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Page 1: STAM, Robert - Introdução In A literatura através do cinema - Realismo, mágica e a arte da adaptação

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1ltf~i$~4 I

I

ROBERT STAM

A liTeRATURA ATRAVÉS DO CINEMA

ReAlISMO, MAGIA c A ARTe DA ADAPTAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

REITOR Ronaldo Tadêu Pena

VleE-REITORA Heloisa Maria Murgel Scarling

EDITORA UFMGDiRETOR Wander Meio Miranda

VJCE-DIRETOM Silvana Cóser

CONSELHO EDITORIAL

Wander Meio Miranda (PRESIOENTE)

Carios Antônio Leite Brandão

Juarez Rocha GuimarãesMárcio Gomes Soares

Maria das Graças Santa BárbaraMaria Helena Damnsceno e Silva Megale

Paulo Sérgio Lacerda BelrãoSilvaM Cóser

TraduçãoMAmE-MINE KREMER

GLAUCIA RENATE GONÇALVES

Belo HorizonteEditora UFMG

2008

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Figura 7.7 - Apresentaçào musical em Ba170CO (1988) de Paul Leduc,produzido pelo Instituto Cubano del Arte e Industrias Cinematográficos(ICAIC)/Sociedad Estatal Quinto Centenario/ÓpaJo Films, distribuídopor International Film Circuit; foto reproduzida por cortesia do BritishFilm lnstitute

Não foram poupados esforços no sentido de localizar osdetentores de direitos autorais para que fosse obtida a permissãopara uso do material protegido por lei. A editora desculpa-se porquaisquer erros ou omissões cometidas na listagem acima e agra­deceria a notificação de correções que devam ser incorporadas emfuturas reimpressões ou edições.

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INTRODUÇAO

A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte daadaptação apresenta a história da literatura através do cinema.O livro, que poderia ter sido intitulado Clássicos da literatura nocinema, oferece um relato historiado de momentos importantesna história do romance não só em termos literários, como também

refratados através do prisma da adaptação. Obviamente seria umatarefa "quixotesca" cobrir toda a história do romance desde Cer­vantes, por isso abordo apenas "momentos" e tendências cruciais.Os romances analisados são, em sua maioria, "romances-chave"

enquanto "clássicos" que geraram uma vasta estirpe de "descenden­tes" literários e fílmícos. Por exemplo, tanto Dom Quixote quanto

Robinson Crusoé dão início a linhagens opostas no romance, eambos foram reescrítos e filmados inúmeras vezes. Dom Quixote

é o texto-fonte para a tradição paródica, intertextual e "mágica"de romances como Tom Jones e Tristram Shandy, que ostentamseus próprios artifícios e técnicas. Por sua vez, Robinson Crnsoé,de Defoe, é um texto-fonte seminal para a tradição do romancemimético supostamente baseado na "vida real" e escrito de talforma a gerar uma forte impressão de realidade factual.

Madame Bovmy, de Flauben, entretanto, contrapõe ambasas tradições realista e reflexiva/cervantina. Essa obra de Flaubert

foi igualmente influente tanto em termos temáticos - monotoniacampestre, desejo sexual, desilusão - quanto das técnicas empre­gadas - o discurso indireto livre, o uso do pretérito imperfeito,o emprego do pastiche. Notas do subterrâneo, semelhantemente,

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desencadeou uma série de romances que empregam narradoresproblemáticos e autodesrnistificadores, começando com A náusea,de Sartre, O homem invisível, de Ellison, Lotita, de Nabokov, e A

hora da estrela, de Lispector.

Cada capítulo de A literatura através do cinema retrata umatendência literária - a paródia de Cervantes, o realismo de Defoe(e as tentativas de "contra-escrever" tal estilo), a reflexividade de

Fielding, o perspectivismo flaubertiano, a polifonia de Dostoievsky,a experimentação nouvelle vague, o "realismo mágico" deMárquez - antes de explorar suas ramificações cinemáticas. Aofinal de cada capítulo, sugiro a relevância desses romances paraa vida e cultura contemporâneas. O capítulo sobre Dom Qufxotetermina com observações sobre os aspectos cervantinos do pós­

modernismo; aquele sobre Robinson Crusoé, com comentáriossobre Ndufragoe sobre Suroívot; um realitygameshow. O capítulosobre Madame Bovary leva-nos ao filme A rosa púrpura do Cairo,de Woody Allen. O capítulo sobre Notas do subtelTâneo revelaum parentesco subterrâneo entre os narradores atormentadosde Dostoievsky e os stand-up comedians! dos dias de hoje. Aodiscutir a midia contemporânea e refletir a respeito da realidadeatual dos romances (e dos filmes), espero ter em meu público­alvo não apenas estudiosos de literatura e cinema, COmOtambém

estudantes saturados pela mídia mas não necessariamente versadosno cânone literário.

A tensão entre a magia e o realismo, a reflexividade e o ilu­sionismo, tem alimentado a arte. Qualquer representação artísticapode se fazer passar por "realista" ou abertamente admitir suacondição de representação. O realismo ilusionista apresenta seuspersonagens como pessoas reais, sua seqüência de palavras comofato substanciado. Textos reflexivos ou mágicos, por outro lado,chamam a atenção para sua própria artillcialidade como construtos

teXtuais seja pela hiperbolização mágica de improbabilídades, sejaatravés do esvaziamento reflexivo, rninimalista do realismo. Nesse

sentido, Dom Quixote orquestra tanto magia quanto realismoantecipando, assim, o "realismo mágico", De fato, para RenéGirard, "todas as idéias do romance ocidental estão presentes,embrionariamente, em Dom Quixote'.2 Como retomamos com

freqüência a Dom Quixote como matriz seminal para a reflexi­vidade mágica, o presente livro poderia ter sido chamado "uma

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meditação sobre Quixote', parafraseando Ortega y Gasset, oumelhor, uma meditação tanto sobre o "quixotesco" quanto sobreo "cervantino". Muitos dos romances centrais à tradição européia

- O vermelho e o negro, de Stendhal, Ilusões perdidas, de Balzac,Madame Bovaty, de Flaubert, Em busca do tempo perdido, de

Proust - empreendem a trajetória cervantina do desencantamento

em que as ilusões promovidas pela leitura adolescente são siste­maticamente desfeitas pela experiência do mundo'real. Mas estetipo de quixotismo está tão disponível para o cinema quanto paraa literatura. Assim como a obra Os sofrimentos do jovem Wlerther

inspirou uma onda de suicídios em toda a Europa, diversos filmes-também já induziram a comportamento imitativo. Na verdade,

inúmeros filmes, c?lmo, por exemplo, Sonhos de um sedutor eCães de aluguel, exploram o tema cervantino de personagens!

espectadores que procuram emular seus heróis do cinema.

ALÉM DA "FIDELIDADE"

Embora A literatura através do cinema seja organizado dia­

cronicamente, seguindo a cronologia dos textos literários e não

aquela dos textos cinematográficos, certos temas sincrônicos

surgirão relativamente a todos os textos discutidos. Ainda queeste não seja o lugar para uma teoria sistemática - algo quetentei fazer em meu ensaio "A teoria e prática da adaptação", novolume Literature and film -, posso brevemente delinear meu

entendimento de algumas das categorias cruciais operantes ao

longo do texto,

O "argumento" geral de A literatura através do cinemaentrelaça uma série de fios: a crítica do discurso da "fidelidade",a natureza multicultural da interteÀwalidade artística, a natureza

problemática do ilusionismo, a riqueza de alternativas "mágicas" ereflexivas ao realismo convencional e a importância crueial tanto

da especificidade do meio de comunicação - o ftlme enquantotal - quanto dos elementOs migratórios, de entrecruzamento,compartilhados pelo cinema e outras tipos de mídia.

