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"Projeto "Nós Propomos!": uma rede crescente de cidadania territorial" Sandra Mendonça Colégio de Aplicação Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] Sérgio Claudino [email protected] Instituto de Geografia e Ordenamento Territorial IGOT/ Universidade de Lisboa 1. INTRODUÇÃO No ensino das Ciências Sociais cresce o apelo a um forte compromisso com uma educação para a cidadania democrática, em que se sublinham os deveres de solidariedade - na contradição de uma escola que é, em si mesma, um espaço ademocrático. Na construção de uma sociedade justa e solidária (em contraciclo com os tempos de crise?), redescobre-se a importância das narrativas e da imaginação na reinvenção das sociedades e dos territórios, na busca de sociedades mais justas e felizes (Claudino, Hortas, 2012). Em Geografia, apela-se a uma educação para a “spatialcitizenship” (Donert, Gryl, Jekel, 2010), entendida como a apropriação e intervenção esclarecida na resolução dos problemas de comunidades e de territórios pelo que preferimos a designação de “territorial citizenship”. O apelo a uma cidadania territorial é cada vez mais transversal às várias escolas de educação geográfica, embora com as cambiantes: na escola britânica, discute-se o significado da cidadania global (Lambert, Morgan, 2010); na escola francófona, enfatizam-se as preocupações cívicas (LeRoux, 2005), enquanto na América Ibérica emerge a intervenção junto dos jovens das grandes periferias urbanas(MorenhoLache, HultradoBéltran, 2010). O apelo a uma educação geográfica para a cidadania coincide com aquele da construção de uma sociedade diretamente envolvida nas decisões comunitárias, de acordo com um modelo de governança - finalidade assumida há mais de uma década pela União Europeia (CommissionoftheEuropeanCommunities, 2001). Contudo, sucessivas investigações, concluem pela reduzida mobilização dos professores e pela limitada alteração das práticas, numa perspectiva de cidadania. Na Espanha, o projeto“Educación para la Ciudadanía y FormacióndelProfesorado…”

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"Projeto "Nós Propomos!": uma rede crescente de cidadania territorial"

Sandra Mendonça

Colégio de Aplicação

Universidade Federal de Santa Catarina

[email protected]

Sérgio Claudino

[email protected]

Instituto de Geografia e Ordenamento Territorial –IGOT/

Universidade de Lisboa

1. INTRODUÇÃO

No ensino das Ciências Sociais cresce o apelo a um forte compromisso com uma

educação para a cidadania democrática, em que se sublinham os deveres de

solidariedade - na contradição de uma escola que é, em si mesma, um espaço

ademocrático. Na construção de uma sociedade justa e solidária (em contraciclo com

os tempos de crise?), redescobre-se a importância das narrativas e da imaginação na

reinvenção das sociedades e dos territórios, na busca de sociedades mais justas e

felizes (Claudino, Hortas, 2012). Em Geografia, apela-se a uma educação para a

“spatialcitizenship” (Donert, Gryl, Jekel, 2010), entendida como a apropriação e

intervenção esclarecida na resolução dos problemas de comunidades e de territórios –

pelo que preferimos a designação de “territorial citizenship”. O apelo a uma cidadania

territorial é cada vez mais transversal às várias escolas de educação geográfica,

embora com as cambiantes: na escola britânica, discute-se o significado da cidadania

global (Lambert, Morgan, 2010); na escola francófona, enfatizam-se as preocupações

cívicas (LeRoux, 2005), enquanto na América Ibérica emerge a intervenção junto dos

jovens das grandes periferias urbanas(MorenhoLache, HultradoBéltran, 2010). O

apelo a uma educação geográfica para a cidadania coincide com aquele da construção

de uma sociedade diretamente envolvida nas decisões comunitárias, de acordo com

um modelo de governança - finalidade assumida há mais de uma década pela União

Europeia (CommissionoftheEuropeanCommunities, 2001).

Contudo, sucessivas investigações, concluem pela reduzida mobilização dos

professores e pela limitada alteração das práticas, numa perspectiva de cidadania. Na

Espanha, o projeto“Educación para la Ciudadanía y FormacióndelProfesorado…”

(Universidade de Sevilha, 2006/09, SEJJ2006-08714) revela que os docentes

consideram interessantes os programas de educação para a participação, mas

entendem que estes estão alheados das realidades escolares; o novo projeto que lhe dá

sequência, Estrategias de formación de profesorado para educar en la participación

ciudadana…/EDU2011-23213 (expandido com a participação de Portugal),pretende

identificar os obstáculos na formação inicial e contínua de professores ao

desenvolvimento de práticas de cidadania. Em Portugal, duas recentes dissertações

sobre ensino de Geografia (Martins, 2011; Costa, 2011) concluem que a introdução

de um currículo por competências não alterou as práticas no ensino de Geografia,

enquanto Miranda (2009) e Esteves (2010) sublinham a urgência de uma educação

para a cidadania. Um resultado similar obteve-se em tese entitulada “ A formação

inicial dos professores de Geografia: processos e práticas formativas nos cursos de

