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O que é? *com informações de Elizabeth Kipman e Eduardo Borges VIDA HUMANA 6 JORNAL SANTUÁRIO DE APARECIDA • 15 DE ABRIL DE 2012 dade. Mesmo que o feto se desenvolva, não quer dizer que tenha vida, pois seu crescimento está associado à placenta e à troca alimentar com a mãe”, sublinha. A doutora Elizabeth discorda, destacan- do que os argumentos visam levar a mãe à decisão do aborto, afirmando que ela é um caixão ambulante, que o filho é um monstro ou que o bebê já está morto. “É impossível diagnosticar morte cerebral do feto em gestação enquanto ele está com o coração batendo e segue se desenvolvendo. Por isso não existe protocolo médico no mundo para isso. Após o parto, um nati- morto nunca respira espontaneamente e o coração não bate espontaneamente. Se qualquer bebê, sem a ajuda de aparelhos, respira e tem o coração batendo, jamais pode ser um natimorto”, afirma. Há outras várias doenças congênitas letais: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holo- prosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. “Por que foi escolhida a anencefalia para provocar-se a antecipação da morte, ainda no ventre materno, não se esperando o nascimento natural?”, ques- tiona o doutor Rodolfo. “Legislar” As Uniões dos Juristas Católicos dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro enviaram um Memorial aos Ministros do STF defendendo que “a ADPF 54 busca criar uma terceira hipótese de impunida- de ao aborto, ou seja, o aborto eugênico”. Nesse sentido, o Tribunal não poderia legislar positivamente (criar uma norma), pois todos os projetos de leis que cuidam do aborto não conseguiram passar pelas Comissões Parlamentares encarregadas, após audiências públicas, e a grande maio- ria do povo brasileiro é contrária à legali- zação do homicídio uterino. “A Constituição Federal fala em inde- pendência e harmonia entre os Poderes da República e não autoriza a Suprema Corte a revestir-se de funções legislativas para produzir normas. Falta competência normativa à Suprema Corte para a criação de uma terceira hipótese de aborto”, explica o jurista Ives Gandra Martins. Nelson Jr / SCO / STF logia e obstetrícia e diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos em Bioética (Cieb) do Hospital São Francisco de Assis, de Jacareí (SP), Elizabeth Kipman Cerqueira, “a humanidade de um ser se manifesta através da identidade biológi- ca, uma vez que é através do corpo que estamos no mundo. O feto portador de anencefalia está entre nós como um ser humano, participando da mesma realida- de existencial humana”, defende. Por sua vez, o presidente da Comissão de Medicina Fetal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrí- cia (Febrasgo), Eduardo Borges da Fonse- ca, explica que a entidade é taxativa ao defender que esse tipo de gestação pode trazer vários prejuízos para a gestante. “São fetos humanos, mas incompatíveis com a vida. Essa síndrome letal e irrever- sível pode ser diagnosticada com 100% de certeza através da ultrassonografia.” Ele ressalta que o que está em jogo não são argumentos “filosóficos”, sobre o que seja vida ou humanidade, mas parâmetros científicos. “Dentro desses parâmetros, considera-se que um ser com vida é aquele que tem atividade cerebral. E o anencéfalo não apresenta essa ativi- O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 8 votos a 2 pela libe- ração da interrupção voluntária da gravidez em casos de gestação de fetos com anencefalia (saiba o que é no box). O julgamento aconteceu em duas sessões, nos dias 11 e 12 deste mês. A decisão da Corte Suprema do Brasil cria a jurisprudência para o entendi- mento de que o aborto, nesse caso específico, também não é passível de punição criminal, assim como os casos já previstos pelo artigo 128 do Código Penal (estupro e quando não há outro meio de salvar a vida da gestante). Há diversas posições divergentes sobre o tema. De um lado, há quem defenda que a prática não se configuraria