subverter a máquina da dívida infinita (entrevista)

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Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato Maurizio Lazzarato apresenta alguns aspectos de seu livro, “La fabbrica dell’uomo indebitato”. A entrevista é de Antonio Alia, Vincenzo Boccanfuso e Loris Narda, publicada no sítio Rebelión, 22-05-2012. A tradução é do Cepat. Eis a entrevista. Partindo do segundo tratado de “A Genealogia da Moral”, de Nietzsche , e de “O Anti-Édipo”, de Deleuze e Guattari, você oferece em seu ensaio uma reconstrução do neoliberalismo , segundo a qual em torno da dívida se produz um dispositivo de poder que molda por completo a infraestrutura biopolítica. Parafraseando Marx , poderíamos dizer que a dívida é uma relação social. Qual é o nexo existente entre a relação credor-devedor e a propriedade? A relação credor-devedor é uma relação organizada em torno da propriedade, é uma relação entre quem dispõe ou não de dinheiro. A propriedade, mais do que se referir aos meios de produção, como dizia Marx, gira em torno dos títulos de propriedade do capital. Portanto, existe uma relação de poder que se modificou em relação à tradição marxiana e que está desterritorializada, para dizê-lo com Deleuze e Guattari – está num nível de abstração superior, mas que de qualquer forma se organiza em torno de uma propriedade: entre quem tem ou não acesso ao dinheiro. É uma relação de poder que, ao invés de partir da igualdade de troca, parte da desigualdade da relação entre credor e devedor, que é imediatamente social: a economia da dívida não faz distinções entre assalariados e não assalariados, entre ocupados e desempregados, entre trabalho material e imaterial, pois todos estamos endividados. Ao mesmo tempo, é uma dimensão imediatamente mundial, que atua e comanda transversalmente acima das divisões entre países ricos e pobres, consolidados ou emergentes. O

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A entrevista é de Antonio Alia, Vincenzo Boccanfuso e Loris Narda, publicada no sítio Rebelión, 22-05-2012. A tradução é do Cepat.

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Subverter a mquina da dvida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato

Maurizio Lazzarato apresenta alguns aspectos de seu livro, La fabbrica delluomo indebitato.

A entrevista de Antonio Alia, Vincenzo Boccanfuso e Loris Narda, publicada no stio Rebelin, 22-05-2012. A traduo do Cepat.

Eis a entrevista.

Partindo do segundo tratado de A Genealogia da Moral, de Nietzsche, e de O Anti-dipo, de Deleuze e Guattari, voc oferece em seu ensaio uma reconstruo do neoliberalismo, segundo a qual em torno da dvida se produz um dispositivo de poder que molda por completo a infraestrutura biopoltica. Parafraseando Marx, poderamos dizer que a dvida uma relao social. Qual o nexo existente entre a relao credor-devedor e a propriedade?

A relao credor-devedor uma relao organizada em torno da propriedade, uma relao entre quem dispe ou no de dinheiro. A propriedade, mais do que se referir aos meios de produo, como dizia Marx, gira em torno dos ttulos de propriedade do capital. Portanto, existe uma relao de poder que se modificou em relao tradio marxiana e que est desterritorializada, para diz-lo com Deleuze e Guattari est num nvel de abstrao superior, mas que de qualquer forma se organiza em torno de uma propriedade: entre quem tem ou no acesso ao dinheiro.

uma relao de poder que, ao invs de partir da igualdade de troca, parte da desigualdade da relao entre credor e devedor, que imediatamente social: a economia da dvida no faz distines entre assalariados e no assalariados, entre ocupados e desempregados, entre trabalho material e imaterial, pois todos estamos endividados. Ao mesmo tempo, uma dimenso imediatamente mundial, que atua e comanda transversalmente acima das divises entre pases ricos e pobres, consolidados ou emergentes. O crdito/dbito foi uma arma fundamental da estratgia capitalista depois dos anos 1970, deslocando completamente o terreno da luta de classes, em nvel social e mundial, razo pela qual ainda temos dificuldade para enfrent-la.

Gostaria de retomar um argumento que no utilizei no livro porque procede desse grande reacionrio que Carl Schmitt e que se refere ao problema da propriedade. O argumento me foi muito til para pensar sobre o poder da moeda, embora Schmitt no fale desta ltima. Toda ordem poltica-econmica est construda e organizada a partir de trs princpios, baseados nos diferentes significados da palavra nomos. Estes trs princpios esto na base da economia de crdito/dbito.