A linguagem tradicional da crítica à adaptação fílmica de

romances, como já argumentei anteriormente,3 muitas vezes tem

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sido extremamente discriminatória, disseminando a idéia de queo cinema vem prestando um desserviço à literatura. Termos como"infidelidade", "traição", "deformação", "violação", "vulgarização","adulteração" e "profanação" proliferam e veiculam sua própriacarga de opróbrio. Apesar da variedade de acusações, sua motrizparece ser sempre a mesma - o livro era melhor.

A noção de "fidelidade" contém, não se pode negar, uma

parcela de verdade. Quando dizemos que uma adaptação foi"infiel" ao original, a própría violência do termo expressa a grandedecepção que sentimos quando uma adaptação fílmica nãoconsegue captar aquilo que entendemos ser a narrativa, temática,e características estéticas fundamentais encontradas em sua fonte

literária. A noção de fídelidade ganha força persuasiva a partir

de nosso entendimento de que: (a) algumas adaptações de/atonão conseguem captar o que mais apreciamos nos romances­fonte; (b) algumas adaptações são realmente melhores do queoutras; (c) algumas adaptações perdem pelo menos algumas dascaracterísticas manifestas em suas fontes. Mas a mediocridade de

algumas adaptações e a parcial persuasão da "fidelidade" nãodeveriam levar-nos a endossar a fidelidade como um princípiometodológico. Na realidade, podemos questionar até mesmo sea fidelidade estrita é possível. Uma adaptação é automaticamente

diferente e original devido à mudança do meio de comunicação.A passagem de um meio unicamente verbal como o romancepara um meio multifacetado como o filme, que pode jogar nãosomente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música,efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a poucaprobabilidade de uma Fidelidade literal, que eu sugeriria qualificaraté mesmo de indesejável.

A literatura através do cinema simplesmente admite, ao invésde articular, os vários desenvolvimentos teóricos que foramabalando as premissas fundadoras sobre as quais a doutrinada fidelidade historicamente se baseou. Os desenvolvimentos

estruturalistas e pós-estruturalistas lançam dúvidas sobre idéias depureza, essência e origem, provocando um impacto indireto sobrea discussão acerca da adaptação. A teoria da intertextualidadede Kristeva, com raízes no "dialogismo" de Bakhtin, enfatizou ainterminável permutação de traços textuais, e não a "fidelidade"

de um texto posterior em relação a um anterior, o que facilitou

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_uma abordagem menos discriminatória. Enquanto isso, o conceitobakhtiniano proto-pós-esc.rutura!ísra do autor como harmonizadorde discursos preexistentes, paralelamente à degradaçãofoucaultiana do autor em favor de um "anonimato difuso do

discurso", abriu o caminho para uma abordagem à arte "discursiva"e não-originária. A atitude bakhtiniana diante do autor literário

enquanto situado num "território interindividual" sugere umaatitude de reavaliação no que se refere à "originalidade" artística.

A expressão artística é sempre o que Bakhtin chama de uma"construção híbrida", que mistura a palavra de uma pessoa coma de outra. As palavras de Bakhtin a respeito da literatura comouma "construção híbrida" aplicam-se ainda mais obviamente a ummeio que envolve a colaboração, como o filme. A originalidadetotal, conseqüentemente, não é possível nem mesmo desejável. Ese na literatura a "originalidade" já não é tão valorizada, a "ofensa"de se "trair" um original, por exemplo, através de uma adaptação"infiel", é um pecado ainda menor.

Se "fidelidade" é um tropa inadequado, quais os traposseriam mais adequados? A teoria da adaptação dispõe de umrico universo de termos e (rapos - tradução, realização, leitura,crítica, dialogização, canibalização, transmutação, transfiguração,

encarnação, transmogrifícação, transcodificação, desempenho,significação, reescrita, detoumement - que trazem à luz umadiferente dimensão de adaptação. O tropo da adaptação comouma "leiQ1ra"do romance-fonte, inevitavelmente parcial, pessoal,conjuntural, por exemplo, sugere que, da mesma forma quequalquer te},,'toliterário pode gerar uma infmidade de leituras, assimtambém qualquer romance pode gerar uma série de adaptações.Dessa forma, uma adaptação não é tanto a ressuscitação de umapalavra original, mas uma volta num processo dialógico emandamento. O dialogismo intertextual, portanto, auxilia-nos atranscender as aporias da "fidelidade".

Gérard Genette, em Palímpsestos (1982),4 partindo do "dialo­gismo" de BaJrlltin e da "intertextualidade" de Kristeva, propõeo termo "transtextualidade", mais abrangente, para referir-se a"tudo aquilo que coloca um texto, manifesta ou secretamente, em

relação com outros textos," postulando, por fim, cinco categorias.

A quinta delas, a "hipertextualidade", parece ser particularmenteprodutiva no que tange à adaptação. O termo se refere à relação

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entre um determinado texto, que Genette denomina "hipertexto",e um outro anterior, o "hipotexto", que o primeiro transforma,modifica, elabora ou amplia. Na literatura, os hipote>..'tosda Eneida

incluem a Odisséia e a llíada, enquanto os hipotextos de Ulisses,

de Joyce, incluem a Odisséia e liamlet. Adaptações fílmicas, nes­te sentido, são hipertex(Qs nascidos de hipotextos preexistentes,transfoffi1adospor operações de seleção, ampliação, concretizaçãoe realização. As diversas adaptações fílmicasde Ligações perigosas

(Vadim, Frears, Forman), por exemplo, constituem leituras hiper­tex[Uaisvariadas, desencadeadas pelo mesmo hipotexto, De fato,as várias adaptações anteriores juntas podem formar um hipotextomaior, cumulativo, disponível ao cineasta que ocupa um lugarrelativamente "tardio" nessa seqüência.

Ao adotarmos uma abordagem ampla, intertextual, em vezde uma postura restrita, discríminatória, não abandonamoscom isso as noções de julgamento e avaliação. Mas a nossadiscussão será menos moralista, menos comprometida comhierarquias não aceitas. Ainda podemos falar de adaptaçõesbem-sucedidas ou não, mas agora orientados não por noçõesrudimentares de "fidelidade", e sim pela atenção dada a respostasdialógicas específicas, a "leituras", "críticas", "interpretações" e"reescritas" de romances-fonte, em análises que invariavelmentelevam em consideração as inevitáveis lacunas e transformaçõesna passagem para mídias e materiais de expressão muítodiferentes. Adaptações fílmicas caem no contínuo redemoinhode transformações e referências intertextuais, de textos quegeram outros textos num interminável processo de reciclagem,rransformação e transmutação, sem um ponto de origem visível.Portanto, ao invés de adotar uma abordagem avaliatíva, ireifocalizar as reviravoltas do dialogismo intertextual.

