria do

12Jornal O Nacional, 18 de outubro de 1979.

13Documento confidencial do DOPS 02 de março de 1979. Pedido de busca nº 023/79/DBCI/DOPS/RS. Ao final havia um carimbo que dizia “o destinatário é responsável pela manutenção do sigilo deste documento, art 1º Dec. 79.090/77 – regulamento para salvaguarda de assuntos sigilosos.

14processo.Com a retomada dos principais DCEs do estado

no início da década de 1980, começou o declínio do DEE. 15

Segundo Pepe Vargas, O DEE a partir de certo momento, no qual a ditadura já não mais conseguia impedir a livre organização dos estudantes perdeu importância. O movimento real se organizou em torno dos DCEs e D.As, que reorganizaram a UEE. O DEE acabou se transformando num aparelho de locupletação pessoal de seus dirigentes, num processo de definhamento crescente. A sua existência levou a uma situação de falta de enfrentamento mais global entre direita e esquerda. Pontualmente, em alguns D.As, mais raramente em DCEs, setores de direita disputaram eleições, raramente com vitórias (Entrevista por email com Pepe Vargas – janeiro de 2011).

A opinião de que a partir de determinado momento o DEE passou a perder importância enquanto instrumento de disputa política e ideológica, mas, que ainda se manteve por um determinado período em função de interesses pessoais, é compartilhada por Abner Gomes. Para ele,

Acredito que estes seres não estavam mais interessados em vitórias ideológicas ou políticas, mas sim em defender quem lhes proporcionava privilégios - e estes não eram poucos. Então, provavelmente mais que em qualquer outro estado, a existência do DEE produziu o grupo que deu sustentação à vários políticos de direita em nosso estado (...) Monopolizavam a distribuição de lugares quando não existia concursos públicos, casas populares, quando não existia sorteio ou critérios, bolsas de estudo e transferências entre muitas outras coisas... (Entrevista por email com Abner Jandir Pífero Gomes – janeiro 2011).

Entendemos, por fim, que a direita estudantil gaúcha, que por um longo período controlou a maioria das entidades no estado, começou a se desgastar e perder sua força política em função do fim do regime militar e do próprio objetivo pelo qual a entidade estava estruturada para efeito de disputas. A partir de determinado momento ela passou então a ser um simples instrumento de preservação de interesses privados, e mesmo assim, não conseguiu se sustentar com esse nome. A reconstrução da UEE, e a existência de correntes políticas organizadas que davam conteúdo ideológico ao confronto com a direita foram fundamentais para a derrota dessa entidade.

O processo de reconstrução da UEE Livre, entidade que passou a disputar com o DEE a legitimidade

14O relato desse processo pode ser acompanhado no livro Abaixo a Repressão: Movimento Estudantil e as Liberdades Democráticas, de Ivanir Bortot e Rafael Guimaraens. Porto Alegre. Editora Libretos, 2007 ou na versão do DEE pelo Jornal O Minuano, ano III, nº 9, março/abril 77. 15Gilberto José Spier Vargas, (Pepe Vargas) foi militante do movimento estudantil de Caxias do Sul, sendo duas vezes diretor da UEE/RS, ex-prefeito de Caxias do Sul, ex-deputado estadual do RS e atual deputado federal.

para representar o movimento estudantil gaúcho, teve uma dificuldade adicional em relação à reconstrução das demais UEEs do país. Além da necessidade de estabelecer políticas que tivessem a capacidade de organizar e mobilizar os estudantes, bem como a disposição de enfrentar as burocracias universitárias que eram avessas às mobilizações estudantis, a UEE Livre no RS também teve de disputar durante alguns anos a influência política e ideológica sobre os DCEs e DAs, especialmente do interior do estado, os quais durante muitos anos estiveram sobre controle dos representantes do regime militar dentro do movimento estudantil.

Abaixo construímos um quadro com alguns dos presidentes do DEE que conseguimos identificar.

A destruição da maioria dos arquivos dos DCEs, bem como a inacessibilidade de buscar documentos em uma entidade que não mais existe (DEE), dificultou a identificação dos demais presidentes da entidade durante o período analisado.

Artigo recebido em 30.9.2011Aprovado em 13.12.2011

16O Secretário Geral da gestão era Hermes Pereira Dutra, o qual coordenou a bancada do PP (na época PDS) na Assembléia Legislativa até sua aposentadoria.17O vice presidente do DEE nessa gestão era Adolfo Fetter Jr, ex deputado federal e atual prefeito de Pelotas pelo P.18O assessor especial da presidência era Lindomar Vargas Rigotto, irmão de Germano Rigotto.19Dias 11 a 13 de novembro de 1977 foi realizado um Encontro Estadual DEE na FURG, encontro esse apoiado pelo DCE FURG. A avaliação do DOPS/RS era de que participaram 250 estudantes de 27 cidades. Lindomar Vargas Rigotto surgiu como candidato de oposição. O Reitor da FURG (Pedone) solicitou ao presidente do DCE FURG (Antônio Eduardo Toralles Santos) que apoiasse Lindomar, “conforme instruções recebidas de Brasília” por parte do reitor. A chapa de oposição teve 10 votos e 70 da chapa de situação. Lindomar passou para a chapa de situação 15 minutos antes das eleições, concorrendo na chapa de Darcy Rocha Martins Mano, que foi eleito presidente do DEE para o período 78/79 (fonte documentos do DOPS/RS).

GESTÕES PRESIDENTES DO DEE

1971/72 16Máximo E. Antunes

1972/73 ---

1973/74 ---

1974/75 17Valnir Soares

1975/76 José Ubiratan de Oliveira

1976/77 18Eduardo di Primio Maineri Conceição

1977/78 ---

1978/79 19Darcy Rocha Martins Mano

1979/80 Geraldo Rosa

1980/81 João Villanova Gallardo

1981/82 João Villanova Gallardo

1982/83 Carlos Romano Goelzer Pansera

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (63-67) ARTIGO - O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de aparelho ideológico do Regime Militar

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concepções coletivistas e ou socialistas. Novamente o regimento do DEE é bastante elucidativo: “Nos encontramos eqüidistantes das posições tradicionais e conservadoras que não absorveram as transformações do mundo; e dos coletivismos utópicos de alguns socialismos que só podem ser efetivados com imensos sacrifícios da perda das liberdades individuais” (Regimento DEE).

Nesse aspecto, (liberalismo econômico), buscam preservar e defender

O direito à propriedade, como direito natural e como fundamento da personalidade humana, com as restrições requeridas pela sua função social.A empresa privada, o esforço e a capacidade pessoal valorizados e usados conscientemente pela sua inconteste eficiência, e, pela valorização da sociedade civil.A economia de mercado, corrigida, forma de garantir justiça social e igualdade de oportunidades (Regimento DEE).

Não só nos documentos do DEE começou a aparecer a defesa dos preceitos liberais. A chapa de situação para o DCE UCPEL nas eleições de 1980, por exemplo, também defendia a livre iniciativa como forma de organização econômica da sociedade. Para eles, “procuramos reunir em nossa chapa, todos aqueles colegas que participam de um pensamento positivista, liberal e democrático, onde a livre iniciativa coordenada pelo bom senso, fará de nossos dias uma luta constante” (chapa Gênesis – DCE UCPEL/1980).

Na mesma eleição de 1980 na UCPEL, a chapa Novo Tempo, dissidência da chapa oficial do DCE, mas também de direita, tem seu material de campanha pago pelo CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) tendo inclusive o slogan do CIEE como propaganda no seu panfleto de programa.

Também em outros municípios a direita buscou aparecer como desvinculada do passado. Em Passo Fundo, na primeira eleição direta para o DCE, o grupo de situação não apresentou chapa. Mas a chapa Renovação, que criticava a gestão anterior, também se preocupava em atacar a esquerda. Embora alegassem defender a UNE, se reportavam a uma “UNE livre, isenta de ideologias

12estranhas”, discurso esse de viés anticomunista.Dentro dessa perspectiva de “renovação”, o DEE

se articulou para participar da fundação da UNE em 1979. A atuação dessa entidade no Congresso em Salvador foi acompanhada de diversas acusações por parte da imprensa e outras correntes políticas. Organizaram uma caminhada pelas ruas da cidade com um caixão coberto com a bandeira da UNE, - existem fotos comprovando essa atividade. Também existem acusações de sabotagem em que ainda não está elucidado se houve a participação do pessoal do DEE ou se apenas de membros das forças ligadas aos órgãos de informação do regime que atuavam na época. O corte de energia elétrica em determinado momento do Congresso e a disseminação de um pó que foi atirado das arquibancadas que gerou irritação na pele

de diversos estudantes, depois identificado como pó-de-mico, inofensivo mas que gera uma irritação muito grande.

De qualquer forma, a direita se organizou para disputar a direção da UNE e lançou uma chapa nas eleições de 1979. Nessa disputa, o DEE teve um papel importante na articulação, tendo João Gallardo como vice sul da chapa denominada de “Maioria”. O vice nacional da chapa foi Ciro Gomes, político originário da ARENA no Ceará e, posteriormente, candidato à Presidência da República em 2002 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). O processo de esgotamento do regime militar arrastou consigo a crise também para esse discurso de direita. A chapa Maioria (a despeito do nome) teve uma baixíssima votação.

No contexto gaúcho, quando alguns DCEs começaram a movimentação para constituir a UEE Livre, o DEE resolveu, em um primeiro momento, tomar a iniciativa de chamar eleições diretas para a entidade. Buscavam com isso realizar eleições sobre seu controle, ainda de acordo com a crença de que “as maiorias silenciosas” estavam de seu lado. Chegaram a distribuir cartazes pelas entidades chamando eleições diretas. Os órgãos de informação inclusive mandaram para as

13delegacias de polícia documento sigiloso onde constava que:

O atual Presidente do DEE/RS (Diretório Estadual de Estudantes/RS) pretenderia fazer uma campanha em todas as Universidades e Faculdades do RS, visando forma direta para as próximas eleições, pois assim, segundo ele, pode rá se r ob t ida uma ma io r i a de aproximadamente 80%. A referida campanha, teria também como objetivo, uma antecipação à organização e atuação de elementos de esquerda nesse setor (Documento confidencial do DOPS).

Porém, esse documento não mostrava preocupação alguma com o DEE, ao contrário, sua intenção era buscar mais informações sobre os movimentos que visavam a constituição da UEE Livre. Os órgãos repressivos tinham a informação de que ”até 20 de abril de 1979, seria realizada uma reunião de estudantes politicamente ligados à esquerda, com o objetivo de reativar a UEE/RS (União Estadual de Estudantes/RS)”. E o documento, que citava as informações provenientes do DEE, ao final solicitava às DRPs (delegacias regionais de polícia), “Apurar local da reunião e acompanhamento da mesma, bem como identificação de líderes políticos e estudantes presentes, temas tratados e repercussão do evento entre os presentes”.

O DEE não só recuou da organização de eleições diretas para a entidade, como tentou em um primeiro momento participar do processo de constituição da UEE/Livre. No entanto, todas suas ações foram no sentido de implodir a articulação em andamento, sendo que em nenhum momento participaram de forma séria do

12Jornal O Nacional, 18 de outubro de 1979.

13Documento confidencial do DOPS 02 de março de 1979. Pedido de busca nº 023/79/DBCI/DOPS/RS. Ao final havia um carimbo que dizia “o destinatário é responsável pela manutenção do sigilo deste documento, art 1º Dec. 79.090/77 – regulamento para salvaguarda de assuntos sigilosos.

14processo.Com a retomada dos principais DCEs do estado

no início da década de 1980, começou o declínio do DEE. 15

Segundo Pepe Vargas, O DEE a partir de certo momento, no qual a ditadura já não mais conseguia impedir a livre organização dos estudantes perdeu importância. O movimento real se organizou em torno dos DCEs e D.As, que reorganizaram a UEE. O DEE acabou se transformando num aparelho de locupletação pessoal de seus dirigentes, num processo de definhamento crescente. A sua existência levou a uma situação de falta de enfrentamento mais global entre direita e esquerda. Pontualmente, em alguns D.As, mais raramente em DCEs, setores de direita disputaram eleições, raramente com vitórias (Entrevista por email com Pepe Vargas – janeiro de 2011).

A opinião de que a partir de determinado momento o DEE passou a perder importância enquanto instrumento de disputa política e ideológica, mas, que ainda se manteve por um determinado período em função de interesses pessoais, é compartilhada por Abner Gomes. Para ele,

Acredito que estes seres não estavam mais interessados em vitórias ideológicas ou políticas, mas sim em defender quem lhes proporcionava privilégios - e estes não eram poucos. Então, provavelmente mais que em qualquer outro estado, a existência do DEE produziu o grupo que deu sustentação à vários políticos de direita em nosso estado (...) Monopolizavam a distribuição de lugares quando não existia concursos públicos, casas populares, quando não existia sorteio ou critérios, bolsas de estudo e transferências entre muitas outras coisas... (Entrevista por email com Abner Jandir Pífero Gomes – janeiro 2011).

Entendemos, por fim, que a direita estudantil gaúcha, que por um longo período controlou a maioria das entidades no estado, começou a se desgastar e perder sua força política em função do fim do regime militar e do próprio objetivo pelo qual a entidade estava estruturada para efeito de disputas. A partir de determinado momento ela passou então a ser um simples instrumento de preservação de interesses privados, e mesmo assim, não conseguiu se sustentar com esse nome. A reconstrução da UEE, e a existência de correntes políticas organizadas que davam conteúdo ideológico ao confronto com a direita foram fundamentais para a derrota dessa entidade.

O processo de reconstrução da UEE Livre, entidade que passou a disputar com o DEE a legitimidade

14O relato desse processo pode ser acompanhado no livro Abaixo a Repressão: Movimento Estudantil e as Liberdades Democráticas, de Ivanir Bortot e Rafael Guimaraens. Porto Alegre. Editora Libretos, 2007 ou na versão do DEE pelo Jornal O Minuano, ano III, nº 9, março/abril 77. 15Gilberto José Spier Vargas, (Pepe Vargas) foi militante do movimento estudantil de Caxias do Sul, sendo duas vezes diretor da UEE/RS, ex-prefeito de Caxias do Sul, ex-deputado estadual do RS e atual deputado federal.

para representar o movimento estudantil gaúcho, teve uma dificuldade adicional em relação à reconstrução das demais UEEs do país. Além da necessidade de estabelecer políticas que tivessem a capacidade de organizar e mobilizar os estudantes, bem como a disposição de enfrentar as burocracias universitárias que eram avessas às mobilizações estudantis, a UEE Livre no RS também teve de disputar durante alguns anos a influência política e ideológica sobre os DCEs e DAs, especialmente do interior do estado, os quais durante muitos anos estiveram sobre controle dos representantes do regime militar dentro do movimento estudantil.

Abaixo construímos um quadro com alguns dos presidentes do DEE que conseguimos identificar.

A destruição da maioria dos arquivos dos DCEs, bem como a inacessibilidade de buscar documentos em uma entidade que não mais existe (DEE), dificultou a identificação dos demais presidentes da entidade durante o período analisado.

Artigo recebido em 30.9.2011Aprovado em 13.12.2011

16O Secretário Geral da gestão era Hermes Pereira Dutra, o qual coordenou a bancada do PP (na época PDS) na Assembléia Legislativa até sua aposentadoria.17O vice presidente do DEE nessa gestão era Adolfo Fetter Jr, ex deputado federal e atual prefeito de Pelotas pelo P.18O assessor especial da presidência era Lindomar Vargas Rigotto, irmão de Germano Rigotto.19Dias 11 a 13 de novembro de 1977 foi realizado um Encontro Estadual DEE na FURG, encontro esse apoiado pelo DCE FURG. A avaliação do DOPS/RS era de que participaram 250 estudantes de 27 cidades. Lindomar Vargas Rigotto surgiu como candidato de oposição. O Reitor da FURG (Pedone) solicitou ao presidente do DCE FURG (Antônio Eduardo Toralles Santos) que apoiasse Lindomar, “conforme instruções recebidas de Brasília” por parte do reitor. A chapa de oposição teve 10 votos e 70 da chapa de situação. Lindomar passou para a chapa de situação 15 minutos antes das eleições, concorrendo na chapa de Darcy Rocha Martins Mano, que foi eleito presidente do DEE para o período 78/79 (fonte documentos do DOPS/RS).

GESTÕES PRESIDENTES DO DEE

1971/72 16Máximo E. Antunes

1972/73 ---

1973/74 ---

1974/75 17Valnir Soares

1975/76 José Ubiratan de Oliveira

1976/77 18Eduardo di Primio Maineri Conceição

1977/78 ---

1978/79 19Darcy Rocha Martins Mano

1979/80 Geraldo Rosa

1980/81 João Villanova Gallardo

1981/82 João Villanova Gallardo

1982/83 Carlos Romano Goelzer Pansera

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (63-67) ARTIGO - O Diretório Estadual de Estudantes no Rio Grande do Sul e seu papel de aparelho ideológico do Regime Militar

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Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e oanticomunismo contra Gramsci (2002-2011)

*Lucas Patschiki

este artigo abordaremos a especificidade do anticomunismo disseminado pelo grupo organizado em torno do intitulado “observatório da imprensa” Mídia Sem Máscara (www.midiasemmascara.org, daqui para diante MSM). Este funcionou como elemento ideológico para unificar uma série de intelectuais, como fio condutor para sua ação política, para seu posicionamento estratégico sob a forma da guerra de posições. A formulação de seu “anticomunismo contra Gramsci”, o “gramscismo”, fora elaborada pelo seu fundador, editor e principal intelectual, Olavo de Carvalho – ou assim considerada, já que existem interpretações semelhantes nos EUA, como poder ser visto documentário “Agenda:

1grinding America down” de Curtis Bowers, e na França 2por Nicolas Sarkozy. Como veremos, a leitura de

Gramsci é compartilhada pelo MSM, que a irá absorver e 3

deturpar (Carvalho, em ato provocativo, pediu a inclusão de seu nome na bibliografia do site Gramsci e o Brasil, ao

4lado de pesquisas nacionais de cunho marxista ). Primeiro apresentaremos o MSM, para depois abordarmos as funções sociais do anticomunismo, e por fim, as elaborações do chamado “gramscismo”.

