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revista tentações, outubro de 2012

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Page 1: revista tentações, outubro de 2012 filetinha apenas que ver com a doença, mas com situações de miséria. E li li-vros. ... como Metáfora, da norte-americana Susan Sontag, publicado

revista tentações, outubro de 2012

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ípsilon, outubro de 2012

18 | ípsilon | Sexta-feira 2 Novembro 2012

Eu não queria escamotear na-da. Nunca evitei a palavra ‘morte’. Fazia parte do pro-cesso de encarar, e tudo isto é real e a doença é real. E Trás-os-Montes é duro e as

pessoas estão isoladas...” E não há ponto final. Talvez a sensação de que não se pode acrescentar mais nada ao já dito sobre o que é viver perto do fim, chegar ao fim, desa-parecer.

Nada fica igual, já se sabe, ou pe-lo menos já se disse, mas uma coisa é ler, ouvir dizer, outra é ser trans-formado pela morte. Susana Morei-ra Marques, jornalista, 36 anos, na-tural do Porto, a viver em Lisboa, com quatro anos de trabalho em Londres, mudou depois de ver co-mo é chegar ao fim. Aliás, não só depois de ver — depois de a encarar com os sentidos todos. A morte não dá trégua, convoca tudo a que tem direito e distrai do resto, que por sua vez passa a ser acessório. Fun-damental é manter os olhos abertos, ir respirando, e, para os que estão perto, é saber ainda da impotência, um outro contrário de se ser eterno. Ela soube disso como nunca no pla-nalto transmontano, quando foi acompanhar no terreno a equipa que presta cuidados paliativos a do-entes terminais, um projecto do Serviço de Saúde da Fundação Ca-louste Gulbenkian, criado em 2009. O que resultou dessa viagem foi um livro, Agora e na Hora da Nossa Mor-te, que retoma o título de outro li-vro, um volume de poesia de José Agostinho Baptista (Assírio & Alvim, 2000), centrado na finitude e na melancolia a ela associada.

A chuva parou. Num pequeno ca-fé de Lisboa, perto da casa onde vi-ve a ver o rio, a jornalista é a imagem da serenidade. Pode ser também ela a “alumbrada”, a “que não fica des-lumbrada”, a “que não se deixa tur-

var por demasiada luz, que não se deixa fascinar”, aquela “que vê o mundo lucidamente, partes iguais de dor e alegria”, como se lê num dos fragmentos do livro, à pagina 35. Fala-se de morte, mas não há tragédia nas palavras. “Como se fos-se preciso conhecê-la de perto para lhe perder o medo”, diz agora, duas semanas depois do livro editado, ainda a tentar apreender tudo o que essa viagem lhe trouxe.

Passou um ano e meio desde a pri-meira ida a Trás-os-Montes e é como se esse dia fosse muito longe. Pelo meio escreveu um livro, teve uma fi-lha, publicou o livro. Tudo começou quando foi entrevistar o director do Serviço de Saúde da Gulbenkian e ele lhe falou-me desse projecto de cuida-dos paliativos domiciliários em aldeias de Trás-os-Montes. Propôs uma re-portagem, mas ele estava a pensar em algo mais ambicioso. Preparou-se. “Vi vídeos da equipa a trabalhar no local que me mostraram um pouco da re-alidade que ia encontrar e que não tinha apenas que ver com a doença, mas com situações de miséria. E li li-vros. Acerca de cuidados paliativos e coisas mais genéricas sobre a morte, a doença, o luto. Fui criando uma bi-blioteca.” O Diário de Luto, de Roland Barthes, que o filósofo francês come-çou a escrever um dia depois da mor-te da mãe, em Outubro de 1977, um livro fragmentário, sublinhando o va-zio do pós-morte. Também A Doença como Metáfora, da norte-americana Susan Sontag, publicado em 1978, pouco depois de lhe ter sido diagnos-ticado o cancro de que viria a morrer em 2004. Ainda A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, um clássico sobre o fim da vida, o livro que levou no caminho. “Tinha-o na mesa de cabeceira. Era para ele que olhava quando chegava a casa arrasada depois das primeiras visitas.”

