sontag, susan - sob o signo de saturno

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  • SUSAN SONTAG

    Sob o Signo de Saturno Traduo de Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr

    L&PM Editores

    ________________________________ Susan Sontag Sob o Signo de Saturno

  • Ttulo original: Under The Sign of Saturn ISBN 85-254-0109-9 Capa: L&PM Editores Reviso: Paulo Carlos Saldanha F., Suely Bastos, Rosana Jardim, Candeloro e

    Valmir Cassol. Traduo: Albino Poli Hr. (Sobre Paul Goodman, Abordando Artaud e Fascinante Fascismo)

    Anna Maria Capovilla

    Copyright 1972, 1973, 1975, 1976, 1978, 198O by Susan Sontag Todos os direitos desta edio reservados L&PM Editores Ltda. Rua Nova Iorque, 306 90.00O Porto Alegre RS e Rua do Triunfo, 177 01212 So Paulo SP Impresso no Brasil Inverno de 1986

    ________________________________ Susan Sontag Sob o Signo de Saturno

  • Para Joseph Brodsky

    ________________________________ Susan Sontag Sob o Signo de Saturno

  • ndice

    Sobre Paul Goodman ....................................................................... 9

    Abordando Artaud ............................................................................ 15

    Fascinante Fascismo ......................................................................... 59

    Sob o Signo de Saturno .................................................................... 85

    Hitler de Syberberg .......................................................................... 105

    Relembrando Barthes ....................................................................... 127

    A Mente Como Paixo ..................................................................... 135

    ________________________________ Susan Sontag Sob o Signo de Saturno

  • Hamm: Eu adoro as velhas perguntas. (Com fervor.) Ah as velhas perguntas, as velhas

    respostas, No h nada como elas!

    ________________________________ Susan Sontag Sob o Signo de Saturno

  • Sobre Paul Goordman

    Estou escrevendo num pequeno quarto em Paris, sentada numa cadeira

    de vime diante da mquina de escrever e perto de uma janela que d para o jardim; atrs de mim h uma cama e uma mesa de cabeceira; no cho e debaixo da mesa, manuscritos, cadernos e dois ou trs livros. Que eu esteja vivendo e trabalhando por mais de um ano num quarto to simples e pequeno, apesar de a princpio no o ter planejado ou sequer cogitado, sem dvida responde a alguma necessidade de despojamento, de fechar as portas por uns tempos, comear de novo com o mnimo possvel. Nesta Paris em que vivo agora, que tem to pouco a ver com a Paris de hoje quanto a Paris de hoje tem a ver com a grande Paris, Capital do Sculo XIX e bero da arte e das idias at o final dos anos 60, a Amrica o mais prximo de todos os lugares longnquos. Mas nesses perodos nos quais eu praticamente no saio e nos ltimos meses tm havido muitos dias e noites abenoados em que no tenho vontade de deixar a mquina de escrever, a no ser para dormir , cada manh algum me traz o Herald Tribune de Paris, com sua monstruosa colagem de notcias da Amrica, comprimidas, distorcidas, mais estranhas do que nunca, vistas desta distncia: B-52 chovendo morte no Vietn, o martrio repulsivo de Thomas Eagleton, a parania de Bob Fisher, a irresistvel ascenso de Woody Allen, excertos do dirio de Arthur Bremer e, semana passada, a morte de Paul Goodman.

    9 Descubro que no posso escrever apenas o seu primeiro nome.

    Naturalmente, nos chamvamos de Paul e Susan sempre que nos encontrvamos, mas, tanto em minha mente quanto na conversa com ou tras pessoas, ele nunca era Paul, ou mesmo Goodman, mas sempre Paul Goodman o nome inteiro, com toda a ambigidade de sentimento e familiaridade que tal uso implica.

    A dor que sinto com a morte de Paul Goodman mais aguda porque no ramos amigos, apesar de co-habitarmos diversas vezes os mesmos mundos. Encontramo-nos pela primeira vez h dezoito anos atrs. Eu tinha vinte e um anos, estudava em Harvard e sonhava em viver em Nova Iorque, e numa viagem de fim de semana cidade, algum que eu conhecia e que era

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  • amigo dele levou-me gua-furtada na rua Vinte e Trs, onde Paul Goodman e sua mulher comemoravam o seu aniversrio. Ele estava bbado, jactava-se ruidosamente a todos de suas proezas sexuais, e falou comigo o tempo suficiente para tornar-se ligeiramente grosseiro. A segunda vez que nos encontramos foi h quatro anos atrs, numa festa em Riverside Drive, onde ele parecia mais moderado, porm no menos frio e autocentrado.

    Em 1959 mudei-me para Nova Iorque, e a partir de ento, at o final dos anos 60, encontramo-nos freqentemente, apesar de sempre em pblico em festas de amigos comuns, em mesas-redondas

    e conferncias sobre o Vietn, em passeatas e manifestaes. Sempre me esforava, mesmo que timidamente, para falar com ele cada vez que nos encontrvamos, esperando ser capaz de dizer-lhe, direta ou indiretamente, a importncia que os seus livros tinham para mim e o quanto eu havia aprendido com ele. Sempre me repelia, e eu desisti. Fui avisada por amigos comuns que ele realmente no gostava de mulheres como pessoas apesar de ter feito uma exceo para algumas mulheres em particular. Resisti a essa hiptese o mais que pude (me parecia vulgar), at que finalmente cedi. Afinal, eu havia sentido exatamente isso em seus escritos: por exemplo, o maior defeito de Growing Up Absurd (Educao Absurda), que pretende tratar dos problemas da juventude americana, que fala da juventude como se ela consistisse somente de meninos adolescentes e rapazes. Minha atitude, quando nos encontrvamos, deixou de ser aberta.

    No ano passado, outro amigo comum, Ivan Illich, convidou-me para ir a Cuernavaca na mesma poca em que Paul Goodman estava l dando um seminrio, e eu disse a Ivan que preferia ir depois que Paul Goodman tivesse partido. Ivan sabia, atravs de vrias conversas, o

    10 quanto eu admirava a obra de Paul Goodman. Mas o intenso prazer que eu sentia sempre que lembrava que ele estava vivo e bem e escrevendo nos Estados Unidos da Amrica transformava numa provao cada situao em que nos encontrvamos na mesma sala, e eu percebia minha inabilidade para fazer o menor contato com ele. Nesse sentido quase literal, portanto, no somente Paul Goodman e eu no ramos amigos, como eu tambm no gostava dele pelo motivo que, como j expliquei com pesar enquanto ele estava vivo, sentia que ele no gostava de mim. O quo pattica e meramente formal era essa antipatia, eu sempre soube. No foi a morte de Paul Goodman que subitamente me convenceu disso.

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  • Ele fora por tanto tempo um heri para mim que no fiquei nem surpresa quando ele tornou-se famoso, apesar de sempre me surpreender quando as pessoas no lhe davam o devido valor. O primeiro livro dele que li tinha ento dezessete anos foi uma coletnea de contos chamada The Break-up of Our Camp (A Ruptura do Nosso Campo), publicado pela New Directions. Dentro de um ano eu havia lido tudo que ele publicara, e a partir da continuei mantendo meu interesse. No h nenhum escritor americano vivo pelo qual eu tenha sentido essa mesma curiosidade de simplesmente ler, o mais rpido possvel, tudo que tenha escrito, sobre qualquer assunto. Que eu quase sempre concordasse com o que ele pensava,no era a razo principal; h outros escritores com os quais concordo e aos quais no sou to fiel. Era sua voz que me seduzia aquela voz direta, desconjuntada, egotista, generosa e americana. Se Norman Mailer o mais brilhante escritor de sua gerao, o seguramente em virtude da autoridade e excentricidade de sua voz; mas, eu mesma, sempre achei aquela voz demasiadamente barroca, um tanto quanto fabricada. Admiro Mailer como escritor, mas no acredito realmente em sua voz. A voz de Paul Goodman de fato autntica. No se encontra uma voz to convincente, genuna e singular em nossa lngua desde D. H. Lawrence. A voz de Paul Goodman afetava tudo que ele escrevia com interesse, intensidade, com sua firmeza e sua falta de jeito deliciosamente encantadora. O que ele escrevia era uma mistura excitante de rigidez sinttica e felicidade verbal; ele era capaz de redigir frases de uma pureza maravilhosa de estilo e com uma vivacidade enorme no uso da linguagem, e tambm capaz de escrever to relaxada e desajeitadamente que se poderia imaginar que o estava fazendo propositalmente. Porm, isso nunca teve importncia. Era a sua voz, quer dizer, sua inteligncia e

    11 a poesia de sua inteligncia encarnada, que me mantinha uma aficcionada fiel e apaixonada. Apesar dele no ser sempre encantador como escritor, seu texto e seu esprito tinham um toque de graa.

    Existe um terrvel e mesquinho ressentimento americano para com um escritor que tenta fazer muitas coisas. O fato de que Paul Goodman escrevia poesia, peas de teatro e novelas, bem como crtica social, que escrevia livros sobre especialidades intelectuais reservadas a dragues acadmicos e profissionais, tais como planejamento urbano, educao, crtica literria, psiquiatria, foi usado contra ele. O fato de ele ser um franco-atirador nos meios acadmicos e um psiquiatra proscrito, sendo ao mesmo tempo to

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  • mordaz em relao universidade e natureza humana, ultrajou muitas pessoas. Tal ingratido , e sempre foi, surpreendente para mim. Eu sabia que Paul Goodman freqentemente se queixava dela. Talvez sua expresso mais pungente tenha sido no dirio que ele manteve entre 1955 e 1960, publicado com o ttulo de Five Years (Cinco Anos), no qual lamenta o fato de no ser famoso, reconhecido e recompensado pelo que .

    O dirio foi escrito no final de sua longa obscuridade, pois, com a publicao de Growing Up Absurd, em 1960, ele de fato ficou famoso, e da em diante seus livros tiveram ampla circulao e, pode-se imaginar, foram inclusive bastante lidos se a extenso em que as idias de Paul Goodman eram repetidas (sem que lhe houvessem dado crdito) for alguma prova de ter sido amplamente lido. De 1960 em diante ele comeou a ganhar dinheiro, medida que era encarado mais seriamente e escutado pelos jovens. Tudo isso parece ter-lhe agradado, apesar de que ainda se queixava de no ser famoso o bastante, e tampouco lido e apreciado suficientemente.

    Longe de ser um egomanaco que jamais teria o suficiente, Paul Goodman estava bastante certo em pensar que nunca recebeu a ateno que merecia. Isso fica razoavelmente claro nos obiturios que li, desde a sua morte, na meia dzia de jornais e revistas americanas que obtenho aqui em Paris. Nestes obiturios, ele no era nada alm de um interessante escritor independente que queria abarcar o mundo com as pernas, que publicou Growing Up Absurd, que influenciou a juventude rebelde americana dos anos 60 e que era indiscreto sobre sua vida sexual. O comovente obiturio de Ned Rorem, o nico entre todos que li que d algum sentido da importncia de Paul Goodman, apareceu no The Village Voice, um jornal lido em grande parte pelo

    12 eleitorado de Paul Goodman, somente na pgina 17. Na medida em que surgem os tributos agora que est morto, ele continua sendo tratado corno uma figura marginal.