O Mídia Sem MáscaraO site do MSM foi lançado em 2002, durante a

campanha eleitoral presidencial que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), identificando-se como um observatório da imprensa. Sua primeira publicação (numeram-se como um jornal) tinha a participação de mais de cinquenta colunistas, organizados em torno dos editores Diego Casagrande (jornalista gaúcho, que depois deixará o grupo) e Olavo

N

*Bacharel em História. Mestre em História/UNIOESTE. Este artigo é produto da dissertação “Os litores da nossa burguesia: o Mídia Sem Máscara em atuação partidária (2002-2011)”, orientada pelo Dr. Gilberto Grassi Calil e financiada pela Fundação Araucária. E-mail: [email protected], Curtis. Agenda: grinding America Down. Black Hat Films. 2010. 93 min. Seu site oficial é http://agendadocumentary.com, acessado em 19.07.122HALIMI, Serge. “France: Sarkozy's old familiar song”. Le Monde D i p l o m a t i q u e . J u n h o , 2 0 0 7 . D i s p o n í v e l e m http://mondediplo.com/2007/06/02france, acessado em 17.02.12.3Em entrevista Carvalho, quando perguntado, se “não existe nada que o senhor goste nas idéias de esquerda?” respondera que “a pergunta é um pouco simplória [...] Nem o mais empedernido dos reacionários pensaria em jogar tudo isso fora. Quantas páginas de Lênin, de Marx, de Gramsci, não li com grande satisfação!”. FONSECA, Eder. “Entrevista de Olavo de Carvalho ao site Panorama mercantil”. Panorama Mercantil. 07.07.11. op. cit.4CARVALHO, Olavo de. Gramscianos enfezadinhos, uni-vos!. 26.12.98. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/ enfeza.htm, acessado em 29.03.12.

de Carvalho (autointitulado filósofo, original de Campinas, SP). Atualmente conta com 26 colunistas (o número de convidados e colunistas diminui com os anos, indicativo da maior organicidade alcançada entre os atuais), e segundo o Alexa, ferramenta de ranking da web, consta como número 4.298 entre os sites brasileiros,

5número 167.906 em comparação global. É de considerável, já que existe entre mais de 2.763.360 sites

6registrados como “.com.br” , com o público “possível”

7de 75.982.000 usuários no Brasil. Carvalho já publicava em sua página pessoal escritos destes colunistas como “ensaio” para o MSM e formava novos colaboradores através de seu Seminário de Filosofia. Ele trabalha desde os anos 70 na imprensa hegemônica, passando a ser conhecido como “comentarista” político nos anos 90, após o lançamento dos livros “O Jardim das Aflições” (1995) e “O Imbecil Coletivo” (1996). Atualmente reside nos EUA financiado pelo “Diário do Comércio”, da Associação Comercial de São Paulo – o MSM é mantido por doações (através da ONG Instituto Brasileiro de Humanidades) e pela publicidade (seu maior anunciante é a Livraria Cultura). Focaremos especialmente os escritos de Carvalho, já que são as referências para a produção ideológica dos demais colunistas.

O anticomunismoO anticomunismo é tratado como a necessidade

de se abordar consequentemente teórica e estrategicamente os movimentos do inimigo, uma ciência contrarrevolucionária, visando sua completa expurgação do corpo social “infiltrado”. Em seu sentido amplo:

[...] pode ser definido como uma hostilidade sistemática ao comunismo, traduzindo-se de acordo com seu grau de desenvolvimento questionando o suporte teórico e ideológico do comunismo (o marxismo) ou das forças e regimes que o encarnariam (os partidos

8comunistas, os “países socialistas”).

5ALEXA. Consulta por www.midiasemmascara.org. Disponível em http://www.alexa.com/siteinfo/midiasemmascara.org#, acessado em 13.02.10. O site do MSM é apresentado como .org sendo redirecionado para o .com.br.6CETIC.BR. Estatísticas diárias por categoria. Disponível em http://www.cetic.br/dominios/index.htm, acessado em 13.02.12. 7ECOMMERCE.ORG. Os 20 países com maior número de usuários da internet. Disponível em http://www.e-commerce.org.br/stats.php, acessado em 13.02.12.8LAVABRE, Marie-Claire. “Anticommunisme” (verbete). In. BENSUSSAN, Gérard; LABICA, Georges. Dictionnaire critique du marxisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1982. p. 39-40. Tradução nossa.

Ele já aparece no “Manifesto do Partido Comunista”, onde Karl Marx e Friedrich Engels demandaram que a Liga dos Comunistas combatesse contra as caricaturas e distorções do programa comunista efetuadas pela “Santa Aliança”. No “Manifesto” distinguiram dois elementos do anticomunismo: o primeiro, a função de difundir o medo do comunismo, focando temas como a partilha social ou a revolta popular. O que Marie-Claire Lavabre compreende tratar-se de “dotar aos objetivos imediatos dos comunistas a negação absoluta de valores (propriedade, família, nação) da sociedade burguesa”, desqualificando “o programa dos comunistas pela imagem catastrófica de

10suas consequências”. O segundo elemento refere-se à função de atribuir ao comunismo distorções, o atacando como sendo equivalente ao que se acusa de ser comunista: “que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a

11pecha infamante de comunista?”.

Após a Revolução Russa o anticomunismo irá adquirir um novo formato, baseado na “verificação empírica” do mal que o comunismo poderia causar, imaginário ou não, passando a referenciar a URSS. Isto o dotou de uma “dimensão suplementar: a oposição mundo l i v re / t o t a l i t a r i s m o , O c i d e n t e / O r i e n t e , o u

12civilização/barbárie”. Desta forma taxando os Partidos Comunistas ao redor do globo de partidos do estrangeiro, os supondo “destacamentos avançados” de uma conspiração global, comandada pelos soviéticos:

Se a luta contra o comunismo aparenta ter sido o fundamento ideológico da maioria dos políticos reacionários ou simplesmente conservadores (verificar a instauração, em seu nome, dos regimes fascistas da Europa do entre-guerras ou o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos), a definição de anticomunismo escolhida, da deformação e falsificação dos posicionamentos comunistas em serviço dos políticos da direita, não apresentou problemas no uso corrente que atribuíram aos partidos comunistas. Duas classes: um projeto, a revolução; um método, o

13partido; um modelo, a União Soviética.

Assinalemos que o anticomunismo não refere-se somente aos comunistas, estendendo-se a tudo o que pode ser interpretado como colaborador com o objetivo histórico destes: a abrangência do comunismo amplia-se a ponto de não poder ser quantificado, o “espectro” ronda todo o corpo social. Abre-se a possibilidade de “qualificar” diversos elementos contaminados, ou melhor, passando a dotar as práticas políticas mais diversas de um sentido político específico. Assim, projetos políticos irracionalistas, como o fascismo, retoricamente passaram a arrogarem-se de portarem a gênese de um projeto de sociedade, pois identificando o

9

9MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista/A ideologia alemã. Lima: Los Libros Más Pequeños del Mundo, 2010. p. 15-16.10LAVABRE, op. cit. p. 40. Tradução nossa.11MARX, & ENGELS, op. cit. p. 17. 12LAVABRE, op. cit. p. 40. Tradução nossa.13Idem. Tradução nossa.

outro em termos sub-reptícios, que só eles teriam a competência especializada para classificarem e isolarem, compondo uma retórica supostamente “totalizante” de contraposição, afirmação maior da sua imunidade diante da disseminação viral do inimigo.

Tal movimento acaba por reduzir o campo político em duas posições irremediavelmente contrárias: uma leitura social binária, maniqueísta. Desta redução do campo político, entre prós e contras, gera-se uma desqualificação generalizante da própria política, que passa a ser compreendida como expressão de duas naturezas distintas (onde cada posicionamento torna-se somatória direta em direção a um fim da história), e que poderia ser resumida na divisão entre bem e mal. Isto ecoa o entendimento de Palmiro Togliatti sobre o anticomunismo, que intenta “dividir categoricamente a humanidade em dois campos e considerar... o dos comunistas... como o campo daqueles que já não são homens, por haverem renegado e postergado os valores fundamentais da civilização humana”. Ele delimita e constrói o campo de atuação dos partidos por contraposição, definindo as possíveis estratégias para especificar claramente quais são as alianças possíveis e os seus inimigos dentro do campo eleitoral parlamentar burguês, sustentada com base à “incompatibilidade radical com o campo oposto, da inconciliabilidade dos

14respectivos valores e interesses”. Este é o objetivo último do anticomunismo, negar a capacidade racional humana de distinção entre realidade e falsificação, transmutando sua consciência histórica e social em mera sensação e, portanto, atribuindo ao conhecimento incapacidade de basear a atuação humana, incompleto já que ideológico (e incapaz de aspirar à compreensão racional da realidade). Dota irremediavelmente o conhecimento de um sentido idealista, transcendente ao homem (seja deus ou a mão invisível do mercado), tornando-o incapaz de julgar, de atuar racionalmente diante da sua realidade.

O anticomunismo contra GramsciEm diversos escritos de Olavo de Carvalho o

anticomunismo é apresentado de modo “autorizado”, utilizando sua breve passagem pelo Partido Comunista Brasileiro, na década de 60, como justificativa. Argumenta exatamente a leitura dicotômica de mundo é formadora da especificidade da atuação comunista, constituiria a linha divisória entre “nós” e “eles” de modo claro, supostamente objetivado seu fim histórico: “acreditamos que bastava nos dar armas e que o resto nós faríamos: construiríamos um mundo melhor. E como construiríamos um mundo melhor? Pelo velho expediente de matar — matar quem não o desejasse”, acrescentando, que “nós tomamos em sentido literal o

15que dizia Jean Paul Sartre: 'O inferno são os outros'”.

14BONET, Luciano. “Anticomunismo” (verbete). In. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1998. p. 34-35.15CARVALHO, Olavo de. Reparando uma injustiça pessoal. Discurso pronunciado no Clube Militar do Rio de Janeiro em 31.03.99. Disponível em http:/ /www.olavodecarvalho.org/textos/ reparando.htm, acessado em 04.07.11.

ARTIGO - Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011) História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (68-73)

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Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e oanticomunismo contra Gramsci (2002-2011)

*Lucas Patschiki

este artigo abordaremos a especificidade do anticomunismo disseminado pelo grupo organizado em torno do intitulado “observatório da imprensa” Mídia Sem Máscara (www.midiasemmascara.org, daqui para diante MSM). Este funcionou como elemento ideológico para unificar uma série de intelectuais, como fio condutor para sua ação política, para seu posicionamento estratégico sob a forma da guerra de posições. A formulação de seu “anticomunismo contra Gramsci”, o “gramscismo”, fora elaborada pelo seu fundador, editor e principal intelectual, Olavo de Carvalho – ou assim considerada, já que existem interpretações semelhantes nos EUA, como poder ser visto documentário “Agenda:

1grinding America down” de Curtis Bowers, e na França 2por Nicolas Sarkozy. Como veremos, a leitura de

Gramsci é compartilhada pelo MSM, que a irá absorver e 3

deturpar (Carvalho, em ato provocativo, pediu a inclusão de seu nome na bibliografia do site Gramsci e o Brasil, ao

4lado de pesquisas nacionais de cunho marxista ). Primeiro apresentaremos o MSM, para depois abordarmos as funções sociais do anticomunismo, e por fim, as elaborações do chamado “gramscismo”.

O Mídia Sem MáscaraO site do MSM foi lançado em 2002, durante a

campanha eleitoral presidencial que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), identificando-se como um observatório da imprensa. Sua primeira publicação (numeram-se como um jornal) tinha a participação de mais de cinquenta colunistas, organizados em torno dos editores Diego Casagrande (jornalista gaúcho, que depois deixará o grupo) e Olavo

N

*Bacharel em História. Mestre em História/UNIOESTE. Este artigo é produto da dissertação “Os litores da nossa burguesia: o Mídia Sem Máscara em atuação partidária (2002-2011)”, orientada pelo Dr. Gilberto Grassi Calil e financiada pela Fundação Araucária. E-mail: [email protected], Curtis. Agenda: grinding America Down. Black Hat Films. 2010. 93 min. Seu site oficial é http://agendadocumentary.com, acessado em 19.07.122HALIMI, Serge. “France: Sarkozy's old familiar song”. Le Monde D i p l o m a t i q u e . J u n h o , 2 0 0 7 . D i s p o n í v e l e m http://mondediplo.com/2007/06/02france, acessado em 17.02.12.3Em entrevista Carvalho, quando perguntado, se “não existe nada que o senhor goste nas idéias de esquerda?” respondera que “a pergunta é um pouco simplória [...] Nem o mais empedernido dos reacionários pensaria em jogar tudo isso fora. Quantas páginas de Lênin, de Marx, de Gramsci, não li com grande satisfação!”. FONSECA, Eder. “Entrevista de Olavo de Carvalho ao site Panorama mercantil”. Panorama Mercantil. 07.07.11. op. cit.4CARVALHO, Olavo de. Gramscianos enfezadinhos, uni-vos!. 26.12.98. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/ enfeza.htm, acessado em 29.03.12.

de Carvalho (autointitulado filósofo, original de Campinas, SP). Atualmente conta com 26 colunistas (o número de convidados e colunistas diminui com os anos, indicativo da maior organicidade alcançada entre os atuais), e segundo o Alexa, ferramenta de ranking da web, consta como número 4.298 entre os sites brasileiros,

5número 167.906 em comparação global. É de considerável, já que existe entre mais de 2.763.360 sites

6registrados como “.com.br” , com o público “possível”

7de 75.982.000 usuários no Brasil. Carvalho já publicava em sua página pessoal escritos destes colunistas como “ensaio” para o MSM e formava novos colaboradores através de seu Seminário de Filosofia. Ele trabalha desde os anos 70 na imprensa hegemônica, passando a ser conhecido como “comentarista” político nos anos 90, após o lançamento dos livros “O Jardim das Aflições” (1995) e “O Imbecil Coletivo” (1996). Atualmente reside nos EUA financiado pelo “Diário do Comércio”, da Associação Comercial de São Paulo – o MSM é mantido por doações (através da ONG Instituto Brasileiro de Humanidades) e pela publicidade (seu maior anunciante é a Livraria Cultura). Focaremos especialmente os escritos de Carvalho, já que são as referências para a produção ideológica dos demais colunistas.

O anticomunismoO anticomunismo é tratado como a necessidade

de se abordar consequentemente teórica e estrategicamente os movimentos do inimigo, uma ciência contrarrevolucionária, visando sua completa expurgação do corpo social “infiltrado”. Em seu sentido amplo:

[...] pode ser definido como uma hostilidade sistemática ao comunismo, traduzindo-se de acordo com seu grau de desenvolvimento questionando o suporte teórico e ideológico do comunismo (o marxismo) ou das forças e regimes que o encarnariam (os partidos

8comunistas, os “países socialistas”).

5ALEXA. Consulta por www.midiasemmascara.org. Disponível em http://www.alexa.com/siteinfo/midiasemmascara.org#, acessado em 13.02.10. O site do MSM é apresentado como .org sendo redirecionado para o .com.br.6CETIC.BR. Estatísticas diárias por categoria. Disponível em http://www.cetic.br/dominios/index.htm, acessado em 13.02.12. 7ECOMMERCE.ORG. Os 20 países com maior número de usuários da internet. Disponível em http://www.e-commerce.org.br/stats.php, acessado em 13.02.12.8LAVABRE, Marie-Claire. “Anticommunisme” (verbete). In. BENSUSSAN, Gérard; LABICA, Georges. Dictionnaire critique du marxisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1982. p. 39-40. Tradução nossa.

Ele já aparece no “Manifesto do Partido Comunista”, onde Karl Marx e Friedrich Engels demandaram que a Liga dos Comunistas combatesse contra as caricaturas e distorções do programa comunista efetuadas pela “Santa Aliança”. No “Manifesto” distinguiram dois elementos do anticomunismo: o primeiro, a função de difundir o medo do comunismo, focando temas como a partilha social ou a revolta popular. O que Marie-Claire Lavabre compreende tratar-se de “dotar aos objetivos imediatos dos comunistas a negação absoluta de valores (propriedade, família, nação) da sociedade burguesa”, desqualificando “o programa dos comunistas pela imagem catastrófica de

10suas consequências”. O segundo elemento refere-se à função de atribuir ao comunismo distorções, o atacando como sendo equivalente ao que se acusa de ser comunista: “que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a

11pecha infamante de comunista?”.

Após a Revolução Russa o anticomunismo irá adquirir um novo formato, baseado na “verificação empírica” do mal que o comunismo poderia causar, imaginário ou não, passando a referenciar a URSS. Isto o dotou de uma “dimensão suplementar: a oposição mundo l i v re / t o t a l i t a r i s m o , O c i d e n t e / O r i e n t e , o u

12civilização/barbárie”. Desta forma taxando os Partidos Comunistas ao redor do globo de partidos do estrangeiro, os supondo “destacamentos avançados” de uma conspiração global, comandada pelos soviéticos:

Se a luta contra o comunismo aparenta ter sido o fundamento ideológico da maioria dos políticos reacionários ou simplesmente conservadores (verificar a instauração, em seu nome, dos regimes fascistas da Europa do entre-guerras ou o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos), a definição de anticomunismo escolhida, da deformação e falsificação dos posicionamentos comunistas em serviço dos políticos da direita, não apresentou problemas no uso corrente que atribuíram aos partidos comunistas. Duas classes: um projeto, a revolução; um método, o

13partido; um modelo, a União Soviética.

Assinalemos que o anticomunismo não refere-se somente aos comunistas, estendendo-se a tudo o que pode ser interpretado como colaborador com o objetivo histórico destes: a abrangência do comunismo amplia-se a ponto de não poder ser quantificado, o “espectro” ronda todo o corpo social. Abre-se a possibilidade de “qualificar” diversos elementos contaminados, ou melhor, passando a dotar as práticas políticas mais diversas de um sentido político específico. Assim, projetos políticos irracionalistas, como o fascismo, retoricamente passaram a arrogarem-se de portarem a gênese de um projeto de sociedade, pois identificando o

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9MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista/A ideologia alemã. Lima: Los Libros Más Pequeños del Mundo, 2010. p. 15-16.10LAVABRE, op. cit. p. 40. Tradução nossa.11MARX, & ENGELS, op. cit. p. 17. 12LAVABRE, op. cit. p. 40. Tradução nossa.13Idem. Tradução nossa.

outro em termos sub-reptícios, que só eles teriam a competência especializada para classificarem e isolarem, compondo uma retórica supostamente “totalizante” de contraposição, afirmação maior da sua imunidade diante da disseminação viral do inimigo.