A história de um homem, mori-

bundo, ex-juiz, que na hora da mor-te procura um sentido para o que foi a sua vida e a descobre quase sem significado. Continua Susana: “Es-távamos a fazer a rotina da medica, andávamos com ela na carrinha, percorríamos quilómetros e quiló-metros por dia.” E as cenas repe-tiam-se. Chegar a uma casa, pergun-tar como se vai, ver os medicamen-tos, conversar com quem toma conta, perceber se o fim estará para breve e, se estiver, cuidar desse fim e partir para a casa seguinte. Susana Moreira Marques reconstitui esse quotidiano de dor e de conquista de confiança. De entrar nas casas com a ideia da morte que vinha de Ilitch, a morte como uma maneira de ava-liar a vida, e depois a percepção de que talvez isso pouco importe, e de que a morte não tem nada de literá-rio: “As pessoas não estão a fazer reflexões nenhumas, muitas estão só preocupadas com o medicamen-to que vão tomar, com a cama arti-culada, com o facto de não terem dor, com a morte física. Isso dói. É um choque tremendo.” E a consta-tação de que não são literários os instrumentos para fazer a tal refle-xão; que são outras as referências, e que o fim da vida é aceite como outra coisa qualquer: “Essas pesso-as têm da vida uma perspectiva mui-to sofrida e não acham que podem ter alguma coisa a dizer.”

Daí a necessidade do silêncio, de ter tempo para o silêncio, até que saíssem palavras, quase sempre sol-tas: “Eu achava que tinha de passar muito tempo com as pessoas. Não podia chegar e sentar-me, simples-mente.” Era preciso muito mais para perceber como se encara a vida, a saúde, o desaparecimento, coisas que um gravador não capta porque não pode. Havia que estar sem a pressa da cidade, como ela diz, como ela escreve, “chegar às pessoas e

percebê-las”. E o que dizer da difi-culdade de ver chorar, de sentir que se foi o agente do choro, do incómo-do que é esse accionar de sofrimen-to? Perceber que afinal talvez a re-portagem, como se entende a repor-tagem, não seja capaz. “No início achava que ia fazer uma reportagem clássica, acompanhar médicos e pro-fissionais de saúde no terreno, e de-pois aquilo era muito forte. Não se fica indiferente”, diz Susana. Que é como que dizer que veio a vida toda junto e havia que deixar entrar a voz da jornalista: “A Joan Didion [jorna-lista e escritora norte-americana] dizia, a propósito da imparcialidade, que se o jornalista tinha uma relação com a história era muito mais hones-to dizê-lo.”

Também por isso Susana Moreira Marques decidiu não fingir que não se passou nada com ela. Não haveria desonestidade em tentar ficar de fo-ra, mas não era isso que lhe fazia mais sentido: “Interessava-me explorar essas fronteiras da reportagem, mis-turar géneros. Não queria que a es-crita fosse apenas uma descrição do que se passou.” Tinha três cadernos cheios de notas, coisas que foi escre-vendo no local e a que juntou muita escrita, já em casa, terminadas as via-gens. Havia observações sobre o que era estar doente, havia a escolha das pessoas a retratar. Mas foi preciso o tal tempo e sobretudo foi preciso obe-decer a uma exigência sua: nada de ser lamechas. E as palavras de Martin Amis a ecoarem, o escritor é o que espera. Uma brincadeira entre o in-glês writer e waiter. Como Amis, que se diz mais um escritor que espera do que um escritor que reescreve, Susana Moreira Marques já se radio-grafou ao primeiro livro: “Como es-critora, sou das que esperam”.

Ver crítica de livros pág. 28 e segs.

É preciso tempo para escrever a morte como Susana Moreira Marques. Tempo para a pesquisa, tempo para encontrar a forma e a linguagem. Em Agora e na Hora da Nossa Morte a jornalista arriscou sair da reportagem clássica e fazer ouvir a sua voz.

Uma escritora que espera

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Isabel Lucas

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28 | ípsilon | Sexta-feira 2 Novembro 2012

Reportagem

Escrever como se fosse a primeira vezBrilhante livro de estreia que desafia os limites — não apenas da reportagem mas dos géneros literários — para falar do mais íntimo dos momentos, a morte. Isabel Lucas

Agora e na Hora da Nossa MorteSusana Moreira Marques e André CepedaTinta-da-China

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À pergunta “como escrever sobre a morte?”, Susana Moreira Marques (Porto, 1976) respondeu com um livro que rompe convenções.