Em primeiro lugar, nomos significa tomar/conquistar e, portanto, apropriao. Toda nova sociedade (e toda nova sequncia do domnio capitalista, por exemplo, o ps-fordismo) comea com a conquista, o roubo, com uma espcie de apropriao/expropriao primitiva. At o capitalismo, esta fase consistia na apropriao/expropriao da terra como um pressuposto de toda a economia e do direito posterior. No capitalismo contemporneo, esta fase foi organizada pelas finanas e pelo crdito que expropriou, por meio da moeda, a sociedade em seu conjunto (no somente o trabalho, mas o conjunto das relaes sociais, dos saberes, da riqueza, etc.). Ou seja, as finanas como uma mquina de captura predatria.

O segundo significado de nomos compartilhar/dividir. A diviso/distribuio faz as partes (porm, de modo radicalmente diferente de Rancire). Atribuindo o meu e o seu, define a propriedade e o direito. No capitalismo contemporneo, a propriedade distribuda pela moeda e pelo crdito/dbito e , principalmente, posse ou privao de ttulos de capital.

O terceiro significado de nomos produzir, produo. Fica claro que na sequncia aberta no final dos anos 1970, h uma apropriao/expropriao, uma distribuio/diviso (propriedade) que antecede logicamente produo. O conceito de produo, para no ser economicista, deve incluir estes trs princpios. Em O Anti-dipo, de Deleuze e Guattari, a distribuio das funes, da propriedade e a apropriao organizada pela moeda como um pr-requisito da produo.

O interessante que, at o capitalismo, a ordem dos eventos no processo de constituio de uma sociedade descrita como apropriao, diviso, produo. A economia clssica e o liberalismo tiveram a pretenso de fazer acreditar que a produo, caracterizada pela liberao das foras produtivas e das travas do Antigo Regime, resolvia em seu prprio interior o problema da apropriao e da diviso. o que os neoliberais e seus governos tcnicos continuam afirmando. Tornando o nvel de vida sempre mais alto (crescimento), a diviso resulta mais fcil e a apropriao no s imoral, mas tambm, do ponto de vista econmico, irracional e, portanto, insensata (Schmitt).

Schmitt menciona Lnin e Marx como autores que, em parte, no caram na tentao da produo. O primeiro considera o imperialismo e a colonizao como necessrios apropriao/expropriao, enquanto Marx considera a acumulao primitiva, e sua feroz violncia, como condies imprescindveis do capital. Para mudar a produo necessrio expropriar os expropriadores e distribuir socialmente a propriedade. Este o problema desta crise que os liberais e os socialdemocratas no querem ver ou melhor, veem perfeitamente, mas no querem aceitar! Um novo crescimento, um novo New Deal, que no implique uma nova apropriao e uma nova propriedade (que exproprie os expropriadores, esta a questo!), no faz mais que perpetuar as condies da crise.

O crescimento uma relao poltica, antes que econmica. Crescimento verde, crescimento tout court, Novo New Deal, polticas de emprego, etc., no atingem inteiramente os fundamentos polticos da crise, ou seja, as caractersticas da apropriao e da diviso prprias do neoliberalismo. Sendo estas as propostas liberais e socialdemocratas para sair da crise, podemos esperar seu aprofundamento que, na verdade, j est em curso. O crescimento da Alemanha, por exemplo, no modifica as causas da crise, porque acrescenta as diferenas e as desigualdades de classe, no somente a precariedade dos trabalhadores pobres, mas tambm a dos assalariados qualificados, concentrando a riqueza produzida nas mos de uns poucos. E sempre a economia da dvida que expropria, divide e comanda a produo. Felizmente, a austeridade que a Alemanha, por meio do controle do euro (a forma contempornea da moeda como capital, da moeda como comando), quer impor aos europeus no funciona e est transferindo a instabilidade dos mercados para o terreno poltico, alterando a relao capital/Estado, capital/sistema poltico, com resultados imprevisveis.

A definio de economia da dvida tambm um potencial instrumento de transversalidade das lutas: o endividamento diz respeito a todos (afianados, sem fianas, trabalhadores autnomos, desempregados). Por um lado, o comando capitalista se reorganizou em torno das finanas, que captura e decodifica os fluxos produtivos e, por outro, assiste-se uma progressiva incorporao do capital fixo na fora-trabalho.Financeirizao e cognitivizao so a abscissa e a coordenada do diagrama do poder contemporneo em que se desdobram as diversas figuras do trabalho, as diversas formas de vida. Dentro deste paradigma ps-fordista, a dvida e os juros podem ser considerados como a nova forma de medida capitalista?

