universidade federal do rio de janeiro fernando … · tísica e da melancolia, usaremos doença...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FERNANDO PEREIRA IMPAGLIAZZO MANUEL BANDEIRA: TÍSICO PORQUE POETA RIO DE JANEIRO 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FERNANDO PEREIRA IMPAGLIAZZO

MANUEL BANDEIRA: TÍSICO PORQUE POETA

RIO DE JANEIRO

2017

Fernando Pereira Impagliazzo

MANUEL BANDEIRA: TÍSICO PORQUE POETA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)

Orientador: Professor Eucanaã de Nazareno Ferraz

RIO DE JANEIRO

2017

RESUMO

IMPAGLIAZZO, Fernando Pereira. Manuel Bandeira: tísico porque poeta. Rio de

Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2017. 119 fl. Dissertação de Mestrado em

Literatura Brasileira.

O objetivo do presente estudo é investigar o itinerário da persona tísica na poesia

de Manuel Bandeira, a partir de leituras dos poemas, correspondência e da

autobiografia. Segundo Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, na introdução de

Estrela da vida inteira, o poeta utiliza “elementos de sua psicologia individual”, de

forma a traçar “o contorno de um personagem”. Contemplada na tensão entre os estudos

do poeta modernista e do poeta povoado por índices românticos, propõe-se a abordagem

de um poeta atualizador do romantismo. O poeta que “faz versos como quem chora” é,

ao ponto da insurgência biográfica, um bricoleur, um potente desentranhador de quinta-

essências líricas. Na poesia, abordaremos o intervalo entre A cinza das horas (1917) e

Libertinagem (1930). A suspeita é que, ao contrário do amadurecimento que a crítica

observa em 1930, já em 1917 há indícios de um poeta que se utiliza da máscara da tísica

como princípio de composição poética.

Palavras-chave: Poesia brasileira; Manuel Bandeira; persona tísica; melancolia; gaia

ciência.

ABSTRACT

IMPAGLIAZZO, Fernando Pereira. Manuel Bandeira: tísico porque poeta. Rio de

Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2017. 119 fl. Dissertação de Mestrado em

Literatura Brasileira.

The aim of this study is to investigate the phthisis persona’s itinerary in Manuel

Bandeira's poetry through his correspondence and autobiography. According to Antonio

Cândido and Gilda de Melo e Souza, in the introduction of “Estrela da vida inteira”, the

poet uses, "elements of his individual psychology", in order to trace "the contour of a

character". Contemplated in the tension between the studies of the modernist poet and

the poet populated by romantic indexes, it proposes an approach of a update of the

Romantism. The poet who "makes verses as though he was crying" is, looking at the

biographical insurgency, a bricoleur, a potent “desentranhador de quinta-essências

líricas”. In poetry, our study is set from A cinza das horas (1917) to Libertinagem

(1930). Our hipotesis is that dispite the mature fase, seen by the critics in 1930, back in

1917, there are indications of a poet who uses his phthisis mask as a poetic composition

principle.

Keywords: Poetry Brazilian; Manuel Bandeira; phthisis persona; melancholy; gay

Science.

Para Sandra e Marianna.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, “a um mocinho dentuço, no início do século”, por toda a

força no espelhamento a ele, à sua poesia e, principalmente, à recriação de uma comédia, ou

antes, um “saber alegre”, na tragédia da vida.

Aos professores da Faculdade de Letras que sempre me fizeram ver através de ensaio

ou presencialmente que a literatura, antes de ser uma via de escape, uma Pasárgada natural,

também era uma maneira de existir, um estar-no-mundo. Dentre eles, não posso deixar de citar,

pela literatura e pela vida: Ana Alencar, Marcelo Diniz, Flávia Trocoli, Mônica Fagundes,

Mônica Figueiredo, Sofia de Sousa Silva, Teresa Cerdeira, Viviane Vasconcelos, Roberto

Corrêa dos Santos e Pedro Paulo Catharina. Sem vocês, nada teria sido como foi.

Ao professor Eduardo Coelho, pelo norteamento inicial desse itinerário, por fomentar

em mim sempre aquela melancólica curiosidade, que me fez um dia me perguntar se seria

possível apontar em Bandeira, mais que um poeta tísico.

Ao professor Eucanaã Ferraz, pela colaboração e continuidade desse caminho, sempre

permeado por inseguranças e medos. Devo a ele, não só a orientação nesta pesquisa, como a

admiração na sua pesquisa acerca da música popular brasileira. O menino que queria estudar

Cartola durante graduação, apesar do desvio natural à Bandeira, hoje se alegra de tê-lo como

orientador do mestrado.

A Davi Arrigucci Jr, Giovanni Pontiero e João Ribeiro, a quem devo seus estudos sobre

a poesia de Manuel Bandeira.

A todos que de alguma maneira me influenciaram, estiveram ao meu lado nos

momentos de frustrações, leituras em voz alta e ausências: Neide de Souza Pereira, Manuel

Joaquim Rebelo Pereira, Sandra Pereira Impagliazzo, Marianna Pereira Impagliazzo,

Leonardo Impagliazzo, Tiago Santana Alves de França, Diana Hoeltegebaum Zava, Zadig

Gama, Oton Duarte e Bruna Novaes.

Por fim, agradeço a CAPES pela bolsa de pesquisa para realização deste estudo.

“O poema é indispensável, porque você deu nele o

tom da amargura com a virulência perfeita.

Indispensável, achamos. Foi ontem mesmo que

passamos a noite relendo você e vendo a escolha”

(Mário de Andrade em correspondência a Manuel

Bandeira em 11 de setembro de 1934.1)

“Tenho todos os motivos menos um de ser triste.”

(Manuel Bandeira. “Não sei dançar”. Libertinagem,

1930)

1 Comentário sobre a seleção de “Pneumotórax” para “Poesias escolhidas”, 1948.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

2. PNEUMOTÓRAX: O POETA EM CENA......................................................................... 15

2.1. O desentranhar da caverna e o hibridismo em Pneumotórax ........................................... 17

2.2. As duas flores da poesia de tradição romântica em Manuel Bandeira ............................. 20

2.3. Ariesfinge: a teatralidade do poeta tísico ......................................................................... 24

3. TÍSICA E MELANCOLIA ................................................................................................. 31

3.1 A autopsicografia de Manuel Bandeira ............................................................................. 34

3.2. O poeta tísico disperso na terceira pessoa ........................................................................ 40

3.2.1. O poeta disperso em “A aranha” .............................................................................. 45

3.2.2. O poeta disperso em “D. Juan” ................................................................................. 48

3.2.3. O poeta disperso em “Gesso” ................................................................................... 50

4. DOIS POEMAS DIANTE DO ESPELHO ..................................................................... 54

4.1. “Morrer incontentado” ................................................................................................. 54

4.2 O espelho-caleidoscópio ................................................................................................ 58

5. A PAISAGEM PINTADA COM AS CORES DO POETA TÍSICO.................................. 61

5.1. A herança tísica ................................................................................................................ 61

5.2. O descanso na morte ........................................................................................................ 66

5.3. Tísico, sob o céu, no ritmo. .............................................................................................. 71

5.4. Um sorriso irrompe na paisagem ..................................................................................... 75

6. FELICIDADE DE TÍSICO ................................................................................................. 78

6.1 Nietzschianamente tísico ................................................................................................... 79

6.2 A bela e triste música. ....................................................................................................... 83

6.4. Bandeira, amorosamente tísico. ....................................................................................... 90

6.5. À sombra da própria angústia e criação .......................................................................... 94

6.6. A primavera tísica ............................................................................................................ 97

6.7. Desentranhar-se em poesia ............................................................................................. 100

6.8. O poeta tísico bebe alegria. ............................................................................................ 103

7. CONCLUSÃO .................................................................................................................. 109

8. ANEXO ............................................................................................................................. 113

9. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 117

12

1. INTRODUÇÃO

Manuel Bandeira possui uma obra vasta passando seja pelas suas origens

simbolistas e parnasianas, seja em breve aproximação com a poesia concreta ou se

revelando uma atualização do poeta tísico-romântico, trazendo para si uma sublime

alegria construída. É sobre esta última face do poeta que este estudo se debruçará.

Dono de uma dicção simples, sem rebuscamento, falando de seus sentimentos,

de sua vida, o poeta pernambucano revela de si mesmo algumas máscaras, uma delas é a

do “poeta menor”, do poeta que não consegue “fazer versos de guerra”. Essa

autossabotagem poética revela, além de um epíteto injusto, um complexo jogo de

máscaras. No trato da sua própria tragédia, o poeta encena a angústia do existir humano.

Para observar tais questões, usaremos, sempre que necessário, o embasamento

teórico de dois filósofos que já prenunciavam o existencialismo: Friedrich Nietzsche e

Soren Kierkegaard. Além disso, para um instrumento mais específico de análise da

tísica e da melancolia, usaremos Doença como metáfora de Susan Sontag, Meus tempos

de ansiedade de Scott Stossel e Saturno dos trópicos de Moacyr Scliar

Propomos aqui observar o itinerário de uma poesia publicada nos seus primeiros

treze anos: A cinza das horas (1917), Carnaval (1919), O ritmo dissoluto (1924) e

Libertinagem (1930).2 Apesar de tão curto tempo, observamos tão longa vida e

complexidade nos temas tratados nessas obras. Ao contrário do que Hipócrates

observava em um de seus aforismos (vita brevis, ars longa), a arte de Bandeira é longa,

e tão longa foi sua vida, pois morreu aos oitenta e dois anos (1968).

Em tão longa arte, o poeta tísico parece observar, ao espelho, a deterioração da

sua matéria humana, a inexorabilidade do fim. Apesar disso, podemos, através da

pesquisa em correspondências com Mário de Andrade, na sua autobiografia, nos relatos

de um princípio criativo, observar mais que um poeta tísico ou o mero biografismo.

Em um primeiro momento, utilizaremos o suporte da psicologia de Sigmund

Freud (em “Luto e melancolia”). Entretanto, não cabe aqui verificar a existência de um

poeta tísico, antes é necessário observarmos, no sujeito lírico criado por Bandeira, a

2 A escolha de, preferencialmente, poemas da fase pré-Libertinagem (1930) é proposital para

mostrarmos a ideia de que há um poeta tísico e alegre nos poemas nessa fase. Dos 16 poemas analisados, apenas dois são de Libertinagem (“Bonheur lyrique” e “Pneumotórax”)

13

construção paulatina de uma alegria ou, antes, de um alívio para suas angústias de

finitude, acompanhadas por um estado de alerta.

No primeiro capítulo, intitulado “Pneumotórax: o poeta em cena” faremos uma

apreciação do que foi o momento mais coloquial no trato da tísica melancólica. A

construtividade, a dramaticidade são componentes importantes para a construção de um

poeta tísico, a sua própria máscara relatada na obra. Aqui, o poeta que não fazia “versos

de guerra” porque não sabia revela-se ainda mais avesso à História, à biografia e

propenso à experimentação de uma realidade outra, só sua, tísica. Analisaremos, além

de “Pneumotórax” (Libertinagem), a gaia ciência dos poetas provençais à luz de

Bandeira, os pontos de contato entre ele e Álvares de Azevedo e sua correspondência

com Mário de Andrade, a fim de fazer uma revisão dos traços da construção desse

“humor tísico” nos livros anteriores à 1930.

No segundo capítulo, intitulado “Tísica e melancolia”, observaremos a

“autopsicografia” de Manuel Bandeira, os pontos de contato entre ele e a poesia de

Fernando Pessoa; o contato entre a imaginação do leitor e a construção dos poetas. Esse

capítulo será subdividido ainda em análises dos poemas “A aranha” (A cinza das horas),

“D. Juan” (A cinza das horas) e “Gesso” (O ritmo dissoluto), em que o poeta se dispersa

na terceira pessoa, dando a ver a si mesmo em tais figuras.

No terceiro capítulo, analisaremos “Dois poemas diante do espelho” em “Volta”

(A cinza das horas), a ideia de um “morrer incontentado”, retornando de “D. Juan” (A

cinza das horas), e “O espelho” (O ritmo dissoluto). Neste último, o poeta arde como o

ambiente. Observa-se a ideia de Starobinski sobre a melancolia diante do espelho e do

corpo visível e vidente de Merleau-Ponty.

No quarto capítulo, intitulado “A paisagem pintada com as cores do poeta

tísico”, observaremos como a interioridade tísica dá forma ou se distingue da paisagem,

tendo em vista, neste último ponto, o retorno ao natural através do cultural, apontado

por Friedrich Schiller. Nesta seção analisaremos “Cartas de meu avô” (A cinza das

horas), “Felicidade” (O ritmo dissoluto), “Sob o céu todo estrelado” (O ritmo dissoluto)

e “Um sorriso” (A cinza das horas).

No quinto e último capítulo, intitulado “Felicidade de tísico”, observaremos

como a filosofia da gaia ciência de Friedrich Nietzsche se ajusta aos versos de

Bandeira; como o ritmo é, a um só tempo, esperança de eterno retorno ao natural e uma

incompletude do indivíduo dissolvido na sua própria angústia; como a ideia de tísica é

14

atrelada à beleza na pintura de Boticelli, o que ajuda a compreender a ideia de tísica de

Manuel Bandeira; como a imagem de Cristo e do Evangelho de São João se ajustam à

ideia da criação poética bandeiriana e, por fim, como o poeta cria para si a sua bonheur

lyrique. Analisaremos “Nietzschiana” (Estrela da manhã)3, “Madrigal melancólico” (O

ritmo dissoluto), “Epílogo” (Carnaval), “Na rua do sabão” (O ritmo dissoluto), “À

sombra das araucárias” (A cinza das horas), “A dama branca” (Carnaval), “A canção de

Maria” (A cinza das horas) e “Bonheur Lyrique” (Libertinagem)

Por fim, cabe observar que o presente estudo não tem a pretensão de ser

exaustivo acerca da melancolia e da tísica bandeiriana. Ao contrário, ele pretende

apontar a presença de certa alegria, criação do “gosto cabotino da tristeza”4. Assim,

pode-se perceber, para além do corpus aqui delimitado, em tão vasta obra (1917-1966),

uma atitude muito coerente do homem-poeta Manuel Bandeira com a sua própria

máscara tísica.

3 Aqui o desvio no recorte (1917-1930) se justifica por necessidade de observarmos mais de perto a

aproximação que Ettore Finazzi-Agrò faz entre o filósofo de Rocken e o poeta pernambucano em “O poeta inoperante”. 4 Apontada por Arrigucci em ensaio intitulado “O áspero e humilde cotidiano”.

15

2. PNEUMOTÓRAX: O POETA EM CENA

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

– Diga trinta e três.

– Trinta e três... trinta e três... trinta e três...

– Respire.

.....................................................................................

O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

[Em Libertinagem, 1930]

Em “Pneumotórax”, a voz poética encena o evento mais importante da biografia

de Manuel Bandeira: o momento em que o poeta recebe o diagnóstico de tuberculose.

Esse evento também é relevante na poética bandeiriana. A tuberculose aparece com

tamanha força nos quatro primeiros livros do poeta, seja de forma explícita, seja em

comentários sobre seu método composição a Mário de Andrade (em correspondências)

ou em recorrência temática velada na obra5.

5 Em sua tese de doutorado, Eduardo dos Santos Coelho, indica que “a importância da doença, na

poética bandeiriana, é maior como princípio criativo do que como recorrência temática.” p. 139

16

O dado biográfico é inquestionável, em 19046, o poeta cai doente. Vinte e seis

anos depois (1930), em Libertinagem, o valor histórico ainda se insurge. Aqui, de

maneira mais imediata desde então.

É o que ocorre na primeira estrofe do poema, na qual há um breve momento em

que a voz do tuberculoso anuncia: “Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos”.

Originalmente, neste verso, como publicado em fevereiro de 1926, ocorria o elemento

“serrotes asfixiantes” para “dispnéia”. Se o primeira versão dá sublinha com maior

intensidade a agonia do indivíduo, a segunda torna o verso mais asséptico, como uma

anamnese médica7.

Esse prosaísmo – um elenco de sintomas – se esvai, adquirindo, no segundo

verso, um tom sublime, ansioso, senão nostálgico: “A vida toda que poderia ter sido e

que não foi.” O tom se intensifica ainda mais no último verso da estrofe, onde a palavra

“tosse” adquire uma função onomatopaica pela sua repetição e pela insistência dos

fonemas /t/ e /s/, que mimetizam o sintoma.

A segunda estrofe é topicalizada pelo primeiro verso (“Mandou chamar o

médico:”): a análise clínica do médico. “Diga trinta e três”, diz o médico. O verso

seguinte soma o prosaísmo à análise médica com o ritmo presente na repetição, tanto

pragmática quanto encantatória, da famosa frase “trinta e três”.

A linha pontilhada que vem a seguir explora o espaço gráfico da folha simulando

com força expressiva e humour a pausa no diálogo e a respiração do paciente.

Na terceira estrofe, particularmente importante, há o momento derradeiro do

diagnóstico, elemento biográfico. Pontua-se fisiologicamente o que ocorre com o

paciente-poeta, “o senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito

infiltrado”.

Por fim, diante da inevitabilidade do diagnóstico, o paciente questiona a

possibilidade de algum procedimento de recuperação, em busca de um bom prognóstico

(“Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?”). Infelizmente, ao poeta, pela

voz do médico, só resta uma única e absurda solução: “tocar um tango argentino”.

6 “No fim do ano letivo adoeci e tive de abandonar os estudos, sem saber que seria pra sempre.”.

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. p. 37. 7 COELHO, 2009 op.cit. 135.

17

2.1. O desentranhar da caverna e o hibridismo em Pneumotórax

Em correspondência de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, há um termo

correlato a “escavação”. “Caverna”, utilizado em alusão a uma falha, ao ver do poeta, na

estrutura do poema.

O que me enquizila no poema [Pneumotórax] é que sob o ponto de vista da forma,

da expressão, não há a mesma qualidade do último verso no resto. Acho muita graça

em gente que pensa que verso livre é linha de menor resistência. Trabalhei muito

nesse Pneumotórax e a caverna não fechou.8

Ao relatar a falha do poema, o poeta deixa escapar uma metáfora que indica

fisiologicamente um problema estético. Vê-se, portanto, que a sua poesia parece

inconscientemente ligada ao incidente biográfico.

Apesar da consideração de que o último verso sobressalta em qualidade no

conjunto do poema, a poética bandeiriana está fundada na concepção de que “a poesia

está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas

disparatadas”9. Diagnosticar um buraco diante do último verso é de algum modo

incoerente com o seu fazer poético, atido tanto ao lirismo quanto ao prosaísmo.

A “escavação”, na correspondência, se torna “caverna”. A metáfora tísica dá a

ver o quanto, em retrospectiva a 1930, a insurgência biográfica e o fazer poético

estavam entrelaçados. Apesar da crítica já considerar que Libertinagem desponte como

uma obra de “estilo maduro”10

, é preciso observar o itinerário desse amadurecimento.

O próprio poeta já expressou, lamentando ironicamente, a poesia tida como

menor, por ser insurgência biográfica. Em “Testamento”, de 1943, lê-se: “Sou poeta

menor, perdoai”. Onze anos depois, na sua autobiografia, parece dialogar de forma

muito menos incisiva com o incidente biográfico, desentranhando dele a quintessência

de sua poesia11

:

Até os quinze não versejei senão para me divertir, para caçoar. Então vieram as

paixões da puberdade e a poesia me servia de desabafo. Ainda circunstância. Depois

chegou a doença. Fiz algumas tentativas de escrever poesia sem apoio nas

8 ANDRADE, Mario. BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 590 e 591.

9 BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. p. 27.

10 Libertinagem, segundo Arrigucci Jr. daria a conhecer um poeta “de corpo inteiro, um grande poeta na

sua força e na liberdade de sua arte, após longos anos de aprendizagem, extensa prática e duros

padecimentos”.ARRIGUCCI JR, 1998. 11

Cito aqui dois termos que Bandeira utiliza para denotar seu fazer poético, o verbo desentranhar. E o termo quintessência, utilizado em “Flauta de Papel”.

18

circunstâncias. Todas malogradas. Sou poeta de circunstâncias e desabafos, pensei

comigo.”12

A caverna em Libertinagem é sintoma de uma posição do poeta diante de sua

própria poesia. Assumindo uma postura de circunstâncias e desabafos, o poeta toma

para si o papel de poeta menor, desentranhador da matéria biográfica.

Entretanto, ao observamos as mudanças que o poeta faz no penúltimo verso,

podemos descobrir um aspecto importante. Publicado em 1926, na revista Terra Roxa e

outras terras, a pergunta do paciente é: “Então doutor não é possível fazer o

pneumotórax?”. As distinções entre o verso “fazer” e o verbo “tentar” dão dimensão

dramática ao poema. Se antes, o verbo “fazer” expressava uma ação incidindo

diretamente na patologia; transformado em verbo “tentar”, expressa a dúvida sobre a

tentativa de haver a possibilidade de utilizar o pneumotórax como solução clínica.

Tal modificação na estrutura do poema, assim como a mudança de “serrotes

asfixiantes” para dispneia, faz ver um hibridismo entre lirismo e prosaísmo, desde a sua

primeira publicação.

Se alterar “serrotes asfixiantes” para “dispneia” é símbolo da necessidade de

tornar o poema o mais próximo do jargão médico o possível, portanto da própria

anamnese médica; ao se trocar “fazer” para “tentar”, o poema toma a densidade

dramática do próprio paciente. Tudo em adequação com a enunciação da assepsia

clínica do médico e da preocupação do paciente.

A caverna, o problema “sob o ponto de vista da forma”13

, ocorre exatamente

porque a voz mais autêntica do poeta transpassa a condição do paciente e toma a

enunciação do médico. “- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

A solução médica, em resposta ao paciente, misturada ao lirismo da voz poética

deixa ver o quanto o eu do poeta se sobrepuja à dramatização. A resposta é até certo

ponto objetiva (“Não”), destoando em objetividade no final do verso (“tocar um tango

argentino”). Além do mais, a assepsia do termo “dispneia” e a densidade dramática do

verbo “tentar” fazem perceber no poema, que o enunciado do médico, aqui, é também

enunciado do poeta tísico. De todo o modo, o poeta tentou dar a “Pneumotórax”, a

qualidade do gênero dramático, do diálogo.

12

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. p. 151. 13

Correspondência de 1934. ANDRADE, Mario. BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 589.

19

Entretanto, se Bandeira tenta, a todo o momento, tornar asséptico o discurso

médico e encher de densidade lírica o discurso do paciente, no segundo verso, assim

como na “caverna”, toma relevo, uma confusão de vozes.

Assim como o primeiro verso,“A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”

parece ser um verso dito por uma terceira pessoa. Não sendo relativamente narrativo e

nem, no entanto, excessivamente lírico, esse verso tem em si a enunciação de uma

terceira pessoa, ao contrário do verso anterior. Parecendo um elenco de sintomas, tal

como um paciente os revela, num consultório.

A confusão também ocorre entre o eu lírico e o poeta biográfico. Não é difícil

assumir que, através da forma explícita com que a tuberculose é tratada nos versos, o eu

empírico de Manuel Bandeira e o eu poético estejam intrinsecamente relacionados.

A subjetividade do segundo e do último verso de “Pneumotórax”, apesar da

assepsia na linguagem e no diálogo, pode ser vista também em “Sextilhas românticas” e

“Testamento”. Embora este último tenha sido publicado em Belo belo (1948) e o

segundo em Lira dos cinquent’anos (1940), os dois poemas guardam certa similaridade.

Enquanto “Testamento” é um poema que se assume como produto das

contingências (“Foi-se-me um dia a saúde”), “Sextilhas românticas” revela um poeta

que concede, que expõe, sem subterfúgio, “a alma ruim que Deus” lhe deu.

Sou romântico? Concedo.

Exibo, sem evasiva,

A alma ruim que Deus me deu.

Decorei "Amor e medo",

"No lar", "Meus oito anos"... Viva

José Casimiro Abreu!14

O eu poético toma para si o “romântico” e o “poeta menor”. Antes, cabe

considerarmos a tensão entre a herança romântica e o poeta moderno, que cria o juízo

em Bandeira de que sua poesia seria “menor”.

14

BANDEIRA, 1993. p. 193. Trecho de “Sextilhas Românticas”, escrito em 1943.

20

2.2. As duas flores da poesia de tradição romântica em Manuel Bandeira

Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira observa uma irradiação

dos poetas românticos nos poetas modernistas:

De Claudio Manuel a Gonçalves Dias, e sobretudo, a Álvares de Azevedo e

Casimiro, a poesia vai-se despojando de muito do que é comemoração, doutrina,

debate, diálogo, para concentrar-se em torno da pesquisa lírica. Lírica no sentido

mais restrito de manifestação puramente pessoal, de estado d’alma, sob a égide do

sentimento, mais que da inteligência ou do engenho. Esta longa aventura da criação

que virá terminar no balbucio quase impalpável de alguns modernos – os Poemas da

negra de Mário de Andrade, A estrela da manhã, de Manuel Bandeira – corresponde

ao próprio trabalho interno de evolução poética, especializando-se cada vez mais e

largando um rico lastro novelístico, retórico e didático, que foi enriquecer outros

gêneros, sobretudo o gênero novo e triunfante do romance, que na literatura

brasileira é sobretudo do Romantismo e desta divisão do trabalho literário.15

Tal influência “de um estado d’alma”, “de uma manifestação puramente

pessoal”, observada entre os poetas românticos e modernistas ocorre, sobretudo, nas

poesias de Manuel Bandeira e Álvares de Azevedo. Segundo Moacyr Scliar em Saturno

nos trópicos, os versos deste poeta, na época em que a tuberculose dizimava os

românticos – “falam de crepúsculos, de solidão, de saudade, da morte”.16

Em ensaio intitulado Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban, Antonio Candido

observa uma duplicidade:

No prefácio à 2ª parte d’A lira dos vinte anos (singular na literatura brasileira de

então pela força do sarcasmo) a sua poesia gira nos gonzos e desvenda a dialética

segundo a qual os contrastes favorecem a verdadeira realização do artista:

‘Quase depois de Ariel esbarramos em Caliban. A razão é simples. É que a unidade

deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um

cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de

duas faces (...) Nos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que

morde.’”

A dualidade entre “o lábio que suspira o amor” e a “sátira que morde” será um

componente atualizado na poesia de Manuel Bandeira.17

. Se, num primeiro momento, o

poeta tísico é atrelado ao “gosto cabotino da tristeza” e em um segundo é entendido

15

CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 343 16

GINZBURG apud SCLIAR, op cit., p. 213. 17

Observe-se que esta binomia já estava presente desde o trovadorismo sob a forma das cantigas de

amor/amigo e escárnio e maldizer. (Cf. BARROS, 2007.) Essa binomia se tornará importante mais a frente

no estudo do “saber alegre” em Manuel Bandeira.

21

como o poeta de uma ironia tísica, portanto, cabe aqui entendê-lo à luz da binomia que

Álvares de Azevedo propõe no prefácio de Lira dos vinte anos.

Vendo-se herdeiro tanto de uma poesia romântica, feita de “manifestações

puramente pessoais”, quanto da lição de Mallarmé (“a poesia está nas palavras, se faz

com palavras e não com ideias e sentimentos”18

), Bandeira escolhe se autoproclamar

“poeta menor”.

Tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado

o mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de

cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em

emoções estéticas: o metal precioso, eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a

duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores

alegrias.19

A poesia então se torna um artifício e não mera exposição de ideias e

sentimentos, apesar de o poeta afirmar, a partir de Libertinagem, que “é poeta quando

por Deus é servido”20

. Cabe a nós pensarmos o quanto deste poeta de artifício e jogo

linguístico já despontava em 1917. Observemos uma especificidade do artifício do

poeta tísico em um breve exemplo. Em “À sombra das araucárias”, de A cinza das horas

(1917) o poeta confere à arte o poder de transmutação do mal em bem:

A arte é uma fada que transmuta

E transfigura o mau destino

Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.

Cada sentido é um dom divino.21

A arte, portanto, transmuta o “mau destino” por meio da experiência dos

sentidos (paladar, olhar, tato, olfato, audição). Schiller, poeta romântico, observa essa

mesma característica em “Poesia ingênua e sentimental”:

O que teriam por si mesmos de tão aprazível para nós uma flor singela, uma fonte,

uma rocha musgosa, o gorjeio dos pássaros, o zumbido das abelhas etc.? O que,

pois, poderia dar-lhes um direito ao nosso amor? O que neles amamos não são esses

objetos, é uma Idéia exposta por seu intermédio. Fomos natureza como eles, e nossa

cultura deve nos reconduzir à natureza pelo caminho da razão e da liberdade. São,

portanto, expressão da nossa infância perdida, que para sempre permanece como

aquilo que nos é mais precioso: por isso, enche-nos de uma certa melancolia. Ao

18

BANDEIRA, Manuel. ibidem. p. 41. 19

BANDEIRA, Manuel. ibidem. p. 40 20

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. 21

À sombra das araucárias, 1917. Mais adiante, nos ateremos exclusivamente a este poema.

22

mesmo tempo, são expressões de nossa suprema completude no Ideal,

transportando-nos, por isso, a uma sublime comoção.22

Se, para Schiller, a Arte é uma forma de retornar à natureza perdida, em

Bandeira essa condição se potencializa com a emergência da doença23

. A natureza em

Bandeira já é, desde o livro de estreia em 1917, um caminho para atingir o eterno.

Conforme observa Giovanni Pontiero em Manuel Bandeira (visão geral de sua

obra), em A cinza das horas “a natureza é a maior cúmplice da Arte, suprindo este

refúgio para os seres solitários do mundo”.

Portanto, é possível um diálogo entre o poeta de A cinza das horas e o poeta de

Libertinagem, observando-se o desentranhamento24

enquanto potência de linguagem,

libertadora e transmutadora da efêmera realidade.

O poeta seria “herdeiro ainda da atitude libertária dos românticos, radicalizada

pelas vanguardas que, no caminho de Baudelaire, se lançaram à pesquisa lírica através

de mesclas mais variadas do sublime ao abjeto, do mais prosaico ao elevado”.25

Tal

atitude libertária, não isenta o poema, entretanto, de ter sua dimensão ainda de “poesia

menor”, limitada pela contingência biográfica.

A tradição romântica levada ao extremo pelas técnicas de vanguarda é observada

em “Pneumotórax”. Para dar relevo ao sujeito, o poema lança mão de uma mescla entre

prosaísmo e lirismo26

. Ora o poema parece ter o tom prosaico, ora se entrega ao jogo

lírico. Àquela época, a vida se abria ao poeta de Libertinagem, sob a forma de cotidiana

poesia.27

.

22

Schiller, 1991. op. cit. pág. 44. 23

Não querendo aqui nos deter na poesia de Álvares de Azevedo, tecemos um breve comentário. A

natureza que enche o homem de “certa melancolia” e “sublime comoção”, é revelada nos últimos versos

do “poeta pálido”, que “deixa a vida como quem deixa o tédio” em “Lembrança de morrer”: “Arvoredos do bosque, abri os ramos.../Deixai a lua pratear-me a lousa!”. 24 Toma-se desentranhamento nos termos do poeta em “Poema desentranhado” publicado em Flauta de

Papel de 1963: “O poeta é um abstrator de quinta-essências líricas. É um sujeito que sabe desentranhar a

poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos. A poesia que há em tudo, porque

a poesia é o éter em que tudo mergulha e que tudo penetra.” BANDEIRA, 2009. p. 763. 25

PONTIERO, 1985. op. cit. p. 190. 26

COELHO, 2009. Op. cit. p. 135 27

“É que aparentemente recolhido ao isolamento do quarto, resguardo da saúde precária e da memória,

Bandeira na verdade se abre para o mundo, para a vida boêmia da Lapa, ao pé do morro de Santa Teresa,

para a pobreza em torno, para os amigos, para as novas leituras, para a vida, enfim, em seu mais

heterogêneo e humilde cotidiano.(...) Esse movimento, a uma só vez para dentro e para fora – evasão do e

para o mundo – permite resoluta objetivação da experiência mais funda na forma do poema (...) ”

ARRIGUCCI, JR. op. cit. p. 192.

23

Apesar de não deixar de ser um poeta da vida interior, o poeta tísico, no tempo

de “Pneumotórax”, se manifesta na objetividade dos versos, carregados de influência

das vanguardas.

Segundo Davi Arrigucci Jr., desde A cinza das horas “o olho crítico de João

Ribeiro pudera detectar a marca da novidade bandeiriana nesta volta à simplicidade e ao

natural”28

.

É a partir de 1920, sobretudo de 1924, com a chegada de Blaise Cendrars ao

Brasil, que a simplicidade e a naturalidade se acentuam. 29

. O poeta suíço traz consigo

técnicas que influenciarão artistas como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o

próprio Bandeira.

Observemos na dramatização de “Pneumotórax”, um correlativo objetivo da

insurgência biográfica. Apesar disso da construtividade dos versos, a crítica de João

Ribeiro deixa ver o quanto o poeta d’A cinza das horas é um poeta também da

simplicidade e da naturalidade.

Se a persona tísica do poeta se torna mais clara e nítida do que foi nas obras

anteriores, com a exceção de “Epígrafe” (A cinza das horas), não é justo apontar,

seguindo a crítica de João Ribeiro, a “libertação do gosto cabotino da tristeza” em

Libertinagem. “Oração a Santa Terezinha do Menino Jesus” parece dar a ver o longo

percurso ao qual o poeta saiu da “manifestação puramente pessoal”, conforme Candido

aponta, e indo ao encontro da consciência de si mesmo e do mundo, ainda enquanto

persona tísica. A melancolia permanece sendo um dos pilares do constructo de sua

poesia pós-Libertinagem.

Acerca dessa movimentação do “gosto cabotino” ao “objetivismo lírico”30

, há

uma carta de Bandeira a Mário de Andrade: “[Sobre uma fotografia] É o Manuel

Bandeira da Cinza das Horas. É de um tempo em que eu era muito mansamente e muito

28

RIBEIRO apud ARRIGUCCI JR. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. 29

Arrigucci Jr. observa que “é na década de 20, quando se delineiam os traços principais de sua obra

madura, que a busca de soluções formais no sentido da simplificação se acentura fortemente. É claro que

o contato direto com uma poesia como a Cendrars (...) só podem ter fortalecido e direcionado a tendência

da poesia de Bandeira num sentido semelhante”. p. 100 e 101. 30

Toma-se aqui o termo “correlativo objetivo” de T.S. Eliot: “o único modo de expressar emoção na

forma de arte é descobrindo um “correlativo objectivo”; por outras palavras, um conjunto de objectos,

uma situação, uma cadeia de acontecimentos que será a fórmula dessa emoção específica; de tal maneira

que quando os factos exteriores, que devem resultar em experiência sensorial, são facultados, a emo- ção

é imediatamente evocada” (ELIOT, 1992)

24

dolorosamente tísico. Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico.”31

. Mais adiante,

Mário responde:

Mas erras enormemente, Manuel, quando dizes como na tua última carta “Hoje sou

ironicamente, sarcasticamente tísico”. Não o és mais. Ao menos “sarcasticamente”.

Nem o foste nunca, propriamente. Eu sei. Ironicamente, ainda vá. Mas quem escreve

“Os meninos carvoeiros” e a “Rua do Sabão” não é sarcasticamente tísico, é

amorosamente tísico.

“Sarcasticamente tísico”, na visão de Mário de Andrade, é algo que Manuel

Bandeira nunca teria sido. Deve-se perceber, entretanto, que apesar de tratar a doença

com ironia e humor, o poeta tísico permanece. Bandeira – o tísico moderno, por

excelência – é capaz de transmutar, através do jogo linguístico, da quintessência lírica, o

mau destino.

Essa é, portanto, “a verdadeira medalha de duas faces” da poesia bandeiriana.

Se, para Manuel Bandeira, sua poesia é, à um só tempo, irônica e sarcástica; para Mário

de Andrade, uma ironia mansa se sobrepõe ao sarcasmo. Há, apesar de A cinza das

horas ainda ter certo trato simbolista na linguagem32

, sempre uma tendência ao

objetivismo, a um constructo de si mesmo, a uma naturalidade e simplicidade não

necessariamente genuínas. Observemos a teatralidade na poesia de Bandeira na próxima

seção.

2.3. Ariesfinge: a teatralidade do poeta tísico

O estilo manso e humilde do poeta pode ser observado enquanto projeto desde a

capa de A cinza das horas (1917). Em Itinerário de Pasárgada, sua autobiografia, o

poeta revela que a capa fora invenção sua, desenhada por um egiptólogo conhecido seu

– Alberto Childe.

Na imagem33 da esfinge, vemos um leão com a face coberta por uma máscara de

cordeiro. O poeta chama a essa figura de ariesfinge ou ariesphinx, composto pelos

vocábulos latinos “aries” (cordeiro) e “sphinx” (esfinge).34 A imagem híbrida é análoga

31

ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel. cit. p. 97. 32

Lembre-se aqui as influências de poetas como Eugênio de Castro nesta primeira poesia bandeiriana. 33

A imagem da capa e do detalhe do ex-libris do poeta, encontram-se anexas no final do presente estudo (Imagens 1 e 2) 34

BANDEIRA, 2012. p. 106.

25

à poesia de Manuel Bandeira. De um lado, a humildade do cordeiro. Do outro, a “fonte

escondida”, a força do leão. Sobre essa esfinge, vê-se um poema publicado em

Itinerário de Pasárgada:

ARIESPHINX

A força da doçura

A força da poesia

A força da música

A força das mulheres e das crianças

A força de Jesus – o cordeiro de Deus.35

O tema da Ariesphinx, ou ainda, da construção de uma persona bandeiriana,

reaparece mais tarde, em Estrela da tarde (1963), nos versos de poema homônimo do

anterior:

ARIESPHINX

Então, tão-só no passado

Quero situar o meu sonho.

Faço como tu e, mudado

Em ariesphinx, sotoponho

O leão ao manso carneiro

Doçura de olhos de corça

Doçura, divina força

De Jesus, de Deus cordeiro36

Observarmos a mesma imagem da capa de A cinza das horas. O processo de

sotopor o leão ao manso carneiro é análogo à imagem construída por Alberto Childe,

quarenta e seis anos antes. Vê-se, portanto, uma coesão muito complexa desde o

primeiro livro, na construção de uma persona.

Na tradição cristã, Jesus é referido tanto como leão quanto cordeiro. Segundo o

evangelho de São João, Cristo é “o cordeiro de Deus”. Segundo Jacó, em Gênesis, Judá,

da linhagem de Jesus, seria o “Filhote de Leão”. Em Itinerário de Pasárgada, o poeta

do “alumbramento” revela que “é poeta quando por Deus é servido”. Em “A canção de

Maria”, a sua alegria é “toda vinda de Deus”, tal como Jesus, enviado por Deus, palavra,

35

BANDEIRA, 2012. p. 106. 36

BANDEIRA, 1993. p. 250

26

logos. Em “Bonheur Lyrique”, a felicidade é construída “com os farrapos de um pobre

diabo, uma criança pobre”. A palavra, instrumento de construção dessa felicidade

particular, é observada mesmo antes de o poeta de Libertinagem “tomar alegria”. Em

“Um Sorriso”, o personagem “sente sorrir o seu desgosto”.

A palavra, tanto entre os homens como intermediária entre estes e Deus, é

símbolo de uma felicidade construída através da tristeza de ser tísico. Desde seu

primeiro livro, o poeta demonstra uma atitude de resignação, de humildade e, sobretudo,

de compreensão da força da palavra poética como transformação.

Além da herança cristã, observamos que a esfinge esconde a densidade da

palavra poética também no próprio nome de batismo do poeta. Leão, segundo Ettore

Finazzi Agró em ensaio intitulado “O poeta inoperante”, remete ao “leão rompante” de

seu poema “Carta de Brasão”, publicado em Lira dos Cinquent’anos37

. A referência é

obscura. Do Leão de Bandeira pouco se sabe, além da força da poesia da “ariesfinge”.

Carneiro remete ao seu sobrenome de batismo. Em sua autobiografia38, o revela que

assinava um poema enviado39 por ocasião de concurso da Academia Brasileira de Letras,

como “M. Bandeira Filho”.

Vê-se a alusão implícita da ariesfinge na crônica de Flauta de papel intitulada

“Carneiro sim; Leão, não!”40

, o poeta observa:

Carpeaux, esse delirou. Ele sabe perfeitamente meu nome civil completo, como está

provado na sua excelente Pequena biografia crítica da literatura brasileira. (...)

Pois bem, num tópico do Correio da Manhã me chamou de Manuel Sousa Leão

Carneiro Bandeira. Alto lá, Carpeaux! Carneiro sou, medo não tenho, mas não sou

leão. Se não fosse Carneiro, seria Manuel de Souza.

Seis anos depois de se tornar Manuel Bandeira, “não mais M. Bandeira Filho”,

o poeta criptografaria seu nome de batismo e sua origem (Leão) na capa do livro. Trata-

se de uma atitude sintomática. As referências não são claras. O poeta prefere se

autodenominar, enquanto persona poética, Manuel Bandeira e não Manuel Carneiro de

Sousa Bandeira Filho. Deixa, portanto, as referências mais implícitas de sua origem sob

a figura da “ariesfinge”. Philippe Lejeune em O pacto autobiográfico afirma que

37

BANDEIRA, 1993. p. 187. 38

BANDEIRA, 2012. p. 54. 39

Segundo a autobiografia do poeta, trata-se do poema “A sugestão dos astros”, não publicado em livro. p. 54 40

BANDEIRA, 2009. p. 842

27

nos textos impressos, a enunciação fica inteiramente a cargo de uma pessoa que

costuma colocar seu nome na capa do livro e na folha de rosto, acima ou abaixo do

título. É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor.41

Ao escolher criptografar o seu nome de origem na capa do livro, “o poeta que

não escreve versos de guerra”, escolhe tomar uma face alheia à história, à contingência

biográfica. Sérgio Martagão Gesteira em “A crise do sujeito na poesia de Augusto dos

Anjos”42

revela que, na poesia de Augusto dos Anjos,

a alusão a uma história própria é, em poesia, também uma ilusão de história.

Problema, como se vê, de persona, o que nos convida a ficar adstritos – palavra de

agrado do poeta – ao que acontece ao “eu” de Augusto dos Anjos naquilo que se

tornou a sua trajetória, cristalizada no discurso lírico.

Aspecto que se evidencia também na poética bandeiriana. Os versos anteriores a

“Pneumotórax” são, em sua maioria, versos de uma biografia velada ou, antes,

desentranhada, para usar um termo do poeta. Pôr “versos em lugar de outros” como em

“Versos escritos n’água” é, portanto, uma atitude de transmutação da realidade com o

objetivo de alcançar a sua máxima potência expressiva. O “poeta menor” estava

consciente, desde o início, de que escolhera um personagem singular para si.

Em ocasião de peça teatral escrita por Odilo Costa Filho, baseada no poema “Na

rua do sabão”, Augusto Frederico Schmidt comenta essa face que o poeta criou para si:

Como convinha, o ator que encarnou Manuel Bandeira mostra-se em cena com uma

grande máscara burlesca, em que o essencial da fisionomia do cantor da fuga para

Pasárgada é representado. A fisionomia verdadeira ou real de Manuel, que é de um

estranho homem magro, ácido, marcado e de uma impressionante simpatia depois

que as pontes descem e Manuel Bandeira abandona a reserva um pouco brusca e

ríspida com que se defende de todos, às primeiras abordagens: a fisionomia do

grande Manuel está respeitada melhor na máscara do que numa caracterização

qualquer.43

“A máscara burlesca, em que o essencial da fisionomia” do autor é representado,

definição crítica da máscara do drama de Odilo Costa Filho, é análoga ao essencial da

sua máscara poética de Manuel Bandeira.

Nesse essencial, onde os elementos são conjugados de maneira simples, a força

poética do leão é revestida de cordeiro humilde. A esse respeito, Davi Arrigucci, em

41

LEJEUNE, Philippe. op. cit. p. 26. 42

GESTEIRA, 2013. p. 181. 43

Artigo de 20 de novembro de 1949, publicado no Correio da Manhã. A publicação encontra-se em anexo ao final deste estudo (Imagem 3). Disponível também em arquivo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_05/50541

28

Humildade, paixão e morte já aponta que, ao construir um poema como “Maçã”, o

poeta estaria construindo um poema como um hieróglifo. 44

É possível, portanto, dizer que poemas como “Pneumotórax”, “Versos escritos

n’água”, “Desalento”, “A Antonio Nobre”, “Dama Branca” entre outros, são poemas

que revelam, cada um, uma máscara do poeta, um ponto de vista. Segundo Wright:

A máscara do drama (...) pretende claramente revelar mais do que esconder. Nesses

gêneros, a face não é importante, mas a máscara estilizada simboliza, dá suporte a

algo – uma atitude, um ponto de vista (...)45

Pensar em Bandeira como poeta dramático é entender sua obra em um

continuum desde a publicação de A cinza das horas a Libertinagem. Afinal, se a

conquista do verso livre e o desapego do gosto cabotino da tristeza são aspectos

evidentes da obra, tão evidente também é a manutenção dos contornos de um

personagem, conforme Antonio Candido e Gilda M. e Sousa afirmam na “Introdução” a

Estrela da vida inteira46

.

Em “Pneumotórax”, peça central desse edifício, o poeta dá a ver a si mesmo,

encenado. Através da escavação no poema, revela mais do que esconde. Esse é o

princípio de seu “verso que é sangue”: revelar-se em outro.

A ideia da “humildade na umidade”47

citada em “Ariesphinx”48

, é um tema

recorrente da poética bandeiriana, a expressão máxima com palavras simples. A

insurgência biográfica em “Pneumotórax” dá-se por meio de uma aparência de

simplicidade, coloquialidade, revestida em drama pelo eu do poeta.

Desde a escolha da capa de A cinza das horas, revela-se um poeta dramático, no

sentido de que se produz um mise-en-scène da própria condição clínica. A primeira

alusão explícita à doença só aparecerá vinte e seis anos depois de o poeta adoecer. Se,

em Libertinagem, ele demonstra um complexo jogo entre lirismo e antilirismo, não

parece ser muito diferente nos livros anteriores. Susan Sontag em Doença como

metáfora, observa que uma das metáforas atribuídas ao tísico seria justamente a ideia do

44

ARRIGUCCI JR, 1990. op. cit. p. 22. 45

WRIGHT, 1974. op. cit. p. 9 46

BANDEIRA, 1993. CANDIDO, Antonio. In: Estrela da vida inteira. p. 7 47

Tomamos a ideia de ‘humildade na umidade” como exemplificação da própria poesia de Manuel Bandeira, onde os temas da sua contingência biográfica seriam tratados numa forma clara, humilde, sem grandes impedimentos ao leitor. Sem deixar de ser, portanto, uma poesia complexa na sua simplicidade. 48

BANDEIRA, Manuel. op. cit. p. 250.

29

lirismo49

e, ao mesmo tempo, essa ideia não exime a constante construção de uma

persona, tal como o fora em poetas do nosso romantismo, como Álvares de Azevedo e

Cruz e Souza.

É possível avaliar, portanto, que por trás do nome Manuel Bandeira e sua esfinge

se constrói uma figura de disfarçada ingenuidade. Assim, acreditamos que seja

revelador um estudo detalhado da tísica, não como um fim nele mesmo, mas como

motor de observação dos contornos de um percurso que vai do bardo, dolorosamente

tísico em 1917 ao poeta que toma alegria, sarcasticamente tísico, em 1930.

Nessa linha, entre as obras A cinza das horas e Libertinagem, aparecem dois

temas centrais: a melancolia e a felicidade construída. As duas vertentes, não

excludentes, dão a ver que, se a condição biográfica moldou o poeta, foi somente para

os contornos de um personagem.

Em carta a Manuel Bandeira, Mário de Andrade avalia a teatralidade dos versos

de “Desalento”: “’Eu faço versos como quem morre’... Mentira! É mentira que quem

faz versos age como quem morre. Ninguém poetou jamais a se exaurir, a não ser essa

teatralidade ingênita que herdamos da nossa mãe cotidiana, a hipocrisia. Que cantos de

cisne, nem nada!”50

A afirmação de Mário de Andrade lança luz na máscara bandeiriana

do poeta tísico.

O estilo epistolar, desejando-se expressão autodiegética, não assinala a

experiência do indivíduo biográfico Manuel Bandeira. Segundo Philippe Lejeune,

Falar de si na terceira pessoa pode implicar tanto um orgulho imenso (...), quanto

uma certa forma de humildade. Nos dois casos, o narrador assume, em relação ao

personagem que foi (...) e introduz, em sua narrativa, uma transcedência com a qual,

em última instância, se identifica.

Ao falar do Manuel Bandeira da Cinza das horas e da Tuberculose em Manuel

Bandeira, o próprio poeta dá a ver a si mesmo. Essa imagem do poeta tísico é

vislumbrada do primeiro ao último livro do poeta.

49

“A personagem melancólica – ou tuberculosa – era superior: sensível, criativa, um ser à parte. Keats e Shelley podem ter sofrido de forma atroz por causa da doença, mas Shelley consolava Keats dizendo que, ‘essa tuberculose é uma doença particularmente afeita às pessoas que escrevem versos tão bons como os que você fez’. Tão bem estabelecido era o clichê que ligava a tuberculose à criatividade que, no fim do século XIX, um crítico sugeriu que o progressivo desaparecimento da tuberculose era responsável pelo declínio que se observava na literatura e nas artes.” SONTAG, 2007. op. cit., p. 33. 50

ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 167.

30

Entretanto, o poeta tísico bandeiriano apresenta suas variações. Em

correspondência de 27 de dezembro de 1924, Bandeira revela não saber “qual é o

verdadeiro Manuel: o manso ou o outro”. Fato é que, se o poeta de “Pneumotórax”

chegou onde chegou, foi graças ao poeta dolorosamente tísico de 1917, apontado na

correspondência. Resta apontarmos os contrastes entre os dois, entre a melancolia e a

felicidade construída (“Bonheur Lyrique”).

31

3. TÍSICA E MELANCOLIA

Em “Pneumotórax”, o verso “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.

desprende-se do poema, tornando-se tema em colagens que o poeta faria mais tarde, em

poemas de recapitulação de sua poesia, como “Antologia” (Estrela da tarde)51

. O mote

é aproveitado tanto no prefácio de sua autobiografia52

quanto na reunião de sua poesia

completa.53

Diante disso, constatamos a ideia de que o verso é um pilar importante para

o resto da poesia de Bandeira, mesmo pré-1930.

Se, antes de Libertinagem, a ideia da ‘vida inteira que poderia ter sido e que não

foi’ é inédita, isso não significa dizer que essa mesma ideia não teria sido expressa em

outros versos. Conforme visto, a máscara do poeta é, desde sempre, preponderante.

Sérgio Martagão Gesteira, ao falar da persona poética de Augusto dos Anjos,

observa que “podemos levar em conta a caracterização somática dos distúrbios no

sujeito lírico, em imagens cujo grande rigor confere ao discurso poético de Augusto dos

Anjos as marcas de excelência.” Se, para o crítico, o foco da persona poética incide na

caracterização somática; sobre a melancolia bandeiriana poderíamos afirmar que as duas

noções se complementam, analogamente. A psicogênese da poesia tísica de Bandeira

encontra-se, desde cedo, no corpo, ou na sua somatogênese.54

Primeiramente, analisemos, mais de perto, o verso “a vida inteira que poderia ter

sido e que não foi”. O subjuntivo (poderia) aliado ao pretérito perfeito (foi) transmite

uma ideia de ansiedade ou, ao menos, de angústia.55

A imagem do poeta de “Epígrafe”,

criado para arquiteto e que não pode ser, repercute nesta sensação de ansiedade.

Segundo Scott Stossel, em Meus tempos de ansiedade, as sensações

desagradáveis do ansioso eram associadas à melaina chole (“bile negra” em grego

antigo) e foram chamadas também por nomes como “melancolia e “angst”.56

Scott

também relata que era

51

BANDEIRA, 1993. p. 252. 52

BANDEIRA, 2012. p. 24. 53

BANDEIRA, 1993. 54

Toma-se os termos psicogenia e somatogenia em analogia à gênese do sentido (ideia) quanto da forma (corpo). Segundo o Dicionário Etimológico da Lingua Portuguesa, o radical psico é relativo à “alento, sopro de vida, alma”. Este mesmo radical alude ao objeto de estudo da psicologia: o comportamento humano. Contrariamente e, em complementaridade a essa noção de comportamento do eu lírico, há o corpo da poesia, a dimensão que corporifica este “estar tísico” na poética bandeiriana. 55

Toma-se o termo angst associado ao padecer tísico. 56

STOSSEL, 2014. p. 53.

32

muito raro encontrar a palavra “ansiedade” em compêndios de psicologia ou

medicina antes da década de 1930, quando se começou a usar “ansiedade” para

traduzir o alemão Angst (muito presente nas obras de Sigmund Freud).57

Freud, em Luto e Melancolia, define que a melancolia pode ser dividida em duas

séries de casos. A primeira é uma “reação à perda de um objeto amado; quando os

motivos que a ocasionam são outros, pode-se reconhecer que esta perda é de natureza

mais ideal”.58

Num primeiro momento, o objeto perdido pelo eu-lírico bandeiriano é o

próprio ideal de saúde (como nos versos de “Epígrafe”). Num segundo momento, já a

partir do primeiro livro, essa melancolia se dispersa em objetos múltiplos, não

conseguindo, conscientemente, compreender o que perdeu.

Se, à época de lançamento de A cinza das horas, a imagem do poeta melancólico

parecia algo passado, porque já se prenunciava o nosso modernismo, atentemos para

uma questão: nem sempre a melancolia é atrelada a uma doença. Conforme, Moacyr

Scliar em Saturno nos trópicos,

A peste é, inquestionavelmente, uma doença. A melancolia, como veremos, às vezes

é doença, às vezes não é. Além disso a peste avança rapidamente para a cura ou para

a morte. A melancolia se prolonga no tempo e sua evolução tem caráter definido.59

Por não se tratar da perda de um objeto pré-definido, a melancolia assalta a

humanidade de ciclos em ciclos, sem qualquer predefinição. O mais próximo que

chegamos à definição de melancolia é através das leituras que fazemos, de tempos em

tempos, de poetas, de sociedades assoladas por “pestes”, “doenças endêmicas”, crises

financeiras.

