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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO Sonia Maria Marques de Souza Cosentino VIDA, LIBERDADE, VERDADE E AMOR Experiência Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientadora: Prof.ª Ana Maria de Azeredo Lopes Tepedino Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

Sonia Maria Marques de Souza Cosentino

VIDA, LIBERDADE, VERDADE E AMOR

Experiência Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia.

Orientadora: Prof.ª Ana Maria de Azeredo Lopes Tepedino

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

Sonia Maria Marques de Souza Cosentino

Vida, Liberdade, Verdade e Amor: Experiência

Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof.ª Ana Maria de A. Lopes Tepedino Orientadora

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof.ª Jenura Clothilde Boff Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Luiz Fernando Ribeiro Santana Inst. Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do

Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro,

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e da orientadora.

Sonia Maria Marques de Souza Cosentino

Graduou-se em Teologia na PUC-Rio em 2005. É professora do Centro Loyola de Fé e Cultura e de cursos no Vicariato Norte. É tutora do Curso de Teologia a Distância da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica

CDD 200

Cosentino, Sonia Maria Marques de Souza Vida, liberdade, verdade e amor: experiência histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura / Sonia Maria Marques de Souza Cosentino; orientadora: Ana Maria de Azeredo Lopes Tepedino. – 2008. 234 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Espírito Santo. 3. Sagrada Escritura. 4. Experiência histórica. 5. Critérios de discernimento. 6. Vida. 7. Liberdade. 8. Verdade e amor. I. Tepedino, Ana Maria de Azeredo Lopes. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

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A Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, por me chamar à vida,

sustentando-a amorosamente,

por ser luz que me conduziu nesta caminhada teológica

e força que me fez superar os desafios neste difícil processo de pesquisa.

A meu amado esposo, Vicente Cosentino,

amigo e companheiro de todas as horas, pelo incentivo e dedicação,

pela compreensão e paciência em minhas “ausências-presenças”,

para que eu pudesse realizar esta dissertação.

A minha mãe que me impulsionava a cada dia com sua admiração.

A meu saudoso pai e a minha saudosa avó Albertina, que sempre acreditaram em

meu potencial e que apesar de ausentes, continuam presentes em minha vida.

A minha querida irmã, Regina Helena, que com sua amizade e carinho sempre me

apoiou em todos os momentos, tanto nos de alegria como nos de tristeza.

Aos meus queridos filhos Frederico, Vanessa e Flávia

pelo apoio e estímulos constantes.

Aos meus queridos netos Leonardo, João Vitor e Mariana

que trouxeram alegria nesta árdua jornada acadêmica.

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Agradecimentos

A minha orientadora e amiga, Professora Doutora Ana Maria de Azeredo Lopes

Tepedino, pela confiança em mim depositada e pela colaboração prestada durante

todo o tempo em que decorreu este trabalho e, principalmente, pela orientação da

Dissertação que sempre foi conduzida com leveza e sensibilidade.

À Pontifícia Universidade Católica pela organização e condução do Curso de

Mestrado em Teologia.

Ao PROLIC, Programa de Apoio para o Desenvolvimento de Lideranças

Católicas, por me proporcionar uma bolsa neste período de pesquisa, sem a qual

este trabalho não poderia ter sido realizado.

A todos os professores e professoras de Teologia da PUC-Rio que colaboraram

em minha formação, em especial, ao Professor Doutor Alfonso García Rubio,

exemplo de teólogo a seguir.

Às funcionárias do Departamento de Teologia pela colaboração e carinho

prestados em todos os momentos de dificuldades.

Aos professores que participam da Comissão examinadora.

Ao Padre Ricardo Pereira Calvo, pároco e amigo, que sempre me incentivou nesta

formação teológica para que a Igreja possa ter um laicato consciente.

Aos amigos e amigas de Mestrado que partilham comigo este momento de

angústias e alegrias, em especial à querida amiga Solange que sempre me

incentivou a nunca desistir dos meus objetivos acadêmicos e pessoais.

A todos os meus alunos e alunas, a todos os meus amigos e amigas que foram um

constante incentivo para que eu continuasse firme neste projeto.

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Resumo

Cosentino, Sonia Maria Marques de Souza; Tepedino, Ana Maria de Azeredo Lopes. Vida, Liberdade, Verdade e Amor: Experiência Histórica do Espírito Santo na Sagrada Escritura. Rio de Janeiro, 2008. 234 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta dissertação se propõe a conhecer o Espírito Santo, que se revela na

Sagrada Escritura, e recolher daí os critérios de discernimento que possibilitam ao

homem e à mulher de fé, viver uma autêntica “vida no Espírito”. Tendo como

base alguns textos seletos do Primeiro e do Segundo Testamentos este trabalho

reflete, primeiramente, a experiência histórica que o povo de Israel faz com o

Espírito de Deus. Em seguida, acompanha Jesus de Nazaré em sua experiência

com este Espírito, dando atenção à sua pregação e práxis, momento em que se dá

a plenitude da Revelação sobre esta Pessoa divina. Finalmente, segue a

comunidade cristã primeva em sua trajetória histórica a partir da rica experiência

que faz com o Espírito Santo, e das dificuldades que encontra em viver

coerentemente, a sua inspiração. É esta multifacetada pneumatologia bíblica que a

presente dissertação se propõe investigar e conhecer.

Palavras-chave

Espírito Santo; Sagrada Escritura; experiência histórica; povo de Israel;

Jesus Cristo; comunidade cristã primeva; critérios de discernimento; “vida no

Espírito”; Vida, Liberdade, Verdade e Amor.

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Résumé

Cosentino, Sonia Maria Marques de Souza; Tepedino, Ana Maria de Azeredo Lopes. Vie, Liberté, Vérité et Amour: Expérience Historique de l´Esprit Saint dans la Saint Écriture. Rio de Janeiro, 2008. 234 p. Dissertation de Maîtrise – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

La proposition de cette dissertation est de connaître l´Esprit Saint tel qu´il

se révèle dans la Saint Écriture et de recueillir à partir de là les critères de

discernement qui permettent à l´homme et à la femme de foi de vivre une

authentique « vie dans l´Esprit ». Basé sur quelques textes choisis dans le Premier

et le Deuxième Testament, ce travail lieu reflète tout d´abord´expérience

historique que le peuple d´Israël fait de l´Esprit de Dieu. Il accompagne ensuite

Jésus de Nazareth dans l´expérience qu´il fait de cet Esprit avec une attention

particulière pour ses sermons et sa praxis car il constituent le moment où a lieu en

toute plénitude la Revélation de sa Personne Divine. En dernier lieu, le texte

accompagne la communauté chrétienne au cours de sa trajectoire historique à

partir de sa riche expérience de l´ Esprit Saint et des difficultés qu´elle rencontre

pour vivre pleinement son inspiration. C´est de cette pneumatologie biblique aux

multiples facettes qu’on se propose a faire l´objet de notre recherche et que nous

avons pour but de connaître

Mots-clés

Esprit Saint; Saint Écriture; expérience historique; peuple d´Israël; Jésus

Christ; communauté chrétienne primitive; critères de discernement ; «vie dans

l´Esprit» ; Vie, Liberté , Vérité et Amour.

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Sumário

Introdução 14

1. A Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro

Testamento 21

1.1. Rûah 25

1.1.1. A Rûah Iahweh 29

1.1.2. A Experiência Histórica da Rûah Iahweh no Primeiro

Testamento 30

1.1.2.1. O Êxodo 30

1.1.2.2. A Travessia do Deserto 34

1.1.2.3. Os Juízes e as Juízas 36

1.1.2.4. A Monarquia 41

1.1.2.5. O Exílio: fonte depuradora para a Experiência da Rûah

Iahweh 52

1.1.2.6. O Pós-Exílio 64

1.2. A Sophía 66

1.2.1. O processo pelo qual passa o termo Sophía 67

1.2.1.1. A Sophía humana 67

1.2.1.2. A Sophía divina 71

1.2.2. Pneuma (Rûah) e Sophía (Hokmah) 75

1.2.3. A personificação da sophía humana e da Sophía divina 77

1.2.4. O que a ação da Sophía divina provoca na

História 78

1.3. A Shekinah 79

1.3.1. Como surge o conceito de shekinah 79

1.3.2. O significado de shekinah 80

1.3.3. Comparação entre Rûah Iahweh e Shekinah 82

1.3.4. Autodistinção de Deus 83

1.3.5. Como a teologia da Shekinah contribui para a compreensão

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do Espírito de Deus 83

1.3.6. O que a ação da Shekinah provoca no ser humano 84

1.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito

de Deus no Primeiro Testamento 85

1.4.1. Identidade: Quem é o “espírito” que se encontra revelado

no Primeiro Testamento? 86

1.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que

“espírito” está agindo no ser humano e no mundo? 87

2. A Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de Nazaré 89

2.1. Pneuma 93

2.2. João Batista 95

2.2.1. Uma vida de pobreza e austeridade 97

2.2.2. Um ensino moral que convoca as pessoas a produzirem frutos

de generosidade com os pobres e a renunciarem à opressão e à

violência 98

2.2.3. Humildade 99

2.2.4. O reconhecimento do Messias 100

2.3. Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito 101

2.3.1. Jesus se deixa batizar por João 101

2.3.2. Jesus é guiado pelo Espírito 105

2.3.2.1. Ao deserto para lutar contra o Tentador 105

2.3.2.2. Para a Galiléia onde concretizará seu messianismo de

serviço 108

2.3.3. Jesus atua no Espírito 108

2.3.3.1. Jesus proclama o “Reino de Deus” 109

2.3.3.2. Jesus expulsa demônios 112

2.3.3.3. Jesus ensina com autoridade 113

2.3.3.4. Jesus leva a Boa-Nova aos “pobres” 114

2.3.3.5. Jesus proclama que o Pai revela o Reino aos “pequeninos” 116

2.3.3.6. Jesus cura e perdoa 117

2.3.3.7. Jesus acolhe as mulheres como suas discípulas e

missionárias 119

2.3.3.8. Jesus resgata os “pecadores” 122

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2.3.3.9. Jesus ora e ensina a orar 124

2.3.3.10. Jesus denuncia todo tipo de injustiça 126

2.3.3.11. Jesus promete o Paráclito 128

2.3.3.12. Jesus ama até as últimas conseqüências entregando-se à

morte 130

2.3.3.13. Jesus ressuscita e entrega o Paráclito 133

2.3.4. Jesus vem do Espírito 134

2.3.5. Jesus é a revelação plena do Amor Trinitário 137

2.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito

de Deus em Jesus 139

2.4.1. Identidade: Quem é o Espírito que se revela em Jesus? 139

2.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que

"espírito" agiu em Jesus? 141

3. A Experiência Histórica e a Teologia do Espírito Santo nas

primeiras comunidades cristãs 143

3.1. A Pneumatologia Lucana a partir da experiência histórica com

o Espírito Santo 147

3.1.1. Há uma continuidade na História da Salvação 148

3.1.2. O dom do Espírito Santo é a Nova Lei gravada no coração de

cada ser humano 149

3.1.3. O Espírito derramado em Pentecostes é um Espírito Pascal,

pois é o sopro do Ressuscitado 150

3.1.4. Não há discriminações nem privilégios entre os membros

da primeira comunidade cristã 151

3.1.5. O dom do Espírito é para que a Boa Nova trazida por Jesus

seja comunicada 152

3.1.6. O Espírito Santo é o protagonista da missão 154

3.1.7. Comunicar a “Boa Nova” no Espírito torna a mensagem

inteligível a todos/as 154

3.1.8. O dom do Espírito permite que o testemunho seja um

testemunho universal 155

3.1.9. O dom do Espírito faz testemunhas cheias de intrepidez 156

3.1.10. O dom do Espírito é livre para agir 159

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3.1.11. A koinonia (comunhão) é fruto do dom do Espírito 160

3.1.12. A perseverança é igualmente um fruto do dom do Espírito 161

3.1.13. O dom do Espírito possibilita que a participação fundamental

das mulheres seja uma realidade que marca toda Igreja nascente 161

3.1.14. O Espírito Santo é o conselheiro da Igreja nascente

para o discernimento sobre a vontade de Deus 163

3.1.15. O dom do Espírito possibilita que a evangelização seja

inculturada 165

3.2. A Pneumatologia Paulina a partir da experiência histórica

com o Espírito Santo 166

3.2.1. O primeiro fruto do Espírito, no tempo, é a Ressurreição de

Cristo dentre os mortos, antecipação da Nova Criação 168

3.2.2. A vida segundo o Espírito 169

3.2.3. Paulo tem consciência que seu ministério apostólico

e as comunidades cristãs transcorrem sob a ação do Espírito Santo 172

3.2.4. O dom do Espírito se realiza na economia da fé e não da lei 173

3.2.5. O dom do Espírito nos liberta para a verdadeira Liberdade 174

3.2.6. A ação do Espírito é universal 175

3.2.7. O Espírito nos constitui filhos e filhas de Deus 176

3.2.8. O Espírito leva o ser humano a uma práxis libertadora 177

3.2.9. A oração cristã é uma ação do Espírito Santo 178

3.2.10. O Espírito possibilita o verdadeiro conhecimento de Deus

e a confissão autêntica de Cristo 180

3.2.11. O Espírito tem uma função decisiva na construção da Igreja

e na sua unidade, assim como na comunhão entre todos os

seus membros 182

3.2.12. O Espírito Santo é o arquiteto do “edifício” que é a Igreja 185

3.2.13. Todo ministério na Igreja é um ministério do Espírito com

a finalidade de edificar a comunidade, e não para alimentar o

orgulho pessoal 186

3.2.14. O extraordinário da experiência com o Espírito de Deus

esconde-se e revela-se no ordinário e cotidiano da vida humana 189

3.2.15. Não há oposição entre carisma e instituição 190

3.2.16. A experiência do Espírito traz alegria nas tribulações 191

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3.2.17. Não há identificação entre o Senhor Jesus e o Espírito 192

3.2.18. É preciso discernir e ficar com aquilo que v

em do Espírito de

Deus 193

3.3. A Pneumatologia Joanina a partir da experiência histórica

com o Espírito Santo 194

3.3.1. As três grandes ações divinas na perspectiva da pneumatologia

de João 195

3.3.2. O Espírito é um outro Paráclito 197

3.3.3. A água-Espírito é a fonte de vida por excelência 205

3.3.4. O Espírito leva a afirmar a encarnação de Jesus 208

3.3.5. O Espírito é o agente dinâmico da verdadeira oração 209

3.3.6. O Espírito gera o amor efetivo 210

3.3.7. O Espírito faz nascer a comunidade 211

3.3.8. O Espírito é força para a missão 212

3.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito

de Deus nas pneumatologias das primeiras comunidades cristãs 214

3.4.1. Identidade: Quem é o Espírito que se encontra revelado

nas pneumatologias lucana, paulina e joanina? 214

3.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir se o

Espírito que agiu nas primeiras comunidades cristãs é o mesmo que

age hoje no ser humano e no mundo? 216

Conclusão 218

Bibliografia 227

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Quem és tu, luz, que me enche

e ilumina a escuridão de meu coração? Tu me guias,

igual à mão de uma mãe da qual, soltando-me, não saberia caminhar

mais um só passo. Tu és o lugar, que cerca meu ser

e em ti me acolhe. Saindo de ti, mergulho no abismo do nada,

de onde tu elevaste o meu ser. Tu estás mais próximo a mim,

do que eu a mim mesma. e mais íntimo do que meu interior -

no entanto, continuas intocável e incompreensível,

arrebatando do que existe: Santo Espírito – Eterno Amor.

Edith Stein

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Introdução

Nossa intenção nesta pesquisa consiste em extrair em seu decorrer as linguagens,

imagens e metáforas que, no Primeiro Testamento, nos permitem vislumbrar

traços da ação do Espírito de Deus no povo de Israel, em seguida recolher do

Segundo Testamento, a revelação e ação deste Espírito na vida de Jesus de

Nazaré e, posteriormente, fazer a mesma investigação na vida da comunidade

primeva. Tudo isto com a finalidade de vislumbrar o Mistério de Deus como

Espírito Santo e recolher os critérios de discernimento que sejam fiéis ao dado

revelado. Para tal, usaremos em nosso trabalho os conceitos “Primeiro

Testamento” e “Segundo Testamento” por considerar que as expressões “Antigo

Testamento” e “Novo Testamento” desqualificam a primeira parte da Bíblia como

obsoleta ou ultrapassada. Infelizmente se desenvolveu entre os cristãos/ãs uma

desvalorização do Primeiro Testamento como um livro “imperfeito”, como um

livro de anúncios, que encontraria seu cumprimento no Novo Testamento.

Entretanto, não podemos esquecer que a Bíblia só é Sagrada Escritura em sua

unidade. Portanto, usando estes conceitos, queremos demonstrar nosso respeito

pelo Judaísmo, com o qual compartilhamos, pela força do mesmo Espírito, esse

documento de fé no Deus comum.

Nossa dissertação afirma que há uma unidade entre o Primeiro e o Segundo

Testamento em relação às pneumatologias aí encontradas. Apesar disto, sustenta

também, que existe um sabor de total novidade que nos é trazido por Jesus de

Nazaré ao revelar quem é o Espírito Santo de Deus. De tal forma isto é uma

realidade que revoluciona a vida das pessoas daquele momento histórico e nos

toca, encanta e impulsiona até os dias de hoje. Novidade esta que se encontra

narrada nas pneumatologias do Segundo Testamento que iremos pesquisar.

Portanto, o que almejamos na realidade com esta dissertação é conhecer a grande

linha mestra da pneumatologia bíblica com o objetivo de recolher daí os critérios

de discernimento que nos possibilitam saber se é realmente o Espírito de Deus

que está agindo hoje no ser humano e no mundo. Só pretendemos elencá-los, pois

sabemos que confrontá-los com nossa realidade existencial e eclesial exigiria de

nós o desenvolvimento de uma pneumatologia que abrangesse áreas que não

fazem parte de nosso escopo. Acreditamos que este trabalho futuro poderá ser

desenvolvido por outros/as teólogos/as de maior competência e disponibilidade.

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15

Antes de iniciar nossa pesquisa propriamente dita gostaríamos, de esclarecer que

nos situamos como “mulher, esposa, mãe, avó, professora de Teologia, e leiga

católica inserida numa comunidade paroquial onde celebra e partilha sua fé e seus

dons”. Logo, é a partir desta realidade que nos propomos a fazer Teologia.

O que motivou nossa escolha pelo tema proposto acima foi nossa dificuldade em

relação ao movimento carismático dentro da Igreja Católica. Nele víamos,

evidentemente, que em alguns casos, uma experiência com o Espírito Santo

distante daquela que foi vivida pelo povo da Bíblia. Em outros casos,

testemunhávamos uma experiência contraditória com o que foi vivido e pregado

por Jesus de Nazaré. Além disto, sabíamos da existência de algumas experiências

carismáticas que não estavam de acordo com os critérios de discernimento que

nos deparamos nos escritos das primeiras comunidades cristãs. Um outro motivo

para escolhermos este tema foi não termos estudado pneumatologia ao fazermos a

graduação em Teologia. Por isso, entendemos que, este momento de

aprofundamento da reflexão teológica que é feito no mestrado, seria um tempo

propício para amadurecer nossa pneumatologia. Finalmente, esse tema foi

escolhido porque nos permite fazer aquilo que acreditamos ser o melhor caminho

teológico: articular a área sistemático-pastoral com a área bíblica. Desta forma,

poder elaborar uma reflexão teológico-pastoral sobre o Espírito Santo a partir da

Sagrada Escritura. Toda esta motivação, assim como nosso lugar existencial e

eclesiológico são de fundamental importância, pois condicionam nossa reflexão a

partir de uma realidade sócio-econômica, política, cultural e eclesial própria. Essa

realidade molda nosso ser e agir, nosso olhar e nosso sentir, nosso falar e nosso

calar. Exatamente por isso, queremos deixar bem claro que nossa reflexão é

pneumatológica numa perspectiva feminista, o que significa dizer que

pretendemos encontrar um Deus maior que em seu Espírito nos permite crer e

invocá-lo também no feminino. Esta perspectiva feminista de nosso olhar e falar

teológico pretende salientar que o Deus que nos cria, salva e santifica, não se

identifica privilegiadamente com um dos sexos que formam a humanidade como

muitas vezes fomos levados/as a crer. Pelo contrário, ele integra e harmoniza os

dois sexos, sem suprimir suas enriquecedoras diferenças, ao mesmo tempo que os

transcende. Portanto, como mulher e teóloga que somos é essencial para nós

destacar a revelação do feminino em Deus, a fim de sermos capazes de crer e

invocar a Deus não só como Pai forte, que impulsiona os seres humanos e os leva

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16

a abrir caminhos novos nunca imaginados, mas também como Mãe que

aconchega, consola, abriga e protege.

