streck - bem jurídico e constituição

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    BEM JURDICO E CONSTITUIO: DA PROIBIO DE EXCESSO(BERMASSVERBOT) PROIBIO DE PROTEO DEFICIENTE

    (UNTERMASSVERBOT) OU DE COMO NO H BLINDAGEM CONTRA NORMASPENAIS INCONSTITUCIONAIS

    Lenio Luiz Streck1

    1. Pr-juzos e prejuzos em face da (baixa) compreenso do sentido da Constituio

    Em Cem Anos de Solido, Gabriel Garcia Marques conta que, em Macondo, o mundoera to recente que muitas coisas careciam de nome e para mencion-las precisava-se apontarcom o dedo. A Constituio do Brasil tambm muito recente. Olhando a imensido de seutexto, colhe-se a ntida impresso que algumas coisas ainda no tm nome; os juristas limitam-se

    quando o fazem a apont-las com o dedo... A ausncia de uma adequada pr-compreenso(Vorverstndnis) impede o acontecer (Ereignen) do sentido. Gadamer sempre nos ensinou que acompreenso implica uma pr-compreenso que, por sua vez, pr-figurada por uma tradiodeterminada em que vive o intrprete e que modela os seus pr-juzos.

    A tradio nos lega vrios sentidos de Constituio. Contemporaneamente, a evoluohistrica do constitucionalismo no mundo (mormente no continente europeu) coloca-nos disposio a noo de Constituio enquanto detentora de uma fora normativa ecompromissria, pois exatamente a partir da compreenso desse fenmeno que poderemos darsentido relao Constituio-Estado-Sociedade. Mais do que isso, do sentido que temos de

    Constituio que depender o processo de interpretao dos textos normativos do sistema.Sendo um texto jurdico (cujo sentido, repita-se, estar sempre contido em uma norma

    que produto de uma atribuio de sentido2 - Sinngebung) vlido to-somente se estiver emconformidade com a Constituio, a aferio dessa conformidade exige uma pr-compreenso(Vorverstndnis) acerca do sentido de (e da) Constituio, que j se encontra, em face do

    processo de antecipao de sentido, numa co-pertena faticidade-historicidade do intrprete eConstituio-texto infraconstitucional. Um texto jurdico (um dispositivo, uma lei, etc.) jamais

    1 Professor do Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS-RS; Professor Colaborador da UNESA-RJ;

    Coordenador da parte brasileira do Acordo Interrnacional CAPES-GRICES entre a UNISINOS e Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra; membro fundador e conselheiro do Instituto de Hermenutica Jurdica IHJ; Procurador de Justia do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul-Brasil.2 A relao entre texto e norma deve ser entendida, nos limites destas reflexes, partir da diferenaontolgica (ontologische Differenz). Assim, diferentemente do que pensam alguns tericos do direito, texto enorma no existem separadamente. Este o ponto de estofo da prpria compreenso do fenmeno hermenutico:no basta distinguir texto e norma. Esta simples distino transforma a norma em um mero enunciadolingstico, enfim, paradoxalmente, em um mero texto. Texto e norma, insisto, so diferentes, sendo que essadiferena necessariamente ontolgica (no sentido da ontologia fundamental trabalhada por Heidegger). Poristo, o texto s na (sua) norma e a norma s no(seu) texto. Nem ciso e nem identificao (equiparao):apenas a diferena, pois. Da que o texto no existir (ou subsistir) como texto, ou, em outras palavras, o textono existe na sua textitude. A norma que ser condio de possibilidade do texto. Portanto, a norma no podeser vista: ela que d o sentido ao texto, sendo, pois, o produto da interpretao do texto (atribuio de sentido -

    Sinngebung). E este produto ocorre na applicatio (Gadamer). momento uno; indivisvel. Ou seja, porqueno interpretamos por partes, em etapas (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi e subtilitas applicandi), que o ato aplicativo acontece em uma unidade em que o sentido se manifesta, fazendo com que o texto possa sercompreendido.

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    interpretado desvinculado da antecipao de sentido representado pelo sentido que ointrprete tem da Constituio.

    Destarte, uma baixa compreenso acerca do sentido da Constituio naquilo queela significa no mbito do Estado Democrtico de Direito inexoravelmente acarretar umabaixa aplicao, problemtica que no difcil de constatar na quotidianidade das prticasdos operadores do Direitoem terrae brasilis. Por isto, pr-juzos inautnticos (no sentido deque fala Gadamer) acarretam srios prejuzos ao jurista.

    Vale aqui o alerta de que at mesmo algumas posturas que se consideram crticas no

    campo jurdico, embora busquem superar o formalismo normativista (para o qual o texto uma mera entidade lingstica), terminam por transferir o locus da produo do sentido doobjetivismo para o subjetivismo, da coisa para a mente/conscincia (subjetividadeassujeitadora e fundante) e da ontologia (metafsica clssica)para a filosofia da conscincia(metafsica moderna). E, por a, estacionam. E congelam sentidos!

    No conseguem, assim, alcanar o patamar da ontologische Wendung, no interior daqual a linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veculo de conceitos, passa a sercondio de possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da relao sujeito-objeto(que um problema transcendental), refratria relao sujeito-sujeito (que um problemahermenutico). Ou seja, sua preocupao de ordem metodolgico-procedimental e no

    ontolgica (no sentido da fenomenologia hermenutica).Assim, mesmo aqueles que procuram "superar" o positivismo exegtico-normativista

    no conseguem perceber que a revoluo copernicana provocada pela viragem lingstico-hermenutica tem o principal mrito de deslocar o locus da problemtica relacionada fundamentao do processo compreensivo-interpretativo do procedimento para o modode ser.

    Desse modo, embora venha sendo recepcionada e/ou adotada pelas diversasconcepes da teoria do direito, com Gadamer que a hermenutica dar o grande salto

    paradigmtico, porque atinge impiedosamente o cerne da problemtica que, de um modo oude outro, deixava-a refm de uma metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da

    metafsica clssica e, por outras, aos parmetros estabelecidos pela filosofia da conscincia(metafsica moderna). Enquanto tentativa de elaborao de um discurso crtico aonormativismo, a metodologia limita-se a procurar traar as regras para uma melhorcompreenso dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e Perelman), sem que se dconta daquilo que o calcanhar de Aquiles da prpria metodologia (que tem a pretenso deser normativa): a da absoluta impossibilidade da existncia de um "meta-critrio" (sic),espcie de regra que estabelea o uso dessas regras. Enfim, no se do conta daimpossibilidade de Grundmethode.3 Da o contraponto hermenutico que procuro apresentar:o problema da interpretao no epistemolgico e tampouco procedimental; , antes,fenomenolgico; e, mais do que tudo, existencialidade.

    3 Ver, para tanto, STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica Uma Nova Critica doDireito. 2a. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003, em especial cap. 5.

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    Numa palavra, as condies de possibilidades para que o intrprete possa compreenderum texto implicam (sempre e inexoravelmente) a existncia de uma pr-compreenso (seus pr-

    juzos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurdico-poltico-social. Desse belvedere compreensivo, o intrprete formular (inicialmente) seus juzos acercado sentido do ordenamento (repita-se, o intrprete jamais interpreta em tiras, aos pedaos, como

    bem alerta Eros Grau). E sendo a Constituio o fundamento de validade de todo o sistemajurdico e essa a especificidade maior da cincia jurdica , de sua interpretao/aplicao(adequada ou no) que exsurgir a sua (in)efetividade.

    Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem resulta de fundamentalimportncia para a preservao e a consolidao da fora normativa da Constituio ainterpretao constitucional, a qual se encontra necessariamente submetida ao mandato deotimizao do texto constitucional.4 Trata-se, pois, de problema fundamentalmentehermenutico, muito bem detectado, alis, por Paulo Bonavides,5 para quem, para agravar acrise das Constituies, verificou-se o emprego de uma metodologia interpretativa que caiu

    prisioneira do formalismo e do jusprivatismo. Foi, portanto, um equvoco, segundo Mller, arecepo de regras artificiais de interpretao elaboradas pelo positivismo e recolhidas daherana romanista de Savigny, fazendo da realizao do Direito e da concretizao da norma

    simples operao interpretativa de textos de norma.

    Desse modo, partindo da premissa de que hermenutica condio de ser no mundo, quehermenutica existncia, e que o processo de interpretao tem como condio de

    possibilidade a compreenso, no interior da qual o sentido j vem antecipado pela pr-compreenso (Vorverstndnis), a pergunta que se impe :

    como possvel olhar o novo (texto constitucional de 1988), se os nossos pr-juzos (pr-compreenso) esto dominados por uma compreenso inautntica do direito, onde, nocampo do direito constitucional, pouca importncia tem sido dada ao estudo da

    jurisdio constitucional?

    2. A crise do Direito e a baixa aplicao da jurisdio constitucional em sede penal

    Passados mais de dezesseis anos desde a promulgao da Constituio, no hindicativos de que tenhamos avanado no sentido da superao da crise por que passa aoperacionalidade do Direito em terra brasiliensi. Persistimos atrelados a um paradigma penal dentida feio liberal-individualista, isto , preparados historicamente para o enfrentamento dosconflitos de ndole interindividual, no engendramos, ainda, as condies necessrias para oenfrentamento dos conflitos (delitos) de feio transindividual (bens jurdicos coletivos), quecompem majoritariamente o cenrio desta fase de desenvolvimento da Sociedade brasileira.

    H, nitidamente, uma crise que envolve a concepo de bem jurdico em pleno EstadoDemocrtico de Direito.6 Urge, pois, um redimensionamento na hierarquia dos bens jurdicos

    4 Cfe. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional.. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983.5 Cfe. BONAVIDES, Paulo.Direito Constitucional. So Paulo, Malheiros, 1996, p. 34.6 Sobre o assunto, consultar STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e Constituio: a legitimidadeda funo investigatria do Ministrio Pblico. 1. E 2. Edies. Rio de Janeiro, Forense, 2003.