A QUESTÃO DO GÊNERO

A teoria da adaptação inevitavelmente herda queStões ante­riores relativas a intertextualidade e gênero. Etimologicamenteprovenieme de genus, do latim, que significa "tipo", a crítica de"gênero" começou, pelo menos no "Ocidente'? como a classi­ficação dos diversos tipos de textos literários e a evolução das

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formas literárias. Aristóteles, por exemplo, fazia distinção entreo meio de representação, os obíetos representados e °modo deapresentação, o que resultou na conhecida tríade do épico, dodramático e do lírico. O mundo do cinema herdou eSSehábito

antigo de classificaras obras de arte em "tipos", alguns e},.'traídosda literatura (comédia, tragédia, melodrama), enquanto outros são

mais especificamente visUai\~.cinemáticos: "visões","realidades",

tableaux,~~rdesenhos animados". Adaptaçõesfílmicasde romances invariaveltnente sobrepõem um conjunto deconvenções de gênero: uma extraída do intertexto genérico dopróprio romance-fonte e a outra composta pelos gêneros empre­gados pela mima tradutória do fUme,A arte da adaptação fílmicaconsiste, em parte, na escolha de quais convenções de gênero sãotransponíveis para o novo meio, e quaisprecisam ser descartadas,

suplementadas, transcodificadas ou substituídas. O romance Ahistória de Torn]ones, um enjeitado, como veremos (capítulo 3),serve-se da poesia épica, do romance cervantino, do pastoril etc.,ao passo que a adaptação fílmica de Tony Richardson empreganão apenas aqueles gêneros literários, mas também os gênerosespecificamente cinematográficos, tais como o filme burlesco daera do cinema mudo e o cinema verité.

O gênero fílrnico,como o gênero literárioantes dele, é penneávela tensões históricas e sociais. Como argumenta Erich Auerbachem Mimesis, a literatura ocidental, durante todo ° seu percurso,trabalhou no sentido de pôr fun à elitista "separaçâo de estilos"inerente ao modelo trágico grego, com suas hierarquias distintas:a U"agédiasuperior à comédia; a nobreza, ao demos,6 Um realismoenraizado no éthos do judaísmo igualitário foi, lentamente, demo­cratizando a literatura. A noção judaica de "todas as almas iguaisperante Deus" foi, gradualmente, hannonizando a dignidade deum estilo nobre com as classes "inferiores"de pessoas. Os gêne­ros vêm acompanhados, nesse sentido, de conotações de classe eavaliações sociais. Na literatura, o romance, com raÍzes no mundodo senso comum da factlcidade burguesa, desafia o romance decavalaria, freqüentemente associado a noções aristocráticasde cor­tesania e de cavalaria.A arte revitaliza-serecorrendo a estratégiasde formas e gêneros anteriormente marginalizadas, canonizandoo que outrora fora desprezado.

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Aolongo deste livro.nos dedicamos a esses tópicos interligadosde hierarquias sociais e estéticas, de estratificações de gênero eda sociedade. Será que um dado romance ou sua adaptaçãoconduz a sociedade a uma condição mais igualitária ao criticardesigualdades sociais baseadas em eixos de estratificação, taiscomo raça, gênero, classe e sexLlalidade, ou ele simplesmenteabsorve (ou mesmo glorifica) essas iniqüidades e hierarquiascomo se fossem naturais e predestinadas por Deus? Qual o gruposocial representado num romance/filme? Quem são os sujeitos

e .gllt=JILS~O .os obje~~s_º~_r_~EE~.5entação?Q~~grLlP~l1J!a

de.wivitégios sodals ou estéticosf'Erii que "língu(l,~_,<;,~tilo-ao representãÇif?-eslá-errquadraai;'equaissão as CÕ~~[ªç,Qessodais

-dess@s<;::s!í1o~~[í~~~asr"-" -,' - .-- -'-'-'Em termos históricos e de gênero, tanto o romance quanto

o filme têm consistentemente canibalizado gêneros e mídiasantecedentes. O romance começou orquestrando uma diversidadepoUfônica de materiais - ficções de cortesania, literatura deviagem, alegoria religiosa, obras de pilhéria - transformados numanova forma narrativa, reiteradamente defraudando ou anexandoartes vizinhas, criando novos híbridos como romances poéticos,romances dramáticos, romances epistolares, e assim por diante. Ocinema foi trazendo esta canibaiização ao seu paroxismo. Comolinguagem rica e sensorialmente composta, o cinema, enquantomeio de comunicação, está aberto a todos os tipos de simbolismoe energias literárias e imagísticas, a todas as representaçõescoletivas, correntes ideológicas, tendências estéticas e ao infinitojogo de influências no cinema, nas outras artes e na cultura demodo geral. Além disso, a intertextualidade do cinema tem váriastrilhas. A trilha da imagem "herda" a história da pintura e as artesvisuais, ao passo que a trilha do som "herda" toda a história damúsica, do diálogo e a experimentação sonora. A adaptação,neste sentido, consiste na ampliação do teÀ1o-fonteatravé~ç1essesrnultiplosiriIertextQ.s. ---- __ ,o -- __ o -----.0

REALISMO LITERÁRIO E MAGIA

Um outro argumento na discussão geral de A literatura através

do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação tem a ver com

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a eterna questão do "realismo" artístico. Termo elástico e extra,'00 ordinariamente contestado, "realismo" vem carregado de incrus­

tações mi/enares de debates filosóficos e literários precedentes.Basicamente arraigado no conceito clássico grego de mfmesís(imitação), o conceito de realismo somente ganha significânciaprogramática no século dezenove, quando passa a denotar ummovimento nas artes figurativa e narrativa dedicado à obser­vação e representação precisa do mundo contemporâneo. Umneologismo cunhado pelos críticos de arte franceses, o realismoera originalmente associado a uma atitude opositora em relaçãoaos modelos romântico e neoclássico na ficção e na pintura. Osromances realistas de escritores como Balzac, Stendhal, Flaubert,George Eliot e Eça de Queiroz inseriram personagens intensamen­te individualizados e seriamente concebidos em típicas situaçõessociais contemporâneas, Subjacente ao impulso realista, haviauma teleologia implícita de democratização social favorecendo aemergência artística de "grupos humanos socialmente inferiores emais extensivos à posição de tema na representação problemática­existencial",7Críticosliterários faziam distinção entre esse realismoprofundo, democratizame e um "naturalismo" raso, reducionistae obsessivamente verídico - realizado mais notoriamente nosromances de Emile 201a - cujas representações humanas tinhamcomo modelo as ciências biológicas.