A associação entre melancolia e tuberculose em Manuel Bandeira, apesar da

associação fisiológica com a bile negra em Hipócrates, parece afirmar-se menos no

corpo do poeta – que viveu muito mais do que previra – do que nos seus versos.

Segundo Susan Sontag, em Doença como metáfora, as ideias de tristeza,

melancolia e tuberculose estão intimamente ligadas. A tristeza, uma outra acepção para

tísica, tornaria o sujeito particularamente “interessante”:

57

STOSSEL, 2014. p. 54. 58

FREUD, 1996. p. 132. 59

SCLIAR, 2003. p. 9

33

Ser triste era um sinal de refinamento, de sensibilidade. Ou seja, ser impotente. Em

Armance, de Stendhal, a mãe aflita é tranquilizada pelo médico que lhe diz que

Octave, afinal, não sofre de tuberculose, mas apenas dessa “melancolia insatisfeita e

crítica, característica dos jovens da sua geração”. Tristeza e tuberculose tornaram-se

sinônimos. 60

A tristeza e a melancolia em terras brasileiras eram preponderantes, muito antes

de Oswald de Andrade diagnosticar a felicidade como teste para o país se aliar à

civilização ocidental e ao mesmo tempo manter as características formadoras não

europeias (antropofagia).61

Paulo Prado em Retrato do Brasil, observa que

nos países da Europa, onde nasceu e medrou o romantismo, a sua ação foi intensa na

vida social da época, sobretudo de 1830 a 1850, em que a literatura influenciou de

modo tão sensível a própria sociedade e seus costumes (...) No Brasil, do desvario

dos nossos poetas e da altiloquência dos oradores, restou-nos o desequilíbrio que

separa o lirismo romântico da positividade da vida moderna e das forças vivas e

inteligentes que constituem a realidade social. Hipertrofia da imaginação e da

sensibilidade e pela lei das reações em que todo excesso se paga, misantropia e

pessimismo. São dois característicos do mal do século. O romântico adora a própria

dor. É a fonte mais abundante da sua inspiração.62

Tal melancolia encontra ressonância no modernismo brasileiro, protagonizado

por Bandeira, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. O fato de Freud encontrar um

componente perverso na forma com que o melancólico procura a sua automutilação e

sofrimento é importante para a caracterização de um sofrer bandeiriano. A referência ao

gosto pela tristeza é tão forte no contexto cultural da época que basta avaliarmos as

correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira para encontrarmos várias

ocorrências.

Em carta de 16 de novembro de 1922, Mário de Andrade escreve ao amigo: “E

estou triste. E também estou triste porque estou doente. Não sei ser doente. A doença

cansa-me.”. Ao que Bandeira responde, a 22 de novembro do mesmo ano: “Que doença

é essa? Não vá você entisicar também!?”.63

As associações entre tristeza e doença por

Mário de Andrade e, logo em seguida, entre doença e tísica, revelam o quanto tísica e

tristeza estavam culturalmente associadas. Passemos à análise de poemas do autor,

demonstrando as faces que essa tristeza toma.

60

SONTAG, 2007. p. 33. 61

DUARTE, 2014. p. 192. 62

DUARTE, 2014. p. 126 e 127 63

ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 76.

34

3.1 A autopsicografia de Manuel Bandeira

Desencanto

Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa... remorso vão...

Dói-me nas veias... Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Retomemos a máscara bandeiriana, agora aliada à noção do romântico que

“adora a sua própria dor”, apontada por Paulo Prado. Na carta a Mário de Andrade,

supracitada, o poeta questiona: “será preciso ser tísico para sentir coisas de tísico?”64

.

O fio condutor da reflexão de Bandeira é um questionamento de Mário acerca do

poema “Desencanto”. O autor de Paulicéia desvairada, em ensaio intitulado “Manuel

Bandeira” provoca o autor de A cinza das horas:

Mário de Andrade explica melhor sua “teatralidade ingênita” em carta de 29 de

Dezembro de 192465

:

Toda a gente tem uma certa “teatralidade ingênita” herdada dessa mãe comum, a

hipocrisia. Ora você compreende um sujeito com 40º de febre, escarrando sangue,

vomitando e que se lembra de escrever um poema, fazer arte que tem 14 versos,

rimas em lugares certos, tantas sílabas pra cada verso. Recorda bem o momento teu,

faz friamente a psicologia de ti mesmo, daquele instante e descobrirás a teatralidade

ingênita. Isso não implica insinceridade e hipocrisia propriamente, Manuel. (...) É

64

ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 165. 65

ANDRADE, Mário; Bandeira, Manuel, 2001. p. 171.

35

uma herança natural porém da hipocrisia, da insinceridade que são fenômenos

sociais e que toda a gente, toda, tem porque o homem é um bicho social e

inteligentemente, pela inteligência se associa, não por instinto.”

Ainda segundo Mário, em A cinza das horas encontram-se poemas nos quais são

flagrantes os “exercícios de retórica, de estilo”66

. Inversamente, em ensaio intitulado

“De menino doente a Rei de Pasárgada”, Ribeiro Couto dá relevo às condições que

criaram tal poemas:

fácil explicar como a tuberculose explica a poesia de Manuel Bandeira; mas não

apenas a tuberculose como enfermidade e sim como um conjunto de condições de

vida a que ela o obrigou (...) Os jogos de arte, aparentemente diletantes, eram a

medida de relação entre o seu drama pessoal e a impossível existência ativa. O

célebre verso “eu faço versos como quem morre” não era literatura.67

De fato, explicar a poética bandeiriana através da tísica é uma tarefa redutora.

Conforme Couto observa foi menos a tísica, e a melancolia observada por Paulo Prado,

e mais “o conjunto de condições de vida” que obrigaram o poeta a se relatar através do

poema.

Ao pensarmos em um poema como “Epígrafe”, o teor confessional fica latente.

O uso da primeira pessoa traz ao leitor a sensação da simplicidade do relato melancólico

de um doente.

Em “Desencanto”, apesar de Mário observar que o poema deixa ver a herança

natural da hipocrisia, de resto presente em todos os fenômenos sociais, há ali um

elemento que se destaca: a relação que o autor estabelece com o leitor. A “teatralidade

do poeta” é motor para a construção de sua máscara de tísico.

Tomando a expressão do poema de Fernando Pessoa, a “autopsicografia”

bandeiriana em “Desalento” se quer por meio não da “dor lida”, mas da dor sentida.

“Fecha o meu livro, se por agora/Não tens motivo nenhum de pranto.” O poeta de

“Desencanto” mobiliza a experiência do leitor.

Na “autopsicografia” pessoana, o poeta releva-se, teatralmente, um fingidor, um

produtor de dor através da poesia. Através da dor fingida, segundo o eu lírico de

Fernando Pessoa, o leitor é levado a experimentar, portanto “ser espectador”, não da dor

que ele teve, mas de uma outra experiência de dor.

66

ANDRADE, Mário; Bandeira, Manuel, 2001. p. 165. 67

COUTO, 2004. p. 18

36

Os versos de Pessoa, construtos de uma dor passível de ser sentida através da

leitura, ressoam nos “Versos escritos n’água”: “Tu que me lês/ Deixo a teu sonho/

Imaginar como serão”. Bandeira convida o leitor à recomposição dos versos transpostos

“em lugar de outros”, versos da sua contingência biográfica, de imediata confissão.

Entretanto, conforme Ribeiro Couto observou, a recomposição da biografia do

tísico é uma solução preguiçosa. Caberia ao leitor tentar se interpretar através do poeta

tísico. Há, portanto, um jogo de espelhamento que fica ainda mais claro nos versos de

“Desencanto”.

É importante pensarmos na estrutura “Eu faço versos como quem morre”. O uso

do conectivo “como” tanto na correspondência (“foram realmente feitos como que a

morrer”) quanto no corpo do poema (“como quem morre”) dá relevo e importância à

estrutura fundamental da metáfora e expressam a teatralização da experiência.

Ao deixar para o leitor-espectador a tarefa de “imaginar como serão” os versos

originais vindos da experiência biográfica, o poeta ratifica a ideia de uma metáfora

explícita. Na construção “de um fazer versos como morrer”, o poeta bandeiriano se

aproxima do poeta pessoano e de sua “dor lida”.

Em crônica de Andorinha, andorinha, o poeta revela que, ao ser solicitado para

responder às perguntas de Heloísa Helena no programa “Quem sou eu?” da TV Tupi, o

brincou justamente com a autopsicografia pessoana:

Sou o que não tem e tende

O que pende e não impende

Como o fingidor Pessoa,

que foi ótima pessoa,

Finjo (e fazendo-o não minto)

A dor que deveras sinto68

Essa intertextualidade com Fernando Pessoa, assim como a máscara de Wright,

parece revelar mais do que esconder o ponto de vista do poeta. Apesar de dizer a Mário

de Andrade que a teatralidade era “coisa que não se pode discutir”69

, no poema

supracitado, Bandeira acaba por discutir esta teatralidade.

68

BANDEIRA, 2009. p. 621. 69

ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 165.

37

Tornando-a filiada ao fingere pessoano, Bandeira pretende revelar uma

experiência simbólica de morte, análoga à imaginação do leitor. Ao fazer versos “como

que a morrer”, o poeta que transmuta a sua contingência biográfica a uma realidade

acessível ao leitor. Em correspondência, Bandeira revela um “morrer simbólico”:

Não retrucarei no assunto da morte. Nada que disse era simbolicidade. Era ciência.

Afinal, você conhece essa coisa de ouvir por falar. Eu, por experiência. Não morri

de vez, mas já morri uns pedaços. Saudade nada! Os dois primeiros anos de doença

foram um martírio em que não gosto de pensar. Hoje a minha tuberculose é doença

penteadinha, que toma gelados e usa palm-beach. Mas naquele tempo...70

A degradação do corpo é outro aspecto importante em “Desencanto”. Longe da

sua biografia, no espaço em que o poema permite ser construído, o poeta carrega a

simbologia da sua tuberculose, o “conjunto de condições” que Ribeiro Couto assinalou.

Outro aspecto interessante é a presença de uma gradação do primeiro verso ao

último. Tomemos o paralelismo entre o primeiro e o último versos do poema. “Eu faço

versos como quem chora.” / “– Eu faço versos como quem morre.” A presença do

travessão, no último verso, traz à enunciação uma dramatização de fala.

Voltando à gradação, observemos que ela ocorre na direção psíquico

somático. E ainda, poderíamos associar ao campo psíquico elementos como o verbo

chorar, e termos como “desalento”, “desencanto”, “tristeza”, “remorso” e “volúpia”.

Cabe sublinhar que este último elemento associa-se ao erotismo, uma das

metaforizações comuns para os tísicos no século XIX, segundo Susan Sontag:

A febre na tuberculose era um sinal de uma chama interior: o tuberculoso é alguém

consumido pelo ardor que leva à dissolução do corpo. O emprego de metáforas

retiradas da tuberculose para descrever o amor – a imagem do amor “doente”, de

uma paixão que “consome” – precede em muito o movimento romântico.71

A “volúpia ardente”, sendo um ardor que consome o corpo e o leva à dissolução,

conduz ao verbo “morrer” do último verso. Antes, entretanto, precisamos voltar à ideia

do leitor. Se, em “Versos escritos n’água”, o leitor completa a experiência biográfica do

poeta com a sua imaginação, em “Desencanto”o leitor é convidado a visualizar,

psiquica-somaticamente, a agonia do sujeito tísico. Esta experiência é associada ao

objeto “livro”, extensão para a própria obra: “ Fecha o meu livro se por agora/Não tens

motivo nenhum de pranto”. Se em algum momento o leitor não cede ao pacto, de um

70

ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 175. 71

SONTAG, 2007. p. 24.

38

motivo para pranto, este convite considera-se desfeito. O genuíno72

fingimento –

significando “fingere”, invenção - é observado nesse pedido do poeta ao leitor.

Se em “Versos escritos n’água” os “versos originais” são transmutados em lugar

de outros, deixando uma lacuna vazia à imaginação do leitor, em “Desencanto” o poeta

toma as rédeas da encenação da sua própria morte através do dispositivo da metáfora

(“como”). No terceiro verso da segunda quadra (“Dói-me nas veias. Amargo e quente”),

o poema mistura o psíquico ao somático: as veias doem; amargas, quentes.

Bandeira foi muito influenciado pelos poetas simbolistas portugueses e franceses

nesse primeiro livro. Desmembrando a sinestesia: é aceitável pensarmos que a dor possa

ser uma sensação experimentada através das veias. Já o amargor, não. As veias amargas

expressam quase impressões psíquicas do poeta tísico sobre sua vida, ou, em outras

palavras, as veias bombeiam “vida amarga”.

Os dois primeiros versos da última quadra fazem ver o hibridismo entre o tísico

de corpo e o tísico de alma: “E nestes versos de angústia rouca/Assim dos lábios a vida

corre”. Lembremos-nos da ideia de um sujeito tísico porque angustiado. Segundo Susan

Sontag:

Mas é preciso uma pessoa sensível para sentir tal tristeza ou, por implicação, para

contrair tuberculose. O mito da tuberculose constitui o penúltimo episódio na longa

carreira da antiga noção de melancolia.73

Tal é a angústia do indivíduo, faz versos como quem chora, que “dos lábios a

vida corre”, “deixando um acre sabor na boca”. Dos versos, sendo sangue (“Meu verso

é sangue”), a vida corre, deixando um sabor “acre” nos lábios. É tanto uma descrição

metapoética, ou seja, retórica, quanto uma encenação da hemoptise. No último verso do

poema, passa-se do psíquico para o somático, quando se tornam híbridos. O corpo sente

e traz à fala, à enunciação, o atestado de morte do sujeito. “– Eu faço versos como quem

morre”. Como já apontamos, Bandeira tinha, além do “gosto cabotino da tristeza”, um

gosto pela morte simbólica.74

72

Observe-se o poema acima relatado na entrevista à TV Tupi: “Finjo (e fazendo-o não minto)/A dor que deveras sinto” 73

SONTAG, 2007. p. 33 74

Observe-se a correspondência supracitada: ““Eu, por experiência. Não morri de vez, mas já morri uns

pedaços.” ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel, 2001. p. 175.

39

Os versos de “Poética”: “a paixão dos suicidas que se matam sem explicação”);

de “Morte absoluta”: “Morrer de corpo e alma./Completamente (...) Morrer tão

completamente/Que um dia ao lerem o teu nome num papel/Perguntem: “Quem foi?...”;

e da crônica “Suicidas”, de Flauta de papel, dão a ver como o gosto da morte é

recorrente na obra do poeta:

Bem sei que há os suicidas cabotinos, os que se matam um pouco por vaidade

póstuma, os que escrevem cartas romanceadas. Não é deles que me ocupo. Me

ocupo daqueles cujo silêncio digno está a pedir o silêncio para um gesto atrás do

qual a sensibilidade mais elementar sente um mundo de sofrimentos que ninguém

poderá medir.75

Maurice Blanchot em “A literatura e o direito à morte”, observa o quanto a obra

é efêmera à luz do seu autor:

A obra é o que ele fez, não é esse livro comprado, lido, triturado, exaltado ou

esmagado pela cotação do mundo. Mas, então, onde começa, onde termina a obra?

Em que momento existe? Por que torná-la pública? Por quê, se é preciso preservar

nela o esplendor puro do eu, fazê-la passar ao exterior, realizá-la, em palavras que

são as de todo o mundo? Por que não se retirar numa intimidade fechada e secreta,

sem produzir nada mais do que um objeto vazio e um eco agonizante? Outra

solução: o escritor aceita suprimir-se ele próprio: na obra somente conta aquele que

a lê. O leitor faz a obra; lendo-a, ele a cria; é o seu verdadeiro autor, é a consciência

e a substância viva da coisa escrita.76

O poeta que põe versos em lugar de outros (versos de contingência biográfica),

realiza a sua obra com palavras que “são as de todo o mundo”. Ao fazê-lo, suprimido

diante da escrita de seus versos ao leitor, o poeta lírico apresenta, no corpo, as marcas

de um poeta tísico. Lembremos aqui, a associação entre melancolia (bílis negra) e

tuberculose. Segundo uma das definições de Freud, o melancólico é um sujeito que

perdeu um objeto, o qual não conhece conscientemente. Esse objeto perdido, nos versos

de “Versos escritos n’água” é justamente os versos de uma biografia suprimida diante

do leitor. Observemos aqui que, se a biografia é suprimida, os versos não se tornam

menos ardentes e cheios de paixão.

É por meio da imaginação do leitor, do espectador, que o poeta tísico revive. O

leitor cria a obra tanto a partir da catarse pessoana (“Tu que me lês deixo a teu

sonho/Imaginar como serão”) quanto da empatia com o poeta tísico (“Fecha o livro se

75

BANDEIRA, 2009. p. 33. 76

BLANCHOT, 2011. p. 317.

40

por ora,/Não tens nenhum motivo de pranto”). O poeta tísico é também um espectador

de si mesmo. A autopsicografia de Bandeira prevê a própria morte, encenada.

Ao fim, na enunciação dramatizada proposta pela pontuação, o poeta tísico

repete os versos iniciais do poema, associados à sua morte ou, segundo Sontag, à

dissolução do seu corpo. O único verso de “Desencanto” que é trazido à dramatização

da fala, diferentemente dos versos de “Pneumotórax”, é o verso final.

O paralelismo entre o primeiro verso “Eu faço versos como quem chora” e o

último verso “Eu faço versos como quem morre” deixa ver a distinção entre os verbos

“chorar” e “morrer”. O primeiro verso expressa o sofrimento intimista, individual,

assim como os versos transpostos em lugar de outros de “Versos escritos n’água”. O

fazer versos como quem chora, escondido, dá lugar então lugar ao verso que é sangue.

Lembremos aqui que o sangue é símbolo de sua própria hemoptise. Mas, transmutados

em “as palavras que são as de todo mundo”, o sujeito biográfico que padece de

tuberculoso morre para ceder lugar à dicção do poeta tísico. Aqui, observamos a

gradação de uma poesia intimista a uma poesia somática, ou seja, trazida ao corpo.

3.2. O poeta tísico disperso na terceira pessoa

De A cinza das horas a Libertinagem, percebemos a construção da persona tísica

do poeta não só pela primeira pessoa como também pela associação a figuras afins à

persona tísica. Observemos algumas dessas ocorrências.

A Antonio Nobre

Tu que penaste tanto e em cujo canto

Há a ingenuidade santa do menino

Que amaste os choupos, o dobrar do sino

E cujo pranto faz correr o pranto

Com que magoado olhar, magoado espanto

Revejo em teu destino o meu destino!

Essa dor de tossir bebendo ar fino

A esmorecer e desejando tanto...

41

Mas tu dormiste em paz como as crianças

Sorriu a Glória às tuas esperanças

E beijou-te na boca... O lindo som!

Quem me dará o beijo que eu cobiço

Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...

Eu, não terei a Glória... nem fui bom.

Percebemos no poema uma expressão diversa de “Versos escritos n’água” e

“Desencanto”. Se antes o espelho era em si mesmo ou, antes, na imaginação que leitor

tem dos versos, aqui o eu lírico se espelha no poeta português, a quem se refere em

crônica recolhida em Flauta de papel:

Quando cheguei a Clavadel, em 1913, encontrei no Sanatório um português,

negociante no Rio, que um dia me surpreendeu dizendo-me que Antonio Nobre

havia feito uma estação de cura naquele recanto da Suíça. E até, para comprovação

do que afirmava, me recitou um verso do poeta: Clavadel, Clavadel, que me curaste!

Posteriormente procurei por toda a parte esse verso na obra de Nobre e não o

encontrei.77

A surpresa vem ao nos depararmos, em carta de Nobre a Justino Montalvão, com

“o ser de carne e osso”, capaz de “ocultar a simples verdade de uma hemoptise” até para

um “amigo tão íntimo”.

Ocultar a doença era uma atitude coerente com o tempo em que Antonio Nobre

vivia. Segundo Bandeira:

É verdade que ainda apanhei o tempo em que a tuberculose inspirava o mesmo terror

que a lepra. Pra um tuberculoso ser recebido num hotel era preciso estar com a

doença ainda muito no começo, de sorte a permitir o eufemismo “fraco do peito”. E

“fraco do peito” não era aceito para noivo. Ora, Nobre queria casar-se com a

Purinha.78

Vê-se então que houve o tempo em que a tuberculose era considerada um tabu.

Susan Sontag observa que

era razoável supor que essa romantização da tuberculose tenha sido apenas uma

transfiguração literária da doença e que, na época em que causou seus maiores

77

BANDEIRA, 2009.. p. 904. 78

BANDEIRA, 2009. p. 904.

42

estragos, a tuberculose era vista como algo repugnante – a exemplo do câncer hoje

em dia.79

Transformada em objeto de forte censura, a tuberculose foi escondida por

Antonio Nobre até daquele que considerava um amigo íntimo. Bandeira só encontra as

evidências de um Antonio Nobre de “carne e osso”, que deixa Clavadel, “onde o seu

tédio era imenso e maior do que ele a sua tristeza”.

Semelhante a Totônio Rodrigues, Rosa e o avô, Antonio Nobre aparece em A

cinza das horas convertido em personagem mitológica. Se o verso “Clavadel, Clavadel,

que me curaste!” não se torna um verso fatídico, como queria o português em Clavadel,

resta construí-lo através das imagens de uma força tísica80

.

Tomemos o poema mais particularmente. Na primeira estrofe, o poeta revela a

imagem do menino, da infância perdida, tão reveladora em poemas posteriores como

“Evocação do Recife” e “Profundamente”. Verifiquemos também a imagem do dobrar

do sino, presente também em “Os Sinos” e “Evocação do Recife.

A pureza e a simplicidade do menino é um dos pilares da poesia de Manuel

Bandeira. Se há a presença do menino, Jesus muitas vezes, identificado com a vida

(“Sino de Belém”), como em “A canção de Maria” e na própria alusão na capa do

primeiro livro, lembremos que, nele, ainda se identifica a morte (“Sino da Paixão”). Em

“Evocação de Recife” o poeta traz à lembrança, novamente, a imagem do sino: “De

repente/ nos longes da noite/ um sino”.

As imagens do sino e do menino associam-se à de Antônio Nobre, transformado

não só em inspiração, mas em veículo de uma poética. O espelhamento em Nobre é tão

expressivo que aparece na própria constituição dos versos: “o pranto faz correr o pranto/

Revejo em teu destino o meu destino.” As imagens mais específicas da tísica também

são importantes, como nos versos agonizantes: “Essa dor de tossir bebendo ar fino”.

Entretanto há, no primeiro terceto, uma mudança propiciada pela conjunção

adversativa “mas”. Em contraste com o eu lírico de “Desencanto”, que se faz encenar

morrendo, numa hemoptise, Nobre, tornado personagem, “dorme em paz com as

crianças”. A distinção entre o tísico bandeiriano e o tísico que projeta em Nobre dá a ver

79

SONTAG, 2007. p. 31. 80

Utilizamos aqui, um clichê, uma metáfora desgastada da tuberculose. Recorremos a Nietszche, a partir

de Sontag: “Essa ideia de como os doentes são interessantes – recebeu de Nietzsche sua formulação mais

audaciosa e mais ambivalente em A vontade de potência (...) embora Nietzsche raramente mencionasse

uma enfermidade específica, esses juízos célebres acerca da fraqueza individual e do esgotamento ou da

decadência cultural incorporam e ampliam muitos clichês sobre a tuberculose.”. p. 32.

43

a idealização apontada por Sontag: “o tormento tornou-se romântico numa visão

estilizada dos sintomas preliminares da doença (por exemplo, a fraqueza é transformada

em langor) e o tormento autêntico foi simplesmente eliminado.”81

Bandeira elimina o

tormento do poeta que fugiu de Clavadel, “onde seu tédio era imenso e maior do que ele

a sua tristeza.”

Tomemos o vocábulo “Glória”, no segundo verso do primeiro terceto.

Observemos agora sua ocorrência no célebre “Poema do Beco”:

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?

– O que eu vejo é o beco.

Façamos uma distinção importante entre as duas ocorrências. Segundo o

dicionário Houaiss, Glória é “a fama obtida por qualidades e grandes feitos.” Em A

cinza das horas trata-se justamente dessa notoriedade, a de um Antônio Nobre

mitificado pela força tísica, por ter sido “conde aos vinte anos”.

Os versos de “Testamento” de Lira dos Cinquent’anos ressoam esse sentido de

uma vida impedida pela doença:

Criou-me desde eu menino

Para arquiteto meu pai

Foi-se um dia a saúde.

Fiz-me arquiteto? Não pude!

Sou poeta menor, perdoai!

O poeta menor encontra sua potência exatamente no que não teve: “O que não

tenho e desejo/É que melhor me enriquece.” Nos versos de “Testamento” encontra-se o

poeta tísico do objeto perdido do seu desejo, “as inacessíveis praias” de “Canção das

duas Índias”.

Cabe sinalizar, entretanto, que o poeta tísico de “Testamento” já não é mais o

poeta tísico de “A Antonio Nobre”. O sentido de “Glória” transforma-se na “capelinha

da Glória do Outeiro”, presença marcante quando o poeta muda-se do Curvelo para a a

rua Morais e Vale, como se lê no Itinerário de Pasárgada:

81

SONTAG, 2007. p. 30

44

Em março de 1933, me vi forçado a abandonar o meu apartamento do Curvelo (...)

Passei a residir em Morais e Vale, uma rua em cotovelo, no coração da Lapa. (...) Da

janela do meu quarto em Morais e Vale podia eu contemplar a paisagem, não como

fazia do Morro do Curvelo sobranceiramente, mas como que de dentro dela: os

pátios do Convento do Carmo, a baia, a capelinha da Glória do Outeiro... No

entanto, quando chegava à janela, o que me retinha os olhos, e a meditação, não era

nada disso, era o becozinho sujo embaixo, onde vivia tanta gente pobre (...)82

Podemos ver, portanto, que se a Glória de “A Antonio Nobre” é “a fama obtida

por qualidades e feitos”, ou antes, a Glória de um poeta maior; a Glória de

“Testamento” é feita de um momento onde o poeta se resigna com a ausência do objeto

perdido. A ponto de o poeta afirmar: “o que não tenho e desejo/ é o que mais me

enriquece”. Em A cinza das horas, o poeta ainda se vislumbrava através da “Glória” de

“Antônio Nobre”. Pensemos também no poeta de Carnaval, que almeja a alegria de

Schumann e só encontra nela o seu “carnaval sem nenhuma alegria”. Nesse sentido, o

poeta de Lira dos Cinquent’anos é tão tísico quanto construtor da sua própria riqueza

poética, observada na amplitude que a palavra Glória toma de 1917 a 1940.

A Glória beija o “lindo som” da boca de um mítico Antônio Nobre. Associando

“lindo som” a “canto” (no primeiro verso: “Tu que penaste tanto e em cujo canto”),

percebemos que “tossir ar fino” e “lindo som” podem ser associados. Lembre-se que

Sontag afirma que a tuberculose é uma doença particularmente afeita às pessoas que

escrevem bons versos.83

O cantar do poeta que dá a ver sua própria hemoptise, que

“tosse bebendo ar fino”, biograficamente falando, por força da metáfora, tem um “bom

cantar”. Seu canto seria um canto singular, apesar de não conseguir atingir a alegria de

um Schumann.