como aborto, uma vez que não há a possibilida- de de vida fora do útero e o próprio feto não seria portador de vida, no sentido jurí- dico da palavra. De outro, há as opiniões que abraçam o entendimento de que o anencéfalo possui sim uma malformação, mas não deixa de ser um humano portador do direito à vida, garantido ao nascituro pela legislação vigente, e que tal auto- rização abre precedentes para práticas eugênicas (eliminação dos imperfeitos). “A malformação na criança não é equi- valente à morte cerebral. A anencefalia não é equivalente à morte encefálica: as crianças podem ter uma parte do encéfalo posterior, médio e resíduos do anterior”, declara o médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rodolfo Acatauassú Nunes. O especialista afirma que há um pequeno percentual delas que pode ter inclusive alta hospitalar, chorando, movimentando-se, respirando espontaneamente e viver semanas, meses ou, excepcionalmente, mais de um ano. “Tentar abreviar o sofrimento trazido por uma doença grave eliminando alguém porque não se pôde curá-lo é cultura estranha ao nosso povo”, diz. O debate envolve também a questão sobre como se entende o que seja vida humana. Em termos biológicos, esses fetos seriam “menos” humanos do que os fetos considerados “normais”? De acordo com a médica especialista em gineco- DECISÃO JUDICIAL | PRÁTICA DEIXA DE SER PUNÍVEL CRIMINALMENTE NO BRASIL STF libera aborto de fetos anencefálicos Leonardo Meira [email protected] Saiba mais sobre o assunto. Acesse http://bit.ly/js_anencefalia A anencefalia está no rol de doenças categorizadas pelo defeito do fecha- mento do tubo neural (DTN), assim como a espinha bífida e a encefa- locele. A partir da terceira semana do desenvolvimento embrionário, começa a formação da placa neural que dará origem ao tubo neural, estrutura embrionária da qual, por sua vez, origina-se o sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal). As doenças de DTN produzem uma série de malformações. A palavra anencefalia significa “sem encéfalo”, uma definição que é imperfeita. Na verdade, o que não está presente é o cérebro com seus respectivos hemisférios e o cerebelo, responsável pela manutenção do equilíbrio e pelo controle do tônus muscular e dos movimentos voluntários. Sempre há algum tecido encefálico, de tal forma que o alcance do comprometimento pode atingir toda a estrutura cerebral (holoanencefalia) ou parte dela (meroanencefalia), em diferentes níveis. Além disso, não há a calota crania- na, conjunto de ossos que funciona como uma tampa para a “caixa” em que está alojada a estrutura cerebral. Dessa forma, a massa encefálica fica exposta ao líquido amniótico e se deteriora. A patologia é letal e os bebês possuem expectativa de vida muito curta, embora não se possa estabe- lecer com precisão o tempo de vida que terão fora do útero. As crianças com anencefalia geralmente nascem cegas, surdas e com poucos reflexos. A literatura científica afirma que 40% dos fetos anencefálicos morre ainda no útero e 25% ao nascer. Os que sobrevivem têm uma expectativa de vida de poucas horas, poucos dias e, mais raramente, poucos meses, mas há exceções. A anomalia pode ser diagnosticada através de exames ultrassonográficos a partir da 12ª semana de gestação, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal. O consumo de ácido fólico é o único meio preventivo da doença. A adição obrigatória do componente às farinhas, tornada obrigatória pela Anvisa a partir de 2004, pode diminuir a incidência da doença, atenuar sua apresentação clínica e permitir maiores sobrevidas. Todas as mulheres sem antecedente de gestação afetada por DTN devem ingerir 0,4mg do ácido por dia três meses antes de engravidar e permane- cer com esse índice de consumo pelo menos até o terceiro mês de gestação. Já as mulheres com antecedente de gestação afetada por DTN devem consumir 4mg por dia, durante o mesmo período indicado anteriormente. Ministros do STF durante julgamento da ADPF 54