Não é uma reportagem, ou talvez seja, mas não nos moldes tradicionais onde a ortodoxia do jornalismo manda que o repórter se apague da história tanto quanto lhe seja possível. Isto é, o mais possível. A autora decidiu mostrar-se, incluir na narrativa as transformações que a inevitabilidade da morte do outro — estamos a falar de sentenciados à morte por doença — provocaram também nela. Foi um processo longo que lhe mudou o olhar e, no limite, as mãos. “Há coisas sobre as quais não se pode escrever como sempre se escreveu. Algo muda. Primeiro os olhos, depois o coração — ou os nervos ou aquilo a que os antigos chamavam alma — e, finalmente, as mãos.” É a confissão à entrada de Agora e na Hora da Nossa Morte, título pedido de empréstimo a um livro de poemas de José Agostinho Baptista para uma narrativa que não cabe em nenhum género definido da escrita.

De Junho a Outubro de 2011, em três viagens distintas (uma que corresponde à Primavera, com as cerejas; outra ao Verão, com as romarias de Agosto; e outra ao Outono, com o fim das colheitas), a jornalista e o fotógrafo André Cepeda foram até ao planalto transmontano acompanhar o quotidiano dos técnicos do projecto de cuidados paliativos ao domicílio da Fundação Calouste Gulbenkian. Andou por muitas aldeias, visitou muitas casas, falou com muita gente e escreveu sobre a morte como nunca se escreveu, tentando apanhar-lhe o tom, adequar-lhe a linguagem, dando-se tempo, libertando-se de

lugares comuns, nunca cedendo à lamechice ou provocando a emoção fácil. Num exercício de uma enorme contenção e cuidada atenção ao outro, pouco adjectivo, evitando a quase sempre aborrecida descrição das técnicas de saúde prestadas (porto seguro para fintar a emoção), conta como é estar muito perto da morte sem que o leitor alguma vez sinta o incómodo de entrar num território que não é o dele e com a eficácia da grande literatura: uma enorme capacidade de acordar a emoção em quem lê.

O livro arranca com notas soltas, escrita fragmentada pontuada pelo silêncio, com o não-dito implícito, a pedir a intervenção do leitor, um aproximar ao tema a partir de conversas, da partilha cúmplice, dando conta do modo como ao longo do processo foram caindo convenções, de como a realidade não se compadece com a literatura — é por vezes muito mais feia, nada romântica nas transformações físicas e nas outras que a doença causa. Ela e eles sós ante a estranheza imensa, socorrendo-de de quem já experimentou representar a morte através das palavras. Tolstói, com A Morte de Ivan Ilitch, o homem que, agonizando, olha a vida e se arrepende do que não viveu ou do modo como viveu. E Torga, para a dureza de Trás-os-Montes, mas também poemas de Larkin, de Cecília Meireles, como se a poesia fosse mais eficaz com o transcendente, com a estranheza. Na segunda parte do livro, o ângulo aperta-se. Escolhem-se protagonistas, narrando-lhes a história e dando-lhes a voz da primeira pessoa. E não há intrusão quando Susana fala com Paula, mãe de Ana e de Luís, mulher de 40 anos que anda descalça na procissão à espera de um milagre, ou talvez não. Nem quando conversa com Elisa e Sara, as filhas de Rui, o homem que quer saber tudo da doença e prepara a própria morte. E nem por sombras há invasão do espaço onde moram João e Maria, o casal de octogenários que

Livro

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viveram em Angola mas regressaram quando todos abandonaram as colónias e agora se despedem um do outro a olhar a paisagem em frente. São os retratos. Paula. Elisa e Sara por causa de Rui. João e Maria por causa de João. E nós por eles.