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    como forma de adapt-los sua dignidade constitucional.7 Afinal, como bem lembra FIGUEIREDODIAS, os bens jurdicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizaes dosvalores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais,hiptese a lhes garantir dignidade jurdico-penal.8

    Na mesma linha, LUIZ LUISI lembra que as Constituies surgidas no segundo ps-guerra albergam uma srie de preceitos destinados a alargar a incidncia do direito criminal nosentido de faz-lo um instrumento de proteo de direitos coletivos, cuja tutela se impe paraque haja uma justia mais autntica, ou seja, para que se atendam as exigncias de justiamaterial.9 Dito de outro modo, parece no restar dvida que na atualidade e a assertiva de

    MIR PUIG o direito penal vai abrindo espao no sentido de que deve ir estendendo suaproteo a interesses menos individuais, porm de grande importncia para amplos setores dapopulao, como o meio-ambiente, a economia social, as condies de alimentao, o direito aotrabalho em determinadas condies de segurana social e material enfim, o que se vemdenominando de interesses difusos. 10

    Estando isto claro, vale registrar, no particular, a existncia de uma grave controvrsiaacerca da extenso e das funes desse conceito (bem jurdico) a partir do dissenso surgido entrea postura dos penalistas liberais, que defendem uma compreenso demasiadamente restrita doconceito, e aqueles que defendem o reconhecimento jurdico-penal de valores supra-individuais,cuja posio quanto funcionalidade dessa instituio jurdica assenta-se em uma concepoorganizativa, interventiva e atenta realidade social. Essa contenda no foi aindasuficientemente percebida e apreendida pelo conceito dogmtico de bem jurdico, e este conflitoacarreta uma confuso quanto aos bens que devem prevalecer numa escala hierrquicaaxiolgica, para fins de serem relevantes penalmente e, portanto, merecedores de tutela dessanatureza.11

    A transferncia desta ainda no resolvida controvrsia para as prticas legislativas ejudiciais faz com que surjam leis (v.g., Leis 10.259/01 e 10.741/03) em que bens jurdicos queclaramente traduzem interesses de grandes camadas sociais so rebaixados axiologicamente eequiparados a outros bens de relevncia individual, privilegiando-se o individual em detrimentodo coletivo, questo sutilmente presente, por exemplo, na legislao que trata dos crimes de

    7 Nesse tom, anota Maria da Conceio Ferreira da Cunha que seria inconstitucional criar uma ordem de bensjurdico-penais de forma a inverter a ordem de valores constitucional. Cfe. CUNHA, Maria da ConceioFerreira da. Constituio e Crime: Uma Perspectiva da Criminalizao e da Descriminalizao. Porto:Universidade Catlica Portuguesa, 1995, p. 328.8 Cfe. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas Bsicos da Doutrina Penal, Coimbra: Coimbra, 2001. pp. 47-48.9 Cfe. LUISI, Luiz. Os princpios constitucionais penais. Porto Alegre, Srgio Fabris Editores, 2003, p. 57.10 Cfe. PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: parte general. 5. Ed. Barcelona, Reppertor, 1998, p. 135. Nomesmo sentido, veja-se Miguel Polaino NAVARRETE (Derecho penal, parte general. Tomo III. Teora jurdicadel delito. Volumen I. Barcelona, Editora Bosch AS, 2000, p. 131), para quem la sociedad o comunidad, globaly genericamente considerada, aparecen reconocidas como sujeto pasivo de bienes jurdicos que son afectadospor delitos que atentan a la propia comunidad social, em cuanto titular de intereses colectivos. As acontece, v.g.,en tipos de delitos que afectan a bienes colectivos, como el orden pblico, la seguridad ec trafico rodado, la fpblica o la salud pblica, frente a comportamientos tpicos ya de lesin, ya de peligro o riesgo general o

    concreto.11 Nesse sentido, ver STRECK, Lenio Luiz e COPETTI, Andr. O direito penal e os influxos legislativos ps-Constituio de 1988: um modelo normativo e ecltico consolidado ou em fase de transio?, In: Anurio do

    Programa de Ps-Graduao em Direito da UNISINOS. So Leopoldo, Editora Unisinos, 2003, pp. 255 e segs.4

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    sonegao fiscal no Brasil, como possvel perceber at mesmo na recente Lei 10.684/03,sancionada j no governo Luis Incio Lula da Silva, e que ser objeto de anlise mais adiante.

    O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao aquecimento do debateentre penalistas de apego exarcerbado ao liberalismo e os que buscam a guarida penal de benssupra-individuais, que estes buscam introjetar na concepo de bem jurdico penal a idia deque uma srie de valores constitucionais de feio coletiva necessitam de proteo penal,enquanto aqueles (apegados s concepes do liberalismo clssico), resistem a tanto,obstaculizando a extenso da funo de proteo penal aos bens de interesse da comunidade, sobo argumento de que tal concepo implicaria uma indesejada ampliao das barreiras do direito

    penal. De certo modo, continuam a pensar o direito a partir da idia segundo a qual haveriauma contradio insolvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e indivduo. Para eles, oEstado necessariamente mau, opressor, e o direito (penal) teria a funo de proteger oindivduo dessa opresso. Por isso, em pleno sculo XXI e sob os auspcios do EstadoDemocrtico de Direito no interior do qual o Estado e o Direito assumem (um)a funotransformadora continuam a falar na mtica figura do Leviat, repristinando para mim deforma equivocada antiga problemtica que contrape o Estado (mau) (boa) sociedade (sic).

    Tais consideraes, evidncia, acarretam compromissos e inexorveis conseqnciasno campo da formulao e aplicao das leis. Para tanto, parto da premissa e no h nenhumanovidade em dizer isto de que a Constituio brasileira de 1988 apresenta uma direo diretiva

    para o Estado. Logo, em assim sendo, continuo a insistir (e acreditar) que todas as normas daConstituio tm eficcia, e as assim denominadas normas programticas como as queestabelecem a busca da igualdade, a reduo da pobreza, a proteo da dignidade, etc. comandam a atividade do legislador (inclusive e logicamente, do legislador penal), buscandoalcanar o objetivo do constituinte.

    Esse comando (ordem de legislar) traz implcita por exemplo, no campo do direitopenal a necessria hierarquizao que deve ser feita na distribuio dos crimes e das penas,razo pela qual o estabelecimento de crimes, penas e descriminalizaes no pode ser um atoabsolutamente discricionrio, voluntarista ou produto de cabalas. Em outras palavras, no hliberdade absoluta de conformao legislativa nem mesmo em matria penal, ainda que a leivenha a descriminalizar condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se

    de um lado h a proibio de excesso (bermassverbot), de outro h a proibio de proteodeficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal no pode ser tratado como se existisseapenas uma espcie de garantismo negativo, a partir da garantia de proibio de excesso.

    Alis, parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas brasileiros de orientaocrtica fazem essa leitura do garantismo to-somente pelo vis negativo. Com efeito, a partir do

    papel assumido pelo Estado e pelo direito no Estado Democrtico de Direito, o direito penaldeve (sempre) ser examinado tambm a partir de um garantismo positivo, isto , devemos nosindagar acerca do dever de proteo de determinados bens fundamentais atravs do direito

    penal.Isto significa dizer que, quando o legislador no realiza essa proteo via direito penal,

    cabvel a utilizao da clusula proibio de proteo deficiente (Untermassverbot). Tais

    questes ficam bem claras a partir da discusso da descriminao do aborto na Alemanha,problemtica igualmente debatida no plano da justia constitucional na Espanha e em Portugal. No h, pois, qualquer blindagem que proteja a norma penal do controle de

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    constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas tcnicas ligadas hermenutica, como a interpretao conforme, a nulidade parcial sem reduo de texto, oapelo ao legislador, etc). Ou isto, ou teramos que considerar intocvel, por exemplo, umdispositivo legal que viesse a descriminalizar a corrupo, a lavagem de dinheiro, os crimesfiscais (de certo modo isto j ocorre, desde a Lei 9.249, confirmada agora pela Lei 10.684), oscrimes sexuais (estupro e atentado violento ao pudor) em face do casamento (sic) da vtima comterceira pessoa (art. 107, VIII, do Cdigo Penal), tudo em nome do princpio da legalidade,como se a vigncia de um texto jurdico implicasse, automaticamente, a sua validade,

    problemtica que, paradoxalmente, em determinadas situaes, coloca na mesma trincheira

    penalistas de orientao dogmtica e acentuadamente positivista12 e aqueles defensores de umliberalismo exacerbado.

    Ora, nenhum campo do direito est imune a essa vinculao constitucional.Conseqentemente, na medida em que a Constituio figura como o alfa e o mega do sistema

    jurdico-social, ocorre uma sensvel alterao no campo de conformao legislativa. Ou seja, apartir do paradigma institudo pelo novo constitucionalismo e a partir daquilo que o EstadoDemocrtico de Direito representa na tradio jurdica, o legislador no mais detm a liberdade

    para legislar que tinha no paradigma liberal-iluminista.Nesse (novo) contexto, a teoria do bem jurdico, que sustenta a idia de tipos penais no

    direito penal, igualmente passa a depender da materialidade da Constituio. No pode restarqualquer dvida no sentido de que o bem jurdico tem estrita relao com a materialidadeconstitucional, representado pelos preceitos e princpios que encerram a noo de EstadoDemocrtico e Social de Direito. No h dvida, pois, que as baterias do direito penal do EstadoDemocrtico de Direito devem ser direcionadas para o combate dos crimes que impedem aconcretizao dos direitos fundamentais nas suas diversas dimenses. Neste ponto, alis,entendo que neste espao que reside at mesmo uma obrigao implcita de criminalizao, aolado dos deveres explcitos de criminalizar constantes no texto constitucional.

    3. Do modus operandi da filtragem hermenutico no direito penal: o locus privilegiado docontrole difuso (juzo singular e tribunais)13 a capilarizao da applicatio constitucional

    Como visto, uma nova postura hermenutica sustentada na ontologische Wendung e narevoluo copernicana (Jorge Miranda) que atravessou o direito constitucional a partir dosegundo ps-guerra - implica a necessria diferenciao entre texto e norma e entre vigncia evalidade. Este o ponto de partida e de chegada da filtragem hermenutico-constitucional.

    Nesse sentido, adquire especial significado o controle difuso de constitucionalidade. Emvigor desde a Constituio de 1891, a forma de controle difuso permite uma capilaridade no

    processo aplicativo da Constituio, possibilitando que juzes singulares e os diversos tribunais

    12 Os penalistas de perfil dogmtico-positivista majoritrios no plano da produo jurdica estandardizada no

    Brasil so aqueles ligados aos movimentos de lei e ordem, mas que no incluem no rol de suas preocupaesrepressivistas as condutas que ofendem bens jurdicos supra-individuais.13 Deve ficar claro que, preferencialmente, o controle de proteo insuficiente deve ser feito em sede de controleconcentrado de constitucionalidade, para evitar tratamentos desiguais e decises conflitantes.

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    possam deixar de aplicar leis ou dispositivos de leis inconstitucionais, a partir do exame do casoconcreto. Assim, sempre que o juiz entender que a discusso da constitucionalidade umaquesto prejudicial, pode deixar de aplicar a lei.14 evidente que o efeito apenas inter

    partes. Mas, seguramente, trata-se de importantssimo mecanismo que democratiza o acesso jurisdio constitucional, retirando o monoplio do Supremo Tribunal Federal.

    Se o juiz tem o poder de deixar de aplicar a lei considerada inconstitucional, o mesmo no seaplica aos rgos fracionrios (Cmaras, Turmas) dos Tribunais.15 Como se sabe, o art. 97 daConstituio consagra ofull bench, o que quer dizer que, afora as excees previstas no art. 481,

    pargrafo nico do CPC, os rgos fracionrios no esto dispensados de suscitar o incidente deinconstitucionalidade.