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Page 1: STF

O que é? *com informações de Elizabeth Kipman e Eduardo Borges

VIDA HUMANA6 JORNAL SANTUÁRIO DE APARECIDA • 15 DE ABRIL DE 2012

dade. Mesmo que o feto se desenvolva, não quer dizer que tenha vida, pois seu crescimento está associado à placenta e à troca alimentar com a mãe”, sublinha.

A doutora Elizabeth discorda, destacan-do que os argumentos visam levar a mãe à decisão do aborto, afirmando que ela é um caixão ambulante, que o filho é um monstro ou que o bebê já está morto. “É impossível diagnosticar morte cerebral do feto em gestação enquanto ele está com o coração batendo e segue se desenvolvendo. Por isso não existe protocolo médico no mundo para isso. Após o parto, um nati-morto nunca respira espontaneamente e o coração não bate espontaneamente. Se qualquer bebê, sem a ajuda de aparelhos, respira e tem o coração batendo, jamais pode ser um natimorto”, afirma.

Há outras várias doenças congênitas letais: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holo-prosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. “Por que foi escolhida a anencefalia para provocar-se a antecipação da morte, ainda no ventre materno, não se esperando o nascimento natural?”, ques-tiona o doutor Rodolfo.

“Legislar”As Uniões dos Juristas Católicos dos

Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro enviaram um Memorial aos Ministros do STF defendendo que “a ADPF 54 busca criar uma terceira hipótese de impunida-de ao aborto, ou seja, o aborto eugênico”. Nesse sentido, o Tribunal não poderia legislar positivamente (criar uma norma), pois todos os projetos de leis que cuidam do aborto não conseguiram passar pelas Comissões Parlamentares encarregadas, após audiências públicas, e a grande maio-ria do povo brasileiro é contrária à legali-zação do homicídio uterino.

“A Constituição Federal fala em inde-pendência e harmonia entre os Poderes da República e não autoriza a Suprema Corte a revestir-se de funções legislativas para produzir normas. Falta competência normativa à Suprema Corte para a criação de uma terceira hipótese de aborto”, explica o jurista Ives Gandra Martins.

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logia e obstetrícia e diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos em Bioética (Cieb) do Hospital São Francisco de Assis, de Jacareí (SP), Elizabeth Kipman Cerqueira, “a humanidade de um ser se manifesta através da identidade biológi-ca, uma vez que é através do corpo que estamos no mundo. O feto portador de anencefalia está entre nós como um ser humano, participando da mesma realida-de existencial humana”, defende.

Por sua vez, o presidente da Comissão de Medicina Fetal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrí-cia (Febrasgo), Eduardo Borges da Fonse-ca, explica que a entidade é taxativa ao defender que esse tipo de gestação pode trazer vários prejuízos para a gestante. “São fetos humanos, mas incompatíveis com a vida. Essa síndrome letal e irrever-sível pode ser diagnosticada com 100% de certeza através da ultrassonografia.”

Ele ressalta que o que está em jogo não são argumentos “filosóficos”, sobre o que seja vida ou humanidade, mas parâmetros científicos. “Dentro desses parâmetros, considera-se que um ser com vida é aquele que tem atividade cerebral. E o anencéfalo não apresenta essa ativi-

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 8 votos a 2 pela libe-ração da interrupção voluntária da gravidez em casos de gestação de fetos com anencefalia (saiba o que é no box). O julgamento aconteceu em duas sessões, nos dias 11 e 12 deste mês.

A decisão da Corte Suprema do Brasil cria a jurisprudência para o entendi-mento de que o aborto, nesse caso específico, também não é passível de punição criminal, assim como os casos já previstos pelo artigo 128 do Código Penal (estupro e quando não há outro meio de salvar a vida da gestante).

Há diversas posições divergentes sobre o tema. De um lado, há quem defenda que a prática não se configuraria como aborto, uma vez que não há a possibilida-de de vida fora do útero e o próprio feto não seria portador de vida, no sentido jurí-dico da palavra. De outro, há as opiniões que abraçam o entendimento de que o anencéfalo possui sim uma malformação, mas não deixa de ser um humano portador do direito à vida, garantido ao nascituro pela legislação vigente, e que tal auto-rização abre precedentes para práticas eugênicas (eliminação dos imperfeitos).

“A malformação na criança não é equi-valente à morte cerebral. A anencefalia não é equivalente à morte encefálica: as crianças podem ter uma parte do encéfalo posterior, médio e resíduos do anterior”, declara o médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rodolfo Acatauassú Nunes. O especialista afirma que há um pequeno percentual delas que pode ter inclusive alta hospitalar, chorando, movimentando-se, respirando espontaneamente e viver semanas, meses ou, excepcionalmente, mais de um ano. “Tentar abreviar o sofrimento trazido por uma doença grave eliminando alguém porque não se pôde curá-lo é cultura estranha ao nosso povo”, diz.