São histórias exemplares entre as muitas que Susana encontrou e quis representar, porque uma das grandes questões é a de como representar a realidade que ninguém quer ver representada. Medo antigo. Ver a morte do outro é projectar a própria, e nessa projecção há a ideia de contágio. A morte como algo que se cola e de que se foge. Susana Moreira Marques não fugiu dela aqui, e comunicou com uma mediação poética que resulta de uma rara sensibilidade para tratar o eterno pasmo e o eterno pudor ante o momento mais íntimo, o da morte. “Onde está Ivan Ilitch? Onde está a agonia, como a escreveu Lev Tolstói? Onde estão os homens olhando para trás, para o momento em que se fizeram homens? Onde está o arrependimento e o perdão? E a satisfação, se a houve, dos anos felizes? Os doentes sofrem e parecem não ter forças para pensar, colocar-se questões morais — e já nem sequer parecem preocupados (é isto específico do nosso tempo?) com o paraíso, o inferno, o juízo final. Querem apenas um pouco mais de vida, querem um pouco mais de tempo para acreditar que o corpo vence; todos querem, com uma força desproporcionada, talvez delirante, continuar de olhos abertos.” Por fim, imagens. Os rostos, o lugar, a águia delimitando fronteiras mais do que geográficas e a narrativa a fugir à delimitação literária. É um livro que interpela, que magoa porque a realidade é mesmo assim, mas que nunca é coitado, não clama por piedade. Uma livro sem “rogai por nós”. Porque a morte não é boa nem é má. É. E Susana Moreira Marques escreve-a num livro de estreia como só os grandes escritores são capazes.

Ficção

Dublin antes de UlissesOs 15 contos de Dublinenses são o retrato fiel de uma cidade medíocre e conformista, cambaleante de álcool e de uma euforia sem razão ou propósito. Helena Vasconcelos

DublinensesJames Joyce(Trad. Margarida Periquito)Relógio d’Água

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Os sentimentos que James Joyce experimentou em relação a Dublin, a sua cidade, e respectivos

habitantes foram sempre complexos e contraditórios, uma mistura caótica de amor e ódio, de admiração e repulsa, de ternura melancólica e de sarcástico desdém, aliás como quase tudo o que se passava na sua vida desordenada e na sua mente genial. A ideia de escrever sobre as “gentes de Dublin” começou com uma proposta que lhe foi feita por George Russell, o artista, místico nacionalista e membro da Sociedade Teosófica que dirigia o jornal The Irish Homestead. Russell, figura muito conhecida e respeitada, tinha ficado entusiasmado com a leitura de Stephen Hero — onde Joyce revela a influência de Lermontov e do poema Um Herói do Nosso tempo — e pediu a Joyce para escrever “qualquer coisa simples, rural, vibrante, com pathos” mas que “não chocasse os leitores”. Pagar-lhe-ia uma libra e Joyce, sempre aflito de dinheiro, lançou-se imediatamente ao trabalho, embora tivesse ignorado por completo as indicações do editor. Encontrar um tema não foi um obstáculo, bastando-lhe recordar um tio por parte da mãe, um velho paralítico e demente cuja figura lhe forneceu o mote para construir a história As Irmãs. O interesse em mergulhar na atmosfera de Dublin, numa sociedade que Joyce considerava totalmente decadente, levou-o a escrever de seguida Eveline e Depois da Corrida, dois contos que funcionam como “resposta” a Yeats, com quem Joyce mantinha uma rivalidade literária.

Em 1904, ano em que conheceu Nora Barnacle, com quem mais tarde se casou,

Susana Moreira Marques não foge da morte neste livro em que comunica a experiência do fim com uma sensibilidade rara

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TM& © 2012 Marvel & Subs.

NOVOS HERÓIS. NOVAS HISTÓRIAS.HERÓIS MARVEL - SÉRIE II

INÉDITO4º LIVRO,8 Novembro,PARÁBOLAPOR +€8,90

Colecção de 10 livros. PVP unitário 8,90€. Preço total da colecção 89€.Periodicidade semanal às Quintas-feiras, entre 18 de Outubro e 20 de Dezembro.Edição limitada ao stock existente. A compra do produto obriga à aquisição do jornal.

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visão, 15 de outubro de 2012time out, 26 de dezembeo de 2012

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atual, 25 de dezembeo de 2012ler, janeiro de 2012

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atual, 29 de dezembeo de 2012