É, portanto, a partir desta realidade existencial, cultural e eclesial que lançaremos

nosso olhar para a Sagrada Escritura, selecionando os textos onde encontramos a

presença e a atuação do Espírito de Deus. Uma correta interpretação teológica dos

versículos que apresentaremos em nossa pesquisa supõe um estudo exegético

profundo, o que não é o nosso objetivo, além de fugir a nossa competência. Este

alerta, que afirma nosso limite, deverá ser considerado em cada uma das vezes em

que utilizarmos o texto bíblico. Ademais, queremos frisar que não temos a

pretensão de esgotar a riqueza de sentidos que em si estes textos trazem, apenas

iremos explorá-los no que diz respeito mais diretamente ao tema que nos

propomos pesquisar.

Devido a nossa prática pastoral e ao exercício do ensino teológico percebemos

que as pessoas costumam apreender melhor aquilo que buscamos transmitir, isto

é, o conteúdo teológico ou catequético, quando nos utilizamos da narrativa

histórica. Sabemos que através dela as pessoas se sentem seduzidas, envolvidas,

provocadas e convocadas pela Boa Notícia de que somos porta-vozes. Portanto, é

desta forma que nos propomos apresentar esta dissertação, dito com outras

palavras, este é o método teológico que pretendemos adotar em nossa pesquisa.

Por isso, desenvolvemos nossa reflexão através de uma narrativa que se esforça

por acompanhar o Povo do Primeiro Testamento em sua experiência com o

Espírito de Deus. Para depois acompanhar Jesus de Nazaré igualmente em sua

Experiência Histórica com o Espírito Santo. Finalmente, busca narrar como as

primeiras comunidades cristãs fazem esta mesma experiência maravilhosa. Para

fazer este percurso optamos por dividir nossa pesquisa em três capítulos que

recebem os seguintes títulos: 1) a Experiência Histórica do Espírito de Deus no

Primeiro Testamento; 2) a Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de

Nazaré; 3) a Experiência Histórica do Espírito de Deus nas primeiras

comunidades cristãs.

No primeiro capítulo iremos traçar a experiência carismática que caracterizou

Israel, recorrendo a algumas imagens e símbolos usados no Primeiro Testamento

para falar do Espírito de Deus. Analisaremos de forma separada estas três

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principais metáforas: a Rûah Iahweh, a Sophía e a Shekinah. 1 Fizemos a escolha

por estes três símbolos ou imagens, baseando-nos nos autores e autoras

pesquisados. Entretanto, temos consciência que ao escolher estas três metáforas

deixamos algumas possíveis fora de nossa análise. Apesar disto, entendemos que

aquelas que escolhemos já nos dão material suficiente para o propósito de nossa

reflexão.

Neste capítulo iremos primeiramente tratar da abundância de sentidos que possui

o vocábulo rûah, para posteriormente refletir sobre a riqueza da experiência de

Israel refletida na expressão Rûah Iahweh. A partir daí acompanharemos o

caminho feito pelo povo do Primeiro Testamento. Analisaremos a ação da Rûah

Iahweh, inicialmente, na experiência fundante do povo da Bíblia, o Êxodo. Em

seguida, acompanharemos a formação deste povo em sua caminhada no deserto

quando busca, apesar de todas as dificuldades, concretizar sua libertação.

Veremos como o Espírito de Deus age em seus líderes e os orienta na caminhada.

Vamos acompanhar este povo em sua entrada na Terra Prometida e como, já aí

instalados, se organizam liderados por Juízes e Juízas. Posteriormente,

enfocaremos a monarquia e a ação da Rûah Iahweh nos Reis. Veremos a seguir

que é neste momento histórico que surge o profetismo. Destacaremos então os

principais profetas que fazem uma profunda experiência com o Espírito de Deus,

experiência que se encontra narrada nas páginas do Primeiro Testamento. Em

seguida, acompanharemos o povo para o Exílio, momento fundamental para a

experiência com o Espírito de Deus e que se tornou uma fonte depuradora desta

experiência. Finalmente nos colocaremos no Pós-Exílio para vermos como a

Rûah Iahweh é compreendida e experimentada neste momento de reconstrução e

recomeço.

Em seguida, voltaremos nossa atenção para o símbolo Sophía. Estaremos ainda

dentro de uma perspectiva histórica, pois nos encontraremos com o povo de Israel

no tempo do Pós-exílio, momento em que aprofundam sua fé no Espírito de Deus.

Analisaremos, então, o vocábulo sophía com sua abundância de significados e

veremos que ela é experimentada como sophía humana, e também como Sophía

divina. Observaremos que no livro da “Sabedoria” a Sophía (sabedoria) e o

1 Nesta pesquisa tivemos que optar por uma grafia para os termos hebraicos e gregos utilizados, e fomos fiéis a esta escolha em toda nossa explanação. Todavia, as citações literais dos autores/as pesquisados, que por ventura fizermos, guardará a grafia destes mesmos termos que o autor/a citado escolheu.

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Pneuma (espírito) estão muitas vezes tão ligados que chegam a ser a mesma coisa.

Veremos ainda a personificação da Sophía que é feita em alguns livros do

Primeiro Testamento, sem com isto forçar o texto bíblico para afirmar que aí já se

tem claro o Espírito como uma pessoa divina. Finalmente destacaremos o que a

ação da Sophía provoca no ser humano e no mundo.

O último símbolo que enfocaremos é a Shekinah. Primeiramente descobriremos

seu significado primitivo e o processo pelo qual passa a partir do Exílio, para

posteriormente ver como surge a teologia da Shekinah dentro do judaísmo.

Descobriremos como esta metáfora do Espírito de Deus é hoje compreendida e

usada por alguns pneumatólogos/as cristãos/ãs. Veremos ainda como a teologia da

Shekinah, desenvolvida pelo judaísmo, contribui para compreendermos melhor o

Espírito Santo de Deus. Finalmente apontaremos alguns resultados da ação da

Shekinah no ser humano e no mundo.

O segundo capítulo desta dissertação tem como objetivo ver como o Espírito

Santo age e é compreendido no período messiânico. Nele analisaremos em

primeiro lugar o termo Pneuma com sua riqueza de significados e seu uso no

Segundo Testamento. A partir daí iniciaremos a caminhada histórica da

experiência do Espírito de Deus neste período com a figura de João Batista. Em

seguida refletiremos sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus, sobre sua práxis e

pregação, sobre a revelação inaudita que faz de Deus e, finalmente, sobre sua

relação única com o Espírito Santo. Faremos esta abordagem a partir de uma

“cristologia ascendente”, pois ela nos permite continuar com nossa narrativa

histórica. Veremos que o Espírito Santo sempre esteve presente na vida de Jesus,

tornando-se sua unção e seu companheiro inseparável. Esta presença constante

pode ser percebida por nós com mais clareza: no batismo de Jesus no Jordão; ao

ser conduzido ao deserto onde luta contra o Maligno; ao pregar o Reino de Deus

como total gratuidade; ao expulsar demônios; ao ensinar com autoridade; ao

anunciar a Boa Nova aos pobres; ao curar e perdoar todos e todas; ao acolher as

mulheres como suas discípulas e missionárias; ao resgatar os pecadores/as; ao orar

e a ensinar a orar; ao denunciar as injustiças da sociedade palestinense de seu

tempo; ao amar de forma radical até o ponto de entregar-se à morte; ao prometer e

entregar o Paráclito; e finalmente ao ressurgir pela força deste Santo Espírito.

Após este percurso destacaremos como os discípulos/as do Mestre de Nazaré,

após a experiência pascal (morte-ressurreição-pentecostes), são capazes de

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descobrir que ele vem do Espírito, o que significa dizer que este homem é

concebido por sua intercessão. A partir daí, constataremos que a plenitude da

revelação vem por sua pessoa: Deus é comunidade de amor, Deus é Trindade. Ao

final verificaremos que surge da vida de Jesus uma pneumatologia que mantém

muito da pneumatologia do Primeiro Testamento acrescida da grande novidade

em relação ao Espírito Santo de Deus que brota de sua vida e pregação: o Espírito

é uma pessoa divina.

No terceiro capítulo refletiremos como a presença e a ação do Espírito Santo

foram experimentadas e verbalizadas por alguns autores do Segundo Testamento e

pelas comunidades cristãs que se encontram aí retratadas. Esta experiência traz

um sabor de total novidade, de tal forma que revoluciona a vida destas pessoas,

como já destacamos anteriormente. Mas, é sempre bom não deixarmos de lembrar

que, apesar da total novidade que é experimentada pela comunidade cristã

primeva, há também uma continuidade entre aquilo que vivem com a experiência

carismática já vivida por Israel e por Jesus de Nazaré. Firmes em nossa narrativa

histórica acompanharemos os seguidores/as de Jesus a partir do momento em que

vivem a experiência de Pentecostes, marco fundamental na vida destas pessoas e

da Igreja nascente. Este fato histórico sucede, no tempo, à morte-ressurreição de

Jesus, o que nos permite afirmar que estamos seguindo cronologicamente a

história do Novo Povo de Deus. Portanto, iniciaremos esta caminhada conhecendo

a pneumatologia de Lucas, suas principais características e os critérios de

discernimento que brotam de seus relatos. Posteriormente enfocaremos a

pneumatologia de Paulo encontrada em suas cartas, onde veremos o “apóstolo dos

gentios” lidando com as dificuldades que é viver a grande novidade da “vida no

Espírito”. A partir de seus conselhos pastorais iremos colher as principais

características de sua pneumatologia e os critérios de discernimentos apontados

por ele. Finalmente penetraremos no horizonte pneumatológico de João quando

elencaremos os principais elementos de sua teologia do Espírito e os critérios de

discernimento que podemos deduzir da prática da comunidade joanina.

Nossa proposta de refletir sobre a pneumatologia bíblica chega assim a seu final.

Deste longo e fascinante caminho percorrido iremos recolher os principais pontos

que nos ajudaram a corroborar nossa tese: há uma unidade fundamental e

imprescindível na experiência que o homem e a mulher bíblicos fazem com o

Espírito de Deus, pois é o mesmo Espírito que é experimentado tanto no Primeiro

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como no Segundo Testamento. Porém, esta continuidade que pudemos perceber

nestes escritos é dinâmica porque ganha um sabor de novidade que é trazido por

Jesus Cristo. Esta continuidade dinâmica é o desígnio da graça de Deus, isto é, é a

ação dinâmica do Espírito Santo que constitui da História uma única História, a

História da Salvação. Desta forma, levantando somente a pontinha do véu,

pudemos entreolhar o mistério que é Deus em seu Santo Espírito, pudemos

conhecê-lo um pouco mais e saboreá-lo com mais intensidade, porque o

experimentamos como Vida, Liberdade, Verdade e Amor. Estes são os traços

constantes que marcam a experiência humana com o Espírito de Deus consignada

nas páginas da Sagrada Escritura. Estes traços são os quatro grandes

sinalizadores da presença deste Espírito agindo na História, que nos permitirão

levantar os principais critérios de discernimento, que tanto buscamos.

Que o Espírito Santo seja nosso Assistente, para nós, que falamos dele, e para

nossos leitores!

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1 A Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro Testamento

Introdução

Neste capítulo buscamos traçar a experiência histórica do Espírito de Deus que

caracterizou Israel, pois é no Primeiro Testamento que encontramos a raiz da

riqueza pneumatológica bíblica e as tradições onde se radica a confissão de fé

cristã no Espírito Santo. Faremos isto através de uma narrativa que busca contar

como esta experiência foi acontecendo. Iremos, portanto, narrar a história de um

povo de fé, para, a partir daí, recolher os dados que podem nos ajudar a conhecer

melhor quem é este Espírito e a elencar os critérios pneumatológicos de

discernimento que encontramos no Primeiro Testamento .

Para desenvolver este tema iremos recorrer a algumas imagens, metáforas e

símbolos usados no Primeiro Testamento. Temos claro que o recurso ao uso de

símbolos e imagens é muito comum em toda Sagrada Escritura. Que linguagem

usar para expressar e comunicar o Indizível, o Inefável? Este é o dilema do autor

bíblico que se sente chamado a comunicar uma experiência de fé que não cabe em

palavras. Sabemos que os autores semitas utilizaram as representações próprias de

sua cultura para expressar uma mensagem religiosa, viva e existencial, que possui

um significado e um valor permanentes. Compete a nós ter a capacidade de

mergulhar em seu universo de fé para captar o significado profundo da

experiência vivida.

Perguntamo-nos: quais são os indícios de que realmente no Primeiro Testamento,

encontramos o Espírito de Deus, compreendido e expresso como Rûah, Sophía e

Shekinah? Isto realmente acontece ou é produto de nossa imaginação? Em que

podemos basear-nos para dizer que a Rûah, a Sophía e a Shekinah são metáforas

usadas pelo autor bíblico para aquilo que nós cristãos confessamos ser o Espírito

Santo? Enfim, estas imagens nos ajudam a conhecer melhor o Espírito Santo de

Deus que nos foi revelado por Jesus Cristo? Além disto, a partir delas podemos

recolher alguns critérios pneumatológicos de discernimento? Caso as respostas a

essas questões sejam afirmativa, perguntamo-nos ainda: o que especificamente

conseguimos colher do Primeiro Testamento sobre a revelação de Deus como

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Espírito? E, quais os critérios de discernimento que conseguimos inferir a partir

da ação deste Espírito em Israel? Estas são as questões que nos movem neste

capítulo.

Tentando encontrar respostas para esses questionamentos buscamos ser fiéis à

experiência de fé do povo de Israel, tendo o cuidado de não ler o Primeiro

Testamento a partir do Dogma da Santíssima Trindade. Não “forçamos” estes

textos para afirmar que já aí se percebia explicitamente a ação do Espírito Santo,

como uma terceira pessoa em Deus. Sabemos que até o Cristianismo verbalizar

este dogma foram necessários vários séculos de experiência de Deus a partir da

plenitude da Revelação que se deu em Jesus Cristo. O que fizemos foi uma leitura

cristã deste Testamento, o que é pertinente para nós cristãos/ãs. Não temos dúvida

que a tradição judaica vê nestes relatos a ação de Iahweh, o único Deus de Israel,

pois seu monoteísmo não aceita a pluralidade em Deus. Entretanto, para nós, que

também confessamos o monoteísmo, experimentamos no único Deus que

professamos a presença das Pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Não pretendemos neste capítulo retirar do Primeiro Testamento todos os

versículos em que encontramos narrada a ação da Rûah, da Sophía e da Shekinah.

Iremos somente selecionar algumas perícopes que poderão nos ajudar a alcançar

nosso objetivo, pois nossa intenção não é a de elaborar uma pesquisa que abranja

toda a rica e profunda experiência do Espírito de Deus no Primeiro Testamento.

Estruturamos este capítulo de forma a analisar separadamente cada uma das três

maneiras, por nós escolhidas, de expressar o Espírito de Deus no Primeiro

Testamento. Em primeiro lugar, trataremos do grande potencial e da abundância

de sentidos que possui o vocábulo rûah. Em seguida, refletiremos sobre a riqueza

da experiência de Israel refletida na expressão Rûah Iahweh. A partir daí, faremos

um caminho histórico com o povo do Primeiro Testamento. Para tal, optamos

metodologicamente, por fazer uma breve contextualização de cada etapa desta

caminhada, onde vemos a experiência da Rûah Iahweh narrada, e num segundo

momento, buscamos captar o que sua ação provoca no mundo e no ser humano.

Repetiremos o esquema (contextualização da experiência com a Rûah Iahweh e o

resultado da ação desta) em todas as etapas que percorrermos. A partir desta

perspectiva, analisaremos a ação da Rûah Iahweh, inicialmente, na experiência

fundante do povo da Bíblia que é a experiência do Êxodo. Em seguida,

acompanharemos a formação deste povo em sua caminhada no deserto quando

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busca concretizar sua libertação. Dura caminhada que muitas vezes é vencida pela

acomodação e desânimo, levando muitos deles ao desejo de voltar atrás. Mas, o

Espírito de Deus age em seus líderes e os orienta na caminhada. Já na Terra

Prometida, veremos como se organizam e como vivem liderados por Juízes e

Juízas, período que ficou na memória do povo como o tempo mais próximo do

ideal. Posteriormente, enfocaremos a monarquia e a ação da Rûah Iahweh nos

Reis, que apesar de serem os ungidos de Israel, não são capazes de concretizar

politicamente o ideal de liberdade e vida para todos/as. Veremos a seguir que é

neste momento histórico que surge o profetismo. Os profetas são homens e

mulheres inspirados pela Rûah Iahweh, que terão a função de mediar a palavra de

Deus junto ao povo, para que se mantenha fiel ao projeto de libertação suscitado

por Iahweh. Destacaremos entre os principais profetas que fazem uma profunda

experiência com o Espírito de Deus neste período, Elias e o Proto-Isaías. Após

isto, nos depararemos com o Exílio, momento fundamental para a experiência do

Espírito de Deus e que se tornou uma fonte depuradora desta experiência. Neste

momento histórico são capazes de olhar para o passado e ver que a Salvação já se

encontrava lá, momento em que elaboram as narrativas da criação. São também

capazes de olhar para o futuro com fé e esperança na Salvação que também se

encontra no porvir, e vislumbram aí a Nova Criação. Deste período, destacaremos

o profeta Ezequiel que é capaz de perceber que a Nova Criação é fruto da ação do

Espírito de Deus. Finalmente, nos colocaremos no Pós-Exílio para vermos como a

Rûah Iahweh é compreendida e experimentada neste momento de reconstrução e

recomeço destacando daí o profeta Joel.

Em seguida analisaremos o vocábulo sophía com sua abundância de significados

e a evolução pelo qual passa este termo. Pois, assim como aconteceu com o

símbolo da Rûah Iahweh, também a imagem da Sophía nos ajudará a

compreender quem é o Espírito de Deus que foi experimentado pelo povo do

Primeiro Testamento. Veremos que ela é experimentada como sophía humana, a

saber, como uma das qualidades do ser humano dada por Deus. Como sophía

humana eles a entendem como a habilidade artesanal, a sagacidade, a ciência, a

arte de governar e ainda a prudência que possuem homens e mulheres. Veremos a

seguir que a Sophía foi experimentada também como sendo divina. O autor

bíblico nos dirá que esta Sophía divina tem o poder de governar e ordenar o

mundo, sendo o sentido vital que Deus coloca na estrutura da criação. Ela é ainda

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a companheira ideal do homem e o “rei messiânico” a possui entre seus atributos.

Além disto, ela provém de Deus, e mais ainda, ela se identifica com o Mistério do

próprio Deus. Destacaremos, inclusive, que no livro da Sabedoria a Sophía

(sabedoria) e o Pneuma (espírito) estão muitas vezes tão ligados que chegam a ser

a mesma coisa. Alertaremos ainda sobre a personificação da Sophía que é feita

em alguns livros do Primeiro Testamento, para que não se confunda esta

personificação com a afirmação de que ela é uma verdadeira pessoa, pois esta não

é a percepção dos autores bíblicos. Finalmente, destacaremos o que a ação da

Sophía provoca no ser humano e no mundo.

A última forma de expressar o Espírito de Deus do Primeiro Testamento que

enfocaremos é a Shekinah. Mostraremos como surge este conceito dentro do

judaísmo, e como é hoje compreendido por alguns pneumatólogos/as cristãos/ãs.

Analisaremos o seu significado primitivo e o processo pelo qual passa a partir do

Exílio. Faremos uma breve comparação entre a Rûah Iahweh e a Shekinah que nos

ajudará a refletir sobre a tese de Jürgen Moltmann de que a Shekinah se aproxima

mais daquilo que nós cristãos confessamos ser o Espírito Santo do que a imagem

da Rûah Iahweh. Veremos ainda como a Teologia da Shekinah contribui para

compreendermos melhor o Espírito de Deus. Finalmente, apontaremos alguns

resultados da ação da Shekinah no ser humano e no mundo.