O debate envolve também a questão sobre como se entende o que seja vida humana. Em termos biológicos, esses fetos seriam “menos” humanos do que os fetos considerados “normais”? De acordo com a médica especialista em gineco-

DECISÃO JUDICIAL | PRÁTICA DEIXA DE SER PUNÍVEL CRIMINALMENTE NO BRASIL

STF libera aborto de fetos anencefálicosLeonardo Meira

[email protected]

Saiba mais sobre o assunto.

Acesse http://bit.ly/js_anencefalia

A anencefalia está no rol de doenças categorizadas pelo defeito do fecha-

mento do tubo neural (DTN), assim

como a espinha bífida e a encefa-locele. A partir da terceira semana do desenvolvimento embrionário, começa a formação da placa neural que dará origem ao tubo neural, estrutura embrionária da qual, por sua vez, origina-se o sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal). As doenças de DTN produzem uma série de malformações.

A palavra anencefalia significa “sem encéfalo”, uma definição que é imperfeita. Na verdade, o que não está presente é o cérebro com seus respectivos hemisférios e o cerebelo, responsável pela manutenção do equilíbrio e pelo controle do tônus muscular e dos movimentos

voluntários. Sempre há algum tecido encefálico, de tal forma que o alcance do comprometimento pode atingir toda a estrutura cerebral (holoanencefalia) ou parte dela (meroanencefalia), em diferentes níveis.

Além disso, não há a calota crania-na, conjunto de ossos que funciona como uma tampa para a “caixa” em que está alojada a estrutura cerebral. Dessa forma, a massa encefálica fica exposta ao líquido amniótico e se deteriora.

A patologia é letal e os bebês possuem expectativa de vida muito curta, embora não se possa estabe-lecer com precisão o tempo de vida que terão fora do útero. As crianças com anencefalia geralmente nascem cegas, surdas e com poucos reflexos.

A literatura científica afirma que 40% dos fetos anencefálicos morre ainda no útero e 25% ao nascer. Os que sobrevivem têm uma expectativa de vida de poucas horas, poucos dias

e, mais raramente, poucos meses, mas há exceções.

A anomalia pode ser diagnosticada através de exames ultrassonográficos a partir da 12ª semana de gestação, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal.

O consumo de ácido fólico é o único meio preventivo da doença. A adição obrigatória do componente às farinhas, tornada obrigatória pela Anvisa a partir de 2004, pode diminuir a incidência da doença, atenuar sua apresentação clínica e permitir maiores sobrevidas. Todas as mulheres sem antecedente de gestação afetada por DTN devem ingerir 0,4mg do ácido por dia três meses antes de engravidar e permane-cer com esse índice de consumo pelo menos até o terceiro mês de gestação.

Já as mulheres com antecedente de gestação afetada por DTN devem consumir 4mg por dia, durante o mesmo período indicado anteriormente.

Ministros do STF durantejulgamento da ADPF 54

Page 2: STF

Julgamento

Posição da Igreja

Os ministros do STF julgaram o mérito da Arguição de Descumpri-mento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Traba-lhadores na Saúde (CNTS). A enti-dade defendia a descriminalização da “antecipação terapêutica do parto” em caso de gravidez de anencéfalo.

A CNTS afirmou que obrigar a mulher a manter uma gravidez, mesmo ciente de que o feto não sobreviverá após o parto, fere o prin-cípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e afeta o direito à saúde, também constitucional (artigos 6º e 196º). Além disso, a CNTS argumentou que a antecipação terapêutica do parto não é vedada no ordenamento jurídico brasileiro; dessa forma, sua realização não pode ser proibida sob pena de ofensa ao princípio da lega-lidade (artigo 5º, inciso II, da CF).