Se tivermos em mente a teatralidade a que Mário de Andrade se refere ao criticar

“Desencanto”, é justamente por se revelar doente, por meio de sua máscara de poeta

tísico, e não pela atitude de esconder, presente na carta de Antônio Nobre a Justino

Montalvão, que lhe conferiria o melhor verso.

Ao se projetar na figura de Antonio Nobre, o poeta tísico revela uma

diferenciação com o poeta português. A potência da Glória tísica através de Antonio

Nobre é mal fadada. (“Eu, não terei a Glória... nem fui bom.”)

Conforme observa o poeta, A cinza das horas, Carnaval, O ritmo dissoluto

foram construídos “en toute lucidité”. De certa maneira, os exercícios de retórica,

apontados por Mário de Andrade, são válidos, na medida em que o poeta fazia-se guiar

82

BANDEIRA, 2012. p. 120. 83

SONTAG, 2007. p. 33.

45

por figuras como Antonio Nobre, Camões, os poetas simbolistas e parnasianos.

Segundo Bandeira, o seu esforço consciente “só resultava em insatisfação, ao passo que

o que lhe saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao

menos a virtude de me deixar aliviado das suas angústias.84

Aliviando suas angústias, de

A cinza das horas para Carnaval o poeta se encaminha para a construção de uma

melancolia, tísica, mas toda sua.

3.2.1. O poeta disperso em “A aranha”

A ARANHA

Não te afastes de mim, temendo a minha sanha

E o meu veneno... Escuta a minha triste história

Aracne foi meu nome e na trama ilusória

Das rendas florescia a minha graça estranha

Um dia desafiei Minerva. De tamanha

Ousadia hoje espio a incomparável glória....

Venci a deusa. Então, ciumenta da vitória,

Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha!

Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura

Inspiro horror... Ó tu que espias a urdidura

Da minha teia, atenta ao que o meu palpo fia:

Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis,

Sob os quais incessante e vária a fantasia

Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis...

No poema “A aranha” ainda de A cinza das horas, o poeta toma para si outra

personagem: Aracne, da mitologia grega. Sabe-se que esta figura mitológica fora

amaldiçoada por Minerva após se comparar a ela.

84

BANDEIRA, 2012. p. 39.

46

O poeta tísico experimenta a estranheza, a exclusão da doença para tornar a

estória da Aracne um pouco da sua própria história. Já na primeira estrofe, a voz de

Aracne revela o temor de que o interlocutor “se afaste” dela, temendo a sua sanha e o

seu veneno. A biografia revela a mesma exclusão no sanatório de Clavadel. Também

não é raro encontrar, tanto na literatura como nos costumes do século XIX, a ideia de

uma reclusão do paciente tuberculoso. Em To the lighthouse, de Virginia Woolf, por

exemplo, o motivo da viagem que dá nome ao título é a tuberculose de James Ramsay.

Susan Sontag descreve essa face da tuberculose, a despeito da sua face mais

delicada e afeita a versos, já relatada anteriormente. Assim como os “loucos”, enviados

ao sanatório, a tuberculose era tratada como doença do isolamento:

A exemplo da tuberculose, a loucura é uma espécie de exílio. A metáfora da viagem

psíquica é um prolongamento da ideia romântica de viagem associada à tuberculose.

Para curar-se, o paciente tem de ser levado para fora de sua rotina diária. Não por

acaso a metáfora mais comum para um experiência psicológica radical vista de

maneira positiva – produzida por drogas ou por psicose – é a de uma viagem.85

Não querendo aqui entender a transfiguração do poeta tísico em Aracne como

um efeito psicótico ou produzido por drogas, poderíamos pensar na própria poesia como

propulsora de um efeito, antes, catártico. Ao se ver sob a pele de Aracne, o poeta

consegue dar vazão à sua reclusão de paciente tuberculoso.

A primeira estrofe é angustiada, pede ao interlocutor que não se afaste, e toma

para si a estória de Aracne, que, desafiando Minerva, fora transformada em aranha pela

deusa. Atentemos para a expressão “graça estranha” que, já de antemão, revela certo

estranhamento no produto da “trama ilusória das rendas”.

No final do século XV, Sandro Botticelli pintara “A primavera”86

. O quadro,

além de retratar um jogo de morte e renascimento através de Zéfiro e as três graças,

também apresenta uma modelo coberta de flores, Simonetta Vespucci, musa do pintor e

tísica. Lorenzo di Pierfrancesco de Médici teria encomendado a pintura a Botticelli em

homenagem a Simonetta. Ao operarmos um recorte nessa figura, podemos reconhecer

componentes curiosos. Primeiramente, a ninfa, ao lado de Zéfiro, verte flores negras

pela boca, tal como uma hemoptise. Essas flores ornam a vestimenta de Simonetta à sua

esquerda. Segundo o pesquisador Pedro Paulo Soares, especialista em história da cultura

85

SONTAG, 2007. p. 35 e 36 86

O recorte da imagem que Pedro Paulo Soares utiliza em seu ensaio, encontra-se anexo no fim deste estudo (Imagem 5)

47

pela Fiocruz, essa imagem de uma beleza pálida e frágil teria também se perpetuado na

figura de “Nascimento de Vênus”, pintura também encomendada por Médici. 87

Atentemos à imagem do “verter flores negras pela boca”. Para o poeta, verter

pela boca, ou seja, em versos, o sangue, a volúpia ardente, o remorso vão, tal como em

“Desencanto”, é também transformar a tísica em beleza, tal como a figura de Simonetta,

transmutada pela hemoptise da ninfa.

Mas, ao contrário da figura idealizada de Simonetta, cuja força tísica vem do fio

da ninfa, Aracne, agora transformada em aranha, é “medonha e escura”. Entretanto, não

se furta a dizer que no passado “era branca e linda”, como a musa de Botticelli. A trama

ilusória de Aracne é não só o fio de hemoptise vertido pela boca da ninfa de Botticelli,

mas também o próprio mau destino do poeta tísico vertido em imagem poética.

Nas últimas duas estrofes, o poeta tísico dá a ver a sua própria construção,

mobilizando o leitor. Tal como o leitor de “Desencanto”, o poeta dá a ver o seu próprio

sofrimento, agora transformado em urdidura. O uso deste vocábulo é interessante, uma

vez que pressupõe também a ideia de uma trama formada da bela Aracne, transformada

em aranha. O bordado de Aracne é importante, pois o poeta dá a ver o próprio artifício88

(“Ó tu que espias a urdidura”). O uso do verbo “pensar”, assim como o verbo

“imaginar” em Versos escritos n’água, deixa ver o processo operado em conjunto com o

leitor. Tal como a hemoptise negra de flores da ninfa de Boticelli, que resguarda a

figura à sua esquerda (Simonetta), Aracne constrói uma “pala sutil para os seus ombros

frágeis”. Retoma-se a ideia de uma poesia, de um “tecer poético” como resguardo da

contingência biografia, dos ombros frágeis, da fragilidade do corpo. Observe-se também

o adjetivo que qualifica a “pala”: sutil, dando mais uma vez a ver a “força da doçura” da

ariesphinge bandeiriana.

87 SOARES, 1994. VI Congresso de Saúde Coletiva.. Imagens da peste branca. As representações

iconográficas da tuberculose. 1994. (Congresso). 88

Lembremos da força da poesia da ariesfinge. BANDEIRA, 2012. p. 106.

48

3.2.2. O poeta disperso em “D. Juan”

D. JUAN

Ser de eleição em cujo olhar a natureza

Acendeu a fagulha altiva que fascina

Tu trazias aquela aspiração divina

De realizar na vida a perfeita beleza

Creste achá-la no amor, na indizível surpresa

Da posse – o sonho mau que desvaira e ilumina

Vencido, escarneceste a virtude mofina...

Tua moral não foi a da massa burguesa.

Morreste incontentado, e cada seduzida

Foi um ludibrio à tua essência. Em tais amores

Não encontraste nunca o sentido da vida

Tua alma era do céu e perdeu-se no inferno...

Para os poetas e para os graves pensadores

Da imortal ânsia humana és símbolo eterno

Tomando o arquétipo do D. Juan89

, o poeta tísico transforma-se em um

apaixonado incontentado. Apesar de trazer em si a “aspiração divina de realizar na vida

a perfeita beleza”, o personagem D. Juan de Bandeira nunca encontra em si o sentido da

vida, é símbolo da “imortal ânsia humana”. Esse tema da ânsia também aparece em um

poema intitulado “Temas e voltas” de Mafuá do malungo.

O poeta tísico padece tanto por estar preso em um corpo tísico quanto em sua

alma de tísico, por ele projetada. “Temas e voltas” dialoga exatamente o pulmão e

89

Lembre-se aqui as considerações de Rougemont em O amor e o ocidente comparando Tristão a Don

Juan: “Tristão já não precisa do mundo — porque ama! Enquanto Don Juan, sempre amado, não pode

jamais retribuir com amor. Daí sua angústia e sua busca desenfreada. (ROUGEMONT, 1988) p. 176.

49

coração. Pensemos no coração do corpo e pulmão da alma90

. Tomemos uma quadra

importante do poema para o nosso estudo:

De Eros a arriscada arte

Sempre usei com discrição:

Que se nunca tive enfarte,

Só tenho meio pulmão.

Ter usado com discrição a arriscada arte de Eros (o Amor), é efeito não de uma

condição do coração (enfarte) atrelado às paixões, mas de uma condição do pulmão: a

tísica.

Ao observarmos a alma (vinda do céu) de D. Juan se perder no inferno,

percebemos um contraponto com poeta de “Arte de amar”, que aponta a supremacia do

corpo sobre a alma (“os corpos se entendem, mas as almas não”).91

Segundo Sontag,

“uma doença dos pulmões é, metaforicamente, uma doença da alma”.92

Já Rougemont, em “O amor e o ocidente”, observa que a poesia provençal se

coloca à margem do casamento, numa união dos corpos, enquanto o “Amor”, o Eros

supremo, é a projeção da alma na união luminosa, para além de todo amor possível

nesta vida.93

. Desse modo, “Arte de amar” estaria em consonância com as leys d’amors

da poesia provençal, enquanto que em “Temas e voltas”94

, onde apenas “os corpos se

entendem”, vigoraria uma inversão desta ideia.

Em “Temas e voltas” observamos o quanto o casamento, enquanto conjunção

com outro corpo95

pode ser uma ideia avessa ao sujeito tísico construído por Bandeira.

Mantenhamos-nos à luz da ideia de consunção do corpo, a “pouca cinza fria” de

“Epígrafe”. Lembremos o que Susan Sontag chama de “dissolução do corpo” 96

e

tomemos por distinção a ideia que Pedro Paulo Soares tem de consunção: “Sob o nome

90

Lembre-se aqui Sontag em Doença como metáfora, “uma doença dos pulmões é, metaforicamente, uma

doença da alma.” SONTAG, 2007. p. 22 91

BANDEIRA, 1993. p. 206 92

SONTAG, 2007. p. 22. 93

ROUGEMONT, 1988. p. 30. 94

BANDEIRA, 1993. p. 330. 95

BANDEIRA, 1993. p. 330 96

Já citada na nota 54 deste estudo. A febre na tuberculose era um sinal de uma chama interior: o

tuberculoso é alguém consumido pelo ardor que leva à dissolução do corpo. O emprego de metáforas

retiradas da tuberculose para descrever o amor – a imagem do amor “doente”, de uma paixão que

“consome” – precede em muito o movimento romântico.

50

de consunção [a tuberculose] esteve ligada a ideia e combustão do ser, gradualmente

produzida pela febre.”97

O D. Juan do poema, conforme o arquétipo, demonstra um

sujeito preso na ânsia e na consunção do ser. A ideia, segundo Rougemount, de um

sujeito “sempre amado” que “não pode retribuir o amor” é especialmente parecida com

a ideia de um sujeito tísico que “se nunca teve enfarte/só tem meio pulmão”. O

impedimento de desfrutar a Arte de Eros é, não uma privação do coração (enfarte), mas

uma privação do espírito (pulmão). É, portanto, através dessa privação do espírito, a um

amor que se observa a ânsia e a consunção do ser.

Se a força de Aracne é a sua frágil delicadeza, em D. Juan percebemos que essa

força ainda se expressa na fragilidade de um “morrer incontentado”. O poeta tísico de

Manuel Bandeira ainda precisaria de um longo itinerário para entender em si mesmo a

sua ânsia, a sua finitude e a sua forma de amar.

3.2.3. O poeta disperso em “Gesso”

GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso quando nova

– O gesso muito branco, as linhas muito puras –

Mal sugeria imagem de vida

(Embora a figura chorasse).

Há muitos anos tenho-a comigo.

O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.

Os meus olhos, de tanto a olharem,

Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.

Um dia mão estúpida

Inadvertidamente a derrubou e partiu

Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos, recompus a figurinha que chorava.

E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial

97

SOARES, 1994.

51

É tocante e vive e me fez agora refletir

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Outro exemplo de terceira pessoa em que a persona tísica se dispersa é “Gesso”,

publicado em O ritmo dissoluto. No poema, a voz se identifica com uma estátua,

retratada em fotografia com o poeta. A estática figura (“mal sugeria a imagem de vida”),

aos olhos do poeta tísico, chora. É uma característica semelhante ao que acontece com

paisagens em outros poemas que serão estudados mais à frente. A respeito da natureza

da percepção, Merleau-Ponty, em O primado da percepção e suas consequências

filosóficas, observa:

Se estivermos, um amigo e eu, diante de uma paisagem, e se eu tentar mostrar a meu

amigo algo que vejo e que ele não vê ainda, não daremos conta da situação

acontecendo dizendo que vejo algo no meu mundo próprio e que tento por

mensagens verbais suscitar uma percepção análoga no mundo de meu amigo, não há

dois mundos numericamente distintos e uma única mediação da linguagem que nos

reuniria. Há - e sinto muito bem isso, se me impaciento - um tipo de exigência de

que o que é visto por mim seja visto por ele. Ao mesmo tempo, porém, essa

comunicação é solicitada pela mesma coisa que vejo pelos reflexos do sol, por sua

cor, por sua evidência sensível. A coisa se impõe, não como verdadeira a toda a

inteligência, mas como real para todo sujeito que partilhe a minha situação. (p. 38)

É curioso observar que, nas fotografias, a estátua a que Bandeira se refere não

possui cabeça.98

Se atentarmos na ideia de Merleau-Ponty de que a percepção não se

impõe como verdadeira a toda inteligência, mas sim à percepção do indivíduo,

poderíamos analisar o rosto completado na estátua, através da imaginação do poeta,

como sua alma tísica tentando impregnar as coisas. Lembremos da ideia do indivíduo

afeito aos versos, à imaginação, em certa medida se igualando aos doentes mentais com

a noção de “sanatório”99

. É exatamente o que se revela nos versos abaixo:

Os meus olhos, de tanto a olharem,

Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.

98

Uma imagem da estátua (Imagem 4) se encontra em anexo ao final desse estudo. 99

SONTAG, 2007. p. 33. “A personagem melancólica – ou tuberculosa – era superior: sensível, criativa, um ser à parte. Keats e Shelley podem ter sofrido de forma atroz por causa da coença, mas Shelley consolava Keats dizendo que ‘essa tuberculose é uma doença particularmente afeita às pessoas que escrevem versos tão bons como os que você fez.”

52

Tal “humanidade irônica de tísico” é capaz de apreender na estátua a sua

tragicidade escondida. Em certo momento – tal como na poesia de Carlos Drummond de

Andrade100

a cerâmica da “xícara” no aparador (José & Outros) ou o insólito elefante (A

rosa do povo) – a estátua se desfaz pela ação da “mão estúpida”. É interessante

observarmos a indistinção que se confere a esta mão a partir da completa falta de

filiação (pensemos no verso estruturado deste modo: “Um dia minha mão estúpida”). O

poeta parece, propositalmente, tornar a filiação dessa mão invisível aos olhos do leitor,

proporcionando-lhe leituras possíveis.

A mais sedutora delas é de que a “mão invisível” toma as vezes do “mau gênio”

de “Epígrafe”, ou do “mau vento” que atira os versos transmutados de “Versos escritos

n’água”. A partir deste último poema, vista como a própria poesia de Bandeira

transmutada, a experiência do poeta imaginando o choro da estátua, dos versos postos

em lugar de outros, é importante. Se em “Versos escritos n’água” o poeta tísico dá

liberdade ao leitor para imaginar como serão estes versos, em “Gesso” os versos são

completados com a ajuda da percepção tísica do poeta. A única lacuna que fica em

aberto é a “mão invisível” bem ajustada às noções de “mau gênio” e “mau vento”.

Outro detalhe importante é o uso da palavra “tempo” no poema: “o tempo

envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja”; “e o tempo sobre as

feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina...”. Percebemos que, como nas

ações da doença, do “mau gênio”, do “mau vento”, o tempo é incansável e atinge de

igual maneira a matéria aquebrantada pela mão estúpida ou não. É possível tratar a

tuberculose como uma doença “do tempo” (crônica), sobretudo no século XIX e

começo do XX, antes da descoberta da estreptomicina.101

Ao fim da narrativa do que ocorre com a figura de gesso, o poeta tísico observa

que:

Hoje este gessozinho comercial

É tocante e vive e me fez agora refletir

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

100

DRUMMOND, 1967. p. 361 e 168 101

SONTAG, 2007. p. 35.

53

A estátua suscita a reflexão, bem ao modo de Nietzsche, para quem, em A gaia

ciência, “a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer – e não um dever,

uma fatalidade, uma trapaça! (...) E quem saberá rir e viver bem se não entender

primeiramente da guerra e da vitória.”102

. A guerra e vitória do poeta tísico é justamente

entender-se com o tempo da tuberculose vista como doença crônica. Veremos, em

capítulo mais adiante, que o saber do poeta tísico é o que lhe confere, livros mais tarde,

felicidade e capacidade de rir de si mesmo. Transformado em símbolo da sua felicidade

diante do sofrimento, a estatuazinha de gesso é uma imagem também associada à sua

própria poesia, feita de versos transmutados, em lugar de outros.

102

NIETZSCHE, 2012 p. 190. Cito o aforismo 324. In media vita de A gaia ciência.

54

4. DOIS POEMAS DIANTE DO ESPELHO

Além dos poemas supracitados para exemplificar a teatralidade do poeta como

“Pneumotórax”, “Versos escritos n’água”, “Desencanto”, todos escritos em primeira

pessoa, cabe percebermos tantos outros escritos em primeira pessoa que fazem ver o

poeta tísico olhando a si mesmo.

4.1. “Morrer incontentado”

VOLTA

Enfim te vejo. Enfim no teu

Repousa o meu olhar cansado

Quando se turvou e se escureceu

O pranto amargo que correu

Sem apagar teu vulto amado!

Porém tudo já se perdeu

No olvido imenso do passado

Pois que és feliz, feliz eu sou

Enfim te vejo!

Embora morra incontentado.

Bendigo o amor que Deus me deu

Bendigo-o como um dom sagrado

Como o só bem que há conformado

Um coração que a dor venceu!

Enfim te vejo!103

103

BANDEIRA, 1993. p. 54

55

Outra forma de observar a si mesmo é colocar-se como interlocutor da sua

própria pessoa, ou antes de um tu que se autoprojeta em si mesmo. Tomemos a noção

de corpo vidente e visível de Merleau-Ponty em O olho e o espírito:

O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que

olha todas as coisas, pode também se olhar e reconhecer no que vê então o “outro

lado” de seu pode vidente. Ele se vê vidente, ele se toca tocante é visível e sensível

para si mesmo (...) um si por confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao

que ele vê, daquele que toca, ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é

tomado portanto entre as coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um

futuro... (...) O espelho aparece porque sou vidente-visível, porque há uma

reflexividade do sensível, que ele traduz e duplica.104

Em “Volta”, assim como nos outros poemas que serão aqui analisados, o poeta

tísico se dá a ver a si mesmo. Há momento em que o objeto do passado (aqui

identificado como a própria doença) é dito como “olvidado”. Além disso, há claras

referências à felicidade espelhada do poeta através do outro. “Pois que és feliz, feliz eu

sou”. Poderíamos bem observar que esta segunda pessoa (tu) tomaria a forma de uma

pessoa amada. Entretanto, por se tratar de um estudo sobre o poeta tísico, pensemos em

um espelhamento de si mesmo, uma visão narcísica de si mesmo como objeto visível e

vidente, como observa Merleau-Ponty. Ainda sobre a noção de espelhamento, Jean

Starobinski, em A melancolia diante do espelho, observa:

É bom lembrar que, por vezes, a tradição iconológica associou à melancolia o

espelho e o olhar voltando para a imagem refletida. O espelho é acessório

indispensável do coquetismo e emblema da verdade, mas não por isso devemos

pensar que seja empregado com menos conveniência quando está sob os olhos de

um melancólico. Dessa valência plural resulta uma motivação reforçada. No espelho

da verdade, o coquetismo é futilidade, reflexo perecível. E não há melancolia mais

“profunda” que aquela que se ergue, diante do espelho face à evidência da

precariedade, da falta de profundidade e da Vaidade irremediável.105

Ao ser capaz de se ver através do outro (“Enfim te vejo. Enfim no teu/Repousa o

meu olhar cansado”), opera-se uma estrutura de espelhamento, ainda que o vocábulo

“espelho não ocorra explicitamente. Esta estrutura dupla revela uma obsessão com o

objeto olhado (“Quando se turvou e se escureceu/ O pranto amargo que correu/ Sem

apagar teu vulto amado”). Pensemos neste vulto como expressão da própria felicidade

em oposição a “o pranto amargo que correu”.

104

MERLEAU-PONTY, 2013. p. 4 105

STAROBINSKI, 2014. p. 19.

56

A um só tempo, a imagem serve, conforme Starobinski, como um espelho de

narcisismo, admiração de si mesmo, e dá a ver, na sua melancolia, a precariedade e

efemeridade da existência. Todas as marcas do pranto amargo se perderam (“Porém

tudo já se perdeu/No olvido imenso do passado”). O que retém o poeta tísico é a sua

própria imagem aqui e agora. A felicidade do eu lírico se dá por meio do objeto amado

na imagem no espelho, não se sabe se (outra) pessoa ou o próprio ego.

Há, entretanto, uma ressalva na última estrofe do poema que dialoga diretamente

com o poema D. Juan. Retomemos o primeiro terceto do soneto:

Morreste incontentado, e cada seduzida

Foi um ludibrio à tua essência. Em tais amores

Não encontraste nunca o sentido da vida

Observemos agora a última estrofe de “Volta”.

Embora morra incontentado.

Bendigo o amor que Deus me deu

Bendigo-o como um dom sagrado

Como o só bem que há conformado

Um coração que a dor venceu!

Enfim te vejo!

Observemos a ideia de um “morrer incontentado”. O adjetivo qualifica tanto a

figura de D. Juan quanto a figura do poeta que observa numa estrutura de espelhamento.

Morrer incontentado por não encontrar sentido na vida a partir dos amores (“D. Juan.”)

torna-se, em “Volta”, bendizer o amor que Deus lhe deu, um dom sagrado, a resignação

de sua alma de tísico. “Um coração que a dor venceu” através de olhar para si através de

um espectro que, conforme Nietzsche, é uma vida que busca conhecer.

A ideia de espelho também aparece em “Versos de natal” publicado em Lira dos

Cinquent’anos106

. Ao fim da vida, o poeta tísico parece ainda mais resignado com sua

finitude. O poema retoma a ideia de “morrer incontentado” mais afim à resignação de

“Volta” do que do sujeito inconformado de “D. Juan”. Após reconhecer o limite do

espelho, que apenas reflete as aparências, o eu lírico conclui:

106

BANDEIRA, 1993. p. 171.

57

Mas se fosses mágico,

Penetrarias até o fundo desse homem triste,

Descobriria o menino que sustenta esse homem,

O menino que não quer morrer,

Que não morrerá senão comigo (...)

É interessante como a figura do menino, tão cara à poesia de Manuel Bandeira

aparece, neste momento, significando o momento em que o mau gênio, o mau vento e o

mau destino não teriam ainda abatido o sujeito. Destaque-se, ainda, que o espelho, visto

como um “mestre do realismo exato e minucioso” – que reflete rugas, cabelos brancos,

olhos míopes e cansado, ou seja, a passagem do tempo inscrita na decrepitude do corpo

– equivale ao “emblema da verdade”, observado por Starobinski.

O poeta de “Volta” embora ainda se veja como poeta tísico, demonstra que seria

feliz no reflexo do espelho mágico. “O gosto cabotino da tristeza”, observado por

Arrigucci Jr. ao comentar os primeiros livros do poeta, parece ser apenas uma máscara,

desde o livro de estreia.

A máscara faz-se evidente quando aproximamos os dois poemas e vemos o

quanto o espelhamento (“enfim te vejo” e “tu refletes as minhas rugas”) é também

importante na construção do poeta tísico, ou ainda, irônica e teatralmente tísico, como

apontara Mário de Andrade. A própria ideia do verbo “ver” tornando a voz poética

“feliz”, porque o interlocutor “é feliz”, é uma evidencia importante da teatralidade, da

necessidade de pôr-se em encenação.

Apesar da máscara revelar uma felicidade tísica em “Volta” e, no fim da obra,

revelar sua tristeza em “Versos de natal”, é necessário atentarmos para o verso “Que

não morrerá senão comigo”, que potencializa a força intrínseca do menino eterno, mais

leão do que cordeiro, no poeta que, enfim, viveu mais de oitenta anos.

58

4.2 O espelho-caleidoscópio

O ESPELHO

Ardo em desejo na tarde que arde!

Oh, como é belo dentro de mim

Teu corpo de ouro no fim da tarde

Teu corpo arde dentro de mim

Que ardo contigo no fim da tarde!

Num espelho sobrenatural,

No infinito (e esse espelho é infinito?)

Vejo-te nua, como num rito,

À luz também sobrenatural,

Dentro de mim, nua no infinito

De novo em posse da virgindade,

- Virgem mas sabendo toda a vida –

No ambiente da minha soledade

De pé, toda nua, na virgindade

Da revelação primeira da vida!107

Outro poema em que se vê o espelhamento é “O espelho” de O ritmo dissoluto.

Muito embora esteja na mesma temática dos poemas supracitados, há algo nele que

revela muito mais do que um reflexo para dentro de si: há um espelhamento do poeta

tísico na paisagem.

Aqui encontramos, sem dúvida, o poeta das horas ardentes de A cinza das horas.

Em “O espelho”, observamos o quanto o olhar do poeta tísico altera o ambiente externo.

Starobinski, ao conceituar melancolia, diz que ela estaria associada à contemplação

solitária em cenários de desfiladeiros e ruínas.108

Podemos relembrar, então, poemas

107

BANDEIRA, 1993. p. 107 108

STAROBINSKI, 2014. p. 15.

59

como “Boi morto”109

(Opus 10) e o desfacelamento da figura de “Gesso”. Não é sempre

que desfiladeiros e ruínas aparecem do modo descrito por Starobinski. Há momentos em

que um fim de tarde ou um céu estrelado cumprem a função de espelho do eu

melancólico do poeta.