    Dificilmente eu teria desejado a Paul Goodman o tipo de estrelato nos meios de comunicao conferido a McLuhan ou mesmo a Marcuse que tem pouco a ver com a influncia real e no nos diz nada sobre quanto um escritor est sendo lido. O que estou me queixando de que, freqentemente, Paul Goodman no foi reconhecido nem mesmo pelos seus admiradores. Nunca chegou a ficar claro para a maioria das pessoas, penso eu, a pessoa extraordinria que ele era. Podia fazer quase qualquer tipo de coisa, e tentou

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  • fazer quase tudo que um escritor pode fazer. Apesar de sua fico tornar-se cada vez mais didtica e sem poesia, ele continuou a crescer como um poeta de considervel sensibilidade em estado bruto; um dia as pessoas descobriro a qualidade da poesia que ele escreveu. A maior parte do que disse em seus ensaios sobre pessoas, cidades e sobre sua impresso da vida verdadeiro. O seu assim chamado amadorismo idntico ao seu gnio: esse amadorismo capacitava-o a colocar, nas questes da educao, da psiquiatria e da cidadania, uma extraordinria e penetrante agudeza de discernimento e liberdade para intuir mudanas prticas.

    difcil mencionar todas as maneiras pelas quais me sinto em dbito

    para com ele. Durante vinte anos ele foi para mim simplesmente o mais importante escritor americano. Ele era o nosso Sartre, o nosso Cocteau. Ele no possua a inteligncia terica de primeira classe de Sartre; jamais tocou na fonte louca e opaca de fantasia autntica que Cocteau possua, na sua disposio de praticar tantas artes. Mas possua dons que nem Sartre nem Cocteau jamais tiveram: um sentimento intrpido sobre o que a vida humana, uma superexigncia e um alento de paixo moral. Sua voz na pgina impressa to real para mim como as vozes de alguns poucos escritores jamais o foram familiar, cativante, provocante. Suspeito que havia um ser humano mais nobre em seus livros do que em sua vida, algo que acontece freqentemente em literatura. (s vezes o contrrio que acontece, e a pessoa na vida real mais nobre que a pessoa nos livros. As vezes dificilmente h qualquer relao entre a pessoa nos livros e a pessoa na vida real.)

    Adquiri energia ao ler Paul Goodman. Ele era um aquele pequeno grupo de escritores, vivos e mortos, que estabeleceu para mim

    13 o valor de ser um escritor e de cujo trabalho eu retirava os critrios por intermdio dos quais avaliava os meus. Houve alguns escritores europeus vivos nesse panteo diverso e muito pessoal, mas nenhum escritor americano vivo, a no ser ele. Tudo que ele escrevia me agradava. Eu gostava dele quando era teimoso, desajeitado, melanclico, e at mesmo quando errava. O seu egotismo me sensibilizava, ao invs de me decepcionar (como acontece freqentemente com Mailer, quando o leio). Eu admirava sua diligncia, sua disposio de servir. Admirava sua coragem, que revelou-se de tantas maneiras sendo que uma das mais admirveis foi sua honestidade com

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  • relao sua homossexualidade, em Five Years, pela qual foi muito criticado por seus amigos mais conservadores no mundo intelectual de Nova Iorque; isto foi h seis anos atrs, antes do advento da Liberao Gay sair dos gabinetes chiques. Gostava, quando ele falava de si prprio e quando mesclava seus prprios desejos sexuais com o seu desejo de uma sociedade organizada. Como Andr Breton, a quem ele pode ser de vrias maneiras comparado, Paul Goodman foi um connaisseur da liberdade, da alegria e do prazer. Aprendi muito sobre essas trs coisas, ao l-lo.

    Esta manh, comeando a escrever este artigo, estiquei a mo sob a mesa prxima janela para pegar um pouco de papel para a mquina de escrever e vi que um dos trs livros enterrados sob os manuscritos era o New Reformation (Nova Reforma). Apesar de estar tentando viver durante um ano sem livros, uns poucos, de algum modo, conseguiram se infiltrar. Parece justo que, mesmo aqui, nesta pequena sala onde livros so proibidos, onde eu tento da melhor maneira ouvir minha prpria voz e descobrir o que realmente penso e sinto, ainda exista ao menos um livro de Paul Goodman por perto, pois no houve um s apartamento no qual vivi, durante os ltimos vinte e dois anos, que no tenha contido quase todos os seus livros.

    Com ou sem os seus livros, continuarei sendo marcada por ele. Continuarei lamentando que ele no esteja mais vivo para falar em novos livros e que agora todos ns tenhamos que persistir em nossas desajeitadas tentativas de ajudar uns aos outros, de dizer a verdade, de libertar o tipo de poesia que possumos, de respeitar a loucura do outro e o direito de errar, e a cultivar o nosso senso de cidadania sem a ousadia de Paul, sem as suas pacientes e sinuosas explicaes sobre tudo, sem a graa do seu exemplo.

    (1972) 14

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  • Abordando Artaud

    O movimento para destronar o autor tem persistido h mais de um

    sculo. Desde o princpio, o mpeto foi como ainda o apocalptico: vvido de protesto e exaltao frente decadncia convulsiva das velhas ordens sociais, sustentado por aquela sensao generalizada de viver num momento revolucionrio que continua animando a maior parte da eminncia moral e intelectual. O ataque ao autor perdura com todo o vigor, apesar de a revoluo no ter acontecido, ou, onde aconteceu, acabar rapidamente sufocando o modernismo literrio. Tornando-se gradualmente, naqueles pases no remodelados por uma revoluo, a tradio dominante da alta cultura literria, ao invs de sua subverso, o modernismo continua a elaborar cdigos para preservar novas energias morais, enquanto contemporiza com elas. Que tal imperativo histrico, que parece desacreditar a prpria prtica da literatura, tenha durado tanto tempo um perodo que abrange vrias geraes literrias , no significa que ele tenha sido incorretamente compreendido. Tampouco significa que o mal-estar do autor tenha-se tomado imprprio ou antiquado, como s vezes sugerido. (As pessoas tendem a tornar-se cnicas at mesmo em relao mais aterradora crise, caso ela parea estar se prolongando enfadonhamente, incapaz de chegar ao fim). Porm, a longevidade do modernismo mostra, de fato, o que acontece quando a profetizada resoluo de uma drstica ansiedade social e psicolgica adiada

    15 que insuspeitas capacidades para a ingenuidade e a agonia, e para a domesticao desta agonia, podem florescer nesse meio tempo.

    Na concepo vigente, sob desafio constante, a literatura moldada a partir de uma linguagem racional isto , socialmente aceita , numa variedade de tipos de discurso internamente consistentes (ou seja, poemas, peas de teatro, picos, tratados, ensaios, novelas) na forma de obras individuais, que so julgadas por normas tais como a veracidade, o poder emocional, a sutileza e a relevncia. Porm, mais de um sculo de modernismo literrio deixou clara a contingncia do que outrora foram gneros estveis e minou a prpria noo de obra autnoma. Os padres utilizados para avaliar obras literrias no parecem agora, de forma alguma,

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  • auto-evidentes, e esto longe de ser universais. Eles so as confirmaes de uma determinada cultura, de suas prprias noes de racionalidade: ou seja, da mente e da comunidade.

    Ser autor tem sido desmascarado como um papel que, conformista ou no, permanece irremediavelmente responsvel por uma determinada ordem social. Certamente, nem todos os autores pr-modernos exaltaram as sociedades nas quais viveram. Uma das funes mais antigas do autor chamar a comunidade a responder por suas hipocrisias e m f, como Juvenal, em As Stiras, avaliou os desatinos da aristocracia romana e Richardson, em Clarissa, denunciou a instituio burguesa do casamento por interesse. Mas o mbito da alienao disponvel aos autores pr-modernos era ainda limitado quer eles o soubessem ou no crtica severa dos valores de uma classe ou de um ambiente em nome dos valores de outra classe ou lugar. Os autores modernos so aqueles que, procurando escapar a esta limitao, juntaram-se grandiosa tarefa descrita por Nietzsche, h um sculo, como a transvalorao de todos os valores, redefinida por Antonin Artaud, no sculo XX, como a desvalorizao geral dos valores. Quixotesca como parece ser, esta tarefa esboa a poderosa estratgia atravs da qual os autores modernos proclamam no serem mais responsveis responsveis no sentido de que os autores que exaltam a sua poca e os autores que a criticam so igualmente cidados bem estabelecidos na sociedade em que atuam. Os autores modernos podem ser reconhecidos por seu esforo de se despojarem, por sua vontade de no serem moralmente teis comunidade, por sua inclinao de apresentarem-se no como crticos sociais, mas como visionrios, aventureiros espirituais e prias sociais.

    16 O despojamento do autor inevitavelmente ocasiona uma redefinio

    da escrita. Uma vez que a escrita no mais se define como responsvel, a distino aparentemente bvia entre a obra e a pessoa que a produziu, entre a expresso pblica e a privada, torna-se vazia. Toda a literatura pr-moderna desenvolve-se a partir de uma concepo clssica da escrita como uma realizao impessoal, auto-suficiente e livremente estabelecida. A literatura moderna projeta uma idia relativamente diferente: a concepo romntica da escrita como um meio no qual uma personalidade singular se expe heroicamente. Esta referncia, em ltima anlise, privada do discurso pblico, literrio, no requer que o leitor realmente saiba muito sobre o autor. Apesar de uma ampla informao biogrfica estar disponvel sobre Baudelaire, e de no se saber quase nada sobre a vida de Lautramont, As Flores do Mal e

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  • Maldoror so igualmente dependentes enquanto obras literrias da idia do autor como um eu atormentado violentando sua prpria e inigualvel subjetividade.

    Na viso deflagrada pela sensibilidade romntica, o que produzido pelo artista (ou pelo filsofo) contm, como estrutura interna reguladora, uma descrio dos trabalhos da subjetividade. A obra deriva suas credenciais do seu lugar numa determinada experincia vivida; assume uma totalidade pessoal inexaurvel, da qual a obra um subproduto, derivado e inadequadamente expressivo daquela totalidade. A arte torna-se uma afirmao da autoconscincia uma autoconscincia que pressupe uma desarmonia entre a pessoa do artista e a comunidade. De fato, o esforo do artista medido pelo tamanho de sua ruptura com a voz coletiva (da razo). O artista uma conscincia tentando ser. Eu sou aquele que, para ser, deve fustigar o que me inato, escreve Artaud o mais didtico e mais intransigente heri da auto-exacerbao na literatura moderna.