Tal movimento acaba por reduzir o campo político em duas posições irremediavelmente contrárias: uma leitura social binária, maniqueísta. Desta redução do campo político, entre prós e contras, gera-se uma desqualificação generalizante da própria política, que passa a ser compreendida como expressão de duas naturezas distintas (onde cada posicionamento torna-se somatória direta em direção a um fim da história), e que poderia ser resumida na divisão entre bem e mal. Isto ecoa o entendimento de Palmiro Togliatti sobre o anticomunismo, que intenta “dividir categoricamente a humanidade em dois campos e considerar... o dos comunistas... como o campo daqueles que já não são homens, por haverem renegado e postergado os valores fundamentais da civilização humana”. Ele delimita e constrói o campo de atuação dos partidos por contraposição, definindo as possíveis estratégias para especificar claramente quais são as alianças possíveis e os seus inimigos dentro do campo eleitoral parlamentar burguês, sustentada com base à “incompatibilidade radical com o campo oposto, da inconciliabilidade dos

14respectivos valores e interesses”. Este é o objetivo último do anticomunismo, negar a capacidade racional humana de distinção entre realidade e falsificação, transmutando sua consciência histórica e social em mera sensação e, portanto, atribuindo ao conhecimento incapacidade de basear a atuação humana, incompleto já que ideológico (e incapaz de aspirar à compreensão racional da realidade). Dota irremediavelmente o conhecimento de um sentido idealista, transcendente ao homem (seja deus ou a mão invisível do mercado), tornando-o incapaz de julgar, de atuar racionalmente diante da sua realidade.

O anticomunismo contra GramsciEm diversos escritos de Olavo de Carvalho o

anticomunismo é apresentado de modo “autorizado”, utilizando sua breve passagem pelo Partido Comunista Brasileiro, na década de 60, como justificativa. Argumenta exatamente a leitura dicotômica de mundo é formadora da especificidade da atuação comunista, constituiria a linha divisória entre “nós” e “eles” de modo claro, supostamente objetivado seu fim histórico: “acreditamos que bastava nos dar armas e que o resto nós faríamos: construiríamos um mundo melhor. E como construiríamos um mundo melhor? Pelo velho expediente de matar — matar quem não o desejasse”, acrescentando, que “nós tomamos em sentido literal o

15que dizia Jean Paul Sartre: 'O inferno são os outros'”.

14BONET, Luciano. “Anticomunismo” (verbete). In. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1998. p. 34-35.15CARVALHO, Olavo de. Reparando uma injustiça pessoal. Discurso pronunciado no Clube Militar do Rio de Janeiro em 31.03.99. Disponível em http:/ /www.olavodecarvalho.org/textos/ reparando.htm, acessado em 04.07.11.

ARTIGO - Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011) História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (68-73)

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16Idem.17MIGLIOLI, Jorge. “O papel crítico do intelectual marxista”. Novos Rumos. nº. 163, abril 1962. Reproduzido em O comunismo no Brasil. Inquérito Policial Militar nº. 709, Rio, Biblioteca do Exército, 1966. p. 230. Apud CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 53.18CARVALHO, Olavo de. “Apostando na estupidez humana”. O Globo. 06.06.02. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/ semana/07062002globo.htm, acessado em 14.04.11.

Isto foi pronunciado em um discurso pronunciado no Clube Militar do Rio de Janeiro, buscando inverter as posições de torturados e torturadores:

Qual era o crime dos militares? Eles eram a D i r e i t a . Ora , a D i r e i t a que r d i ze r necessariamente o mal, portanto eles eram o mal encarnado [...] Era uma espécie de maldade onto1ógica que estava grudada na constituição deles, independentemente do que fizessem ou deixassem de fazer [...] Ora esta metafísica, esta horrenda metafísica maniquéia, ela na verdade é

16a essência mesma da política.

O cerne do que Carvalho entende como pensamento marxista não seria capaz de evitar a leitura propositadamente binária em termos utilitários, práticos e imediatos – a revolução tornar-se-ia a necessidade ulterior teleológica para toda a prática humana, substituindo as matrizes mais básicas de qualquer atividade destes. Embora esta leitura maniqueísta sobre o campo político é tratada de modo distinto em “O Imbecil Coletivo”, quando cita um artigo da revista comunista “Novos Rumos” de 1962:

C a b e - n o s r e v e r u m a o u t r a a t i t u d e completamente enraizada entre nós, e que evidencia uma verdadeira letargia mental. Trata-se do hábito de raciocinar dentro de esquemas fixos [...] Exemplo é o esquema 'revolucionário x reacionário' [...] Feito isto, está concluída a 'tarefa'. Como poderemos compreender a

17realidade, mantendo esta atitude?

Isto porque no resto daquele capítulo buscaria “demonstrar” como a intelectualidade comunista “evoluiu” do mero enquadramento da realidade na teoria, de modo automático, para uma construção teórica mais desenvolvida, mais sedutora, visando com isto contaminar de maneira sutil os aportes metodológicos de seus inimigos. Este tipo de percepção é possível porque para Olavo de Carvalho o anticomunismo assume duas posições distintas e complementares: a forma de uma ciência, a contraposição da estratégia marxista (que exigiu a formatação do MSM como inversamente semelhante ao do partido revolucionário para seu combate consequente, o que por falta de espaço não nos cabe abordar neste artigo), e a mera rejeição do comunismo. Quando trata-se de assumir a segunda forma, sua antítese é simplesmente considerada uma

18inversão da realidade, como mera ideologia, afirmando assim um conceito de ciência “purista”, indeferida de sua função social:

O comunismo é uma “ideologia”, isto é, um discurso de autojustificação de um movimento político identificável. O anticomunismo não é

uma ideologia de maneira alguma, mas a simples rejeição crítica de uma ideologia por motivos que, em si, não têm de ser ideológicos, embora possam ser absorvidos no corpo de diversas ideologias […] Não é preciso dizer que os conceitos comunistas do “burguês” e do “proletário” são igualmente fantasmagóricos – se bem que envoltos numa embalagem intelectualmente mais elegante […] Mas também é certo que os próprios conceitos científicos daí obtidos podem se incorporar depois no discurso político, tornando-se expressões da doxa. É isso, precisamente, o que se denomina uma ideologia: um discurso de ação política composto de conceitos científicos esvaziados de seu conteúdo analítico e

19imantados de carga simbólica.

Ao considerar o marxismo como mera ideologia justificadora de uma prática política (propositadamente mal delimitada) intenta afirmar a inexistência de conteúdo científico e social neste, argumentando de maneira plenamente anticientífica. De uma maneira simplória, apoiando-se em joguetes semânticos, considera somente a dimensão discursiva destes conceitos para reconhecer seus usos em termos de “cargas simbólicas”. Dá-se por satisfeito em seus objetivos de recusa do marxismo como ciência social – ao mesmo tempo em que atira para fora das ciências humanas qualquer categoria ontológica. É uma afirmação sobre o caráter irracional que visa dotar como formador do político, cindindo completamente dois campos sociais, o científico e o político, o primeiro “criador de justificativas simbólicas” posteriores para o segundo.

Só que o MSM existe quando a União Soviética não existe mais, sendo que o capitalismo, a democracia parlamentar burguesa vencedora celebraria então o “fim da história”. Para poder manter uma argumentação “da guerra fria”, Carvalho então afirma que:

O mais notável fenômeno psicológico da última década foi o “upgrade” mundial do discurso comunista, que, por meio da pura alquimia verbal, transmutou o fracasso sangrento de um regime campeão de genocídio em argumento plausível para elevar ao sétimo céu o prestígio e a autoridade moral da causa esquerdista. Foi o maior “non sequitur” de todos os tempos. Para realizá-lo, os meios empregados foram espantosamente simples: Primeiro: declarar o comunismo episódio encerrado, de modo a inibir a tentação de estudá-lo, portanto a aptidão de reconhecê-lo no seu estado presente e a vontade de combatê-lo. Segundo: trocar a palavra “comunismo” por qualquer de seus equivalentes e u f e m í s t i c o s t r a d i c i o n a i s ( “ f o r ç a s democráticas”, etc.), que, na atmosfera de esquecimento geral assim criada, poderiam sem dificuldade passar por novos. Terceiro: continuar imperturbavelmente a usar as mesmas categorias de pensamento e os mesmos meios de ação do marxismo tradicional, com a perfeita

19CARVALHO, Olavo de. “Ciência e ideologia”. O Globo. 20.09.03. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/ 09202003globo.htm, acessado em 14.04.11.

ARTIGO - Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011)

segurança de que ninguém na platéia os reconheceria. (Assim, por exemplo, a lei de quotas raciais é simples aplicação de um velho preceito de Stálin, mas quem lê Stálin hoje em dia?). Quarto: instigar a hostilidade muçulmana contra Israel e os EUA, de modo a disfarçar a guerra anticapitalista sob o manto de um conflito entre dois conservadorismos, o islâmico e o judaico-cristão [...] Pronto. Com esses poucos truques, a esquerda consegue fazer hoje a opinião pública aceitar as teses marxistas da luta de classes e da supressão completa da oposição conservadora como sinais de moderação e

20tolerância democrática.

Para eles a “transfiguração” da esquerda pós-1989 não significa necessariamente sua real organização e atuação na luta de classes, mas uma suposta etapa de preparação, anterior à fase da disputa aberta, que buscaria alterar as relações de força existentes sem serem notados. Esta é a sua grande questão, atribuir para a esquerda revolucionária uma mudança estratégica. Antigamente baseada no leninismo, a guerra de movimento que pregava o ataque direto ao Estado, é transmutada para o que nomeia “gramscismo”, supostamente baseado na

21 22guerra de posições e centrado no transformismo, buscando a ocupação de espaços para realizar a mudança moral do homem, e somente aí, abertamente assumir o Estado. “O objetivo primeiro do gramscismo e muito amplo e geral em seu escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar um giro de cento e oitenta graus na cosmovisão do senso comum, mudar os sentimentos morais, as reações de base e o senso das proporções”, assim evitando “o confronto ideológico direto que só faria excitar prematuramente

23antagonismos indesejáveis”. É nesta suposta mudança estratégica da esquerda que eles irão centrar toda sua atuação:

A estratégia de Gramsci virava de cabeça para baixo a fórmula leninista, na qual uma vanguarda organizadíssima e armada tomava o poder pe la fo rça , au tonomeando-se representante do proletariado e somente depois tratando de persuadir os apatetados proletários de que eles, sem ter disto a menor suspeita, haviam sido os autores da revolução. A revolução gramsciana está para a revolução leninista assim como a sedução está para o

24estupro.

20CARVALHO, Olavo de. “Apostando na estupidez humana”. O Globo. 06.06.02. op. cit.21Sobre o conceito em relação ao arcabouço teórico de Gramsci ver VACCA, G. Guerra de posição e guerra de movimento. Disponível em: h t tp : / /www.f ranca .unesp .br /GUERRA%20DE%20 MOVIMENTO.pdf, acessado em 06.01.12. 22Como o conceito anterior, ver COELHO, E. Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Tese de Doutorado. Niterói, UFF: 2005. 23CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural. Fritjof C a p r a & A n t o n i o G r a m s c i . D i s p o n í v e l e m : http://www.olavodecarvalho.org/livros/negramsci.htm, acessado em 27.10.10.24Idem.

Isto traz para o primeiro plano a atuação comunista, mesmo que represente um grupo minoritário no campo eleitoral-parlamentar. O inimigo não estaria simplesmente “oculto”, mas sustentando tal clandestinidade como ponto nodal de sua atuação, em que, o objetivo maior figura na alteração do modo de ser da humanidade, buscando a passagem para o socialismo de forma “automática”, sem que fosse percebida pelas consciências individuais. Este período seria o da disputa pela “hegemonia” (plenamente esvaziado de seu

25conteúdo original ), que não excluiria “um comando unificado, mas, para o sucesso da estratégia gramsciana, a unidade de comando, ao menos ostensiva, é bastante

26dispensável” . Esta “estratégia obscura” estaria sendo levada a cabo no Brasil há pelo menos quatro décadas, onde a ditadura supostamente teria aliviado parcela dos comunistas da repressão:

O governo militar se ocupou de combater a guerrilha, mas não de combater o comunismo na esfera cultural, social e moral. Havia a famosa teoria da panela de pressão, do general Golbery do Couto e Silva. Ele dizia: “Não podemos tampar todos os buraquinhos e fazer pressão, porque senão ela estoura”. A válvula que eles deixaram para a esquerda foram as universidades e o aparato cultural [...] Foi a facção que acabou tirando vantagem de tudo isso – até da derrota, porque a derrota lhes deu uma plêiade de mártires […] O período militar foi a época de maior progresso da indústria editorial de esquerda no Brasil. Nunca se publicou tanto livro de esquerda. Além de ter destacados colunistas de esquerda nos jornais, ainda havia vários semanários importantíssimos de oposição como os tabloides Movimento, Fato Novo, O Pasquim, Ex, Versus, as revistas Civilização Brasileira, Paz e Terra e muitas outras. Além disso, praticamente todos os grandes jornais eram dirigidos por homens de esquerda como Luís Garcia, Claudio Abramo, Alberto Dines, Narciso Kalili e Celso Kinjo. Outra coisa importantíssima: todos os sindicatos de jornais

27do país eram presididos por esquerdistas.

A esquerda então relegada a um espaço social considerado “relativamente autônomo” da sociedade (a Universidade especialmente), onde “embora houvessem agentes do governo militar assistindo as aulas dos marxistas nas universidades, estes podiam pregar tudo, desde que não tocassem em assunto de luta armada e reforma agrária”. Assim, teria utilizado este espaço que supostamente os propiciou “toda a liberdade para falar de aborto, divórcio, sexo livre, pois isso não era identificado como marxismo” para dali atingir toda a sociedade, sendo que esta viragem em direção ao cultural

25Sobre o conceito em relação ao arcabouço teórico de Gramsci ver NEVES, L. M. W. A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.26Idem.27CASTRO, Gabriel. “Olavo de Carvalho: esquerda ocupou vácuo pós-ditadura”. Entrevista. Veja Online. 03.04.11. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/olavo-de-carvalho-esquerda-ocupou-vacuo-pos-ditadura, acessado em 03.04.11.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (68-73)

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16Idem.17MIGLIOLI, Jorge. “O papel crítico do intelectual marxista”. Novos Rumos. nº. 163, abril 1962. Reproduzido em O comunismo no Brasil. Inquérito Policial Militar nº. 709, Rio, Biblioteca do Exército, 1966. p. 230. Apud CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 53.18CARVALHO, Olavo de. “Apostando na estupidez humana”. O Globo. 06.06.02. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/ semana/07062002globo.htm, acessado em 14.04.11.

Isto foi pronunciado em um discurso pronunciado no Clube Militar do Rio de Janeiro, buscando inverter as posições de torturados e torturadores:

Qual era o crime dos militares? Eles eram a D i r e i t a . Ora , a D i r e i t a que r d i ze r necessariamente o mal, portanto eles eram o mal encarnado [...] Era uma espécie de maldade onto1ógica que estava grudada na constituição deles, independentemente do que fizessem ou deixassem de fazer [...] Ora esta metafísica, esta horrenda metafísica maniquéia, ela na verdade é

16a essência mesma da política.

O cerne do que Carvalho entende como pensamento marxista não seria capaz de evitar a leitura propositadamente binária em termos utilitários, práticos e imediatos – a revolução tornar-se-ia a necessidade ulterior teleológica para toda a prática humana, substituindo as matrizes mais básicas de qualquer atividade destes. Embora esta leitura maniqueísta sobre o campo político é tratada de modo distinto em “O Imbecil Coletivo”, quando cita um artigo da revista comunista “Novos Rumos” de 1962:

C a b e - n o s r e v e r u m a o u t r a a t i t u d e completamente enraizada entre nós, e que evidencia uma verdadeira letargia mental. Trata-se do hábito de raciocinar dentro de esquemas fixos [...] Exemplo é o esquema 'revolucionário x reacionário' [...] Feito isto, está concluída a 'tarefa'. Como poderemos compreender a

17realidade, mantendo esta atitude?

Isto porque no resto daquele capítulo buscaria “demonstrar” como a intelectualidade comunista “evoluiu” do mero enquadramento da realidade na teoria, de modo automático, para uma construção teórica mais desenvolvida, mais sedutora, visando com isto contaminar de maneira sutil os aportes metodológicos de seus inimigos. Este tipo de percepção é possível porque para Olavo de Carvalho o anticomunismo assume duas posições distintas e complementares: a forma de uma ciência, a contraposição da estratégia marxista (que exigiu a formatação do MSM como inversamente semelhante ao do partido revolucionário para seu combate consequente, o que por falta de espaço não nos cabe abordar neste artigo), e a mera rejeição do comunismo. Quando trata-se de assumir a segunda forma, sua antítese é simplesmente considerada uma

18inversão da realidade, como mera ideologia, afirmando assim um conceito de ciência “purista”, indeferida de sua função social:

O comunismo é uma “ideologia”, isto é, um discurso de autojustificação de um movimento político identificável. O anticomunismo não é

uma ideologia de maneira alguma, mas a simples rejeição crítica de uma ideologia por motivos que, em si, não têm de ser ideológicos, embora possam ser absorvidos no corpo de diversas ideologias […] Não é preciso dizer que os conceitos comunistas do “burguês” e do “proletário” são igualmente fantasmagóricos – se bem que envoltos numa embalagem intelectualmente mais elegante […] Mas também é certo que os próprios conceitos científicos daí obtidos podem se incorporar depois no discurso político, tornando-se expressões da doxa. É isso, precisamente, o que se denomina uma ideologia: um discurso de ação política composto de conceitos científicos esvaziados de seu conteúdo analítico e

19imantados de carga simbólica.

Ao considerar o marxismo como mera ideologia justificadora de uma prática política (propositadamente mal delimitada) intenta afirmar a inexistência de conteúdo científico e social neste, argumentando de maneira plenamente anticientífica. De uma maneira simplória, apoiando-se em joguetes semânticos, considera somente a dimensão discursiva destes conceitos para reconhecer seus usos em termos de “cargas simbólicas”. Dá-se por satisfeito em seus objetivos de recusa do marxismo como ciência social – ao mesmo tempo em que atira para fora das ciências humanas qualquer categoria ontológica. É uma afirmação sobre o caráter irracional que visa dotar como formador do político, cindindo completamente dois campos sociais, o científico e o político, o primeiro “criador de justificativas simbólicas” posteriores para o segundo.