A partir de tudo o que vimos e recolhemos do Primeiro Testamento, podemos

afirmar que conhecemos a pneumatologia que aí se encontra expressa.

Pneumatologia que ainda em “acenos” nos diz quem é o Espírito de Deus, e que

para nós cristãos e cristãs, necessita da plenitude da revelação, que se dá em Jesus

Cristo, para que possamos dizer que “conhecemos” este Espírito.

Todo o percurso feito neste capítulo tem por objetivo preparar o caminho para

encontrarmos, no próximo capítulo, Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito

de Deus. Este homem nos mostrará como é viver a “vida no Espírito” além do

que nos revelará quem é o Espírito Santo. Com isto poderemos apontar os

critérios de discernimento que surgem de sua práxis e pregação.

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1.1. Rûah A palavra hebraica de gênero feminino rûah aparece 378 vezes no Primeiro

Testamento. Ela é quase sempre traduzida para o termo grego pneûma (neutro) e

para o termo latim spiritus (masculino). Segundo Helen Schügel-Straumann o

termo rûah também é empregado como masculino em seis passagens do Primeiro

Testamento, enquanto que para J. Scharbert há mais “exceções masculinas” do

que as mencionadas por Helen e, sobretudo, casos indefinidos do uso deste

termo.2 Segundo F. Raurell, constatar que a rûah é apresentada no Primeiro

Testamento, como sendo do gênero feminino em quase sua totalidade,

“deveria ser registrada com atenção teológica, principalmente ‘por causa das tarefas, imagens e propriedades que acompanham esse Espírito. (...) Deus como ruah revela-se de modo particular nos papéis maternos da criação, manutenção e proteção da vida. (...) O Deus ruah da Bíblia é um Deus que está constantemente em relação com a vida e a faz surgir como faz uma mãe’.” 3

Há nesta afirmação algo de importante para nossa pesquisa, a saber, encontrar o

termo rûah no Primeiro Testamento em sua grande maioria no gênero feminino,

nos revela que Deus é como uma mãe que gera e preserva a vida. Portanto, é a

partir desta informação fundamental de que a rûah está associada estreitamente ao

surgimento, manutenção e proteção da vida, como o faz uma mãe, que iremos

refletir sobre o significado etimológico deste termo. A palavra rûah não pode ser

traduzida por um único termo, pois as “épocas de procedência dos escritos [em

que aparece] são tão diversas, que se torna impossível encontrar um padrão

simples para o uso lingüístico e formar um conceito único para as situações

envolvidas.” 4 Portanto, tentaremos recolher de autores consagrados o que se pode

afirmar sobre este vocábulo.

Para Helen Schüngel-Straumann o termo rûah no início foi certamente uma

palavra onomatopaica, 5 isto é, uma palavra formada a partir da reprodução

aproximada de um som natural a ela associado com os recursos de que a língua

2 Cf. SCHÜGEL-STRAUMANN, H e SCHARBERT J. apud H. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. (org). Manual de Dogmática. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 410. 3 RAURELL, F. apud H. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 410. Grifo nosso. 4 HERON, A. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 49. 5 Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 49.

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dispunha. 6 Helen afirma ainda que etimologicamente rûah, com toda

probabilidade, tem relação com a palavra hebraica rewah que significa amplidão,

espaço aberto à vida das criaturas. 7 A partir daí podemos dizer que este termo

traduzia o vento, isto é, o ar em movimento, ar que cria espaço e possibilita a

vida, e com este sentido aparece em mais da metade do seu uso no Primeiro

Testamento. 8 Rûah significava também o ar da respiração, frágil e vacilante, ar

necessário para a vida e que sustenta e anima o corpo e sua massa. A rûah é

descrita ainda como o hálito das narinas de Iahweh, hálito de um ser muito

poderoso, por isso, se afirma que a vida começa quando vem este hálito (Gn 2,7;

cf. Jó 27,3; 33,4; 34,14ss; Sl 104,29ss; Is 42,5; Ez 37,1-14). 9 Sendo Iahweh o

dono deste hálito, o homem vive enquanto tem nas narinas este sopro, e logo que

ele desaparece, ou é retirado por Iahweh, o homem volta ao pó (Sl 146,4;

104,29ss; Jó 34,14ss). Portanto, o ser humano não é senhor deste sopro, deste ar

ou respiração embora não possa passar sem ele, e morre quando este se

extingue.10 Segundo Luiz Carlos Susin a rûah sendo atmosfera de energia é

também um sinal forte do respiro da mulher em trabalho de parto. 11

Com as analogias do “vento” e da “respiração” aplicadas à rûah, o homem bíblico

buscava ressaltar a dimensão do dinamismo, do movimento em oposição ao que é

rígido, assim como enfatizar a dimensão de alguma coisa viva que se opõe ao que

é morto. 12 Carlos Mesters ao destacar o movimento como um dos traços mais

marcantes da rûah afirma que ela não se identifica com o vento, o ar, a brisa, a

tempestade, a respiração, o fôlego, o hálito, o alento, mas que ela é algo que está

em movimento. Afirma ainda que a rûah não recebe este movimento de fora, mas

sim de uma energia que existe dentro dela, logo, “a Ruah é energia em

movimento. [...] ela não apenas se move, mas põe outras coisas em movimento” 13

Outro traço importante deste termo é sua dimensão de mistério, entendendo aqui

6 Cf. DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA 2.0a. Grifo nosso. 7 Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 51. 8 Cf. BEAUCHAMP, P. Verbete “Espírito Santo”. In: LACOSTE, J. Y. (dir) Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004. p 650. 9 Cf. IMSCHOOT, P. V. Verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. (dir) Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 479. 10 Cf. Ibid. 11 SUSIN, L. C. A criação de Deus. São Paulo: Paulinas; Valencia, ESP: Siquém, 2003. p. 39. 12 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 49-50. 13 MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, Ana Maria. (Org.). Amor e Discernimento: experiência e razão no horizonte pneumatológico das Igrejas. São Paulo: Ed. Paulinas, 2007. p. 32

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mistério como algo que é incompreensível, algo que não se consegue explicar ou

desvendar, ou ainda algo que não se consegue prever ou controlar. Esta

característica também é destacada no Theologisches Handwörterbuch zum Alten

Testament quando afirma que “o significado básico de rûah é simultaneamente

‘vento’ [...] e ‘respiração’ [...], mas ambos não como essencialmente presentes,

mas como a força que se encontra no golpe do sopro e do vento, cujo de onde e

aonde permanecerá enigmático.” 14 Este mistério que há no vento se evidencia

quando o vemos ora como um vento impetuoso e irresistível, como por exemplo,

o vento que dividiu o Mar dos Juncos para o Êxodo de Israel do Egito (Ex 14,21);

ora quando ele se insinua num simples murmúrio (1Rs 19,12); ora quando resseca

com seu sopro a terra estéril (Ex 14, 21); ora quando espalha água fecunda sobre

a terra que faz germinar (1 Rs 18,45). 15 A rûah quando apresentada como um

vento impetuoso aplicado a Deus “passa a ser uma parábola para descrever os

efeitos irresistíveis da força criadora, da ira exterminadora e da graça vivificante

de Deus (cf. Ez 13,13s; 36,26s).” 16

Outra propriedade essencial da rûah é a destacada por Bernd Jochen Hilberath

quando nos diz que “em contextos teologicamente significativos rûah refere-se à

força vital dinâmica (criativa).” 17 Um outro aspecto significativo da rûah é sua

não oposição ao “corpo” ou ao “corpóreo”, pois ela não é desencarnada, mas é a

animação de um corpo. Na verdade a rûah se opõe à sarx (carne), isto é, se opõe à

realidade puramente terrestre do ser humano, caracterizada pela fraqueza,

caducidade e finitude (cf. Gn 6,3). 18 John McKenzie nos diz ainda que a

concepção da rûah como alma não ocorre em parte alguma do Primeiro

Testamento, ela “como princípio de vida é quase sempre considerada como

elemento estranho ao homem, dada por Deus e tirada por ele; nunca é concebida

como um ser pessoal.” 19 Finalmente, seguindo a reflexão feita por Carlos Mesters

14 THEOLOGISCHES HANDWÖRTERBUCH ZUM ALTEN TESTAMENT II apud BLANK, J. Verbete Espírito Santo/Pneumatologia. In: EICHER, P. Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993. p. 243. Grifo nosso. 15 Cf. GUILLET, J. Verbete “Espírito”. In: LÉON-DUFOUR, X. (dir) Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 294 16 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit. p. 50. 17 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 409. Grifo Nosso. 18 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito. São Paulo: Paulinas, 2005. p.18. 19 McKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983. pp. 303-304. Grifo nosso.

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sobre o significado da rûah podemos afirmar como ele o faz “O que mais

caracteriza a Ruah é a sua liberdade.” 20

Por causa de todas estas características, podemos encontrar a rûah no Primeiro

Testamento simplesmente como vento impetuoso (Ex 14,21); ou como o sopro de

Deus que comunica a vida (Ex 15, 8-10; Sl 33,6), e conseqüentemente como a

respiração do homem, o princípio e sinal de vida (Gn 7,22; Sl 104,49-30;

freqüentemente em Jó); e também como a animação que faz realizar uma obra,

sobretudo, se é uma obra de Deus (Ex 31,3ss). 21

Tendo em mente as principais propriedades da rûah que acabamos de salientar

(movimento, vida, mistério, imprevisibilidade, incontrolabilidade, força vital

criativa, espaço aberto, oposição à fraqueza e finitude humanas, impessoalidade e

liberdade) podemos afirmar que é sua utilização num determinado contexto,

relacionado a um assunto e uma intenção que irá determinar seu valor. Segundo

Yves Congar, que na teologia atual é um dos teólogos que mais aprofundou a

reflexão pneumatológica, as 378 utilizações de rûah podem ser distribuídas em

três grupos principais a partir do significado comum que as reúne: a) vento, sopro

do ar; b) força viva no homem, princípio de vida (respiração), sede do

conhecimento e dos sentimentos; c) força de vida de Deus, pela qual ele age e faz

agir, tanto no plano físico como no plano espiritual. 22 Este teólogo afirma ainda

que a rûah sendo um princípio causador de alguns efeitos, receberá destes suas

várias qualificações. Desta forma, a rûah pode ser um sopro-espírito de

entendimento (Ex 28,3), um sopro-espírito de sabedoria (Dt 31,3; 34,9; 35,31), ou

um espírito de ciúme (Nm 5,15); ou ainda um espírito mau 23 vindo do Senhor (1

20 MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 33 21 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 18-19. 22 Cf. Ibid., p.17. 23 Para entender melhor a afirmação de que a rûah pode ser um espírito mau vindo do Senhor recorremos ao que nos esclarecem dois teólogos: Vejamos primeiramente o que nos diz Jürgen Moltmann: “De acordo com a generalizada visão espiritualista do mundo nas épocas e culturas em que surgiram os escritos do Antigo Testamento, por toda parte existiam boas e más ruahs (...) O que encontramos de especial na visão israelita antiga consiste, manifestamente, em o mundo ser dominado não pelos numerosos deuses e demônios, mas sim pelo Deus Único que era entendido como o Senhor destas forças boas e más.” MOLTMANN, J. Op.cit., p. 50. Grifo nosso. Vejamos ainda o nos diz Bernd Jochen Hilberath: “Para o ser humano do AT tudo provém de Deus, e o quanto isto é verdade é documentado pela observação de que se atribui certa autonomia às forças demoníacas e negativas, que também são designadas como ruah, e de que a proveniência delas freqüentemente permanece obscura; entretanto, elas são subordinadas a Javé de tal modo que às vezes ele próprio aparece como seu causador (cf. 1Sm 16, 14-23; 18,10; 19,9).” HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 410. Grifo nosso. Portanto, ao afirmar que a

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29

Sm 16, 14; 18,10). Além destas designações a rûah pode ser também um espírito

ou sopro de Deus, isto é, ser a Rûah Iahweh. 24 Resumindo, rûah pode ser

qualificada como rûah de entendimento, de sabedoria, de ciúme, rûah má vinda

do Senhor, e finalmente Rûah Iahweh.

1.1.1. A Rûah Iahweh

Quando é que a rûah recebe esta denominação? Quando é que este sopro-espírito

é entendido como sendo de Iahweh? Quando expressa o sujeito (Iahweh) pelo

poder do qual são produzidos vários efeitos no mundo e no ser humano. Quando é

o próprio Iahweh que produz naqueles homens ou mulheres os dons de líder, de

profeta etc. 25 Assim sendo, a Rûah Iahweh é na verdade “uma força divina que

transforma personalidades humanas para torná-las capazes de gestos

excepcionais. Tais gestos são sempre destinados a confirmar o povo na vocação, a

fazer dele o servo e o parceiro do Deus santo.” 26 Com este sentido aparece trinta

e uma vezes na Primeira Escritura. 27 Às vezes a Rûah Iahweh designa o próprio

Deus e recebe então, em raríssimas passagens, a expressão “Espírito Santo” (Is

40,13; 63,10; Sl 51.13, Sb 9,17). O uso desta expressão “foi provavelmente

substituindo termos mais antigos como ‘o espírito de Javé’, ‘o espírito de Eloim’,

porquanto os judeus posteriores evitavam cada vez mais pronunciar os nomes de

Javé e Eloim” 28 Este sopro-espírito é santo porque é de Deus, porque pertence à

esfera da existência de Deus. 29

Para entendermos melhor a riqueza de sentido que há na expressão Rûah Iahweh,

qualificativo da rûah que mais nos interessa, seguiremos a reflexão de Jürgen

Moltmann, um dos maiores pneumatólogos da atualidade. De forma sintética,

podemos afirmar que ele nos diz que a Rûah Iahweh é: a) presença divina que

penetra no mais íntimo da existência humana (Sl 139, 7.23ss), sendo o acontecer

da presença pessoal de Deus; b) força criadora de Deus que é comunicada às

criaturas, de tal forma que quando estamos falando da Rûah estamos falando rûah é um espírito mau vindo de Deus o autor bíblico pretende enfatizar a fé no Deus único, além de reafirmar que tudo o que existe está subordinado a Deus. 24 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 19. 25 Cf. Ibid. 26 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 296. 27 Cf. BEAUCHAMP, P. Verbete “Espírito Santo”. In: LACOSTE. Op. cit., p. 650. 28 IMSCHOOT, P. V. Verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 482. 29 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.19.

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também da força vital delas, a força de vida imanente em tudo que é vivo; c)

espaço de liberdade onde o ser vivo pode desenvolver-se, pois a Rûah Iahweh cria

espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão, e assim torna vivo

todas as coisas (Sl 31,9; Jó 36,16). 30 Mas, que fique bem claro, no Primeiro

Testamento, este Espírito ainda não está revelado como uma pessoa.

Por tudo o que acabamos de expor sobre a rûah e sobre a Rûah Iahweh, podemos

afirmar que ao tratarmos do tema “A experiência do Espírito de Deus no Primeiro

Testamento” e numa elaboração sistemático-teológica é plausível orientar-nos

pelo fio condutor “Espírito, vida e liberdade”.

1.1.2. A Experiência Histórica da Rûah Iahweh no Primeiro Testamento

É o Espírito-Sopro de Deus, que antes de tudo é aquele que faz agir de modo a

realizar o Desígnio de Deus na história, o que nos interesse nesta pesquisa. Por

isso, não nos ateremos à rûah quando apresentada em outra perspectiva que não

esta.

A seguir, destacaremos, sempre através de uma narrativa histórica, somente

algumas das principais passagens da Primeira Escritura onde, segundo os

autores/as pesquisados, vemos esta ação da Rûah Yahweh no mundo e nos seres

humanos. Estas passagens poderão nos ajudar a apreender melhor quem é este

Espírito e como age na criação e na história, com a finalidade de percebermos o

que significa viver sob sua inspiração.

1.1.2.1. O Êxodo

É com a experiência do Êxodo que começa toda a história do Povo de Deus. Por

isso, começamos nossa narrativa a partir desta experiência fundante. Ademais,

quem desconhece a mensagem do Êxodo jamais entenderá o sentido de toda a

Bíblia, pois a idéia que se tem de Deus, tanto no Primeiro Testamento como no

Segundo, está fundamentada neste livro. Sem ele, a Bíblia perderia seu ponto de

30 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 51.

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partida para nos levar até Jesus Cristo e seu Reino de amor-serviço e justiça.31

Reino que é o resultado da ação do Espírito de Deus em cada ser humano.

A palavra êxodo significa saída. No livro do Êxodo este nome está intimamente

ligado à libertação da opressão do Egito mediante a ação do único Deus, que

ouve o clamor do povo oprimido e o liberta. É a partir da experiência que se faz

ao sair da opressão para se viver num espaço amplo de liberdade, que nasce um

povo, o povo de Iahweh.

A formação deste povo começa a partir da experiência vivida no êxodo do Egito,

que se dá por volta de 1290-1260 a.C. 32 Nesta época o Faraó Ramsés II resolve

construir uma cidade e armazéns na região de Gessen. Este Faraó era intransigente

e passou a exigir trabalhos cada vez mais forçados de seus escravos/as. 33 Esta

situação de extrema opressão e dominação colabora para que estes/as tomem

consciência de sua condição e contribui para despertar neles/as o desejo de

liberdade que se expressa em oração (Ex 1,1-2,25). Deus responde à prece destes

homens e mulheres chamando Moisés para liderá-los na concretização desta

libertação. (Ex 3,1-12). 34 É por isso que se afirma que a “experiência fundante

de Israel é o ato da libertação.” Este ato “não só funda um povo, mas também

uma fé no Deus que liberta o oprimido, dando-lhe a chance de abrir caminhos

novos dentro da história.” 35

É paradigmático para entendermos o significado do Êxodo o seguinte texto

bíblico:

“Iahweh disse: ‘Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. Agora, o grito dos israelitas chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os israelitas.” (Ex 3, 7-10)

31 Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Conheça a Bíblia. São Paulo: Paulus, 1986. pp. 37-38. 32 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 519. 33 Cf. BALANCIN, E. M. História do Povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2005. p. 15 34 Cf. MESTERS, C. Deus onde estás? Uma introdução prática à Bíblia. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 45. 35 STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo: o caminho para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1991.p. 14

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Segundo esta perícope, Deus vê a miséria de seu povo, ouve seu grito por causa

dos opressores e conhece as angústias pelas quais passa. Por causa disto, Deus

intervém e desce para libertar esse povo e fazê-lo subir para uma terra onde há

liberdade e vida. Este acontecimento fundante, onde Deus intervém na história,

como o Deus que cria vida e liberdade, não se trata de uma simples mudança de

lugar geográfico (de uma terra para outra, isto é, sair do Egito para chegar a

Canaã). Êxodo é na realidade a conquista do próprio espaço para, “na liberdade,

construir uma sociedade nova e sempre aberta à criação de espaços cada vez mais

significativos para o povo expandir a sua experiência de vida.” 36 Portanto, a

saída da terra da opressão tem um objetivo que é o de conquistar uma terra onde o

povo possa viver a liberdade e encontrar a vida. Este binômio “liberdade e vida”

é uma das características da Rûah Iahweh destacada por Jürgen Moltmann quando

baseando-se na afirmação de Helen Schüngels-Straumann nos diz que esta Rûah é

espaço amplo onde acontece vida e liberdade. 37

Na terra de Canaã há fertilidade e espaço, realidade nova e cheia de vida, pois lá

corre leite e mel (Ex 3, 8). Nesta nova terra deverá haver um horizonte de

possibilidades que inclui também novas relações, a saber, um novo sistema

político, econômico, social e religioso. 38 Este novo sistema implica: a) nas

relações políticas, a participação livre das pessoas nas decisões sobre o futuro do

grupo; b) nas relações sociais, a organização de relacionamentos livres e a

formação de uma cultura e costumes próprios; c) nas relações econômicas, a

distribuição dos bens entre todos; d) nas relações religiosas, a garantia de poder

exprimir e viver os valores da fé no Deus libertador. 39 Por conseguinte, podemos

afirmar que o Êxodo é o caminho de saída de uma sociedade opressora e injusta,

através da inspiração do Deus libertador, para a construção de uma nova

sociedade mais fraterna, baseada na participação de todos/as no destino da

comunidade e na partilha dos bens entre todos/as. Por conseguinte, é com esta

mística que sai do Egito um grupo de escravos e escravas liderado por Moisés.