Cada um dos textos discutidos neste livro pode ser analisadoem termos de seus coeficientes variantes de magia, reflexividadee real;.;mo: o paródico antiilusionismo de Dom Quixote, aabordagem documentário-reatista de Robinson Cmsoé, o realismoperspectivista de Madame Bovary, o realismo subjetivo deHirosbima, meu amor, o modernismo reflexivo de O desprezo,o "realismo mágico" de Erendira e Barroco. Ao longo do livro,voltarei às tensões produtivas entre a tradição reflexiva, paródíca,retomando Dom QUixote, por um lado, e a tradição "realista",revisitando Robinson Crusoé, por outro. Ao mesmo tempo, aindaestaremos sendo provincianos e eurocêmricos ao postularmossomente duas tradições básicas. Críticos como Arthur Heiserman(lbe nove! before the nove!) e Margaret Anne Doody (lbe true

story of the nove!) argumentam que o romance não começou noRenascimento, mas "tem uma história contínua de cerca de doismil anos".8

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Alguns criticas rejeitam a tradição, mencionada anteriormente,que demoniza o romance de cavalaria, muitas vezes codificado

como feminino, arcaico, supersticioso e suspeitamente "mágico",enquanto definem o romance como a quintessência da moder­nidade européia. Críticos anglocêntricos dão excessiva ênfaseaos liames do romance com o protestantismo e o capitalismo.Assim, crIticas como Ian Watt privilegiam o século dezoito, maisprecisamente o auge da força do romance inglês, elidindo outras

tradições nacionais e outras possíveis narrativizações.9 Uma gran­de variedade de críticos compartilha uma abordagem teleológica,quase hegeliana, que sublinha a preponderância "progressista"dos vestígios do passado. Dentro dessa narrativa de extermínio,formas "arcaicas" e "medievais" como a épica e o romance decavalaria inevitavelmente cedem espaço a formas modernas comoo romance, do mesmo modo que a aristocracia palaciana cedeespaço à classe média, e a mágica "oriental" dá lugar à ciência"ocidental". Apesar desse cosmopolitismo pan-europeu, mesmouma figura como Auerbach ainda vê a literatura "ocidental" ca­

minhando, inexoravelmente, para um único télos do realismo. Avisão teleológica geral dispensa antigos romances como O asnode ouro por não serem realmente romances, mesmo sendo "prosade ficção de certa extensão" .10

A crítica eurocêntrica canônica tende a traçar a história da arte,como faz a história de modo geral, "do norte ao noroeste",numatrajetória que vai da Bíblia e da Odisséia ao realismo literárioe ao modernismo artístico. Mas podemos Ver esses textos defundação, a Bíblia e a Odisséia, como "ocidentais"? A Bíblia temraízes na África, Palestina, Mesopotâmia e no Mediterrâneo, e acultura grega clássica sofreu forte impacto das culturas semítica,egípcía e etíope.

Se defíninnos o romance simplesmente como "prosa de ficçãode certa extensão", então o gênero vai muito mais longe, atémesmo antes de Dom Quixote, chegando aos grandes romancistasda Antigüidade como os egípcios, árabes, persas, indianos e sírios.Enquanto a narrativa difusionlsta eurocêntrica enreda ,a históriado romance marcando seu nascimento na Europa, espalhando­

se depois para a África e a Ásia, seria, pois, igualmente lógicoconsiderar que o romance tenha surgido fora da Europa, chegandodepois até lá. Conforme aponta Margaret Doody, o romance foi o

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produto do "contato entre o Sul da Europa, o Oeste da Ásia, e oNorte da África".n O romance tem, portanto, raízes na história dabacia mediterrãnea multirracial e niultilíngüe. O cânone, segundoHarold Bloom, não é exclusivamente "ocidental". Fragmentos

de papiro de romances sugeriram que a prática da leitura deromances era comum entre os egípcios no século dois d.e. E

não é por acidente que o título Aethiopika, de Beliodorus, oromance grego mais longo dentre os que sobreviveram, significa"Históría da Etfópid' (ênfase minha). Um escritor renascentistaitaliano como Boccaccio achava normal recorrer ao repertóriooriental das Fábulas de Bidpai e Sindbad, ofilósofo. (Até Disneyretoma Aladim e as Mil e uma noites.) Escritores como Cervantes

e Fielding conheciam e foram influenciados por tais textos. Comoassinala Doody, "Quem qúer que tenha lido Pamelaou Torn]onesesteve em contato com Heliodorus, Longo, Amadis, Petrônio", e

nós também nos aproximamos deles quando "lemos autores dos'séculos dezenove e vinte [tais como Salman Rushdiel que por sua

vez leram outros autores que leram essas obras" YHá "mais no céu e na terra", portanto, do que se imagina dentro

dos cânones provincianos do verismo ocidental. A valorizaçãodo realismo é freqüentemente associada à idéia de que a magia'e o fantástico foram desbancados pela Razão do I1uminismo.Uma visão linear, "progressista" de tais questões considera

que a humanidade tenha "ultrapassado" essas formas arcaicase irracionais; o mundo move-se para frente, inexoravelmente,em um curso global e unidirecional. A magia e o romancedesvalorizam-se como vestígios anacrônicos ou velhos modosde consciência a serem "superados" por formas mais evoluídas eracionais da Modernidade Iluminista. A fantasia e a magia, nessa

perspectiva, são vestígios de um passado que é melhor esquecer.Mas essas formas arcaicas nunca são completamente enterradas.

Pelo contrário, seus espectros assombram, ou melhor, animamtoda a história da ficção moderna, na forma do maravilhoso e

do romance presente em Dom Quixote, nos anseios românticosde Emma Bovary, na amarga rejeição da ciência e do iluminismodo Homem do Subterrâneo ou ainda na afirmação do arcaico e

do fantástico pelo Realismo Mágico como aspectos do "surrealquotidiano" da América Latina contemporânea.

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Também o modernismo artístico foi tradicionalmente definidoem contraposição ao realismo como norma dominante de repre­semação. Porém, fora dos limites ocidentais, o realismo raramentedominou; a reflexividade modernista como reação ao realismo,portanto, dificilmente conseguiria exercer o mesmo poder deescândalo e provocação. O modernismo, neste sentido, pode servisto de certa forma como uma rebelião provinciana e local. Emimensas regiões do mundo, e por longos períodos de história daarte, houve pouca adesão ou mesmo interesse pelo realismo. NaÍndia, uma tradição narrativa de dois mil anos retoma à épica eao drama clássicos do sânscrito, que relatam os mitos da culturahindu através de urna estética menos baseada em personagenscoerentes e num enredo linear do que em sutis modulações desentimento e disposição de ânimo (rasa).

O realismo como norma pode ser visto como provincianoaté mesmo na Europa. Em Rabelais e seu mundo, Bakhtin falado "carnavalesco" como uma tradição contra-hegemônica cujahistória vai dos festivaisgregos dionisíacos e da saturnália romanaao realismo grotesco do "carnavalesco" medieval, passandopor Shakespeare e Cervantes, chegando finalmente a Jarry eao Surrealismo.13 Conforme a teorização de Bakhtin, o carnavalabraça uma estética anticlásslcaque rejeita a unldade e a harmoniaformal para favorecer o assimétrlco, o heterogêneo, o oximoro,o miscigenado.

MAGIA E REALISMO NO CINEMA

Quanto ao cinema, a questão do "realismo"sempre esteve pre­sente ora considerada como ideal, ora como um objeto de opró­brio. Os próprios nomes de movimentos fílmicos dão o tom dasmudanças sobre o terna do realismo: o "sunealismo" de Bunuele Dalí, o "realismo poético" de Carné/Prevert, o "neo-realismo"de Rossellini e de Sica, o "realismo subjetivo" de Antonioni, o"sur-realismo" (realismo do sul) de Glauber Rocha, o "realismoburguês" denunciado pelos críticos do Cabiers du Cinéma emsua fase marxista-Ieninísta. Várias grandes tendências coexistemdentro do espectro de definições do realismo cinematográfico.As definições mais ortodoxas de realismo reivindicam verossimi­lhança, a suposta adequação de uma ficção à bruta facticidade

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do mundo. Essas definições muitas vezes estão associadas, porexemplo, na obra de Bazin e Kracauer, à natureza supostamente"objetiva" do aparato cinematográfico, com sua ligação indexa­dora, fotoquímlca com os objetos pró-fílmicos reais. Outras de­finições enfatizam as aspirações diferenciadoras do movimentofílmico com vistas a moldar uma representação relativamentemais verdadeira, vista como um corretivo para a falsidade de es­tilos cinematográficos anteriores ou protocolos de representação.Esse corretivo pode ser estilístico - como o ataque da nouvellevague francesa à artificialidade da "tradição de qualídade" - ousocial - o neo-realismo italiano visando mostrar à Itália pós-guerrasua verdadeira face - ou ambos - o Cinema Novo brasileiro re­volucionando tanto a temática social quanto os procedimentoscinematográficos do cinema nacional do passado.