Só que o MSM existe quando a União Soviética não existe mais, sendo que o capitalismo, a democracia parlamentar burguesa vencedora celebraria então o “fim da história”. Para poder manter uma argumentação “da guerra fria”, Carvalho então afirma que:

O mais notável fenômeno psicológico da última década foi o “upgrade” mundial do discurso comunista, que, por meio da pura alquimia verbal, transmutou o fracasso sangrento de um regime campeão de genocídio em argumento plausível para elevar ao sétimo céu o prestígio e a autoridade moral da causa esquerdista. Foi o maior “non sequitur” de todos os tempos. Para realizá-lo, os meios empregados foram espantosamente simples: Primeiro: declarar o comunismo episódio encerrado, de modo a inibir a tentação de estudá-lo, portanto a aptidão de reconhecê-lo no seu estado presente e a vontade de combatê-lo. Segundo: trocar a palavra “comunismo” por qualquer de seus equivalentes e u f e m í s t i c o s t r a d i c i o n a i s ( “ f o r ç a s democráticas”, etc.), que, na atmosfera de esquecimento geral assim criada, poderiam sem dificuldade passar por novos. Terceiro: continuar imperturbavelmente a usar as mesmas categorias de pensamento e os mesmos meios de ação do marxismo tradicional, com a perfeita

19CARVALHO, Olavo de. “Ciência e ideologia”. O Globo. 20.09.03. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/ 09202003globo.htm, acessado em 14.04.11.

ARTIGO - Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011)

segurança de que ninguém na platéia os reconheceria. (Assim, por exemplo, a lei de quotas raciais é simples aplicação de um velho preceito de Stálin, mas quem lê Stálin hoje em dia?). Quarto: instigar a hostilidade muçulmana contra Israel e os EUA, de modo a disfarçar a guerra anticapitalista sob o manto de um conflito entre dois conservadorismos, o islâmico e o judaico-cristão [...] Pronto. Com esses poucos truques, a esquerda consegue fazer hoje a opinião pública aceitar as teses marxistas da luta de classes e da supressão completa da oposição conservadora como sinais de moderação e

20tolerância democrática.

Para eles a “transfiguração” da esquerda pós-1989 não significa necessariamente sua real organização e atuação na luta de classes, mas uma suposta etapa de preparação, anterior à fase da disputa aberta, que buscaria alterar as relações de força existentes sem serem notados. Esta é a sua grande questão, atribuir para a esquerda revolucionária uma mudança estratégica. Antigamente baseada no leninismo, a guerra de movimento que pregava o ataque direto ao Estado, é transmutada para o que nomeia “gramscismo”, supostamente baseado na

21 22guerra de posições e centrado no transformismo, buscando a ocupação de espaços para realizar a mudança moral do homem, e somente aí, abertamente assumir o Estado. “O objetivo primeiro do gramscismo e muito amplo e geral em seu escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar um giro de cento e oitenta graus na cosmovisão do senso comum, mudar os sentimentos morais, as reações de base e o senso das proporções”, assim evitando “o confronto ideológico direto que só faria excitar prematuramente

23antagonismos indesejáveis”. É nesta suposta mudança estratégica da esquerda que eles irão centrar toda sua atuação:

A estratégia de Gramsci virava de cabeça para baixo a fórmula leninista, na qual uma vanguarda organizadíssima e armada tomava o poder pe la fo rça , au tonomeando-se representante do proletariado e somente depois tratando de persuadir os apatetados proletários de que eles, sem ter disto a menor suspeita, haviam sido os autores da revolução. A revolução gramsciana está para a revolução leninista assim como a sedução está para o

24estupro.

20CARVALHO, Olavo de. “Apostando na estupidez humana”. O Globo. 06.06.02. op. cit.21Sobre o conceito em relação ao arcabouço teórico de Gramsci ver VACCA, G. Guerra de posição e guerra de movimento. Disponível em: h t tp : / /www.f ranca .unesp .br /GUERRA%20DE%20 MOVIMENTO.pdf, acessado em 06.01.12. 22Como o conceito anterior, ver COELHO, E. Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Tese de Doutorado. Niterói, UFF: 2005. 23CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural. Fritjof C a p r a & A n t o n i o G r a m s c i . D i s p o n í v e l e m : http://www.olavodecarvalho.org/livros/negramsci.htm, acessado em 27.10.10.24Idem.

Isto traz para o primeiro plano a atuação comunista, mesmo que represente um grupo minoritário no campo eleitoral-parlamentar. O inimigo não estaria simplesmente “oculto”, mas sustentando tal clandestinidade como ponto nodal de sua atuação, em que, o objetivo maior figura na alteração do modo de ser da humanidade, buscando a passagem para o socialismo de forma “automática”, sem que fosse percebida pelas consciências individuais. Este período seria o da disputa pela “hegemonia” (plenamente esvaziado de seu

25conteúdo original ), que não excluiria “um comando unificado, mas, para o sucesso da estratégia gramsciana, a unidade de comando, ao menos ostensiva, é bastante

26dispensável” . Esta “estratégia obscura” estaria sendo levada a cabo no Brasil há pelo menos quatro décadas, onde a ditadura supostamente teria aliviado parcela dos comunistas da repressão:

O governo militar se ocupou de combater a guerrilha, mas não de combater o comunismo na esfera cultural, social e moral. Havia a famosa teoria da panela de pressão, do general Golbery do Couto e Silva. Ele dizia: “Não podemos tampar todos os buraquinhos e fazer pressão, porque senão ela estoura”. A válvula que eles deixaram para a esquerda foram as universidades e o aparato cultural [...] Foi a facção que acabou tirando vantagem de tudo isso – até da derrota, porque a derrota lhes deu uma plêiade de mártires […] O período militar foi a época de maior progresso da indústria editorial de esquerda no Brasil. Nunca se publicou tanto livro de esquerda. Além de ter destacados colunistas de esquerda nos jornais, ainda havia vários semanários importantíssimos de oposição como os tabloides Movimento, Fato Novo, O Pasquim, Ex, Versus, as revistas Civilização Brasileira, Paz e Terra e muitas outras. Além disso, praticamente todos os grandes jornais eram dirigidos por homens de esquerda como Luís Garcia, Claudio Abramo, Alberto Dines, Narciso Kalili e Celso Kinjo. Outra coisa importantíssima: todos os sindicatos de jornais

27do país eram presididos por esquerdistas.

A esquerda então relegada a um espaço social considerado “relativamente autônomo” da sociedade (a Universidade especialmente), onde “embora houvessem agentes do governo militar assistindo as aulas dos marxistas nas universidades, estes podiam pregar tudo, desde que não tocassem em assunto de luta armada e reforma agrária”. Assim, teria utilizado este espaço que supostamente os propiciou “toda a liberdade para falar de aborto, divórcio, sexo livre, pois isso não era identificado como marxismo” para dali atingir toda a sociedade, sendo que esta viragem em direção ao cultural

25Sobre o conceito em relação ao arcabouço teórico de Gramsci ver NEVES, L. M. W. A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.26Idem.27CASTRO, Gabriel. “Olavo de Carvalho: esquerda ocupou vácuo pós-ditadura”. Entrevista. Veja Online. 03.04.11. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/olavo-de-carvalho-esquerda-ocupou-vacuo-pos-ditadura, acessado em 03.04.11.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (68-73)

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teria como objetivo destruir os “principais sustentáculos da cultura ocidental”, a saber: “o direito romano, a

28filosofia grega e a moral judaico-cristã”. Este movimento de transmutação seria deste modo o responsável pela cisão entre o marxismo soviético e o ocidental, o último encarregado pelo responsável pelos ataques acima delimitados, tendo em vista a destruição do senso comum, a mudança moral do homem. Sublinhando que é o conservadorismo do grupo em relação a outras esferas da vida social (“atacadas” pelo feminismo, pelos movimentos LGBTTTs, dentre diversos) acaba por ser revestido de um sentido político determinado, o comunista. Esta gênese seria obra de Gramsci, que “transformou a estratégia comunista, de um grosso amálgama de retórica e força bruta, numa delicada orquestração de influências sutis, penetrante como a

29Programação Neurolinguística”. No Brasil esta influência teria sido tão poderosa, que nos dias de hoje, qualquer pessoa que “deseje reduzir a um quadro coerente o aglomerado caótico de elementos que se agitam na cena brasileira, tem de começar a desenhá-lo tomando como centro um personagem que nunca esteve aqui, do qual a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar”, obviamente o sardo, cuja estratégia seria responsável pela “hegemonia esquerdista” nos campos intelectual e cultural. Seria “a fabricação do simulacro de debate chega ao requinte de forjar previamente toda uma galeria das oposições admitidas, que são precisamente aquelas cujo confronto levará fatalmente à conclusão

30desejada”.

Sobre os motivos de se “resgatar” as elucubrações teóricas de Gramsci, Carvalho afirma que esta foi buscada pelos comunistas durante as supostas dificuldades que o Partido Comunista Soviético teria em convencer a população russa após a revolução. O povo russo teria um caráter “plenamente conservador” (Carvalho considera a massa mais disposta a obedecer do que rebelar-se), ou seja, reprodutores de uma cultura “antiga” que rejeitava as políticas bolcheviques, que não possuindo a “malícia” de Gramsci, foram obrigados a recorrer para a violência:

Gramsci estava particularmente impressionado com a violência das guerras que o governo revolucionário da Rússia tivera de empreender para submeter ao comunismo as massas recalcitrantes, apegadas aos valores e praxes de uma velha cultura [...] Para contornar a dificuldade, Gramsci concebeu uma dessas idéias engenhosas [...] amestrar o povo para o

31socialismo antes de fazer a revolução.

28RICARDO, Pe. Paulo. Introdução à filosofia – o marxismo cultural! ( e x t r a t o s d e u m a p a l e s t r a ) . D i s p o n í v e l e m http://antiforodesaopaulo.blogspot.com/2009/05/iniciacao-filosofia-o-marxismo-cultural.html, acessado em 10.04.11.29CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci. op. cit.30CARVALHO, Olavo de. “Antonio Gramsci e a teoria do bode”. IEE. 29.10.02. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/iee_ gramsci.htm, acessado em 14.04.11.31CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci. op. cit.

O que Gramsci supostamente teria feito através da distinção “entre 'poder' (ou, como ele prefere chamá-lo, 'controle') e 'hegemonia'”. O primeiro seria “o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército e a polícia”, enquanto a hegemonia supostamente seria “o domínio psicológico sobre a

32multidão”. Através desta cisão imaginada, a tomada do poder então só viria a ocorrer quando não houvesse mais traços reconhecíveis da cultura antiga (exceto toda a sustentação material desta, assinalemos). Assim, as mudanças estéticas, da linguagem, das artes e da cultura popular não estariam mais relacionadas com as mudanças históricas e sociais dentro de determinada formação social (especialmente da classe dominante), mas seriam então resultado de um esforço de manipulação massivo e ao mesmo tempo quase imperceptível. Buscariam alterar a “filtragem” que os indivíduos fazem da sua realidade, mudando suas percepções em relação a sua vivência nesta. Através desta estratégia caberia aos comunistas buscar a transformação da realidade pela recusa na disseminação aberta do marxismo enquanto ciência, seu cerne estratégico exatamente esta recusa no debate aberto, evitando contrariedades desnecessárias. É esta percepção, afirmada verdadeira, que permite atribuir culpabilidade para qualquer ator político ou social, já que escapa dos parâmetros da ação direta por determinados atores políticos, atribuindo sentido para qualquer ação política como resultante da atuação comunista.

Para tanto, um dos conceitos desenvolvidos por Gramsci torna-se fundamental para eles, o de intelectual, que também é revestido desta concepção “etapista”. Estes intelectuais, arrancados do mundo da produção, de seu sentido conceitual originário, seriam revolucionários profissionais distribuídos em uma miríade de lugares na sociedade e no Estado, e que desempenhariam, de modo caricaturado, todas suas atividades visando à revolução. Para tanto, o partido comunista abandona o proletariado visando à formação de intelectuais orgânicos (quase no sentido de dependência física ao partido) e no “entrismo” destes nos aparelhos privados de hegemonia e no Estado. Carvalho raramente refere-se ao proletariado, pois busca associar o comunismo com a atuação de somente um grupo de lideranças, a vanguarda como sósia de uma elite. O transformismo é entendido como “atuação transformista”, como construção de personas duplas por parte de todo um grupo político objetivando um fim histórico determinado idealmente.

A atuação comunista, para ser funcional neste esquematismo teórico, não poderia estar completamente desorganizada, exatamente porque esta impressão de desorganização é a suposta chave-mestra da estratégia. Ela teria de reportar-se a um organismo maior, sendo este o partido nacional revolucionário – que não se apresentaria como tal, dada a necessidade de dissimular suas intenções para poder disseminar-se por todo o corpo social, além de coordenar a atuação nacional com a perspectiva internacionalista. No caso brasileiro o partido revolucionário é identificado com o Partido dos Trabalhadores, que de um nascimento combativo passa a

32Idem.

ARTIGO - Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011)

integrar a ordem. Esta mudança seria grande jogada da estratégia, pois ao revestir-se dos interesses da classe dominante, tornando-se “inofensivo” (a imagem maior desta brandura seria do Lula “light”), o partido supera a tática leninista para atuar de maneira plena através do “gramscismo”. O organismo internacionalista, a coordenação estratégica gramsciana em nível internacional estaria a cabo do Foro de São Paulo, entidade supranacional criada em 1990, da qual o PT é um dos fundadores e será presidida por Lula até 2002. Para o MSM ele agruparia as mais variadas tendências e facções de esquerda latino-americanas, “mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos seqüestros, como as

33FARC e o MIR chileno” além da Organização dos Estados Americanos (OEA) e think tanks estadunidenses com o único propósito de resguardar e coordenar o

34comunismo na América Latina. Obviamente aqui não nos cabe defender o PT ou o Foro de São Paulo, agrupamento heterogêneo de partidos e forças de esquerdas que reivindicam a via eleitoral (ou tentando se integrar a esta), numa espécie de ressurreição do “espírito” da II Internacional, em que se isentam de uma coordenação política efetiva. Cabe-nos assinalar que mesmo se o anticomunismo foca diretamente estes agentes, atinge toda a classe trabalhadora: busca conscientemente denegrir as entidades, partidos e movimentos sociais proletários e campesinos, descreditando e deturpando o sentido social de suas ações.

4. Referências FinaisSem retornar para os conceitos gramscianos,

podemos afirmar que o que o MSM chama de “gramscismo” seria, para além de todas as propositais deturpações, a afirmação da revolução passiva como estratégia positiva para os comunistas, invertendo seu sentido original de uma derrota seguida da ampliação do Estado, ainda a dotando de um caráter “etapista”. Nesta simulação de estratégia marxista o transformismo se tornaria a principal tarefa dos intelectuais revolucionários, pois quanto mais bem sucedida for sua “aparência” de alinhamento à ordem pelo partido revolucionário, mais efetiva seria a ocupação de espaços no Estado e na sociedade civil: a guerra de posições visando uma mudança moral do homem. Ela seria pautada pela disseminação viral de novas mediações teleológicas para as atividades dos homens, ou seja, a libertação do homem não ocorreria através de mudanças nas relações sociais de produção, mas sim nas representações (como mediação racional anterior à realização de determinado ato e posteriormente, sobre as consequências e objetivos atingidos por sua realização)

33CARVALHO, Olavo de. “A maior trama criminosa de todos os tempos”. Digesto Econômico. Setembro/dezembro 2007. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/0709digestoeconomico. html, acessado em 14.04.11.34CARVALHO, Olavo de. “Digitais do Foro de São Paulo”. Diário do C o m é r c i o . 2 8 . 0 1 . 0 8 . D i s p o n í v e l e m : http://www.olavodecarvalho.org/semana/080128dc.html, acessado em 13.04.11.

que os homens fariam destas. Por fim, cabe-nos sublinhar novamente que o anticomunismo, assumido como postura política, não resume-se a um partido ou linha política, mas atinge a esquerda como um todo. A denúncia das práticas “comunistas” tem como objetivo descreditar a ação das lideranças populares e entidades proletárias e campesinas historicamente constituídas, frear as classes de reconhecerem-se enquanto tais, generalizar os resultados de qualquer ação imediata dos comunistas como caminho mecânico para a ditadura do proletariado, e em última instância, desacreditar o próprio campo político, advogando sua restrição ou “extinção”. Assim, o MSM apresenta-se como o agente competente para a denúncia, caça e repressão aberta dos comunistas, não somente justificando as perseguições sofridas pelos movimentos contra hegemônicos do passado e do presente – o assassinato, a tortura, o expurgo sistemático de todo avanço democrático no Brasil – como vai além, afirmando que só o que foi feito não foi suficiente. Não nos enganemos, a proposta maior do MSM é a exclusão da existência real dos comunistas e de todo seu “espectro”. Militam por um Estado autoritário, ditatorial, desenvolto em sua plenitude terrorista.

Artigo recebido em 5.3.2012Aprovado em 11.5.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (68-73)

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teria como objetivo destruir os “principais sustentáculos da cultura ocidental”, a saber: “o direito romano, a

28filosofia grega e a moral judaico-cristã”. Este movimento de transmutação seria deste modo o responsável pela cisão entre o marxismo soviético e o ocidental, o último encarregado pelo responsável pelos ataques acima delimitados, tendo em vista a destruição do senso comum, a mudança moral do homem. Sublinhando que é o conservadorismo do grupo em relação a outras esferas da vida social (“atacadas” pelo feminismo, pelos movimentos LGBTTTs, dentre diversos) acaba por ser revestido de um sentido político determinado, o comunista. Esta gênese seria obra de Gramsci, que “transformou a estratégia comunista, de um grosso amálgama de retórica e força bruta, numa delicada orquestração de influências sutis, penetrante como a

29Programação Neurolinguística”. No Brasil esta influência teria sido tão poderosa, que nos dias de hoje, qualquer pessoa que “deseje reduzir a um quadro coerente o aglomerado caótico de elementos que se agitam na cena brasileira, tem de começar a desenhá-lo tomando como centro um personagem que nunca esteve aqui, do qual a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar”, obviamente o sardo, cuja estratégia seria responsável pela “hegemonia esquerdista” nos campos intelectual e cultural. Seria “a fabricação do simulacro de debate chega ao requinte de forjar previamente toda uma galeria das oposições admitidas, que são precisamente aquelas cujo confronto levará fatalmente à conclusão

30desejada”.