O advogado da Confederação, Luís Roberto Barroso, defendeu em plená-rio os direitos reprodutivos da mulher. “Levar ou não essa gestação a termo tem que ser escolha da mulher.”. Ele apresentou quatro fundamentos que motivaram o ajuizamento da ADPF ao STF, defendendo que a interrupção da gestação nesse caso não é aborto, cons-tituindo-se, portanto, um fato externo ao apreciado pelo Código Penal.

Os votosTodos os ministros votaram favoral-

mente pela descriminalização, com exceção de Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. O ministro Dias Toffoli declarou-se impedido de participar do julgamento porque, quando era advogado-geral da União, emitiu parecer a favor da legalidade da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia. Todos os ministros reportaram-se a posicionamentos explicitados por especialistas duran-te as audiências públicas de 2008.

Em seu voto, o relator da ação, ministro Marco Aurélio Mello, definiu a questão como uma das mais importantes já analisadas pelo Tribunal. Ele também afirmou que seria um despropósito dizer que o STF analisaria a descriminalização do aborto em sentido amplo. Boa parte do voto foi dedicada ao histórico da vinculação entre Estado e Igreja durante o período imperial, bem como à separação ocorrida na transição para a República. “O Brasil é um Estado laico tolerante. Deuses e Césares têm espaços apartados. Dogmas de fé não podem determinar o conteúdo de atos estatais. As concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias ou minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual, ou a ausência dela, servem para ditar a conduta ou vida privada do indivíduo que a possui ou não. Paixões religiosas devem ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé ou orientações morais dela decorrentes serem impostas por quem quer ou a quem quer que seja”, afirmou.

O ministro continuou ressaltando que a questão posta no processo não poderia ser examinada sob os influ-xos de orientações morais religiosas. “Essa premissa é essencial à análise da controvérsia. Isso não quer dizer que a oitiva de entidades religiosas tenha sido em vão. Numa democracia, não é legítimo excluir qualquer ator da arena de definição do sentido da Constituição. Contudo, para torna-rem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos dos grupos religiosos devem ser devidamente traduzidos em termos de razões públicas, cuja adesão independa dessa ou daquela crença”.

Marco Aurélio considerou que o feto anencefálico seria um natimor-to neurológico, incompatível com a vida. “Embora biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídico-penal. Nesse contex-

to, a interrupção de gestação de feto anencéfalo não configura crime contra a vida”, disse. Ele também afirmou que não cabe impor às mulheres o sentimento de “mera incubadora, ou melhor, caixões ambulantes”.

Rosa Weber declarou que “é de se reconhecer que merecem endosso as opiniões que expressam não caber anencefalia no conceito de aborto. O crime de aborto quer dizer a inter-rupção da vida e, por tudo o que foi debatido nesta ação, a anencefalia não é compatível com essas caracte-rísticas que consubstanciam a ideia de vida para o direito”.

O ministro Joaquim Barbosa não apresentou seu voto, pois deixou a sessão. Contudo, pediu a juntada de seu voto aos autos, ou seja, seguiu a mesma linha do relator.

Para Luiz Fux, impedir a interrupção da gravidez de um feto anencefálico equivaleria a impor uma tortura à gestante, o que é vedado pela Constituição Federal. Segundo ele, é a mulher quem deve decidir entre levar ou não a gravidez adiante nesse caso. E aquela que decidir pela interrupção da gestação não poderá ser criminalizada.

Por sua vez, Cármen Lúcia ressaltou que, “quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida se entorta”, afir-mando que não é uma escolha fácil, mas trágica. “Acho que todas as opções são de dor. Exatamente fundada na dignidade da vida, neste caso, acho que esta inter-rupção não é criminalizável.”

Ricardo Lewandowski, que votou contra a liberação do aborto no caso em questão, indicou que “não é lícito ao maior órgão judicante do país envergar as vestes de legislador criando normas legais. Não é dado aos integrantes do Poder Judiciário promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem. Uma decisão favorável ao aborto nesse caso teria, em tese, o condão de tornar lícita a interrupção da gestação de qualquer embrião que ostente pouca ou nenhuma expectativa de vida extrauterina”.

Ayres Britto usou a poesia para indicar que “o feto anencéfalo é um crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estágio de borboleta, porque não alçará voo jamais. Não se pode tipificar esse direito de escolha [da mulher] como caracterizador do aborto proibido pelo Código Penal”.