    Em princpio, o projeto no pode ter sucesso. A conscincia, enquanto dada, no pode jamais constituir-se totalmente a si prpria na arte, mas deve esforar-se para transformar suas prprias fronteiras e alterar as fronteiras da arte. Portanto, qualquer obra singular possui um duplo estatuto. tanto um gesto literrio nico, especfico e j estabelecido, quanto uma declarao metaliterria (geralmente aguda, s vezes irnica) sobre a insuficincia da literatura em relao a uma condio ideal da conscincia e da arte. A conscincia concebida como um projeto cria um padro que inevitavelmente condena a obra a ser incompleta. Baseada no modelo da conscincia herica

    17 que objetiva a nada menos que a total auto-apropriao, a literatura aspirar ao livro total. Comparada idia do livro total, toda escrita, na prtica, consiste de fragmentos. O padro de incio, meio e fim no mais se aplica. A incompletude toma-se a modalidade dominante da arte e do pensamento, dando origem a antigneros obra que deliberadamente fragmentria ou auto-anulatria, pensamento que desfaz a si mesmo. Porm, o destronamento vitorioso de velhos padres no requer que se negue o fracasso de tal arte. Como diz Cocteau, a nica obra bem-sucedida aquela que falha.

    A carreira de Antonin Artaud, um dos ltimos grandes exemplos do

    perodo herico do modernismo literrio, resume intensamente estas reavaliaes. Sua obra inclui verso, prosa, roteiros para filmes, escritos sobre

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  • cinema, pintura e literatura; ensaios, crticas corrosivas e polmicas sobre o teatro; vrias peas de teatro e notas para vrios projetos teatrais no realizados, entre os quais uma pera; uma novela histrica; um monlogo dramtico em quatro partes escrito para o rdio; ensaios sobre o culto do peiote entre os ndios tarahumara; aparies radiantes em dois grandes filmes (o Napoleo de Gance e A Paixo de Joana dArc de Dreyer) e vrias outras menores; e centenas de cartas, sua forma dramtica mais completa constituindo um corpus partido, automutilado, uma vasta coleo de fragmentos. O que ele legou posteridade no foram obras de arte completas, mas uma presena singular, uma potica, uma esttica do pensamento, uma teologia da cultura e uma fenomenologia do sofrimento.

    Em Artaud, o artista como visionrio cristaliza-se, pela primeira vez, numa figura do artista como pura vtima de sua conscincia. O que est prefigurado na rancorosa poesia em prosa de Baudelaire e no relato de uma estadia no inferno de Rimbaud torna-se a afirmao de Artaud, de sua infatigvel e agonizante conscincia da inadequao de sua prpria autoconscincia os tormentos de uma sensibilidade que se julga irreparavelmente alienada do pensamento. Para a qual, pensar e usar a linguagem toma um perptuo calvrio.

    As metforas que Artaud utiliza para descrever sua aflio intelectual tratam a mente, ou como uma propriedade da qual no se consegue jamais adquirir a posse (ou cuja posse se perdeu), ou como uma substncia fsica que intransigente, fugitiva, instvel, obscenamente mutvel. J em 1921, aos vinte e cinco anos de idade, expe seu problema como sendo o de nunca conseguir possuir seu esprito na sua

    18 totalidade Durante os anos 20, lamenta que suas idias o abandonam, que ele no logra alcanar sua mente, que perdeu sua compreenso das palavras e esqueceu as formas do pensamento. Em metforas mais diretas, vocifera contra a eroso crnica de suas idias, o modo como o seu pensamento desintegra-se sob ele ou se esvai; descreve sua mente como fissurada, deteriorando-se, petrificando-se, liquefazendo-se, coagulando-se, vazia, impenetravelmente densa: as palavras apodrecem. Artaud sofre, no da dvida sobre se seu eu pensa, mas de uma convico de que no possui seu prprio pensamento. Ele no diz que incapaz de pensar; diz que no tem pensamento que ele julga bem mais importante do que possuir idias ou juzos corretos. Ter pensamento significa aquele processo atravs do qual o pensamento sustenta-se a si prprio, manifesta-se a si mesmo, e corresponde

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  • a todas as circunstncias do sentimento e da vida. neste sentido do pensamento que considera esse prprio pensamento tanto como sujeito quanto como objeto de si mesmo , que Artaud protesta no possu-lo. Artaud mostra como a conscincia hegeliana, dramtica e auto-referente, pode atingir o estado de total alienao (ao invs da solta e compreensiva sabedoria) porque a mente permanece um objeto.

    A linguagem que Artaud utiliza profundamente contraditria. Suas imagens retricas so materialistas (fazendo da mente uma coisa ou objeto), mas sua demanda concernente ao esprito remete ao mais puro idealismo filosfico. Recusa-se a considerar o esprito seno como um processo. No obstante, o processo caracterstico da conscincia sua inapreensibilidade e seu fluxo que ele experimenta como um inferno. A verdadeira dor, diz Artaud, sentir o prprio pensamento mudar dentro de ns mesmos. O cogito, cuja existncia por demais evidente dificilmente parece necessitar prova, ingressa em uma inconsolvel e desesperada procura de uma ars cogitandi. A inteligncia, observa Artaud com horror, a mais pura contingncia. Nos antpodas do que Descartes e Valry relatam em seus grandes picos otimistas sobre a busca de idias claras e distintas, uma Divina Comdia do pensamento, Artaud transmite a interminvel misria e frustrao da conscincia procura de si mesma: esta tragdia intelectual na qual sou sempre derrotado, a Divina Tragdia do pensamento. Ele descreve a si mesmo como em constante busca de meu ser intelectual.

    A conseqncia do veredito de Artaud sobre si mesmo sua 19

    convico sobre sua alienao crnica de sua prpria conscincia que seu dficit mental torna-se, direta ou indiretamente, o dominante e inexaurvel objeto de seus escritos. Algumas das consideraes de Artaud sobre sua Paixo do pensamento so quase demasiadamente rduas de ler. Ele elabora pouco suas emoes seu pnico, sua confuso, sua raiva, seu pavor. Seu dom no era para a compreenso psicolgica (na qual, no sendo eficiente, desconsiderou como trivial), mas para uma maneira mais original de descrio, uma espcie de fenomenologia fisiolgica de sua interminvel desolao. A afirmao de Artaud, em O Pesa-Nervos, de que ningum jamais registrou de forma to precisa seu mais ntimo eu no um exagero. No h, em toda a histria da escrita na primeira pessoa, um registro to incansvel e minucioso da microestrutura do sofrimento mental.

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  • Entretanto, Artaud no registra simplesmente sua angstia psquica. Ela prpria constitui sua obra, pois, embora o ato de escrever para dar forma inteligncia seja uma agonia, essa agonia tambm fornece a energia para o ato de escrever. Apesar de Artaud ter ficado furiosamente desapontado quando os poemas relativamente harmoniosos que submeteu Nouvelle Revue Franaise em 1923 foram rejeitados por seu editor, Jacques Rivire, como deficientes em coerncia e harmonia, as crticas de Rivire acabaram revelando-se liberalizantes. Da em diante, Artaud comeou a negar que estava simplesmente criando mais arte, aumentando o depsito da literatura. O desprezo pela literatura tema da literatura modernista que soou ruidosamente pela primeira vez em Rimbaud possui uma inflexo diferente da forma como Artaud a expressa na era em que os futuristas, dadastas e surrealistas fizeram disso um lugar-comum. O desprezo de Artaud pela literatura tem menos a ver com um niilismo difuso em relao cultura do que com uma experincia especfica de sofrimento. Para Artaud, o extremo sofrimento mental e tambm fsico que alimenta (e autentica) o ato de escrever necessariamente falsificado quando essa energia transformada em obra de arte: quando atinge o estatuto benigno de um produto acabado, literrio. A humilhao verbal da literatura (Toda escrita porcaria, declara Artaud em O Pesa-Nervos) salvaguarda o perigoso e quase-mgico estatuto da escrita enquanto vaso valioso por conter o sofrimento do autor. Insultar a arte (como insultar o pblico) uma tentativa de impedir a corrupo da arte, a banalizao do sofrimento.

    O elo entre o sofrimento e a escrita um dos principais temas de 20

    Artaud: adquire-se o direito de falar ao se ter sofrido, mas a necessidade de utilizar a linguagem , ela prpria, a ocasio central para o sofrimento. Ele descreve a si prprio como devastado por uma confuso estupidificante da sua linguagem, nas relaes dela com o pensamento. A alienao de Artaud na linguagem apresenta o lado negro das bem-sucedidas alienaes verbais da poesia moderna de seu uso criativo das possibilidades puramente formais da linguagem, da ambigidade das palavras e da artificialidade dos significados fixos. O problema de Artaud no o que a linguagem em si mesma, mas a relao que a linguagem tem com o que ele chama de apreenses intelectuais da carne. Ele mal pode permitir-se a queixa tradicional de todos os grandes msticos de que as palavras tendem a petrificar o pensamento vivo e transformar o carter imediato, orgnico e sensorial da experincia em algo inerte, meramente verbal. A luta de Artaud com a inrcia

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  • da linguagem apenas secundria; no fundo ela se trava principalmente com a refratariedade de sua prpria vida interior. Empregadas por uma conscincia que define a si mesma como paroxsmica, as palavras transformam-se em navalhas. Artaud parece ter sofrido em funo de sua extraordinria vida interior, na qual a complexidade e a intensidade clamorosa de suas sensaes fsicas e as intuies convulsivas de seu sistema nervoso pareciam permanentemente em conflito com sua habilidade de lhes dar uma forma verbal. Esse choque entre habilidade e impotncia, entre dons verbais extravagantes e uma sensao de paralisia intelectual, o enredo psicodramtico de tudo que Artaud escreveu; e manter essa luta dramaticamente vlida requer a exorcizao repetida da respeitabilidade inerente escrita.

    Portanto, Artaud no pratica tanto a escrita livre quanto a coloca sob suspeio permanente, ao trat-la como o espelho da conscincia de tal maneira que o mbito do que pode ser escrito feito de forma co-extensiva prpria conscincia, e a verdade de cada declarao deve necessariamente depender da vitalidade e da totalidade da conscincia da qual se origina. Contra todas as teorias hierrquicas ou platnicas da mente, que fazem uma parte da conscincia ser superior a outra, Artaud defende a democracia das reivindicaes mentais, o direito de cada nvel, tendncia e qualidade da mente a ser ouvida: Ns podemos fazer qualquer coisa no esprito, podemos falar em qualquer tom de voz, inclusive num que seja inconveniente. Artaud recusa-se a excluir qualquer percepo como demasiadamente

    21 crua ou trivial. A arte deveria ser capaz de transmitir de qualquer lugar,

    pensa ele mesmo que no fosse pelos motivos que justificam a abertura whitmanesca ou a licenciosidade joyceana. Para Artaud, obstruir qualquer das possveis transaes entre os diferentes nveis da mente e a carne remete a uma expropriao do pensamento, uma perda de vitalidade no sentido mais puro. Aquele estreito mbito tonal que constitui o assim chamado tom literrio a literatura em suas formas tradicionalmente aceitveis toma-se pior que uma fraude e um instrumento de represso intelectual. rima sentena de morte espiritual. A noo de verdade de Artaud especifica uma exata e delicada concordncia entre os impulsos animais do esprito e as mais altas operaes do intelecto. esta conscincia imediata e totalmente unificada que Artaud invoca nas obsessivas descries de sua prpria insuficincia mental e em seu repdio literatura.