Logo no primeiro verso de “O espelho”, percebemos o arder mútuo do poeta

(eu) e do ambiente externo (a tarde). Novamente, e paixão e a volúpia identificadas por

Susan Sontag aparecem nos versos de Bandeira: “Oh, como é belo dentro de mim/Teu

corpo de ouro arde no fim da tarde/Teu corpo arde dentro de mim/Que ardo contigo no

fim da tarde”. Retomada a ideia da febre, do ardor tísico, da volúpia, observamos agora

um erotismo no vocábulo “dentro”, que suscita a ideia de penetração, incluindo o

indivíduo e a pessoa amada mas também ele e a própria tarde.

O espelho dessa vez é “sobrenatural”, mas, diferentemente do espelho mágico de

“Versos de natal”, torna-se sinônimo de possibilidades infinitas e não apenas o

desvelamento do verdadeiro ser do indivíduo-menino. Tal é o efeito caleidoscópico

deste espelho que o indivíduo entra em um êxtase onde observa a pessoa amada nua,

dentro dele mesmo. Desta forma, o poema sugere a interpretação de que tomado por tal

vertigem, ainda que seja através do seu objeto de amor (pessoa amada), o sujeito torna a

luz da tarde e pessoa amada uma e única, dentro de si, no infinito. Pensemos o espelho

em sua capacidade de refletir o mundo. Não só nas palavras de Starobisnki, não só

como “emblema de verdade”, mas como símbolo do desfacelamento do eu no infinito,

projetado diversas vezes na pessoa amada, na luz da tarde.

Pensemos que o indivíduo de “Boi morto”, “submergido entre destroços do

presente”, é um indivíduo “dividido, subdividido” de angústia, de melancolia, de uma

tristeza tísica. Lembremos, a respeito dessa subdivisão do indivíduo, da ideia de

consunção proposta por Pedro Paulo Soares: combustão do ser.

É claro que nem em “O espelho,” nem em “Boi morto” ou “Gesso”, a

desintegração do sujeito se dá pelas vias da febre, embora a noção do corpo dissolvido

de um indivíduo persista. A dispersão ótica e extasiada de “O espelho” tem traços de

um retorno à origem, de retorno ao meninice e à virgindade. Lembremos, em

109

Neste poema, inclusive, segundo Ivan Junqueira em Manuel Bandeira: Testamento de Pasárgada, opera-se “uma projeção desantropomorfizada da morte”, morte que “se avoluma qual semente no interior do ser desde o seu nascimento?”. Visão bastante afim ao poeta tísico, cuja “semente da morte” é apesar de tudo, uma semente da própria condição humana.

60

dissonância com este retorno à origem de “O espelho”, do homem receoso, que aprende

as artes de Eros com discrição em “Temas e voltas”.

A presença de Eros em “Temas e voltas” está extremamente vinculada a

Thánatos, tendo em vista a impossibilidade de fruição do amor carnal por conta dos

pulmões fracos – diferentemente do erotismo intenso vivido no plano de fuga de “Vou-

me embora pra Pasárgada”.

As inacessíveis praias de “Canção das duas índias” também revelam essa

impossibilidade por meio de um saber-se doente, fraturado pela tísica. “Virgem mas

sabendo toda a vida”, o sujeito a partir da experiência do ardor da tarde, do ardor da

paixão, toma esse efeito caleidoscópico e infinito do espelho como possibilidade de

recuperar a revelação primeira de sua vida.

Poderíamos também, tendo em vista a inclinação do poeta para imagens

religiosas (“A canção de Maria”, “Oração a Santa Terezinha do Menino Jesus”), admitir

uma leitura dessa revelação como anunciação religiosa. Como o foco do presente estudo

é a tísica, nossa leitura nos leva a admitir que a figura do ardor, do desmantelamento do

ser e da reintegração da sua primeira revelação por meio de uma experiência da persona

tísica sejam mais proveitosos.

61

5. A PAISAGEM PINTADA COM AS CORES DO POETA TÍSICO

5.1. A herança tísica

CARTAS DE MEU AVÔ

A tarde cai, por demais

Erma, úmida e silente...

A chuva, em gotas glaciais

Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou

Lendo, sossegado e só

As cartas que meu avô

Escrevia a minha avó

Enternecido sorrio

Do fervor desses carinhos:

É que os conheci velhinhos,

Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado

Cartas de amor que começa

Inquieto, maravilhado,

E sem saber o que peça,

Temendo a cada momento

Ofendê-la, desgostá-la,

Quer ler em seu pensamento

E balbucia, não fala...

A mão pálida tremia

Contando o seu grande bem.

Mas, como o dele, batia

Dela o coração também

62

A paixão medrosa dantes,

Cresceu, dominou-o todo

E confissões hesitantes

Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme...

A dor... A visão da morte...

Mas, calmado o vento, o lume

Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado

Esse amor, avô do meu...

Do meu – fruto sem cuidado

Que inda verde apodreceu.

O seu semblante está enxuto

Mas a alma, em gotas mansas,

Chora, abismada no luto

Das minhas desesperanças...

E a noite vem, por demais

Erma, úmida, silente...

A chuva em pingos glaciais

Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou

Lendo, sossegado e só,

As cartas que, meu avô

Escrevia a minha avó.110

Em “Cartas de meu avô”, o efeito de espelhamento desaparece, cedendo lugar ao

relato de um acontecimento em terceira pessoa. A leitura da correspondência entre os

avós é pano de fundo para uma situação um tanto mais complexa do que aparenta.

Primeiramente, observemos a passagem do tempo no paralelismo entre a

primeira e a décima primeira quadra. No início do poema, “a tarde cai, por demais”, ao

fim é a noite que cai, “por demais”. Ambos – o cair da tarde e o da noite – são “ermos,

110

BANDEIRA, 1993. p. 52

63

úmidos, silentes”. Sabe-se que a noite é um momento especial para a melancolia,

conforme Starobinski111

e Freud.112

Nestes momentos entre a monotonia da tarde (a chuva chora monotamente) e a

melancolia da noite (a chuva cai melancolicamente), a “volúpia ardente” ataca o

indivíduo tísico. No poema, observamos então um tempo pré-definido: o intervalo entre

a tarde e o entardecer/chegada da noite. Lembremos dos versos de “A estrela e o anjo”

de Estrela da manhã:

Vésper caiu cheia de pudor na minha cama.

Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade.

Sabe-se que Vésper é a primeira estrela que desponta no céu antes do anoitecer.

A ideia mista de uma sublime estrela descender ao plano terreno é um indício da própria

melancolia, que Starobinski observa em estudo sobre Baudelaire e Freud.

A ardência sem sensualidade, com certa fraqueza e langor, é típica do tísico-

melancólico. Em “Cartas de meu avô”, essa ardência apresenta-se através da sua

ausência, transformada em presença pela leitura das cartas (“Enternecido sorrio/Do

fervor desses carinhos:/É que os conheci velhinhos,/Quando o fogo era já frio.”). É

como se, ao ler as cartas, o poeta fizesse presente o fervor dos carinhos. Os versos de “A

estrela e o anjo” são, nesse sentido de uma presença na ausência, um ponto importante.

A ardência de vésper, tal qual o fervor dos avós no tempo presente, não tem “a menor

parcela de sensualidade”.

Lembremos que, para Schiller, a natureza, além de nos encher de “certa

melancolia”, é expressão de nossa completude no Ideal, transportando-nos, por isso, a

uma “sublime comoção”; “fomos natureza (...) e nossa cultura deverá nos reconduzir à

natureza”113

. Tal recondução é observada na “carta” que traz ao poeta tísico a “sublime

comoção” que Schiller observa. A volúpia da leitura é tamanha que o eu lírico “sorri do

fervor dos carinhos entre os avós”, revelando tê-los conhecido somente quando

111

Starobinski observa que há nos primeiros espelhos de Baudelaire aparecem às horas vesperais e

noturnas; são os oficiantes de um prazer perverso. (STAROBINSKI, 2014. p. 20.) 112

FREUD, 1992. “O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta, atraindo para si, de

toda parte, energias de investimento (que nas neuroses de transferência chamamos de "contra-

investimentos") e esvaziando o ego até o empobrecimento total; facilmente o complexo melancólico se

mostra resistente ao desejo de dormir do ego. Um fator provavelmente somático, que não deve ser

explicado psicogenicamente, aparece na atenuação deste estado que via de regra se verifica neste estado,

ao anoitecer.” p. 113

SCHILLER, 1991. p. 44.

64

“velhinhos”, “quando o fogo já era frio”. Lembre-se aqui da “pouca cinza fria” dos

versos de “Epígrafe”. A “pouca cinza fria” representa a ardência interrompida pelo mau

gênio, mau vento, pela doença. A recuperação dessa experiência primeira da infância,

do eterno no natural é análoga à experiência de ler as correspondências entre os avós.

Aqui, o próprio ato de ler é assimilado ao “tu que me lês deixo ao teu sonho/imaginar

como serão”, de “Versos escritos n’água”. O poeta tísico, transformado em leitor-

espectador, lê um pouco do que perdera com os limitante impostos pela doença, tal

como a “revelação primeira da vida”, de “O espelho”.

Tal tempo primordial, análogo ao momento “de antes do noivado”, “de amor dos

avós ainda que começa”, é de extrema hesitação, da descoberta da sexualidade

(“Temendo a cada momento/Ofendê-la, desgostá-la/Quer ler em seu pensamento/E

balbucia, não fala...”).

O poema vai desvelando os sinais de uma paixão entre os avós até que surge

uma mão pálida e trêmula na sexta quadra. O sinal não é exatamente de um mal

fisiológico/somático, muito embora, sabe-se, como tantas vezes citado nesse estudo, que

o langor, a febre e a palidez são sinais intrínsecos às metaforizações do personagem

tísico. Tendo escrito o poema, o indivíduo biográfico Manuel Bandeira, ainda que não

permitisse que a voz de seu poeta tísico não transparecesse, lá estava ela, no símbolo de

uma mão pálida e trêmula ao contar “o seu grande bem”.

Assim como a mão pálida e trêmula da sexta quadra, na sétima observamos uma

paixão avassaladora (“cresceu, dominou-o todo”) tal como o tísico e sua consunção,

agora não física, não transposta como uma febre, mas como uma paixão medrosa que

cresce, domina e desfaz o seu próprio ego. Lembremos aqui do indivíduo melancólico

que não conseguir dormir, dominado pelos afetos, como observa Freud 114

.

É o que observamos na oitava quadra, na qual o espinho do ciúme surge: a dor, a

visão da morte. Deslocado do objeto, o avô melancólico do poeta tísico idealiza a

própria morte. “Calmado o vento, o lume”, a visão da perda do objeto amado, o poeta

bendiz, agora envergonhado, “esse amor, avô do meu...” Surge aqui, portanto, a ideia de

uma herança tísica, ou ainda, da herança melancólica. O amor tísico do poeta é “fruto

sem cuidado” que “inda verde apodreceu”. Não é dado ao amor tísico o tempo de

amadurecer.

114

FREUD, 1992. p. 137.

65

A capa de A cinza das horas é reveladora no sentido desse jogo de mostrar e

esconder que o poeta encena. Ora a herança se esconde cifrada nos elementos do Leão e

do Carneiro, já citados aqui, ora ela se revela, como em “Cartas de meu avô”. Há, no

vocábulo “envergonhado”, o peso de um estigma que acompanha o tísico, não apenas

aquele apresentado por Antonio Nobre em carta a Montalvão, mas também a confissão

de uma vergonha pelos versos de circunstância e desabafo.

Apesar da circunstância e do desabafo serem, para o poeta, motivo de demérito,

a forma com que este constrói a relação com a sua história e a sua biografia é

sofisticada. Observe-se o verso “fruto sem cuidado/Que inda verde apodreceu”. É esta a

qualidade de fruto prematuramente apodrecido que o poeta confere à sua herança, à sua

história, em “Cartas de meu avô”. Característica também que carrega extrema ânsia, no

sentido de algo que, não bem teve o tempo de pronto, já apodrece115

. Ao investir a sua

teatralidade em elementos da história pessoal de seus avós, o poeta reconta a sua própria

ânsia. Sob este aspecto, os versos de “Cartas de meu avô” não deixam de formar um

importante espelho para o poeta tísico.

Um elemento importante no poema, que talvez fique escondido da recepção do

leitor tísico das cartas dos avós, é a própria chuva. Apesar de sorrir enternecido, o poeta

tísico entra em contato com um conteúdo que se assemelha à natureza mesma de sua

tristeza: “chuva que cai lá fora”, primeiro mansamente, depois melancolicamente,

parece deixar extravasar a verdadeira reação interior (do “menino que não quer morrer”

de “Versos de natal”). Entretanto, seu sorriso, já em A cinza das horas, anuncia que a

tristeza é acompanhada de uma relação íntima com a natureza (lembremos dos versos

“Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta./Cada sentido é um dom divino”, de “À sombra das

araucárias”.) A paisagem natural, a chuva que cai em pingos glaciais associada à carta

(sua própria cultura familiar), dá ao poeta tísico a sublime comoção e, mais tarde, um

conhecimento de si que transformará essa tristeza em felicidade tísica.

115

Notemos a semelhança entre o fruto apodrecido prematuramente e o verso de “Pneumotórax”: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.

66

5.2. O descanso na morte

FELICIDADE

A doce tarde morre. E tão mansa

Ela esmorece,

Tão lentamente no céu de prece

Que assim parece, toda repouso,

Como um suspiro de extinto gozo

De uma profunda, longa esperança,

Que, enfim cumprida, morre, descansa.

E enquanto a mansa tarde agoniza

Por entre a névoa fria do mar

Toda a minh’alma foge na brisa

Tenho vontade de me matar!

Oh, ter vontade de se matar...

Bem sei que é cousa que não se diz.

Que mais a vida pode me dar?

Sou tão feliz!

- Vem, noite mansa...116

Pensemos no poeta tísico como pintor de paisagens. Seus quadros são

executados de acordo com sua subjetividade e interioridade tísica. A respeito de

quadros, Merleau Ponty observa que

o mundo do pintor é um mundo visível, tão somente visível, um mundo quase louco,

pois é completo sendo, no entanto, apenas parcial. A pintura desperta, leva à sua

potência um delírio que é a visão mesma, pois ver é ter à distância, e a pintura

estende essa bizarra posse a todos os aspectos do ser, que devem de algum modo se

fazer visíveis para entrar nela.117

116

BANDEIRA, 1993. p. 108 117

MERLEAU-PONTY, 2013. p. 17.

67

Ainda que o poeta tísico não se torne visível plenamente em seus poemas, e

Marx Ernst diga que “o papel do poeta (...) consiste em escrever sob o ditado do que se

pensa, do que se articula dentro dele”118

, tornemos esse pensamento concreto na

paisagem. Em “Temas e voltas”, o poeta revela um atrelamento entre pensamento e

paisagem:

Mas para quê

Tanto sofrimento

Se o meu pensamento

É livre na noite?

O pensamento a que Marx Ernst faz menção pode se associar à paisagem

(“noite”). É nesta liberdade de pensamento dos versos do poeta tísico que se construirá,

paulatinamente, o que chama aqui por felicidade tísica, já observada no sorriso

enternecido de “Cartas de meu avô”.

Outro dado interessante no poema é a tentação ao suicídio. A paisagem suscita

no sujeito um desejo de morte: “E enquanto a mansa tarde agoniza/ Por entre a névoa

fria do mar/ Toda a minh’alma foge na brisa/ Tenho vontade de me matar!”. As

ocorrências dessa ideia de suicídio são múltiplas na obra de Manuel Bandeira. Em “O

último poema”, de Libertinagem: “A paixão dos suicidas que se matam sem

explicação”; em “Antologia”, de Estrela da tarde: “A vida/ não vale a pena e a dor de

ser vivida”; e em “Poema tirado de notícia de jornal”, de Libertinagem, surge como

dúvida. Neste último poema, podemos observar o suicídio enquanto um fenômeno

social (notícia de jornal), sempre envolto por ares de mistério.

Observemos um aspecto social do suicídio atendo-nos ao impulso produtivo

desproporcional que a sociedade impõe ao indivíduo. Segundo Walter Benjamin:

as resistências que a modernidade opõe ao impulso produtivo natural ao homem são

desproporcionais às forças humanas. Compreende-se que ele se vá enfraquecendo e

busque refúgio na morte. A modernidade deve manter-se sob o signo do suicídio,

selo de uma vontade heróica, que nada concede a um modo de pensar hostil.119

118

Apud MERLEAU-PONTY, 2013. p. 18. 119

BENJAMIN, 1994. p. 74.

68

Segundo Albert Camus, “há muitas causas para um suicídio e nem sempre as

causas mais aparentes foram as mais eficazes. O que desencadeia a crise é quase sempre

incontrolável. Os jornais falam com frequência de ‘aflições íntimas’ ou de ‘doença

incurável’.”120

Bandeira, em crônica intitulada “Suicidas” de Flauta de papel121

, relata a

exploração em torno do assunto:

Uma das cousas que mais me causam horror e mais repugnância na vida é a

exploração sentimental em torno dos suicidas. Um homem obscuro pode matar-se

com relativa discrição: basta que não explique nada. No dia seguinte o noticiário

policial dirá, se se trata de uma infeliz mulherzinha do Mangue: Título da notícia:

"Ateou fogo às vestes" e a seguir: "Desiludida da vida a nacional Palmira da

Conceição etc.". Seis linhas no máximo e pronto. Se, porém, o homem é conhecido,

sobretudo se tem a desgraça de ser poeta lírico, se possui amigos afeiçoados cuja

alma floresce a doce flor da piedade, à porquíssima e cabotiníssima doce flor da

piedade, então vereis! Sob pretexto de honrar o morto exibe-se sem o menor recato

uma compaixão mil vezes mais ultrajante do que as dores que foram os móveis do

suicídio: a vida mais íntima do morto é entregue á curiosidade pública: não lhe

poupam nem o instantâneo atroz do cadáver em pijama.

O poeta ainda aconselha: “um homem inteligente e discreto tem que se matar

como quem não quer. Ele tem que organizar uma espécie de sabotage muito bem

disfarçada para que os próprios amigos não percebam nada.”122

. Acredita-se que, para o

poeta, não seja necessário tornar pública a angústia do sujeito através de cartas e

manifestações públicas. Para ele, este tipo de manifestação, de ideação suicida através

da escrita, seria o mesmo que escrever “carta de gostoso”123

, dar ao outro a importância

de ter sido culpado pela sua morte. O poeta que quereria seu último poema como “A

paixão dos suicidas que se matam sem explicação”, possui, portanto, uma atitude

bastante coerente entre crônica e poesia. Matar-se torna um fetiche curioso assim como

dar às vistas a angústia do poeta. Mais tarde, em “Canção do suicida”, de Estrela da

tarde, o poeta revela uma espécie de curiosidade com os meios e fins do suicídio:

120

CAMUS, 2016. p. 20. 121

BANDEIRA, 2009. p. 787. 122

BANDEIRA, 2009. p. 788. 123

BANDEIRA, 2009. Não sabem o que é carta de gostoso? – “Eu gostava muito dele e no principio

pensei até em me matar! Mas depois disse comigo “pra quê?” pra em cima de tudo ele tirar carta de

gostoso às minhas custas? Não vê!”. Está aí o que é carta de gostoso.”

69

Não me matarei, meus amigos

Não o farei, possivelmente

Mas que tenho vontade, tenho

Tenho, e, muito curiosamente

Com um tiro. Um tiro no ouvido

Vingança contra a condição

Humana, ai de nós! sobre-humana

De ser dotado de razão124

A ideia de mostrar ao leitor como (“com um tiro/Um tiro no ouvido) e com quê

finalidade (“Vingança contra a condição/Humana, ai de nós! sobre-humana”) se mataria

constitui uma teatralidade importante do poeta tísico-melancólico.

Apesar de, em “Canção do suicida”, o poeta se dê às vistas imaginando os

caminhos do seu suicídio, em “Poema tirado de notícia de jornal”, a falta de explicações

a que levaram o possível suicídio de João Gostoso, intriga o leitor mais desavisado. A

lição da alegria secreta de João Gostoso, que bebe, canta, dança antes de sua morte é um

tema que perpassa toda a obra do poeta de “Preparação para a morte”.

Em “Lua nova”, de Opus 10, lemos: “todas as manhãs o aeroporto em frente me

dá lições de partir”. O escapismo que se observa em Vou-me embora pra Pasárgada é

também uma tentativa de se esquivar da ocorrência biográfica através da ficcionalização

de um personagem tísico que, paulatinamente, vai aceitando a sua morte.

Voltemos a “Felicidade”, de O ritmo dissoluto. Os versos deste poema, ao

contrário dos versos resignados à condição humana de “Canção do suicida”, possuem

uma explicitamente, uma culpa (“Oh, ter vontade de se matar.../Bem sei que é cousa que

não se diz.”.

Observemos as relações entre o título do poema (“Felicidade”) e a contemplação

da paisagem pelo sujeito. Se, em “Cartas de meu avô” a melancolia se expressa na

insistente chuva; em “Felicidade”, a tarde que morre125

(tão mansa, ela esmorece) é um

índice do próprio langor do indivíduo tísico perante a vida. O tempo passa. A tarde vai,

pouco a pouco, se tornando noite, A sua alma foge na brisa, na névoa fria do mar. Toda

a simplicidade dessa paisagem (“Que mais a vida pode me dar?”) se transforma em

felicidade (“Sou tão feliz!”). O sujeito tísico clama pela chegada da noite (“-Vem, noite

mansa...”. Lembremos aqui a felicidade do cantar, dançar, beber de João Gostoso

(“Poema retirado de notícia de jornal”) e a falta de indícios objetivos, quase uma

124

BANDEIRA, 1993. p. 252. 125

Já observada por Starobinski e Freud em seus ensaios sobre melancolia como o momento do dia em que o sujeito é atacado pela angústia e pela melancolia.

70

investigação estéril, do motivo da sua morte. O poema de Libertinagem e este,

publicado em O ritmo dissoluto revelam um poema feliz apesar da trágica condição

humana.

Ser, portanto, “dotado de razão”, tal como os versos de “Canção do suicida”

revelam, é também ter consciência da efemeridade da sua própria existência na

efemeridade da paisagem. Kierkegaard em O conceito de angústia observa que

“angústia pode-se comparar com a vertigem”. E ainda: “Aquele cujos olhos se

debruçam a mirar uma profundeza escancarada sentem tontura. Mas qual é a razão? Está

tanto no olho quanto no abismo.”126

. A vertigem, a angústia do poeta tísico está, tanto

na passagem do tempo na natureza, quanto na sua própria efemeridade. Apesar disso, o

poeta tísico parece captar na sua patologia o traço de um morrer mansamente, sem

preocupações, sem angústias. É possível que este suicídio angustiante, mas consciente,

esteja ligado ao retorno a inconsciência da natureza.

Este (auto)retrato da tarde que esmorece, de uma morte mansa em “Felicidade”

não acompanha a mesma agonia de poemas como “D. Juan” e “Volta”. Nestes, se

expressa a angústia máxima da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.

Ao contentar-se com a morte, ao preparar-se para ela (“lavrado o campo, a casa

limpa /a mesa posta,/ com cada coisa em seu lugar.”), o poeta poderá dizer: “vem, noite

mansa...”, percebendo em si, paulatinamente, o crescimento de um saber alegre.

126

KIERKEGAARD, 2011. p. 67

71

5.3. Tísico, sob o céu, no ritmo.

SOB O CÉU TODO ESTRELADO

As estrelas, no céu muito límpido, brilhavam, divinamente distantes.

Vinha de caniçada o aroma amolecente dos jasmins.

E havia também, num canteiro perto, rosas que cheiravam a jambo.

Um vaga-lume abateu sobre hortênsias e ali ficou

[luzindo misteriosamente.

À parte, as águas de um córrego contavam a eterna história sem começo nem fim.

Havia uma paz em tudo isso...

(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de Haydn.)

Tudo era tão tranquilo... tão simples...

E deverias dizer que foi o teu momento mais feliz.127

Publicado em O ritmo dissoluto, “Sob o céu todo estrelado” é um exemplo de

como a natureza se mistura à ótica do poeta tísico e se torna um terceiro elemento. Há a

representação de um espaço bucólico: a caniçada, o aroma amolecente dos jasmins, as

rosas. Voltemos à ideia do cheiro de “À sombra das araucárias” em A cinza das horas,

pelo qual o indivíduo retornaria à sua natureza primordial. Há também a representação

da fauna (“vagalume”) nesse retorno (SCHILLER, 1991).

Tudo isso leva o sujeito à sensação de retorno ao momento original. Lembremos

da “revelação primeira da vida!” em “O espelho”, da mesmo livro. Se, em “Felicidade”,

a revelação se dá através da ideia de suicídio, em “Sob o céu todo estrelado” ela surge

por meio de “uma história, sem começo, nem fim” que as águas contam.

Há algo curioso no verso “(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de

Haydn)”. A expressão “lá dentro” alude a um ritmo tanto das águas, como do adágio do

compositor austríaco. Ritmo, segundo Wisnik128

:

A onda sonora é um sinal oscilante e recorrente, que retorna por períodos (repetindo

certos padrões no tempo). Isto quer dizer que, no caso do som, um sinal nunca está

só: ele é a marca de uma propagação, irradiação de frequência.

127

BANDEIRA, 1993. p. 116. 128

WISNIK, 1989. p. 19.

72

Para dizer isso, podemos usar uma metáfora corporal: a onda sonora obedece a um

pulso, ela segue o princípio da pulsação. Bem a propósito é fundamental pensar aqui

nessa espécie de correspondência entre escalas sonoras e corporais com as quais

medimos o tempo. Porque o complexo corpo/mente é um medidor frequencial de

frequencias. Toda nossa relação com os universos sonoros e a música passa por

certos padrões de pulsação somáticos e psíquicos, com os quais jogamos ao ler o

tempo e o som.,

Portanto, ao lermos o tempo e o som, utilizamos padrões de pulsação somáticos

e psíquicos. Entenda-se aqui o primeiro (somático) enquanto o pulso natural (corporal) e

o segundo (psíquico) enquanto o pulso (cultural) do homem129

.

O ritmo das águas, naturais como o corpo humano, tenderia, portanto a ser um

ritmo inconsciente do tempo. Vejamos que as águas do córrego “contavam a eterna

história sem começo nem fim”. O que pacifica as angústias do sujeito (“Havia uma paz

em tudo isso”). De forma diferente, o ritmo do adágio seria construído, por um

compositor (Haydn), portanto um ritmo consciente do tempo, cultural.

Apesar dessa diferenciação entre consciência e inconsciência nos ritmos da água

e do adágio, o poeta prevê uma relação entre os dois.

À parte, as águas de um córrego contavam a eterna história sem começo nem fim.

Havia uma paz em tudo isso...

(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de Haydn.)

A paz é o que nivela o ritmo construído pelo homem (adágio) e o ritmo natural

(águas do córrego). Com isso, o poeta assaltado pela angústia, propõe, não uma

vingança contra a condição humana(...)/De ser dotado de razão”, mas uma reflexão

sobre a paz que existe na inconsciência de si.