O crdito/dbito supe diversas coisas. um dispositivo de captura da riqueza social, um dispositivo de comando porque redefine atravs do crdito a atribuio dos investimentos e , tambm, uma nova forma de medida, de valorao da medida. Os mecanismos de valorizao introduzidos em todos os mbitos, incluindo a universidade, procedem das finanas. As finanas conceberam este processo dizendo que na fbrica fordista, onde a medida era impossvel, para poder investir, por exemplo, em uma empresa, as finanas tinham que possuir todos os instrumentos possveis de valorao, uma perfeita transparncia que se conseguiu a partir da contabilidade introduzida nos anos 1980 e 1990.

A medida outro princpio introduzido por Carl Schmitt, afirmando que o fruto da apropriao, o que adquirido por meio da conquista, descobrimento, expropriao deve ser medido/pesado/dividido. Portanto, no que no haja medida, mas que, como as finanas e o crdito demonstram, trata-se antes de uma medida subjetiva. Sem dvida, uma nova medida e uma medida arbitrria, que depende somente da lgica do poder, e esta lgica da valorao/medida se impe em todos os aspectos da vida, introduzindo a figura do especialista e da valorao na escola, na poltica, na universidade, nos hospitais, at no governo, etc. necessrio, fundamental, subverter esta estrutura hierrquica, partindo da reapropriao social e da troca de conhecimentos, romper esta lgica da medida, da valorao, do especialista.

Entre as pginas mais interessantes do livro est a polmica contra o igualitarismo de Rancire e Badiou e a reflexividade de Beck (e Habermas). O radicalismo no-marxista francs e o ps-marxismo socialdemocrata alemo, muito diferentes entre si, apresentam, no entanto, duas analogias: omitem a luta de classes do debate da esquerda e propem teorias da comunicao que no levam em considerao as relaes de poder. Em definitivo, o que Guattari definia como a normalizao franco-alem parece encontrar tambm articulaes progressistas. Porm, mesmo os movimentos ao longo do sculo se veem atingidos por um sentido acima de tudo tico ou por um certo idealismo comunicativo. Seria o momento de voltar a ser marxista?

Em Badiou e Rancire est o poltico, mas no o capitalismo. Est o poltico, mas o pr-capitalista. Esto Plato e Aristteles, antes que Marx. No est a produo, nem a fbrica. A fbrica entendida como primeira atualizao da concatenao homens/mquinas/signos que encontramos, atualmente, no somente na produo, mas em toda relao social. E que encontramos tambm no Estado/welfare, em suas administraes. Sempre me chamou a ateno que em Badiou e Rancire no apaream nem sequer o conceito, nem sequer a palavra mquina, como tambm no aparece nem a palavra tcnica ou cincia. A mquina (no sentido de mquina social e mquina tcnica) desapareceu tambm de outras teorias crticas, justamente agora que est em todas as partes, exatamente agora que acompanha cada gesto, expresso, ao de nossa cotidianidade. Penso que o conceito de linguagem e de giro lingustico, na filosofia analtica, provocou grandes erros, pois remete a um processo que no me parece de subjetivizao materialista.

No capitalismo, a subjetivizao est sempre relacionada com a mquina tcnica e social. O capital uma relao social, uma relao de poder, mas assistida por mquinas sociais e mquinas tcnicas. Esta a especificidade do capitalismo. No uma simples relao intersubjetiva, entre homens, como em Hannah Arendt (ou Rancire), em que na ao no existe um tomo de matria. Penso que necessrio permanecermos fiis ao Fragmento sobre as mquinas, em que se formaram vrias geraes.

Por estas razes, penso que a subjetivizao poltica em Badiou e Rancire idealista. Em Badiou, a luta de classes pensada em abstrato, sua antologia a matemtica. Badiou e Rancire falam da economia como se no tivesse nada a ver com a poltica, quando o poltico est completamente redefinido pela economia. O capitalismo isto e no outra coisa: Nosso destino a economia, que uma relao de poder, uma relao onde esto aqueles que administram o poder e aqueles que sofrem seus efeitos, e os que sofrem tm a possibilidade de se rebelar, de mudar a situao. A subjetivizao no gira em torno da democracia, mas a partir dos processos maqunicos de explorao e dominao que se tornam democrticos com as lutas.