Sobre os motivos de se “resgatar” as elucubrações teóricas de Gramsci, Carvalho afirma que esta foi buscada pelos comunistas durante as supostas dificuldades que o Partido Comunista Soviético teria em convencer a população russa após a revolução. O povo russo teria um caráter “plenamente conservador” (Carvalho considera a massa mais disposta a obedecer do que rebelar-se), ou seja, reprodutores de uma cultura “antiga” que rejeitava as políticas bolcheviques, que não possuindo a “malícia” de Gramsci, foram obrigados a recorrer para a violência:

Gramsci estava particularmente impressionado com a violência das guerras que o governo revolucionário da Rússia tivera de empreender para submeter ao comunismo as massas recalcitrantes, apegadas aos valores e praxes de uma velha cultura [...] Para contornar a dificuldade, Gramsci concebeu uma dessas idéias engenhosas [...] amestrar o povo para o

31socialismo antes de fazer a revolução.

28RICARDO, Pe. Paulo. Introdução à filosofia – o marxismo cultural! ( e x t r a t o s d e u m a p a l e s t r a ) . D i s p o n í v e l e m http://antiforodesaopaulo.blogspot.com/2009/05/iniciacao-filosofia-o-marxismo-cultural.html, acessado em 10.04.11.29CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci. op. cit.30CARVALHO, Olavo de. “Antonio Gramsci e a teoria do bode”. IEE. 29.10.02. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/textos/iee_ gramsci.htm, acessado em 14.04.11.31CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci. op. cit.

O que Gramsci supostamente teria feito através da distinção “entre 'poder' (ou, como ele prefere chamá-lo, 'controle') e 'hegemonia'”. O primeiro seria “o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército e a polícia”, enquanto a hegemonia supostamente seria “o domínio psicológico sobre a

32multidão”. Através desta cisão imaginada, a tomada do poder então só viria a ocorrer quando não houvesse mais traços reconhecíveis da cultura antiga (exceto toda a sustentação material desta, assinalemos). Assim, as mudanças estéticas, da linguagem, das artes e da cultura popular não estariam mais relacionadas com as mudanças históricas e sociais dentro de determinada formação social (especialmente da classe dominante), mas seriam então resultado de um esforço de manipulação massivo e ao mesmo tempo quase imperceptível. Buscariam alterar a “filtragem” que os indivíduos fazem da sua realidade, mudando suas percepções em relação a sua vivência nesta. Através desta estratégia caberia aos comunistas buscar a transformação da realidade pela recusa na disseminação aberta do marxismo enquanto ciência, seu cerne estratégico exatamente esta recusa no debate aberto, evitando contrariedades desnecessárias. É esta percepção, afirmada verdadeira, que permite atribuir culpabilidade para qualquer ator político ou social, já que escapa dos parâmetros da ação direta por determinados atores políticos, atribuindo sentido para qualquer ação política como resultante da atuação comunista.

Para tanto, um dos conceitos desenvolvidos por Gramsci torna-se fundamental para eles, o de intelectual, que também é revestido desta concepção “etapista”. Estes intelectuais, arrancados do mundo da produção, de seu sentido conceitual originário, seriam revolucionários profissionais distribuídos em uma miríade de lugares na sociedade e no Estado, e que desempenhariam, de modo caricaturado, todas suas atividades visando à revolução. Para tanto, o partido comunista abandona o proletariado visando à formação de intelectuais orgânicos (quase no sentido de dependência física ao partido) e no “entrismo” destes nos aparelhos privados de hegemonia e no Estado. Carvalho raramente refere-se ao proletariado, pois busca associar o comunismo com a atuação de somente um grupo de lideranças, a vanguarda como sósia de uma elite. O transformismo é entendido como “atuação transformista”, como construção de personas duplas por parte de todo um grupo político objetivando um fim histórico determinado idealmente.

A atuação comunista, para ser funcional neste esquematismo teórico, não poderia estar completamente desorganizada, exatamente porque esta impressão de desorganização é a suposta chave-mestra da estratégia. Ela teria de reportar-se a um organismo maior, sendo este o partido nacional revolucionário – que não se apresentaria como tal, dada a necessidade de dissimular suas intenções para poder disseminar-se por todo o corpo social, além de coordenar a atuação nacional com a perspectiva internacionalista. No caso brasileiro o partido revolucionário é identificado com o Partido dos Trabalhadores, que de um nascimento combativo passa a

32Idem.

ARTIGO - Olavo de Carvalho, o Mídia Sem Máscaras e o anticomunismo contra Gramsci (2002-2011)

integrar a ordem. Esta mudança seria grande jogada da estratégia, pois ao revestir-se dos interesses da classe dominante, tornando-se “inofensivo” (a imagem maior desta brandura seria do Lula “light”), o partido supera a tática leninista para atuar de maneira plena através do “gramscismo”. O organismo internacionalista, a coordenação estratégica gramsciana em nível internacional estaria a cabo do Foro de São Paulo, entidade supranacional criada em 1990, da qual o PT é um dos fundadores e será presidida por Lula até 2002. Para o MSM ele agruparia as mais variadas tendências e facções de esquerda latino-americanas, “mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos seqüestros, como as

33FARC e o MIR chileno” além da Organização dos Estados Americanos (OEA) e think tanks estadunidenses com o único propósito de resguardar e coordenar o

34comunismo na América Latina. Obviamente aqui não nos cabe defender o PT ou o Foro de São Paulo, agrupamento heterogêneo de partidos e forças de esquerdas que reivindicam a via eleitoral (ou tentando se integrar a esta), numa espécie de ressurreição do “espírito” da II Internacional, em que se isentam de uma coordenação política efetiva. Cabe-nos assinalar que mesmo se o anticomunismo foca diretamente estes agentes, atinge toda a classe trabalhadora: busca conscientemente denegrir as entidades, partidos e movimentos sociais proletários e campesinos, descreditando e deturpando o sentido social de suas ações.

4. Referências FinaisSem retornar para os conceitos gramscianos,

podemos afirmar que o que o MSM chama de “gramscismo” seria, para além de todas as propositais deturpações, a afirmação da revolução passiva como estratégia positiva para os comunistas, invertendo seu sentido original de uma derrota seguida da ampliação do Estado, ainda a dotando de um caráter “etapista”. Nesta simulação de estratégia marxista o transformismo se tornaria a principal tarefa dos intelectuais revolucionários, pois quanto mais bem sucedida for sua “aparência” de alinhamento à ordem pelo partido revolucionário, mais efetiva seria a ocupação de espaços no Estado e na sociedade civil: a guerra de posições visando uma mudança moral do homem. Ela seria pautada pela disseminação viral de novas mediações teleológicas para as atividades dos homens, ou seja, a libertação do homem não ocorreria através de mudanças nas relações sociais de produção, mas sim nas representações (como mediação racional anterior à realização de determinado ato e posteriormente, sobre as consequências e objetivos atingidos por sua realização)

33CARVALHO, Olavo de. “A maior trama criminosa de todos os tempos”. Digesto Econômico. Setembro/dezembro 2007. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/0709digestoeconomico. html, acessado em 14.04.11.34CARVALHO, Olavo de. “Digitais do Foro de São Paulo”. Diário do C o m é r c i o . 2 8 . 0 1 . 0 8 . D i s p o n í v e l e m : http://www.olavodecarvalho.org/semana/080128dc.html, acessado em 13.04.11.

que os homens fariam destas. Por fim, cabe-nos sublinhar novamente que o anticomunismo, assumido como postura política, não resume-se a um partido ou linha política, mas atinge a esquerda como um todo. A denúncia das práticas “comunistas” tem como objetivo descreditar a ação das lideranças populares e entidades proletárias e campesinas historicamente constituídas, frear as classes de reconhecerem-se enquanto tais, generalizar os resultados de qualquer ação imediata dos comunistas como caminho mecânico para a ditadura do proletariado, e em última instância, desacreditar o próprio campo político, advogando sua restrição ou “extinção”. Assim, o MSM apresenta-se como o agente competente para a denúncia, caça e repressão aberta dos comunistas, não somente justificando as perseguições sofridas pelos movimentos contra hegemônicos do passado e do presente – o assassinato, a tortura, o expurgo sistemático de todo avanço democrático no Brasil – como vai além, afirmando que só o que foi feito não foi suficiente. Não nos enganemos, a proposta maior do MSM é a exclusão da existência real dos comunistas e de todo seu “espectro”. Militam por um Estado autoritário, ditatorial, desenvolto em sua plenitude terrorista.

Artigo recebido em 5.3.2012Aprovado em 11.5.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (68-73)

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O pensamento de Marx e os personagensda história do marxismo

*Kaio Goulart

RESENHA DO LIVRO:KONDER, Leandro. Em torno de Marx. 1º Edição. São Paulo: Boitempo, 2010, 136 p.

Rediscutir a filosofia presente na obra de Marx “é tarefa da cultura viva”, que pode dar novo fôlego ao

1pensamento crítico. De tal modo, o que se espera de Marx hoje “tem a ver com a nossa preocupação com a

2 liberdade”. Estas são as ideias introdutórias de Em torno de Marx, o mais recente livro de Leandro Konder, composto pelas partes “Em torno de Marx”, “A herança de Marx” e “O marxismo no Brasil”. Neste trabalho encontramos discussões sobre temas como a moral, a religião e a morte, a partir da perspectiva de Marx. Conceitos caros ao método materialista histórico como práxis, alienação e ideologia são destacados. O legado de Marx, presente nas obras de pensadores que mantém seu pensamento vivo, como Gramsci, Benjamin e Lukács é debatido. Além disso, o marxismo brasileiro e a “fala da direita”, entre os anos de 1936 e 1944, são discutidos ao final do livro.

O conceito práxis “é o conceito central da filosofia de Marx, o que está mais vivo nela”, uma vez que ele trata da “matriz de uma concepção original da história, uma concepção que, sendo materialista, reconhece o poder do sujeito de tomar iniciativas, fazer

3escolhas”. Se há uma questão devidamente clara nesta obra de Konder, esta diz respeito à necessidade de estudo e instrumentalização da práxis, uma vez que o enfrentamento dos antagonismos sociais vigentes passa pelo fortalecimento dos movimentos sociais, os “exércitos” e “portadores materiais” do pensamento revolucionário de Marx.

Na primeira parte, “Em torno de Marx”, Konder debate a concepção da história elaborada por Marx, que foi aplicada ao seu tempo presente na investigação da

4emergência do bonapartismo no século XIX na França. Konder observa que o pensador alemão “ultrapassava os limites da análise conjuntural e abria caminho para uma genuína história social, isto é, para o exame aprofundado

5da transformação estrutural da sociedade”. Ao investigar o movimento da história Marx demonstra que os homens podem enxergar as contradições, as descrever, se inserir nelas e buscar superá-las. Negando uma existência contemplativa, portanto, a concepção da

*Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto.1KONDER, Leandro. Em torno de Marx. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 8. 2Idem, p. 18. 3Idem, p. 16. 4Cf. MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 5KONDER, op. cit., p. 39.

história organizada por Marx defendia a “intervenção 6

humana nas mudanças sociais”. Em contextos de crise na URSS alargou-se o

campo de possibilidades para a releitura de Marx. Konder reserva a parte “A herança de Marx” para discorrer sobre este tema. O revisionismo dos social-democratas alemães, sobretudo Bernstein e Kautsky, e o marxismo-leninismo formulado por Lenin foram revisados por uma parcela importante de intelectuais. Neste contexto, “ampliava-se assim o espaço em que se podia fazer a desejável releitura de Marx, rediscuti-lo, reavivá-lo. [...] O italiano Gramsci, o húngaro Lukács e o alemão

7Adorno são autores de obras de leitura imprescindível”.No tocante aos estudos de Adorno e Horkheimer

a esfera da cultura foi a dimensão privilegiada. Juntamente com Benjamim, seus estudos visaram criticar o capitalismo no âmbito de sua produção cultural. De tal modo, a “indústria cultural” “conferiu ao capitalismo uma vitalidade muito superior àquela que ele possuía na

8época de Marx”. Benjamim por sua vez, pode ser identificado como um crítico dos relativismos teóricos, bem como da produção conceitual articulada a projetos políticos equivocados, como foram os fascismos espalhados pela Europa de sua época. Para Konder, o marxismo de Benjamim “não exigia que ele se mantivesse preso ao que Marx pensou e escreveu, mas cobrava dele que retomasse os conceitos e os

9desenvolvesse no âmbito de uma continuação da luta”. Em seus escritos, Benjamim explorou a temporalidade do passado e seus espíritos rebeldes. Estes, para o filósofo alemão, deveriam iluminar os homens do presente na condução da revolução social, que superaria o capitalismo ocidental. Cabe observar que a literatura

10mística exerceu influências em sua produção.Já Marcuse e Sartre dedicaram seus trabalhos ao

problema da liberdade. Para o primeiro, “os indivíduos que anseiam pela libertação e pela felicidade só se dispõem a lutar por seus ideais porque, na consciência, já são um pouco livres e um pouco felizes. Ninguém luta,

11de fato, por algo que não sabe o que é”. Sartre criticou abertamente o comunismo de Estado. Foi defensor da

6Idem, p. 40. 7Idem, p. 15. 8Idem, p. 60. 9Idem, p. 69. 10Segundo Michel Löwy, no messianismo benjaminiano “Deus está ausente, e a tarefa messiânica é inteiramente atribuída às gerações humanas. O único messias possível é coletivo: é a própria humanidade, mas precisamente [...] a humanidade oprimida (cit.)”. Idem, p. 70. 11Idem, p. 76.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (74-75)

liberdade. Contestou a ideia de a necessidade determinar os limites da mesma. De acordo com Konder, Sartre “tinha razão em sua crítica à redução do mundo a um sistema regido pela necessidade e do qual ficava excluída

12a contingência”.

É importante destacar que Konder é um dos mais 13importantes intérpretes da obra de Lukács no Brasil.

Para ele, Lukács “tinha sobre os outros autores citados neste livro a vantagem e a desvantagem da militância partidária. Recorria frequentemente a conceitos literários para evitar a acusação de cultivar equívocos

14políticos”. Konder afirma que Lukács estudou temas diversos, que vão da teoria do romance ao marxismo, passando por valores estéticos e pela liberdade poética. Para Konder, hoje alguns de seus escritos podem parecer sectários, no entanto, suas abordagens servem de grande

15inspiração aos estudiosos marxistas.

Por outro lado, Gramsci não possui este aspecto sectário. Ele “é, entre os marxistas, aquele cuja perspectiva recebeu estímulos mais poderosos na

16orientação de travar combates no campo cultural”. Nesse sentido, para Gramsci, a “cultura era decisiva na guerra de classes. Mas tinha também compromissos com o desafio de municiar os intelectuais, incorporando-os a

17correntes sociais”. Em seus estudos, “o sujeito é dominado pela história, mas tem em si o poder intrínseco de se realizar na ação e no conhecimento, e até de se

18reinventar através da ação transformadora”. Dessa forma, “a única resposta compatível com o horizonte do marxismo é precisamente esta: nós podemos nos

19inventar”. A história do marxismo brasileiro é um tema

20detalhadamente estudado por Konder. Na última parte, “O marxismo no Brasil”, ele afirma que a atuação de diversas correntes políticas, como a social-democrata, reformista, anarquista e comunista foi determinante na formação pensamento marxista no Brasil. Para exemplificar, Konder observa que Machado de Assis, que não era socialista, tinha uma “tolerância bem-humorada” ao pensamento de esquerda em formação. Dessa forma, “as ideias dos marxistas brasileiros se desenvolveram – e continuam a se desenvolver – em um movimento extremamente complexo”, de modo que suas referências incluem “Marx e Engels, mas também Lenin, Stalin, Trotski, Lukács, Gramsci e Rosa Luxemburgo”, e também “sistemas de pensamento e de ação marcados por um combate implacável contra o socialismo, o liberalismo, o

12Idem, p. 93. 13Cf. KONDER, Leandro. Lukács. Porto Alegre: Col. Fontes do Pensamento Político. L&PM, 1980. 14KONDER, Leandro. Em torno de marx... op. cit., p. 103. 15Idem, p. 10516Idem, p. 108.17Idem, Ibidem. 18Idem, p. 111.19Idem, p. 112. 20Em A derrota da dialética, Konder realiza um estudo minucioso sobre a história das idéias marxistas no Brasil. Critica a noção de que o marxismo-leninismo e posteriormente o stalinismo foram as únicas influências do marxismo brasileiro. Cf. KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

21fascismo e o nazismo”.É preciso observar que a mensagem principal de

Em torno de Marx é a de afirmar a atualidade da crítica radical de Marx e do método materialista histórico, num momento em que presenciamos a hegemonia do sistema

22capitalista e suas ideologias. Tendo em vista reforçar o marxismo no campo de batalha e dessa forma incentivar novas ideias revolucionárias, o pensamento marxista apresentado por Konder nos possibilita desenvolver leituras críticas necessárias, sobre temas como democracia, igualdade e liberdade. Nesse sentido, Em torno de Marx contribui profundamente para a compreensão de nossa sociedade ao fomentar o pensamento crítico e autônomo e sua instrumentalização junto aos movimentos sociais.

Resenha recebida em 13.1.2012Aprovada em 12.3.2012

21Idem, p. 122. 22Cf. KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

RESENHA - O pensamento de Marx e os personagens da história do marxismo

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O pensamento de Marx e os personagensda história do marxismo

*Kaio Goulart

RESENHA DO LIVRO:KONDER, Leandro. Em torno de Marx. 1º Edição. São Paulo: Boitempo, 2010, 136 p.

Rediscutir a filosofia presente na obra de Marx “é tarefa da cultura viva”, que pode dar novo fôlego ao

1pensamento crítico. De tal modo, o que se espera de Marx hoje “tem a ver com a nossa preocupação com a

2 liberdade”. Estas são as ideias introdutórias de Em torno de Marx, o mais recente livro de Leandro Konder, composto pelas partes “Em torno de Marx”, “A herança de Marx” e “O marxismo no Brasil”. Neste trabalho encontramos discussões sobre temas como a moral, a religião e a morte, a partir da perspectiva de Marx. Conceitos caros ao método materialista histórico como práxis, alienação e ideologia são destacados. O legado de Marx, presente nas obras de pensadores que mantém seu pensamento vivo, como Gramsci, Benjamin e Lukács é debatido. Além disso, o marxismo brasileiro e a “fala da direita”, entre os anos de 1936 e 1944, são discutidos ao final do livro.