    Tambm quando a lei for anterior a Constituio os rgos fracionrios esto dispensados dasuscitao, isto porque, a partir da ADIn n 2, e a questo de ordem da ADIn 438, o SupremoTribunal Federal fixou entendimento de que o nosso sistema jurdico no admiteinconstitucionalidade superveniente. Como conseqncia, leis anteriores Constituio, quecom ela conflitem, so simplesmente no-recepcionadas. Logo, desnecessrio qualquerincidente para tal declarao. Igualmente h dispensa de suscitao do incidenteper saltum noscasos interpretao conforme a Constituio e nulidade parcial sem reduo de texto.

    Registre-se, entretanto e tal circunstncia conformadora do fenmeno da baixa

    constitucionalidade em terra brasiliensi que o controle difuso no tem sido utilizado com afreqncia e com a constncia que um sistema jurdico em crise como o brasileiro exige.16 Com14 Conforme tenho sustentado, o controle de constitucionalidade difuso pode ser feito no bojo de qualquer ao,inclusive em sede de ao civil pblica, no sendo correta a tese segundo a qual quando o objetivo da ao declarar a nulidade de uma lei a ao civil pblica seria sucedneo de controle concentrado (caso, por exemplo,de ao civil pblica para questionar o nmero de vereadores nos municpios). Com efeito, em sede de controledifuso no h como separar a questo prejudicial daquilo que se poderia denominar de o prprio objeto dademanda (sic). Sabe-se que, em sede de controle concentrado, a inconstitucionalidade da lei o prprio objeto.Entretanto, em sede de controle difuso, a lei inquinada de inconstitucional ser sempre uma questo prejudicial.15 A dificuldade de operacionalizar o controle difuso visvel em alguns julgamentos, como o caso da decisoproferida pela 9a. Cmara de Frias do Tribunal de Justia de So Paulo, em data de 24 de janeiro de 2003, cujomrito teve repercusso nacional, porque tratou da inconstitucionalidade do foro privilegiado institudo pela Lei

    10.628/02. Equivocadamente, o rgo fracionrio declarou inconstitucional dispositivo legal, sem suscitar oincidente. Com efeito:a Lei Federal n. 10.628/2002 no encontra fundamento na Constituio Federal de 1988. O art. 37, 4o. da Carta Magna trata da suspenso dos direitos polticos, perda da funo pblica, indisponibilidadedos bens e ressarcimento ao Errio, para os atos de improbidade administrativa, sem prejuzo da aopenal cabvel. A ao proposta tem natureza eminentemente civil, no obstante possa ser ajuizada acompetente ao penal. (Agravo de Instrumento 313.238-5/1-00, Rel. Des. Antonio Rulli).

    16 incrivelmente baixo o nmero de incidentes de inconstitucionalidade suscitados pelos rgos fracionrios noBrasil em matria penal. Alm das hipteses em que simplesmente as Cmaras ou Turmas ignoram a regra doart. 97, declarando diretamente a inconstitucionalidade, existe outra forma de no suscitao do incidente, queocorre quando o rgo fracionrio contorna a inconstitucionalidade, a partir daquilo que se denomina deinconstitucionalidade reflexa. Alis, em vrias ocasies, o prprio Supremo Tribunal Federal deixou deapreciar inconstitucionalidades, sob pretexto de que a violao, antes de ser da Constituio, da lei ordinria (

    o caso, por exemplo, dos casos em que a parte alega violao do dispositivo do art. 5o. da CF, que trata do direitoadquirido, ocasio em que o Supremo Tribunal Federal remete a discusso da inconstitucionalidade para o planoda resoluo de antinomia, uma vez que o direito adquirido tambm est previsto na Lei de Introduo aoCdigo Civil sic). Nessa linha, veja-se o caso do julgamento do processo n. 70006855142, no qual a 5a. Cmara

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    efeito, se j difcil convencer os operadores jurdicos do uso do controle difuso para aplicar aclusula da proibio de excesso circunstncia mais comum para a declarao dasinconstitucionalidades no mbito do direito penal , imagine-se o comportamento destes no queconcerne ao controle difuso de constitucionalidade (e o mesmo vale para o controle concentradofeito pelo Supremo Tribunal Federal) quando se est diante de uma hiptese de aplicao daclusula da proibio de proteo deficiente, quando colocada em xeque - de forma maisdelicada, porque feita em sentido contrrio - a liberdade de conformao legislativa.

    H que se ter claro, portanto, que a estrutura do princpio da proporcionalidade no aponta

    apenas para a perspectiva de um garantismo negativo (proteo contra os excessos do Estado), e,sim, tambm para uma espcie de garantismo positivo, momento em que a preocupao dosistema jurdico ser com o fato de o Estado no proteger suficientemente determinado direitofundamental, caso em que estar-se- em face do que, a partir da doutrina alem, passou-se adenominar de "proibio de proteo deficiente" (Untermassverbot). Este conceito, explicaBernal Pulido, refere-se estrutura que o princpio da proporcionalidade adquire na aplicaodos direitos fundamentais de proteo. A proibio de proteo deficiente pode definir-se comoum critrio estrutural para a determinao dos direitos fundamentais, com cuja aplicao podedeterminar-se se um ato estatal - por antonomsia, uma omisso - viola um direito fundamentalde proteo.17

    Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteopositiva e de proteo de omisses estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrentede excesso do Estado, caso em que determinado ato desarrazoado, resultando desproporcionalo resultado do sopesamento (Abwgung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade

    pode advir de proteo insuficiente de um direito fundamental (nas suas diversas dimenses),como ocorre quando o Estado abre mo do uso de determinadas sanes penais ouadministrativas para proteger determinados bens jurdicos. Este duplo vis do princpio da

    proporcionalidade decorre da necessria vinculao de todos os atos estatais materialidade daConstituio, e que tem como conseqncia a sensvel diminuio da discricionariedade(liberdade de conformao) do legislador.

    Criminal do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, unanimidade, rejeitou preliminar que suscitava oincidente de inconstitucionalidade do inciso IV do 3 o. do art. 10 da Lei 9.437/97 (que estabelecia um bis inidem), que a mesma Cmara, de h muito, vinha julgando inconstitucional, mas sem a remessa ao full bench,nos termos do art. 97 da CF. No havia como no suscitar o incidente, uma vez que no estava presente nenhumadas hipteses do pargrafo nico do art. 481 do CPC e tampouco se tratava de lei anterior a Constituio. Aoarrepio da Constituio, o rgo fracionrio entendeu que, antes de violar a Lei Maior, o dispositivo em telaentrava em choque com o dispositivo do Cdigo Penal que estabelece o princpio da reserva legal, verbis: ...oinciso IV do par. 3. do art. 10 da Lei 9.437/97 no padece necessariamente de inconstitucionalidade. Seu vcio outro e est relacionado com o princpio da reserva legal, este tambm consagrado na legislao ordinria(art. 1o. do CP), situao a fazer dispensvel o incidente de inconstitucionalidade para arredar a aplicao dodispositivo legal identificado. Mutatis mutandis, a partir de tal raciocnio, possvel afirmar que, repetisse oCdigo Penal todo o contedo da Constituio, e no haveria mais inconstitucionalidades... Na verdade, nestecaso, a 5a. Cmara, unanimidade, interpretou a Constituio de acordo com o Cdigo Penal, at porque o texto

    do Cdigo Penal, de 1940, adquire nova norma (novo sentido) exatamente pelo fundamento de validade que aConstituio de 1988.17 Ver, para tanto, BERNAL PULIDO, Carlos. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales.Madrid, CEPC, 2002, em especial pp. 798 e segs.

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    Sendo mais claro: "a noo de proporcionalidade no se esgota na categoria da proibiode excesso, j que vinculada igualmente a um dever de proteo por parte do Estado, inclusivequanto a agresses contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que seest diante de dimenses que reclamam maior densificao, notadamente no que diz com osdesdobramentos da assim chamada proibio de insuficincia no campo jurdico-penal e, porconseguinte, na esfera da poltica criminal, onde encontramos um elenco significativo deexemplos a serem explorados."18

    O mesmo autor, com muita propriedade, admite a extenso da regra daproporcionalidade no seu sentido de proibio de proteo deficiente ao processo penal.

    Com efeito, diz o autor que na seara do direito penal ( e isto vale tanto para o direito penalmaterial, quanto para o processo penal) resulta inequvoca vinculao entre os deveres de

    proteo (isto , a funo dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria daproteo dos bens jurdicos fundamentais, como elemento legitimador da interveno do Estadonesta seara, assim como no mais se questiona seriamente, apenas para referir outro aspecto, anecessria e correlata aplicao do princpio da proporcionalidade e da interpretao conforme aConstituio. Com efeito, para a efetivao de seu dever de proteo,19 o Estado - por meio deum dos seus rgos ou agentes - pode acabar por afetar de modo desproporcional um direitofundamental (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violao de direitosfundamentais de terceiros). Estas hipteses correspondem s aplicaes correntes do princpioda proporcionalidade como critrio de controle de constitucionalidade das medidas restritivas dedireitos fundamentais. Por outro lado, o Estado - tambm na esfera penal - poder frustrar o

    seu dever de proteo atuando de modo insuficiente (isto , ficando aqum dos nveis mnimosde proteo constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hiptese por sua vez,vinculada (pelo menos em boa parte) problemtica das omisses inconstitucionais.20

    Nesse sentido, veja-se alguns exemplos de incidncia da necessidade de sindicnciaconstitucional, tanto no sentido de alcanar excessos legislativos (bermassverbot) como dedeficincias de proteo atravs do direito penal (Untermassverbot):

    3.1. A extino da punibilidade do crime de estupro pelo casamento da vtima comterceiro: a inconstitucionalidade em face da proteo deficiente do legislador penal

    A possibilidade de extino de punibilidade pelo casamento (sic) da vtima com terceirapessoa nos casos de crimes sexuais (interessando, aqui, os casos de estupro e atentado violentoao pudor,porque alados categoria de hediondos21), est prevista no art. 107, VIII, do Cdigo

    18 Cfe. SARLET, Ingo. Constituio e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entreproibio de excesso e de insuficincia. In: Revista de Estudos Criminais n. 12, ano 3. Sapucaia do Sul, EditoraNota Dez, 2003, pp. 86 e segs.19 Nesse sentido, ver CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 5. Ed.Coimbra, Almedida, 2002, p. 1243.20 Cfe. SARLET, op.cit. (grifei).

    21 Esclareo que comungo da tese de que o crime de estupro mesmo na sua modalidade simples hediondo,conforme jurisprudncia majoritria, porm no pacfica, do STF (HC-81.288-1 Rel. Min. Maurcio Corra julgado em 17/12/01). Com efeito, entendo que os argumentos trazidos pelo Des. Amilton Bueno de Carvalho,em voto que conduziu deciso (Ap. 70003855335 5 Cmara Criminal do TJRS julgado em 27/02/02)

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    Penal. Trata-se de dispositivo inserido no Cdigo Penal em 1977, pelo qual extingue-se apunibilidade pelo casamento da vtima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, secometidos sem violncia real ou grave ameaa e desde que a ofendida no requeira o

    prosseguimento do inqurito policial ou da ao penal no prazo de 60 dias a contar dacelebrao, consolidando jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal. Mais grave que odisposto no aludido dispositivo so as decises de alguns tribunais, que estendem a benesse aoscasos de concubinato e at a unio estvel. Nesse sentido, a criticvel deciso do STF, que,embora no aplique a referida modalidade de extino de punibilidade, reconhece, inclusive, suaextenso ao concubinato:

    RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. Penal. Processo Penal. Estupro.Negativa de Autoria Erro de tipo. Vida desregrada da ofendida. Concubinato.