Sobre a contribuio de Beck, necessrio v-la como um dos modelos da impossvel terceira via, da nova socialdemocracia. A sociedade do risco de Beck me parece completamente ridcula, porque para dizer em termos muito simples as diferenas de classe atravessam tambm o risco, coisa inconcebvel para estas teorias onde se deixam de lado a luta de classes como uma velha ferramenta inutilizvel. Os nicos que no arriscam so os capitalistas; os riscos so todos para os proletrios. Se levssemos at o fundo o discurso de risco na economia da dvida, os investidores que se arriscam investindo na dvida soberana deveriam assumir a responsabilidade. Se os Estados quebrarem, perdero seu dinheiro e ponto final. No entanto, acontece o contrrio: os que no so responsveis pagam o risco do sistema econmico. O verdadeiro risco para as pessoas, e o mesmo vale para o risco ecolgico.

Beck pensa o poltico a partir de uma difuso e uma democratizao dos centros de deciso e de governo, da multiplicao das mediaes, dos debates. O que est acontecendo diante dos nossos olhos exatamente o contrrio. Acredito que h uma centralizao das decises e das tecnologias de governana. Atravs do governo tcnico, esta crise impe uma recentralizao da administrao, uma recentralizao dos dispositivos de governana estatais, que deixa de lado a poltica representativa, a democracia dos cidados, etc. O curioso que verdade que o governo tcnico decide, mas sua enrgica deciso para reduzir os salrios, as rendas, os gastos sociais, definitivamente ineficaz para sair da crise. Vo contra um muro, s que entre eles e o muro estamos ns. A socialdemocracia foi constituda em torno de bases polticas precisas, que no parecem reproduzveis hoje, nos termos propostos por Beck, pois j no existe esta possibilidade. A crise atual faz fracassar completamente estas teorias da terceira via, elaboradas nos anos 1980 e 1990.

Passando da teoria prtica, evidente a insuficincia dos sindicatos (inclusive, daqueles mais combativos) e a incapacidade da esquerda radical (pensemos no papel dos Verdes nas reformas do welfare alemo) em ler o presente. Os novos movimentos esto comeando a colocar a questo da dvida, como, por exemplo, a campanha contra a dvida estudantil nos Estados Unidos e contra a Equitalia na Itlia. Os Indignados e Ocuppy ocupando fisicamente as praas (como fbricas), tambm acenam para a reapropriao da metrpole. No obstante, o quebra-cabea da organizao continua muito aberto: se , certamente, necessrio inverter o trabalho sobre si do homem endividado em termos recompositivos construindo pontes slidas entre sujeitos diferentes, no existe o risco de menosprezar a condio das singularidades?

Aqui necessrio partir do esgotamento da lgica da representao (tanto poltica como lingustica). Um longo processo de crise da representao est chegando ao fim, tanto do ponto de vista do capital, como do ponto de vista da emancipao. A crise da dvida antes de qualquer coisa uma crise da governabilidade, que redefine tanto os governados (o homem endividado) como os governantes (governo tcnico). Tambm joga uma luz sobre o conceito de governabilidade de Foucault, rompendo radicalmente com sua genealogia. Assistimos, desde a poca de Thatcher, a uma privatizao da governabilidade, que a outra cara da privatizao da moeda. A tecnologia governamental no uma tecnologia do Estado (inclusive quando o Estado desempenha um papel central como instituio privatizada) e a economia no se limita somente possibilidade de se governar, mas a assume totalmente. O governo tcnico a realizao deste processo de privatizao. A lgica da representao substituda pela lgica funcional, operativa (diagramtica diria Deleuze e Gattari) da moeda/crdito, uma lgica que no passa pela representao, nem pelas semiticas significantes e representativas (linguagem), nem pela dos sujeitos que decidem ( maneira de Schmitt). No capitalismo, a lgica da produo e a lgica da representao (poltica e lingustica) funcionam juntas, porm a partir da supremacia da primeira. E numa crise, a primeira ocupa todo o espao poltico.

O que um governo tcnico, um governo no representativo? uma tentativa de transposio da lgica do just in time da empresa para a poltica. O governo deve garantir que a populao responda, em tempo real, s modificaes das variveis econmicas. O spread, a bolsa, os salrios, as rendas, os gastos sociais devem adaptar-se em tempo real aos sinais emitidos pela economia da dvida. Os neoliberais definiram a subjetividade dos governados pelo conceito de capital humano, uma definio feita por Foucault. O que o capital humano? O capital humano aquele que responde sistematicamente s modificaes introduzidas artificialmente no ambiente. O capital humano j no o tomo de liberdade da economia clssica, mas uma varivel sistmica e subordinada, cujos comportamentos devem adaptar-se, ser compatveis, responder em just in time aos sinais emitidos pela economia.