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  • A qualidade da conscincia de cada um o critrio ltimo para Artaud. Ele infalivelmente vincula o seu utopismo da conscincia a um materialismo psicolgico, o esprito absoluto tambm absoluta mente carnal. Portanto, sua aflio intelectual ao mesmo tempo o mais agudo sofrimento fsico, e cada declarao que faz sobre sua conscincia tambm uma declarao sobre o seu corpo. De fato, o que ocasiona a incurvel dor de conscincia de Artaud precisamente sua recusa em considerar a mente separada da situao da carne. Longe de ser desencarnada, sua conscincia aquela cujo martrio resulta de sua relao vinculada ao corpo. Em sua luta contra todas as noes hierrquicas ou meramente dualistas da conscincia, Artaud constantemente trata sua mente como se ela fosse uma espcie de corpo um corpo que ele no poderia possuir, ou porque era demasiadamente virginal ou demasiadamente corrompido, e tambm um corpo mstico por cuja desordem ele estava possudo.

    Seria um erro, claro, tomar as declaraes de impotncia mental de Artaud ao p da letra. A incapacidade intelectual que descreve dificilmente indica os limites de sua obra (Artaud no demonstra qualquer inferioridade em seus poderes de raciocnio); na verdade, ela explica seu projeto: retraar minuciosamente as pesadas e confusas fibras de seu corpo-mente. A premissa da escrita de Artaud sua profunda dificuldade em combinar ser com hiperlucidez, carne com palavras. Lutando para incorporar o pensamento vivo, Artaud compunha em blocos irregulares e febris; a escrita interrompia-se abruptamente e depois recomeava de novo. Qualquer obra dele apresenta

    22 uma forma mista; por exemplo, entre um texto expositivo e uma descrio onrica ele freqentemente insere uma carta uma carta a um correspondente imaginrio que omite o nome do destinatrio. Mudando as formas, ele muda a entonao. A escrita concebida como um fluxo desatrelado e imprevisvel de energia incandescente; o conhecimento deve explodir nos nervos do leitor. Os detalhes do estilo de Artaud resultam diretamente de sua noo da conscincia como um emaranhado de dificuldade e sofrimento. Sua determinao em romper a carapaa da literatura ou pelo menos violar a distncia autoprotetora entre o leitor e o texto certamente no uma ambio nova na histria do modernismo literrio. Porm Artaud pode ter se aproximado mais do que qualquer outro autor de realmente consegui-lo atravs da violenta descontinuidade de seu discurso, pelo extremismo de sua emoo, pela pureza de seu propsito moral, pela cruciante carnalidade dos relatos que fornece de

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  • sua vida espiritual, pela autenticidade e grandeza da provao que ele suportou a fim de que pudesse, de alguma forma, fazer uso da linguagem.

    As dificuldades de que Artaud se queixa persistem porque ele est

    pensando o impensvel sobre como o corpo mente e como a mente tambm um corpo. Este paradoxo inesgotvel reflete-se no desejo de Artaud de produzir arte que seja ao mesmo tempo antiarte. O ltimo paradoxo, entretanto, mais hipottico do que real. Ignorando os repdios de Artaud, muitos leitores iro inevitavelmente assimilar suas estratgias de discurso arte sempre que essas estratgias alcanarem (como elas freqentemente o fazem) um certo grau triunfante de incandescncia. E trs pequenos livros publicados entre 1925 e 1929 O Umbigo do Limbo, O Pesa-Nervos, e Arte e Morte , que podem ser lidos como poemas em prosa, so mais esplndidos que qualquer coisa que Artaud fez formalmente como um poeta, como o maior poeta prosador da lngua francesa desde o Rimbaud das Iluminaes e de Uma Temporada no Inferno. Assim mesmo, seria incorreto separar o que teve mais xito como literatura de seus outros escritos.

    A obra de Artaud nega que. haja alguma diferena entre arte e pensamento, poesia e verdade. Apesar das rupturas na exposio e a variao de formas rio interior de cada obra, tudo que ele escreveu avana uma linha na sua argumentao. Artaud sempre didtico. Ele jamais cessa de insultar, protestar, exortar, denunciar inclu-

    23 sive na poesia escrita depois que saiu do manicmio de Rodez, em 1946, cuja linguagem torna-se parcialmente ininteligvel; quer dizer, uma presena fsica no mediada. Toda sua escrita est na primeira pessoa, e uma forma de discurso em vozes mistas de encantamento e explanao discursiva. Suas atividades so simultaneamente arte e reflexes sobre a arte. Num primeiro artigo sobre pintura, Artaud declara que as obras de arte valem apenas tanto quanto as concepes sobre as quais elas se fundam, cujo valor exatamente o que estamos mais uma vez colocando em questo. Assim como a obra de Artaud equivale a uma ars poetica (da qual sua obra no mais que uma exposio fragmentria), ele considera a feitura da arte como uma metfora para o funcionamento de toda conscincia e da prpria vida.

    Esta metfora foi a base da filiao de Artaud ao movimento surrealista, entre 1924 e 1926. Assim como Artaud entendeu o surrealismo, ele era uma revoluo aplicvel a todos os estados de esprito, a todos os tipos de

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  • atividade humana, sendo seu estatuto, como uma tendncia no interior da arte, secundrio e meramente estratgico. Ele acolheu bem o surrealismo sobretudo, um estado de esprito tanto coma uma crtica quanto como uma tcnica para desenvolver o alcance e a qualidade da mente. Sensvel como era em sua prpria vida aos efeitos repressivos da idia burguesa da realidade cotidiana (Nascemos, vivemos e morremos num ambiente de mentiras, escreveu em 1923), ele foi naturalmente conduzido ao surrealismo por sua reivindicao de uma conscincia mais sutil, imaginativa e rebelde. Porm logo achou as frmulas surrealistas como sendo uma outra espcie de confinamento. Ele foi expulso quando a maioria da comunidade surrealista estava prestes a juntar-se ao Partido Comunista Francs passo que Artaud denunciou como uma traio. Uma verdadeira revoluo social no muda nada, insiste ele com escrnio na polmica que escreveu contra o blefe surrealista em 1927. A adeso surrealista Terceira Internacional, por pouco tempo que fosse, foi uma provocao plausvel, para que ele desistisse do movimento, mas sua insatisfao era mais profunda que um desacordo sobre que tipo de revoluo desejvel e relevante. (Os surrealistas dificilmente eram mais comunistas do que Artaud. Andr Breton no tinha tanto uma poltica quanto um conjunto de atrativas simpatias morais, as quais em qualquer outro perodo o teriam conduzido ao anarquismo, e que, sendo bastante lgico em sua prpria poca, levou-o nos

    24 anos 30 a tornar-se um partidrio e amigo de Trotsky.) O que realmente provocou a hostilidade de Artaud foi a diferena fundamental de temperamento.

    Foi baseado num mal-entendido que Artaud aderiu fervorosamente ao desafio surrealista contra limites que a razo estabelece sobre a conscincia, e f surrealista no acesso a uma conscincia mais ampla, propiciada pelos sonhos, pelas drogas, pela arte insolente e pelo comportamento anti-social. O surrealista, pensava ele, era algum que desesperava-se para alcanar sua prpria mente. Ele referia-se a si prprio, naturalmente. O desespero est inteiramente ausente da corrente principal das atitudes surrealistas. Os surrealistas proclamavam os benefcios que iriam advir ao abrirem-se os portes da razo e ignoravam as abominaes. Artaud, to extravagantemente desesperanado quanto os surrealistas eram otimistas, podia, no mximo, apreensivamente conceder legitimidade ao irracional. Enquanto os surrealistas propunham jogos esquisitos com a conscincia que ningum poderia perder, Artaud estava engajado numa luta mortal para restaurar a si prprio. Breton

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  • aprovava o irracional como uma rota vlida em direo a um novo continente mental. Para Artaud, destitudo da esperana de que estava viajando para algum lugar, esse mesmo irracional era o terreno de seu martrio.

    Ao estender as fronteiras da conscincia, os surrealistas no apenas refinaram a regra da razo, mas ampliaram o rendimento do prazer fsico. Artaud era incapaz de esperar qualquer prazer na colonizao de novos domnios da conscincia. Em contraste com a afirmao eufrica dos surrealistas, tanto da paixo fsica quanto do amor romntico, Artaud considerava o erotismo como algo ameaador, demonaco. Em Arte e Morte ele descreve esta preocupao com o sexo que me petrifica e me suga o sangue. Os rgos sexuais multiplicam-se numa escala monstruosa, gigantesca, e em formas ameaadoramente hermafroditas em muitos de seus escritos; a virgindade tratada como um estado de graa e a impotncia, ou a castrao, apresentada por exemplo, nas imagens geradas pela figura de Abelardo em Arte e Morte mais como uma libertao do que como uma punio. Os surrealistas pareciam amar a vida, observa Artaud arrogantemente. Ele sentia desprezo por ela. Explicando o programa do Bureau de Pesquisa Surrealista em 1925, ele havia favoravelmente descrito o surrealismo como uma certa ordem de repulses, apenas para concluir no ano seguinte que estas repulses eram bastante super-

    25 faciais. Como disse Marcel Duchamp num comovente elogio a seu amigo Breton em 1966, quando este morreu, a grande fonte da inspirao surrealista o amor: a exaltao do amor que se escolhe. O surrealismo uma poltica espiritual da alegria.

    Apesar da veemente rejeio do surrealismo por Artaud, seu gosto era surrealista e assim permaneceu. Seu desdm pelo realismo como uma coleo de banalidades burguesas surrealista e tambm o seu entusiasmo pela arte do louco e do no-profissional, por aquilo que vem do Oriente, por tudo que seja extremo, fantstico, gtico. O desprezo de Artaud pelo repertrio dramtico de sua poca, pelo teatro devotado explorao da psicologia de personagens individuais um desprezo bsico ao argumento dos manifestos em O Teatro e Seu Duplo, escrito entre 1931 e 1936 comea com uma posio idntica quela mediante a qual Breton repudia a novela no Primeiro Manifesto do Surrealismo (1924). Mas Artaud faz um uso completamente diferente dos entusiasmos e das prevenes estticas que ele compartilha com Breton. Os surrealistas so connaisseurs da alegria, da liberdade, do prazer. Artaud um connaisseur do desespero e da batalha

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  • moral. Ao mesmo tempo em que os surrealistas se recusaram explicitamente a conceder arte um valor autnomo, eles no perceberam nenhum conflito entre as aspiraes morais e as estticas, e nesse sentido Artaud est bastante certo em dizer que o programa deles esttico meramente esttico, o que quer dizer. Artaud, de fato, percebe tal conflito, e reivindica que a arte justifique-se a si mesma pelos padres de seriedade moral.