    (...)

    4. O casamento da ofendida com terceiro, no curso da ao penal, causa de extino dapunibilidade (CP, art. 107, VIII).Por analogia, poder-se-ia admitir, tambm, o concubinatoda ofendida com terceiro.Entretanto, tal alegao deve ser feita antes do trnsito em julgadoda deciso condenatria. O recorrente s fez aps o trnsito em julgado (RHC 79.788-1 Rel. Min. Nelson Jobim 2 Turma do STF julgado em 02/05/2000).

    Ora, no possvel que tal modo de ver a mulher possa permanecer (congelado) noimaginrio dos juristas mesmo aps todas as conquistas por ela obtidas nas ltimas dcadas. Noquero acreditar que, em pleno sculo XXI, continue-se a (mal)tratar a mulher desta forma. Nose pode olvidar, ainda, a relevante circunstncia de que os crimes de estupro e atentado violentoao pudor so hediondos. Assim, possvel concluir que o art. 107, VIII, do CP, no foirecepcionado pela Constituio,22 eis que incompatvel com a principiologia constitucional.

    contrria (nova) posio firmada pelo STF, mostram-se insuficientes e cientificamente contornveis, embora obrilho do seu prolator. Com efeito, no se trata, por bvio, da (ultrapassada) discusso voluntas legis versusvoluntas legislatoris. Tampouco, pode-se dizer que o STF utilizou-se de uma interpretao literal, que impliqueflagrante desproporcionalidade. Tambm no correto afirmar que, por haver duas interpretaes possveis,deve-se optar pela que favorece o mais dbil frente ao Leviat (sic). O ponto, (in)felizmente, no esse! O que

    importa saber se existe ou no coerncia entre o novo posicionamento do STF e a Constituio, toposhermenutico de todo ordenamento jurdico. E isso parece evidente! Alis, nesse sentido, de pronto, deve ser ditoque mesmo que fosse claro que a forma qualificada do estupro se caracteriza, ou no, como hedionda, aindaassim uma coisa parece bvia: o e conjuno coordenativa objeto de debates nas principais Cortes do pas no possui valor em si, como qualquer palavra. Textos no seguram nada, eis que s existem textos normados. Anorma, insisto e repito, sempre o produto da interpretao de um texto. Assim, filio-me tese de que o estuprosimples , assim como o atentado violento ao pudor, crime hediondo! Ademais, mesmo que com talposicionamento no se concorde, pergunto: qual a importncia em haver grave ameaa ou violncia, real ouficta? Ou melhor: necessrio haver violncia propriamente dita, como leses graves ou morte pois parece quea do estupro em si no basta , para que o ru no saia inclume no caso de a vtima casar-se com terceiro? Aresposta mais adequada Constituio no, razo pela qual a classificao da violncia praticada jamais

    poder ser critrio determinante para que se extinga a punibilidade do ru.22 De registrar que o aludido dispositivo nunca sofreu questionamento por parte da doutrina e da jurisprudncia.

    Ao contrrio: a doutrina dominantemente vem tecendo loas ao aludido dispositivo. Entrementes, nos autos doprocesso n. 70006451827 5a. Cmara Criminal do TJ-RS, sustentei a sua inconstitucionalidade (no-recepo),entretanto, sem xito. De qualquer modo, alvissareira a notcia de que a correo dessa anomalia legislativa foi,agora, finalmente efetivada, com a edio da Lei 11.106, de 2005, que revogou o malsinado inciso VIII do art.

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    Desse modo, em que pese o anacrnico e inconstitucional art. 107, VIII, apontar em direodiversa, entendo e peo desculpas antecipadas pela ironia que o princpio da dignidade da

    pessoa humana (art. 1, III, da CF), um dos principais direitos fundamentais assegurados emnossa Constituio, tambm se aplica s mulheres! Trata-se, pois, de tpico exemplo deaplicao da proibio de proteo deficiente (Untermassverbot). A Constituio brasileiraaponta, inequivocamente, para a obrigao de o Estado proteger a dignidade da pessoa humana,alm de outras garantias principiolgicas conquistadas nesta fase do ps-positivismo (ouneoconstitucionalismo).

    Portanto, h uma via de mo dupla na proteo dos direitos humanos-fundamentais: de umlado, o Estado deve proteg-los contra os excessos praticados pelo Leviat (como algunspenalistas liberais preferem ainda chamar o Estado nesta quadra da histria!); mas, de outro, oEstado deve tambm proteg-los contra as omisses (proteo deficiente), o que significa dizerque h casos em que o Estado no pode abrir mo da proteo atravs do direito penal para a

    proteo do direito fundamental.

    H, pois, uma sensvel alterao no papel do direito e do Estado, que ocorre exatamentequando o Estado, de potencial opositor a direitos fundamentais,23 passa a ser o seu protetor,circunstncia facilmente constatvel nos textos constitucionais forjados a partir do segundo ps-guerra.

    3.2. A inconstitucionalidade (parcial sem reduo de texto) do art. 2o. da Lei 10.259: a faltade liberdade de conformao do legislador para (des)classificar crimes de menor potencialofensivo. A violao do princpio da proporcionalidade por proteo deficiente(Untermassverbot).

    Institudos pela Lei 9.099/95, os Juizados Especiais sofreram radical alterao no anode 2001, atravs da edio da Lei 10.259, que, entre outras novidades, acrescentou, a partir domesmo critrio utilizado na Lei 9.099/95, que so considerados infraes penais de menor

    potencial ofensivo os crimes que a lei comine pena mxima no superior a dois anos, oumulta. Desde ento, duas questes ficaram em aberto:

    107 do Cdigo Penal. De todo modo, merece registro o julgamento do Recurso Extraordinrio n. 418.376 peloSupremo Tribunal Federal, em que se discutiu a aplicao da extino da punibilidade prevista no (agorarevogado) inc. VIII do art. 107 do Cdigo Penal. Referido dispositivo extinguia a punibilidade dos crimessexuais (estupro e atentado violento ao pudor) na hiptese de casamento da vtima com o ru. Em face dodispositivo da Constituio (art. 226, 3.) que equiparou a unio estvel ao casamento, determinado cidadobuscou, via recurso extraordinrio, a extenso do favor legal, j que vivia concubinamente com a vtima. Trs posicionamentos se formaram na Suprema Corte: o primeiro sustentava a aplicao do dispositivo porinterpretao analgica, dando-lhe, assim, o mximo de eficcia; o segundo, defendido pela maioria, entendeuque as circunstncias do fato (estupro de uma menina de 9 anos) impediam a concesso do favor legis, nopodendo ser aplicada a interpretao jurisprudencial que estende o conceito de casamento para os casos deconcubinato e unio estvel; apenas a terceira posio feriu a contradio principal do problema, ao colocar em

    xeque a prpria validade do dispositivo autorizador da extino da punibilidade, e o fez lanando mo ao que

    consta, pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal da dupla face do princpio da proporcionalidade,atravs da invocao da proibio deficiente dos direitos fundamentais (Untermassverbot).23 Nesse sentido, ver a interessante abordagem feita por Paulo Ferreira da Cunha, no seu A Constituio doCrime. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 89 e 90.

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    a) constitucional estabelecer o montante da pena (mnimo de um ano na Lei 9.099/95 emximo de dois anos na Lei 10.259/01) como critrio de aferio do que seja menor oumaior potencial ofensivo;

    b) tem o legisladorcarta branca para estabelecer, sem limitaes no que concerne teoria dobem jurdico, o que delito de menor potencial ofensivo?

    De pronto, parece-me no aceitvel e tampouco vlido que uma penada legislativaequipare bens culturalmente to diversos dentro de uma soluo que, provavelmente, face ao

    quadro de descrdito geral da populao em relao ao sistema penal e aos poderes pblicos,venha suscetibilizar ainda mais o sentimento de reconhecimento dos indivduos como

    pertencentes a uma comunidade de direito. O direito penal tambm tem esta funo de,mediante a proteo de determinados bens jurdicos gerar este sentimento de reconhecimento.

    Assim, no vacilo em afirmar que a possibilidade de transao penal24 estendida a bens jurdicos to diversos porque desclassificados para o mbito da menor ofensividade -,atravs de uma artificial isonomia legal, lentamente ir corromper alguns valores de relevanteimportncia dentro do nosso pacto social e jurdico.

    nesta verdadeira "isonomia" s avessas (ou isonomia ad-hoc) que reside, pois, a

    primeira violao da Constituio Federal, uma vez que, se a Constituio estabelece que oBrasil uma Repblica Federativa, que se institui como Estado Democrtico de Direito, porque, seguindo o moderno constitucionalismo,fica implcito que estamos diante de umaConstituio com acentuado contedo normativo. Isto, evidncia, acarreta compromissos einexorveis conseqncias no campo da formulao e aplicao das leis.

    No h dvida, portanto, que as baterias do direito penal do Estado Democrtico deDireito devem ser direcionadas preferentemente para o combate dos crimes que impedem arealizao dos objetivos constitucionais do Estado e para os que violam direitos fundamentais,assim como os crimes que ofendem bens jurdicos inerentes ao exerccio da autoridade do

    Estado (desobedincia, desacato), alm das condutas que ferem a dignidade da pessoa, como o

    abuso de autoridade, sem falar nos delitos praticados contra o meio ambiente, as relaes deconsumo, crimes tributrios, etc..

    Conseqentemente, torna-se necessrio que se faa a diferenciao entre bens jurdicosindividuais e bens jurdicos sociais (transindividuais), para que se torne possvel uma adequadatutela dos mesmos por via de lei penal, o que claramente no se verificou na indigitada Lei n.10.259/01. Isto implica a renncia da neutralidade estatal liberal, uma vez que o Estado neutrono pode defender adequadamente o ambiente social necessrio para a autodeterminao.

    Nesse sentido, no parece razovel supor que delitos como abuso de autoridade,desacato, crimes contra o meio-ambiente, crimes contra crianas e adolescentes, crimes contra a

    24 Importa informar que a transao penal redunda em pagamento de uma ou mais cestas bsicas dealimentos pelo ofensor, cujo valor raramente ultrapassa o valor de duzentos dlares (aproximadamente doissalrios mnimos).

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    ordem tributria, crimes nas licitaes, para citar apenas alguns, possam ser epitetados como demenor potencial ofensivo (sic) a partir de uma simples formalidade legislativa.