O que o neoliberalismo no conseguiu obter do capital humano (a capacidade de responder em tempo real s exigncias dos credores), pretende arrancar do homem endividado. Num primeiro momento, parece ter conseguido, mas j se veem os limites e a impossibilidade desta poltica tcnica. Ao delrio da autorregulao dos mercados se acrescenta o delrio da autorregulao da governabilidade. Uma espcie de governo automtico ciberntico, diria Deleuze e Guattari, que no funcionar. Em meio a toda esta agitao destrutiva e antiprodutiva do capital, irrompe uma grande notcia: a sociedade contempornea, na realidade, no pode ser governada pela lgica capitalista, a no ser em termos autoritrios (e de uma nova reao), e nesta direo que se movem as tcnicas de governo. A sociedade excede a medida da economia neoliberal. O que mostrado como uma fora do capital, na verdade esconde uma grande fragilidade.

Vivemos num estado de exceo permanente, que hoje se converteu na regra, sendo intil continuar chamando de exceo! Se o soberano aquele que decide nestas condies, o soberano hoje o Capital. Isto implica, evidentemente, uma mudana radical do conceito de soberania, realmente seu fim (este o limite de Schmitt e de todas as teorias baseadas nele, Agamben, etc.), porque o capital no uma pessoa (condio schmittiana da deciso) e nem sequer um grupo de pessoas, mas uma mquina (ou melhor, um conjunto de mquinas) com suas subjetivaes ou personificaes e, segunda observao, no existe um territrio, nem a possibilidade de expressar valores capazes de constituir uma comunidade, uma sociedade, como diriam os ultraliberais alemes.

O mercado, a empresa e a competncia so regidos mais por princpios dissolventes, do que unificadores, destruindo sistematicamente o que mantm unida uma sociedade. O capital sempre se obrigou a utilizar os territrios anexados para encher suas lacunas com a integrao poltica, e a mais importante, o Estado-Nao, tem se solapado sistematicamente a partir dos anos 1970. Todas as mediaes representativas e institucionais fracassaram ou esto enormemente debilitadas. Na Itlia, este processo salta aos olhos: a Padnia a farsa do territrio e dos valores comunitrios de que carece o capital tercirio, representado por Berlusconi e os neofascistas, a outra cara da farsa, que, ao contrrio, garantiram um sucedneo de valores estatais e nacionais. Uma vez mais, a exibio da fora do Capital sinal de sua fragilidade, sempre quando emergir uma subjetividade que o combate em seu mesmo nvel, revelando, na luta, suas fragilidades.

Tambm do ponto de vista dos movimentos, a lgica da representao est em crise. A democracia poltica e a democracia social (sindicatos, instituies sociais, etc.), fundadas sobre a representao, tm sido rejeitadas por todos os movimentos, nos ltimos trinta anos. Algo novo est surgindo, com muitas dificuldades e ambiguidades. Os movimentos esto realizando experimentos interessantssimos que, no entanto, ainda no esto altura do ataque cometido pelo capital, ainda que os Indignados, Occupy Wall Street e especialmente o de Oakland, estejam muito avanados, j que, por um lado, se situam num nvel imediatamente social, rompendo com as tradies corporativas e setoriais dos sindicatos e, por outro, evitam a representao.

Em todo caso, o aceleramento e aprofundamento da crise constituem a melhor lio para que sejam encontradas novas modalidades de organizao e novos temas de mobilizao. No penso que se possa subjetivizar enquanto devedores, no acredito que seja possvel; uma categoria de designao capitalista, em que se obrigado a ser devedor. No entanto, a dvida oferece imediatamente um terreno social, uma dimenso socializada de maneira transversal, que antes no tnhamos. Como diria Marx, o capitalismo se apresenta na sua total nudez, mas isto no supe fazer um discurso triunfalista ou de filosofia da histria. As condies mudaram em relao aos anos 1980 e 1990, existe um terreno comum que se resingulariza em relao heterogeneidade das diversas lutas sociais, das diversas formas de vida, partindo das prprias prticas de reapropriao da metrpole, das lutas sobre a renda, etc.

As dinmicas expansivas do capitalismo esto fechadas. Nos anos 1980, elas ainda podiam prometer riqueza para todos. Hoje, o capitalismo j no pode manter esta promessa de riqueza futura. Agora, o que nos promete so lgrimas e sangue para os prximos 10-15 anos, e uma feroz defesa de seus privilgios. Muitos dos velhos objetivos das luta de classe se tornam atuais.