Geografia”(MENDONÇA, 2013)

Em 2004, o programa do 11º ano de Geografia do ensino secundário, em Portugal, que

sublinha a importância da educação para a cidadania (ME, 2001, p.7), consagra um

espaço curricular muito direcionado para uma intervenção cidadã territorial: o Estudo de

Caso. Com ele,pretende-se o estudo de um tema do programa “com importância na

região onde o aluno vive ou consistir na aplicação dos conhecimentos adquiridos e das

competências desenvolvidas”; de entre as competências indicadas, contam-se “analisar

criticamente problemas que afetam a região onde vive, reflectindo sobre soluções” e

“utilizar técnicas e instrumentos adequados de pesquisa em trabalho de campo” (idem,

p. 57). Apesar de poder ser desenvolvido como trabalho de pesquisa documental, o

Estudo de Caso está claramente direcionado para o trabalho de campo e para a procura

de soluções dos problemas regionais/locais (assumindo a polissemia do termo

“regional” – Claudino, 2006).

No Brasil, o estudo de caso se origina no Estudo do Meio e tem sido compreendido

como um método de ensino de caráter interdisciplinar que objetiva propiciar aos

estudantes e professores contato direto com uma determinada realidade que se decida

estudar. Esta atividade pedagógica se concretiza pela imersão orientada na

complexidade de um determinado espaço geográfico, do estabelecimento de um diálogo

inteligente com o mundo, com o intuito de verificar e de produzir novos conhecimentos

(PONTUSCHKA; LOPES, 2009). Assim, tanto em Portugal quanto no Brasil temos em

comum esta metodologia de estudo, propiciando aos estudantes o contato com a

realidade.

Nas últimas décadas a produção geográfica passou por mudanças significativas em seus

paradigmas resultando num amplo questionamento e consequentes mudanças no ensino

de geografia. A contestação de um ensino desvinculado da realidade passou a pressionar

os profissionais e as universidades a repensarem os objetivos da formação e também do

ensino de geografia. As perguntas para que, por que e para quem acompanham os

profissionais comprometidos com a atividade de educadores. O desafio para o ensino é

permanente: aproximar conhecimento acumulado e realidade para que conhecimento

não seja um artefato obsoleto e sim um instrumento para a compreensão e

transformação da sociedade. Neste sentido, os autores que refletem sobre formação de

professores, formação de jovens e adultos e ensino de geografia, bem como nossa

prática profissional, nos ajudam a avançar nesta perspectiva e efetivamente contribuir

com a educação crítica.

Sabemos das dificuldades enfrentadas pelos professores nas diferentes realidades em

que atuam, multiplicadas pelas exigências das ações educativas em nossos dias.

A produção de literaturas relativas às estratégias pedagógicas, os livros e estudos que

propõe aos professores reflexões, metodologias, subsídios e atividades de elaboração de

práticas pedagógicas alternativas, são contribuições que nos auxiliam nessa tarefa.

As referencias dos sujeitos emergem das suas experiências e textualizações cotidianas.

Proporcionar situações de aprendizagem que valorizem as referências dos alunos quanto

ao espaço vivido, é fundamental. Estimular o olhar curioso e investigador sobre a

realidade tira os sujeitos da passividade / comodidade e o insere numa postura

propositiva.

Associando a prática pedagógica da pesquisa orientada e trabalhos sistemáticos de

campo, temos incorporado a educação dos estudantes o que denominamos de Iniciação

Científica (IC). A referida proposta é desenvolvida junto aos estudantes dos já nos anos

finais da Educação Fundamental, tendo como principal objetivo estimular a

problematização e o gosto pela pesquisa e, assim, o exercício da autoria, envolvendo

uma prática interdisciplinar. A pesquisa escolar na Educação Básica constitui um campo

ainda a ser explorado por apresentar amplas possibilidades de desenvolver uma nova

concepção formativa iniciada na Educação Básica que se estende à educação

universitária. No ensino médio, os estudantes já iniciados no IC, passam a outra etapa

da sua formação sendo estimulados à proposta do Projeto “Nós Propomos”.