    Do surrealismo, Artaud deriva a perspectiva que liga sua prpria e perene crise psicolgica quilo que Breton chama (no Segundo Manifesto do Surrealismo, de 1930) uma crise geral da conscincia uma perspectiva que Artaud manteve ao longo de seus escritos. Mas nenhum sentido de crise no cnon surrealista to desolador quanto o de Artaud. Comparadas s percepes laceradas de Artaud, tanto csmicas quanto intimamente psicolgicas, as lamrias surrealistas mais parecem reconfortadoras que alarmantes. (Elas no esto, de fato, dirigindo-se mesma crise. Artaud indubitavelmente sabia mais do que Breton sobre sofrimento, como Breton sabia mais do que Artaud sobre liberdade.) Um legado afim ao surrealismo deu a Artaud a possibilidade de continuar, ao longo de seu trabalho, a reconhecer que a arte tinha uma misso revolucionria. Mas a idia que Artaud

    26 tinha de revoluo diverge tanto da dos surrealistas quanto sua sensibilidade devastada diverge da de Breton, que essencialmente saudvel. Artaud tambm reteve dos surrealistas o imperativo romntico de fechar a lacuna entre a arte (e o pensamento) e a vida. Ele inicia O Umbigo do Limbo, escrito em 1925, declarando-se incapaz de conceber uma obra que seja apartada da vida, uma criao separada. Porm Artaud insiste, mais agressivamente que os surrealistas jamais o fizeram, nesta desvalorizao da obra de arte separada, que resultado da ligao da arte com a vida. Como os surrealistas, Artaud considera a arte uma funo da conscincia, cada obra representando somente uma frao da totalidade da conscincia do artista. Porm, ao identificar a conscincia principalmente com os seus aspectos obscuros, ocultos e tormentosos, ele faz do desmembramento da totalidade da conscincia em obras separadas no meramente um procedimento arbitrrio (que era o que fascinava os surrealistas), mas algo que ocasiona seu prprio aniquilamento. O estreitamento que Artaud incide na viso surrealista torna a obra de arte literalmente intil em si mesma; na medida em que considerada como uma coisa, ela est morta. Em O Pesa-Nervos, tambm de 1925, Artaud equipara suas obras a lixo sem vida, meras sobras da alma. Estes pedaos

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  • mutilados de conscincia adquirem valor e vitalidade somente como metforas para obras de arte; isto , metforas para a conscincia.

    Desdenhando qualquer viso separada da arte, qualquer verso daquela viso que considera as obras de arte como objetos (para serem contemplados, para encantar os sentidos, para edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte a uma representao dramtica. Na potica de Artaud, a arte (e o pensamento) uma ao e que, para ser autntica, deve ser brutal e tambm uma experincia sofrida, e impregnada de emoes extremas. Sendo tanto ao quanto paixo desse tipo, iconoclasta bem como evanglica em seu fervor, a arte parece requerer um cenrio mais arrojado, fora dos museus e lugares legitimados de exposio, e uma forma nova e mais rude de confrontao com seu pblico. A retrica de movimento interior que sustenta a noo de arte de Artaud impressionante, porm no modifica a maneira como ele de fato age no sentido de rejeitar o papel tradicional da obra de arte como um objeto atravs de uma anlise e uma experincia da obra de arte que so uma imensa tautologia. Ele v a arte como uma ao, e portanto, como uma paixo, do esprito. O esprito produz a arte. E o espao no qual a arte consumida tambm o

    27 esprito visto como a totalidade orgnica de sentimento, de sensao fsica e de habilidade para atribuir significao. A potica de Artaud uma ltima espcie de hegelianismo manaco na qual a arte o compndio da conscincia, o reflexo da conscincia sobre si mesma, e o espao vazio no qual a conscincia d seu perigoso salto de autotranscendncia.

    Fechar o vo que existe entre a arte e a vida destri a arte e, ao mesmo

    tempo, a universaliza. No manifesto que Artaud escreveu para o Teatro Alfred Jarry, que ele fundou em 1926, d boas-vindas ao descrdito no qual todas as formas de arte esto sucessivamente caindo. Seu prazer pode ser uma postura, mas seria inconsistente para ele lamentar esse estado de coisas. Uma vez que o critrio dominante para a arte toma-se sua fuso com a vida (isto , com tudo, incluindo outras artes), a existncia de formas de arte separada cessa de ser defensvel. Alm do mais, Artaud supe que uma das artes existentes logo deve recobrar-se de seu colapso nervoso e tomar-se a forma de arte total, que absorver todas as outras. A obra qual Artaud consagrou sua vida pode ser descrita como a seqncia de seus esforos para formular esta arte mestra, seguindo heroicamente sua convico de que a arte que ele

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  • procurava dificilmente poderia ser aquela envolvendo somente a linguagem qual o seu gnio estava essencialmente confinado.

    Os parmetros da obra de Artaud em todas as artes so idnticos aos diferentes distanciamentos crticos que ele mantm da idia de uma arte que somente linguagem com as diversas formas de re volta contra a poesia (ttulo de um texto em prosa que escreveu em Rodez em 1944) que ele sustentou durante toda a sua vida. A poesia foi, cronologicamente, a primeira das muitas formas de arte que praticou. Subsistem poemas to antigos como os de 1913, quando tinha dezessete anos e ainda era estudante em sua Marselha natal; seu primeiro livro, publicado em 1923, trs anos depois que mudou-se para Paris, era uma coleo de poemas; e foi a frustrada submisso de alguns novos poemas Nouvelle Revue Franaise, naquele mesmo ano, que deu origem sua famosa correspondncia com Rivire. Porm Artaud logo comeou a negligenciar a poesia em favor de outras artes. As dimenses da poesia que ele foi capaz de escrever nos anos 20 eram demasiadamente pequenas para o que Artaud intua ser a escala de uma arte mestra. Nos primeiros poemas, seu flego curto; a forma

    28 lrica compacta que ele utiliza no fornece nenhum escoadouro para sua imaginao discursiva e narrativa. Foi somente na grande exploso de sua escrita no perodo entre 1945 e 1948, nos trs ltimos anos de sua vida, que de fato Artaud, j nessa poca indiferente idia da poesia como uma declarao lrica fechada, encontrou uma voz de muito flego que era adequada ao mbito de suas necessidades imaginativas uma voz que estava livre de formas estabelecidas e possua uma grande abertura, como a poesia de Pound. A poesia, como Artaud a concebia nos anos 20, no possua nenhuma dessas possibilidades ou suficincias. Era pequena, e uma arte total tinha que ser e parecer grande; tinha que ser uma representao de muitas vozes, no um objeto lrico singular.

    Todos os empreendimentos inspirados pelo ideal de uma forma de arte total seja na msica, na pintura, na escultura, na arquitetura ou na literatura tentam, de uma forma ou de outra, teatralizar. Apesar de Artaud no precisar ter sido to literal, faz sentido que ele tenha, num primeiro momento, se dirigido explicitamente para as artes dramticas. Entre 1922 e 1924, atuou em peas dirigidas por Charles Dullin e os Pitoffs, e em 1924 tambm iniciou uma carreira como ator de cinema. Isto significa que, pela metade dos anos 20, Artaud possua dois candidatos plausveis para o papel de arte total: o cinema e o teatro. Entretanto, uma vez que no era como ator, mas como um diretor,

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  • que tinha esperanas de promover a candidatura destas artes, logo teve que renunciar a uma. delas o cinema. Jamais foram dados a Artaud os meios para dirigir um filme de sua prpria autoria, e ele viu suas intenes tradas num filme de 1928 que foi feito por outro diretor a partir de um de seus roteiros, A Concha e o Sacerdote. Sua sensao de derrota foi reforada em 1929 pelo advento do som, uma virada na histria da esttica cinematogrfica que foi erradamente profetizada por Artaud como o fez a maioria do pequeno nmero de assduos freqentadores de cinema que levaram a srio esta arte, ao longo dos anos 20 como evento que terminaria com a grandeza do cinema como forma de arte. Ele continuou atuando em filmes at 1935, mas com pouca esperana de conseguir uma chance de dirigir os seus prprios filmes e sem outras reflexes posteriores sobre as possibilidades do cinema (o qual, independentemente do desalento de Artaud, permanece o candidato do sculo com maiores possibilidades para o ttulo de arte mestra).

    De 1926 em diante, a busca de Artaud por uma forma de arte 29

    total centrou-se no teatro. Ao contrrio da poesia, uma arte feita de um s material (palavras), o teatro utiliza uma pluralidade de materiais: palavras, luz, msica, corpos, moblia, roupas. Ao contrrio do cinema, uma arte que utiliza apenas uma pluralidade de linguagens (imagens, palavras, msica), o teatro carnal, corpreo. O teatro rene os mais diversos meios linguagem gestual e verbal, objetos estticos e movimento num espao tridimensional. Mas o teatro, entretanto, no se torna uma arte mestra meramente em virtude da abundncia de seus meios. A tirania reinante de alguns meios sobre outros tem que ser criativamente subvertida. Assim como Wagner desafiou a conveno de alternar-se a ria e o recitativo, que implica uma relao hierrquica entre discurso, cano e msica orquestral, Artaud denunciou a prtica de fazer cada elemento da encenao servir de alguma maneira s palavras que os atores falam um para o outro. Criticando como falsas as prioridades do teatro-dilogo, que subordinaram o teatro literatura, Artaud implicitamente releva os meios que caracterizam outras formas de representao dramtica, tais como a dana, o oratrio, o circo, o cabar, a igreja, o ginsio, a sala de operao do hospital, o tribunal. Porm, anexar estes recursos de outras artes e de formas quase-teatrais no ir fazer do teatro uma forma de arte total. Uma arte mestra no pode ser construda por uma srie de adies; Artaud no est destacando principalmente o que o teatro acrescenta a seus meios. Ao contrrio, ele procura purgar o teatro do que lhe irrelevante ou cmodo. Ao reivindicar um teatro no qual o ator verbalmente orientado da Europa seria

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  • novamente treinado como um atleta do corao, Artaud revela seu gosto inveterado pelo esforo espiritual e fsico pela arte enquanto provao.