36 STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo. Op. cit., p. 15. Grifo nosso. 37 Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 51. 38 Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 33 39 Cf. Ibid., p. 13-14.

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O que a ação da Rûah Iahweh provoca no Povo que busca Libertação e Vida

A partir do que acabamos de expor poderíamos afirmar que foi a Rûah Iahweh

quem inspirou estes homens e mulheres a buscarem a vida e construírem sua

própria liberdade. Foi o Espírito de Deus que é espaço de amplitude, Espírito que

gera vida e liberdade, quem os conscientizou a tornar concreto e visível, no

mundo e na história este espaço vital. Queremos deixar claro que o texto bíblico

não usa o termo Rûah Iahweh para se referir ao Deus único e libertador de Israel,

somos nós que estamos fazendo esta apropriação baseando-nos na reflexão de

Juergen Moltmann e de Helen Schüngels-Straumann 40 e, principalmente, no

Trito-Isaías que afirma que “a primeira libertação, sob Moisés, havia sido feita

sob a ação do Espírito.” (63,7-14) 41

Um alerta se faz necessário: a experiência do Êxodo não é algo que aconteceu

num passado distante e que só tem sentido para as pessoas que o viveram naquele

momento e local específicos. Esta experiência é fundamental para todo homem e

mulher, de qualquer espaço geográfico ou tempo histórico, pois é através deste

longo processo de libertação e vida, que podemos nos encontrar aptos/as para

concretizar relações verdadeiramente humanas, onde não há oprimido/a nem

opressor/a. E, isto só é possível pela ação da Rûah Iahweh, pois ela provoca no ser

humano o desejo de ser livre e de viver em liberdade, e de construir uma

sociedade fraterna, igualitária e justa para todo/as.

Gostaríamos de destacar neste momento o comentário que faz Carlos Merters ao

elaborar uma reflexão sobre o Êxodo e seu relato bíblico. Ele nos diz que há aí

uma mensagem de fé fundamental: “Deus estava presente e atuante naquela

tentativa humana de libertação, a Bíblia considera tal esforço de libertação como

manifestação da presença de Deus entre os homens e como início da estrada que

conduz a Cristo e à ressurreição.” 42 Estas palavras confirmam a importância do

Êxodo na vida de todo cristão/ã.

40Cf. SCHÜNGELS-STRAUMANN, H. apud MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 51-52. 41 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.24. 42 MESTERS, C. Deus onde estás?... Op. cit., p. 43. Grifo nosso.

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1.1.2.2. A Travessia do Deserto

Durante o longo tempo em que o grupo do Egito liderado por Moisés (Ex 3,15ss),

faz a travessia do deserto, juntam-se a este grupo ainda outros grupos que também

sofriam opressão e desejavam viver sua libertação. 43

Sabemos que a maior dificuldade do oprimido/a é começar a vida em liberdade,

pois vai se deparar com muitas dificuldades, a ponto de achar melhor voltar atrás

e se acomodar na escravidão, pois esta não implica perigos e riscos, basta que se

obedeça a seu opressor/a. Em contrapartida, a liberdade acarreta desacomodação,

responsabilidade e riscos. O processo de libertação pelo qual passa o povo de

Deus no deserto implica perigo representado pelo opressor que o persegue no

momento em que está se libertando (Ex 14, 11-12); falta de comida e bebida

(itens básicos para a sobrevivência) que o faz voltar-se contra seus líderes (Ex

16,3; 17,3); e desejo de acumulação que equivale a repetir o que acontecia no

sistema opressor do qual estão se libertando (Ex 16). Portanto, ao sair da terra da

escravidão, o povo entrou no deserto, lugar da dificuldade e da tentação de voltar

atrás. 44 Como podemos ver foi dura e difícil esta travessia, que não significa

simplesmente passar pelo deserto físico do Sinai, mas significa isto sim fazer a

passagem da escravidão para a libertação. Para tal é necessário um longo tempo

de aprendizagem, aqui simbolizado pelos quarenta anos no deserto.

O que a ação da Rûah Iahweh provoca no Povo e nos Líderes que atravessam o Deserto

Inspirados pela Rûah Iahweh, que provoca no ser humano o desejo de vida e

liberdade, os quatro grupos que fizeram a experiência do êxodo se unem. E, para

manter o ideal da libertação e da vida surge o conceito de Aliança com o Deus

libertador (Dt 19ss), que está sempre suscitando a prática da libertação. 45 Desse

modo, Iahweh aparece como protetor permanente dos oprimidos/as e exige que

43 Para conhecer estes grupos e qual a mística que cada um deles traz na formação do povo de Deus consultar MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos. Porto Alegre: Mazzarolo editor, 2002. p. 27. 44 Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., pp. 48-52. 45 Para uma melhor compreensão do conceito Aliança no Primeiro Testamento consultar McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 25-27.

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ninguém seja opressor/a. 46 Esta “aliança é resumida na seguinte fórmula: ‘Eu

serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo’ (Jr 7,23; 11,4; 24,7; Ez 11,20; 14,11;

Os 2,25).” 47 Além disto, surge também a idéia de Eleição, isto é, a idéia de que

Israel está destinado a ser o povo de Iahweh por escolha do próprio Iahweh. 48 A

Eleição não se deve aos méritos de Israel (Dt 4,9ss) nem a seu número (Dt 7,7),

portanto, Iahweh não o escolhe por ser melhor ou maior que os outros povos, mas

este povo é eleito para tornar-se um povo consagrado a Iahweh (Dt 14,2), com a

obrigação de só reconhecê-lo como Deus (Dt 4,39) e observar os seus

mandamentos (Dt 4,40; 7,9ss; 10,16ss). 49 Portanto, “o povo vai pouco a pouco

descobrindo o Deus que o acompanha na história. Ele é o Deus que não fica

restrito num santuário ou numa montanha, mas desce para ficar junto com o povo,

solidarizando-se com ele na situação de opressão (cf. Ex 3,8).” 50

Como podemos ver, a Rûah Iahweh acompanha o povo em sua caminhada

provocando entre as pessoas a necessidade de estabelecer uma relação de Aliança

com ela. Além disto, dá leis (Ex 20, 1-17; Dt 5, 1-21) a este povo para que possa

transformar as relações entre seus integrantes, fundando assim uma comunidade

onde deve ser assegurada a vida, a liberdade e a dignidade de todas as pessoas.

Um texto muito importante, e destacado pela maioria dos autores/as pesquisados

quando tratam deste período, é o que retrata a Rûah Iahweh que estava em

Moisés, sendo repartida por Deus com os setenta anciãos (Nm 11,16-30). A partir

daí “eles se põem a profetizar e Josué se escandaliza que tal privilégio tenha sido

concedido de forma pouco seletiva.” 51

“Iahweh disse a Moisés: ‘Reúne setenta anciãos de Israel, que tu sabes serem anciãos e escribas do povo. Tu os levarás à Tenda da Reunião, onde permanecerão contigo. Eu descerei para falar contigo; tomarei do Espírito que está em ti e o porei neles. Assim levarão contigo a carga deste povo e tu não a levarás sozinho. ’” (vv. 16-17). “Moisés saiu e disse ao povo as palavras de Iahweh. Em seguida reuniu setenta anciãos dentre o povo e os colocou ao redor da Tenda. Iahweh desceu na Nuvem. Falou-lhe e tomou do Espírito que repousava sobre ele e o colocou nos setenta anciãos. Quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram...” (vv. 24-25)

46 Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 55. 47 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 25 48 Para aprofundar o conceito de Eleição consultar McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 271-272. 49 Cf. Ibid., p. 271. 50 STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., pp. 28-29. Grifo nosso. 51 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.21.

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“Josué, filho de Nun, que desde a sua juventude servia a Moisés, tomou a palavra e disse: ‘Moisés, proíbe-os!’ Respondeu-lhe Moisés: ‘Estás com ciúme por minha causa? Oxalá todo o povo de Iahweh fosse profeta, dando-lhe Iahweh o seu Espírito!’” (vv. 28-29)

Segundo esta passagem, podemos afirmar que a Rûah Iahweh quando repousa

sobre o ser humano pode levá-lo a profetizar. Este Espírito é dado por Deus a

quem ele deseja dar e não a quem o deseja, pois Deus não é manipulável.

“Quando, porém, Moisés, tendo chegado a avistar a terra prometida, for morrer,

Deus lhe inspirará o ato garantindo sua sucessão.” 52

“Moisés falou a Iahweh e disse: ‘Que Iahweh, Deus dos espíritos que anima toda carne, estabeleça sobre esta comunidade um homem que saia e entre à frente dela e que a faça sair e entrar, para que a comunidade de Iahweh não seja como um rebanho sem pastor’ Iahweh respondeu a Moisés: ‘Toma a Josué, filho de Num, homem em quem está o espírito. Tu lhe imporás a mão’”. (Nm 27,15-18)

Portanto, para ser o pastor que guiará o rebanho na entrada da Terra Prometida e

na ocupação desta terra, Deus manda que Moisés imponha suas mãos sobre Josué,

garantindo que nele encontra-se a presença de seu espírito. Sendo assim,

podemos deduzir que para liderar o povo é preciso a presença deste Espírito

enviado por Iahweh.

1.1.2.3. Os Juízes e as Juízas

Por volta de 1200 a.C., após um longo processo de aprendizagem no deserto do

Sinai, trajetória que implica lutas pela libertação em vários lugares, este povo

entra na Terra Prometida trazendo experiências importantíssimas. Entre elas a

certeza de que é possível vencer o opressor/a, além do nome diferente de Deus,

Iahweh, 53 que não se confunde com o deuses das cidades-Estados de Canaã, o El.

52 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.21. 53 Em Ex 3,14 Deus diz: “Eu sou aquele que sou”. Logo depois, diz simplesmente: “Eu sou”. Isto pode ser entendido de várias maneiras: a) Eu existo; b) Eu serei quem estou sendo; c) Eu sou aquele que faz ser; d) Eu estou presente; etc. Esse mistério em torno do nome de Deus mostra de um lado que o homem é incapaz de penetrar o segredo de Deus, e por outro, que ninguém é capaz de manipulá-lo ou dominá-lo. Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 28.

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Estas experiências vão ser fundamentais para unir cada vez mais os grupos em

torno de uma causa comum: criar uma sociedade nova dentro de Canaã. 54

Para concretizar o ideal de vida e liberdade, é preciso agora, habitando na terra

onde corre leite e mel, construir esta sociedade lentamente, pois, como já

expusemos, a libertação não é algo que se conquiste de uma vez para sempre. Ela

é na realidade um processo contínuo que se encontra aberto na história, onde todo

o povo está constantemente à mercê de novos opressores/as. 55 Portanto, com estes

valores sociais e religiosos (viver a liberdade, o que implica em não se deixar

explorar ou oprimir por nada nem ninguém, mas igualmente, não explorar nem

oprimir o irmão/ã; e expandir a experiência de vida), este grande grupo irá se

organizar na terra de Canaã, reunindo-se em famílias, clãs e tribos. 56 A reunião

de todas as tribos que fizeram a experiência do Êxodo e que se instalam em Canaã

irá formar a Confederação das Doze Tribos de Israel. Para John McKenzie “a

origem e a função desta Confederação são obscuras em muitos pontos.” 57 Já

Euclides Martins Balancin afirma que esta Liga ou Confederação nasceu para que

se pudesse tornar viável um sistema diferente de sociedade, pois a grande

preocupação das tribos era a de não criar entre elas a mesma opressão que tinham

sofrido. 58

As “doze tribos” vivem em regiões separadas por causa do terreno ou floresta,

onde exercem atividades agrícolas ou pastoris. Além disto, as tribos entre si não

apresentam qualquer sinal de unidade política além do constituído por um sistema

tribal comum, pelo culto a Iahweh e pela “confissão da experiência básica dos

pais (e mães) de que o próprio Deus havia tirado ‘Israel’ da casa da servidão, o

Egito, e o conduzido à terra prometida (cf. o chamado credo histórico-salvífico

em Dt 26)”. 59

Este período da história israelita em que o povo vive organizado desta forma vai

desde o estabelecimento em Canaã até o surgimento da monarquia. 60 Este período

54 Cf. BALANCIN, E. História do Povo de Deus... Op. cit., p. 22. 55 Cf. STORNIOLO, I. e BALANCIN, E. M. Como ler o livro do Êxodo... Op. cit., p. 55. 56 Sobre a temática das famílias, clãs e tribos e quais suas atribuições neste momento histórico ver BALANCIN, E. M. Op. cit. p. 23. 57 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 947. 58 Cf. BALANCIN, E. M. Op. cit., pp. 24-25. 59 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 411. Grifo nosso. 60 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 519

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ficou na memória do povo de Israel como o tempo em que se viveu mais próximo

do ideal.

O que a ação da Rûah Iahweh provoca nos Juízes e nas Juízas

Devido à organização que acabamos de descrever e às circunstâncias críticas em

que se encontrava o povo, surgem nas tribos uma espécie de líderes ou de

guerreiros carismáticos a quem damos o nome de Juízes e Juízas. 61 Para o povo,

estes distintos líderes são escolhidos por Iahweh, como havia feito outrora ao

escolher Moisés. Este povo agora experimenta diretamente a atuação do Espírito

divino que presenteia o carisma de líderes a estes homens e mulheres que irá

conduzir. 62 É no livro dos Juízes onde encontramos narrada esta época, e que nos

oferece um relato do agir histórico do espírito de Deus em seus líderes

carismáticos. 63 Em meio à situação em que se encontravam uma ou mais tribos,

uma pessoa recebe a Rûah Iahweh que pousa sobre ela e assim sente-se

impulsionada à missão de libertar o povo da opressão causada pelo inimigo. 64

Sendo assim, as tribos são governadas por chefes que têm um cargo vitalício

(juízes menores ou administradores permanentes da justiça), enquanto que nos

momentos de grande dificuldade surgem os chefes carismáticos (juízes maiores ou

líderes militares ocasionais), que unem e lideram as tribos contra os inimigos. 65

Estes são libertadores temporários, e a Rûah Iahweh os deixa uma vez cumprida a

sua missão. Segundo Jürgen Moltmann os dons carismáticos dos juízes e juízas

são:

“espontâneos e por prazo limitado, de indivíduos em benefício de todo povo, e neste sentido, são também dons corporativos do povo inteiro. Pois Israel como um todo deve ser um ‘sacerdócio régio’ para os povos. Além disto, “o dom carismático produz vidência, sabedoria, profecia e liderança.” 66

61 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.21. 62 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 411. 63 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52. 64 Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Juízes: aprendendo a ler a história. São Paulo: Paulus, 1992. p. 37. 65 STORNIOLO, I.e BALANCIN, E. M. Conheça a Bíblia... Op. cit., p. 57. e STORNIOLO, I.. Como ler o Livro dos Juízes... Op. cit., p. 35. 66 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52. Grifo nosso.

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Mas, o que significa o dom recebido pelo Juiz/a ser um dom corporativo? Não

podemos esquecer que a noção de um indivíduo representando um grupo e

reciprocamente um grupo social representado por um indivíduo era muito comum

para este povo. 67 Logo, os Juízes e Juízas eram personagens corporativas, isto é,

eram entendidos como uma pessoa que representava Deus no meio do povo e

representava o povo diante de Deus. Conseqüentemente ao receberem os carismas

da Rûah Iahweh estariam recebendo dons corporativos do povo da Aliança, o que

significa dizer que todo o povo recebia estes dons através da figura do Juiz/a.

É digno de destaque o papel da mulher como líder do povo, isto é, como Juíza

neste período da história que, como já dissemos, ficou na memória do povo como

um tempo ideal. São possivelmente personagens desta época Judite e Ester,

apesar dos livros que narram suas façanhas terem sido escritos depois do Exílio da

Babilônia (entre o III e o II séculos a.C.). Estas mulheres associam astúcia,

sedução e mística profética em favor do povo. Temos ainda entre as Juízas deste

período, Débora que estabeleceu seu tribunal à sombra de uma palmeira, que

ficou conhecida como a palmeira de Débora. A ela vinham os filhos de Israel para

obter justiça (Jz 4,5). Esta mulher é verdadeiramente juíza e profetiza dentro da

história do povo de Deus. 68

O período dos Juízes e Juízas é um tempo de “democracia” (Jz 21,25), porém

cheio de dificuldades. Durante esta época, de aproximadamente cento e cinqüenta

anos, podemos ver Otoniel, Gedeão, Jefté e Sansão, líderes militares ocasionais 69

recebendo a Rûah Iahweh, e observar o que ela provoca nestes homens:

“O espírito de Iahweh esteve sobre ele (Otoniel), e ele julgou Israel e saiu à guerra. Iahweh entregou em suas mãos Cusã-Rasataim, rei de Aram, e ele triunfou sobre Cusã-Rasataim.” (Jz 3,10). “O espírito de Iahweh revestiu Gedeão...” (Jz 6,34)... “O povo de Israel disse a Gedeão: ‘Sê nosso soberano, tu, o teu filho e o teu neto, porque nos salvaste das mãos de Madiã.’ Gedeão, porém, lhes respondeu: ‘Não serei eu vosso soberano, nem tampouco meu filho, porque é Iahweh quem será vosso soberano.’” (Jz 8, 22-23). “O espírito de Iahweh veio sobre Jetfé... Jefté passou aos amonitas para os atacar, e Iahweh os entregou nas suas mãos.” (Jz 11,29. 32).

67 Cf. TEPEDINO, A. M. A. Encontro com a Igreja de Jesus Cristo (Eclesiologia) in: Iniciação Teológica. Departamento de Teologia. PUC/Rio: Edição Experimental, 2005. p.40. 68 Cf. MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., pp. 31-32. 69 Segundo Ivo Storniolo há uma exceção entre esses líderes ocasionais que é a situação de Jefté. Este juiz foi também administrador permanente da justiça (Jz 11,7). Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Juízes... Op. cit., p. 36. Entretanto Jz 15, 20 nos diz que “Sansão julgou Israel na época dos filisteus, durante vinte anos.”

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“O espírito de Iahweh começou a impeli-lo (Sansão)...” ( Jz 13,25). “O espírito de Iahweh veio sobre ele” e lhe deu tanta força que “sem nada na mão ele esquartejou o leão” (Jz 14, 6). “Então, o espírito de Iahweh caiu sobre ele e se apossou dele...” “e ele matou trinta homens.” (Jz 14, 19).

Segundo estes versículos o Juiz é entendido como um líder carismático, todavia,

“o sujeito atuante e real nestas histórias é sempre a ruah Iahweh.” 70 Esta Rûah

Iahweh é concedida como espírito sobrenatural, que leva a fazer ou dizer coisas

que estão além da capacidade humana comum. 71 É da seguinte forma que os

Juízes e Juízas são suscitados pelo Espírito de Deus:

“Sem esperar, e sem que nada os predisponha para isso, sem poder opor resistência, de simples filhos de camponeses, Sansão, Gedeão, Saul são brusca e totalmente transformados, não somente tornados capazes de feitos excepcionais de audácia ou de força, mas dotados duma nova personalidade, aptos para desempenhar uma função e cumprir uma missão, a de libertar seu povo. Por suas mãos, o Espírito de Deus prolonga a epopéia do Êxodo e do deserto, assegura a unidade e a salvação de Israel, e vem assim a estar na origem do povo santo.” 72

Como podemos ver a Rûah Iahweh torna pessoas comuns em líderes do povo a

fim de cumprir a missão de libertá-lo de uma nova opressão, mantendo-o unido, o

que garante sua salvação.