Já Gilmar Mendes disse não parecer tolerável que se imponha à mulher esse tamanho ônus à falta de um modelo institucional adequado para resolver a questão. “A falta de modelo adequado contribui para essa verdadeira tortura psíquica e física, causando danos talvez inde-léveis na alma dessas pessoas.”

Celso de Mello disse: “não estamos autorizando práticas abortivas, não estamos com esse julgamento legitimando a prática do aborto. Essa é outra questão. A presente controvérsia jurídica não pode nem deve ser reconhe-cida como disputa entre Estado e Igreja, entre fé e razão, entre princípios jurídicos e teológicos”.

Enfim, o presidente do STF, Cezar Peluso, também votou contrariamente à ADPF. Ele afir-mou: “este é o mais importan-te julgamento na história desta Corte, porque nela se tenta definir no fundo o alcance constitucional do conceito de vida e da sua tutela normativa”. Na sua opinião, o abor-to de anencéfalos “em nada dife-re do racismo, do ceticismo e do chamado especismo. Todos esses casos retratam a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns”. Ele também destacou que “a ação de eliminação intencional da vida intrauterina de anencéfa-los corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo malabarismo hermenêutico ou ginástica dialé-tica capaz de me convencer do contrário. O feto anencéfalo tem vida e, ainda que breve, sua vida é constitucionalmente protegida”.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) convocou todo o episcopado do país a promo-ver uma Vigília de Oração pela Vida às vésperas do início do julgamento, na terça-feira, 10. “A vida deve ser acolhida como dom e compromis-so, mesmo que seu percurso natu-ral seja, presumivelmente, breve. Nenhuma legislação jamais poderá tornar lícito um ato que é intrinseca-mente ilícito. Os fetos anencefálicos não são descartáveis”, já expressava a entidade em nota divulgada em agosto de 2008, período em que foram realizadas audiências públicas no STF para debater o caso.

O presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e Família da CNBB e Bispo de Camaçari (BA), Dom João Carlos Petrini, emitiu uma nota sobre o assunto. Ele argumenta que o nasci-mento de uma criança portadora de anencefalia é um drama para a família, especialmente para a mãe. “Persuadi--la que o melhor é abortar o seu filho, revestindo de legalidade o ato de elimi-nar o filho-problema, não é a melhor resposta, não usa plenamente a razão porque não leva em consideração todos os fatores presentes. Não considera o drama que acompanhará aquela mulher pela decisão de expulsar o próprio bebê do seu ventre, pela incapacidade de acolhê-lo incondicionalmente. Não considera o direito do filho a nascer, não reconhece seu direito inalienável à vida,

garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição do Brasil”, esclarece no texto.

Quem pode determinar qual o prazo mínimo para que uma vida humana seja acolhida ou preservada? “Alguns princípios constituem-se como colunas que sustentam a vida social. O mais importante deles é a inviolabilidade da vida humana. Abrindo exceção a esse princípio, abre-se uma brecha não só na lei e na prática do aborto, mas na consciência das pessoas: entende-se que uma vida que traz problemas pode ser eliminada”, continua Dom Petrini.

Na manhã da quinta-feira, 12, o Arcebispo de Aparecida e presidente da CNBB, Cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis, presidiu à Missa e Vigília pela Vida no Santuário Nacional.

Em sua homilia, afirmou que o direito à vida está fundamentado na natureza, na essência do homem. É independente de religião, de credo. “A vida é sempre dom gratuito, o primeiro e maior dos direitos humanos e sobre o qual os outros direitos se fundamentam. Esse direito maior deve ser acolhido sem pré-condições. Não podemos ser a favor da vida só em partes. Temos que ser a favor completamente: ou somos a favor ou contra, não há meio termo.”

O Cardeal salientou que nem tudo que é legal é necessariamente ético, moral e justo. Desse modo, a deci-são do STF “não exime ninguém da responsabilidade e dever de seguir sua consciência moral, guiada pela reta razão”, defendeu.

7JORNAL SANTUÁRIO DE APARECIDA • 15 DE ABRIL DE 2012