    O legislador ordinrio, ao estabelecer que qualquer infrao cuja pena mxima noultrapasse 02 (dois) anos uma infrao de menor potencial ofensivo, sem exigir qualqueroutro requisito de ordem objetiva ou subjetiva, violou, frontal e escandalosamente, preceitosfundamentais e a principiologia do Estado Democrtico de Direito previsto na Constituio.Mais do que isto, violou o princpio da proporcionalidade, ao proteger de forma deficiente, bens

    jurdicos relevantes.

    Em face do exposto, venho propondo 25 que, na aplicao do pargrafo nico do art. 2

    da Lei 10.259/01 seja declarada a nulidade parcial do aludido dispositivo sem reduo de texto,afastando-se a sua incidncia nas hipteses de infraes penais que, efetivamente, no podemser classificadas como de menor potencial ofensivo.

    toda evidncia, a tarefa de especificar o elenco de delitos que devem ser excludosno nada fcil. Se de um lado h um leque de infraes que, nitidamente, devem ser excludasdo rol dos crimes que tenham menor potencial ofensivo, h outro conjunto de infraes queficam em uma zona cinzenta. De todo modo, como se trata de aplicar a tcnica dainconstitucionalidade parcial sem reduo de texto, pela qual retiraremos a incidncia do

    pargrafo nico do artigo 2o em alguns tipos penais, possvel deixar assentado, desde j e comrazovel margem se segurana, um rol inicial de delitos que jamais poderiam ter sido epitetadoscomo de menor potencial ofensivo. Assim:

    a) Infraes previstas no Cdigo Penal: exposio ou abandono de recm nascido (art. 134) esubtrao de incapazes que equivale, mutatis mutandis, a um seqestro (art. 249); violao dedomiclio, cometido durante a noite ou em lugar ermo, ou com o emprego de violncia ou dearma ou por duas ou mais pessoas (art. 150, par. 1 ); atentado ao pudor mediante fraude (art.216); desacato (art. 331), desobedincia a deciso judicial sobre perda ou suspenso de direito(art. 359) e fraude processual (art. 347);

    b) infraes previstas em leis esparsas: crimes contra a ordem tributria (art. 2 da Lei 8.137);crimes ambientais (art. 45 da Lei 9.605); crimes cometidos contra criana e adolescente (arts.228, 229, 230, 232, 234, 235, 236, 242, 243 e 244 da Lei 8.069); crime de porte ilegal de arma

    25 Na 5 Cmara Criminal do Tribunal de Justia do RS, a tese da inconstitucionalidade parcial sem reduo detexto (Teilnichtigerklrung ohne Normtext Reduzierung) tem sido rejeitadasob o fundamento de que, na medidaem que a norma (art. 2 da Lei 10.259/01) traz benefcios ao cidado-ru, a declarao da inconstitucionalidadeparcial de algumas incidncias importa em afronta aos princpios bsicos do direito penal e inverso da leituraconstitucional da legislao penal interpretao restritiva de norma para beneficiar o dbil: dirigida para

    dentro, na direo autoritria! (sic) ( v.g. , por todos, o Proc. n. 70005655584). possvel perceber um ntidovis liberal-individualista na tese esboada pelo aludido rgo Fracionrio, que nitidamente obstaculiza aspossibilidades de extenso da funo de proteo penal aos bens de interesse para alm da relao inter-individual.

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    26(art.10, caput, e pargrafo primeiro, incisos I, II e III, da 10.437); crimes ocorridos naslicitaes (arts. 93, 97 e 98 da Lei 8.666); crimes de abuso de autoridade.

    Ou seja, a pergunta que cabe : a transgresso a um delito que est umbilicalmenteligado a um bem jurdico protegido pela Constituio pode ser (des)classificado como de menor

    potencial ofensivo? Se a resposta for negativa, estar-se- diante de uma indevida incluso no rolestabelecido pela Lei 10.259, em flagrante violao do princpio da proporcionalidade por

    proteo deficiente do bem jurdico atravs do direito penal.

    Dito de outro modo, no se ignora que a proteo de bens jurdicos no se realizasomente atravs do direito penal. sabido que o direito penal no deve intervir quando houtros meios de proteger os bens em questo (aqui tambm no deve ser esquecido e nemsubestimado o valor simblico que representa o direito penal enquanto interdito, enquanto limiteque separa a civilizao da barbrie, questo bem assinalada na metfora do contrato social emHobbes e na figura do superego freudiano). A pena tem a misso de proteger subsidiariamenteos bens jurdicos.

    Entretanto, no h precedentes que comprovem que bens jurdicos relevante(conseqentemente, no insignificantes) possam ser protegidos to somente por medidasadministrativas ou simulacros de penas alternativas, como o caso da institucionalizao

    das cestas bsicas. Por isto, no era livre o legislador ptrio para dispor do grau deofensividade de determinadas infraes, desclassificando a intensidade dessa ofensividade a

    partir de um critrio linear representado pela graduao da pena, com o que foramisonomizadas , v.g., infraes como leses corporais leves, perturbao do sossego, maustratos em animais, notoriamente tidas e reconhecidas como de menor potencial ofensivo, cominfraes como sonegao de tributos, crimes contra crianas, abuso de autoridade e crimescontra o meio-ambiente, notoriamente reconhecidas na tradio (entendida no sentido que lhe dHans-Georg Gadamer no seu Wahrheit und Methode) como sendo de mdia e alta

    potencialidades lesiva.

    Nesse sentido, considero correta a assertiva de Roxin, para quem o legislador deve

    recorrer, subsidiariamente, contraveno e multa administrativa, em vez da incriminao e pena, somente quando a perturbao social pode ser anulada com a sano menos onerosa. evidente que esse limite difcil de traar. Entretanto, assevera, no campo nuclear do direito

    penal as exigncias de proteo subsidiria de bens jurdicos requerem necessariamente umcastigo penal em caso de delitos de um certo peso! Em contrapartida, diz Roxin, ainda que em

    princpio se incluam condutas como o furto e a fraude (estafa) neste mbito nuclear de

    26 No crime de porte ilegal de arma que se pode aquilatar a dimenso da crise do direito. Com efeito, como quepara demonstrar o total afastamento da materialidade da Constituio, o legislador, primeiro atravs da Lei10.259/01, rebaixou o delito categoria crime de menor potencial ofensivo (sic), para, ao depois, pelarecentssima Lei 10.826, catapultar o mesmo delito ao rol dos crimes de grande potencial ofensivo, a ponto

    de coloc-lo como inafianvel (sic). Como no h critrio, nada surpreenderia se, amanh, o legisladoroptasse por descriminalizar o porte de arma. De qualquer sorte, tais idas e vindas do legislador noencontrar(i)am qualquer obstculo de ndole constitucional no seio dos operadores jurdicos. Afinal, lei vigente lei vlida...! E pronto!

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    exigncia de punio por parte do direito penal, nada se oporia a que os casos de bagatelas nestecampo (p. ex., furto de gneros comestveis) fossem tratadas como contravenes.27

    Observe-se, desse modo, que a discusso dos limites entre condutas que devem serconsideradas como crimes e as que devem ser epitetadas como contraveno, primeiramente de tipo quantitativo; entretanto, quando se ultrapassa o terreno das condutas insignificantes (semrelevncia penal) assim entendidas na tradio jurdica a discusso necessariamenteassumir foros qualitativos. E neste ponto que a Constituio deve ser o topos conformadordos critrios de aferio do conceito de delitos punveis com pena de priso, substituveis por

    restritivas de direito ou no, e as condutas que podem ficar no mbito contravencional ou noterreno da transao penal. Nesse sentido, veja-se a lio de MAURACH e ZIPF, que, comfundamento da jurisprudncia do Bundesverfassungsgericht, assinalam que el legislador deberespetar los limites establecidos por el derecho constitucional en sus decisiones relativas a

    penalizar o amenazar con multas a ciertos tipos de conducta, pois que la idea de justicia,inserta en el principio de Estado de Derecho, exige que el tipo y la consecuencia jurdica (penao multa) estn adecuadamente armonizados entre si (BVerfGE 27, 18, 29). Nesse mesmocontexto, na definio entre uma e/ou outra sano seguem os autores resta claro que serainadmisible desde el punto de vista del derecho constitucional, que ciertos ilcitosindudablemente pertenecientes al ncleo del derecho penal fueren castigados con multa y, a lainversa, que contravenciones propias del ilcito administrativo, lo fueren con pena criminal. Emcomplementao, sustentam, em referncia dico do Tribunal Constitucional alemo, queaun cuando no se pueda trazar una lnea divisoria exacta para el mencionado ncleo,basndose em la escala de valores contenida em la ley fundamental, es posible indagar comcerteza suficiente cul ilcito pertenece inequvocamente a este ncleo y cul no (BVerfGE, loc.cit.).28

    Ou seja, o critrio meramente quantitativo utilizado, por exemplo, na Lei 10.259/01 somente pode vingar no mbito de uma certa homogeneidade de infraes; na ocorrncia deuma heterogeneidade, o critrio deve ser qualitativo.

    3.3. A inconstitucionalidade do art. 94 da Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) e airresponsabilidade legislativa: a necessria denncia da ausncia de critrios para aaferio da danosidade de uma conduta

    O mesmo raciocnio aplicado retro Lei 10.259 vale para a recente Lei 10.741 (Estatutodo Idoso), pela qual (art. 94) inacreditavelmente foram rebaixados categoria de crimes demenor potencial ofensivo todos os crimes previstos naquela lei, desde de que a pena,abstratamente considerada, no ultrapasse 4 anos29. Isto faz com que pasmem - crimes como

    27 Cfe. ROXIN, Claus.Derecho Penal Parte General, Tomo I. Madrid, Civitas, pp. 72 e 73.28 Cfe. MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz,Derecho Penal Parte General 1, Buenos Aires, Astrea, traduo da7 edio alem, 1994, p. 23.29 Em face da perplexidade gerada pela nova lei, amplos setores da dogmtica jurdica ao invs de admitir a

    inconstitucionalidade optaram pelo tangenciamento. Com efeito, passou-se a entender que aos crimesestabelecidos no Estatuto do Idoso apenas se aplica o procedimento (sumarssimo - arts. 77 a 83) da Lei n.9.099/95, expungindo-se a possibilidade de composio civil e transao penal. Ou seja, fez-se uma releitura tambm inconstitucional - do procedimento previsto na referida lei, como se a transao e a composio no

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    deixar de prestar assistncia a idoso, com resultado morte, expor a perigo a integridade e asade, fsica ou psquica, do idoso, submetendo-o a condies desumanas, com a sujeio destea trabalho escravo e disso resultando leso corporal grave, sejam levados aos juizados especiaiscriminais, estando aptos a receber benesse da transao penal, atravs da qual, mediante o

    pagamento de uma ou algumas cestas bsicas, apersecutio criminis estar esgotada!