Nestes primórdios de Israel encontramos, além das tradições das guerras de

Iahweh com seus guerreiros carismáticos, o discurso acerca da Rûah no contexto

do profetismo extático. 73 Nestes casos a Rûah Iahweh, na maioria das vezes, vem

sobre um grupo inteiro de profetas sem que, entretanto, fique restrita a este

círculo. (1Sm 10,5-13; 19,20-24). O primeiro livro de Samuel (10, 5-6) narra o

profetismo extático com as seguintes palavras: “Tu te defrontarás com um bando

de profetas [...]. Eles estarão em transe profético. Então o espírito do Senhor virá

sobre ti, entrarás em transe com eles e serás transformado em outro homem.” Esta

atuação da Rûah Iahweh colocando pessoas em transe é uma manifestação

passageira (cf. 1Sm 19,24), de caráter meramente episódico. É de fundamental

importância destacar que o êxtase profético não representa um aspecto específico

da experiência do Espírito vivida por este povo. O que é decisivo para

70 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52. 71 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 520. 72 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412. 73 Para conhecer um pouco mais este fenômeno consultar SICRE, J. L. Profetismo em Israel: O profeta. Os Profetas. A mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 106.

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entendermos o êxtase, é que embora seja produzido pelo Espírito, não está ligado

às palavras e ações salvadoras de Iahweh. Além disto, há uma acentuada atitude

negativa em algumas narrativas bíblicas para com o êxtase profético,

provavelmente porque este fenômeno era provocado e repetido. (cf. 1Sm 10,10-

13; 19,8-24). 74

1.1.2.4. A Monarquia

A passagem do sistema tribal para o regime monárquico não é historicamente

muito clara, além de não se ter uma idéia muito precisa do que significava a

realeza nos primeiros tempos de Israel. Encontramos relatos desta passagem com

várias versões, algumas delas chegando a ser contraditórias. 75 Assim como

encontramos várias fontes sobre a eleição de Saul como Rei de Israel, assim

também localizamos várias fontes que narram a entrada de Davi a serviço deste

rei e ainda dois relatos sobre a morte de Saul. 76 Para a finalidade de nossa

pesquisa basta-nos destacar somente como, neste novo sistema de governo,

acontece a ação da Rûah Iahweh sobre o monarca de Israel.

A - Os Reis

“Em Israel, o rei não pertence, como nas civilizações vizinhas, à esfera do

divino. Permanece sujeito, tanto quanto os outros homens, às exigências da

Aliança e da Lei.” Entretanto, ele é considerado uma pessoa sagrada, pois é o

ungido de Iahweh e esta unção deve ser respeitada (1Sm 24,11; 26,9). É a partir

de Davi que em Israel Deus faz dos reis seus filhos adotivos (2Sm 7,14; Sl 2,7;

89,27s), depositários de seus poderes e virtualmente estabelecidos à frente de

todos os reis da terra (Sl 89,28; cf. 2,8-12; 18,44ss). O rei em Israel deve ser fiel a

Deus o que lhe garante a proteção divina. Deve ainda garantir a prosperidade do

povo (cf. 20,21) e fazer reinar a justiça dentro de seu reino (Sl 45,4-8, 72,1-7.12ss;

Pr 16,12; 25,4s; 29,4. 14). Além disto, eventualmente, deve exercer certas funções

74 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412. 75Um exemplo disto encontra-se no primeiro livro de Samuel onde existe um relato contra a monarquia (1Sm 8; 10, 17-27) e um outro que é a favor da monarquia (1Sm 9,1-10,16; 11). 76 Para conhecer estas versões consultar STORNIOLO I. e BALANCIN E. M. Como ler os Livros de Samuel: a função da autoridade. São Paulo: Editora Paulus, 2003.p. 32. e ainda McKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico... Op. cit., p. 855.

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cultuais (2Sm 6,17s; 1Rs 8,14. 62s) o que nos possibilita falar de um sacerdócio

real (Sl 110,4). 77 “Ele é um chefe carismático, tal como os juízes; isto significa

que ele estava impregnado do espírito de Iahweh para desempenhar suas

funções.” 78 Este rei que deveria ser justo, pacífico e fiel é um rei ideal (Sl 101).

Podemos ver narrados nos livros históricos e proféticos que a experiência

histórica da realeza não concretizou este ideal de rei. Muito pelo contrário, os

maus reis são numerosos, tanto em Israel como em Judá. 79

O que a ação da Rûah Iahweh provoca nos Reis

Com Saul, personagem que faz a transição entre a época dos Juízes/as e a

monarquia, o carisma espontâneo e por tempo definido que era dado a estes/as

deixou de manifestar-se. Entretanto, a presença da Rûah Iahweh sobre Saul ainda

guarda o caráter meramente episódico. Podemos observar isto comparando dois

textos bíblicos. Num deles, quando Saul é ungido por Samuel, se diz: “Deus

mudou o coração de Saul (10,9)... o espírito de Deus veio sobre ele, e ele entrou

em transe profético com eles” (1 Sm 10,10; 10,6). No outro texto que trata da

entrada de Davi a serviço de Saul já se diz: “O espírito de Iahweh tinha se

retirado de Saul...” (1Sm 16,14). Então a Rûah Iahweh passa para Davi e agora se

diz: “O espírito de Iahweh precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também

depois.” (1Sm 16,13). 80 Podemos perceber que a partir de Davi a Rûah Iahweh

torna-se um dom permanente para o ungido de Deus, que necessita de qualidades

especiais para governar. Desta forma Deus faz uma aliança especial com o rei,

assim como o fez com seu povo, e a Rûah Iahweh é esperada como uma presença

divina especial que acompanhará o rei de Israel. Novamente aplica-se aqui a

compreensão de personalidade corporativa, a saber, o rei representa Deus no

povo e o povo diante de Deus, portanto, seu carisma faz parte dos dons

corporativos deste povo. 81 Portanto, é com Davi que a experiência da Rûah

Iahweh atinge um novo estágio. Ela, agora, não intervém mais em situações de

extrema aflição, como acontecia na época dos Juízes/as, mas torna-se uma dádiva

77 Cf. GRELOT, P. Verbete “Rei”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 866. 78 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 782. Grifo nosso. 79 Cf. GRELOT, P. Verbete “Rei”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., pp. 866-867. 80 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412. 81 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 52.

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permanente para o ungido de Iahweh. 82 Desta forma Davi recebe o título

carismático que o habilitará a reinar sobre a Confederação das Doze Tribos (1 Sm

16,1-13). 83 A concessão e a ação da Rûah Iahweh associam-se à pregação e

instrução autoritativa do rei e podemos observar isto nas últimas palavras de Davi

(2Sm 23,1-7) que afirmam “O espírito de Iahweh falou por meio de mim, a sua

palavra está na minha língua.” (v. 2). Entretanto, é importante enfatizar que as

palavras e ações do rei não são atribuídas a uma atuação direta da Rûah Iahweh. 84 Isto fica claro com a vida conturbada do próprio rei Davi, que nos mostra este

homem como: fugitivo (1Sm 19,11ss); mercenário a serviço do inimigo de seu

povo e bandido formador de um bando, (1Sm, 21-31); adúltero e assassino (2Sm

11). 85

Salomão, filho de Davi com Betsabéia, irá reinar sobre Israel depois da morte de

seu pai. Com a morte de Salomão o império se divide (931 a.C.) em dois reinos: o

reino de Israel, com sede em Samaria, que caiu em poder da Assíria em 722 a.C.,

e o reino de Judá, com sede em Jerusalém, que caiu em poder da Babilônia em

586 a.C. A monarquia torna-se o oposto daquilo que se buscava com o Êxodo. O

grande anseio do povo era o de ser governado por uma autoridade capaz de

discernir e realizar a justiça. Entretanto, isto não acontece. Não há mais

liberdade, vida, justiça, direito, solidariedade e partilha. Portanto, quebra-se a

Aliança com Iahweh. Todos estes acontecimentos das vidas e das opções dos reis

deste povo tornarão determinante a história futura da fé de Israel. Vai ficando

cada vez mais claro que:

“a coalizão de Espírito de Deus e poder político é efetivamente frágil. Encaixa-se nesse contexto o fato de que nos textos legais e jurídicos do AT a ruah Yahweh não tem qualquer importância. Na esteira da escatologização da fé de Israel a idéia da monarquia no Espírito de Javé passa para o messias como rei salvífico pelo qual se anseia (cf. Is 11,2; 42,1; 61,1).” 86 Além disto, “a unção ritual não basta para fazer dos reis fiéis servos de Deus, capazes de garantir para Israel a salvação, a justiça e a paz. Para cumprir essa função requer-se uma ação do Espírito mais profunda, a ação direta de Deus que marcará o messias.” 87

82 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412. 83 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit. p. 215. 84 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412. 85 Para conhecer um pouco mais sobre a vida de Davi consultar McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 215-220. 86 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 412. 87 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 297. Grifo nosso.

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Percebe-se que a Rûah Iahweh não está ligada necessariamente ao poder político

(reis), pois ser ungido ritualmente não basta para que um rei se torne um fiel servo

de Iahweh. A frustração sofrida por causa da monarquia faz crescer a esperança

num ungido (messias) fiel e justo. Ele receberá a ação direta e profunda da Rûah

para realizar o projeto de Deus (Is 42, 1-9). Ele será o rei salvador deste povo!

Surge ainda uma outra esperança: a Rûah descerá sobre todo o povo de Deus (Ez

36,27; 39,29; Is 32,15; 44,3). 88

O profetismo tem um grande papel neste momento histórico.

B – Os/as profetas Quem são estas figuras que aparecem com tanta freqüência a partir da monarquia?

O termo nabî’ é o mais freqüentemente utilizado para referir-se aos profetas. 89

Segundo José Luiz Sicre ele aparece 315 no Primeiro Testamento, sobretudo, a

partir do final do século VII e durante o VI a.C. Esta abundância de citações

provoca muitos problemas, porque o título nabî’ acabou sendo aplicado a diversas

pessoas, inclusive com comportamentos e características opostas. Porém, todo

nabî’ comunica a palavra de outra pessoa, seja a de Baal, se for um/a profeta de

Baal, seja a de Iahweh, se for um/a profeta de Iahweh. 90 Nossa pesquisa não tem

por escopo entrar na análise do fenômeno profético, por isso trataremos do

profetismo como um todo. Nossa reflexão que busca conhecer a experiência

histórica da Rûah Iahweh nos profetas enfocará somente os/a profetas de Iahweh.

Tentaremos fazer uma síntese das características destes/as personagens a partir de

alguns autores/as para que assim possamos entender como se dá neles/as a ação da

Rûah Iahweh.

Segundo Isidoro Mazzarolo o profeta de Iahweh é:

“um vidente, um embaixador de Deus, um arauto da justiça e, por conseqüência, perseguido, caluniado e difamado (cf. Mt 5, 11-12). O Profeta é a memória da Libertação do Egito e a consciência da cidadania e direitos sociais em nome da fé. O Profeta não tem outro parâmetro para a crítica social, política ou religiosa senão a fé em um Deus que liberta (Ex 20,1) e que não admite a escravidão, em

88 MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., pp. 34-35. 89 Para saber quem são os nabîs’ ver GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus” in: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 297. e SICRE, J. L. Profetismo em Israel: O profeta. Os Profetas. A mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 81. 90 Para aprofundar este tema consulte SICRE, J. L.Op. cit., p. 89. e MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2007. p. 14.

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qualquer de seus desdobramentos. O Profeta é a consciência e o discernimento da dignidade do ser humano e sua dupla relação: com Deus e o outro.” 91

Para José Luís Sicre o profeta:

“é o homem da palavra [...] No drama dos livros proféticos, o primeiro personagem é a palavra [...] [Ela] apodera-se do profeta com tal força, que a partir desse instante se deve definir toda a existência dele em termos de palavra [...], o profeta nunca pronuncia palavras próprias, mas a palavra que Deus põe na sua boca para que a transmita aos contemporâneos.” 92

McKenzie nos afirma que:

“O espírito de Iahweh é muitas vezes a força que inspira a profecia (Nm 11,17ss; 24,2, 2Sm 23,2; 1 Cr 12,18; Is 61,1; Mq 3,8; Ez 2,2; 3,12.14.24; 8,3; 11,1.5.24; 37,1; 43,5; Ne9,30; Zc 7,12). O profeta é um homem do espírito (Os 9,7). Na era messiânica uma efusão geral do espírito dará a todo Israel a visão profética (Jl 3,1-2). Deve-se notar que, à exceção de Os 9,7 estas passagens são muito provavelmente pós-exílicas; e o espírito como agente inspirador não aparece na antiga literatura profética, onde a inspiração consiste em ouvir a palavra de Iahweh.” 93

Segundo estas afirmações podemos dizer que o profeta de Iahweh é o homem do

Espírito que tinha a função de mediar o dabar divino (palavra de Deus) junto ao

povo, isto é, tinha a função de comunicar ao povo esta Palavra que liberta e

possibilita a vivência da justiça. O fundamental para nós nestas citações é a

afirmação de que o profeta é o homem do Espírito, e também o homem que ouve a

palavra de Deus e a comunica. Portanto, com base nestas declarações podemos

ratificar a afirmação de Yves Congar, a saber, “Espírito e Palavra estão muito

unidos especialmente nos eventos proféticos.” 94 Jacques Guillet faz esta mesma

vinculação quando ao falar dos profetas afirma que “a palavra que anunciam

provém deles, mas não nasceu neles, ela é a própria palavra do Deus que os

envia. Assim se delineia a conexão que aparece já em Elias (1Rs 19,12ss) e não

mais se acabará, entre Palavra de Deus e o seu Espírito.” 95

91 MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia... Op. cit., p. 13. Grifo nosso. 92 Cf. SICRE, J. L. Op. cit., pp. 101-102. Grifo nosso. 93 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 304. Grifo nosso. 94 CONGAR, Y. A Palavra e o Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1989. p. 26 95 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 298.

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Além de apontarmos este vínculo entre Palavra e Espírito na atividade profética,

é necessário destacarmos ainda algumas das principais características do profeta

de Iahweh. A mais fundamental delas é a de ser o guardião do projeto de Deus,

que coincide com as aspirações do povo, 96 sendo a missão verdadeira do profeta

de Iahweh a de revelar a bondade de Deus aos pequenos. 97 Para isso, ele é

escolhido por Deus. Ninguém escolhe ser profeta por si mesmo (1Sm 3). O

momento deste chamado (vocação) supõe uma experiência de Deus, uma

descoberta que marca a existência do profeta e onde ocorre algo de novo. 98 Outra

característica do nabî’, que devemos destacar, é a de poder atuar às vezes de

maneira independente, conforme o faz Elias e tantos outros, e às vezes em grupo,

conforme a prática de Eliseu. 99 Finalmente, uma outra particularidade importante

do profeta de Iahweh é a que nos traz Sicre quando nos afirma que “as mulheres

podem fazer parte deste movimento, e até com grande prestígio, dado este muito

importante se recordarmos que em Israel elas não têm acesso ao sacerdócio.” 100

Este autor cita como exemplo de profetas mulheres: Maria, irmã de Aarão, que

une profetismo e música (Ex 15,20); Débora (Jz 4,4) profetisa e juíza; Hulda (2Rs

22,14). 101

Com estas informações preciosas sobre o profeta de Iahweh destacaremos a seguir

alguns destes que são considerados os mais importantes quando se trata do tema

experiência do Espírito. Iremos situá-los historicamente a partir da divisão feita

por José Luís Sicre em seu livro “Profetismo em Israel”. 102

a) O profeta Elias: “O início da profecia bíblica”

O profeta Elias 103 desenvolveu sua atividade profética nos reinados de Acab e

Ocozias no Reino do Norte (874-852). Ele é um profeta itinerante, sem

96 Cf. STORNIOLO, I.; BALANCIN, E. M. Os Livros de Samuel: a função da autoridade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2003. p. 14. 97 Cf. VARONE, F. Esse Deus que dizem amar o sofrimento. São Paulo: Editora Santuário, 2001. p. 32. 98 Cf. SICRE, J. L. Op. cit., p. 119. 99 Cf. Ibid., p. 89. 100 Ibid., p. 90. 101 Cf. Ibid., pp. 81-82. 102 Este autor divide o profetismo em Israel nas seguintes etapas: a) os inícios da profecia bíblica; b) o século áureo da profecia; c) silêncio e apogeu; d) junto aos canais da Babilônia, e) anos da restauração; f) a caminhada para o silêncio. Cf. Ibid., pp. 231-338 103 A reflexão que desenvolvemos sobre este profeta se baseia em VARONE, F. Op. cit., pp. 27-52.

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vinculação a um santuário, e que aparece e desaparece de forma eventual. 104 Elias

é um profeta que insiste no caráter único da divindade Iahweh e no repúdio a

qualquer culto a outros deuses. 105 Este homem prediz ao rei Acab uma seca de

três anos (1 Rs 17,1), provocando assim uma confrontação de poder entre ele e o

rei. Esta confrontação pretendia representar um confronto entre Deus e Baal. Com

isto Elias queria ser reconhecido como o representante do “deus” mais forte que

Baal. Depois de fazer esta previsão ele se esconde (1Rs 17, 2-8). A partir daí é

conduzido por Deus para a torrente do Carit (1Rs 17, 2-3) e depois para Sarepta,

na Fenícia (1Rs 17, 8). Iahweh pretende mostrar a este profeta que não é um outro

Baal mais forte do que o Baal do rei e da rainha. Na realidade Iahweh é um Deus

diferente, e isto Elias irá aprender muito lentamente. Em Sarepta, Elias se depara

com a vida dos fracos e com seus problemas mais simples (1Rs 17,7-16). É aí que

“a palavra de Deus estará verdadeiramente em sua boca” (1Rs 17,24), pois entre

o grande desafio da seca e o milagre do humilde jarro que jamais se esvaziará

(1Rs 17,14), a palavra de Deus fez sua escolha pela humildade e fraqueza. O filho

da viúva vem a adoecer e falecer e nada é mais fraco do que um menino morto.

Elias encontra-se diante da insignificância individual, tão diferente da

magnificência da corte, e assim, ele pode agir fazendo o menino voltar à vida (1Rs

17, 17-24). Depois de passados dois anos, tempo de uma reciclagem para este

profeta, Elias apresenta-se a Acab desafiando-o a uma prova com os profetas de

Baal, os protegidos da rainha, Jezabel. Elias ainda não percebeu quem é realmente

Iahweh. Por isso, retoma a confrontação de poder: quem enviaria chuva depois de

tão longa seca, Baal ou Iahweh? É no monte Carmelo que esta prova tem lugar. É

importante notarmos que a narração bíblica não cita nenhuma palavra, nenhum

mandato de Deus para provocar o rei e seus profetas numa prova de força e muito

menos de matar estes profetas depois da “vitória”. Segundo a compreensão de

Elias, Iahweh responde a seu apelo dando-lhe o “triunfo” sobre os profetas de

Baal (1Rs 18, 18-46). Ele acredita que revelou o poder de Iahweh e que agora

pode servir-se deste para reunir todo Israel numa grande estrutura de poder. Passa

então a agir como os poderosos. Elimina primeiro a concorrência (1Rs 18,40),

depois torna-se colaborador do rei: como camareiro (1Rs 18,41), mestre de

cerimônia (1Rs 18,44), e arauto do rei (1Rs 18,46). Finalmente entra de forma

104 Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 238 105 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 273.