Outras definições ainda enfatizam a convenclonalidade dorealismo levando em consideração a sua ligação com um graude conformidade do texto com modelos culturais amplamentedisseminados de "histórias críveis" e "personagens coerentes".Neste sentido, a plausibilidade e a verossimilhança são talhadaspor códigos de gênero. De um pai durão e conservador que, emum musical, resiste ao ingresso de sua filha no show-business,

pode-se esperar "realisticamente" que ele aplauda sua apoteoseno palco na cena final do filme. Definições de realismo cinema­tográfico feitas a partir de uma inclinação psicanalítica, por suavez, movem a crença do espectador, um realismo de respostasubjet":a, menos arraigado na precisão mimética do que na con­vicção do público. Uma definição puramente formalista de "rea­lismo" enfatiza a natureza convencional de todas as construçõesficcionais, vendo o realismo apenas como uma constelação dedispositivos estilístlcos, um conjunto de convenções que, numdado momento na história de uma arte, consiga, através da técnicailusionista afinada, cristalizar um forte sentimento de autentici­dade. Para Gilles Deleuze, finalmente, o realismo não mais serefere a uma adequação mimética, analógíca, entre o signo e oreferente, mas sim à sensação de tempo, à intuição de duraçãovivenciada, os deslocamentos móveis da durée bergsoniana. Orealismo, importante acrescentar, é culturalmente relativo; paraSalman Rushdie, os musicais de Bollywood (Bombaim) fazem osmusicais hollywoodianos parecerem documentos neo-realistas

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de última categoria.14 O realismo fílmico é também condiciona­

do historicamente. Gerações de cinéfilos achavam os filmes em

preto-e-branco mais "realistas", embora a própria "realidade') sejaem cores. O ponto-chave nessa discussão é que o realismo é,

em si, um discurso, uma fabricação astuta que cria e remodelao que diz.

Uma questão importante para todas as adaptações é a relaçãodo filme com o modernismo, e como ela difere da ligação com

a literatura. Esta questão tem a ver com o espaço-temporalidadeespecífico do filme e, em especial, com a ('continuidade" comonúcleo do estilo dominante. Hollywood e seus correlatos em

todo o mundo inventaram uma forma de contar histórias pormeio de uma organização de tempo e espaço especificamentecinematográfica. O modelo dominante criou o que veio a ser apedra de toque estética do cinema hegemônico: a reconstituiçâode um mundo ficcional caracterizado pela coerência interna e

pela aparência de continuidade. Esta última foi alcançada pormeio de normas de apresentação de novas cenas (uma progressãocoreografada de establishing shot a medium shot a dose shot);15

recursos convencionais para aludir à passagem do tempo (dissol­ves, íris effects);16técnicas convencionais para tomar imperceptívela transição de uma tomada a outra (a regra dos 30 graus, corteem movimento, combinações de posição e movimento, inserts

e "cortes" para encobrir descontinuidades); e dispositivos parasugerir subjetividade (edição de ponto de vista, planos de reação,eyeline matches'). A estética hollywoodiana convencional pro­moveu o ideal não somente de enredos lineares, coerentes de

causa-efeito, que giram em torno de "conflitos maiores", mas

também de personagens motivados e críveis. Um decoro espaço­temporal específico empregou toda essa panóplia de dispositivospara transmitir a sensação de uma continuidade livre de junções.Naturalmente os processos de produção cinematográfica sãoaltamente descomínuos; uma única cena retratando uns poucosminutos consecutivos na história resulta muitas vezes da filmagemdurante vários dias ou até meses. Todavia, a estética normativa

exige que os filmes façam de tudo para "encobrir" tais interrupçõesem nome da "continuidade" e do fluxo narrativo.

Uma outra palavra-chave nessas discussões é "reflexividade".

Etimologicamente oriundo da palavra latina reflexiolreflectere

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(voltar-se para), o termo foi inicialmente tomado emprestadoda filosofia e da psicologia, em que ele se referia à capacidadeda mente de ser tanto sujeito e objeto de si mesma dentro doprocesso cognitivo. Com esta acepção, encontramos a noçãode reflexividade em alguns dos ditos mais famosos da fJ1osofia,como, por exemplo, o dito filosófico e gramaticalmente reflexivode Sócrates "Conheça-te a ti mesmo" e o de Descartes, cogitoergo sum, em que a observação cética da consciência, em queela observa a si mesma no processo de se conscientizar, torna­

se fundamental para a epistemologia. Assim também Kant, quedefendia a idéia do julgamento fllosófico reflexivo, enquantoalguns teóricos sociais clamavam pela "sociologia reflexiva". Defato, a reflexividade artística se manifesta de várias formas: auto·consciência metodológica, reflexão metate6rica, o mise-en-abymede reflexões ad infinítum, a quebra de estruturas, a relativizaçâoda perspectiva cultural. Recentemente, os críticos chamarama atenção para certás armadilhas na teoria da reflexividade. Ateoria fílmica da década de 1970 costumava ver a reflexividade

como uma panacéia política, enquanto deixava de notar o po­tencial progressista do realismo. Algumas vezes, a reflexividadese torma uma espécie de narcisismo ou uma demonstração devirtudes autoconfessadas: "Eu sou reflexivo, mas você não é!",uma ambigüidade satiricamente antecipada, como veremos, porDostoievsky em Notas do subterrâneo.

No campo das artes, a reflexividade no sentido psicol6gico!filosófico se aplica também à capacidade de auto-reflexão de

qualquer meio, língua ou texto. No sentido mais amplo, a refle­xividade artística refere-se ao processo pelo qual textos, literá­rios ou fíhnicos, são o proscénio de sua própria produção (porexemplo, As ilusões perdidas, de Balzac, ou A noite americana, deTruffaut), de sua autoria (Em busca do tempo perdido, de Prousc,8 lh , de Fellinj), de seus procedimentos textuais (os romancesmodernistas de]ohn Fowles, os filmes de Michae1 Snow), de suasinfluências intertextuais (Cervantes ou Mel Brooks), ou de sua

recepção (Madame Bovary, A rosa púrpura do Cairo). Ao chamara atenção para a mediação artística, os textos reflexivos subvertem

o pressuposto de que a arte pode ser um meio transparente decomunicação, uma janela para o mundo, um espelho passeandopor uma estrada.