    O teatro de Artaud uma mquina tenaz na transformao das concepes da mente em eventos inteiramente materiais, entre os quais encontram-se as prprias paixes. Contra a velha prioridade secular de que o teatro europeu deu s palavras os meios para a comunicao de emoes e idias, Artaud deseja mostrar a base orgnica das emoes e a materialidade das idias nos corpos dos atores. O teatro de Artaud uma reao contra o estado de subdesenvolvimento no qual os corpos (e as vozes, separadas da fala) dos atores ocidentais permaneceram durante geraes, bem como a prpria arte do espetculo. Para reparar o desequilbrio que assim favorece a linguagem verbal, Artaud prope conduzir o treinamento dos atores junto ao

    30 treinamento dos danarinos, atletas, palhaos e cantores, e basear o teatro no espetculo, antes de qualquer outra coisa, como afirma em seu Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade, publicado em 1933. Ele no est propondo a substituio dos encantos da linguagem por cenrios espetaculares, roupas, msica, iluminao e efeitos de palco. O critrio de Artaud para o espetculo a violncia sensorial, no o encantamento sensorial; a beleza uma noo que ele jamais cogita. Longe de considerar o espetacular como sendo em si mesmo desejvel, Artaud submetia o palco a uma extrema austeridade a ponto de excluir qualquer coisa que pudesse simbolizar outra. Objetos, acessrios e cenrios de palco devem ser apreendidos diretamente... no pelo que representam, mas pelo que eles so, escreve em um manifesto de 1926. Mais tarde, em O Teatro e Seu Duplo, sugere que se eliminem completamente os cenrios. Ele reivindica um teatro puro, dominado pela fsica do gesto absoluto, que em si mesmo idia. Se a linguagem de Artaud soa vagamente platnica, no sem razo, pois, como Plato, Artaud considera a arte do ponto de vista moral. Ele no gosta realmente do teatro ao menos o teatro em sua concepo ocidental, que ele acusa de ser insuficientemente sria. O seu teatro no teria nada a ver com o objetivo de fornecer diverso intil, artificial, mero entretenimento. O contraste no mago da polmica de Artaud no entre um teatro meramente literrio e um teatro de sensaes fortes, mas entre um teatro hedonstico e um teatro que moralmente rigoroso. O que Artaud prope um teatro que Savonarola ou Cromwell bem poderiam ter aprovado. De fato, O Teatro e Seu Duplo pode ser lido como um ataque indignado em relao ao teatro, com o esprito reminescente da Carta a dAlembert, na qual Rousseau, enfurecido

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  • com a personagem de Alceste em O Misantropo que ele considerou como sendo uma ridicularizao sofisticada de Molire da sinceridade e da pureza moral como fanatismo grosseiro , termina por argumentar que est na natureza do teatro ser moralmente superficial. Como Rousseau, Artaud revolta-se contra a vulgaridade moral de quase toda arte. Como Plato, Artaud sentia que a arte geralmente mente. Artaud no ir banir os artistas de sua Repblica, mas dar apoio arte somente na medida em que for uma ao verdadeira. A arte deve ser cognitiva. Nenhuma imagem me satisfaz, a no ser que seja, ao mesmo tempo, conhecimento, escreve ele. A arte deve ter um efeito espiritual ben-

    31 fico sobre seu pblico um efeito cujo poder depende, na viso de Artaud, de um repdio a todas as formas de mediao.

    o moralista em Artaud que o incita a exigir que o teatro seja restringido, mantido o mais livre possvel de elementos de mediao inclusive a mediao do texto escrito. Peas de teatro contam mentiras. Mesmo que uma pea no conte uma mentira, ao atingir o status de uma obra-prima ela torna-se uma mentira. Artaud anuncia, em 1926, que no deseja criar um teatro para representar peas e assim perpetuar ou aumentar o rol da cultura de obras-primas consagradas. Ele julga a herana das peas escritas como sendo um obstculo intil, e o dramaturgo como intermedirio desnecessrio entre o pblico e a verdade que pode ser apresentada, nua, no palco. Aqui, entretanto, o moralismo de Artaud d um giro claramente antiplatnico: a verdade nua a verdade que totalmente material. Artaud define o teatro como um lugar onde as facetas obscuras do esprito so reveladas numa projeo real, material.

    Para encarnar o pensamento, um teatro rigorosamente concebido deve dispensar a mediao de um texto j escrito, acabando desse modo com a separao entre autor e ator. (Isto remove a mais antiga objeo profisso do ator que ela uma forma de deboche psicolgico, na qual as pessoas dizem palavras que no so de fato suas e fingem sentir emoes que so funcionalmente insinceras.) A separao entre o ator e a platia deve ser reduzida (mas no terminada) pela violao da fronteira entre a rea do palco e as filas fixas de poltronas do auditrio. Artaud, com sua sensibilidade hiertica, jamais conjetura uma forma de teatro na qual a platia participa ativamente da representao, mas quer abolir as regras de decoro teatral que permitem platia dissociar-se de sua prpria experincia. Respondendo implicitamente exortao moralista de que o teatro distrai as pessoas de sua

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  • autntica personalidade ao lev-las a envolverem-se com problemas imaginrios, Artaud quer que o teatro no se dirija nem s mentes dos espectadores, nem aos seus sentidos, mas sua existncia total. Somente o mais fervoroso dos moralistas teria desejado que as pessoas comparecessem ao teatro como vo ao cirurgio ou ao dentista. Embora assegurando no ser fatal (ao contrrio da visita ao cirurgio), a operao sobre a platia sria, e o pblico no deveria deixar o teatro moral ou emocionalmente intato. Em outra imagem mdica, Artaud compara o teatro peste. Mostrar a verdade significa mostrar arqutipos, ao invs de psicologia individual; isto faz do teatro um

    32 lugar arriscado, pois a realidade arquetpica perigosa. Membros da platia no devem identificar-se com o que acontece no palco. Para Artaud, o verdadeiro teatro uma experincia perigosa, intimidativa que exclui emoes plcidas, jocosidade e intimidade tranqilizadora.

    O valor da violncia emocional na arte h muito tempo tem sido um dogma importante da sensibilidade modernista. Antes de Artaud, entretanto, a crueldade era exercida principalmente num esprito desinteressado, por sua eficcia esttica. Quando Baudelaire colocou a experincia de choque (para tomar emprestada a expresso de Walter Benjamin) no centro do seu verso e dos seus poemas em prosa, dificilmente o foi para edificar seus leitores. Porm, era exatamente esta a inteno da devoo de Artaud esttica do choque. Atravs da exclusividade de seu compromisso arte paroxsmica, Artaud revela-se como sendo to moralista em relao arte quanto Plato mas um moralista cujas expectativas em relao arte negam apenas aquelas distines nas quais a viso de Plato est fundamentada. Na medida em que Artaud ope-se separao entre arte e vida, ope-se a todas as formas teatrais que implicam uma diferena entre realidade e representao. Mas esta diferena pode ser saltada, insinua Artaud, se o espetculo suficientemente isto , excessivamente violento. A crueldade da obra de arte no tem somente uma funo diretamente moral, mas tambm cognitiva. De acordo com o critrio moralista do conhecimento de Artaud, uma imagem verdadeira na medida em que violenta.

    A viso de Plato depende da assuno de uma diferena intransponvel entre vida e arte, realidade e representao. Na famosa imagem no Livro VII da Repblica, Plato compara a ignorncia vida numa caverna engenhosamente iluminada, para cujos habitantes a vida um espetculo um espetculo que consiste somente de sombras de eventos reais. A caverna

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  • um teatro. E a verdade (a realidade) encontra-se fora dela, no sol. Na imagem platnica de O Teatro e Seu Duplo, Artaud sustenta uma viso mais tolerante em relao a sombras e espetculos. Ele admite que existam tanto sombras (e espetculos) verdadeiras quanto falsas, e que passvel aprender a distinguir entre elas. Longe de identificar a sabedoria com uma sada da caverna para vislumbrar a luz clara da realidade, Artaud pensa que a conscincia moderna sofre de uma falta de sombras. O remdio permanecer na caverna, mas projetando espetculos melhores. O teatro que Artaud

    33 prope ir servir conscincia, ao nomear e dirigir as sombras e destruir as falsas sombras para preparar o caminho para uma nova gerao de sombras, ao redor das quais ir armar-se o verdadeiro espetculo da vida.

    Ao no sustentar uma viso hierrquica da mente, Artaud passa por cima da distino superficial, alimentada pelos surrealistas, entre o racional e o irracional. Artaud no fala em nome da concepo bem conhecida que exalta a paixo s custas da razo, a carne s custas da mente, a mente exaltada por drogas contra a mente prosaica, a vida dos instintos contra a cerebrao mortfera. O que ele advoga uma relao alternativa com a mente. Foi esta a bem alardeada atrao que as culturas no-ocidentais exerceram sobre Artaud, mas no foi o que o conduziu s drogas. (Foi para acalmar as enxaquecas e outras dores neurolgicas que ele sofreu durante toda a sua vida, no para expandir sua conscincia, que Artaud usou opiceos e tornou-se viciado.)

    Durante um breve perodo, Artaud tomou a idia surrealista como um modelo para a conscincia unificada, no-dualista que ele procurava. Depois de rejeitar o surrealismo em 1926, ele reprops a arte especificamente, o teatro como um modelo mais rigoroso. A funo que Artaud d ao teatro a de restaurar a ciso entre linguagem e carne. sua temtica constante no treinamento de atores: um treinamento antittico ao habitual, que no ensina aos atores nem como movimentarem-se, nem o que fazerem com suas vozes, alm de falar. (Eles podem gritar, rosnar, cantar, entoar.) tambm o objeto de sua dramaturgia ideal. Longe de esposar um irracionalismo fcil que polariza razo e sentimento, Artaud imagina o teatro como o lugar onde o corpo renasceria no pensamento e o pensamento renasceria no corpo. Ele diagnostica sua prpria doena como uma diviso no interior de sua mente (Minha conscincia esta partida, escreve) que internaliza a ciso entre a mente e o corpo. Os escritos de Artaud sobre teatro podem ser lidos como um manual psicolgico sobre a reunificao da mente e do corpo. O teatro tornou-

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  • se sua suprema metfora para a vida autocorretiva, espontnea, carnal e inteligente do esprito.

    De fato, as imagens de Artaud para o teatro em O Teatro e Seu Duplo, escrito nos anos 30, ecoam imagens que ele utilizou em escritos do incio e meados dos anos 20 tais como O Pesa-Nervos, cartas a Ren e Yvonne Allendy, e Fragmentos de um Dirio do Infer-

    34 no para descrever o seu prprio sofrimento mental. Artaud se queixa de que sua conscincia sem fronteiras e posio fixa; destituda de ou numa contnua luta com a linguagem; fragmentada de fato, atormentada por descontinuidades; sem localizao fsica ou constantemente mudando de local (e extenso no tempo e no espao); sexualmente obcecado; num estado de infestao violenta. O teatro de Artaud caracterizado por uma ausncia de qualquer posicionamento espacial fixo dos atores, um em relao ao outro, e dos atores em relao platia; por uma fluidez dos movimentos e da alma; pela mutilao da linguagem e da transcendncia da linguagem no grito do ator; pela carnalidade do espetculo; pelo tom excessivamente violento. Artaud no estava, claro, simplesmente reproduzindo sua agonia interior. Ele estava, mais precisamente, dando uma verso sistematizada e positiva dela.

    Quando Hume identifica explicitamente a conscincia a um teatro, a imagem moralmente neutra e inteiramente a-histrica; ele no est pensando em qualquer espcie particular de teatro, ocidental ou de outro tipo, e teria considerado irrelevante qualquer lembrana a que o teatro pudesse dar origem. Para Artaud, a parte decisiva da analogia que o teatro e a conscincia pode mudar. Pois, no somente a conscincia de fato assemelha-se ao teatro, mas, como Artaud o constri, o teatro assemelha-se conscincia, e, portanto, presta-se a ser transformado num teatro-laboratrio no qual ser conduzida uma pesquisa para mudar a conscincia.