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triunfal na capital Jezrael. Entretanto, Elias esquece que num regime de violência,

a rainha é mais forte do que ele. Por isso, é hostilizado e perseguido por Jezabel,

sendo obrigado a fugir para o monte Horeb. Lá, despojado de todas as ilusões de

poder e de soberba que possuiu anteriormente, encontra-se agora preparado

para a teofania do Deus diferente, pois Iahweh é o oposto do “deus” do poder

(1Rs 19, 1-21). 106

O que a ação da Rûah Iahweh provoca em Elias

Este profeta encontra-se dentro da própria caverna onde Moisés já tinha sido

beneficiado com a teofania fundadora da aliança (cf. Ex 33, 21-23) quando Deus

lhe diz:

“ ‘Sai e fica na montanha diante de Iahweh.’ E eis que Iahweh passou. Um grande e impetuoso furacão fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante de Iahweh, mas Iahweh não estava no furacão; e depois do furacão houve um terremoto, mas Iahweh não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo, o ruído de uma leve brisa. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta. Então veio uma voz que lhe disse: ‘Que fazes aqui, Elias?’ ” (1 Rs 19, 11-13)

Como podemos ver Elias encontra-se sozinho no Horeb, sem nenhum desafiador,

seja o rei Acab, a rainha Jezabel ou os profetas de Baal para seduzi-lo em suas

relações de poder. Está diante de Deus, como estava em Sarepta diante da mulher,

no mesmo estado de despojamento, de fraqueza e de necessidade, portanto de

verdade. Desta forma, este profeta encontra-se apto a ver o próprio Deus se

‘projetar’ em sua direção. Conseqüentemente Elias percebe que Iahweh não se

encontra no terremoto, no furacão ou no fogo, pois ele está na brisa suave, ou

seja, nos meios secretos. Compreende que ele não se alia aos poderosos e que não

gosta de espetáculos retumbantes, nem de sacrifícios humanos, além disto,

entende que Iahweh respeita as opções dos seres humanos, mas toma sempre o

partido dos mais fracos. Na atividade profética de Elias se deu um longo processo

de aprendizado e conversão, frutos da ação pedagógica divina, movimento lento

e amoroso da Rûah Iahweh em Elias. A luta entre os dois mundos que se

encontravam em tensão diante de Elias (mundo do poder e da dominação, e

106 Cf. VARONE, F. Op. cit., pp. 31-40.

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mundo da fragilidade humana e da libertação), foi também uma dura luta interna

travada no mais profundo de seu íntimo para que pudesse optar por um destes dois

mundos. Esta difícil e penosa luta, ou melhor, este combate espiritual, só chega ao

fim desejado, porque Elias se abre à ação da Rûah Iahweh e aos pequenos. Este

profeta no Horeb descobre que Iahweh age no mistério, no íntimo das liberdades

pessoais daqueles que se mantêm diante dele em verdade. Elias percebe então que

Iahweh permanece “inatingível, nem utilizável, nem assinável, escapando aos

desejos do poder de seu profeta, deixando-o antes se atrapalhar até que a vida

lhe faça descobrir a vaidade de suas escolhas.” 107

Portanto, foi a Rûah Iahweh, agindo no coração deste profeta e nos fatos

cotidianos de sua história, que possibilitou que ele conhecesse verdadeiramente

Iahweh e qual é a sua missão como profeta. É ainda a Rûah Iahweh que lhe dá

coragem para continuar nesta missão.

b) O profeta Proto-Isaías: “O século áureo da profecia” O profeta Isaías desenvolve sua atividade profética entre os anos de 740 a 690

a.C. no reino do norte (Judá). Presencia e vivencia a injustiça praticada pela elite

dirigente 108 e as tristes conseqüências dessa situação na vida do povo. É profeta

do Templo e conselheiro do rei (2Rs 19,1-7) o que não significa dizer que

apoiasse as injustiças e corrupções das classes altas. Muito pelo contrário, é

homem decidido que demonstra energia enfrentando reis e políticos. Seus maiores

ataques são dirigidos contra os grupos dominantes (autoridades, juízes,

latifundiários, políticos, mulheres da classe alta de Jerusalém). Defende com

paixão os oprimidos, os órfãos e as viúvas (1,17), e o povo explorado (3,12-15).

Quando fracassa nas suas tentativas de converter o povo não se deixa abater. Cala-

se por alguns anos, não por desânimo, mas por ser um homem de paixão

controlada. Segundo José Luiz Sicre sua profecia está baseada em quatro pontos

fundamentais: a santidade de Deus, a consciência de pecado (pessoal e coletivo), a

necessidade de um castigo, e a esperança de salvação. 109 “Grande parte de sua

pregação era baseada na escolha divina de Jerusalém e na eleição da dinastia

107 Ibid., p. 45. 108 Atua nos reinados de Ozias, de Joatão, de Acaz, e de Ezequias (cf. Is 1,1). 109 Cf. SICRE, J. Op. cit., pp. 265-266.

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davídica, princípios teológicos fundamentais, reflexo da fé que o sustentava.” 110

O fundamental na teologia de Isaías é a concepção da santidade de Iahweh, a

saber, a transcendência física e moral torna Iahweh “totalmente outro” do ser

humano. A segunda idéia fundamental deste profeta é a compreensão de que Deus

possui desígnios com o qual dirige os acontecimentos e os conduz à meta por ele

estabelecida. Estes desígnios são diferentes dos desígnios dos homens e das

mulheres. 111

A pregação de Isaías pretende converter seus contemporâneos/as e levá-los a uma

mudança de conduta. Para ele, converter-se significa estabelecer as relações

corretas entre Deus e o ser humano. Este profeta tinha consciência de ser pecador

e de viver no meio de um povo impuro. Portanto, o fundamental, na pregação

profética de Isaías, é o desejo de provocar no povo o encontro com Deus e a

aceitação plena de Iahweh no meio do povo. 112

O que a ação da Rûah Iahweh provocará no Messias

Como já assinalamos anteriormente, foi ficando cada vez mais claro para a fé de

Israel que a unção ritual sobre os reis não bastava para fazê-los fiéis servos de

Deus e cumpridores do ideal do Êxodo. Por isso mesmo, surge a expectativa do

messias salvador de Israel. É na dificuldade e no perigo que Isaías vai percebendo

esta dura realidade e anuncia a libertação e um futuro de esperança. Faz isto em

primeiro lugar a Acaz através da profecia do Emanuel (Is 7,10ss), depois a

Ezequias durante a invasão de Senaqueribe (Is 37,21-35). 113 Posteriormente,

quando a Assíria reduz Judá a um reino-vassalo Isaías entrevê um renascimento

da dinastia no futuro. 114 É no meio desses dramas que Isaías prediz:

“Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no temor de Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes, julgará os fracos com

110 NAKANOSE, S; PEDRO, E. P. Como ler o Primeiro Isaías (Is 1-39): confiar em Javé, o Santo de Israel. São Paulo: Paulus, 2002. pp. 10-11 111 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 451. 112 Cf. SICRE, J. Op. cit., pp. 275-276. 113 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p.23. 114 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 607.

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justiça, com eqüidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra.” (Is 11, 1-4a). 115

Isaías pressente a existência dum Espírito santo e santificante, fonte única de

todas as transformações interiores (v.2). 116 O messias receberá deste Espírito, que

repousará sobre ele, todos os dons necessários para reinar segundo a justiça. 117

Estes dons são as seis virtudes do governante (sabedoria, inteligência, conselho,

fortaleza, conhecimento e temor de Iahweh). Isaías ainda defende a estrutura

política do reino messiânico, mas estabelece a necessidade da regeneração moral

do reino. Portanto, podemos afirmar que o messianismo de Isaías não pode de

modo algum ser chamado de messianismo político, isto porque é a Rûah Iahweh o

verdadeiro criador do reino messiânico. 118 Podemos ainda perceber que os

versículos destacados acima traçam o retrato ideal do novo rei como sendo o

oposto daqueles que havia em Israel.

“Sobre o messias o Espírito não descerá, mas repousará (Is 11,2); nele fará brilhar todos os seus recursos, a sabedoria e a inteligência como em Besaleel (Ex 35,31) ou em Salomão, o conselho e a força como em Davi, o conhecimento e o temor de Deus, ideal das grandes almas em Israel. Esses dons abrirão para o país assim governado uma era de felicidade e de santidade (Is 11,9).” 119

Portanto, a ação da Rûah Iahweh provocará no messias futuro a possibilidade de

estabelecer a justiça e a felicidade. Com isso, ele não julgará o povo pela

aparência nem pelo que ouve dizer. Como conseqüência da ação da Rûah sua

sentença privilegiará os fracos e os pobres. Ele decidirá com retidão pelos fracos

da terra. Tudo isto porque o novo rei recebe uma investidura espiritual. Afirmar

que a Rûah repousa sobre ele está indicando que o dom do Espírito não é

passageiro, mas duradouro. Estes dons não são para seus próprios méritos, mas

115 Sicre aponta que há críticos que duvidam que o oráculo ou poema messiânico de 11, 1-9 pertença a Isaías, enquanto que há autores que defendem sua autenticidade Cf. SICRE, J. Op. cit., p.267 e p. 273. Para a finalidade de nossa reflexão nos parece irrelevante esta questão. Queremos enfocar o que a ação da Rûah Iahweh provoca no autor deste texto, seja ele o Proto-Isaías ou qualquer outro profeta de Deus. 116 Cf. GUILLET, J. Verbete “Espírito”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 294. 117 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 24. 118 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 607. 119 GUILLET, J. Verbete “Espírito”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 297.

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para serem usados em favor do povo, para que ele possa exercer o governo

baseado na justiça, praticando o direito em benefício dos pobres e excluídos. 120

1.1.2.5.

O Exílio: fonte depuradora para a Experiência da Rûah Iahweh

Durante o Exílio da Babilônia (585-538 a.C.) os judeus/ias, que corriam o risco de

perder a própria identidade, cultura e religião, dirigem seu olhar não só para

frente, isto é, para a possibilidade de salvação no futuro a partir de uma Nova

Criação, mas também lançam um olhar para trás na história. Fazem isto com

novos olhos, abertos pela experiência do desterro e do Exílio. Neste momento

duro e sofrido se desenvolve a reflexão sobre a experiência histórica pregressa de

salvação de Israel. Este olhar para trás ajuda a complementar e ampliar a visão do

povo também em termos de teologia da criação. Portanto, podemos afirmar que o

enriquecimento da experiência e da teologia do Espírito foi determinado pelo

Exílio em duas direções salvíficas: a salvação passada que se deu na criação e a

salvação futura que se abre a partir da nova criação. 121

A - A Salvação já estava no passado: a Criação

Os fiéis pensadores de Israel, tentando responder à questão que levantam nestes

amargos anos de Exílio: “de onde viemos e qual o sentido de estarmos aqui?”,

depuram e aprofundam a experiência de Iahweh e desenvolvem o discurso acerca

de Deus como criador do mundo, do ser humano e de todas as coisas criadas.

Neste momento é dado um grande passo na compreensão sobre Deus.

“Israel inicialmente encontrou Deus pelas intervenções divinas em sua própria história. Javé lhe apareceu, primeiro como seu Deus próprio, o Deus da Aliança que escolheu Israel como seu povo. A antiga fé javista israelita se autodefinia, em função de determinadas experiências históricas, exclusivamente como fé-na-salvação. Obras divinas em favor de Israel são, pois primeiramente intervenções de Deus na história. Mas, pouco a pouco, descobre Israel que o seu Deus é também o do universo, que sua soberania se estende a tudo, que ele é o Senhor das forças cósmicas e que delas dispõe a seu bel-prazer.” 122

120 Cf. MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia... Op. cit., pp. 103-105. 121 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 414. 122 DANIÉLOU, J. No Princípio: Gn 1-11. 2. Petrópolis: Vozes, 1966. p. 38. Grifo nosso.

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Além disto, o que antes havia sido experimentado em diferentes situações da vida,

agora se amplia e percebem a dependência permanente da Rûah como doadora de

vida de Iahweh. 123 É no livro do Gênesis que encontramos narrados dois relatos,

um exílico e outro pós-exílico, que buscam responder a questão sobre as

origens.124

a) O Primeiro Relato da Criação: Deus age através de sua Rûah

O relato que se encontra em primeiro lugar no texto bíblico (Gn 1,1-2,4a) é a

Narrativa Sacerdotal 125 e nos apresenta uma teologia cheia de antropomorfismos

que nos ensinam grandes coisas. Esta narrativa não é histórica no sentido atual

daquilo que um historiador faz. Ela “tem a forma de um grande poema, e assim

deve ser vista, deixando de lado a comparação com as modernas concepções sobre

a origem do universo” 126 No entanto, o seu conteúdo tem um alcance muito

maior, pois busca analisar o que aconteceu no mais profundo da história e da

vida. Portanto, contém reflexões do povo de Deus, a partir de sua fé, sobre suas

origens e a origem de todas as coisas, afirmando que elas se encontram em Deus

que sopra sua Rûah e diz sua Palavra, e só nele. Temos aí uma mensagem de fé

de enorme valor religioso e existencial que consiste na afirmação de que Deus, “e

unicamente Ele, é o criador de tudo quanto existe e, assim a realidade toda a Ele

pertence.” 127 O autor bíblico para fazer esta afirmação de fé se expressa da

seguinte forma: “Ora a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e o

sopro de Deus agitava a superfície das águas.” (Gn 1,2). Vemos neste versículo a

Rûah Elohim 128 “vibrando” 129 sobre a terra vazia, agitando desta forma as águas

123 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 414. 124 Para aprofundar estes dois relatos da criação consultar MAZZAROLO, I. Gênesis 1-11: E assim tudo começou... Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2003. pp. 65-99 e também DANIÉLOU, J. Op. cit., 1966. 125 Para aprofundar sobre o que a exegese moderna nos diz a respeito dos dois relatos da criação consultar GARMUS, L. Uma leitura ecológica dos relatos criacionais de Gn 1-3. In: MÜLLER, I. Perspectivas para uma nova Teologia da Criação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 168 e ainda BOUZON, E. Gn 2,4b-24 e os relatos mitológicos do Antigo Oriente. In: MÜLLER, I. Op. cit.,.p.133. 126 STORNIOLO, I.; BALANCIN, E. M. Como ler o Livro do Gênesis: Origem da vida e da história. São Paulo: Paulus, 1991. p. 13. 127 GARCIA RUBIO, A. Elemento de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê? Petrópolis: Vozes, 2004. p. 60. 128 Elohim é o nome de Deus dado pelo autor deste relato.

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primordiais. Na expressão de M. Buber este sopro de Deus bafeja e brame como

se fosse um vento, pois, esta é a impressão do homem bíblico com referência ao

espírito. 130 Segundo Norman G. Habel em Gn 1,2 encontramos a seguinte

situação neste relato da criação: 1- a terra informe e desabitada encontra-se

escondida nas águas primordiais, enquanto que o sopro de Deus paira sobre estas

águas; 2- a terra encontra-se escondida na obscuridade primordial e aguarda

silenciosamente a manifestação deste sopro; 3- não há uma situação de aparente

dualismo ou conflito. O que significa dizer que não há um caos primitivo que é

vencido pelas obras do Criador. 131 Podemos ainda apresentar outra interpretação

possível para este versículo onde se afirma que a Rûah pairava sobre a

anticriação. 132 Os termos tohu wahobu usados pelo autor bíblico sugerem, ao

mesmo tempo, o vácuo e a desordem, ou seja, a realidade caótica que precedeu a

criação. Entretanto, este caos não significa algo maléfico. Logo, se o Espírito de

Deus está pairando sobre o caos, podemos concluir que ele é mais do que uma

possibilidade, é promessa de vida pairando sobre a realidade caótica. 133 Vale a

pena conferir ainda o que nos diz Philips sobre a Rûah divina no momento da

criação do mundo. Este teólogo afirma que a Rûah pairava e plainava como um

sopro do parto criacional. 134 Nesta mesma linha, Paul Evdokimov, o grande

teólogo russo ortodoxo, afirma que a Rûah neste relato da criação ‘choca’ o ovo

do mundo. 135 Para nós é de suma importância destacar a Rûah como o faz Maria

Clara Bingemer quando nos diz que ela é “como uma Grande Mãe, que de suas

amorosas e fecundas entranhas, dá à luz e faz eclodir o universo [...] ela é mãe e

senhora da vida que traz as coisas do lugar de onde não são para que sejam.” 136

129 É Moltmann quem usa esta expressão. Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 50. 130 Cf. BUBER M. apud BLANK, J. verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Ed. Paulus, 1993. p. 243. 131 Cf. HABEL, N. G. apud GARMUS, L. Uma leitura ecológica dos relatos criacionais de Gn 1-3. In: MÜLLER, I. Op. cit., pp. 170-171. Este artigo é escrito numa perspectiva que busca reler a herança bíblica à luz da crise ambiental pela qual passa nosso planeta. Para esta releitura ecológica da Bíblia é fundamental apresentar a obra criada e seu Criador numa harmonia. Portanto, ela nega qualquer dualismo entre os dois de forma que Deus precise vencer o caos existente anteriormente. 132 Esta interpretação não tem a preocupação ecológica que a anterior apresenta. Sua leitura é exclusivamente pneumatológica. 133 SANTANA, L. F. R. Recebereis a força do Espírito Santo. São José dos Campos, Ed. COMDEUS, 2000. p. 17. 134 Cf. PHILIPS, G. apud BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na América Latina. REB 46. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 81. 135 Cf. EVDOKIMOV, P. apud BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na América Latina... Op. cit., p. 81. 136 BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na América Latina... Op. cit., p. 81.

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O que a ação da Rûah Elohim provoca na terra vazia, nas trevas e nas águas primordiais

“Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus disse: ‘Haja luz, e houve luz’...” Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas...’, e assim se fez... Deus disse: ‘Que as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar e, que apareça o continente’, e assim se fez... Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura...’ A terra produziu verdura... Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento para separar o dia da noite...’ e assim se fez... Deus disse: ‘Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que aves voem acima da terra...’ e assim se fez... Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie...’ e assim se fez... Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança...’ Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.” (cf.Gn 1, 2-27). 137

No relato completo de Gn 1,1-2,4a encontramos associados a Palavra de Deus e

seu Sopro. O Sopro de Deus sai de sua boca, assim como sua Palavra. A boca é o

órgão da palavra e é ainda por onde sai o sopro. No princípio, o Sopro de Deus

paira sobre uma criação que ele realiza por sua Palavra (Gn 1,2s).138

Conseqüentemente,

“Quando a ruah é associada a Deus e Deus associado à ruah, então ruah e dabar Yahweh se aproximam. Ruah é entendida como sopro da voz de Deus (...) Portanto, quando há esta unidade de sopro e voz aplicada à ação criadora de Deus, então as coisas são chamadas à vida pelo espírito e pela palavra de Deus.”139

Esta associação entre Sopro e Palavra de Deus não é exclusiva deste relato da

criação. Podemos encontrá-la também no Sl 33 quando o hagiógrafo ao fazer um

hino à providência nos diz: “o céu foi feito com a palavra de Iahweh, e seu

exército com o sopro de sua boca” (v.6). Igualmente encontramos essa mesma

associação no chamado dos profetas. Percebemos, por exemplo, que nos tempos

mais antigos eles são chamados pela Rûah Iahweh (sopro), sendo que mais tarde

eles serão convocados, na maioria das vezes pelo Dabar Iahweh (palavra). 140

137 Para que a citação bíblica não fique muito extensa entendemos ser mais conveniente retirar desta perícope os versículos que nos dão possibilidade de perceber o que a ação da Rûah provoca. Buscamos colocar em itálico o que consideramos ser pertinente para tal objetivo. 138 Cf. CONGAR, Y. A Palavra e o Espírito... Op. cit., pp. 25-26. 139 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 50. 140 Cf. Ibid.

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No relato sacerdotal da criação, esta profunda relação entre Palavra e Sopro de

Deus, fica mais clara, pois aí vemos Deus criando todas as coisas por sua palavra,

e falando através das energias criadoras da sua Rûah (sopro). 141

“De acordo com a analogia do sopro e da voz pode-se mesmo dizer que as palavras criadoras especificam e definem, mas que elas são proferidas no mesmo sopro, de modo que todas as criaturas são chamadas à vida pela mesma ruah, e que esta constitui a comunhão de todas elas na criação. A palavra masculina (dabar) e a força vital (ruah) necessariamente se completam.” 142

Finalmente, precisamos destacar que a partir do Exílio, assim como a palavra

profética e o Espírito divino que a inspira estão interligados, assim também a

palavra criadora e a Rûah criadora de Iahweh encontram-se igualmente

interligados. 143 Tendo em mente esta íntima relação, que acabamos de destacar,

vejamos a seguir o que podemos afirmar sobre o resultado da ação da Rûah a

partir da perícope que destacamos.

É a ação do Sopro e da Palavra, aqui associados, que cria a luz, fazendo a

distinção entre luz e trevas. E, desta forma, Deus vai criando o firmamento, a

terra, a vegetação, o sol, a lua, as estrelas, todos os animais, e o homem e a

mulher. O que é o essencial para destacarmos neste primeiro relato da criação é o

fato do autor bíblico usar a expressão “Deus criou”. O verbo “criar” em hebraico é

bara’, e o Primeiro Testamento só o usa para Deus, o que significa dizer que é um

vocábulo sagrado. Bara’ designa assim um modo próprio do agir divino, que não

é análogo ao que faz o ser humano como “fabricar” ou “construir”. O termo bara’

indica aquilo que só Deus é capaz de fazer, a saber, criar a partir do nada.