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Como já argumentei anterioffilente, a reflexividade não estálimitada ao que, muitas vezes, é equivocadamente rotulado de

tradição "ocidental",IB A reflexividade existe sempre que seres

humanos usuários de línguas "falam sobre a fala". Para Heruy Louis

Gates, em O maeaeosignificante, a figura do trieksteriorubá Exu­

Elegbara é um emblema da "significaçào da arte afro-diaspórica"que empreende a desconstrução.'9 A reflexividade não estálimitada a tradições eruditas, literárias ou acadêmicas; ela pode serencontrada em canções populares, no vídeo rap, na comédia stand­

up e em comerciais televisivos. Tampouco podemos considerar

que a reflexividade e O realismo sejam, necessariamente, termosantitéticos. Como veremos, um filme como O desprezo, de Godard,

é ao mesmo tempo reflexivo e realista, uma vez que ele ilustra asrealidades sociais vividas no dia-a-dia na mesma medida em que

lembra aos leitores/espectadores que a mímesis do filme se tratade um construto. O realismo e a reflexividade não são polaridades

estritamente opostas, mas tendências que se interpenetram ou póloscapazes de coexistir dentro do mesmo texto,

O cinema tem sido associado, desde o começo, com o realismo

e com o mágico e o onírico. Em sua invocação por um "cinemaxamânico", o cineasta/teórico Raul Ruiz remonta as origens do

cinema a uma série de eventos "mágicos";

A mão de um homem das cavernas apertada contra uma su­perfície ligeiramente colorida ... simuladores (demônios semi­transparemes do ar, descritos por Hermes Trimegistus); sombraspré e pós-platônicas; o Golem... o Fantascope de RobertSonj asborboletas mágicas de Coney Island. Todos compõem uma pre­figuração do cinema.'o

Assim como a tradição do romance bifurca nas tradições doparódico Dom Quixote e do mímético Robinson Crusoé, também

o cinema, à época de seu nascimento, divide-se no realismo das"visões" e das "realidades" de Lumiere, de um lado, e nos esboços

mágicos de Melies, de outro, No entanto, Godard, meio século

depois, reverteu a dicotomia ao sugerir que Lumiere filmava comoum pintor impressionista, enquanto Melies documentava o futuroao enviar seus personagens à luaY

Melies descobriu que a edição possibilitava substituições etransfoffi1ações mágicas, deixando assim uma rica herança que

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permitiu ao cinema modíficar as coordenadas de tempo e deespaço. Orson Welles é, portanto, o herdeiro de Melíes quandose auto-retrata na figura do mágico em Verdades e mentiras. Ocinema conjuga o realista e o fantástico. Ele emprega o realismodaquilo que os teóricos chamam de "monstração" - objetiva esem "intervenção humana", como Bazin notoriamente afirmava- e "a mágica" da montagem e da superposição, permitindo aofilme desempenhar transformações temporais e sobre posiçõesespaciais impossíveis. O cinema pode ainda veicular a mágicapersuasiva dos sonhos. De Munsterberg a Metz, os teóricos decinema notaram não somente a capacidade do filme de representarsonhos, mas também suas analogias COm o sonho em termos deseus procedimentos operacionais, suas fusões e deslocamentosmetonímicos e metafóricos. Filmes, em suma, são potencialmente

"mágico-realistas"j eles podem tornar os sonhos realistas e arealidade onírica, conferindo à fantasia aquilo que Shakespearedenominou "uma morada local e um nome",

Como tecnologia da representação, o cinema está equipadode modo ideal para multiplicar magicamente tempos e espaços;tem a capacidade de entremear temporalidades e espacialidadesbastante diversas; um filme de ficção, por exemplo, é produzidonuma gama de tempos e lugares, e representa uma outra cons-

. telação Cdiegética) de tempos e espaços, sendo ainda recebidoem outro tempo e espaço (na sala de cinema, em casa, na salade aula). A conjunção textual de som e imagem em um filmesignifica rlão apenas que cada trilha apresenta dois tipos detempo, mas também que essas duas formas de tempo mutuamentefazem inflexões uma sobre a outra numa forma de síncrese.

Tomadas atemporais estáticas podem ser inscritas com tempo­raJidade através da música, por exemplo.2z O leque de técnicascinematográficas multiplica ainda mais esses já diversos tempose espaços. A sobreposição redobra o tempo e o espaço, comofazem também a montagem e a utilização de molduras múltíplasdentro de uma imagem. Aqueles que afirmam que ao filmeinerentemente falta a "flexibilidade" do romance esquecem-sedestas versáteis possibilidades.

Os primórdios do cinema coincidiram com o auge do projetoverístico conforme sua expressão no romance realista, na peçanaturalista (em que produtores teatrais como Antoine utilizavam

carne verdadeira em cenas de açougue) e em exposições

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obsessivamente miméticas. O modernismo artístico que floresceunas primeiras décadas do século vinte e que foi institucionalizadocomo "alto modernismo" após a Segunda Guerra Mundialpromoveu uma arte anti-realista, não-representativa, caracterizadapela abstração, fragmentação e agressão. Embora o incremento

tecnológico do cinema faça-o parecer superficialmente moderno,Sua estética dominante herdou as aspirações miméticas do realismoliterário do século dezenove. Formas dominantes do cinema eram,

assim, "modernas" em sua atualização tecnol6gica e industrial, masnão modernistas em sua orientação estética. Não é de se admirar

que os maiores desapontamentos, por parte dos leitores letrados,tenham a ver com adaptações de romances modernistas comO

os de Joyce, Woolf e Proust, exatamente porque nesses casos alacuna estética entre fonte e adaptação parece ser estarrecedora,

menos por causa das falhas inerentes ao cinema do que devidoà opção pela estética pré-modemista.

Ainda assim essa narrativa também pode, por vezes, encerrarum conto de fadas modernista de progresso, o enredamentomeliorista por meio do qual o realismo leva à reflexividade comoo télos último da arte. Além disso, a dicotomia entre o cinema

realista e o romance modernista pode ser facilmente exagerada.Muitos realismos são modernistas. Seria Hitchcock ainda pré­modernista quando trabalha com Salvador Dalí na seqüênciado sonho em Quando/ala o coraçâó! E, da mesma maneira, aofazer filmes dentro da indústria mexicana, Bunuel permanece ovanguardista de Um cão andaluz e A idade do ouró!23 O cinema

foi muitas vezes modernista (e pós-modernisra); o problema é queseu modernismo não costumava tomar a forma de adaptações.Grande parte da obra de Alain Resnais pode ser vista como umprolongamento cinemático da obra romanesca de Proustj noentanto, Resnais nunca adaptou Em busca do tempo perdido,Glauber Rocha encarnou o "realismo mágico" latino-americano emTerra em transe, mas ele nunca adaptou Márquez ou Carpentier.Limirar a discussão a adaptações existentes, neste sentido, resultanum senso falsamente diminuído do potencíal modernista docinema. Minha própria pressuposição, diferentemente, é que asvariadas capacidades cronotópicas do cinema capacitam-no a

transpor e a enriquecer, em absoluto, qualquer estética, realistaou anti-realista, ilusionista ou auto-reflexiva.