O conceito práxis “é o conceito central da filosofia de Marx, o que está mais vivo nela”, uma vez que ele trata da “matriz de uma concepção original da história, uma concepção que, sendo materialista, reconhece o poder do sujeito de tomar iniciativas, fazer

3escolhas”. Se há uma questão devidamente clara nesta obra de Konder, esta diz respeito à necessidade de estudo e instrumentalização da práxis, uma vez que o enfrentamento dos antagonismos sociais vigentes passa pelo fortalecimento dos movimentos sociais, os “exércitos” e “portadores materiais” do pensamento revolucionário de Marx.

Na primeira parte, “Em torno de Marx”, Konder debate a concepção da história elaborada por Marx, que foi aplicada ao seu tempo presente na investigação da

4emergência do bonapartismo no século XIX na França. Konder observa que o pensador alemão “ultrapassava os limites da análise conjuntural e abria caminho para uma genuína história social, isto é, para o exame aprofundado

5da transformação estrutural da sociedade”. Ao investigar o movimento da história Marx demonstra que os homens podem enxergar as contradições, as descrever, se inserir nelas e buscar superá-las. Negando uma existência contemplativa, portanto, a concepção da

*Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto.1KONDER, Leandro. Em torno de Marx. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 8. 2Idem, p. 18. 3Idem, p. 16. 4Cf. MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 5KONDER, op. cit., p. 39.

história organizada por Marx defendia a “intervenção 6

humana nas mudanças sociais”. Em contextos de crise na URSS alargou-se o

campo de possibilidades para a releitura de Marx. Konder reserva a parte “A herança de Marx” para discorrer sobre este tema. O revisionismo dos social-democratas alemães, sobretudo Bernstein e Kautsky, e o marxismo-leninismo formulado por Lenin foram revisados por uma parcela importante de intelectuais. Neste contexto, “ampliava-se assim o espaço em que se podia fazer a desejável releitura de Marx, rediscuti-lo, reavivá-lo. [...] O italiano Gramsci, o húngaro Lukács e o alemão

7Adorno são autores de obras de leitura imprescindível”.No tocante aos estudos de Adorno e Horkheimer

a esfera da cultura foi a dimensão privilegiada. Juntamente com Benjamim, seus estudos visaram criticar o capitalismo no âmbito de sua produção cultural. De tal modo, a “indústria cultural” “conferiu ao capitalismo uma vitalidade muito superior àquela que ele possuía na

8época de Marx”. Benjamim por sua vez, pode ser identificado como um crítico dos relativismos teóricos, bem como da produção conceitual articulada a projetos políticos equivocados, como foram os fascismos espalhados pela Europa de sua época. Para Konder, o marxismo de Benjamim “não exigia que ele se mantivesse preso ao que Marx pensou e escreveu, mas cobrava dele que retomasse os conceitos e os

9desenvolvesse no âmbito de uma continuação da luta”. Em seus escritos, Benjamim explorou a temporalidade do passado e seus espíritos rebeldes. Estes, para o filósofo alemão, deveriam iluminar os homens do presente na condução da revolução social, que superaria o capitalismo ocidental. Cabe observar que a literatura

10mística exerceu influências em sua produção.Já Marcuse e Sartre dedicaram seus trabalhos ao

problema da liberdade. Para o primeiro, “os indivíduos que anseiam pela libertação e pela felicidade só se dispõem a lutar por seus ideais porque, na consciência, já são um pouco livres e um pouco felizes. Ninguém luta,

11de fato, por algo que não sabe o que é”. Sartre criticou abertamente o comunismo de Estado. Foi defensor da

6Idem, p. 40. 7Idem, p. 15. 8Idem, p. 60. 9Idem, p. 69. 10Segundo Michel Löwy, no messianismo benjaminiano “Deus está ausente, e a tarefa messiânica é inteiramente atribuída às gerações humanas. O único messias possível é coletivo: é a própria humanidade, mas precisamente [...] a humanidade oprimida (cit.)”. Idem, p. 70. 11Idem, p. 76.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (74-75)

liberdade. Contestou a ideia de a necessidade determinar os limites da mesma. De acordo com Konder, Sartre “tinha razão em sua crítica à redução do mundo a um sistema regido pela necessidade e do qual ficava excluída

12a contingência”.

É importante destacar que Konder é um dos mais 13importantes intérpretes da obra de Lukács no Brasil.

Para ele, Lukács “tinha sobre os outros autores citados neste livro a vantagem e a desvantagem da militância partidária. Recorria frequentemente a conceitos literários para evitar a acusação de cultivar equívocos

14políticos”. Konder afirma que Lukács estudou temas diversos, que vão da teoria do romance ao marxismo, passando por valores estéticos e pela liberdade poética. Para Konder, hoje alguns de seus escritos podem parecer sectários, no entanto, suas abordagens servem de grande

15inspiração aos estudiosos marxistas.

Por outro lado, Gramsci não possui este aspecto sectário. Ele “é, entre os marxistas, aquele cuja perspectiva recebeu estímulos mais poderosos na

16orientação de travar combates no campo cultural”. Nesse sentido, para Gramsci, a “cultura era decisiva na guerra de classes. Mas tinha também compromissos com o desafio de municiar os intelectuais, incorporando-os a

17correntes sociais”. Em seus estudos, “o sujeito é dominado pela história, mas tem em si o poder intrínseco de se realizar na ação e no conhecimento, e até de se

18reinventar através da ação transformadora”. Dessa forma, “a única resposta compatível com o horizonte do marxismo é precisamente esta: nós podemos nos

19inventar”. A história do marxismo brasileiro é um tema

20detalhadamente estudado por Konder. Na última parte, “O marxismo no Brasil”, ele afirma que a atuação de diversas correntes políticas, como a social-democrata, reformista, anarquista e comunista foi determinante na formação pensamento marxista no Brasil. Para exemplificar, Konder observa que Machado de Assis, que não era socialista, tinha uma “tolerância bem-humorada” ao pensamento de esquerda em formação. Dessa forma, “as ideias dos marxistas brasileiros se desenvolveram – e continuam a se desenvolver – em um movimento extremamente complexo”, de modo que suas referências incluem “Marx e Engels, mas também Lenin, Stalin, Trotski, Lukács, Gramsci e Rosa Luxemburgo”, e também “sistemas de pensamento e de ação marcados por um combate implacável contra o socialismo, o liberalismo, o

12Idem, p. 93. 13Cf. KONDER, Leandro. Lukács. Porto Alegre: Col. Fontes do Pensamento Político. L&PM, 1980. 14KONDER, Leandro. Em torno de marx... op. cit., p. 103. 15Idem, p. 10516Idem, p. 108.17Idem, Ibidem. 18Idem, p. 111.19Idem, p. 112. 20Em A derrota da dialética, Konder realiza um estudo minucioso sobre a história das idéias marxistas no Brasil. Critica a noção de que o marxismo-leninismo e posteriormente o stalinismo foram as únicas influências do marxismo brasileiro. Cf. KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

21fascismo e o nazismo”.É preciso observar que a mensagem principal de

Em torno de Marx é a de afirmar a atualidade da crítica radical de Marx e do método materialista histórico, num momento em que presenciamos a hegemonia do sistema

22capitalista e suas ideologias. Tendo em vista reforçar o marxismo no campo de batalha e dessa forma incentivar novas ideias revolucionárias, o pensamento marxista apresentado por Konder nos possibilita desenvolver leituras críticas necessárias, sobre temas como democracia, igualdade e liberdade. Nesse sentido, Em torno de Marx contribui profundamente para a compreensão de nossa sociedade ao fomentar o pensamento crítico e autônomo e sua instrumentalização junto aos movimentos sociais.

Resenha recebida em 13.1.2012Aprovada em 12.3.2012

21Idem, p. 122. 22Cf. KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

RESENHA - O pensamento de Marx e os personagens da história do marxismo

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76 - - 77

O contemporâneo exotismo indo-americanode Álvaro García Linera

RESENHA DO LIVRO:LINERA, Álvaro García. A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010.

*Deni Ireneu Alfaro Rubbo

Em tempos recentes, encontra-se na realidade rebelde boliviana uma formação histórica – e contemporânea – instigante, na qual os ensaios redigidos por Álvaro García Linera (matemático, sociólogo autodidata e atual vice-presidente da Bolívia) – que finalmente chega em língua portuguesa – ocupa-se justamente de restituir a devida atenção a um país decididamente ignorado pelo pensamento social brasileiro, (re) acendendo um debate estratégico necessário a partir do novo horizonte de lutas que os bolivianos vivenciam no alvorecer do século XXI.

Escrito em épocas diferentes, de 1999 até 2008, os artigos distribuídos nas seis partes do livro mostram uma etapa importante da produção intelectual do vice-presidente da Bolívia e um evidente domínio sobre a história contemporânea das classes plebeias no país, o que permite o afloramento em relação aos múltiplos terrenos sociais que inspiram a teoria marxista clássica, latino-americana e o pensamento social contemporâneo.

Não tão diferente das tradições dos oprimidos dos países da América Latina, a Bolívia sempre foi “objeto de subordinação formal real pelo capital” e as classes plebeias bolivianas – notadamente os indígenas – desde a época colonial e durante a época republicana, foram categoricamente negadas e rechaçadas de qualquer

1“usufruto comum dos foros políticos”. Reduzido pelas teorias sociais apegadas à ideologia do progresso a um sujeito pré-social, seja pela cidadania de casta, seja pela cidadania patrimonial, os indígenas testemunharam a “tragédia de sua extorsão histórica”, intensificada pelo desenvolvimento das forças produtivas no âmbito do processo de reprodução ampliada; no entanto, longe de extingui-los, por “rotas tortuosas”, o capitalismo recriou, mutilou e deformou formas arcaicas do trabalho indígena em nome da valorização do valor. Daí a sentença de Linera: “a modernidade é o extasiante holocausto da

2racionalidade indígena”.

Concomitantemente, os ciclos históricos do país capacitaram diversos momentos da formação da condição operária boliviana intrínseca à diversidade organizativa de sua produção, que coexistiu, por muito tempo, com a combinação de estruturas híbridas, racionalidade agrária e racionalidade industrial, emitindo um comportamento social particular. Antes mesmo da

revolução de 1952, já se desenhava um modelo de formação e de construção da identidade coletiva da condição operária, através da mediação de forma sindicato, mas que perde a totalidade de sua unificação material e simbólica a partir dos novos processos de reestruturação produtiva e de contratualização da força de trabalho, que conduz a um efeito de desagregação e de fragmentação social, substancialmente na esfera da composição técnica e da política das classes. O que está em jogo, conforme a sentença de Linera, é “a morte de uma forma da condição operária e do movimento

3operário”, ou ainda “o fim de seu protagonismo na história, pelo menos durante várias décadas; é a morte

4de sua iniciativa histórica”. Os movimentos sociais emergentes no limiar do século XXI, na Bolívia, apresentar-se-iam doravante na forma multidão – expressão negriana de um conjunto complexo e multifacetado de formas de “unificação locais de caráter

5tradicional e de tipo territorial” –, com capacidade de mobilização autônoma, redes de associação de bases comunais, que, segundo atesta o sociólogo, “buscam conter o avanço da lógica mercantil e das regras da acumulação capitalista em áreas de riqueza social, antes

6geridas por outra racionalidade econômica”.

Com a crença das promessas da “modernidade” e do “progresso” abaladas pela tragédia da “involução econômica”, que marcou a onda neoliberal por quase duas décadas no país, Linera afiança que a Bolívia, a partir das sublevações indígena-plebeias, em abril de 2000 – o “ponto de inflexão” no país – fez com que se anunciasse uma temporalidade de crise estatal geral, id est, a contestação não apenas dos componentes neoliberais de curta duração, mas dos mecanismos históricos e imanentes de exclusão simbólica e material de longa duração republicana. Trata-se de uma situação social radicalmente nova, sem comparação com outras situações latino-americanas.

Com o governo de Evo Morales, em 2006, a crise estatal geral não cessa, mas continua em um momento político qualitativamente diverso: a renovação do Estado em transição boliviano, segundo Linera, apresenta modificações relevantes em torno da composição social do bloco de poder do Estado e dos níveis superiores de administração e da reconversão das tendências e das correlações de forças políticas expressas num processo de transferência real de “representantes dos setores *Mestrando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e

bolsista CNPq. End. eletrônico: [email protected], Álvaro García. A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 104.2Idem, p. 153.

3Idem, p. 245.4Idem, p. 146.5Idem, p. 246 6Idem, p. 250.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (76-78)

sociais mobilizados em distintos níveis do aparato estatal”. Tal processo político-histórico resolveria os impasses da transição estatal, e enveredaria para, conforme o vice-presidente boliviano, um ponto de bifurcação, não tanto por esses processos de substituição das elites políticas no poder geral nacional dirigente, mas, principalmente, pela modificação das estruturas do poder econômico da sociedade, notadamente pelos mecanismos de controle e na apropriação do excedente e pela estabilização do sistema através da coerção legítima emanada pelas Forças Armadas. Longe de um simples esquema, a complexidade da situação trazida por Linera não permite conjecturar a linearidade da política a da economia em um mesmo ritmo: “a transformação nas estruturas e no poder econômico da sociedade têm avançado com uma rapidez muito maior do que a reconfiguração das estruturas de poder político do

7Estado”. A economia e a política, portanto, são dois conjuntos que formam uma totalidade que possui em seu interior diversas temporalidades.

O indianismo que marca decididamente a trajetória política e intelectual de Álvaro García Linera é um tema que assume destaque no livro. O autor refaz a démarche do marxismo (stalinista) boliviano de desprezo em relação à condição social indígena, e pertinentemente desconstrói a narrativa modernista e teleológica da histórica do marxismo primitivo de outrora. Curiosamente, contudo, essa atitude metodológica expressa um determinismo indígena que o afasta categoricamente de qualquer construção de uma estratégia política de horizonte socialista indo-americano, como prenunciava há mais de 80 anos José Carlos Mariátegui. Não é mera coincidência que o primeiro marxista latino-americano que soube relacionar como ninguém indigenismo e marxismo, sob uma perspectiva revolucionária, não tenha sido referência teórica para a compreensão encabeçada por Linera. O índio é incorporado, no máximo, para o sociólogo boliviano, a um programa “capitalista andino-amazônico”. Não a menor dúvida que estamos diante de uma operação política cuja aparência teórica e essência prática nem sempre coincidem...

Mas, afinal, o marxismo deve ou não ignorar o setor indígena como sujeito revolucionário? De fato, a reconciliação necessária do marxismo e do indianismo deve ser capaz não de reinventar a indianidade articulado às formas modernas capitalistas, mas deve ir muito além disso – o que não faz Linera: reinventar criativamente o campesino-indígena e a condição operária como sujeito político e sujeito de poder para enunciar um horizonte concreto de autoemancipação, de acumulação universal das experiências coletivas e de potência narrativa sob a memória das classes subalternas.

O indianismo exótico de Álvaro García Linera encontra um afamado paralelo histórico no debate acerca da recepção do marxismo na América Latina, uma análise

8clássica assinada por Michael Löwy. Segundo o sociólogo franco-brasileiro, o marxismo latino-americano teria sido constantemente ameaçado por duas

7Idem, p. 374.

tentações opostas: o exotismo indo-americano e o eurocentrismo. Em linhas esquemáticas, o primeiro teria a tendência em absolutizar à especificidade da América Latina e de sua cultura, governado por leis próprias, a serviço de um populismo sui generis e eclético; o segundo, por seu turno, se limitaria a transplantar mecanicamente para América Latina os modelos de desenvolvimento econômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo do século XIX. As duas tentações, o nacionalismo populista e o stalinismo latinoamericano, embora antagônicas, coincidiam em um tópico estratégico fundamental: a de que o socialismo não está na ordem do dia na América Latina. O APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), sob a figura de Haya de la Torre, representante típico do exotismo indo-americano, sustentava que a forma capitalista era um passo necessário de um período de processo da civilização contemporânea. O político peruano compartilhava claramente com a tese de uma comunidade camponesa e do comunismo agrário – antes mesmo que o próprio Mariátegui! –, todavia, desde que aliado a um projeto de modernização capitalista.

Evidentemente, as condições da recepção do marxismo no Peru no início do século XX e na Bolívia no início do século XXI são diferentes. Haya de la Torre sempre procurou assinalar uma “total separação” entre o

9aprismo e marxismo, enquanto Linera, contrariamente, insiste em utilizar, ou melhor, abusar de categorias marxistas para legitimar suas escolhas políticas reformistas. Porém, não parece descabido apontar que as aventuras típicas do “nacionalismo selvagem” – como costumava referir-se o sociólogo Florestan Fernandes – têm assediado claramente o espectro político contemporâneo latino-americano (seduzindo um razoável número de intelectuais “progressistas”) e que, ao final das contas, sua aparente retórica de radicalismo “constituem um peso morto e um custo incomodo, com o inconveniente de se converterem, eles próprios, em fonte

10de instabilidade política”. A compreensão adequada da obra de Linera é inseparável de sua experiência política no interior do movimento indianista boliviano e do governo de Evo Morales.

Bem entendido, o próprio jornalista argentino Pablo Stefanoni (ligado ao vice-presidente boliviano), que assina o prefácio do livro, deixa claro o abandono do sociólogo boliviano de sua “posição socialista”, uma “passagem de suas posições 'autonomistas' para uma defesa quase hegeliana do estado, como síntese da

11'vontade geral'”. Ademais, não se pode ocultar, nessa medida, que no assim chamado Estado Plurinacional, ocorre um processo político de intensas reformas

8LÖWY, Michael. “Introdução: pontos de referência para uma história do marxismo na América Latina”. In: LÖWY, Michael. (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Perseu Abramo, 2006a, p. 9-64.9TORRE, Haya de la. Treinta años de aprismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1956, p. 25.10FERNANDES, Florestan. “O imperialismo e a revolução democrática”. In: FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 180, p. 166. 11STEFANONI, Pablo. “Prefácio”. In: LINERA, Álvaro García. op. cit., p. 22.

RESENHA - O contemporâneo exotismo indo-americano de Álvaro García Linera

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O contemporâneo exotismo indo-americanode Álvaro García Linera

RESENHA DO LIVRO:LINERA, Álvaro García. A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010.