    Os escritos de Artaud sobre teatro so transformaes de suas aspiraes em relao a sua prpria mente. Ele quer que o teatro (como a mente) seja libertado do confinamento na linguagem e nas formas. Um teatro liberto libera, supe ele. Ao dar vazo s paixes extremas e aos pesadelos culturais, o teatro os exorciza. Mas o teatro de Artaud no , de forma alguma, simplesmente catrtico. Ao menos em sua inteno (a prtica de Artaud nos anos 20 e nos anos 30 uma outra questo), o seu teatro tem pouca coisa em comum com o antiteatro de investidas jocosas e sadistas platia, que foi concebido por Marinetti e pelos artistas dada um pouco antes e

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  • depois da Primeira Guerra Mundial. A agressividade que Artaud prope controlada e intricadamente orquestrada, pois ele supe que a violncia sensorial pode ser uma forma de inteligncia corporificada. Ao insistir na fungo cognitiva do teatro (o drama, escreve em 1923, num ensaio sobre Maeterlinck, a forma mais alta de atividade mental), ele exclui

    35 o acaso. (Mesmo em seus dias de surrealismo, ele no se juntou prtica da escrita automtica.) O teatro, observa ele ocasionalmente, deve ser cientfico, e isto quer dizer que no deve ser casual, meramente expressivo ou espontneo, pessoal ou divertido, mas deve conter um propsito totalmente srio e, em ltima anlise, religioso.

    A insistncia de Artaud na seriedade da situao teatral tambm marca sua diferena com os surrealistas, que pensavam a arte e sua misso teraputica e revolucionria com bem menos preciso.

    Os surrealistas, cujos princpios moralizadores eram consideravelmente menos intransigentes que os de Artaud, e que, de qualquer maneira, no trouxeram nenhum sentido de urgncia moral a ser utilizado na produo da arte, no se propuseram a sair em busca dos limites de qualquer forma de arte singular. Eles tendiam a ser turistas, freqentemente geniais, na maior quantidade de artes possvel, acreditando que o impulso artstico permanece o mesmo para onde quer que se volte. (Assim, Cocteau, que seguiu a carreira surrealista ideal, chamava tudo que fazia de poesia.) A maior ousadia e autoridade de Artaud como um esteticista resulta em parte do fato de que apesar dele, tambm, praticar vrias artes, recusando-se, como os surrealistas, a se deixar inibir pela distribuio da arte em diferentes meios ele no considerava as vrias artes como formas equivalentes do mesmo impulso protico. Suas prprias atividades, no importa quo dispersas possam ter sido, sempre refletem a busca de Artaud de uma forma de arte total, na qual as outras iriam fundir-se assim como a prpria arte iria fundir-se na vida.

    Paradoxalmente, foi esta mesma negao de independncia aos diferentes territrios da arte que levou Artaud a fazer o que nenhum dos surrealistas jamais tentara: repensar completamente uma forma de arte. Sobre essa arte, o teatro, ele teve um impacto to profundo que o curso de todo o teatro srio recente na Europa Ocidental e nas. Amricas pode se dizer dividido em dois perodos antes e depois de Artaud. Ningum que atualmente trabalha no teatro insensvel ao impacto das, idias especficas de Artaud sobre o corpo e a voz do ator, a utilizao da msica, o papel do texto

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  • escrito, a interao entre o espao ocupado pelo espetculo e o espao da platia. Artaud mudou a compreenso do que era srio, do que valia a pena ser feito. Brecht o nico outro escritor de teatro do sculo cuja importncia e profundidade compreensivelmente compete com a de Artaud. Mas Artaud no teve xito em afetar a conscincia do teatro moderno

    36 sendo ele prprio, como Brecht o foi, um grande diretor. Sua influncia no encontra nenhum apoio na evidncia de suas prprias produes. Seu trabalho prtico no teatro entre 1926 e 1935 foi aparentemente to pouco sedutor que no deixou virtualmente nenhum trao, ao passo que a idia de teatro em nome da qual ele levou adiante suas produes diante de um pblico no-receptivo tornou-se cada vez mais potente.

    Da metade dos anos 20 em diante, a obra de Artaud animada pela idia de uma mudana radical na cultura. Suas imagens implicam uma concepo mdica, ao invs de histrica, da cultura: a sociedade est agonizando. Como Nietzsche, Artaud considerava-se uma espcie de mdico da cultura assim como o seu paciente mais dolorosamente enfermo. O teatro que ele planejou uma ao de ataque contra a cultura estabelecida, um assalto ao pblico burgus, que iria tanto mostrar s pessoas que elas esto mortas quanto despert-las de seu estupor. O homem que estava para ser devastado por repetidos tratamentos de eletrochoques, durante os ltimos trs de nove anos consecutivos em hospitais para doentes mentais, props que o teatro administrasse cultura uma espcie de terapia de choque. Artaud, que freqentemente queixava-se de sentir-se paralisado, queria que o teatro renovasse o sentido da vida.

    At certo ponto, as prescries de Artaud assemelham-se a muitas propostas de renovao cultural que apareceram periodicamente ao longo dos dois ltimos sculos de cultura ocidental em nome da simplicidade, do lan vital, da naturalidade, da libertao da arte profissional uma libertao dos ardis. Seu diagnstico de que vivemos numa cultura inorgnica, petrificada cuja ausncia de vida ele associa dominncia da palavra escrita , foi dificilmente uma idia nova quando ele a expressou; mesmo assim, muitas dcadas depois, no havia ainda exaurido sua autoridade. O argumento de Artaud em O Teatro e Seu Duplo muito prximo daquele de Nietzsche, em O Nascimento da Tragdia, que lamentava o atrofianrento do vigoroso teatro arcaico de Atenas pela filosofia socrtica pela introduo de personagens que raciocinam. (Outro paralelo com Artaud: o que fez do jovem Nietzsche um ardente wagneriano foi a concepo de pera de Wagner como a

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  • Gesamtkunstwerk a mais completa afirmao, antes de Artaud, da idia de um teatro total.)

    Tal como Nietzsche voltou-se para as cerimnias dionisacas que precederam a dramaturgia secularizada, racionalizada e verbal de

    37 Atenas, Artaud encontrou seus modelos nos teatros no-ocidentais religiosos ou mgicos. Artaud no prope o Teatro da Crueldade como uma idia nova no interior do teatro ocidental. Ele supe... uma outra forma de civilizao. Ele no est, entretanto, referindo-se a qualquer civilizao especfica, mas a uma idia de civilizao que possui numerosas bases na histria uma sntese de elementos de sociedades passadas e de sociedades primitivas e no-ocidentais do presente. A preferncia por outra forma de civilizao essencialmente ecltica. (Vale dizer, um mito gerado por certas necessidades morais.) A inspirao para as idias de Artaud em relao ao teatro veio do sudeste da sia: de ver o teatro cambojano em Marselha em 1922 e o teatro balins em Paris em 1931. Porm, o estmulo poderia muito bem ter vindo da observao do teatro de uma tribo daom ou de cerimoniais xamansticos dos ndios da Patagnia. O que conta que a outra cultura seja genuinamente outra; isto , no-ocidental e no-contempornea.

    Em diferentes pocas Artaud seguiu todas as trs rotas imaginativas mais freqentemente trilhadas que partiam da alta cultura ocidental a uma outra forma de civilizao. Primeiro surgiu o que ficou conhecido logo depois da Primeira Guerra Mundial, nos escritos de Hesse, Ren Daumal e dos surrealistas, como a Virada para o Oriente. Em segundo lugar veio o interesse por uma parte suprimida do passado ocidental as tradies espirituais heterodoxas ou abertamente mgicas. Em terceiro lugar surgiu a vida dos assim chamados povos primitivos. O que une o Oriente, as tradies antinmicas e ocultistas no Ocidente e o comunitarismo de tribos primitivas que elas se encontram em outra parte, no somente no espao, mas tambm no tempo. Todas as trs encarnam os valores do passado. Apesar de os ndios tarahumara do Mxico ainda existirem, sua sobrevivncia em 1936, quando Artaud os visitou, j era anacrnica: os valores que os tarahumara representam pertencem tanto ao passado quanto aqueles das antigas religies misteriosas do Oriente Prximo que Artaud estudou quando escrevia sua novela histrica O Heliogbalo, em 1933. As trs verses de uma outra forma de civilizao testemunham a mesma procura de uma sociedade integrada ao redor de temas abertamente religiosos, e fugindo do secular. O que interessa a Artaud o Oriente do budismo (ver sua Carta s Escolas Budistas, escrita em 1925) e

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  • da ioga; jamais seria o Oriente de Mao Ts-tung, no importa o quanto Artaud falasse em revoluo. (A Grande Marcha estava se

    38 dando ao mesmo tempo em que Artaud lutava para montar as produes do seu Teatro da Crueldade em Paris.)

    Esta nostalgia por uma passado to ecltico que chega a ser quase ilocalizvel historicamente uma faceta da sensibilidade modernista que pareceu cada vez mais suspeita nas dcadas recentes. um ltimo refinamento da perspectiva colonialista: uma espoliao imaginativa das culturas no-brancas, cuja vida moral ela drasticamente supersimplifica, cuja sabedoria ela pilha e parodia. A esse criticismo no h rplica convincente. Mas ao criticismo de que a busca de uma outra forma de civilizao recusa-se a se submeter desiluso do conhecimento histrico preciso pode-se elaborar uma resposta. Ela jamais procurou tal conhecimento. As outras civilizaes esto sendo usadas como modelos e esto disposio enquanto estimulantes da imaginao, precisamente porque no so acessveis. Elas so ao mesmo tempo modelos e mistrios. Tampouco pode esta procura ser dispensada como fraudulenta sob o fundamento de que insensvel s foras polticas que ocasionam o sofrimento humano. Ela conscientemente ope-se a tal sensibilidade. A nostalgia faz parte de uma viso que deliberadamente no-poltica no importa o quo freqentemente ela venha a brandir a palavra revoluo.

    Um resultado da aspirao arte total que resulta da negao do fosso entre arte e vida tem sido o encorajamento da noo de arte como um instrumento de revoluo. O outro resultado tem sido a identificao de ambos, arte e vida, como alegria pura e desinteressada. Para cada Vertov ou Breton, h um Cage ou um Duchamp, ou um Rauschenberg. Apesar de Artaud ser prximo a Vertov e Breton ao considerar suas atividades como parte de uma revoluo maior, como um autoproclamado revolucionrio nas artes ele na verdade fica entre dois campos no interessado em satisfazer nem o impulso poltico, nem o ldico. Desanimado quando Breton tentou ligar o programa surrealista com o marxismo, Artaud rompeu com os surrealistas pelo que considerou ser uma traio deles, nas mos da poltica, de uma revoluo essencialmente espiritual. Ele era antiburgus quase que por reflexo (como quase todos os artistas na tradio modernista), mas a perspectiva de transferir o poder da burguesia para o proletariado jamais o tentou. Do seu ponto de vista reconhecidamente absoluto, uma mudana na estrutura social no mudaria nada. A revoluo a qual Artaud adere no tem

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  • nada a ver com poltica, mas concebida explicitamente como um esforo para redirecio-

    39 nar a cultura. Artaud no somente compartilha da generalizada (e errada) crena na possibilidade de uma revoluo cultural desligada da poltica, mas insiste em que a nica revoluo cultural genuna a que no tem nada a ver com a poltica.