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DIALOGISMO MULTICULTURAL

A natureza palimpséstica multifacetada da arte, afirmo ao

longo deste texto, opera dentro e através das culturas. Outrotema intermitente será o diálogo multicultural entre a Europa e

seus outros, 11mdiálogo que não é reCente. Apesar da narrativaeurocêntrica construir um mura artificial que separa a cultura

européia das demais, na verdade a própria Europa é uma síntesede várias culturas, ocidentais e não ocidentais. O "ocidente",

portanto, é em si uma herança coletiva, um mélange OIÚVOrode culturas; ele não absorveu simplesmente influências não

européias, como afirma Jan Pietersie, "ele se constituiu delas" ,24

À luz dessas diferenças constitutivas e mutuamente imbricadas, Aliteratura através do cinema adota uma abordagem policêntrica,

multiperspectivista ao filme e à literatura. O crítico espanholOrtega y Gasset antecipou esta idéia em 1924 em Ias Atlantidas,

que previa o futuro descentramento da Europa e a expansão dehorizontes:

Nos últimos vinte anos, os horizontes da história foram excep­cionalmente expandidos - tanto que o velho pupllo da Europa,acostumado à circunferência de seu horizonte tradicional, da

qual ela era o centro, não consegue agora encaixar em uma sóperspectiva os enormes territórios repentinamente acrescentados,Se até o presente a "história universal" sofreu da concentraçãoexcessiva sobre um único ponto gravitacional, na direção doqual todos os processos da existência humana convergiram - oponto de vista europeu - pelo menos por uma geração seráelaborada uma história universal policêntricaj a totalidade dohorizonte será obtida através de uma simples justaposição dehorizontes parciais. com raios heterogêneos, que, amealhados,proporcionarão um panorama de destinos humanos semelhamea uma pintura cubista.25

Ainda que eu não veja esta abertura de horizontes como umdesenvolvimento recente (ela pode ser rastreada até a Renascença,ou mesmo antes dela), endosso a noção de Ortega de uma

história literária policêntrica. Minha abordagem no presente livroserá multicultural e antieurocêntrica, nem tanto em termos do

C01pUS - a maioria dos textos tratados é de clássicos europeusou "eurotrópicos" - porém mais em termos de ver oS próprios

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Page 12: STAM, Robert - Introdução In A literatura através do cinema - Realismo, mágica e a arte da adaptação

textos como multiculturais, seja através de presenças manifestasou através de ausências estruturadoras.

A teoria da adaptação é o que a translingüística bakhtinianachamaria de "enunciado historicamente situado". E, da mesma

forma que não se pode separar a história da teoria da adaptaçãoda história das artes e do discurso artístico, tampouco pode-sesepará-Ia da história tout court, definida por Jameson como

"aquilo que dói", mas também como aquilo que inspira. Numaperspectiva mais ampla, a história da literatura, como a do filme,

precisa ser vista à luz dos eventos históricos de larga escalacomo o colonialismo, o processo pelo qual os poderes europeusalcançaram posições de hegemonia econômica, militar, política ecultural em muitos lugares da Ásia, África e das Américas. Anexar

territórios adjacentes a nações ocorria com freqüência, mas oque havia de novo no colonialismo europeu era o seu alcance

planetário, sua filiação ao poder global institucionalizado, e seumodo imperativo, sua tentativa de submeter o mundo a um único

regime "universal" de verdade e poder. Esse processo teve seuapogeu no começo do século vinte, quando a superfície terrestre

sob controle do poderio europeu cresceu de 67% (em 1884) para84.4% (em 1914), sitUação que somente começou a ser revertida

com n desintegração dos impérios coloniais europeus após aSegunda Guerra Mundia1.2ú A tradição Iíterária explorada aquivai de Dom Quíxote, escrito por volta de um século depois queconquistadores como Colombo e Cortez invadiram as Américas,

até o realismo mágico de Erendira e Barroco, escritos séculos

mais tarde, mas ainda carregando as cicatrizes da conquista eda escravidão nas Américas. Toda a tradição é inevitavelmentemarcada pelo colonialismo e pelo imperialismo. Neste sentido,o livro é consoante com o apelo de Edward Said em Cultura eimperialismo por uma "abordagem contrapontística que enfatizea sobreposição e o entrelaçamento das histórias da Europa eseus 'outros"',27

Os vários impérios europeus encarnavam a si mesmos eprojetavam seu poder através de textos, que incluíam não apenastratados políticos, diários, decretos, registros administrativos ecartas, mas também romances e, mais tarde, filmes. De modo

geral, os romances europeus simplesmente tomavam por certo odomínio e o poder do império. Obras como MansfieldPark (1814),

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de ]ane Austen, giram em torno de questões de propriedade,tanto no sentido de comportamento adequado quanto de posse,estando a propriedade arraigada nas colõnias. A fazenda MansfieldPark, assim, é mantida pelos canaviais de Sir Thomas Bertram emAntígua, onde praticou-se a escravidão até a década de 1830. Arecente adaptação de Mansfield Park, ao chamar a atenção para

a dependência de Sir Thomas do escravagismo, revê o romancea partir do olhar anticolonialista de Fanon, Said, e outros.28 EmVani(y Jair, de Thackeray, o império é retratado como fonte de

lucro, ao passo que em M1"s. Dalloway (1925), de Virginia \Voolf.o império é descrito empunhando seu "cassetete" para dominar "opensamento e a religião, a bebida, o vestuário, os hábitos. e tambémo casamento". Críticos pós-colõniais e multiculturais começaram a

"dessegregar" e a "transnaclonalizar" a crítica, explorando a maneiracom que o personagem Huck Finn foi moldado a partir de umprotótipo negro, por exemplo, ou o modo com que Pequod, deMelville, em Moby Dick, constitUi um microcosmo multicultural,ou ainda como a história de Benito Cereno sobre um motim

de escravos reflete sobre a política racial na América do século

dezenove. Apesar desses elementos multiculturais sempre teremeyjstido, o advento da crítica pós-colonial os imbuiu de significânciainterpretativa renovada.

Se os primórdios do romance europeu (Robinson Crusoé)coincidiram com o mamemo inicial da conquista colonial e daescravidão transatlântica, a origem do cinema coincidiu com o

paroxismo imperial da dominação européia. Os países que maisproduziram filmes durante a era do cinema mudo - Inglaterra,França, Estados Unidos, Alemanha - também, "por acaso", figu­raram entre os países líderes do imperialismo, cuío declaradointeresse era enaltecer o empreendimento colonial. O cinemacombinou narrativa e espetáculo para contar a história do co­lonialismo a partir da perspectiva do colonizador. De todas as

celebradas "coincidências" - dos primórdios do cinema com apsicanálise, o surgimento do nacionalismo, a emergência doconsumismo - é a coincidência com o imperialismo a que temsido menos estudada. Este livro, espero, indiretamente se referea essa lacuna.

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QUESTÕES DE MÉTODO

Já que é impossível dizer tudo sobre os ftlmes e os romancesexaminados neste livro, especialmente em se tratando de urnaobra que espera cobrir séculos de desenvolvimento Iíterário e

cinematográfico em diversos países (Espanha, Inglaterra, França,Rússia, Estados Unidos, Brasil, Cuba, Argentina, índia, Portugal),necessariamente deve haver um princípio de seleção e enquadra­mento. Um princípio de seleção tem a ver com a minha própriaárea de competência. Fonnado em literarura comparada, respeiteio princípio de lidar somente com textos escritos em Jfnguas que euposso ler no original, isto é, inglês, francês, português e espanhol(o russo das Notas do subterrâneo é a exceção).