Não querendo encarar essa inconsciência de si como a morte, como em “Canção

do suicida”, o poeta parece voltar ao ritmo primordial da natureza. Segundo Octavio Paz

em O arco e a lira130

:

129

Wisnik observa que “um teórico do século XVIII sugeria que a unidade prática do ritmo musical, o padrão regular dos andamentos, seria “o pulso de uma pessoa de bom humor, fogosa e leve, à tarde”. WISNIK, 1989. p. 19. 130

PAZ, 2012. p. 64

73

Todo o ritmo é sentido de algo. Então, o ritmo não é exclusivamente uma medida

vazia de conteúdo, mas uma direção, um sentido. O ritmo não é medida, é tempo

original. A medida não é tempo, é maneira de calculá-lo. Heidegger nos mostrou que

toda a medida é uma “forma de tornar presente o tempo”. Calendários e relógios são

maneiras de cadenciar nossos passos. (...) O tempo não está fora de nós, nem é algo

que passa diante dos nossos olhos como os ponteiros do relógio: nós somos o tempo,

não são os anos que passam, mas nós que passamos.

Portanto, por trás da harmonia do adágio de Haydn há um ritmo, um pulso tão

semelhante às águas do córrego. É neste ritmo que o sujeito se observa. O uso dos

parênteses, em “(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de Haydn.)”, mostra

que, na interioridade do sujeito (consciente) há uma interioridade rítmica (inconsciente),

atingível seja através da música ou do rio.

Paz ainda afirma que “o ritmo provoca uma espera, um desejar”131

. O desejar do

sujeito tísico é sempre exacerbado, embora o objeto do seu desejo nem sempre seja

distinguível, e, portanto, o desejo se torne melancolia (pensamos aqui em Freud e

Starobinski).

Outro aspecto importante é a ideia de uma “história sem começo nem fim”.

Angustiante e, ao mesmo tempo, apaziguadora das visões fatalistas da vida (tal como “a

vida que poderia ter sido e que não foi”). A metáfora da água é importante nesse

sentido. Neste poema, a água se vê livre de qualquer ideia somática da tísica ou das

ideias de lágrimas como em “Versos escritos n’água”. A água é associada à ideia de

história. Desde a antiguidade, a água é um elemento importante no pensamento

filosófico. Heráclito observa um aspecto do elemento bem semelhante à expressão

“história sem começo nem fim”132

:

Só vejo o devir. Não vos deveis enganar! É à vossa vista curta e não à essência das

coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da

evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas

até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da

primeira vez. 133

.

131

PAZ, 2012. p. 64. 132

Esse sentido de eternidade é observado também no poema Infância de Carlos Drummond de Andrade: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo/Minha mãe ficava sentada cosendo./Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras/lia a história de Robinson Crusoé./Comprida história que não acaba mais. Drummond, 1967. p. 53 133

Heráclito apud NIETZSCHE, 1987. p. 10.

74

A mesma ideia de eterno retorno de Heráclito é recuperada por Nietzsche, se

expressa no poema “O rio”, de Belo Belo:

Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite

Não temer as trevas da noite

Se há estrelas nos céus, refleti-las

E se os céus se pejam de nuvens,

Como o rio as nuvens são água

Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranquilas134

A ideia de “ser como o rio que deflui” parece ter sido já expressa na

tranquilidade com que o indivíduo ouve a “história sem começo nem fim” contada pelas

águas. Antes, em “Trucidaram o rio”, de Estrela da manhã, o poeta observa que “a água

não morre”:

A água não morre

A água que é feita

De gotas inermes

Que um dia serão

Maiores que o rio

Grandes como o oceano

Fortes como os gelos135

Voltemos à problemática do ritmo, a imagem das águas definem um ciclo, ou

melhor, um “vir a ser/devir” incessante que é, a um só tempo, análoga e apaziguadora

da ideia de morte. Retomaremos a ideia de um ritmo apaziguador da angústia diante

morte em seção posterior.

Publicado em O ritmo dissoluto, “Sob o céu todo estrelado” oferece-se como a

extensão de um pensamento filosófico do poeta tísico sobre si mesmo e a natureza

humana, tão evanescente, quanto permanente.

134

BANDEIRA, 2009. p. 188 135

BANDEIRA, 1993. p. 159.

75

5.4. Um sorriso irrompe na paisagem

UM SORRISO

Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto.

A sombra já enoitava as moitas. A umidade

Aveludava o musgo. E tanta suavidade

Havia, de fazer chorar nesse sol-posto.

A viração do oceano acariciava o rosto

Como incorpóreas mãos. Fosse mágoa ou saudade,

Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.

– Foi então que senti sorrir o meu desgosto...

Ao fundo o mar batia a crista dos escolhos...

Depois o céu... e mar e céus azuis: dir-se-ia

Prolongarem a cor ingênua de teus olhos...

A paisagem ficou espiritualizada.

Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia

Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada...

Em “Um sorriso”, de A cinza das horas, observamos novamente a natureza em

exposição através do olhar da persona tísica. A tarde retorna semelhante à “Cartas de

meu avô”, “Felicidade” e “O espelho”.

O “poente de agosto”, mês considerado agourento pela cultura popular, aparece

também em “Peregrinação”136

, de Estrela da tarde, no qual, olhada a mulher amada, se

de perfil ou de frente, toma as feições de “abril” ou de “agosto”.

No poema supracitado, “agosto” forma um par, uma rima com “desgosto”. A

paisagem aqui é, conforme o pensamento de Merleau-Ponty, criada pela interioridade

do poeta, como um pintor ao fazer seu quadro. Entretanto, o verbo “haver” no par de

136

BANDEIRA, 1993. p. 241.

76

versos – “e tanta suavidade/ havia de fazer chorar nesse sol-posto” – remonta a sua

interioridade tísica.

A paisagem (“viração do oceano”) acaricia o rosto, é tátil. A liquidez do oceano

faz pensar se o fato de o oceano a acariciar o rosto não é senão prefiguração de

lágrimas, tal como, mais referencialmente, aparece em “Versos escritos n’água”. Agora,

as lágrimas parecem ter sido transformadas em diálogo com a paisagem, ou antes,

tornaram-se lágrimas de um choro contido na interioridade do sujeito tísico. A “mão

estúpida” e anônima de “Gesso”, que, inadvertidamente derruba e parte a estatuazinha,

tornam-se, no plural, “mãos incorpóreas” em “Um sorriso”. A paisagem, portanto,

através de uma metáfora tátil, expressa a sublime comoção, para recorrermos outra vez

a Schiller.

Diante da tenra paisagem, o poeta tísico pinta um “tu”, personagem de si

mesmo, como que anestesiando a si próprio: “tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade”.

Vale a pena, aqui, pensar brevemente na distinção entre os verbos “olhar” e “ver” nestes

versos. O olho humano, enquanto vidente e visível, conforme Merleau-Ponty, torna o

próprio corpo algo que se conta “entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do

mundo”137

. De certa maneira, o poeta tísico se coisifica ao identificar na ação do sujeito

(“tu”) do quadro, um olhar “sem ver”. Há, portanto, nessa estrofe, uma consciência de si

enquanto matéria do mundo, nivelada aos vales, à cidade.

Na estrofe seguinte, percebemos uma mudança na pontuação do poema, já

observada anteriormente em “Pneumotórax” e “Desalento”:

A viração do oceano acariciava o rosto

Como incorpóreas mãos. Fosse mágoa ou saudade,

Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.

– Foi então que senti sorrir o meu desgosto...

Este é o ponto de virada do poema. Antes, tudo na paisagem sugeria um “sofrer”

(agosto, cair da tarde, viração do oceano acariciava o rosto/com incorpóreas mãos). O

verbo “haver”, em “e tanta suavidade/ havia de fazer chorar nesse sol-posto”, torna o

sofrimento apenas sugestão, no choro contido, na viração do oceano. O sujeito, em

137

MERLEAU-PONTY, 2013. p. 14.

77

discurso direto, vira a si mesmo, ou antes, toma a voz do personagem preenchido pelo

“tu”. A rima entre “agosto” e “desgosto” acirra ainda mais a ideia de uma continuidade

entre um “sofrer” e um “sorrir”.

A paisagem, antes corporificada nas lágrimas contidas do sujeito, espiritualiza-

se, torna-se “alma” de “uma nova poesia”. O último verso do poema revela três traços

importantes por meio dos versos “descer”, “subir”, “cantar”.

“Descer do céu”, ou seja, adquirir a coloquialidade que só em 1930

(Libertinagem) ganharia força, estar imediatamente, como Merleau-Ponty diria, “entre

as coisas”. Essa “nova poesia”, já em 1917, dava-se a ver, menos na forma que nas

sugestões de seu conteúdo.

Em “Subir no mar”, observamos que, se esta nova poesia ascende, sua ascensão

não é tão absoluta. Ainda se mantém no plano terrestre.

Por fim, e talvez o mais importante de toda essa dicotomia entre o “descer” e

“subir” é expressa através do “cantar” na estrada. Pensemos em “estrada” como um

percurso poético empreendido do primeiro ao último livro do poeta: uma nova poesia,

conferindo nova vida ao poeta tísico.

“Um sorriso” é um poema importante, justamente porque a partir dele pode-se

pensar no quanto A cinza das horas é injustamente apontado como um livro de poemas

mais melancólicos e afeitos à tristeza (“o gosto cabotino da tristeza”). Isso não significa

afirmar uma ausência dos traços de melancolia, mas observar que, em determinados

pontos da obra, não necessariamente cronológicos, há uma transformação da tísica em

felicidade. Basta observarmos a imagem “– foi então que senti sorrir o meu desgosto...”.

78

6. FELICIDADE DE TÍSICO

Etorre Finazzi-Agrò em ensaio intitulado “O poeta inoperante”, observa:

Não é possível imaginar um autor mais distante de Bandeira do que Friedrich, e

todavia esta alegre consciência gerando-se na inconsciência da doença é o que de

mais típico parece-me poder descobrir no poeta brasileiro – que, aliás, apostila à sua

maneira o filósofo de Rocken, na fulmínea prosa de ‘Nietzschiana’.138

Na presente seção, faremos uma análise dessa felicidade construída, aqui

denominada Bonheur lyrique. Antes de prosseguirmos com a análise dos poemas,

observemos o próprio texto de Nietzsche acerca do “saber alegre”, da “gaia ciência”.

Tomando o termo da poesia provençal139

, o filósofo alemão constrói a ideia de que o

intelecto, o estar consciente de algo, na sociedade europeia de sua época, era o mesmo

que “levar algo a sério”.140

Inversamente, para os poetas provençais, a alegria parecia

vinda de uma forma de construção poética. Em A Gaia Ciência, Nietzsche desconstrói a

ideia de “levar à sério”. Segundo o filósofo, “onde há riso e alegria, o pensamento nada

vale”. É justamente a isso que Bandeira se dispõe, sobretudo em Libertinagem, mas já

em teste nos livros anteriores. O poeta tísico escolhe para si a face de um poeta que

“toma alegria”, sem, é claro, esquecer dos momentos em que teve de “tomar tristeza”.

Observemos mais detalhadamente nos poemas a construção dessa felicidade

nietzschiana, deste “saber alegre”.

138

FINAZZI-AGRÒ. p. 243. 139

NIETZSCHE, 1992. p. 175. Em “Além do bem e do mal”, o filósofo alemão observa: “Daí se compreende por que razão o amor como paixão é nossa especialidade europeia. Tem de ser necessariamente de origem aristocrática. Como se sabe foi inventado pelos poetas-cavaleiros provençais, esses magníficos e engenhosos homens de “gaio saber” aos quais a Europa deve tanto, e quase a sua própria existência. p.189. 140

NIETZSCHE, 2012. p. 192.

79

6.1 Nietzschianamente tísico

NIETZSCHIANA

– Meu pai, ah que me esmaga a sensação do nada!

– Já sei, minha filha... É atavismo.

E ela reluzia com as mil cintilações do Êxito intacto.141

Comecemos pelo poema a que Finazzi-Agrò faz menção em seu ensaio,

“Nietzschiana”, de forma a explicarmos a filiação entre o filósofo e o poeta mais

detalhadamente. Não há um niilismo ou uma “morte de Deus”, sequer uma filiação

aparente ao filósofo na poesia de Manuel Bandeira. Ao contrário, são diversas as

alusões a Cristo enquanto potência poética, a começar pela capa de A cinza das horas,

mas também em poemas como “A canção de Maria” ou “Oração a Terezinha do menino

Jesus”. Em “Preparação para a morte” lemos que “tudo é milagre”. O próprio epíteto

construído pela crítica tem uma face relisiosa, cristã: “São João Batista do

Modernismo”. Ainda poderíamos acrescentar a imediata correlação entre o menino

Jesus e a estrela d’alva que aparece em diversos poemas.

Portanto, a poesia de Manuel Bandeira não se afasta muito de uma leitura da

religiosidade como potência poética, o que, por sinal, ainda é carente de exploração

mais atenta da crítica. Tudo isto poderia dar sinal de um poeta extremamente avesso à

filosofia de Friedrich Nietzsche. Não é sem alguma surpresa, portanto, que encontramos

em Estrela da manhã o poema “Nietzschiana”.

O título pode ser lido como predicado atrelado à filha. Ou seja, ela seria

“nietzschiana”, conclusão deduzida a partir de sua declaração ao pai. O verso mostra o

inverso da acumulação de “Canção do vento e da minha vida”, de Lira dos

cinquent’anos, no qual a vida fica “cada vez mais cheia de tudo” sob a ação de um

vento ceifador.

Observe-se que a nulidade na “sensação do nada” no poema é associada a uma

doença: o atavismo, que, segundo o Dicionário Houaiss, é a “reaparição em um

141

BANDEIRA, 1993. p. 162,

80

descendente de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram latentes por

várias gerações.”.

Lembremo-nos de “Carta de meu avô”, quando o poeta “bendiz, envergonhado,

esse amor, avô do seu...”; “do seu fruto sem cuidado que inda’verde apodreceu.”.

Apesar do apodrecimento e da herança de tísico (do ciúme, da dor, da visão da morte), o

poeta revela que “acalmado o vento, o lume brilhou, mais puro e mais forte”.

A força “da doçura, da poesia, da música, das mulheres e crianças, de Jesus – o

cordeiro de Deus” de “Ariesphinx” pode ser lida tanto pela lente da religião, quanto pela

lente da poesia do filósofo alemão. Acalmado o vento, o mau gênio, o poeta tísico de

“Nietzschiana” pode perceber o seu padecimento e, capturar nele, a necessária para

encenar, numa tragicidade irônica, a sua contingência biográfica. A partir da angústia

declarada da filha ao pai no poema, o poeta dialoga com o atavismo, a herança. Tal

herança nos lembra da fruta apodrecida mesmo antes de amadurecer de “Cartas de meu

avô”. Para Nietzsche, a consciência desta herança é importante, uma vez que o

indivíduo só toma consciência de si através da consciência da natureza comunitária e

gregária:

O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais

consciente de si, apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência

de si – ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. – Meu pensamento, como se vê, é

que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano,

mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária.142

O Bandeira pós-Libertinagem, conforme Arrigucci Jr. observa, “liberto do gosto

cabotino da tristeza”, não é senão um poeta consciente daquilo que nele é natureza

comunitária e gregária. Dessa consciência, ainda tísica, mas conformada, por ser

herança e atavismo, surgem poemas como “Na rua do Sabão”, “Evocação do Recife” e

as tantas canções do beco.

Perceba-se também que esta consciência de si através da existência do sujeito no

mundo não é relegada apenas aos livros pós-Libertinagem, visto que o poeta se

transmuta em personagens como D. Juan, Antonio Nobre, Aracne e aparece na própria

dramatização de “Nietzschiana”. O espelho de si, ou ainda, sua tomada consciência de

si, é também conhecimento do mundo.

142

NIETZSCHE, 2012. p. 223.

81

Talvez por essa tomada de consciência de si e do mundo, o poeta tísico sempre

retorne, ainda tísico, porém distinto do sujeito no espelho, como nos poemas

supracitados “A Aranha”, “D. Juan” e “A Antonio Nobre. É a partir do momento em

que o poeta toma contato com o morro do Curvelo que o seu olhar e a sua consciência

tísicas se modificam143

.

Quanto ao morro do Curvelo, o meu apartamento, o andar mais alto de um velho

casarão quase de em ruína, era, pelos lados dos fundos, posto de observação da

pobreza mais dura e mais valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de

convívio com a garotada sem lei, nem rei que infestava as minhas janelas,

quebrando-lhes às vezes as vidraças, mas restituindo-me de certo modo o meu clima

de meninice na Rua da União, em Pernambuco.144

A “sensação do nada”, da condição humana da angústia diante do nada é, ainda,

uma condição para a sua própria poesia, segundo o poeta, feita de “pequeninos nadas”.

É a partir destes pequeninos nadas que o sujeito é capaz der “reluzir com as mil

cintilações do Êxito intacto”. Esse verso obscuro consegue ser interpretado de diversas

formas.

A primeira delas é justamente o fato de que “mil cintilações” sugere também a

ideia de “o brilho de mil estrelas”. Não estrelas enquanto metáforas do poeta que “quer

a Estrela da Manhã”. Aqui, não há a relação entre o sublime e o baixo, estrela quer dizer

apenas estrelas, fisicamente falando. Segundo a física quântica, nossos corpos, assim

como as outras matérias no universo são produtos da modificação milenar de matéria

cósmica. Isto, significa dizer, segundo que somos “poeira das estrelas”145

. A

materialidade do nosso corpo, a existência do ser precede a sua essência146

Não

entendamos “essência” como um a matéria do corpo, mas a psicologia individual e

comunitária.

Portanto, no verso “E ela reluzia com as mil cintilações do Êxito intacto”, o

poeta mostra que, apesar do “atavismo” e da herança genética, de se estar subjugado a

um céu todo estrelado, no princípio divino, o indivíduo tem certa autonomia em si

mesmo. Ao reluzir as estrelas e, ao mesmo tempo, ser filha do atavismo, a personagem

143

Observe-se a citação de Davi Arrigucci na página 10 deste estudo. 144

BANDEIRA, 2012. p. 52 145

A frase foi publicamente dita pelo astrônomo Carl Sagan. 146

Uso livremente. a máxima de Jean Paul Sartre para explicar a libertação do “atavismo” que se opera no último verso do poema.

82

toma integralmente a sua subjetividade e sua consciência do mundo, conforme

observado por Nietzsche na citação acima.

A segunda interpretação é a partir semelhança entre esse “Êxito intacto” e a

tranquilidade do fim de “Sob o céu todo estrelado”. Neste último, já analisado aqui, “as

estrelas, no céu muito límpido, brilhavam, divinamente distantes”. Em “Nietzschiana”,

as “estrelas” aparecem como “mil cintilações”. Apesar de ainda surgirem distantes,

através da luz, têm o sabor de um “Êxito intacto” para o indivíduo. Ainda subjugado

pela providência divina e pela hereditariedade, o indivíduo agora reluz, porque está em

contato mais ameno consigo e com o outro. É a partir da alteridade (a pobreza, as

vidraças quebradas, a nova trinca do Curvelo, as prostitutas) que o poeta tísico toma

consciência de si e consegue suplantar sua própria experiência.

Apesar de toda a herança tísica representada pelo avô de “Cartas de meu avô” e

do atavismo na resposta do pai à filha de “Nietzschiana”, o sujeito tísico parece se

desprender de toda a sua história ou, antes, usa-a como motivo poético, transformada

em felicidade.

Atentemos mais uma vez para a esfinge da capa de A cinza das horas. Parece

que o exercício da teatralidade apontada por Mário de Andrade é também uma forma do

poeta tísico se desprender de toda história, de toda a contingência biográfica, ainda que

obviamente, subjugado por um céu estrelado pleno de designações divinas. No próximo

capítulo observaremos como essa aproximação entre Nietzsche e Bandeira se dá no

plano de música e que implicações ela tem em sua persona tísica.

83

6.2 A bela e triste música.

MADRIGAL MELANCÓLICO

O que eu adoro em ti

Não é a tua beleza

A beleza é em nós que existe

A beleza é um conceito

E a beleza é triste

Não é triste em si

Mas pelo que há nela

De fragilidade e incerteza

O que eu adoro em ti

Não é a tua inteligência

Não é o teu espírito sutil

Tão ágil e tão luminoso

Ave solta no céu matinal da montanha

Nem é a tua ciência

Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti

Não é a tua graça musical

Sucessiva e renovada a cada momento

Graça aérea como teu próprio momento

Graça que perturba e que satisfaz

O que eu adoro em ti

Não é a mãe que já perdi

E nem meu pai

O que eu adoro em tua natureza

Não é o profundo instinto matinal

Em teu flanco aberto como uma ferida

Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.

84

O que adoro em ti lastima-me e consola-me:

O que eu adoro em ti é a vida!147

Não raro encontramos, na poesia de Manuel Bandeira, alusões à música.

Lembremos aqui o quanto a música é um poderoso antídoto para as condições do sujeito

tísico, seja por razão fisiológica ou de espírito cultural148

. A começar pelas referências

explícitas a compositores como Haydn (O Ritmo dissoluto), Schumann e Debussy

(Carnaval), passando por referências a gêneros como a canção e o rondó.

Quanto a este último, ressalte-se que, antes da publicação de “Vou-me embora

pra Pasárgada” o poema passara por alterações que envolviam o título “Rondó do

aporrinhado”.149

Ao nomear o poema desta maneira, o poeta deixaria ver o quanto de

seu próprio tédio melancólico se fazia sentir nos versos. Entretanto, logo o título passou

a ser aquele pelo qual usualmente o conhecemos, súmula do escapismo para uma terra

longínqua, onde o indivíduo poderia viver sem privações.

Passemos à análise de “Madrigal melancólico”, publicado em O ritmo dissoluto.

O madrigal, assim como os poemas referidos acima, é um gênero musical. Segundo o

dicionário Houaiss, uma das definições de madrigal seria “composição poética concisa

que exprime um pensamento fino, terno ou galante e que em geral se destina a ser

musicada”.

Em “Madrigal melancólico”, o sujeito lírico aponta para a “beleza enquanto

conceito”. A beleza a que apenas o indivíduo e só ele, enquanto sujeito, consegue ver no

mundo. A beleza também é “triste”.

Ressalte-se a ideia de uma beleza triste presente, além de “Madrigal

melancólico” também na canção popular brasileira, como em “Samba da benção” de

Vinícius de Moraes e Baden Powell150

, onde a tristeza é um sine qua non para a beleza

do samba.

147

BANDEIRA, 1993. p. 113 148

Lembremos Moacyr Scliar ao afirmar que melancolia não é necessariamente ligada à doença. No caso

de Bandeira, muitas vezes de um zeitgeist que, em ciclos, acomete a humanidade. Ver ainda nossa análise

de “Sob o céu todo estrelado”. 149

BANDEIRA, 1998. p. 48. 150

“Mas pra fazer um samba com beleza/É preciso um bocado de tristeza /É preciso um bocado de

tristeza /Senão, não se faz um samba não” In: “VINICIUS E ODETTE LARA”. Elenco, 1963 Direção e

produção artística: Aloysio de Oliveira. Músicas de Baden Powell e Vinicius de Moraes

85

Ao pensarmos nos poetas provençais do século XII, podemos afirmar que a

canção brasileira se tornou uma “segunda e mais perigosa inocência na alegria, ao

mesmo tempo ingênua e cem vezes mais refinada do que ela pudesse ter sido jamais”151

.

A alegria tísica se expressa em “Madrigal melancólico” por meio de uma suave

interação entre beleza e tristeza, afirmando-se na potência da vida: “O que adoro em ti

lastima-me e consola-me: /O que eu adoro em ti é a vida!”. A afirmação da vida se

encontra também no “Samba da benção”:

A vida é pra valer

E não se engane não, tem uma só

Duas mesmo que é bom

Ninguém vai me dizer que tem

Sem provar muito bem provado

Com certidão passada em cartório do céu

E assinado embaixo: Deus

E com firma reconhecida!

A vida não é brincadeira, amigo

A vida é arte do encontro

Embora haja tanto desencontro pela vida.152

A melancolia do poeta tísico de Manuel Bandeira é “áspera irmã”153

da

melancolia de Vinícius de Moraes. Veja-se aqui que a melancolia de Bandeira tinha ares

de “indicativo de morte”, enquanto que a melancolia de Vinicius parece ser um tanto

mais afirmativa. Apesar disso, em “Madrigal melancólico”, o áspero poeta reafirma a

vida em face da morte dos pais e da irmã. A beleza enquanto conceito é respirada com

ares de tristeza, de um saber-se, inevitavelmente, triste.

Apesar de a canção popular, com Vinícius de Moraes, ter despontado no final da

década de 1950 e início de 1960154

, o “saber alegre” em Manuel Bandeira já se dava às

vistas pelo menos desde Libertinagem (1930). A canção, conforme José Miguel Wisnik

observa possui a peculiaridade de uma gaia ciência.

151

NIETZSCHE apud WISNIK, 2004. p. 218. 152

Carece de fontes na obra publicada do poeta, embora esteja publicado no site oficial do poeta.

Disponível em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/musica/discos/vinicius-e-odette-lara 153

MORAES, Vinicius de, 1976. p. 212. 154

WISNIK, 2004. p. 216.

86

No caso de Bandeira, a música é também um princípio criativo. Música, ressalte-

se aqui, não enquanto performance musical155

, mas enquanto alusão a gêneros musicais

como rondó, canções e cantigas incorporadas em poemas. Em Itinerário de Pasárgada,

o poeta revela:

Maior ainda foi em mim a influência da música. Não há nada no mundo de que eu

goste mais do que de música. Sinto que na música é que conseguiria exprimir-me

completamente. Tomar um tema e trabalhá-lo em variações ou, como na forma

sonata, tomar dois temas e opô-los, fazê-los lutarem, embolarem, ferirem-se e

estraçalharem-se e dar a vitória a um ou, ao contrário, apaziguá-los num

entendimento de todo repouso... creio que não pode haver maior delícia em matéria

de arte.156

Aproximando a filosofia de Nietzsche de Bandeira, o filósofo de Rocken

observa que “a vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um

exílio”157

.

Observamos na seção dedicada a “Sob o céu todo estrelado”, que o ritmo

encontrado no fundo do córrego, “história sem fim, nem começo”, no fundo do adágio

de Haydn é, respectivamente, a inconsciência e a consciência do tempo.

Em “Madrigal melancólico”, a consciência do indivíduo se expressa através da

afirmação da vida (“O que adoro em ti lastima-me e consola-me: /O que eu adoro em ti

é a vida!”. Entretanto, esse tom afirmativo, em Bandeira, é o da “beleza é em nós que

existe/a beleza é um conceito/E a beleza é triste/Não é triste em si/ Mas pelo que há

nela /De fragilidade e incerteza”. O poeta fala a um tu frágil e incerto, possivelmente

sua própria vidência de si próprio. Da beleza que é sua por saber-se frágil e inseguro.

Há um trecho de Garota de Ipanema em que o “poetinha” afirma:

Ah, porque estou tão sozinho

Ah, porque tudo é tão triste

Ah, a beleza que existe

A beleza que não é só minha

Que também passa sozinha158

155

Embora alguns de seus poemas tenham sido musicados. Bandeira é um dos poetas que mais teve

poemas musicados. Dentre eles: “Rondó do Capitão”, “Azulão” e “Trem de ferro”. 156

BANDEIRA, 2012. p. 64. 157

NIETZSCHE apud SAFRANSKI, 2005. Cartas a Peter Gast, Nice, 15 de janeiro de 1888 158

MORAES, 1976.