    Pelos argumentos j expostos, tenho como absolutamente inconstitucional, por violaoda clusula de proibio de proteo deficiente (Untermassverbot), o dispositivo art. 94 - queremete os delitos do Estatuto do Idoso aos Juizados Especiais. Sejamos claros: estamos diante de

    uma arrematada fico metafsica, onde se perde totalmente aquilo que na fenomenologiahermenutica chamamos de diferena ontolgica. O legislador parece ter recebido uma ntidainspirao sofstica-nominalista, como a de um personagem de Alice no Pas das Maravilhas,que diz: Eu dou s palavras o sentido que quero!. Ou seja: No h tradio (no sentidohermenutico). H uma nominao! Dito de outro modo: para o legislador, o crime no demenor ou maior potencial ofensivo porque exsurgente de uma relao entre o tipo penal e o bem

    jurdico a ser protegido, mas, sim, porque a lei o nomina de menor potencial ofensivo...!

    Ora, evidente que, se por um lado, um crime no um crime porque o tipo penal,ontologicamente (ontologia clssica), refletiria a essncia da coisa designada (concepo realistadas palavras de Plato, a partir da qual, p.ex., na palavra estupro estaria a essncia da

    estuprez sic), por outro, tambm parece evidente que um delito no tem sua concepo deofensividade alterada simplesmente porque recebeu nova denominao (no caso, o epteto demenor potencial ofensivo). Para no ir muito longe, at mesmo a semiologia de Saussure

    poderia dar uma resposta ao problema. Afinal, como dizia o mestre genebrino,se queres saber o significado de um significante, pergunte por a...! Dizendo de um modo mais simples:perguntemos por a se o cidado considera que a exposio a perigo da vida de um idoso ou asua privao de alimentos, uma infrao de natureza, qui, levssima, a ponto de poderem sertransacionadas por cestas bsicas (sic)?30

    fizessem parte do procedimento. Ora, se existe uma ordem (primeiro possibilitada a composio civil e depoisofertada a transao), parece bvio que se est diante de um procedimento. O que quero registrar que, apretexto de resolver paradoxos de uma lei, no se pode tangenciar o necessrio exame de constitucionalidade,que precede qualquer exame no plano infraconstitucional. Por isto, apesar da interpretao que a dogmticajurdica tem conferido ao aludido dispositivo (art. 94), continuo a entender que o mesmo inconstitucional.30 Apraxis tem demonstrado dois problemas, que levam banalizao da idia de transao penal e, assim, dos prprios Juizados Especiais Criminais: o primeiro decorre da construo de penas alternativas sociais,representadas pelas j conhecidas cestas bsicas, sobre o que no necessrio muito dizer; o segundo decorreda equivocada compreenso dos Juizados Especiais, naquilo que diz respeito ao papel dos conciliadores(leigos), que, na prtica, assumem o papel de magistrados nos JEC`s. Deixar a cargo dos conciliadores a tarefade transacionar abrir mo da funo jurisdicional. Quando a Constituio estabelece a presena deconciliadores, o faz em forma de prestao de auxlio. Em nenhum momento o conciliador pode assumir o papelreservado estritamente ao juiz togado. Conciliador no tem funo jurisdicional. No pode ele realizar qualquer

    ato judicial. O conciliador sequer ocupa cargo. Apenas exerce uma funo administrativa. Com isto, a tarefa dojuiz togado no meramente a de homologar (ou no) aquilo que os conciliadores conciliaram. A presena fsicado juiz togado condio de possibilidade da validade do ato. Entender o contrrio conspurcar a Constituio esua principiologia. Qualquer transao feita sem a presena do juiz togado nula, pois.

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    No tenho dvidas em afirmar que, desta vez (ou uma vez mais), o legislador foi almde suas chinelas. Logo, deve ser corrigido, atravs da jurisdio constitucional.

    A questo, pois, muito mais grave do que possa parecer. O art. 94 da Lei 10.741 tpico exemplo de um pragmatismo inconseqente que destri a diferena. Esse pragmatismovira ceticismo, porque, na medida em que cada ato humano tem um contedo ftico, torna-seabsolutamente problemtico o processamento da validade desse ato. Com efeito, se elimino oelemento diferencial que identifica cada ato (valorado como delito), caio no cinismo, uma vezque tanto faz qual o delito do extenso rol epitetado como de menor potencial ofensivo que vou

    cometer, porque a punio a mesma, produto de uma transao.

    Por isso, insisto, est-se diante de um pragmatismo irresponsvel. Ora, a delinqnciaocorre quando um ato vulnera algum valor. No momento que a vulnerabilidade subsumida emuma espcie de impunidade de cunho universalizante em face da equiparao ad hoc deinfraes absolutamente dspares e discrepantes entre si desaparece a funo do direitoenquanto interdito. A lei se auto-suprime, em face da possibilidade de todos no mais cumpri-la;logo, no ser mais lei. Essa impunidade de cunho universalizante nada mais do que o

    produto de uma pasteurizao das transgresses, no interior do qual no d mais para distinguirum ente de outro.

    Remeter condutas com penas de at 4 anos para o rol dos crimes quase-bagatelaresou proto-insignificantes, misturando os mais variados tipos de delitos, uma inequvocademonstrao de que, para o sistema jurdico, possvel delinqir de 50 ou mais modosdiferentes, tendo como contrapartida uma mesma sano... Enfim, est-se diante de uma zonacinzenta, em que todos os gatos so pardos.

    Numa palavra: apontando apenas a inconstitucionalidade do art. 94, deixo de referir,neste momento, outras inconstitucionalidades que poderiam ser apontadas na citada lei,especialmente no que tange ao apenamento de algumas infraes, que seguramente lesam o

    princpio da proibio de proteo deficiente, como o caso do art. 97, pargrafo nico, 31 quedetermina como pena para o caso de morte do idoso o mximo de 3 anos, pena que inferior

    at mesmo ao cometimento de um estelionato simples...! De qualquer modo, isto no deve gerarmuita surpresa, mormente se levarmos em conta que o crime de adulterao de chassis deautomvel pode acarretar uma pena que varia entre 3 e 8 anos...!

    3.4. A inconstitucionalidade do art. 9 da Lei n. 10.684/03): ainda um caso de proibio deproteo (penal) deficiente

    31 Lei 10.741/2003, art. 97:Deixar de prestar assistncia ao idoso, quando possvel faz-lo sem risco pessoal,em situao de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistncia sade, sem justa causa, ou no

    pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pblica:Pena deteno de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.Pargrafo nico. A pena aumentada de metade, se da omisso resulta leso corporal de natureza grave, etriplicada, se resulta a morte.

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    Seguindo a tradio inaugurada pela Lei 9.249, que, no art. 34, estabelecia a extino depunibilidade dos crimes fiscais pelo ressarcimento do montante sonegado antes do recebimentoda denncia, foi promulgada, j no governo Luis Incio Lula da Silva, a Lei 10.684, que no seuart 9, estabeleceu a suspenso da pretenso punitiva do Estado, referentemente aos crimes

    previstos nos arts. 1o. e 2o. da Lei 8.137/90, e nos arts. 168-A e 337-A do Cdigo Penal, duranteo perodo em que a pessoa jurdica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiverincluda no regime de parcelamento. Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extino da

    punibilidade dos crimes antes referidos quando a pessoa jurdica relacionada com o agenteefetuar o pagamento integral dos dbitos oriundos de tributos e contribuies sociais, inclusive

    acessrios.

    De pronto, cabe referir que inexiste semelhante favor legal aos agentes acusados daprtica dos delitos do art. 155, 168, capute 171 do Cdigo Penal, igualmente crimes de feiopatrimonial no diretamente violentos. Tal circunstncia demonstra, j de incio, a viso demundo do legislador (e do Poder Executivo) acerca da teoria do bem jurdico. Ou seja, para oestablishment, mais grave furtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuiessociais.

    Na esteira do que venho sustentando at este momento, calha novamente a pergunta:tinha o legislador discricionariedade (liberdade de conformao) para, de forma indireta,

    descriminalizar os crimes fiscais (lato sensu, na medida em que esto includos todos os crimesde sonegao de contribuies sociais da previdncia social)? Poderia o legislador retirar darbita da proteo penal as condutas dessa espcie?

    Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. Nesse sentido, importantetrazer colao parte da sentena 55/96, do TC da Espanha, que, ao meu sentir, fere com

    preciso a discusso da matria. Segundo aquele Tribunal, desde a perspectiva constitucionalsomente cabe classificar a norma penal como no necessria (isto , a no interveno dodireito penal) quando, luz do raciocnio lgico, de dados empricos no controvertidos e doconjunto de sanes que o mesmo legislador tem estimado como necessrias para alcanar os

    fins de proteo anlogos, resulta evidente a manifesta suficincia de um meio alternativomenos restritivo de direitos para a consecuo igualmente eficaz das finalidades desejadas pelolegislador.

    No caso presente, no h qualquer justificativa de cunho emprico que aponte para adesnecessidade da utilizao do direito penal para a proteo dos bens jurdicos que estoabarcados pelo recolhimento de tributos, mormente quando examinamos o grau de sonegaono Brasil. Mais do que isto, para abrir mo mesmo que de forma indireta da proteo penaldo bem jurdico nsito a idia de Estado Social, o legislador deveria demonstrar, antes, que osmeios alternativos sano, como o pagamento do tributo antes do recebimento da denncia,tenha, nos ltimos anos mormente a partir da Lei 9.249 proporcionado resultados queapontem, de forma efetiva, para a diminuio da sonegao de tributos. 32 Ao contrrio, parece

    32 Luciano Feldens desnuda com acuidade o problema, demonstrando facilmente o contrrio: a Secretaria daReceita Federal diagnosticou que, no ano de 1998, 11,7 milhes de pessoas e 464.363 empresas no declararamimposto de renda. Todavia, tiveram capacidade financeira suficiente para movimentar nas instituies

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    que, com a instituio da previso de extino da punibilidade prevista desde a Lei 9.249, e aconseqente retirada do direito penal dessa esfera de proteo do bem jurdico, houveconsidervel aumento na sonegao, a ponto de, agora, introduzir-se a frmula do REFIS, peloqual o sonegador aquinhoado com prazos que, por vezes, chegam a mais de cem anos (sic).33

    No se ignora que a determinao acerca do tipo de proteo (sano) a ser aplicada aosbens jurdicos tarefa precpua do legislador. Isto parece mais do que bvio, sob pena deviolao do princpio da reserva legal. Entretanto, como ficou bem assentado pelo

    Bundesverfassungsgerichtna discusso do acrdo BVerfGE 88, 203, tambm verdade que o

    legislador dever observar a proibio de proteo deficiente, sendo que, sob tais circunstncias,estar ele sujeito ao controle jurisdicional de constitucionalidade, uma vez que e aqui vem aquesto principal daquele julgamento, as prescries que o legislador expede devem ser

    suficientes a uma adequada e efetiva proteo, devendo estar fundamentadas em cuidadosasinvestigaes e em avaliaes plausveis.34