A reflexão proposta neste artigo apresenta uma análise preliminar das práticas de

pesquisa realizadas ao longo do ano letivo, ponderando sobre seus resultados na

formação e prática docente e discente crítico, reflexivo e autor. Esta mudança de

perspectiva de estudante receptor de informações para estudante investigador e autor,

possibilita uma aproximação às questões sócio-espaciais relevantes para a sociedade,

considerando que a investigação implica em saídas de campo e exercício de todas as

etapas de pesquisa.

Articulamos nossa metodologia de trabalho ao projeto iniciado em Portugal, em

2011/12, através do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da

Universidade de Lisboa – IGOT- o "Projeto Nós Propomos! Cidadania, Sustentabilidade

e Inovação em Educação Geográfica".

Com o intuito de aprofundar os laços de aproximação acadêmica, acompanhamos a

implementação em Portugal, durante um estágio doutoral, e fomos adaptando a

metodologia já aplicada no Colégio de Aplicação da UFSC (desde a década de 1990) à

proposta metodológica do projeto luso, acrescentando a proposição de resolução de

problemas levantados pelos jovens investigadores, no Ensino Médio.

As propostas cada vez mais veiculada nos documentos oficiais demandam articulação

de conhecimentos multidisciplinares que propiciem uma educação problematizadora. Os

estudantes estão cada vez mais cedo inseridos nas demandas de uma sociedade mais

humana, conectada com várias formas de produzir e divugar conhecimentos, tomando

posições diante da realidade. O que uma educação para a pesquisa torna-se forte aliada

(CAETANO, 2016; MENDONÇA e SILVEIRA 2015).

2. “NÓS PROPOMOS !”: CIDADANIA TERRITORIAL

A orientação para a realização do Projeto Nós Propomos, denominação assumida na

experiencia no Colégio de Aplicação da UFSC, acompanhando a proposta em Portugal,

instiga os estudantes a observarem / enxerguerem a cidade. A partir deste primeiro

olhar, elegem um lugar para investigar e, assim, aprofundar suas observações de

pesquisa. Desta forma, levantam potencialidades e problemas, através do

contato/entrevistas com os moradores da localidade escolhida, bem como em órgãos

públicos (de planejamento urbano, camara de vereadores, secretarias de turismo e

referentes aos aspectos ambientais do municipio). Há cooperação com as Câmaras

Municipais, que são convidados explanar as principais preocupações do Plano Diretor e

levar em conta as propostas apresentadas pelos alunos. A proposta é direcionada para a

identificação e resolução de problemas territoriais específicas de lugares selecionados

pelos estudantes e envolve universidades, programa PIBID, escolas, autoridades locais

e empresas (no caso português).

Em Portugal, nos anos de 2015/16, participam cerca de 1.600 alunos e 100 professores

de Geografia das escolas secundárias. No Brasil, o projeto se desenvolve em Tocantins

e Florianópolis e é principalmente interdisciplinar. Em Tocantins envolve a rede pública

estadual de ensino, com cerca de 1600 estudantes e 50 professores, e em Florianópolis

desenvolve-se no CA/UFSC, com contatos realizados em mais três escolas estaduais,

perfazendo um total de 300 estudantes e 10 professores, com perspectiva de ampliação

para o próximo ano. Portanto, uma escola federal e tres estaduais.

As saídas de campo são orientadas e também independentes. Os grupos retormam ao

espaço escolhido para aprofundar suas investigaçõs. O processo de coleta de dados tanto

oficiais quanto empíridos envolvem também estudantes em formação no curso de

Geografia da UFSC, ligados ao Programa de Iniciação à Docências – PIBID, que

colaboram e orientam as saidas de campo além de oferecerem oficinas de cartografia

digital e utilização de aplicativos como o Google Earth (fig. 1) e o Geoprocessamento

Corporativo (http://geo.pmf.sc.gov.br/), desenvolvido pela Prefeitura de Florianópolis

(Fig. 2). Este último com a possibilidade de acessar imagens a partir de 1930, podendo

acompanhar até os dias de hoje a dinâmica de ocupação territorial, desmatamento,

especulação imobiliária, e demais dados que colaboram na formação dos estudantes na

perspectiva de uma cidadania territorial.