87

O poetinha sendo um discípulo da poesia de Manuel Bandeira percebe a beleza

não só na sua interioridade lírica (“A beleza que não é só minha/Que também passa

sozinha...”).

A consciência, afora da experiência individual, mas enquanto um natureza

comunitária e gregária do homem é evidenciada tanto na inclinação do “poeta menor”

pela vida cotidiana e mundana, quanto é pelo “poetinha”, Vinicius de Moraes.

Ressalte-se aqui a natureza dos epítetos de cada um na instauração de uma

consciência do mundo. Apesar de se autoproclamarem “poetinha”, “poeta menor”, ou

seja, poetas que estão muito aquém da alta poesia, estes epítetos revelam também poetas

que apreender a sua tristeza, e os seus versos, na beleza efêmera do mundo. Lembre-se,

por fim, que estas características de um sofrer, de um indivíduo incrivelmente sensível

para si e para o mundo são especialmente compartilhadas com a noção de tísico em

Susan Sontag.

6.3 O ritmo e o tísico

EPÍLOGO

Eu quis um dia, como Schumann, compor

Um carnaval todo subjetivo:

Um carnaval em que o só motivo

Fosse o meu próprio ser interior...

Quando o acabei – a diferença que havia!

O de Schumann é um poema cheio de amor,

E de frescura, e de mocidade...

O meu tinha a morta morta-cor

Da senilidade e da amargura...

– O meu carnaval sem nenhuma alegria!

O último poema de Carnaval faz ver um poeta desencantado com a sua própria

poesia. Carnaval acaba sendo um livro de paulatina libertação do “gosto cabotino da

tristeza” que viria a aparecer mais tarde em Libertinagem.

88

Por causa disso, é necessário atentarmos para alguns aspectos de “Epílogo” e de

“Epígrafe”, que, respectivamente, fecham e abrem o mesmo livro:

Ela entrou com embaraço, tentou sorrir, e perguntou tristemente – se eu a reconhecia? O aspecto

carnavalesco lhe vinha menos do frangalho de fantasia do que do seu ar de extrema penúria. Fez por

parecer alegre. Mas o sorriso se lhe transmudou em ricto amargo. E os olhos ficaram baços, como duas

poças de água suja... Então, para cortar o soluço que adivinhei subindo de sua garganta, puxei-a para ao

pé de mim, e com doçura:

– Tu és a minha esperança de felicidade e cada dia que passa eu te quero mais, com perdida volúpia, com

desesperação e angústia...159

A ideia de um “fazer por parecer alegre”, “tentar sorrir”, de “uma aparência

carnavalesca que vem menos do frangalho de fantasia que do ar de extrema penúria” são

elementos de construção de uma alegria determinada pela tristeza. A figura feminina

ainda é vista como “esperança de felicidade”. A cada dia o desejo cresce, “com perdida

volúpia”, “com desesperação e angústia”. Estão aqui todos os elementos do tísico

tradicional observado por Sontag, associados à ideia de angústia de Kierkegaard, ainda

que esse filósofo localize a ansiedade, a angústia primordial do homem em um caráter

religioso, de “pecado original”.

Ao fim de Carnaval, o poeta tísico observa a sua obra como um fracasso, em

analogia com toda a ideia de insucesso160

propagada pelos poemas. O fracasso é

também o centro da afirmação “toda a vida que poderia ter sido e que não foi”. A

ansiedade, a angústia e a melancolia do poeta projetam nos versos a realidade de uma

personalidade que, apesar de não poder conjugar-se à história (“não faço versos de

guerra/não faço porque não sei”), consegue construir para si mesma, a sua própria

narrativa, um “contar de si”, para utilizar uma imagem de João Cabral de Melo Neto.161

Ao escolher Schumann como produção ideal, o poeta tísico se frustra, vendo que

o seu carnaval, “todo subjetivo” – “em que o só motivo/fosse o meu próprio ser

159

BANDEIRA, 1993. p.79. 160

BANDEIRA, 1993. p. 181. Lembremos os versos de “Testamento” de Lira dos cinquent’anos. “Fiz-

me arquiteto? Não pude!/Sou poeta menor, perdoai!” 161

Tomo contar aqui, como nos versos de João Cabral em “Para Selden Rodman, antologista” de Museu

de Tudo (MELO NETO, 1997. p. 83). A partir de uma relação entre e antologista e o poeta, este releva

uma margem de subjetividade, apesar de a crítica insistir em objetividade. Lembre-se o Bandeira disperso

na terceira pessoa de que falo neste estudo. Bandeira, portanto, se conta ao projetar realidades como o

encontro com a mulher de “Epígrafe” e a obra malfadada de “Epílogo”.

89

interior...” – falhara. A falha de “Epílogo” é relevante, uma vez que deixa ver o impasse

entre o que o poeta quer expressar e o que definitivamente ele expressa, tal qual os

versos transpostos de “Versos escritos n’água”.162

A diferença é percebida na morta-morta cor de seus versos em relação ao

carnaval, “cheio de amor”, do compositor alemão. Tenhamos em vista, obviamente, que

a música, conforme observado em “Madrigal Melancólico”, é também um modo de

recuperação da sua natureza primeira, observada por Schiller.

Justapondo os dois poemas, um publicado em O ritmo dissoluto (“Madrigal”),

outro em Carnaval (“Epílogo”), observamos uma variação na relação com a música que

perpassa inclusive a ideia de um ritmo dissoluto, ou seja, decomposto, desfeito. Em

“Madrigal”:

O que eu adoro em ti,

Não é a tua graça musical,

Sucessiva e renovada a cada momento,

Graça aérea como o teu próprio pensamento.

Graça que perturba e que satisfaz.

Se em “O rio” de Belo, belo, o sujeito é “como um rio que deflui”

incessantemente, à maneira de Heráclito e do eterno retorno de Nietzsche, em

“Madrigal” o ritmo, “sucessivo e renovado a cada momento”, parece não significar a

satisfação do sujeito.

A música, associada à gaia ciência, de Carnaval a O ritmo dissoluto passa por

uma transformação crucial. O poeta que se frustra ao não saber compor versos ao modo

como Schumann compõe música. Essa música, toda subjetiva, capaz de expressar seu

interior. O sujeito, entretanto é, ainda, incapaz de se libertar do ritmo imposto.

Observe-se também uma afirmação do próprio poeta acerca da sua surpresa ao

ler um soneto. Acostumado às quadras, Bandeira se sentia suspenso a partir do primeiro

terceto.

162

Há também uma referência ao próprio compositor alemão, visto que, na primeira composição de

Carnaval (“Préambule”), há um ritmo altivo, solar, tal como “Bacanal”, mas logo esse ritmo é

entrecortado por momentos em que o ritmo parece desfalecer. Vê-se, portanto, não tanto uma

diferenciação entre o poeta e o compositor, mas um desejo de ser à maneira de Schummann, uma

inspiração musical. Não nos atenhamos a este aspecto, apesar de ser bastante curioso e digno de estudo

comparativo.

90

Lembro-me ainda muito bem da estranheza, do mal-estar que me dava quando a

poesia era soneto e eu, até então só afeito ao ritmo quadrado, me sentia

desagradavelmente suspenso ao terceiro verso do primeiro terceto. A aceitação da

forma soneto foi em poesia a minha primeira vitória contra as forças do hábito.163

Apesar disso, a força do hábito, afinal, é o que vai transformar as composições

do bardo em composições mais “subjetivas”, “do seu próprio interior”164

. O objeto

amado do poeta tísico é, em “Epílogo”, transferido para o próprio ideal de poesia e para

algo que necessariamente se perdeu165

. O poeta frustrado de “Epílogo” demonstra uma

coesão deste poema com a ideia da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. O

sujeito tísico, ou antes, melancólico, visto como alguém inoperante166

tentando se

readaptar de todas as formas ao mundo, a poesia ideal.

6.4. Bandeira, amorosamente tísico.

NA RUA DO SABÃO

Cai cai balão

Cai cai balão

Na Rua do Sabão!

O que me custou arranjar aquele balãozinho de papel!

Quem fez foi o filho da lavadeira.

Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.

Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos...

Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.

Ei-lo agora que sobe – pequena coisa tocante na escuridão do céu.

Levou tempo para criar fôlego.

Bambeava, tremia todo emudava de cor.

A molecada da Rua do Sabão

Gritava com maldade:

Cai cai balão!

163

BANDEIRA, 2012. p. 28. 164

Observe-se aqui aqueles resquícios de cantigas que vão sendo assimiladas em poemas como “Na rua do sabão” e “Evocação do Recife”. 165

FREUD, 1992. p. 132. 166

FINAZZI-AGRÒ, 1988. p. 242. "O seu trabalho, a sua 'obra' são, em suma, o resultado dum ininterrupto reequilíbrio, duma 'inoperante' readaptação do sujeito ao mundo e do mundo ao sujeito, tendo-se, ao centro, um eu se deixando laborar pela realidade sem nunca deixar de a elaborar."

91

Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam.

E foi subindo...

para longe...

serenamente...

Como se enchesse o soprinho tísico do José.

Cai cai balão!

A molecada salteou-o com atiradeiras

assobios

apupos

pedradas.

Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais

Ele foi subindo...

muito serenamente...

para muito longe...

Não caiu na Rua do Sabão.

Caiu muito longe... Caiu no mar – nas águas puras do mar alto.167

Passemos a composições que especificam a atitude do “Carnaval sem nenhuma

alegria” diante da frustração da distância do verso ideal. Publicado em O ritmo

dissoluto, “Na rua do sabão” é um exemplo importante de como o poeta tísico

transforma a sua condição, não a clínica mas a poética, em um verso subjetivo e

construído a um só tempo.

O poema faz referência aos meninos do Curvelo. Relembremos Mário de

Andrade, nas palavras de Elvia Bezerra:

O poema “Na rua do Sabão” é da série do Curvelo, inspirado na travessa Cassiano.

A respeito desse poema, Mário de Andrade discordava das palavras do amigo

quando este dizia “Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico”. Não. Para Mário,

“quem faz ‘Na rua do Sabão’ é ‘amorosamente tísico’. Ocorria, nesse momento,

como disse Bandeira, a transição para a afinação poética, é verdade. Mas ocorria ao

mesmo tempo a transição para a alegria, apesar da constante ameaça dos bacilos de

Koch. O que acontecia era que a vida do povo entrava sem pedir licença na poética

bandeiriana.168

167

BANDEIRA, 1993. p. 119 168

BEZERRA, 1995. p. 33.

92

Tal “vida do povo”, conforme Mário observa, não ocorria sem uma figuração de

si mesmo a partir do poema. A começar pelo artifício da colagem e modificação dos

versos da cantiga popular:

Cai, cai, balão

Cai, cai, balão

Aqui na minha mão

[Na rua do sabão]

O ritmo, inalterado, favorecia o retorno à infância do poeta na época em que o

mau gênio, a contingência biográfica não teria ainda tomado conta da sua existência.

Contaminado menos pelo bacilo e mais pela própria nostalgia da eternidade primeira da

infância, o momento em que não se tem consciência da morte, o poeta revive as

cantigas. Bandeira observa, em sua autobiografia:

Verifiquei ainda que o conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira

meninice era o mesmo de certos momentos em minha vida de adulto; num caso e

noutro alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e

que me enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta.169

Portanto, há tanto um retorno a si mesmo quanto um retorno à própria vida

adulta. Tal retorno, apesar de escapar à consciência imediata, pode ser analisado através

do próprio poema.

Após a paráfrase em cantiga, o poema se projeta em um sujeito que arranja um

balãozinho de papel, frágil. O filho da lavadeira, “que tosse muito”, que o confeccionou.

O próprio balãozinho sobe mas “leva tempo para criar fôlego”, “tremia todo”, “mudava

de cor”. A paráfrase parece se introjetar na fala das crianças, obedecendo à cantiga

parafraseada: “A molecada da Rua do Sabão/Gritava com maldade:/Cai, cai, balão”.

O ritmo é dissoluto, alterna-se entre os gritos de “Cai, cai, balão” e a história do

menino “que tosse muito” e construiu o balão. O artefato, enfim, sobe e escapa das

mãos das crianças. Vai subindo, “serenamente”, “como se enchesse o soprinho tísico do

José”.

São inúmeras as tentativas de fazê-lo, enfim, cair na rua: “a molecada salteou-o

com atiradeiras/assobios/apupos/pedradas” e “Um senhor advertiu que os balões são

169

BANDEIRA, 2012. p. 26

93

proibidos pelas posturas municipais”. As mãos “tenteavam” o balão, lembre-se aqui das

mãos invisíveis de “Gesso” e “Um sorriso”.

O poema, de certa forma, encena a própria tísica do poeta ao se projetar na

figura de José, criador do balãozinho mal fadado. Perceba-se também a semelhança

entre o formato do balão (“gomos oblongos”) e o próprio do pulmão. Também é curioso

o fato de que o balãozinho, assim como o sujeito tísico, vá perdendo ar para a água nos

pulmões, águas puras. Lembre-se aqui a comparação entre a tuberculose e o câncer, por

Susan Sontag.

A tuberculose é uma doença de tempo; ela acelera, ilumina e espiritualiza a vida.

Tanto em inglês como em francês a consunção "galopa". O câncer tem mais

propriamente estágios do que um desenvolvimento contínuo.170

Sendo uma doença metaforizada como uma doença do espírito, que ilumina a

vida, o seu descanso nas águas puras é uma boa metáfora para o balãozinho de

Bandeira.

Apesar de parecer um poema apenas amorosamente tísico, a construção da

metáfora do balão, o ritmo entrecortado, a paráfrase do “cai, cai, balão” demonstram

uma construção bastante consciente. Há portanto, conforme Mário de Andrade observa,

uma amorosidade tísica em “Na rua do Sabão”. Na própria forma com que José constrói

o balãozinho:

Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos...

Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.

É curioso percebermos o quanto a expressão “com amor” ressalta a forma com

que o poeta tísico, projetado no personagem José constrói a sua própria poesia.

Alterando a paráfrase da cantiga (“cai, cai, balão”) o poeta tísico constrói um poema

“amorosamente tísico”, trazendo de volta a infância.

170

SONTAG, 2007. p. 19.

94

6.5. À sombra da própria angústia e criação

À SOMBRA DAS ARAUCÁRIAS

Não aprofundes o teu tédio.

Não te entregues à mágoa vã.

O próprio tempo é o bom remédio:

Bebe a delícia da manhã.

A névoa errante se enovela

Na folhagem das araucárias.

Há um suave encanto nela

Que enleia as almas solitárias...

As coisas tem aspectos mansos.

Um após outro, a bambolear,

Passam, caminho dágua, os gansos.

Vão atentos, como a cismar...

No verde, à beira das estradas,

Maliciosas em tentação,

Riem amoras orvalhadas.

Colhe-as: basta estender a mão.

Ah! fosse tudo assim na vida!

Sus, não cedas à vã fraqueza.

Que adianta a queixa repetida?

Goza o painel da natureza.

Cria, e terás com que exaltar-te

No mais nobre e maior prazer.

A afeiçoar teu sonho de arte.

Sentir-te-ás convalescer.

A arte é uma fada que transmuta

E transfigura o mau destino.

Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.

Cada sentido é um dom divino. 171

171

BANDEIRA, 1993. p. 53.

95

“À sombra das araucárias”, publicado em A cinza das horas, possui uma súmula

schilleriana na sua última estrofe, já observada aqui. A ideia de “a arte ser uma fada que

transmuta e transfigura o mau destino” é muito relevante para a poesia de Manuel

Bandeira. Conforme vimos nos capítulos anteriores, tal transfiguração pode se dar de

diversas maneiras. Este poema, em especial, é uma excelente metapoesia da

transfiguração e transmutação.

Já em 1917, o poeta, que possuía o “gosto cabotino da tristeza”, dá conselhos de

desprendimento ao seu leitor. Observando sua paixão obsessiva e intenso apego ao

sentimento, o poeta tísico de “À sombra das araucárias” é o menos tísico até então. O

que é de fato curioso é observarmos a ideia de um indivíduo potencialmente criativo.172

A primeira estrofe já começa com termos bem antitísicos, se assim pudéssemos

chamar: “não aprofundes”, “não te entregues”, assim como os dois versos seguintes – “o

próprio tempo é o bom remédio:/bebe a delícia da manhã”.

Se, conforme Sontag aponta, a tuberculose é uma doença galopante, “de tempo”,

o poeta tísico passa a tomar esse tempo, no sentido de bebida, de fármaco, como um

remédio para suas angústias.

A paisagem, observada em poemas como “Cartas de meu avô”, “Felicidade” e

“Sob o céu estrelado”, aqui é mansa como “uma névoa errante” que “se enovela na

folhagem das araucárias”. Tal mansidão lembra a “noite mansa” de “Felicidade”, o

tempo como “morte”.

Em comparação, se o poeta de “Preparação para a morte”173

bendiz a morte que

é o fim de todos os milagres, o de “À sombra das araucárias” bendiz o próprio tempo.

Toda essa mansidão da morte “enleia as almas solitárias”. A pintura é impregnada de

aspectos do poeta tísico, de tal modo que até os gansos cismam, melancólicos.

A partir da quarta estrofe, observa-se um retorno da “rocha musgosa, o gorjeio

dos pássaros, o zumbido das abelhas” como “expressões de nossa completude no

Ideal.”174

. O sujeito lamenta não estar em completude com a natureza: “Ah! fosse tudo

assim na vida! /Sus, não cedas à vã fraqueza. /Que adianta a queixa repetida? /Goza o

painel da natureza.”.

172

Conforme correspondência de Shelley a Keats. SONTAG, 2007. p. 33. 173

BANDEIRA, 1993. 174

SCHILLER, 1991. p. 44.

96

O poeta que “não faz versos de guerra” não quer ficar preso na contingência

biográfica e no queixume repetido. Há uma “sublime comoção”175

envolvida em se

“gozar o painel da natureza”.

A solução de Bandeira para o impasse entre natureza e homem não poderia ser

mais schilleriana:

Cria, e terás com que exaltar-te

No mais nobre e maior prazer.

A afeiçoar teu sonho de arte.

Sentir-te-ás convalescer.

A arte é uma fada que transmuta

E transfigura o mau destino.

Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.

Cada sentido é um dom divino.

Se o homem é aquele é capaz de tomar consciência de si através da natureza

comunitária e gregária176

, nada mais importante do que a tomada de consciência através

dos sentidos (“Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.”). O poeta de “À sombra das

araucárias” é um híbrido de poeta ingênuo e sentimental, se pensarmos em Schiller.

Tanto cria, reflete, elabora quanto experimenta. O poeta tísico deste poema é um

indivíduo que, consciente de si, consegue “beber a delícia de cada manhã”, apesar do

tempo ceifando, ainda que metaforicamente, a sua existência. É interessante observar

como a criação aqui é observada como uma recuperação da natureza perdida, ao

contraste de “Epílogo, onde há um impasse entre a criação e o desejo de criação.

175

SCHILLER, 1991. p. 44 176

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. p. 223.

97

6.6. A primavera tísica

A DAMA BRANCA

A Dama Branca que eu encontrei

Fez tantos anos,

Na minha vida sem lei nem rei

Sorriu-me em todos os desenganos

Era sorriso de compaixão?

Era sorriso de zombaria?

Não era mofa nem dó. Senão,

Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também

A cada júbilo interior.

Sorria como querendo bem

E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! De tísicos?

Por histeria... quem sabe lá?

A Dama tinha caprichos físicos:

Era uma estranha vulgívaga

Ela era o gênio da corrupção

Tábua de vícios adulterinos

Tivera amantes: uma porção

Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,

Se lhe furtava sarcástica.

Com uns perjura, com outros fria,

Com outros má,

- A Dama Branca que eu encontrei,

Há tantos anos,

Na minha vida sem lei nem rei,

Sorriu-me em todos os desenganos.

Essa constância de anos a fio,

Sutil, captara-me. E imaginai!

Por uma noite de muito frio

A Dama Branca levou meu pai.177

Se a Aracne de A cinza das horas foi transformada em uma figura “medonha e

escura”, a figura “branca e linda” de antes da transformação reaparece em Carnaval. A

brancura da “Dama Branca” de Bandeira refaz um percurso que pode ser justamente

associado a A primavera ou O nascimento de Vênus de Boticelli, já supracitado neste

estudo.

177

BANDEIRA, 1993. p. 93.

98

Conforme já dito neste estudo, a ideia da “Dama Branca” é tão culturalmente

forte que acaba por fundar um padrão de beleza para além da tísica: mulheres brancas,

magras, lânguidas178

. Apesar disso, no poema, a “Dama Branca” ela não deixa

personificar a própria tuberculose que encontrou o poeta em 1904. Mais uma vez, a

imagem do sorriso parece aqui como um enigma:

Sorriu-me em todos os desenganos

Era sorriso de compaixão?

Era sorriso de zombaria?

Não era mofa nem dó. Senão,

Só nas tristezas me sorriria.

Seu sorriso é um enigma para o leitor que imagina o melancólico de Bandeira,

como um sujeito extremamente infeliz. Entretanto, conforme já observado em poemas

como “Um sorriso”, o poeta consegue extrair, mesmo da paisagem mais taciturna, a sua

alegria peculiar.

O tuberculoso é estigmatizado como uma figura lânguida, apesar disso, a

tuberculose, seu efeito é metaforicamente falando, uma doença da impulsividade, da

volúpia, “galopante”. Se, em “Chama e fumo”, há hesitação com relação ao amor

(“Meditas no que há de fazer”). Em “A Drama Branca”, a tuberculose se figura como

uma mulher sorridente e fatal.

Era desejo? – Credo! De tísicos?

Por histeria... quem sabe lá?

A Dama tinha caprichos físicos:

Era uma estranha vulgívaga

Ela era o gênio da corrupção

Tábua de vícios adulterinos

Tivera amantes: uma porção

Até mulheres. Até meninos.

Pensemos na interjeição do verso de “A Dama Branca”: “Era desejo? – Credo!

De tísicos?”). “Credo!” faz ver uma atualização do poeta mansamente tísico ao poeta

ironicamente tísico e da sua própria escrita dramatizada. O estigma do tísico é ironizado

pelo poeta, ainda que, poeticamente, tísico.

178

O recorte da imagem que Pedro Paulo Soares utiliza em seu ensaio, encontra-se anexo no fim deste estudo (Imagem 5)

99

No sentido da tísica enquanto conceito na psicologia há dois termos

especialmente importantes no poema: “histeria” e “adulterino”. O termo histeria

denomina, sobretudo na psicanálise freudiana, moções pulsionais (psíquicas) que,

sofrendo uma espécie de recalque, traduzem-se em sintomas corporais (somáticos)179

.

Lembremos do poeta de “Desencanto”, que traz seu poema do psíquico para o somático.

Em “A Dama Branca”, as pulsões recalcadas se transformam em uma “tábua de

vícios adulterinos”, imagem que remete aos versos de “Estrela da manhã”: “procurem

por toda parte/ pura ou degradada até a última baixeza/ eu quero a estrela da manhã”. A

Aracne transformada em figura “medonha e escura” se torna “A Dama Branca”, que

“tinha caprichos físicos”, “uma estranha vulgívaga” e, posteriormente, em Estrela da

manhã, na Estrela d’alva almejada pelo poeta.

Lembremos Vênus, deusa do amor e a Simonetta Vespucci de Botticelli. A

maior pureza da Estrela se conjuga com a maior baixeza da “Vulgívaga” de Bandeira. A

complexidade do tema se conjuga à simplicidade da forma na poesia de Bandeira.

Tomemos mais uma vez o hibridismo da Ariesphinx (Leão / Carneiro) para ver nesta

Dama Branca o sorriso e a tristeza da morte de seu pai:

Não posso crer que se conceba

Do amor senão o gozo físico!

O meu amante morreu bêbado

E meu marido morreu tísico

Os versos de “Arte de amar”, onde “os corpos se entendem, mas as almas não”

já se prenunciavam na ideia da primazia do “gozo físico” sobre a “alma tísica” da voz

poética feminina em “Vulgívaga”.180

179

Segundo o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis, “as duas formas de sintomáticas mais bem isoladas são a histeria de conversão, em que o conflito psíquico vem simbolizar-se nos sintomas corporais mais diversos (...) e a histeria de angústia, em que a angústia é fixada de modo mais ou menos estável neste ou naquele objeto exterior (fobias”. LAPLANCHE, J; PONTALIS, J-B., 1986. p. 275 e 276. Observa-se, portanto, o primeiro caso, no poema “Desalento”, por exemplo, em que o poeta tísico faz versos “como quem chora”. Passando seu sintoma do psíquico pro físico. 180

Lembremos da inversão na lógica das leys d’amor da poesia provençal. Segundo Rougemont, essa lei exalta “o amor à margem do casamento, pois o casamento significa apenas a união dos corpos, enquanto o “Amor”, o Eros supremo, é projeção da alma para a união luminosa, para além de todo amor possível nesta vida. Ao considerarmos o “saber alegre” de Manuel Bandeira, precisamos pontuar essa inversão em sua obra.

100

Ainda que haja em Carnaval um apego às formas fixas no corpo textual e ao

corpo limitado do poeta tísico, ainda não há a presença da revolução levada à cabo em

Libertinagem. A presença da tísica em “A Dama Branca”, ainda se constrói através da

imagem de uma tísica antropomorfizada, muito diferente da tísica de “Bonheur

Lyrique” ou “Pneumotórax”, por exemplo.

6.7. Desentranhar-se em poesia

A canção de Maria

Que é de ti, melancolia?...

Onde estais, cuidados meus?...

Sabeis que a minha alegria

É toda vinda de Deus...

Deitei-me triste e sombria,

E amanheci como estou...

Tão contente! Todavia

Minha vida não mudou.

Acaso enquanto dormia

Esquecida de meus ais,

Um sonho bom me envolvia?

Se foi, não me lembro mais...

Mas se foi sonho, devia

Ser bom demais para mim...

Senão, não me sentiria

Tão maravilhada assim.

Ó minha linda alegria,

Trégua dos cuidados meus,

Por que não vens todo dia,

Se é toda vinda de Deus?181

Em “A canção de Maria” (A cinza das horas), apesar de o poeta tísico ter uma

inclinação para a filosofia de Friedrich Nietzsche, há também elementos religiosos.

Estes aparecem recorrentemente na obra do poeta, a começar pela figura do Leão e do

181

BANDEIRA, 1993. p. 50

101

Carneiro, apontadas no início deste estudo.182

A alegria tísica, construída através da

poesia, da gaia ciência, é também “toda vinda de Deus”. Lembremos o poeta em

Itinerário de Pasárgada,

Mas A cinza das horas, Carnaval e mesmo O ritmo dissoluto ainda estão cheios de

poemas que foram fabricados en toute lucidité. A partir de Libertinagem é que me

resignei à condição de poeta quando Deus é servido.183

Percebemos que, se no plano da forma e da criação poética, os poemas pré-

Libertinagem são fabricados “en toute lucidité”, como o poeta afirma, “A canção de

Maria” parece antecipar muito do “poeta quando por Deus é servido”.