    Isto porque, muito embora o direito penal deva ser utilizado apenas como ultima ratio, parece evidente que existem situaes e hipteses em que o bem jurdico no estariasuficientemente protegido, mormente em uma comparao com outras formas de proteo.35

    financeiras (bancos)R$ 341,6 bilhes, valor esse que escapou integralmente ao fisco. Naquele exerccio (1998),

    o Produto Interno Bruto brasileiro, ndice que registra toda a produo de bens e servios do pas e representa,em termos monetrios, o porte da economia nacional, alcanou o patamar de R$ 899,8 bilhes. Em face dessesdados, o Ministrio Pblico Federal no Rio Grande do Sul, atuando em paralelo Receita Federal, procedeu auma minuciosa investigao, por meio da qual houve por identificar, a partir de lanamentos efetuados nascontas correntes a ttulo de Contribuio Provisria de Movimentao Financeira (CPMF) verificados no ano de1998, que naquele perodo transitaram pelas contas correntes de apenas 15 (quinze) pessoas fsicas o montanteastronmico de R$ 10.300.000.000,00 (dez bilhes e trezentos milhes de reais), sem que R$ 1,00 (um real)tenha sido recolhido aos cofres pblicos. Em um clculo virtual, supondo-se que esse dinheiro houvesse sidotributado na pessoa fsica (IRPF), o resultado da operao oportunizaria pagar, durante 35 (trinta e cinco) anos,um salrio mnimo para 1.410.000 (um milho, quatrocentos e dez mil) trabalhadores do Brasil. Acasoretornemos ao quadro nacional, ainda que venhamos a admitir que em face de uma aplicao financeiradeterminada os valores manejados possam espelhar o retrato de uma segunda ou terceira tributao havida sobreo mesmo numerrio, verificaremos que no universo das contas correntes de 9.873.564 (nove milhes, oitocentos

    e setenta e trs mil, quinhentos e sessenta e quatro) pessoas fsicas que declaram uma renda de R$314.350.000,00 (trezentos e quatorze milhes, trezentos e cinqenta mil reais), houve uma movimentao

    financeira de R$ 1.321.532.000.000,00 (um trilho, trezentos e vinte e um bilhes, quinhentos e trinta e doisbilhes de reais). margem dessa questo, ainda caberia mencionar a evaso de divisas provocada por meio dasconhecidas contas CC-5, as quais, alm de ativos lcitos, propuseram-se, durante longo perodo, a subsidiar aremessa internacional de dinheiro ilegalmente obtido, fazendo a primeira perna de um processo de lavagem decapitais. Basta referir que apenas entre os anos de 1992 e 1998, saram do pas, por meio dessas contas, R$124.000.000.000,00 (cento e vinte e quatro bilhes) de reais. Cfe. Feldens, Luciano. Tutela Penal dos Crimes doColarinho Branco. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002.33 Para tanto, ver FELDENS, Tutela Penal, op.cit.34BVerfGE, 88, 203..35 Ressalte-se, aqui, que h autores que chegam a colocar em dvida essa alternativa entre direito penal eoutras medidas aptas para proteo do bem jurdico, pela simples razo de que, relativamente aos bens

    constitucionais significativos, a sano penal deve ser adotada mesmo que se pudessem conseguir os interessesda disciplina recorrendo a outras sanes; em caso contrrio acentuar-se-ia o papel pragmtico do direito penal einstrumental da pena, com prejuzo de sua funo estigmatizante e da reafirmao do valor tutelado. DOLCINI,Emilio e MARINUCCI, Giorgio, Constituio..., p. 184.

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    Nesse sentido, no tenho dvidas em afirmar que a medida alternativa pagamento do tributoantes do recebimento da denncia no rene condies de ser eficaz para atingir os fins doEstado, que a arrecadao de tributos, para implementar polticas pblicas a qual est obrigado

    pela frmula do Estado Social prevista na Constituio.Por outro lado, deveria causar espanto comunidade jurdica o fato de o legislador no

    abrir mo do direito penal para combater delitos menos relevantes no que pertine a suadanosidade social - como o furto e apropriao indbita, e, nos casos de crimes mais gravescomo os crimes fiscais, agir de outro modo, oferecendo a possibilidade de o sonegador efetuar oressarcimento do valor amealhado dos cofres pblicos.36 No limite, poder-se-ia propor, na

    medida em que a frmula adotada pela Lei 10.826 (pagamento do valor sonegado portanto, deforma indireta, subtrada) se mostre eficaz para a proteo do bem jurdico, a extenso dessa

    frmula aos demais crimes contra o patrimnio, desde que cometidos sem violncia ou graveameaa...! Ou seja, poder-se-ia tambm permitir que o ladro e o estelionatrio devolvessem ares furtivae at em suaves prestaes (espcie de REFIS da patulia) extinguindo-se, ipso

    facto, a punibilidade, nos mesmos termos dos crimes fiscais! No fundo, a previso do art. 9 da Lei 10.684 nada mais faz do que estabelecer a

    possibilidade de converter a conduta criminosa prenhe de danosidade social em pecnia,favor que negado a outras condutas. Neste ponto, calha registrar a objeo feita por Ferrajoli amonetarizao do direito penal:ningn bien considerado fundamental hasta el punto de justificar la tutela penal puede sermonetarizado, de modo que la previsin misma de delitos sancionados con penas pecuniariasevidencia o un defecto de punicin (si el bien protegido es considerado fundamental) o, msfrecuentemente, un exceso de prohibicin (si tal bien no es fundamental).37

    Desse modo, quando o legislador protege deficientemente determinados bensfundamentais e ningum pode negar que os crimes fiscais lesam direitos fundamentais dediversas dimenses a jurisdio constitucional deve intervir, declarando a invalidade dareferida lei que protege deficientemente os bens jurdicos.

    Vale lembrar que o Procurador-Geral da Repblica ingressou com Ao Direta deInconstitucionalidade contra o aludido art. 9 (ADin 3002). O fundamento aponta para fato deque o texto padece de inconstitucionalidades de ndole formal e material. Segundo anotou o

    Procurador-Geral da Repblica o art. 9 da Lei n. 10.684, de 30 de maio de 2003, fere o princpio republicano (arts. 1o. e 3o. da Constituio da Repblica), bem como seussubprincpios concretizadores, como a igualdade (art. 5o, caput), a cidadania (art. 1o., II e par.nico) e a moralidade (art. 37, caput), isso porque os benefcios fiscais que suspendem aexigibilidade do crdito tributrio, de um modo geral, e o parcelamento tributrio, de modoespecfico, engendram regras que excepcionam o princpio republicano, pois, com a

    Repblica, desaparecem os privilgios tributrios de indivduos, de classes ou de segmentos dasociedade, razo pela qual todos devem ser alcanados pela tributao.

    36 Da porque e a advertncia de Luciano Feldens - a descriminalizao direta ou indireta dessas condutash de passar por um crivo de razoabilidade que venha a discernir situaes a serem evidentemente distinguidas(v.g., situaes de mero inadimplemento em comparao com as gigantescas fraudes fiscais antes referidas), sob

    pena de esvaziamento do contedo do dever constitucional em relao queles que o descumprem deliberada efraudulentamente, hiptese a traduzir situao de evidente desigualdade jurdica em relao queles que oobservam rigorosamente.37 Cfe. FERRAJOLI, Luigi,Derecho y Razn Teoria del Galantismo Penal. 2 ed. Madrid: Trotta, p. 477.

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    Em sntese, mais do que a violao formal das normas que tratam do processolegislativo, o art. 9 da Lei 10.684 inconstitucional porque viola o princpio da proibio de

    proteo deficiente (Untermassverbot). Afinal, o legislador federal no tem liberdade deconformao para retirar a proteo penal dos crimes de sonegao de tributos, que so bens

    jurdicos de ntida feio transindividual. Assim como o legislador deve observar a devidaproporcionalidade no que concerne proibio de excesso (bermassverbot), a idia matriz deEstado Democrtico de Direito aponta para a necessidade de tambm ser observada a devida

    proporcionalidade no dever de proteger bens jurdicos fundamentais atravs do direito penal.

    3.5. A inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto (Teilnichtigerklrung ohneNormtextreduzierung) do crime de porte de arma aqui uma clara hiptese de violao daclusula de proibio de excesso (bermassverbot)

    Aps acirrados debates no Congresso Nacional havia propostas proibindo a prpriacomercializao de armas no territrio nacional - , e depois que a Lei 10.259, no ano de 2001,alara o crime de porte ilegal de arma categoria de infrao de menor potencial ofensivo(sic), foi aprovado, no dia 22 de dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento (Lei n.10.826/03), aumentando as penas e estabelecendo outros regramentos acerca da matria,

    inclusive a proibio de concesso de fiana (art. 14, pargrafo nico).38

    No se coloca em dvida, ab initio, a necessidade de criminalizar determinadascondutas relacionadas ao emprego de armas, sua fabricao, vendas, etc. Parece que ningum contra a criminalizao do uso indiscriminado de armas. O que deve cientificamente serquestionado a tbula rasa que fez o legislador (des)valorar, com o mesmo rigor, condutascomo possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor venda ou fornecer,receber, ter em depsito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter,empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo (art. 16). Fez o legislador, pois, umaisonomia s avessas (como o fez tambm na recente Lei 9.714, ao colocar no mesmo patamardelitos como sonegao de impostos e corrupo, que lesam bens de ndole transindividual,com delitos de ndole inter-individual, como furto e estelionato!)

    De pronto, cabe referir (e denunciar) a extrema vagueza e ambigidade com que estredigido o dispositivo. Qual a diferena, por exemplo, entre possuir e deter uma arma? Quala diferena entre possuir uma arma em casa e transport-la em veculo automotor? Almdisso, o dispositivo antigarantista, porque estabelece, em outras palavras, que quem-de-qualquer-modo-se-aproximar-de-arma-de fogo estar sujeito s penas da lei!!! No bastasseisso, como se ver mais adiante, trata-se de um tipo penal que criminaliza perigo abstrato,incompatvel com o contemporneo Estado Democrtico de Direito.

    No difcil chegar a concluso que o simples fato de algum possuir arma de fogosem autorizao (tendo-a em casa ou a transportando no seu veculo, por exemplo) no

    38 Tambm na proibio de concesso de fiana o legislador violou o princpio da proporcionalidade no seu visde proibio de excesso. A previso de crimes inafianveis prevista na Constituio por certo se destina acrimes de extrema danosidade/periculosidade social e no a um delito que at h alguns dias era tratado comoproto-insignificante! Desnecessrio at maiores comentrios acerca da irrazoabilidade dessa previso.

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    pode significar por si s - leso a qualquer bem jurdico. Nesse sentido, concordo comPaulo Eduardo Bueno, para quem o delito em tela deve ser examinado sob o prisma dadanosidade social: nas mos de um criminoso, a arma um instrumento altamente

    perigoso, mas, nas mos de um cidado (...), a arma um instrumento de defesa. O grandeproblema (...) ter atingido substancialmente no os criminosos, mas aqueles cidados quemantinham uma arma exclusivamente para a prpria defesa, mesmo porque aqueles quevivem margem da lei, via de regra, no se subordinam s regulamentaes administrativas.