Mas, em outro sentido, o princípio de pertinência que escolhié amplamente estético. Preocupo-me, principalmente, com osdesafios estilisticos e narrativos que uma série de romances oferece

ao adaptador fílmico. Portanto, ofereço exegeses detalhadas de

trechos específicos nos romances ou de seqüências particularesnas adaptações f.í1.micas,usando análises comparativas detalhadas

como meio de antecipar os diferentes modos de representação.Enfatizo, em geral, o estilo, voz e técnicas narrativas. Quandodiscuto Dom Quixote, não falo da representação que o romancefaz da história da Espanha, mas sim das estratégias narrativas etexruais de Cervantes: contos intercalados, a inserção de críticaliterária, digressão sistemática, e assim por diante. Ao mesmo

tempo, tal priorização do estético não significa que a análise irá

omititir o cunho social, político ou histórico. As questões estéticas,

para mim, estão intrinsecamente associadas às questões sociais quetêm a ver com a estratificação social e a distribuição do poder.Uma abordagem fonnalista, que em Cultura e imprm'alismo EdwardSaid compara ao ato de "descrever uma estrada sem sÍtllá-Ia na

paisagem,"29 será obviamente inadequada. O que me interessa é a

historicidade das próprias formas, a maneira pela qual as escolhasestilísticas em termos de gênero, voz e ponto de vista ressoam oque a translingüística chama de "avaliações sociais", 'o modo como

as Violações das normas estéticas repercutem o enfraquecimentode normas sociais,

Dado o preâmbulo metodológico, resta esquematizar o mo­

vimento geral de A literatura através do cínema. Seguindo essa

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introdução conceirual, o capítulo 1, "Um prelúdiO celvantino: deDom Quixote ao pós-modernismo", coloca os temas do realismo

e da magia ao discutir o romance Dom Quixote juntamente comsuas adaptações f11micas, notadamente as de Orson Welles eGregory Kozintsev, antes de passar aos aspectos cervantinos depós-modernismo.

O capítulo 2, "Clássicos coloniais e pós-coloniais: de RobinsonCrusoé a Survívor', focaliza o realismo documental, "somenteos fatos", de-Defoe em seu romance seminal As aventuras de

Robinson Crusoé; após delinear a importância crucial do romance

de Defoe, exploro somente algumas das muitas adaptaçõesbaseadas em Crusoé, enfocando em especial Robinson Crusoé, deBunuel, Man Friday, de Jack Gold, e Crusoé, de Caleb DeschameLUm leitmotív seria aqui a tendência anticolonialista de "contra­escrever" na literatura.

O capítulo 3, "O romance autoconsciente: de Henry Fie1dinga David Eggers", retoma à tradição cervantina do romance auto­consciente. Ao passo que Robinson Crusoé suprime suas própriasfontes intertextuais em nome da verossin1iJ.hança, os romances"autoconscientes" escritos "ã maneira" de Cervantes chamam a

atenção para a sua própria intertextuaUdade. Aqui, destacarei doisromances de Henry Fielding (Inocente sedutor e As aventuras deTom fones) e um de Machado de Assis (Memórias póstumas deBrás Cubas). Concluirei o capítulo fazendo menção aos aspeGosreflexivos do romance contemporâneo (Uma comovente obrade espantoso talento, de Dave Eggers) à comunicação de massacontemporânea.

O capítulo 4, "O romance protocinematográfico: metamorfosesde Madame Bovmy', leva-nos ao romance realista clássicodo século dezenove, que forneceu incontáveis histórias paraadaptação e ainda auxiliou na formação do paradigma da estéticadominante dentro do cinema. Aqui, focalizarei Madame Bovary,

de Flaubert, que contrapõe e sintetiza as duas tradições exploradasnos capítulos anteriores, a saber, o documentário-mimético(Defoe) e o reflexivo-paródico (Cervames). Após demonstrar os

aspectos "protoimpressionistas" e "protocinematográficos" doromance de Flaubert, porei em foco suas variadas adaptações,notadameme naquelas dirigidas por Jean Renoir (1934), VincenteMinnelli (1949), Claude Chabrol (1991), Ketan Mehta (992) e

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Manoel de Oliveira(997). Fecharei o capítulo com uma discussãosobre alguns dos trabalhos "f1aubertianos"de Woody Allen.

O capítulo 5, "O homem do subterrâneo e narradores neuró­ticos: de Dostoievskya Nabokov", negocia a transição do romancemimético do século dezenove para as. narrativas modernistas,particularmente aquelas que empregam narradores em primeirapessoa pouco confiáveis. Após uma discussão da importânciada escril:a "polifôníca" de Dostoievsky e uma análise de Notas

do subterrâneo e duas de suas adaptações, focalizo uma sériede transposições de romances modernistas para o cinema, todosinfluenciados por Dostoievsky, contendo narradores neuróticos,duvidosos, autodepreciativos: a adaptação feita por TomasGutierrez Alea de Memórias do subdesenvolvímento, de EdmundoDesnoes; dois flimes (de Stanley Kubrik e Adrian Lynne) baseadosem Lolita, de Nabokov; e A hora da estrela, de Suzana Amaral, apartir do romance homônimo de ClariceLispector.

O capítulo 6 aborda o "Modernismo, adaptação e a nouvelle

vague francesa".Após algumas observações iniciaissobre a práticada adaptação pela nouvelle vague e acerca de discussões teóricasa respeito do mesmo assunto naS páginas do Cahiers, me atenhoao romance/filme experimen.tal na França, em especial ao cine­roman, dedicando maior atenção a Hiroshima, meu amor e Ano

passado em Marienbad. Os cine-romans forjam uma modalidadecompletamente nova da relação filme/romance, em que a noçãode "adaptação" se torna ainda mais problemática do que onormal, em que romancista e cineasta trabalham em igualdade eaté mesmo em simbiose, na medida em que respeitam a especifi­cidade de cada meio. É dentro desse enfoque que oferecerei umaanálise aprofundada do filme de Godard baseado no romanceO desprezo, de Alberto Moravia, antes de concluir com algunscomentários sobre os aspectos cervantinos e "quixotescos" danouvelle vague francesa em geral.

O capítulo final fecha o círculo de discussões sobre realismoe magia ao focalizar o boom e o "realismo mágico" latino­americanos. Enquanto Godard, em O desprezo, problematizao realismo ao trazer para primeiro plano, reflexivamente, amecânica formal do ilusionismo e ao "esvaziar" a narrativa, aabordagem "realista mágica" interroga o realismo ao caminharna direção oposta, ao tecer uma profusão delirante de contos

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improváveis. Se uma forma de reflexividade é "infra-realista",a 'outra abordagem poderia ser chamada de "supra-realista".Após esquematizar o contexto histórico do realismo mágico,ofereço uma análise aprofundada do precursor relativamentedesconhecido do "realismo mágico": Macunaima (1928), obrilhante romance modernista de Mário de Andrade - para mim,a "mãe" ignorada de todos os romances do realismo mágico - ede sua "tradução" cinematográfica igualmente notável, feita porJoaquim Pedro de Andrade em 1968. Finalmente, discuto asadaptações fílmicas baseadas I}aobra de Gabriel Garcia Márquez(Um. senhor muito velho com umas asas enormes, Erendira) e deAlejo Carpentier (Barroco).

De maneira geral, A literatura através do cinema ofereceurna história da tradição do romance por meio de suas re-visõesfílmicas, enfatizando as complexas mudanças energéticas esinergéticas envolvidas na migração trans-mídia. Ao invés deseguir um só modelo, minha abordagem analítica será flexível,"adaptada" às qualidades específicas de cada filme e romance.Empregando simultaneamente a teoria literária, teoria midiáticae estudos (multi)culturais, adotarei múltiplas estruturas - umaespécie de cubismo metodológico -, a fim de esclarecer asrelações entre o romance e o filme de uma maneira que é, espero,rica, complexa e multidimensional.

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