    O apelo de Artaud a uma revoluo cultural sugere um programa de regresso herica similar quele formulado por todo grande moralista e antipoltico de nossa era. A bandeira da revoluo cultural dificilmente um monoplio da esquerda marxista ou maosta. Ao contrrio, apela particularmente a pensadores e artistas apolticos (como Nietzsche, Spengler, Pirandello, Marinetti, D. H. Lawrence, Pound) que mais comumente tornam-se entusiastas de direita. Na esquerda poltica h poucos defensores da revoluo cultural (Tatlin, Gramsci e Godard esto entre os que me vm mente). Um radicalismo que puramente cultural, ou ilusrio ou, afinal, conservador em suas implicaes. Os planos de Artaud para subverter e revitalizar a cultura, seu anseio por um novo tipo de personalidade humana ilustra os limites de todo pensamento antipoltico sobre a revoluo.

    A revoluo cultural que se recusa a ser poltica no vai a lugar nenhum, exceto em direo a uma teologia da cultura e uma soteriologia. Aspiro a uma outra vida, declara Artaud em 1927. Toda a obra de Artaud sobre a salvao, sendo o teatro o meio de salvar almas sobre o qual ele meditou profundamente. A transformao espiritual um objetivo em cujo nome o teatro tem sido sempre arrolado neste sculo, ao menos desde Isadora Duncan. No exemplo mais recente e solene, o Teatro-Laboratrio de Jerzy Grotowski, a atividade toda de formar uma companhia, ensaiar e representar as peas serve reeducao espiritual dos atores; a presena de uma audincia requerida somente para testemunhar os feitos de autotranscendncia que os atores realizam. No Teatro da Crueldade de Artaud a platia que ir nascer duas vezes uma pretenso no-testada, uma vez que Artaud jamais fez o seu teatro funcionar (como o fez Grotowski ao longo dos anos 60 na Polnia). Como um objetivo, parece bem menos vivel que a disciplina almejada por Grotowski. Sensvel como Artaud armadura emocional e fsica do ator convencionalmente treinado, ele jamais examina atentamente como o retreinamento radical que prope ir afetar o ator como um ser humano. O seu pensamento volta-se todo para o pblico.

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  • Como se poderia ter esperado, o pblico demonstrou ser uma grande decepo. As produes de Artaud nos dois teatros que ele fun-

    40 dou, o Teatro Alfred Jarry e o Teatro da Crueldade. criaram pouco, envolvimento. Entretanto, apesar de completamente insatisfeito com a qualidade do seu pblico, Artaud queixou-se muito mais do insignificante apoio que recebeu da sria instituio teatral de Paris (ele manteve uma longa e desesperada correspondncia com Louis Jouvet), da dificuldade de conseguir que seus projetos fossem afinal produzidos, do sucesso insignificante que eles tinham quando representados. Artaud ficou compreensivelmente amargurado, pois, a despeito dos numerosos patres com ttulos de nobreza e de amigos que eram eminentes escritores, pintores, editores, diretores todos por ele atormentados em busca de apoio moral e dinheiro , o seu trabalho, quando foi de fato produzido, gozou somente de uma pequena parcela da aclamao convencionalmente reservada a eventos com dificuldade de patrocnio assistidos pelos freqentadores e consumidores habituais da alta cultura. A produo de Artaud mais ambiciosa e mais completamente articulada do Teatro da Crueldade, Os Cenci, escrita por ele mesmo, durou dezessete dias na primavera de 1935. Tivesse ela sido representada durante um ano, ele provavelmente teria da mesma maneira se convencido que havia fracassado.

    Na cultura moderna tem sido montada uma poderosa maquinaria atravs da qual o trabalho dissidente, aps obter inicialmente um estatuto semi-oficial de avant-garde, gradualmente absorvido e tomado aceitvel. Porm, as atividades prticas de Artaud no teatro mal se qualificaram para este tipo de cooptao. Os Cenci no uma pea muito boa, mesmo pelos critrios de dramaturgia convulsiva que Artaud esposava, e o interesse pela sua produo de Os Cenci, sob todos os aspectos, repousa nas idias que sugeriu, mas que no foram, entretanto, realmente corporificadas. O que Artaud fez no palco como um diretor e como ator principal foi demasiadamente idiossincrtico, estreito e histrico para persuadir. Ele exerceu influncia atravs de suas idias sobre o teatro, sendo uma parte constituinte da autoridade destas idias precisamente a sua inabilidade de coloc-las em prtica.

    Fortalecido por seu insacivel apetite de novos artigos, o pblico educado das grandes cidades ficou habituado agonia modernista e especializou-se em sobrepuj-la com astcia: qualquer negativo pode eventualmente ser transformado em positivo. Assim, Artaud, que insistiu em que o repertrio de obras-primas fosse jogado no lixo, tem sido extremamente influente como criador de um repertrio

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  • 41 alternativo de uma tradio antagnica de peas de teatro. O inflexvel brado de Artaud Acabar com as obras-primas! tem sido ouvido de uma forma mais conciliatria como Acabar com essas obras-primas! Entretanto, esta remodelao positiva de seu ataque ao repertrio tradicional no tem acontecido sem a ajuda da prtica de Artaud (enquanto distinta de sua retrica). Apesar de ter insistido repetidas vezes que o teatro deveria dispensar as peas, seu prprio trabalho no teatro estava longe de dispensar a sua utilizao. Denominou sua primeira companhia em homenagem ao autor de Ubu Rei. parte seus prprios projetos A Conquista do Mxico e A Tomada de Jerusalm (no produzida) e Os Cenci , houve vrias obras-primas, na poca fora de moda ou obscuras, que Artaud quis reviver. Ele de fato levou ao palco as duas grandes dream plays de Caldern e Strindberg (A Vida um Sonho e Pepa de Sonho), e no correr dos anos esperava tambm dirigir produes de Eurpedes (As Bacantes), Sneca (Thyestes), Arden de Feversham, Shakespeare (Macbeth, Ricardo II, Titus Andronicus), Tourneur (A Tragdia do Vingador), Webster (O Diabo Branco, A Duquesa de Malfi), Sade (uma adaptao de Eugnie de Franval), Bchner (Woyzeck) e Helderlin (A Morte de Empdocles). Esta seleo de peas delineia uma sensibilidade agora familiar. Juntamente com os dadastas, Artaud formulou o gosto que estava para tomar-se um srio padro de gosto Off-Broadway, Off-Off-Broadway, nos teatros universitrios. Em termos do passado, significava o destronamento de Sfocles, Corneille e Racine, a favor de Eurpedes e dos sombrios elizabetanos; o nico autor francs morto na lista de Artaud Sade. Nos ltimos quinze anos, esse gosto tem sido representado nos Happenings e no Teatro do Absurdo; as peas de Genet, Jean Vauthier, Arrabal, Carmelo Bene e Sam Shepard; e produes clebres tais como o Frankenstein, do Teatro Vivo, As Freiras, de Eduardo Manet (dirigida por Roger Blin), A Barba, de Michael McClure, O Olhar do Surdo (Deafman Glance), de Robert Wilson, e ac/dc, de Healthcote Williams. O que quer que Artaud tenha feito para subverter o teatro e para segregar seu prprio trabalho de outras correntes meramente estticas, no interesse de estabelecer sua hegemonia espiritual, podia ainda assim ser assimilado como uma nova tradio teatral, e na maior parte o foi.

    Se o projeto de Artaud de fato no transcende a arte, prope um objetivo que a arte somente pode sustentar temporariamente. Cada utilizao da arte numa sociedade secular com propsitos de

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  • transformao espiritual, na medida em que tornada pblica, inevitavelmente saqueada em seu verdadeiro poder de oposio. Expresso em linguagem direta ou indiretamente religiosa, o projeto claramente vulnervel. Entretanto, projetos atestas de transformao espiritual, tal como a arte poltica de Brecht, demonstraram ser igualmente cooptveis. Somente umas poucas situaes na sociedade secular . moderna parecem suficientemente extremas e no-comunicativas a ponto de terem uma chance de evitar a cooptao. A loucura uma. O sofrimento que vai alm do imaginvel (como o Holocausto) outra. Uma terceira , naturalmente, o silncio. Uma forma de deter o inexorvel processo de ingesto romper a comunicao (inclusive a anticomunicaao). Um esgotamento do impulso de utilizar a arte como um meio de transformao espiritual quase inevitvel como na tentao de parar totalmente de escrever sentida por cada autor moderno quando confrontado com a indiferena ou mediocridade do pblico, por um lado, ou a facilidade do sucesso, de outro. Portanto, no foi apenas por falta de dinheiro ou apoio dentro daquela profisso que, depois da representao de Os Cenci, em 1935, Artaud abandonou o teatro. O projeto de criar numa cultura secular uma instituio que pode manifestar uma sombria e oculta realidade uma contradio em termos. Artaud jamais foi capaz de encontrar o seu Bayreuth apesar de que teria gostado , pois suas idias so do tipo que no pode ser institucionalizado.

    Um ano depois do fracasso de Os Cenci, Artaud embarcou numa viagem para o Mxico para testemunhar essa realidade demonaca ainda existente numa cultura primitiva. Malsucedido na corporificao desta realidade num espetculo imposto aos outros, tornou-se ele mesmo um espectador seu. De 1935 em diante, Artaud perdeu as esperanas em relao a uma forma de arte ideal. Seus escritos, sempre didticos, agora assumem um tom proftico e freqentemente so referidos a sistemas mgicos esotricos, como a cabala e o tar. Aparentemente, Artaud veio a acreditar que podia exercitar diretamente, em sua prpria pessoa, o poder emocional (e alcanar a eficcia espiritual) que ele havia desejado para o teatro. Em meados de 1937, viajou para as ilhas Aran, com um obscuro plano de explorar ou confirmar seus poderes mgicos. O muro entre a arte e a vida ainda estava no cho. Mas, ao invs de tudo ser assimilado arte, o movimento voltou-se para o outro lado; e Artaud dirigiu-se sem mediaao para dentro de sua prpria vida um objeto rpido e perigoso, veculo

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  • de uma furiosa fome de transformao total que jamais encontrava seu alimento apropriado.

    Nietzsche tranqilamente assumiu uma teologia atesta do esprito, uma

    teologia negativa, um misticismo sem Deus. Artaud perambulou no labirinto de um tipo especfico de sensibilidade religiosa