Portanto, esta é a originalidade essencial deste relato, a insistência no fato de que

cada um dos elementos do mundo, e o ser humano são obras de Deus. 144

Podemos ainda afirmar que se o Espírito de Deus transformou o caos primordial

em vida, e esta realidade tornou-se um referencial significativo para toda espécie

de caos que foi experimentado pelo homem e pela mulher bíblicos. Sempre que

este homem e esta mulher viram-se ameaçados/as pelas forças que geravam o caos

ele/a se segurava nesta pedagogia divina: “assim como ele agira no princípio,

141 Cf. Ibid. 142 Ibid., p. 50. Grifo nosso. 143 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 414. 144 DANIÉLOU, J. Op. cit., p. 37-39.

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soprando sobre o caos e cosmificando-o, qualquer situação caótica da história

pessoal ou social do homem já contém em si um germe de promessa criadora.” 145

b) O Segundo Relato da Criação: O ser humano é chamado à vida pelo “hálito” divino Este segundo relato da criação (Gn 2,4b-7) é o mais antigo e mais breve. É a

Narrativa Javista, ou como hoje se prefere denominar na exegese moderna,

Narrativa Pré-Sacerdotal. Aqui não encontramos o relato da criação do mundo,

mas sim o da criação do ser humano. Nele encontramos os versículos 4b-6 como

uma mensagem preparatória para o que será dito no versículo sete. Nestes

versículos precedentes, afirma-se que a realidade que conhecemos não existia no

momento em que Deus criou o homem. Com esta elaboração preliminar chega-se

a esta declaração: “Então Yahweh Deus modelou o homem com a argila do solo,

insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.”

(Gn 2,7). Este versículo narra a criação do homem em dois atos seguido do

resultado que estes atos causam. No primeiro ato Iahweh modela o homem da

forma como o faz um oleiro quando trabalha um vaso de argila.

“Embora a relação ’adam e ’adamah seja clara, o v. 7 apresenta como material empregado na modelagem do homem o ‘apar que pode indicar tanto o ‘barro’, ‘argila’, como também o ‘pó’ que não seria, propriamente, o material usado por um oleiro. É provável que, com o uso deste termo, o autor do relato queira acentuar a limitação, a fraqueza do ser criado. O homem (’adam) é, em sua limitação, terreno; é uma criatura que pertence à terra (’adamah). Foi tirado da terra-mãe; sua missão é trabalhar a terra e quando morrer voltará à terra.” 146

No segundo ato vemos a respiração de Deus, seu hálito, sendo comunicado ao ser

humano por insuflação divina. 147 Portanto, o homem é alguém que por meio do

“sopro divino” se torna um ser vivente.

O que a ação do “hálito” divino provoca no ser humano

“... e o homem se tornou um ser vivente.” (Gn 2, 7c)

145 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 17. 146 BOUZON, E. Gn 2,4b-24 e os relatos mitológicos do Antigo Oriente. In: MÜLLER, I. Op. cit., p. 136. 147 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 303.

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Este é o resultado da ação divina no homem modelado a partir da argila ou pó da

terra. O Primeiro Testamento, desta forma, vê “no homem criado uma unidade e

não um composto. A argila modelada torna-se pelo hálito vital que Deus sopra

nela um ser vivente.” 148 A Rûah é um poder vital divino que domina o homem e

que nunca se torna um componente natural do ser humano. A rûah dos seres vivos

depende permanentemente da Rûah criadora de Iahweh. Desta forma, a Rûah “não

é a dimensão divina das profundezas da vida, e sim potência de vida presenteada

por Deus em sua solicitude para com o ser humano.” 149

B - A Salvação futura: a Nova Criação

Como já assinalamos anteriormente a experiência do Exílio, onde a opressão e o

sofrimento são vividos com intensidade, faz com que os pensadores de Israel, e

em especial os profetas, lancem um olhar para o futuro à luz da fé e sejam capazes

de perceber que há um futuro de salvação que os espera. Além disto, percebem

que é preciso construir este futuro desde já. 150 É neste momento histórico que

brota no povo de Israel a esperança de uma Nova Criação. Entretanto, essa tese

teológico-bíblica precisa ser confirmada por uma reflexão sobre o Espírito

recriador, isto é, uma reflexão que possibilita de maneira nova a Vida e as

relações entre os seres humanos. 151

a) O profeta Ezequiel e a Nova Criação

A atividade profética de Ezequiel 152 pode ser situada entre os anos de 593-571

a.C., o que significa dizer que profetiza antes e depois da destruição de Jerusalém

em 587 a.C. O local mais provável de onde profetiza é a Babilônia. 153 A opinião

148 BOUZON, E. Gn 2,4b-24 e os relatos mitológicos do Antigo Oriente. In: MÜLLER, I. Op. cit., p. 137 149 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 415. 150 NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55): da semente esmagada brota nova vida. São Paulo: Paulus, 2004. p. 9 151 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 415. 152 Durante o Exílio da Babilônia voltamos a encontrar nos profetas Ezequiel e Dêutero-Isaías um forte apelo à Rûah Iahweh e à inspiração em visões e profecias. Isto acontece, sem que haja neles os estranhos fenômenos que acompanhavam os primeiros profetas e videntes em Israel. Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 53. 153 Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Ezequiel: o Profeta da Esperança. São Paulo: Paulus, 2001. p. 9

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predominante entre os/as especialistas é a de que Ezequiel foi desterrado com

Jeconias em 597. No exílio é vocacionado por Deus, e em meio aos exilados/as

desenvolve sua atividade profética. 154 Viveu os últimos anos da monarquia

judaica e sua mensagem tem duas partes diferenciadas. O marco divisor é a queda

de Jerusalém. 155 É bem provável que Ezequiel tenha sido sacerdote e com o

desterro para longe de Jerusalém, não tenha podido exercer seu ministério

sacerdotal. É difícil precisar a personalidade deste homem. Alguns autores/as

chegaram a considerar Ezequiel como uma personalidade doentia devido às

freqüentes visões que possuía (1,1-3,15; 3,16a.22s; 8-11; 37,1-14; 40-48); às

ações simbólicas e mímicas que realizou (bater palmas, bater com os pés); ao

freqüente abatimento, embora em outras vezes se mostre quase insensível; e ao

longo tempo que perdeu a fala. Entretanto, hoje, parece certo afirmar que ele tinha

uma sensibilidade especial, mais fina e aguda que a de outros profetas. 156

Na primeira parte da atividade deste profeta (597-586 a.C.) sua mensagem gira em

torno do mesmo tema, “o castigo de Judá e de Jerusalém, justificado com um

espectro cada vez mais amplo de acusações: sincretismo, injustiças, alianças com

estrangeiros.” 157 Na segunda fase (585 a.C.-?) Ezequiel condena os povos que

colaboraram na destruição desta cidade e, o mais importante, anuncia que

doravante Deus julgará cada um segundo a sua conduta. Vemos aqui uma

superação da mentalidade coletiva, e um caminho para a responsabilidade

individual (18; 33,12-20). Este é um grande progresso na história teológica de

Israel. 158 Entretanto, não foi este profeta quem descobriu o princípio da

responsabilidade pessoal. Ele já era conhecido pelas tradições mais antigas e pela

Lei de Israel. Apesar disto, foi Ezequiel quem o reafirmou com a energia

necessária que sua época exigia. 159 Ezequiel denuncia os príncipes, sacerdotes,

nobres, profetas, latifundiários (22,23-31), e também os pastores (reis) e os

poderosos (34) como os responsáveis pela catástrofe ocorrida. Depois anuncia

uma nova situação de paz e bem-estar, onde o próprio Deus apascentará suas

ovelhas (34,11-16). Para realizar tal tarefa Iahweh suscitará uma autoridade que

se colocará a serviço do povo fraco e empobrecido (34,23-31). Como podemos

154 Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 302. 155 Cf. Ibid., p. 298. 156 Cf. Ibid., pp. 303-304. 157 Ibid., p. 306. Grifo nosso. 158 Cf. Ibid., p. 309. 159 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 334.

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ver nesta nova fase as palavras de Ezequiel não são mais palavras de lamentações

e gemidos, pois são anúncios de esperança. 160

A ação da Rûah Iahweh provoca uma Nova Criação

Estamos num dos momentos principais da profecia de Ezequiel. Ele experimenta

que a libertação agora será renovada e um Êxodo novo está a caminho (36,23). A

intervenção de Iahweh se dá de forma definitiva libertando e reconstruindo a vida

do seu povo, pois a destruição, o exílio e a miséria não têm a última palavra. 161

“Dar-vos-ei coração novo, porei no vosso íntimo espírito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espírito e farei com que andeis de acordo com os meus estatutos e guardeis as minhas normas e as pratiqueis. Então habitareis na terra que dei a vossos pais: sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus; libertar-vos-ei de todas as vossas impurezas. ” (36, 25-29a)

Iahweh derramará uma Rûah Nova que é a Sua Rûah no mais íntimo das pessoas.

Somente com esta força do alto o coração de pedra (vida baseada nos pequenos

ritos e sacrifícios prescritos pela lei e que encobrem a manipulação da verdade e

da justiça) poderá se transformar em coração de carne (vida baseada na ação da

Rûah Iahweh). Somente um coração novo movido pela Rûah divina é capaz de

ouvir e colocar em prática os estatutos e os mandamentos de Iahweh. 162 Ezequiel

(vv. 26-27) assim como Isaías (32, 15-20) e o Salmo 51 (v. 12) “vislumbram um

futuro sem rei, em que o povo renasce, cada vez de novo, pela efusão do Espírito

no coração do próprio povo.” 163

No capítulo seguinte Ezequiel é conduzido pela Rûah Iahweh para um vale cheio

de ossos, onde Deus lhe diz:

“ ‘Filho do homem, porventura tornarão a viver estes ossos?’ Ao que respondi: ‘Senhor Iahweh, tu o sabes.’ Então me disse: ‘Profetiza a respeito desses ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a estes ossos: Eis que vou fazer com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis. Cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de carne e vos revestirei

160 Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Ezequiel: o Profeta da Esperança. São Paulo: Paulus, 2001. pp. 50-54. 161 Cf. Ibid., p. 56. 162 MAZZAROLO, I. O Clamor dos Profetas ao Deus da Justiça e Misericórdia… Op. cit., p.38. 163 MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 35.

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de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. Então sabereis que sou Iahweh.’ ” (37, 3-6)

A Palavra de Iahweh e seu Espírito estão juntos no projeto de libertar e

reconstruir o povo. O profeta entende a ressurreição destes ossos como uma Nova

Criação. A ação do espírito ressuscita os mortos e lhes traz a vida eterna. 164 Ela

não será simplesmente um melhoramento progressivo da velha criação. Assim

como o coração de pedra dá lugar para um coração de carne, a velha criação dá

lugar para a Nova Criação. Como podemos ver não é um projeto de continuidade,

mas sim de ruptura. E, quem possibilita essa nova vida é a Rûah Iahweh agindo

no interior da humanidade.

Segundo Yves Congar os capítulos 36 e 37 do livro de Ezequiel são inigualáveis.

Neles vemos que “Iahweh está mais do que nunca presente junto aos fiéis, seu

Espírito reanimará as ossadas, seu sopro (Rûah) fará deles pessoas vivas, e fará

isso comunicando-se dentro do coração deles.” 165

b) O Dêutero-Isaías (40-55): “da semente esmagada brota Nova Vida”

Este é um profeta anônimo que vive no Exílio e é considerado por muitos como o

maior profeta e o melhor poeta de Israel. Muito se tem dito sobre ele, entretanto,

não existe unanimidade entre seus/as comentaristas. Apesar disto, a maioria

deles/as aceita que sua atividade profética se deu entre 533-539 a.C., antes da

vitória final de Ciro, rei da Pérsia, sobre o império neobabilônico. Neste período,

em que o povo deportado vive “junto dos canais da Babilônia” cresce entre os/as

israelitas o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida e as ânsias

de libertação. Sentimentos que vão acompanhados de uma crise de fé e de

esperança.166 Isto porque os judeus/ias encontram-se no “fundo do poço”. Entre

eles/as há fome, sede, trabalhos forçados, violência e confinamento. A vida destes

homens e mulheres é sugada dia-a-dia. Entretanto, o sofrimento torna-se maior

quando imaginam que tudo pelo qual passam é castigo de Deus. 167 A mensagem

do Dêutero-Isaías reflete este momento histórico, onde se faz necessária uma

resposta de fé e esperança para este povo sofrido. 164 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 72. 165 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito… Op. cit., p. 25 166 Cf. SICRE, J. Op. cit., pp. 310-311. 167 Cf. NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55)... Op. cit., p. 21.

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Os capítulos escritos por este profeta que se encontram dentro do livro de Isaías

(40-55) são conhecidos como o “livro da consolação”, devido às suas palavras

iniciais: “consolai, consolai o meu povo, diz o Senhor”. Título que lhe cabe muito

bem, pois o tema da consolação volta a ressoar por muitas vezes ao longo de sua

obra (40, 27-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-2; etc), mostrando o amor e a preocupação

de Iahweh pelo seu povo. Mas, em que consiste esta consolação que o Dêutero-

Isaías faz questão de anunciar? Segundo José Luís Sicre:

“O livro responde em duas etapas. Na primeira (cap. 40-48) nos diz que consiste na libertação do jugo babilônico e no regresso à terra prometida, uma espécie de segundo êxodo, semelhante ao primeiro, quando o povo saiu do Egito. A segunda parte (cap. 49-55) fala-nos da reconstrução e restauração de Jerusalém.” 168

Por volta de 550 a.C. surge uma luz no horizonte: a possibilidade do rei Ciro

derrotar a Babilônia e desta forma chegar ao fim o exílio pelo qual passa o povo

de Israel. Com a esperança de poder voltar a Jerusalém, o Segundo Isaías anuncia

às comunidades exiladas, o fim do sofrimento. Desta forma sua profecia busca

fortalecer a fé e a vontade de viver entre as pessoas que não têm motivos para crer

e se alegrar com mais nada. 169

Iremos nos centrar na primeira etapa de consolação anunciada pelo Segundo

Isaías, pois é aí que encontramos os “quatro cantos do servo”. Na opinião de José

Luís Sicre com estes cantos atingimos um dos auges teológicos do Primeiro

Testamento, pois nunca antes se havia falado tão claramente do valor redentor do

sofrimento. É este profeta que proclama pela primeira vez que “se o trigo cair na

terra e morrer, produz muito fruto”. 170

Entre os quatro cantos compostos por este profeta iremos destacar somente o

primeiro, visto que nosso objetivo é o de conhecer sua pneumatologia que pode

ser vislumbrada a partir deste canto.

O que a ação da Rûah Iahweh provoca em seu Servo

“Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus sobre ele o meu espírito, ele trará o direito às nações. Ele não clamará, não levantará a voz, não fará ouvir a voz nas ruas; não quebrará a cana rachada, não apagará a

168 SICRE, J. Op. cit., p. 312. Grifo nosso. 169 NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55)... Op. cit., p. 17. 170 Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 313.

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mecha bruxuleante, com fidelidade trará o direito. Não vacilará nem desacorçoará até que se estabeleça o direito na terra; e as ilhas aguardem seu ensinamento. Assim diz Deus, Iahweh, que criou os céus e os estendeu, que firmou a terra e o que ela produz que deu alento aos que a povoam e o sopro da vida aos que se movem sobre ela. ‘Eu, Iahweh, te chamei para o serviço da justiça. Tomei-te pela mão e te modelei, eu te constituí como aliança do povo, como luz das nações, a fim de abrires os olhos aos cegos, a fim de soltares do cárcere os presos, e da prisão os que habitam nas trevas.’ Eu sou Iahweh; este é o meu nome! Não cederei a outrem a minha glória, nem a minha honra aos ídolos. As primeiras coisas já se realizaram, agora vos anuncio outras, novas; antes que elas surjam, eu vo-las anuncio.” (Is 42, 1-9)

Não nos cabe aqui entrar na discussão sobre a identidade do “Servo de Iahweh”

devemos somente alertar que ele tanto pode ser o povo, como é a opinião de José

Luís Sicre 171 e igualmente a opinião de Shigeyuki Nakanose e Enilda de Paula

Pedro 172, assim como pode ser também o próprio profeta.

Ao longo da história este “servo” que vemos cantado nos poemas do Dêutero-

Isaías foi visto como personagens diferentes (entre os judeus nacionalistas ele

seria Ciro, o rei persa; entre os Hassidim seria o Mestre da Justiça da comunidade

de Qumram; e entre os cristãos seria Jesus). A questão quanto à identidade

continua aberta, porém, estes “poemas apresentam um retrato falado de alguém

que possui um comportamento e um caráter especial, uma forma humana tão

perfeita que nela se pode perceber o divino.” 173 Logo, “não há nada de estranho

em que a Igreja primeva conceber tão grande valor a estes poemas e ver

antecipados neles a existência e o destino de Jesus.” 174 Exatamente por isso,

podemos, como cristãos/ãs que somos, ler estes poemas aplicando-os a Jesus de

Nazaré.

O versículo primeiro deste canto sinaliza que é preciso abandonar a política

determinada pela busca e amplidão do poder, pois o eleito de Iahweh é chamado

de “servo” e é sobre ele que o Espírito de Deus repousa para que traga o direito

aos povos. 175 Portanto, a grande promessa para o futuro que encontramos neste

primeiro canto é a do “Messias-servo que será ungido pelo Espírito para

estabelecer o direito na terra e anunciar a Boa-Nova aos pobres.” 176 Desta

171 Cf. Ibid., p. 312 nota de rodapé 28. 172 Cf. NAKANOSE, S. e PEDRO, E. P. Como Ler o Segundo Isaías (40-55)... Op. cit., p. 44. 173 MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos… Op. cit., p. 54. 174 SICRE, J. Op. cit., p. 313. 175 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 417. 176 MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 35. Grifo nosso.

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forma, através da unção da Rûah Iahweh a Vida Nova está a acontecer, vida

pautada na justiça entre os seres humanos e na integridade de suas relações.

Um outro ponto digno de destaque deste poema é a finalidade de Deus repousar

sua Rûah neste “servo” que nos é apresentada pelo Dêutero-Isaías. Nas palavras

de Isidoro Mazzarolo:

“Deus põe sobre o seu servo o seu espírito (42,1) para que ele possa proclamar o julgamento sobre as nações e levar a missão até o fim. Ele é modelado para ser a Aliança do meu povo, que se expressa em abrir os olhos dos cegos; libertar os presos; conduzir à luz os que estão nas trevas (42,1-9).” 177

1.1.2.6. O Pós-Exílio

Este período é conhecido também como a fase da reconstrução onde se dá o

último período profético do Primeiro Testamento. É tempo da reconstrução do

Templo de Jerusalém, tempo do domínio imperialista da Pérsia, tempo de

precariedade e tempo de crise. Esta crise está relacionada ao desânimo causado

pelo Exílio babilônico, que deixou o povo sem instituições e sem seus símbolos

vitais: o Templo, a cidade, a monarquia e, conseqüentemente, sem o

funcionamento do culto como acontecia antes do Exílio. Entretanto, tudo isto é

coisa do passado. Apesar disto, esta é uma época difícil para o povo de Deus, pois

se vive uma nova etapa que está se iniciando. Devido a isto, a tonalidade da

profecia muda, e encontramos um tom mais otimista e consolador. 178

O profeta Joel: “a caminhada para o silêncio”

Este profeta, que é também poeta de grande talento, desenvolve sua atividade

profética no começo do século IV a.C. 179 Joel é um judeu que possuía um

conhecimento profundo da vida do campo, como demonstra a sua descrição da

praga de gafanhotos. 180 Esta praga devastadora assola Judá e devasta a terra, o

177 MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., p. 54. Negrito nosso. 178 Cf. SICRE, J. Op. cit., p. 326. 179 Esta é a tendência dominante na datação da atividade profética de Joel, apesar de encontrarmos estudiosos/as que apontam datas que vão desde o século IX até o III a.C. Cf. Ibid., p.325. 180“Em época eminentemente agrícola, este simples dado não basta para considerá-lo um camponês, ao estilo de Miquéias. Mais ainda: suas grandes qualidades poéticas, seu conhecimento

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mais forte laço entre Deus e o povo. Diante desta situação crítica o povo pensa

que se cumpria o que alguns profetas haviam dito sobre o Dia do Senhor. Este

dia na crença popular israelita pré-exílica era o dia em que Iahweh se manifestaria

em todo o seu poder e sua glória. Os profetas adotam este simbolismo popular e o

aplicam tanto ao julgamento de Israel como ao julgamento de toda a humanidade.