*Deni Ireneu Alfaro Rubbo

Em tempos recentes, encontra-se na realidade rebelde boliviana uma formação histórica – e contemporânea – instigante, na qual os ensaios redigidos por Álvaro García Linera (matemático, sociólogo autodidata e atual vice-presidente da Bolívia) – que finalmente chega em língua portuguesa – ocupa-se justamente de restituir a devida atenção a um país decididamente ignorado pelo pensamento social brasileiro, (re) acendendo um debate estratégico necessário a partir do novo horizonte de lutas que os bolivianos vivenciam no alvorecer do século XXI.

Escrito em épocas diferentes, de 1999 até 2008, os artigos distribuídos nas seis partes do livro mostram uma etapa importante da produção intelectual do vice-presidente da Bolívia e um evidente domínio sobre a história contemporânea das classes plebeias no país, o que permite o afloramento em relação aos múltiplos terrenos sociais que inspiram a teoria marxista clássica, latino-americana e o pensamento social contemporâneo.

Não tão diferente das tradições dos oprimidos dos países da América Latina, a Bolívia sempre foi “objeto de subordinação formal real pelo capital” e as classes plebeias bolivianas – notadamente os indígenas – desde a época colonial e durante a época republicana, foram categoricamente negadas e rechaçadas de qualquer

1“usufruto comum dos foros políticos”. Reduzido pelas teorias sociais apegadas à ideologia do progresso a um sujeito pré-social, seja pela cidadania de casta, seja pela cidadania patrimonial, os indígenas testemunharam a “tragédia de sua extorsão histórica”, intensificada pelo desenvolvimento das forças produtivas no âmbito do processo de reprodução ampliada; no entanto, longe de extingui-los, por “rotas tortuosas”, o capitalismo recriou, mutilou e deformou formas arcaicas do trabalho indígena em nome da valorização do valor. Daí a sentença de Linera: “a modernidade é o extasiante holocausto da

2racionalidade indígena”.

Concomitantemente, os ciclos históricos do país capacitaram diversos momentos da formação da condição operária boliviana intrínseca à diversidade organizativa de sua produção, que coexistiu, por muito tempo, com a combinação de estruturas híbridas, racionalidade agrária e racionalidade industrial, emitindo um comportamento social particular. Antes mesmo da

revolução de 1952, já se desenhava um modelo de formação e de construção da identidade coletiva da condição operária, através da mediação de forma sindicato, mas que perde a totalidade de sua unificação material e simbólica a partir dos novos processos de reestruturação produtiva e de contratualização da força de trabalho, que conduz a um efeito de desagregação e de fragmentação social, substancialmente na esfera da composição técnica e da política das classes. O que está em jogo, conforme a sentença de Linera, é “a morte de uma forma da condição operária e do movimento

3operário”, ou ainda “o fim de seu protagonismo na história, pelo menos durante várias décadas; é a morte

4de sua iniciativa histórica”. Os movimentos sociais emergentes no limiar do século XXI, na Bolívia, apresentar-se-iam doravante na forma multidão – expressão negriana de um conjunto complexo e multifacetado de formas de “unificação locais de caráter

5tradicional e de tipo territorial” –, com capacidade de mobilização autônoma, redes de associação de bases comunais, que, segundo atesta o sociólogo, “buscam conter o avanço da lógica mercantil e das regras da acumulação capitalista em áreas de riqueza social, antes

6geridas por outra racionalidade econômica”.

Com a crença das promessas da “modernidade” e do “progresso” abaladas pela tragédia da “involução econômica”, que marcou a onda neoliberal por quase duas décadas no país, Linera afiança que a Bolívia, a partir das sublevações indígena-plebeias, em abril de 2000 – o “ponto de inflexão” no país – fez com que se anunciasse uma temporalidade de crise estatal geral, id est, a contestação não apenas dos componentes neoliberais de curta duração, mas dos mecanismos históricos e imanentes de exclusão simbólica e material de longa duração republicana. Trata-se de uma situação social radicalmente nova, sem comparação com outras situações latino-americanas.

Com o governo de Evo Morales, em 2006, a crise estatal geral não cessa, mas continua em um momento político qualitativamente diverso: a renovação do Estado em transição boliviano, segundo Linera, apresenta modificações relevantes em torno da composição social do bloco de poder do Estado e dos níveis superiores de administração e da reconversão das tendências e das correlações de forças políticas expressas num processo de transferência real de “representantes dos setores *Mestrando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e

bolsista CNPq. End. eletrônico: [email protected], Álvaro García. A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 104.2Idem, p. 153.

3Idem, p. 245.4Idem, p. 146.5Idem, p. 246 6Idem, p. 250.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (76-78)

sociais mobilizados em distintos níveis do aparato estatal”. Tal processo político-histórico resolveria os impasses da transição estatal, e enveredaria para, conforme o vice-presidente boliviano, um ponto de bifurcação, não tanto por esses processos de substituição das elites políticas no poder geral nacional dirigente, mas, principalmente, pela modificação das estruturas do poder econômico da sociedade, notadamente pelos mecanismos de controle e na apropriação do excedente e pela estabilização do sistema através da coerção legítima emanada pelas Forças Armadas. Longe de um simples esquema, a complexidade da situação trazida por Linera não permite conjecturar a linearidade da política a da economia em um mesmo ritmo: “a transformação nas estruturas e no poder econômico da sociedade têm avançado com uma rapidez muito maior do que a reconfiguração das estruturas de poder político do

7Estado”. A economia e a política, portanto, são dois conjuntos que formam uma totalidade que possui em seu interior diversas temporalidades.

O indianismo que marca decididamente a trajetória política e intelectual de Álvaro García Linera é um tema que assume destaque no livro. O autor refaz a démarche do marxismo (stalinista) boliviano de desprezo em relação à condição social indígena, e pertinentemente desconstrói a narrativa modernista e teleológica da histórica do marxismo primitivo de outrora. Curiosamente, contudo, essa atitude metodológica expressa um determinismo indígena que o afasta categoricamente de qualquer construção de uma estratégia política de horizonte socialista indo-americano, como prenunciava há mais de 80 anos José Carlos Mariátegui. Não é mera coincidência que o primeiro marxista latino-americano que soube relacionar como ninguém indigenismo e marxismo, sob uma perspectiva revolucionária, não tenha sido referência teórica para a compreensão encabeçada por Linera. O índio é incorporado, no máximo, para o sociólogo boliviano, a um programa “capitalista andino-amazônico”. Não a menor dúvida que estamos diante de uma operação política cuja aparência teórica e essência prática nem sempre coincidem...

Mas, afinal, o marxismo deve ou não ignorar o setor indígena como sujeito revolucionário? De fato, a reconciliação necessária do marxismo e do indianismo deve ser capaz não de reinventar a indianidade articulado às formas modernas capitalistas, mas deve ir muito além disso – o que não faz Linera: reinventar criativamente o campesino-indígena e a condição operária como sujeito político e sujeito de poder para enunciar um horizonte concreto de autoemancipação, de acumulação universal das experiências coletivas e de potência narrativa sob a memória das classes subalternas.

O indianismo exótico de Álvaro García Linera encontra um afamado paralelo histórico no debate acerca da recepção do marxismo na América Latina, uma análise

8clássica assinada por Michael Löwy. Segundo o sociólogo franco-brasileiro, o marxismo latino-americano teria sido constantemente ameaçado por duas

7Idem, p. 374.

tentações opostas: o exotismo indo-americano e o eurocentrismo. Em linhas esquemáticas, o primeiro teria a tendência em absolutizar à especificidade da América Latina e de sua cultura, governado por leis próprias, a serviço de um populismo sui generis e eclético; o segundo, por seu turno, se limitaria a transplantar mecanicamente para América Latina os modelos de desenvolvimento econômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo do século XIX. As duas tentações, o nacionalismo populista e o stalinismo latinoamericano, embora antagônicas, coincidiam em um tópico estratégico fundamental: a de que o socialismo não está na ordem do dia na América Latina. O APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), sob a figura de Haya de la Torre, representante típico do exotismo indo-americano, sustentava que a forma capitalista era um passo necessário de um período de processo da civilização contemporânea. O político peruano compartilhava claramente com a tese de uma comunidade camponesa e do comunismo agrário – antes mesmo que o próprio Mariátegui! –, todavia, desde que aliado a um projeto de modernização capitalista.

Evidentemente, as condições da recepção do marxismo no Peru no início do século XX e na Bolívia no início do século XXI são diferentes. Haya de la Torre sempre procurou assinalar uma “total separação” entre o

9aprismo e marxismo, enquanto Linera, contrariamente, insiste em utilizar, ou melhor, abusar de categorias marxistas para legitimar suas escolhas políticas reformistas. Porém, não parece descabido apontar que as aventuras típicas do “nacionalismo selvagem” – como costumava referir-se o sociólogo Florestan Fernandes – têm assediado claramente o espectro político contemporâneo latino-americano (seduzindo um razoável número de intelectuais “progressistas”) e que, ao final das contas, sua aparente retórica de radicalismo “constituem um peso morto e um custo incomodo, com o inconveniente de se converterem, eles próprios, em fonte

10de instabilidade política”. A compreensão adequada da obra de Linera é inseparável de sua experiência política no interior do movimento indianista boliviano e do governo de Evo Morales.

Bem entendido, o próprio jornalista argentino Pablo Stefanoni (ligado ao vice-presidente boliviano), que assina o prefácio do livro, deixa claro o abandono do sociólogo boliviano de sua “posição socialista”, uma “passagem de suas posições 'autonomistas' para uma defesa quase hegeliana do estado, como síntese da

11'vontade geral'”. Ademais, não se pode ocultar, nessa medida, que no assim chamado Estado Plurinacional, ocorre um processo político de intensas reformas

8LÖWY, Michael. “Introdução: pontos de referência para uma história do marxismo na América Latina”. In: LÖWY, Michael. (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Perseu Abramo, 2006a, p. 9-64.9TORRE, Haya de la. Treinta años de aprismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1956, p. 25.10FERNANDES, Florestan. “O imperialismo e a revolução democrática”. In: FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 180, p. 166. 11STEFANONI, Pablo. “Prefácio”. In: LINERA, Álvaro García. op. cit., p. 22.

RESENHA - O contemporâneo exotismo indo-americano de Álvaro García Linera

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constitucionais, contudo, no interior do sistema capitalista dependente periférico boliviano o que, por sua vez, não paralisa as relações sociais de exploração, ao contrário, elas se reproduzem ativamente.

Resta saber os impasses e os avanços concretos que estão em marcha no bloco de poder recente da Bolívia: 1) Até que ponto a estabilização através da qual a estrutura coercitiva – que corre o risco evidente de encobrir e cooptar outros setores sociais – não proporcionará exatamente seu oposto? 2) O programa de desenvolvimento do Estado Plurinacional é um meio ou um fim na querela chamada “revolução boliviana”? Não custa recordar que uma das funções do Estado é de armar a classe opressora e de desarmar a classe oprimida e além de sua função de repressão, desempenha uma função ideológica para conservar as ideias políticas e morais predominantemente da classe dominante; 3) Até que ponto a classe operária boliviana foi soterrada, sendo que, curiosamente, ela e os setores indígenas de oposição vêm proporcionando protestos recentes de descontentamento generalizado do governo de Morales. Como o leitor pode perceber, em um país dependente no sistema capitalista internacional, o governo boliviano tem repetido crassos erros históricos, desenvolvendo as potencialidades mais miseráveis de desenvolvimento.

De forma enigmática, as vitórias políticas “dos de baixo”, estendidas ao quadro latino-americano, parecem reforçar as relações sociais de exploração em benefício “dos de cima”. Como um relampejo na história política latino-americana, (“a memória é sempre guerra” dirá Walter Benjamin), Mariátegui profetizava, em seu

12incômodo texto “Ponto de vista Antiimperialista” , que os impulsos mais acentuadamente nacionalistas podem estar, em muitos casos, em estreita aliança com o imperialismo, isso para sentirem-se mais seguros nas mãos de uma classe social mais numerosa.

Resenha recebida em 14.3.2012Aprovada em 30.5.2012

12MARIÁTEGUI, José Carlos. Ideologia y Politica. Lima: Amauta, 1975, p. 87-95.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (79-81) RESENHA - O contemporâneo exotismo indo-americano de Álvaro García Linera

“Que mundo tão parvo que para ser escravo é preciso estudar”:A pós-graduação como estratégia para o desemprego

*Antonio de Pádua Bosi

RESENHA DO LIVRO:MATTOS, Valéria. Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho. São Paulo: Xamã, 2011.

*Unioeste / CNPq.

Os estudos sobre a pós-graduação brasileira aumentaram bastante nos últimos vinte anos, e há razões evidentes para isto. Os cursos de mestrado e doutorado cresceram exponencialmente neste período e antes dele. A maioria das universidades públicas, por exemplo, debutou suas pós-graduações stricto sensu a partir da década de 1990, e obviamente contou com uma demanda abundante para seus cursos decorrente do crescimento do número de pessoas com formação superior. A educação universitária assumiu a titulação como principal critério estruturante das carreiras acadêmicas, fato que elevou a pressão para que a pós-graduação fosse expandida a taxas superiores a 100% nas duas décadas passadas. Enfim, o agigantamento da pós-graduação no cenário educacional brasileiro instigou reflexões de variados matizes ideológicos sobre um sem-número de questões envolvendo financiamento, avaliação, produção e produtividade científicas. É neste contexto histórico que está posicionada a pesquisa de mestrado de Valéria Mattos, Pós-Graduação em Tempos de Precarização do Trabalho, publicada como livro em 2011. O livro adiciona elementos e ideias acerca desta trajetória recente, e incorpora ao debate uma dimensão pouco sondada: o alongamento da escolaridade como alternativa ao desemprego, que é o subtítulo do livro.

Inicialmente, a autora examina teoricamente e à distância a relação entre desemprego e precarização do trabalho/emprego na atualidade. É visível seu esforço para calçar as conexões entre estas duas dimensões da realidade da classe trabalhadora. Os autores utilizados nesta empreitada ensinam coisas interessantes sobre como a expansão do capital e de seu processo de acumulação pressionou os trabalhadores a aceitarem as atuais condições de trabalho, genericamente denominadas de precárias. A avaliação deste percurso histórico também ajuda a entender o que tem acontecido com o mundo dos trabalhadores, à medida que consegue mostrar o desemprego e a precarização do trabalho como resultado e estratégia do capital nesta última quadra histórica. Nada é acidental nesta trajetória, nem mesmo o horizonte de um mercado de trabalho

com tais características, abalizado entre o formal e o informal, cuja dinâmica mantém-se inalterada desde os anos 70. Se nos assustamos quando olhamos para trás e enxergamos 90% do mercado de trabalho constituído de ocupações e empregos espremidos abaixo do limite de dois salários mínimos, uma visão prospectiva não revelará algo diferente. Isto é traduzido cientificamente como “dinâmica inercial”.

É neste contexto que muitos intelectuais que se dizem atentos e entrosados com a “inércia” da s i t u a ç ã o p r o l e t á r i a n o s a c o n s e l h a m a “requalificação” permanente como solução para estar entre os escolhidos. Valéria Mattos acerta o alvo ao desconfiar deste preceito. A proteção contra o desemprego viria de um perfil profissional “flexível”, adaptável à intempestividade do mercado. Tal prescrição é interpretada pela autora como um “eufemismo de incerteza”, e ela tem razão ao fazê-lo assim porque a experiência social dos trabalhadores, imersa em mais ou menos trinta anos de sistemáticas marteladas da ideologia neoliberal, mostra mais perdas do que conquistas coletivas, embora esta contabilidade não seja claramente ressaltada como uma conclusão de toda a classe. Evidência disto são os jovens trabalhadores embalados pelas promessas cínicas dos tempos flexíveis, mobilizados em torno de metas e objetivos (de vida e de trabalho) nem sempre visíveis e palpáveis. “Focados”, como se diz nesta linguagem instrumental, garotos e garotas exalam mais certeza do que realmente possuem, trilhando caminhos aparentemente seguros sem chegar a lugar algum, ou sem ultrapassar os limites de um estágio, de um posto de trabalho provisório ou de um interminável processo de preparação para o mercado de trabalho. Assemelham-se aos “santos autoconfiantes” calvinistas, estudados por Weber durante o período de puberdade do capitalismo, só que menos recompensados e mais reprimidos pelas ideias de competição, hedonismo e sucesso individual do que lhes é permitido perceber. Mas este não é o ponto central do raciocínio de Valéria Mattos, e por isso não devemos exigir muito dele.

Ainda que o crescimento da pós-graduação e do próprio ensino superior no país mereça destaque,

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constitucionais, contudo, no interior do sistema capitalista dependente periférico boliviano o que, por sua vez, não paralisa as relações sociais de exploração, ao contrário, elas se reproduzem ativamente.

Resta saber os impasses e os avanços concretos que estão em marcha no bloco de poder recente da Bolívia: 1) Até que ponto a estabilização através da qual a estrutura coercitiva – que corre o risco evidente de encobrir e cooptar outros setores sociais – não proporcionará exatamente seu oposto? 2) O programa de desenvolvimento do Estado Plurinacional é um meio ou um fim na querela chamada “revolução boliviana”? Não custa recordar que uma das funções do Estado é de armar a classe opressora e de desarmar a classe oprimida e além de sua função de repressão, desempenha uma função ideológica para conservar as ideias políticas e morais predominantemente da classe dominante; 3) Até que ponto a classe operária boliviana foi soterrada, sendo que, curiosamente, ela e os setores indígenas de oposição vêm proporcionando protestos recentes de descontentamento generalizado do governo de Morales. Como o leitor pode perceber, em um país dependente no sistema capitalista internacional, o governo boliviano tem repetido crassos erros históricos, desenvolvendo as potencialidades mais miseráveis de desenvolvimento.

De forma enigmática, as vitórias políticas “dos de baixo”, estendidas ao quadro latino-americano, parecem reforçar as relações sociais de exploração em benefício “dos de cima”. Como um relampejo na história política latino-americana, (“a memória é sempre guerra” dirá Walter Benjamin), Mariátegui profetizava, em seu

12incômodo texto “Ponto de vista Antiimperialista” , que os impulsos mais acentuadamente nacionalistas podem estar, em muitos casos, em estreita aliança com o imperialismo, isso para sentirem-se mais seguros nas mãos de uma classe social mais numerosa.