    Na prtica, portanto, o desejado controle de armas de fogo veio prejudicar as possibilidadesde defesa dos cidados honestos e no resolveu o problema da violncia. Sem considerar o

    elevado valor da tarifa cobrado para registrar a arma e requerer o porte. 39Mais ainda, de registrar, por relevante e o pensamento de Bueno (op. cit) vai no

    mesmo sentido que a simples hiptese de guardar ou possuir arma de fogo sem registrono constitui qualquer violao a bem jurdico. Desnecessrio dizer que no h crime semvtima. E no se venha dizer que a vtima desse crime a sociedade, porque a sociedade sempre vtima ( a idia de crime implica de per si uma conduta anti-social). Ou seja, muitosimplrio dizer que a vtima, no caso sub anlise, seja a sociedade. E a criminalizao no

    pode ser produto de simples discricionariedade do legislador!Vrios princpios constitucionais, no caso em pauta, esto sendo violados: o princpio da

    subsidiariedade, variante do princpio da proporcionalidade, o princpio da razoabilidade (afinal, razovel punir algum com pena entre 2 e 4 anos, porque possui, por exemplo, uma espingardaou um revlver guardados em um armrio da sua residncia?), alm do princpio dasecularizao (no se esquecer que o Estado no pode punir meras condutas e comportamentos).

    Assim, no se pode admitir que o legislador incrimine meras atividades (ecomportamentos) como ilcitos,sem exigir um efetivo dano a algum bem jurdico.Dito de outromodo, o art. 16, em algumas de suas modalidades, introduz em nosso direito uma novamodalidade de crime: o crime de dano normativo! Ora, ser demais lembrar que somente aleso concreta ou a efetiva possibilidade de uma leso imediata a algum bem jurdico que podegerar uma intromisso penal do Estado? Caso contrrio, estar o Estado estabelecendoresponsabilidade objetiva no direito penal, punindo condutas in abstracto, violando os jexplicitados princpios da razoabilidade, da proporcionalidade e da secularizao, conquistas do

    Estado Democrtico de Direito. Onde est a razoabilidade da punio de um cidado queguarda em sua casa uma espingarda ou um revlver, ainda que sem autorizao? E o que dizerdos camponeses que tm em casa velhas espingardas e que mesmo assim esto sendocondenados por possurem ou transportarem armas sem autorizao legal?

    No se deve olvidar que o Cdigo Penal estabelece que o cidado tem o direito de sedefender, em caso de agresso atual ou iminente. o caso, pois, da conhecida legtima defesa. Avingar a tese da tbula rasa produzida pelo tipo penal previsto no art. 16, estar-se-,metafisicamente, estabelecendo uma universalizao abstrata, impedindo, desde logo, a

    possibilidade de o cidado exercer o direito penal-constitucional de auto-defesa.

    Assim, entender que o simples possuir, deter ou transportar (sem qualquer violaoconcreta de um bem jurdico) constituem crime, o mesmo que estabelecer uma

    39 Cfe. BUENO, Paulo Eduardo. O crime de porte irregular de arma de fogo e a questo do bem jurdico. In:

    Revista Jurdica. So Paulo, Ed. Jurdica. Jul/1999, pp. 47 e segs.22

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    universalizao metafsico-essencialista (aristotlico-tomista) ao texto da lei, perdendo-se onecessrio carter ntico-ontolgico (e, portanto, hermenutico) da interpretao. Emsntese, criminalizar de forma objetivista e abstrata a conduta de possuir arma, v.g., dar aotexto um sentido-em-si-mesmo, enfim, aquilo que se chama na moderna hermenutica defetichizao da lei ( como se o texto da lei no caso, os verbetes possuir, deter,transportar, para citar alguns j trouxesse em-si-mesmo o seu sentido, a-histrico, a-temporal e descontextualizado). Ao mesmo tempo, ter-se-ia uma espcie de essencialidadelegal-textual, onde o papel do intrprete ficaria restrito a uma mera subsuno (metafsica).40

    Em face de tudo isso, como resolver o presente caso?Declarar a inconstitucionalidade do art. 16, da Lei n 10.826, em sua totalidade

    impossvel, uma vez que somente em parte, fere a Constituio. Alis, j de antanho LucioBittencourt41 afirmava que quando, portanto, uma parte da lei inconstitucional, esse fato noautoriza os tribunais a declarar tambm ineficaz a parte restante.

    Portanto, h que se buscar no direito aliengena e na jurisprudncia do SupremoTribunal Federal do Brasil os caminhos para a soluo da controvrsia. Do direito alemoaprendemos que, por vezes, podemos salvar um texto jurdico, no o declarandoinconstitucional, a partir de uma adio de sentido. o caso da verfassunsgskonforme

    Auslegung(interpretao conforme a Constituio). Em outros, retira-se uma das incidncias da

    norma, isto , na hiptese de se querer expungir da norma um dos sentidos que so contrrios Constituio. Neste caso, estar-se- em face de uma Teilnichtigerklrung ohneNormtextreduzierung (nulidade parcial sem reduo de texto). Em ambos os casos, no hmutilao formal do texto. Altera-se, apenas, o seu sentido. No caso da interpretao conformeestar-se- em face de uma sentena de rejeio de inconstitucionalidade parcial qualitativa; nocaso da nulidade parcial, tratar-se- de uma deciso de acolhimento de inconstitucionalidade

    parcial qualitativa. 42

    Assim, aplicando a nulidade parcial sem reduo de texto, tem-se que determinado40 Sobre a temtica hermenutica crtica, consultar STRECK, Hermenutica , op.cit.41 BITTENCOURT, Lucio. O controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 126.

    42 Uma pergunta se impe, desde logo: a nulidade parcial sem reduo de texto e a interpretao conforme aConstituio podem ser aplicadas pelo juzo singular e pelos demais Tribunais, ou tal aplicao se afigura comoprerrogativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal?Estou convencido que no h qualquer bice constitucionalque impea juzes e tribunais de aplicarem a interpretao conforme e a nulidade parcial sem reduo de texto.Entender o contrrio seria admitir que juzes e tribunais (que no o STF) estivessem obrigados a declararinconstitucionais dispositivos que pudessem, no mnimo em parte, ser salvaguardados no sistema, mediante aaplicao das citadas tcnicas de controle. Porque um Juiz de Direito que, desde a Constituio de 1891, sempreesteve autorizado a deixar de aplicar uma lei na ntegra por entend-la inconstitucional no pode, tambm hoje, empleno Estado Democrtico de Direito, aplic-la to-somente em parte? O mesmo se aplica aos Tribunais, que, naespecificidade da interpretao conforme a Constituio e da nulidade parcial sem reduo de texto, estodispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade. Por ltimo, releva anotar, parafraseando Medeiros ePrm (Medeiros, Rui. A deciso de inconstitucionalidade. Lisboa, Universidade Catlica, 2000; PRM, Hans Paul.Verfassung und Methodik. Berlin, 1977), que no se justifica aplicar o regime de fiscalizao concreta, ou seja,

    suscitar o incidente de inconstitucionalidade que o modo previsto no sistema jurdico brasileiro de aferir aconstitucionalidade no controle difuso de forma stricto senso aos casos em que esteja em causa to somente ainconstitucionalidade de uma das possveis interpretaes da lei, pois o juzo de inconstitucionalidade de umadeterminada interpretao da lei no afeta a lei em si mesma, no, pondo em causa, portanto, a obra do legislador.

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  • 8/4/2019 Streck - Bem Jurdico e Constituio

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    dispositivo inconstitucional se aplicado a hiptese x. No caso sob anlise: o art. 16, da Lein. 10.826 ser inconstitucional se aplicvel hiptese do simples possuir deter outransportar, sem que essa conduta coloque em risco qualquer bem jurdico), para citarapenas algumas hipteses das tantas cominaes constantes no aludido art. 16, tudo sob pena deestarmos incorrendo na responsabilidade penal objetiva. Ou seja, o perigo concreto passa a sercondio de possibilidade para a aferio da incidncia do tipo penal. Assim, no desarrazoado

    propor, para o problema ensejado pelo art. 16 da Lei 10.826, a aplicao da declarao denulidade (inconstitucionalidade) parcial sem reduo de texto, tcnica, alis, que o STF j vemadotando em nosso direito (nesse sentido, especificamente ver ADIn n 319, rel. Min. Moreira

    Alves, RTJ 137, pp. 90 e segs; tambm as ADins 491, 939 e 1045).Para reafirmar a tese, vale trazer colao um precedente do Tribunal Constitucional

    Espanhol, que pode auxiliar na compreenso desta complexa questo. Com efeito, o TribunalConstitucional da Espanha, atravs da sentena n. 105/88, declarou a inconstitucionalidade dodelito de porte de utenslios prprios para o cometimento de furto (gazuas e outrosinstrumentos), por violao ao art. 24.2. da Constituio (princpio da presuno dainocncia). O art. 509 do Cdigo Penal incriminava el que tuviera em su poder ganzas y otrosinstrumentos destinados especialmente para ejecutar el delito de robo y no diere descargo

    suficiente sobre sua adquisicin o conservacin. O TC espanhol declarou como contrria aConstituio qualquer interpretao do referido tipo penal que viesse a castigar to somente a

    posse de instrumentos idneos: en cuanto se interprete que la posesin de instrumentosidneos para ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da sua

    poseedor es la ejecucin de tal delito. Ou seja, entendeu o Tribunal espanhol que, sem a provada possibilidade de efetivo dano, no se pode punir. A presuno de que algum vai cometer umfurto, pelo fato de estar portando instrumentos prprios para tal, no razo suficiente para oenquadramento no tipo penal. Meras condutas no podem ser punidas; tampouco se pode puniralgum com base em presunes.

    toda evidncia, a sentena espanhola uma declarao de inconstitucionalidade semreduo de texto. No caso da Lei 10.826, ora sob comento, o Tribunal (ou o juiz de primeirograu) pode especificar, v.g., que o fato de algum portar arma (desmuniciada) ou guarda-la emsua casa, mesmo sem registro, no pode constituir, por si s, o crime previsto no art. 16, na

    mesma linha de raciocnio usado pelo Tribunal Constitucional da Espanha. Ningum pode serpunido pela presuno de que, portando uma arma sem munio ou por possuir uma arma noarmrio de sua casa, possa constituir perigo para algum ou para a sociedade.

    Trata-se de aplicar, mutatis mutandis, aquilo que no direito portugus se denomina dedeciso redutiva. Ou, melhor ainda, na acepo Jean-Claude Bguin ( Le controle de laconstitutionnalit de lois em Rpublique Fdrale dAllemagne), trata-se de anulao parcialqualitativa (quando a norma, no seu conjunto, no deve ser aplicada a certa situao, por talaplicao ser inconstitucional). Nesse sentido, h um interessante precedente jurisprudencial daento Comisso Constitucional (que antecedeu o Tribunal Constitucional portugus)