Fig. 1

Fig.2

Neste

artigo,

relato a

experiência do andamento da projeto no Colégio de Aplicação / UFSC. O ano letivo se

inicia apresentando o projeto “Nós Propomos: cidadania e inovação na educação

geográfica”. Os estudantes formam seus grupos de trabalho e iniciam a escolha pelo

lugar a ser estudado. As apresentações são realizadas por etapas: 1. saídas de campo,

levantamento preliminar, através de entrevistas e busca de informações nos órgãos

públicos; 2. Discussão sobre Plano Diretor, pesquisadores envolvidos com os temas que

elegem, oficinas sobre mapeamento no google earth e geoprocessamento corporativo,

mapeamento da área escolhida; 3. Apresentação dos resultados e mapeamentos

realizados até esta etapa; 4. Seminário final. Entre uma etapa e outra há orientação sobre

o andameanto das propostas e saídas de campo.Todas as propostas realizadas pelos

estudantes são apresentados em Seminário 1. O desafio proposto aos grupos é que

elejam um dos problemas levantados em campo, e façam uma proposição de resolução

deste problema. No Seminário, apresentam os resultados de sua pesquisa com suas

propostas de solução, para professores, vereadores e autoridades convidadas. Tomam

conhecimento, analisando as situações locais e apresentam possíveis soluções,

praticando um exercício de cidadania territorial, com propostas de resoluções de

problemas levantados pelas comunidades locais.

Neste ano, promovemos um encontro virtual entre os estudantes da Escola da Ribeira

Grande, da Ilha dos Açores (São Miguel), orientados pelo Professor Pedro Trindade e os

estudantes do Colégio de Aplicação/UFSC, orientados pela Professora Sandra

Mendonça. Participou deste seminário virtual o coordenador do Projeto, Professor

Sérgio Claudino. Considerando que o ano letivo dos dois países não coincidem, quando

os estudantes portugueses estão finalizando seus projetos, nós estamos em fase do

levantamento preliminar de dados e informações. Isso possibilitou que os estudantes

portugueses expusessem brevemente as propostas resultantes de sua pesquisa motivando

os estudantes brasileiros à refletirem sobre suas futuras ações.

Os temas destacados pelos estudantes, em Florianópolis, se referem à mobilidade

urbana, saneamento básico, ausência de áreas de lazer, ausência de pontos de cultura,

escolas que precisam ser reformadas, horários inadequados de transporte público,

campanhas de mobilização da comunidade estudada para reivindicar suas demandas,

campanhas de conscientização sobre questões ambientais (preservação ambiental e

processo seletivo do lixo), recuperação de encostas desmatadas para evitar

deslizamentos, utilização de espaços abandonados (terrenos ou prédios) (Fig. 3 e 4) para

uso público (biblioteca, espaço de cultura, oficinas, por ex. ), falta de iluminação,

segurança, entre outros

Figura 3

1 Em Portugal o projeto já adquiriu escala nacional e os trabalhos são apresentados em Seminário

Nacional.

Figura 4

Fonte: Amanda Rosa Alves, Douglas Orcelli, Laura Hentges, Igor Ferreira e Guilherme

Bach.Turma: 3°A

3. CONSIDERAÇÕES

O atrelamento dos processos formativos em Geografia a tais experiências reconstituem

os sentidos práticos do saber geográfico, valorizando a dimensão política das vivências

e experiências de espaço dos educandos. Como todo trabalho escolar percebemos que a

medida que avançam na coleta de dados e entrevistas os alunos vão se motivando,

apresentando reflexões cada vez mais profundas sobre a realidade local e nacional.

Uma Geografia viva, para além dos muros das escolas, reunindo interesse e disposição

para conhecer o processo de formação e organização do espaço bem como inspirar uma

educação crítica e propositiva, com um forte compromisso social. Trazer a “Rua” para

a sala de aula e colocar o conhecimento para refletir a “Rua” (MENDONÇA, 2013). Na

avaliação desta experiência o Projeto tem ajudado a demonstrar que a disciplina de

Geografia tem um elevado valor formativo quando sai da sala de aula, assume uma

efetiva preocupação cidadã e traz para o espaço público o grande potencial formativo

(CLAUDINO, 2016).

REFERÊNCIAS

CAETANO, N. A produção de conhecimento em iniciação científica nos ensinos

fundamental e médio, mimeo, PIBIC-EM, 2016.

CLAUDINO, Sérgio. Nós Propomos: cidadania e inovação na educação geográfica.

Disponível em http://vitraldigital.com/nos-propomos/. Acesso em 30/06/2016.

LOPES, Claudivan S.; PONTUSCHKA, Nídia N. Estudo do meio: teoria e prática.

Geografia (Londrina) v. 18, n. 2, 2009. Disponível em

http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/ , acesso em 09/06/2016.

MENDONÇA, S., SILVEIRA, J.C. DA, JORGE, Eliane Reflexões sobre a iniciação

científica na Educação Básica: a investigação e as práticas interdisciplinares. Anais do

Encontro dos Geografos da América Latina, Cuba, 2015.