Resenha recebida em 14.3.2012Aprovada em 30.5.2012

12MARIÁTEGUI, José Carlos. Ideologia y Politica. Lima: Amauta, 1975, p. 87-95.

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (79-81) RESENHA - O contemporâneo exotismo indo-americano de Álvaro García Linera

“Que mundo tão parvo que para ser escravo é preciso estudar”:A pós-graduação como estratégia para o desemprego

*Antonio de Pádua Bosi

RESENHA DO LIVRO:MATTOS, Valéria. Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho. São Paulo: Xamã, 2011.

*Unioeste / CNPq.

Os estudos sobre a pós-graduação brasileira aumentaram bastante nos últimos vinte anos, e há razões evidentes para isto. Os cursos de mestrado e doutorado cresceram exponencialmente neste período e antes dele. A maioria das universidades públicas, por exemplo, debutou suas pós-graduações stricto sensu a partir da década de 1990, e obviamente contou com uma demanda abundante para seus cursos decorrente do crescimento do número de pessoas com formação superior. A educação universitária assumiu a titulação como principal critério estruturante das carreiras acadêmicas, fato que elevou a pressão para que a pós-graduação fosse expandida a taxas superiores a 100% nas duas décadas passadas. Enfim, o agigantamento da pós-graduação no cenário educacional brasileiro instigou reflexões de variados matizes ideológicos sobre um sem-número de questões envolvendo financiamento, avaliação, produção e produtividade científicas. É neste contexto histórico que está posicionada a pesquisa de mestrado de Valéria Mattos, Pós-Graduação em Tempos de Precarização do Trabalho, publicada como livro em 2011. O livro adiciona elementos e ideias acerca desta trajetória recente, e incorpora ao debate uma dimensão pouco sondada: o alongamento da escolaridade como alternativa ao desemprego, que é o subtítulo do livro.

Inicialmente, a autora examina teoricamente e à distância a relação entre desemprego e precarização do trabalho/emprego na atualidade. É visível seu esforço para calçar as conexões entre estas duas dimensões da realidade da classe trabalhadora. Os autores utilizados nesta empreitada ensinam coisas interessantes sobre como a expansão do capital e de seu processo de acumulação pressionou os trabalhadores a aceitarem as atuais condições de trabalho, genericamente denominadas de precárias. A avaliação deste percurso histórico também ajuda a entender o que tem acontecido com o mundo dos trabalhadores, à medida que consegue mostrar o desemprego e a precarização do trabalho como resultado e estratégia do capital nesta última quadra histórica. Nada é acidental nesta trajetória, nem mesmo o horizonte de um mercado de trabalho

com tais características, abalizado entre o formal e o informal, cuja dinâmica mantém-se inalterada desde os anos 70. Se nos assustamos quando olhamos para trás e enxergamos 90% do mercado de trabalho constituído de ocupações e empregos espremidos abaixo do limite de dois salários mínimos, uma visão prospectiva não revelará algo diferente. Isto é traduzido cientificamente como “dinâmica inercial”.

É neste contexto que muitos intelectuais que se dizem atentos e entrosados com a “inércia” da s i t u a ç ã o p r o l e t á r i a n o s a c o n s e l h a m a “requalificação” permanente como solução para estar entre os escolhidos. Valéria Mattos acerta o alvo ao desconfiar deste preceito. A proteção contra o desemprego viria de um perfil profissional “flexível”, adaptável à intempestividade do mercado. Tal prescrição é interpretada pela autora como um “eufemismo de incerteza”, e ela tem razão ao fazê-lo assim porque a experiência social dos trabalhadores, imersa em mais ou menos trinta anos de sistemáticas marteladas da ideologia neoliberal, mostra mais perdas do que conquistas coletivas, embora esta contabilidade não seja claramente ressaltada como uma conclusão de toda a classe. Evidência disto são os jovens trabalhadores embalados pelas promessas cínicas dos tempos flexíveis, mobilizados em torno de metas e objetivos (de vida e de trabalho) nem sempre visíveis e palpáveis. “Focados”, como se diz nesta linguagem instrumental, garotos e garotas exalam mais certeza do que realmente possuem, trilhando caminhos aparentemente seguros sem chegar a lugar algum, ou sem ultrapassar os limites de um estágio, de um posto de trabalho provisório ou de um interminável processo de preparação para o mercado de trabalho. Assemelham-se aos “santos autoconfiantes” calvinistas, estudados por Weber durante o período de puberdade do capitalismo, só que menos recompensados e mais reprimidos pelas ideias de competição, hedonismo e sucesso individual do que lhes é permitido perceber. Mas este não é o ponto central do raciocínio de Valéria Mattos, e por isso não devemos exigir muito dele.

Ainda que o crescimento da pós-graduação e do próprio ensino superior no país mereça destaque,

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o índice de acesso de jovens entre 18 e 24 anos não ultrapassou 10% conforme censo de 2004, ficando abaixo da Argentina (22,3%) e dos Estados Unidos (33,9%). Valéria Mattos realça este traço constitutivo do ensino superior, acrescentando que apenas 1,6% dos jovens universitários entre 18 e 24 anos pertencem a famílias cuja renda per capita não excede a 1 salário mínimo, o que corresponde a quase 60% da população brasileira, uma clara evidência do caráter ainda elitista do ensino superior no Brasil (dados de 2005). Em seguida, nos lembra que a matriz é privada, uma vez que somente 20% das vagas estão alocadas nas instituições públicas, e dispara contra a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada operada por meio de programas como o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e o Programa Universidade Para Todos (PROUNI). Cabe recordar que esta lógica tem lastro desde pelo menos o início da ditadura militar, quando as vagas oferecidas pelas instituições públicas eram superiores às privadas. Mas se não houve modificação neste modelo, a autora sublinha uma preferência das políticas educacionais atuais pelo ensino profissionalizante e tecnológico, e isto pode de fato ser verificado com a recente expansão desta modalidade de ensino que duplicou o número de Institutos Federais de Educação desde 2009. De resto, Valéria Mattos repassa rapidamente as condições de acesso no presente, apontado visíveis desequilíbrios no que se refere às oportunidades de ingresso no ensino superior conforme crivos de gênero, raça e cor.

Finalmente, após mapear o sistema de educação superior brasileiro e alguns de seus principais nexos com o capital, a autora se dedica ao universo de pesquisa recortado em torno de 117 mestrandos de 9 programas de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (p.25). Os questionários foram aplicados em 2006. Os desempregados somaram 54 alunos, quase a metade dos entrevistados (46,2%), incluídos ali 10 pessoas que nunca trabalharam (8,5%), e os 63 alunos restantes (53,8%) disseram trabalhar formal ou informalmente. Metade dos entrevistados responderam ter uma renda domiciliar abaixo de 8 salários mínimos, e 31% apontaram ficar abaixo de 2,5 salários mínimos (p.33). Ao olhar para este quadro a autora assinala que se trata de uma “situação vulnerável de parte expressiva dos profissionais pesquisados” (p.32), o que encoraja a hipótese de que muitos deles se sentiram seduzidos pela possibilidade de uma bolsa de estudo.

Esta análise é retomada no último capítulo, onde a autora interpreta suas fontes com maior profundidade. Uma conclusão ganha relevo. Valéria Mattos encontra fortes indícios de que parte de seus

entrevistados, depois de algum tempo de desemprego, retorna “à universidade como forma de ganhar tempo, adquirir experiência, desenvolver 'competências', entre tantos outros jargões elencados pelos jovens que não encontram trabalho” (p.104). Para os desempregados se trata de recorrer à pós-graduação com o objetivo de “ganhar tempo” e de aumentar seu repertório profissional e tornar-se mais atrativo ao mercado. Neste ponto também encontramos sinais potentes de uma incisão ideológica do capital na vida das pessoas para reorientar a função da educação e o significado social de “profissão”. Mas este ponto não deslancha no livro. Algumas reflexões importantes relacionadas ao paradigma “flexível” do capital, embora desenroladas a partir de uma bibliografia pertinente, não receberam tratamento empírico que envolvesse os entrevistados, o que é uma pena, pois poderia iluminar uma ampla área sobre as expectativas de jovens trabalhadores neste contexto histórico dominado por postos de trabalhos precários.

Valéria Mattos segue ressaltando que não interessa ao capital os trabalhadores vinculados à determinada profissão com conhecimentos sólidos, inalienáveis e que ajudam a fixar valores com sentido diante do mundo. Esta ênfase é sumariada pelo dístico “aprender a aprender”, comum em manuais voltados para explicar as novidades no mundo do trabalho e a necessidade de o trabalhador mostrar-se flexível e adaptável frente às mudanças nos processos produtivos. A ideia de manter-se atualizado torna-se um imperativo para o trabalhador, mesmo que este não saiba e não entenda porque os conhecimentos são velozmente considerados defasados. Valéria Mattos critica rapidamente esta ênfase e passa a testar os limites da eficiência atribuída à relação estudo/emprego. A primeira evidência contrária a esta tese parece vir da experiência e percepção de sua própria geração. Não há mais empregos certos e garantidos para egressos de curso superior. Acrescente-se: tampouco há bons empregos. Um paralelo com esta realidade vem de países europeus, cujos jovens encontram-se mergulhados neste tipo de experiência há pelo menos duas décadas. A autora lhes reserva apenas uma nota, mas é suficiente para mostrar que o “caso” brasileiro não é “um caso”. Os jovens que se sentem pressionados pelo desemprego acreditam que o alongamento da jornada de formação profissional seja uma boa opção, embora as estatísticas indiquem o crescimento de desocupados com titulação acadêmica. A pesquisa dos sociólogos Stéphane Beaud e Michel Pialoux empresta força ao argumento principal da autora, especialmente o capítulo sobre os operários enxergarem a escola

RESENHA - “Que mundo tão parvo que para ser escravo é preciso estudar”: A pós-graduação como estratégia para o desemprego

como uma espécie de salvação para seus filhos. A autora cita reiteradamente este raciocínio na última parte do livro, e retira de lá sustentação para concluir que o alongamento da escolaridade não é um certificado seguro contra o desemprego (p.108). E não é mesmo, ainda que permaneça sendo uma poderosa promessa.

Por fim, o estudo de Valéria Mattos sugere a necessidade de aprofundar a investigação. Avalio que este esforço vale a pena e que deveria examinar inicialmente a relação e os significados históricos entre os jovens que se veem nesta situação e seus pais e avós, que provavelmente conhecem ou conheceram um mundo do trabalho menos instável. A tentativa de estabelecer este tipo de comparação nas últimas páginas do livro pareceu indicar que o fato de os avós dos jovens entrevistados não possuírem curso universitário não significa que seus netos conseguiram uma vida melhor (p.108-114). Mas, como eu disse, é algo a ser examinado. Sobre o livro de Valéria Mattos, é uma leitura fácil e ajuda a atualizar nossa percepção sobre a degradação do trabalho, assim como a canção recente do Deolinda, grupo de música popular portuguesa, expressou acerca do problema investigado por Valéria Mattos:

Sou da geração sem remuneraçãoE nem me incomoda esta condição.Que parva que eu sou!Porque isto está mal e vai continuar,Já é uma sorte eu poder estagiar.Que parva que eu sou!E fico a pensar,Que mundo tão parvoQue para ser escravo é preciso estudar.

Resenha recebida em 15.5.2012Aprovada em 4.6.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (79-81)

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o índice de acesso de jovens entre 18 e 24 anos não ultrapassou 10% conforme censo de 2004, ficando abaixo da Argentina (22,3%) e dos Estados Unidos (33,9%). Valéria Mattos realça este traço constitutivo do ensino superior, acrescentando que apenas 1,6% dos jovens universitários entre 18 e 24 anos pertencem a famílias cuja renda per capita não excede a 1 salário mínimo, o que corresponde a quase 60% da população brasileira, uma clara evidência do caráter ainda elitista do ensino superior no Brasil (dados de 2005). Em seguida, nos lembra que a matriz é privada, uma vez que somente 20% das vagas estão alocadas nas instituições públicas, e dispara contra a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada operada por meio de programas como o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e o Programa Universidade Para Todos (PROUNI). Cabe recordar que esta lógica tem lastro desde pelo menos o início da ditadura militar, quando as vagas oferecidas pelas instituições públicas eram superiores às privadas. Mas se não houve modificação neste modelo, a autora sublinha uma preferência das políticas educacionais atuais pelo ensino profissionalizante e tecnológico, e isto pode de fato ser verificado com a recente expansão desta modalidade de ensino que duplicou o número de Institutos Federais de Educação desde 2009. De resto, Valéria Mattos repassa rapidamente as condições de acesso no presente, apontado visíveis desequilíbrios no que se refere às oportunidades de ingresso no ensino superior conforme crivos de gênero, raça e cor.

Finalmente, após mapear o sistema de educação superior brasileiro e alguns de seus principais nexos com o capital, a autora se dedica ao universo de pesquisa recortado em torno de 117 mestrandos de 9 programas de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (p.25). Os questionários foram aplicados em 2006. Os desempregados somaram 54 alunos, quase a metade dos entrevistados (46,2%), incluídos ali 10 pessoas que nunca trabalharam (8,5%), e os 63 alunos restantes (53,8%) disseram trabalhar formal ou informalmente. Metade dos entrevistados responderam ter uma renda domiciliar abaixo de 8 salários mínimos, e 31% apontaram ficar abaixo de 2,5 salários mínimos (p.33). Ao olhar para este quadro a autora assinala que se trata de uma “situação vulnerável de parte expressiva dos profissionais pesquisados” (p.32), o que encoraja a hipótese de que muitos deles se sentiram seduzidos pela possibilidade de uma bolsa de estudo.

Esta análise é retomada no último capítulo, onde a autora interpreta suas fontes com maior profundidade. Uma conclusão ganha relevo. Valéria Mattos encontra fortes indícios de que parte de seus

entrevistados, depois de algum tempo de desemprego, retorna “à universidade como forma de ganhar tempo, adquirir experiência, desenvolver 'competências', entre tantos outros jargões elencados pelos jovens que não encontram trabalho” (p.104). Para os desempregados se trata de recorrer à pós-graduação com o objetivo de “ganhar tempo” e de aumentar seu repertório profissional e tornar-se mais atrativo ao mercado. Neste ponto também encontramos sinais potentes de uma incisão ideológica do capital na vida das pessoas para reorientar a função da educação e o significado social de “profissão”. Mas este ponto não deslancha no livro. Algumas reflexões importantes relacionadas ao paradigma “flexível” do capital, embora desenroladas a partir de uma bibliografia pertinente, não receberam tratamento empírico que envolvesse os entrevistados, o que é uma pena, pois poderia iluminar uma ampla área sobre as expectativas de jovens trabalhadores neste contexto histórico dominado por postos de trabalhos precários.

Valéria Mattos segue ressaltando que não interessa ao capital os trabalhadores vinculados à determinada profissão com conhecimentos sólidos, inalienáveis e que ajudam a fixar valores com sentido diante do mundo. Esta ênfase é sumariada pelo dístico “aprender a aprender”, comum em manuais voltados para explicar as novidades no mundo do trabalho e a necessidade de o trabalhador mostrar-se flexível e adaptável frente às mudanças nos processos produtivos. A ideia de manter-se atualizado torna-se um imperativo para o trabalhador, mesmo que este não saiba e não entenda porque os conhecimentos são velozmente considerados defasados. Valéria Mattos critica rapidamente esta ênfase e passa a testar os limites da eficiência atribuída à relação estudo/emprego. A primeira evidência contrária a esta tese parece vir da experiência e percepção de sua própria geração. Não há mais empregos certos e garantidos para egressos de curso superior. Acrescente-se: tampouco há bons empregos. Um paralelo com esta realidade vem de países europeus, cujos jovens encontram-se mergulhados neste tipo de experiência há pelo menos duas décadas. A autora lhes reserva apenas uma nota, mas é suficiente para mostrar que o “caso” brasileiro não é “um caso”. Os jovens que se sentem pressionados pelo desemprego acreditam que o alongamento da jornada de formação profissional seja uma boa opção, embora as estatísticas indiquem o crescimento de desocupados com titulação acadêmica. A pesquisa dos sociólogos Stéphane Beaud e Michel Pialoux empresta força ao argumento principal da autora, especialmente o capítulo sobre os operários enxergarem a escola

RESENHA - “Que mundo tão parvo que para ser escravo é preciso estudar”: A pós-graduação como estratégia para o desemprego

como uma espécie de salvação para seus filhos. A autora cita reiteradamente este raciocínio na última parte do livro, e retira de lá sustentação para concluir que o alongamento da escolaridade não é um certificado seguro contra o desemprego (p.108). E não é mesmo, ainda que permaneça sendo uma poderosa promessa.

Por fim, o estudo de Valéria Mattos sugere a necessidade de aprofundar a investigação. Avalio que este esforço vale a pena e que deveria examinar inicialmente a relação e os significados históricos entre os jovens que se veem nesta situação e seus pais e avós, que provavelmente conhecem ou conheceram um mundo do trabalho menos instável. A tentativa de estabelecer este tipo de comparação nas últimas páginas do livro pareceu indicar que o fato de os avós dos jovens entrevistados não possuírem curso universitário não significa que seus netos conseguiram uma vida melhor (p.108-114). Mas, como eu disse, é algo a ser examinado. Sobre o livro de Valéria Mattos, é uma leitura fácil e ajuda a atualizar nossa percepção sobre a degradação do trabalho, assim como a canção recente do Deolinda, grupo de música popular portuguesa, expressou acerca do problema investigado por Valéria Mattos:

Sou da geração sem remuneraçãoE nem me incomoda esta condição.Que parva que eu sou!Porque isto está mal e vai continuar,Já é uma sorte eu poder estagiar.Que parva que eu sou!E fico a pensar,Que mundo tão parvoQue para ser escravo é preciso estudar.

Resenha recebida em 15.5.2012Aprovada em 4.6.2012

História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (79-81)

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social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da

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2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro

número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração

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3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados

espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer.

4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em

especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores

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6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.

7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto),

obedecendo à seguinte formatação:

7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.:

CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.

7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em

itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção

da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo:

Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.

7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n.

(número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo;

SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.

8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência

bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé.

Próximos Dossiês:

Número 15 – História e Memória. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2012.

Número 16 – Crises e Insurreições. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.03.2013.

Número 17 – Ditaduras. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2013.

Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida

para cada dossiê. Neste caso, a sua publicação se dará de acordo com o fluxo de artigos recebidos pela revista.