O poeta, ao revelar que sua alegria é vinda de Deus, quase parafraseia a sua

própria ideia de poeta “quando por Deus é servido”. A melancolia, presente nos seus

versos, aqui é refreada na alegria da criação, vinda de Deus.

Apesar disso, o poeta tísico revela, na segunda estrofe, que “nada mudou em sua

vida”. E interpela à sua própria alegria: “acaso enquanto dormia/ esquecida de meus ais/

um sonho bom me envolvia?”. A autodepreciação, típica do melancólico, revela-se no

poeta tísico quando este pensa que o sonho “devia ser bom demais pra mim...” Mais

adiante, observaremos o cantar do bardo como um cantar de melancólica alegria.

Por ora, tomemos de “A canção de Maria” a ideia de revelação do poético

através de Deus. É esse o impasse que Ettore observa em seu ensaio. De certa forma,

Bandeira não é um poeta vinculado ao desencanto de um filósofo como Friedrich

Nietzsche, justamente por ser um poeta vinculado à ideia do alumbramento, da

revelação poética:

O poeta é um abstrator de quinta-essências líricas. É um sujeito que sabe

desentranhar a poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos

sonhos. A poesia que há em tudo, porque a poesia é o éter em que tudo mergulha, e

que tudo penetra. O poeta muitas vezes se delicia em criar poesia, não tirando-a de

si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas

“desgangarizando-a”, como disse Couto Barros, dos minérios em que ela jaz

sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida num bonde ou lida numa receita

de doce ou numa fórmula de toilette. Há quem censure o poeta por isso. Não me

parece avisada tal atitude: a poesia é como um rádium – o milésimo de miligrama

constitui uma riqueza que não se deve deixar perder. Eu, por mim, vivo cada vez

mais atento a essa poesia disfarçada e errante. E um dos exercícios que mais me

encantam é desmanchando numa página de prosa. Como sou advertido da presença

182

Acerca desta temática religiosa na poesia de Manuel Bandeira, Edson Nery da Fonseca fez reunião intitulada “Poemas religiosos e alguns libertinos”. 183 BANDEIRA, 2012. p. 40.

102

do poema? Acho que é quase sempre por uma imagem insólita ou por um encontro

encantatório de vocábulos.184

O alumbramento, compreendido como revelação poética, permite ao poeta

desentranhar, até das matérias mais mundanas (coisas, palavras, gritos, sonhos), a sua

poesia.185

A alusão de Bandeira parece remeter ao caminho inverso do Evangelho segundo

São João. Desentranhada, a poesia se faz verbo, ou ainda, um verso, construído, capaz

de transformar a realidade perecível da vida em uma realidade outra, apaziguar a sua

angústia.186

A resignação do poeta se assemelha à figura de São Francisco de Assis187

,

através do húmus (da humildade). São Francisco, então, se assemelha ao próprio Cristo,

assim como a persona bandeiriana, desde a capa de A cinza das horas.

Toda a ideia de uma humildade para a obtenção da alegria (conforme os

primeiros versos de “À sombra das araucárias”: “Não aprofundes o teu tédio. /Não te

entregues à mágoa vã.”) está no “preconceito de se levar à sério”, observado por

Nietzsche.188

É, portanto, no entrecruzamento de um saber alegre nietzschiano e de uma

humildade revelação cristã, ou ainda, num hibridismo entre o ceticismo de uma

construção lúcida (a lição de Mallarmé) e o alumbramento (Valéry) que a alegria

bandeiriana se firma.

Difícil pensar em um poeta mais lúcido do que o poeta de “Balada das três

mulheres do sabonete Araxá”189

, publicado no período que o poeta afirma ter se

resignado à poesia enquanto revelação.

Na afirmação de que a sua poesia seria servida por Deus, a metáfora religiosa

afirma-se como potência da própria poesia, presente “tanto nos amores como nos

chinelos”, na vida, “cheia de tudo” de “Canção do vento e da minha vida”190

. O vácuo

deixado pelo mau vento, pelo mau destino, é preenchido poeticamente, por meio da

184

BANDEIRA, 2009. p. 763. 185

Apesar de não haver alusões tão nítidas como em “A canção de Maria”, o processo pelo o qual o poeta

cria é bastante semelhante ao de Adélia Prado em “A formalística”: “A serva de Deus sai de sua cela à

noite/e caminha na estrada,/passeia porque Deus quis passear/e ela caminha.”185

186

“só resultava em insatisfação, ao passo que o que lhe saia do subconsciente, numa espécie de transe ou

alumbramento, tinha ao menos a virtude de lhe deixar aliviado das suas angústias.” (BANDEIRA, 2012.

p. 39.) 187

O poeta inclusive traduziu a famosa oração do santo. (BANDEIRA, 1993. p. 357.) 188

NIETZSCHE, p. 2012. p. 192 189

BANDEIRA, 1993. p. 150. 190

BANDEIRA, 1993. p. 175

103

criação de sua persona tísica. A alegria, ora vista como construção, ora vista como algo

proveniente do alumbramento, “dá trégua aos cuidados” do indivíduo. É dela que

falaremos no próximo capítulo

.

6.8. O poeta tísico bebe alegria.

BONHEUR LYRIQUE

Coeur de phtisique

O mon coeur lyrique

Ton bonheur ne peut pas être comme celui des autres

Il faut que tu te fabriques

Un bonheur unique

Un bonheur qui soit comme le piteux lustucru en chiffon d'une enfant pauvre

– Fait par elle-même.191

“Bonheur lyrique” foi publicado na revista Klaxon, de julho de 1922192

, portanto

antes de O ritmo dissoluto e Libertinagem, sendo recolhido neste último oito anos mais

tarde. Se observarmos o personagem de “Um sorriso”, aquele que sente “sorrir o seu

desgosto”, podemos dizer que já em 1917 a felicidade tísica estaria operando nos versos

do poeta.

O poema faz referência imediata à construção de uma felicidade tísica (“Il faut

que tu te fabriques/ Un bonheur unique”), antes só misturada na paisagem, em

personagens ou na visão do poeta ao espelho.

O aspecto que primeiro salta aos olhos é o idioma utilizado: o francês. O poeta

em Itinerário de Pasárgada comenta a esse respeito:

Em Libertinagem inclui dois poemas escritos em francês: “Chambre Vide” e

Bonheur Lyrique”. Ao tempo em que os compus e em anos anteriores fiz outros que

nunca publiquei; posteriormente mais um intitulado “Chanson des Petits Esclaves”,

incluído na Estrela da Manhã. Esses versos me saíram em francês sem que eu saiba

explicar por quê. Certa vez em que eu estava preparando uma edição das Poesias

Completas, quis acabar com isso de versos em francês, que poderia parecer

191 “Coração de tísico/Oh, meu coração de tísico/Sua felicidade não pode ser como a dos outros/É

preciso que você construa/Uma felicidade única/Uma felicidade lastimável como os farrapos de um pobre

diabo, uma criança pobre/ - Feita por ela mesma.”

192 Trata-se do terceiro volume da revista, publicada em 15 de julho de 1922. Disponível em

http://www.brasiliana.usp.br/bitstream/handle/1918/01005530/010055-3_COMPLETO.pdf

104

pretensão de minha parte, e esforcei-me por traduzi-los. Pois fracassei

completamente, eu que tenho traduzido tantos versos alheios.193

Ettore Finazzi-Agrò considera o fato no mínimo curioso, já que o momento de

maior gravidade da doença se passou justamente em Clavadel, local onde o poeta esteve

internado de junho de 1913 a 1914194

. Segundo o autor, o uso da língua francesa não

era, senão, uma maneira de trazer à tona o momento dramático.195

Podemos, ainda,

pensar no uso da língua francesa como desejo de fazer-se estrangeiro, ou seja, por meio

de língua não-nativa, poderia espiar a matéria biográfica com distância, ou ainda, com

menos receio.

Lembre-se aqui que, o outro poema o qual a palavra “tísico” aparece, “Gesso”, é

permeado pela ideia das mãos invisíveis, mau gênio, mau vento, ou seja, a própria

história do poeta. Através da língua francesa, o poeta estaria, ao mesmo tempo, se

libertando e recorrendo a ela enquanto princípio criativo para a construção de uma

felicidade, toda sua.

Observemos os dados concretos da biografia do poeta. Elvia Bezerra, em A

trinca do Curvelo, relata o quanto a tuberculose, já após a estada em Clavadel, seria

uma doença estagnada. Tal fato só faz ver o quanto a doença é muito mais um leitmotiv

do que um fim nela mesma:

Desde a volta de Clavadel, Bandeira entrara em recuperação. De acordo com o laudo

do Doutor Bodmer, seu médico no sanatório suíço, o pulmão direito tinha sido

totalmente curado, não havia bacilos, tubérculos no exame de escarro. O problema

continuava no pulmão esquerdo, onde as cavernas permaneciam. O médico

considerava a doença estagnada, mas era preciso manter o estado de alerta. Assim,

Bandeira viveu sempre observando as prescrições impostas a um tuberculoso.196

Ao dizer que, por mais que tentasse traduzi-los para o português não

conseguia197

, o poeta traduz a sua própria necessidade de se alienar na língua francesa

enquanto extensão da doença. Ao reviver o idioma de Clavadel, o poeta estaria trazendo

a si mesmo, inconscientemente, a época em que esteve internado no sanatório.

Se, para Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, a tuberculose definia os

“contornos de um personagem”, e para Eduardo Coelho a doença é mais um princípio

193

BANDEIRA, 2012. p. 113. 194

BEZERRA, 1995. p. 21 195

FINAZZI-AGRÒ, ETTORE. O poeta inoperante. In: Libertinagem & Estrela da Manhã. Edição crítica organizada por Giulia Lanciani. 196

BEZERRA. Ibidem. p. 28 e 29. 197

BANDEIRA, 2012. p. 113.

105

criativo do que uma recorrência temática, Bonheur lyrique é a prova de que o poeta

suplanta a sua própria contingência biográfica.

Em Modos de saber, modos de adoecer, Roberto Corrêa dos Santos observa:

A Memória, tratada como categoria da História é, em certo sentido, uma metáfora.

Metáfora magnífica, por abrigar carga altíssima de possibilidade de sentidos, bem

como de perspectivas críticas, e por – em sua natureza antropológica – abraçar

grande variedade de estratos (...) recortados sempre pelos diversos ritmos do tempo,

conforme a escolha daquilo a ser, como Memória, pensado.198

O poeta menor, apesar de não escrever versos de guerra porque não saber,

consegue utilizar a metáfora magnífica da Memória, de altíssima possibilidade de

sentidos, quando escolhe para si mesmo uma persona e abriga nesta uma potencialidade.

Para Finazzi-Agrò, “Bandeira respirava a realidade com parcimônia”, entretanto, era na

literatura que essa respiração se tornava mais ávida.199

Se o nosso objeto de estudo fosse somente a recorrência temática, escassa e

pontual na obra, a análise perderia seu sentido. Apesar de escassa, essa recorrência

temática à tuberculose revela-nos mais do que uma persona tísica, mostra-nos traços de

um fazer poético, de um princípio criativo.

Tal princípio criativo decerto se estende à felicidade na obra de Bandeira. É, a

partir destes fios narrativos, destes elementos mais ou menos explícitos que se dá a ver

as faces da persona tísica do poeta.

“Bonheur lyrique”, desde o primeiro verso, dá indícios de uma imediata relação

com a doença (Coeur de phtisique). Apesar disso, e, em vista das metáforas aqui

estudadas através da instrumentação teórica de Susan Sontag, podemos perceber nos

versos ideias afins à metaforização da tísica.

O vocábulo “tuberculoso”, por sinal, na poesia de Bandeira, é preterido a

“tísico” (“phtisique”), confirmando a ideia de que, apesar de referentes, os dois não são

imediatamente sinônimos200

.

Lembremos da metaforização da doença, que, trazida para o campo psíquico,

toma outra natureza. Processo parecido ocorre com a tísica bandeiriana. Aproveitando-

se da metaforização da doença, dos poetas de bons versos e sensibilidade aguçada.

198

SANTOS, 1999. p. 15. 199

FINAZZI-AGRÒ. p. 241. 200

Observemos também o estigma da doença, já retratado neste estudo, na carta de Antonio Nobre a Montalvão.

106

Transformar os versos, “farrapos de um pobre diabo, uma criança pobre” em felicidade

é, assim como visto em “À sombra das araucárias”, exemplos metapoéticos dessa

transformação.

Os dois poemas estão relativamente distantes um do outro: “À sombra das

araucárias” é de 1917 e “Bonheur Lyrique” é publicado em 1926 e 1930. A escolha de

levar o poema em francês para o livro foi, portanto, um recorte daquilo a ser, como

Memória, pensado. Ao justapormos dois poemas como “À sombra das araucárias” e

“Bonheur lyrique”, observamos o quanto o desejo fracassado de criação de uma “desejo

de uma poética da alegria”, observado em “Epílogo”, está vinculado à sua poesia.

Oponho e relaciono, portanto, uma “poética da alegria” a uma “poética da

felicidade”. A primeira revela o estado de espírito do vinho, conforme observado em

Carnaval e nesta bebida transformada em personagem em “A alma do vinho” de

Baudelaire:

Pois sinto uma alegria imensa quando desço

Pela goela de quem ao trabalho se entrega,

E seu tépido peito é a tumba onde me aqueço

E onde me agrada mais estar do que na adega

Não ouves os refrões da domingueira toada

E a esperança que me unge o seio palpitante?

Cotovelos na mesa e na manga arregaçada

Tu me honrarás e o riso há de te ser constante;201

A constância no riso de “A alma do vinho” parece indicar o mesmo

entorpecimento do poeta, criticado por querer “beber, cantar asneiras”202

. Em

Baudelaire o vinho se revela, na primeira pessoa: “Car j’éprouve une joie immense

quand je tombe/dans le gosier d'un homme usé par ses travaux”. O “homme usé par ses

travaux” é, nitidamente, a figura melancólica, avessa à produtividade capitalista e

desajustada pela sua própria sensibilidade artística, muito parecida, portanto, com a

personalidade tísica.

A “joie” apontada por Baudelaire em “A alma do vinho” é vislumbrada em “Não

sei dançar” e na decepção do poeta em seu “Epílogo”. O seu carnaval, “sem nenhuma

201

BAUDELAIRE, 2012. p. 360 e 361. 202

BANDEIRA, 1993. p. 79.

107

alegria”, parecia ser justamente a encenação de uma espécie de ressaca, de um impasse

entre o indivíduo e a sociedade.

Tanto por essa “poética da alegria” estar atrelada ao indivíduo avesso à

inclinação produtiva da sociedade capitalista, muitas vezes esterilizante quanto pela

angústia de se ver desajustado constrói um sujeito consciente de si e do mundo.

Os versos de “Não sei dançar” não deixam esquecer que um dia o poeta teria

“tomado tristeza” (“Sim, já perdi pai, mãe, irmãos./Perdi a saúde também.”). Esses

mesmos versos que parecem de uma alegria fortuita em “quero beber, cantar

asneiras”203

são um convite dionisíaco para o encontro com o mundo presente, a tristeza

presente, a miscigenação brasileira nos personagens daquele “baile de terça-feira

gorda”204

. Tal encontro é observado também no seu contato com a natureza em “À

sombra das araucárias”.

Esse tomar de consciência de si mesmo e do outro é acompanhado de uma

metáfora tísica, apontada por Sontag, presente em um verso:

Perdi a saúde também.

É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz band.

O sujeito que sente o ritmo de Haydn na profundidade do córrego, agora sente,

como ninguém, o ritmo do jazz band. A ideia do tísico como sujeito assinalado por uma

sensibilidade exacerbada é observada nesse par de versos de “Não sei dançar”. Da

mesma forma, a alegria sentida por esse sujeito “não pode ser como a dos outros”205

.

Fato curioso é que, se justapusermos “Não sei dançar” a “Bonheur lyrique”, o

primeiro poema aparece como o registro de uma consciência embriagada pela alegria

transformada em consciência de si, do mundo; já no segundo, o efeito de êxtase dá lugar

a um princípio assimilação poética, de um modus operandi do poeta. Não é forçoso

observarmos a própria Memória da tuberculose como um objeto a ser pensado, refeito,

recalculado, esquematizado em toda a sua complexidade cultural.

203

Observe-se a nota na página 67 deste estudo. 204

Lembremos o que Nietzsche diz sobre ter consciência do mundo: “O homem inventor de signos é, ao

mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si, apenas como animal social o homem aprendeu a

tomar consciência de si – ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. – Meu pensamento, como se vê, é que a

consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é

natureza comunitária e gregária.” p. 223. 205

“Ton bonheur ne peut pas être comme celui des autres” (“Sua felicidade não pode ser como a dos

outros”) diz Bonheur Lyrique

108

Se a antecedência de “Bonheur lyrique” em relação a “Não sei dançar” parece

estranha, cabe lembrar que o poeta já há muito definia a sua poesia na direção da

felicidade construída, conforme a sua visão da própria potência transformadora da

criação poética observada em “À sombra das araucárias”.

Da mesma forma, o fato de que a felicidade, “bebida na delícia da manhã” (A

cinza das horas), em Carnaval, toma ares de alegria, não torna esta necessariamente

irmã gêmea daquela. O poeta que quer “beber, cantar asneiras” parece se explicar muito

mais pela própria recorrência da alegria em Carnaval206

do que pela construção de uma

felicidade particular.

Por fim, se pudéssemos justapor dois poemas pela felicidade construída,

certamente estes seriam “À sombra das araucárias” e “Bonheur Lyrique”. Nos dois

poemas a felicidade é construída a partir, não do êxtase inconsciente, mas de restos da

realidade, da natureza.

A frustração pela alegria não atingida em “Epílogo” (Carnaval) é, portanto,

transformada em uma postura de construção, já prevista em A cinza das horas, do que

pode ser obtido com as reminiscências (“farrapos de um diabo, de uma criança pobre”)

mesmas da memória do poeta, sempre a ser pensada e (re)pensada.

206

Seria interessante apontar a necessidade de um estudo observando os pontos de contato entre a alegria dionisíaca e felicidade tísica.

109

7. CONCLUSÃO

Procurou-se, no presente estudo, delinear não o homem, mas o poeta tísico por

trás do menino que lera Viagem à roda do mundo numa casquinha de noz. Pouco antes

da morte, em Itinerário de Pasárgada, o poeta observa:

Olhemos agora para trás. Quando caí doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro

de pouco tempo: a tuberculose era ainda a ‘moléstia que não perdoa’. Mas fui

vivendo, morre-não-morre, e em 1914, o dr. Bodmer, médico-chefe do sanatório de

Clavadel, tendo-lhe eu perguntado quantos anos me restariam de vida, me respondeu

assim: ‘O Sr. tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto está sem

bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta, em suma, nenhum sintoma

alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer?207

Bandeira viveu uma vida de poesia, sempre acompanhada por esse constante

“estado de alerta”, “morre-não-morre”, do qual extraiu sua vida-obra inteira. Apesar de

ter “lesões incompatíveis com a vida”, o homem viveu oitenta anos ricos de poesia. Não

a Dama Branca, mas uma hemorragia gástrica ceifou a vida do poeta menor. Sua vida,

sua figura pública, não cabem no papel deste estudo.

Apesar de não ser possível recuperar o homem Manuel Bandeira, é possível

talvez extrair uma centelha do que ele foi, mais ou menos fidedigna, por meio da

máscara poética, da persona tísica que ele nos deixou.

Delinear em tão extensa obra as cicatrizes que a tísica tenha deixado é mais

difícil que o diagnóstico do Dr. Bodmer. É bem possível que este estudo não tenha sido

suficiente para fundamentar a persona tísica de um poeta que viveu, intensamente, pelo

menos 49 anos de poesia. Entretanto, se há uma investigação a se cumprir, é a de que a

“virulência” da tísica tenha tomado conta de mais poemas do que aqueles que aqui

foram abordados.

No presente estudo, pretendemos observar as faces do persona tísica na poesia

de Manuel Bandeira, sobretudo em sua poesia pré-1930. Por essa razão, dos dezesseis

poemas aqui analisados, além dos poemas que se apoiam nestes principais, apenas dois

são poemas de Libertinagem (“Bonheur lyrique” e “Pneumotórax”).

Não por acaso o estudo começa em “Pneumotórax” para, finalmente, terminar

em “Bonheur lyrique”, situados no mesmo livro. Ambos os poemas retratam a tísica na

sua especificidade. O primeiro, “Pneumotórax”, dramatiza a condição tísica do poeta

207

BANDEIRA, 2012. p. 156.

110

vinte e seis anos após o surgimento da doença. Já “Bonheur lyrique”, com certo ar de

intriga, deixa ver o procedimento criativo a que o poeta associou seu mal.

A tuberculose se tornou tísica, e a tísica se tornou um procedimento de

composição permeando a obra do autor desde A cinza das horas a Libertinagem.

Segundo Mário de Andrade, referindo-se a “Pneumotórax” em correspondência a

Manuel Bandeira de 11 de setembro de 1934:

“O poema é indispensável, porque você deu nele o tom da amargura com a

virulência perfeita. Indispensável, achamos. Foi ontem mesmo que passamos a noite

relendo você e vendo a escolha”

Tal virulência altera a maneira com que o poeta percebe o mundo ou, antes,

potencializa a sua experiência e a sua consciência do mundo. Se pudermos pensar em

Manuel Bandeira enquanto um poeta menor, no sentido da não associação a temas

maiores, é possível, em contrapartida, pensá-lo enquanto um poeta de ampla consciência

do mundo, do qual recolhe a matéria simples, efêmera, identificada com a condição

frágil do tuberculoso.

Procuramos observar as diversas vertentes do poeta entre a tísica dramatizada e a

tísica como composição, não necessariamente em oposição, mas justapostas e

mutuamente apoiadas . Em nossa leitura, a tísica se fez ver em diferentes máscaras. Em

primeiro lugar, a matriz de todas as outras faces: a sua teatralidade natural desde o

primeiro livro do poeta; em segundo lugar, a tísica aliada tradicionalmente à melancolia

e à angústia, subdividida na melancolia do poeta tísico disperso na terceira pessoa; em

terceiro, a melancolia do poeta diante do espelho, vendo a si mesmo; em quarto, a

melancolia irrompendo na paisagem; em quinto, a construção da “Bonheur lyrique”

enquanto processo metapoético, dando a ver o processo de composição do poeta.

Propõe-se aqui que a “virulência perfeita” a que Mário de Andrade faz referência

é, bem antes, a própria virulência da poesia, da sua linguagem ser capaz de teatralizar

uma biografia, transformá-la em matéria poética.

Assim, poderíamos dizer que ter adoecido em 1904 não faz de Manuel Bandeira

genuinamente um “poeta menor”, mas teatralmente um “poeta menor”. Um poeta que

vai morrendo pouco a pouco, simbolicamente. E ainda, que encena sua condição tísica

não porque é fisiologicamente tuberculoso, mas porque é iminentemente poeta.

111

Desta forma, o poeta leva o seu corpo, em suposta confissão, para o corpo do

poema, como em “Desencanto”. Trata-se de uma somatogênese da sua poesia. Simples,

hesitante nas pequenas coisas, “pequeninos nadas”.

Diferentemente, se vamos adiante a livros mais além de A cinza das horas, tal

como Carnaval, ou mesmo nos ativermos a poemas como “A Aranha”, “A Antonio

Nobre” ou “D. Juan” observamos uma psicogênese da sua poesia, ou seja, uma poesia

construída através da projeção em determinados arquétipos, colhidos na literatura e

mitologia grega.

A tísica, antes de ser um mero motivo de poesia, de desabafo pessoal, configura

“o contorno de um personagem”, sem fôlego, inoperante, mas atento à simplicidade das

coisas. Percebe-se assim uma poesia desentranhada, escondida “nas coisas, nas palavras,

nos gritos, nos sonhos”, “presente tanto nos chinelos quanto nos amores” e – porque

não? – também nos personagens, na sua árvore familiar, no seu nome, nas cantigas que

ouvia quando pequeno e na própria paisagem. O que observamos nesse estudo é o

quanto o poeta do “gosto cabotino da tristeza” era, ainda muito cedo, um

desentranhador de quinta-essências líricas.

Em crítica a Poemas Esparsos, de Vinicius de Moraes (org. Eucanaã Ferraz),

Silviano Santiago põe em luta livre Oswald de Andrade, o Touro Antropófago, e do

outro lado Manuel Bandeira, o Alce de Clavadel.208

Tal imagem, entretanto, estrutura-se

na antiga visão de um tísico poeta, anterior ao poeta tísico. A figura da ariesphinge, da

potência do leão sotaposto ao carneiro, parece ter passado despercebida a Silviano

Santiago quando construiu a imagem de um ringue para a luta entre os dois poetas. A

definição de Bandeira como o Alce de Clavadel faz parecer que a sua poesia se limita a

sua biografia.

Estudar o poeta tísico de Manuel Bandeira sem dúvidas é algo mais complexo,

não cabe em epítetos. A tísica, como morte ou (im)possibilidade de ser, está presente no

pano de fundo de mais poemas do que os que foram aqui abordados, tais como “Arte de

amar”, “Evocação do Recife”, “Vou-me embora pra Pasárgada”. No presente estudo

pretendeu-se delinear um estudo panorâmico partindo de A cinza das horas a

Libertinagem. Saindo do “gosto cabotino da tristeza” e chegando ao poeta ao “Bonheur

lyrique”. A persona poética de Manuel Bandeira ganha fôlego nas coisas simples, não

cabe nos “grandes temas universais”. Apesar disso, sua faz uma viagem à roda do

208

SANTIAGO, 2009. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0301200920.htm

112

mundo numa casquinha de noz, construindo a partir do simples o complexo; a partir de

seu corpo limitado, a transcendência possível para outros temas da natureza humana.

Propôs-se aqui, portanto, ver o quanto a persona tísica de Manuel Bandeira foi

atravessada mais pela própria poesia do que pelo bacilo de koch. Estudar a tísica em

Manuel Bandeira é se ver confrontado com temas muito além da tísica, como a

melancolia, a ansiedade e a angústia humanas. Não, o poeta não fez versos de guerra,

mas sabia da guerra que se opera na efemeridade do homem.

113

8. ANEXO

Imagem 1: Retirada de A cinza das horas. São Paulo: Global, 2013.

Imagem 2: Detalhe mais aparente da Ariesphinx desenhada por Alberto Childe. Fonte: capa de

Homenagem a Manuel Bandeira 1986 – 1988, organizado por Maximiano de Carvalho e Silva.

114

Imagem 3: Recorte

do comentário de

Augusto Frederico

Schmidt à peça de

Odilo Costa Filho,

inspirada no poema

“Na rua do sabão”.

Jornal Correio da

Manhã de 20 de

novembro de 1949.

Fonte:

http://memoria.bn.br

/DocReader/089842

_05/50541

115

Imagem 4: Fotografia de Manuel Bandeira. A estátua de gesso à sua direita.

116

Imagem 5: Recorte de “A primavera” de Sandro Botticelli. Veja as flores sendo expelidas da boca da

figura à direita, ornando o vestido da figura à esquerda (inspirada em Simonetta Vespucci). Ideia um tanto

parecida com a hemoptise metaforizada em um indivíduo afeito à sensibilidade e à beleza.

117

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