É esta compreensão de julgamento terrível que desolará a terra inteira e destruirá

os pecadores/as que está na memória do povo no Pós-exílio. 181 Joel é devedor à

tradição sobre o Dia do Senhor que remonta a Amós (5,18-20), Sofonias (1,14-

18), Abdias (15), Zacarias (12,3; 14,1) e Malaquias (3,2. 18.23), onde este dia é

um dia terrível. Entende, entretanto, que já tendo chegado o castigo contra Israel,

com a queda de Jerusalém, as perspectivas precisam mudar profundamente. Faz-

se necessária a conversão. Somente depois disto o perdão será recebido. Desta

forma, o Dia do Senhor adquire dimensão de felicidade e de esperança. Em meio

a tantas situações desesperadoras este profeta, homem de intensa fé e de profunda

esperança, soube buscar alimento para sua profecia na mística dos profetas que o

antecederam (Ezequiel, Ageu e Zacarias). Ele usa, assim como o fizeram estes

profetas, a calamidade para ensinar e convidar à conversão. 182

“Joel não anuncia a salvação incondicionada. Exige a conversão interior, profunda (“rasgai os vossos corações, e não as vossas vestes”)... Espera a grande mudança definitiva, a irrupção desse mundo maravilhoso anunciado por Ezequiel, Ageu, Zacarias. Passaram os anos sem que se cumprisse as esperanças, sem que o povo recobrasse a liberdade e sem os inimigos serem castigados, sem que se produzisse a efusão do espírito anunciada por Ezequiel... Espera o cumprimento dela e o anuncia.” 183

Somente a partir deste contexto que podemos entender a profecia de Joel.

O que a ação da Rûah Iahweh provoca em toda humanidade

“Depois disto, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão. Vossos anciãos terão visões. Até sobre os escravos e sobre as escravas, naqueles dias, derramarei o meu espírito.” (3,1-2)

dos profetas que o precederam, nos levam a situá-lo em um ambiente bastante elevado culturalmente.” Ibid., p.325. 181 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 234. 182 Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Joel: Profecia em tempos de crise. São Paulo: Paulus, 1998. pp.11-36. 183 SICRE, J. Op. cit., pp. 326-327. Grifo nosso.

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Portanto, depois da conversão e do perdão recebido o Espírito derramado por

Deus é capaz de romper todas as barreiras: primeiramente as barreiras entre os

povos e nações visto que ele é derramado “sobre toda carne”; as barreiras do

sexo, pois são os “filhos e as filhas que profetizarão”, e os “escravos e escravas

receberão a efusão do espírito”; as barreiras da idade, pois também os “anciãos

terão visões”; e finalmente as barreiras das classes sociais, pois “até sobre os

escravos e as escravas o espírito será derramado”. Para Joel não há nem pode

haver monopólio do Espírito, pois como acabamos de ver não há sequer uma

única pessoa ou instituição que possa pretender ter o privilégio do Espírito. 184

“Embora mais tarde essa linha pneumatológica universal de um carisma profético

de todos os crentes não se tenha mantido, a partir de então o profetismo e a dádiva

do Espírito (inspiração) formavam uma unidade.” 185

1.2. A Sophía

Nossa intenção agora é a de analisar outro conceito fundamental que encontramos

no Primeiro Testamento para poder desta forma entender com mais profundidade

quem é o Espírito Santo de Deus que se revela em suas páginas. Este conceito é a

sophía. Segundo Yves Congar a aproximação entre sophía (sabedoria) e pneuma

(espírito) se dá nos escritos sapienciais que se desenvolvem nos quatro séculos

que precedem a era cristã: Jó e Provérbios (entre 400 e 500); numerosos Salmos, o

Eclesiastes e o Eclesiástico (por volta de 187); finalmente, Sabedoria (por volta do

ano 50 a.C.). Para este autor “a literatura sapiencial do judaísmo helenizado

contém uma notável reflexão sobre a Sabedoria, que a aproxima do Espírito,

quase que identificando as duas realidades, ao menos consideradas em sua

ação.” 186 Johan Konings esclarece que estes escritos sapienciais do período

helenista, citados aqui por Congar, são os livros do Eclesiastes, do Eclesiástico e

da Sabedoria. 187 Para entendermos como aconteceu a aproximação ou quase

identificação entre Pneuma e Sophía, que se deu nestes escritos, e que é a

proposição que nos interessa, será necessário retroceder no tempo para ver como o

termo sophía era entendido em tempos mais remotos. Nossa exposição seguirá

184 Cf. ROSSI, L. A. S. Como ler o Livro de Joel... Op. cit., pp.37-38. 185 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 413. 186 CONGAR, Yves. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. -27. 187 KONINGS. J. A Bíblia nas origens e hoje... Op. cit., p. 116-123.

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uma ordem lógica que apenas em parte se identifica com o processo real temporal

do conceito sophía, sem, contudo abandonar nossa opção metodológica, pois o

período da aproximação entre sophía e pneuma, como já esclarecemos se dá nos

quatro séculos que antecedem o evento Jesus Cristo. 188

1.2.1. O processo pelo qual passa o termo Sophía

O vocábulo original hebraico hokmah ou sua tradução grega sophía (sabedoria)

nem sempre significou a mesma coisa. Portanto, podemos falar de uma evolução

que se deu lentamente e em matizes diferentes que foram sendo ressaltados com o

passar do tempo. 189 Inclusive podemos dizer que este vocábulo possuía sentidos

contraditórios, pois a sophía pode ser vista como uma qualidade natural do

homem que se desenvolve por educação e experiência, assim também como um

atributo próprio de Deus, que a reserva para si, comunicando-a só por graça a

alguns privilegiados. 190 É a partir da pluralidade e matizes de significados do

termo sophía e de sua ação na história de Israel que iremos aprofundar ainda

mais o assunto que estamos desenvolvendo e assim possibilitaremos a passagem

para a reflexão sobre o Espírito no Segundo Testamento. 191

1.2.1.1. A Sophía humana Neste momento restringimos nossa atenção sobre a sophía relacionada

diretamente com o ser humano. Veremos como ela foi sendo experienciada na

história de Israel e como foi compreendida e tematizada pelos autores bíblicos.

a) A sophía-artesanal

Na literatura bíblica, e em geral na antiga, o vocábulo feminino sophía aparece em

primeiro lugar aplicado à dimensão das atividades manuais. Portanto, sophía é

188 Este é exatamente o período em que nos encontramos dentro da narrativa histórica que fazemos da Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro Testamento. 189 Cf. LÍNDEZ, J. V. Sabedoria e Sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. Encontramos nas páginas 29-58 deste livro a evolução do termo sophía. 190 IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1343. 191 BLANK, J. Verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: EICHER, P. Op. cit., p. 245.

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habilidade, destreza, perícia, enfim é a arte manual que possui os homens e as

mulheres, porque também estas colaboravam com sua sophía prática na

confecção dos utensílios e ornamentos da Tenda sagrada. Podemos constatar isto a

partir do texto bíblico que nos diz: “As mulheres habilidosas traziam o que por

suas próprias mãos tinham fiado [...] As mulheres às quais o coração movia a

trabalhar com habilidade fiavam os pêlos de cabra.” (Ex 35,25-26). Essa sophía

artesanal ou habilidade prática é concedida por Deus, pois é ele quem outorga os

dons ou habilidades, ou como é dito em algumas passagens bíblicas, o “espírito

de sabedoria” é dado por Deus ao artesão/ã (o/a sophós). 192

“Dirás a todas as pessoas hábeis, a quem enchi de espírito de sabedoria, que façam vestimentas para Aarão, para consagrá-lo ao exercício do meu sacerdócio.” (Ex 28,3). “Iahweh falou a Moisés [...] ‘ Eis que chamei pelo nome Beseleel [...] Eu o enchi com o espírito de Deus em sabedoria, entendimento e conhecimento para toda espécie de trabalho, para elaborar desenhos, para trabalhar em ouro, prata e bronze, para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, e para realizar toda espécie de trabalhos. Eis que lhe dou por companheiro Ooliab [...]: coloquei a sabedoria no coração de todos os homens de coração sábio, para que façam o que te ordenei.’ ” (Ex 31, 1-6)

Todavia, afirmar que Iahweh concede o “espírito de sabedoria”, não significa

dizer que esta sophía recebida é um dom infuso, pois, na realidade ela supõe o

esforço da aprendizagem por parte do/a perito. 193

b) A sophía-sagacidade

Do plano das tarefas e ofícios basicamente manuais, como o que acabamos de

exemplificar, passa-se às atividades mentais. Estas atividades mostram que o ser

humano é um ser que pensa, sente e pode acumular experiências e conhecimentos

de índole espiritual. Neste plano, que é o das relações inter-humanas, a sophía

não se refere a uma qualidade ou virtude que por si mesma enobrece aquele que

a possui. 194 Podemos perceber esta sophía-sagacidade, que não significa

necessariamente uma virtude positiva, quando o profeta Isaías preconiza o

seguinte oráculo contra Jerusalém: “Diz o Senhor: [...] o que me resta é continuar

192 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 38-39. 193 Cf. Ibid., pp. 38-40. 194 Cf. Ibid., pp. 40-43.

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a assustar este povo com prodígios e maravilhas; a sabedoria dos seus sábios

perecerá e o entendimento dos entendidos se desfará” (Is 29, 13s). Portanto, esta

sabedoria não era uma virtude positiva. Há outro texto, este agora do profeta

Ezequiel, em que podemos ver com mais clareza a sophía somente como

sagacidade, engenho, talento, sem ter valor moral:

“Por tua sabedoria e inteligência adquiriste riqueza e acumulaste ouro e prata nos teus tesouros. Tão notável é a tua sabedoria nos negócios que multiplicaste tua riqueza e teu coração se orgulha dela. Por isso, assim fala o Senhor Iahweh: Visto que em teu coração te igualaste a Deus, também eu trarei contra ti estrangeiros, a mais terrível das nações. Desembainharão a espada contra a beleza da tua sabedoria, e profanarão o teu esplendor.” (Ez 28,4-7)

Segundo Van Imschoot esta sophía se aproxima daquilo que consideramos

esperteza, astúcia, ardil, vivacidade (2Sm 13,3; 14,2; 20,16). 195

c) A sophía-ciência

A sophía também é entendida como um saber acumulado, ciência, doutrina. É ela

que possibilita o grau de observação necessário ao suposto sophós, pois ele

precisa interpretar, por meio das condutas e dos gestos, os pensamentos ocultos

das pessoas. Aqui a sophía se aproxima mais da nossa maneira de concebê-la.

Vemos isto no prólogo do livro do Eclesiástico, quando se fala duas vezes da

“instrução e sabedoria” e ainda, quando neste mesmo livro se diz: “Uma

instrução de sabedoria e ciência, eis o que gravou neste livro Jesus, filho de

Sirac, de Eleazar, de Jerusalém, que derramou como chuva a sabedoria de seu

coração.” (Eclo 50,27). Não se nasce sábio, mas é necessário aplicar-se

intensamente para chegar a sê-lo (Eclo 6,32). 196 Para esta compreensão de

sabedoria o sophós é o douto que na grande maioria das vezes sabe ler, escrever e

manejar a lei (Jr 2,8; 8,8), podendo chegar a subir aos mais altos cargos na corte

(2Rs 25,19) e desempenhar aí grande influência (2Sm 15,31.37; 1Rs12,6; 20,8;

Pr16,13s). 197

195 IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1343. 196 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 43-46. 197 Cf. IMSCHOOT, P. V. verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1343.

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d) A sophía-arte de governar

A sophía também é entendida como a arte de governar, o que significa dizer que

ela é a prudência política. Por isso, o rei ideal terá que possuí-la (Is 11,2). Essa

sabedoria envolve perspicácia e sagacidade, prudência e talento, valentia e

decisão. Os autores sagrados acreditam, que a prudência política e o sábio

governo são bens tão grandes que somente Deus pode concedê-los, por isso, o

governante deve pedi-los a Iahweh (2 Cr1,10; 1Rs3,6-9; Sb9,4.6). 198

e) A sophía-prudência

O grau mais elevado e nobre da sophía no meio humano encontra-se na atividade

do sábio quando reflete problemas que afetam às pessoas: as desigualdades

sociais (cf. Pr 14,20s. 31; 17,5; 19,1.4.7.17; 22,2), as injustiças flagrantes (cf. Pr

11,1-11.18s; Ecl 8,12-14; Sb 2), o tema onipresente da morte (em todos os livros

sapienciais, com seus matizes); e o tema de Deus e do temor a Deus (com seus

aspectos distintos em cada um dos livros sapienciais). Aqui entramos no plano

estritamente moral do ser humano. Neste nível a sophía é prudência, sensatez,

portanto, é uma virtude positiva, enriquecedora de quem a possui, e pela qual

orienta sua vida ordenadamente e segundo a vontade do Senhor. 199 Com este

sentido vemos Moisés exortando o povo:

“Portanto, cuidai de pô-los [os mandamentos e decretos do Senhor] em prática, pois isto vos tornará sábios e inteligentes aos olhos dos povos. Ao ouvir todos estes estatutos, eles dirão: ‘Só existe um povo sábio e inteligente: é esta grande nação! ’ ” (Dt 4,6).

f) Os sábios/as de profissão

É bem provável que existissem sábios/as de profissão em Israel, como fica

sugerido no segundo livro de Samuel: “O conselho que Aquitofel dava naquele

tempo era recebido como um oráculo de Deus. Assim era o conselho de

Aquitofel, tanto para Davi como para Absalão” (2Sm 16,23). Vemos ainda no

198 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp.46-48. 199 Cf. Ibid., pp. 49-51.

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profeta Jeremias (8,8; 18,18) esse indício. Estes sábios/as originavam-se

geralmente da classe dos escribas e se distinguiam por certo grau de experiência.

É importante destacarmos ainda que “também as mulheres eram respeitadas por

sua sabedoria e seu conselho (Sm 14,2; 20,16; Jz5,29): estas mulheres deviam ser

conselheiras de profissão.” 200

g) A evolução do termo sophía no plano moral

No início o termo sophía, como acabamos de ressaltar, não guardava qualquer

referência à moralidade dos atos humanos. Com o passar do tempo o qualificativo

sophía é aplicado ao plano moralmente bom. Ao final da evolução conceitual, que

coincide com o final da época intertestamentária, o/a sophós por excelência já não

é o enciclopédico rei Salomão, mas o homem e a mulher justos (Pr 23,24; Ecl 9,1;

Eclo 18,27). Portanto, a sophía está no homem e na mulher que se manifesta: a)

diante de Deus pelo reconhecimento incondicional de sua soberania, respeitando e

guardando fielmente os seus mandamentos; b) diante dos outros por seu proceder

livre em face dos poderosos, respeitoso/a com os seus/as semelhantes,

compassivo/a com os fracos; c) diante da criação inteira quando respeita e

procura refletir em sua vida particular a ordem interna e estrutural do universo. 201

1.2.1.2. A Sophía divina

Agora penetraremos na relação Sophía e meio divino. Esta relação irá nos revelar

algo do mistério de Deus, pois iremos refletir sobre a Sophía divina.

Segundo José Vílchez Líndez aceitar que Deus possa comunicar a Sophía, como

um dom distinto de si mesmo ao ser humano, não oferece dificuldade especial,

quando estamos falando do Segundo Testamento. Entretanto, é uma grande

dificuldade para muitos perceber que ele é a fonte da Sophía sem sair do Primeiro

Testamento. Todavia, esta autocomunicação de Deus:

“já se encontra no Livro da Sabedoria, como podemos comprovar na petição que o pseudo-Salomão faz da sabedoria, aqui já atributo divino: ‘Dá-me a sabedoria

200 McKENZIE, J. L. Op. cit., p.813. 201 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., p. 58.

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entronizada junto a ti’ (Sb 9,11); e ‘Quem conheceu teu desígnio, se tu não concedeste a ele a sabedoria e enviou a ele teu santo espírito do céu’ (Sb 9,17; cf. 7,15; 9,6)” 202

Logo, pretendemos agora destacar em alguns textos seletos do Primeiro

Testamento onde a Sophía aparece como atributo divino dado por Deus aos seres

humanos, e como é compreendida pelos hagiógrafos.

a) A Sophía é poder organizador e ordenador do mundo

Encontramos, nos três grandes poemas didáticos Pr 8, Jó 28 e Eclo 24, a sabedoria

de Deus sendo apresentada como um poder de organização e de ordem

“imanente ao mundo”. 203

“Iahweh me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra. Quando os abismos não existiam, eu fui gerada, quando não existiam, os mananciais das águas. Antes que as montanhas fossem implantadas, antes das colinas, eu fui gerada; ele ainda não havia feito a terra e a erva, nem os primeiros elementos do mundo. Quando firmava os céus, lá estava eu, quando traçava a abóboda sobre a face do abismo; quando punha um limite ao mar: e as águas não ultrapassavam o seu mandamento, quando assentava os fundamentos da terra.” (Pr 8,22-29).

Esta perícope nos mostra a natureza da sophía no seio de Deus e a sua

manifestação na criação e na história dos homens e das mulheres. Ela precede a

criação (vv. 22-25), sendo ao mesmo tempo, o primeiro fruto de toda a criação, e

estando presente a tudo, como que acompanhando a obra criadora. 204 Segundo

José Vílchez Líndez a sabedoria “governa o universo com acerto” (Sb 8,1), pois

está presente e o penetra todo, como o próprio espírito de Deus, do qual é perfeita

imagem (Sb 7,24-26). 205

202 Ibid., p.53. Grifo nosso. 203 Esta expressão é usada por G. VON RAD e por G. SCHIMANOWSKI apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 54. 204 STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Provérbios. A Sabedoria do povo. 3. Ed. São Paulo: Editora Paulus, 1992. p. 46. 205 LÍNDEZ, J. V. Op. cit., p. 54.

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b) A Sophía é o sentido vital que Deus colocou na estrutura da criação

Ela é de origem transcendente e encontra-se junto de Deus antes da criação do

mundo, divertindo-se o tempo todo em sua presença. 206

“Eu estava junto com ele como mestre-de-obra, eu era o seu encanto todos os dias, todo o tempo brincava em sua presença: brincava na superfície da terra, encontrava minhas delícias entre os homens.” (Pr 8, 30-31).

A Sophía acompanhava a obra criadora como um arquiteto ou mestre-de-obras.

Dito de outra forma: a Sabedoria de Deus marcou a própria estrutura de tudo o

que foi criado. Aqui a criação é apresentada como o jogo alegre de uma criança e

a humanidade como o objeto com que a Sophía se deliciava. 207 Segundo Ivo

Storniolo Pr 8,22-36 é o ponto alto de toda reflexão sapiencial, e:

“quer mostrar que a Sabedoria é o sentido vital que Deus colocou na estrutura de toda criação. Assim sendo, ela está sempre ao alcance de todos os que a procuram, em qualquer tempo e lugar, independentemente de raça ou nação, credo ou religião. Observando o mundo e a história, a humanidade pode encontrar a sabedoria e tomar consciência dela, aceitando-a como guia para a realização da vida, e entrando assim em perfeita harmonia com toda a realidade.”208

c) A Sophía é a companheira ideal para o homem

Ela “é decantada no livro da Sabedoria com poemas de amor. Alguém que sonha

com a Sabedoria que vem de Deus é como um jovem que sonha com a sua

namorada para casar (8,2.9.17).” 209 A sophía, portanto, é feminina e está ligada

ao espírito feminino, sendo apresentada como uma amada que se deixa encontrar

e amar (Sb 8, 2-16). “O autor do Livro da Sabedoria ressalta essa presença

mediadora feminina de Deus ao longo de toda a história da Salvação do povo

eleito, como companheira e guia que assiste e acompanha nas provações e

perigos.” 210 Unidos à sophía, homens e mulheres (masculino e feminino), podem

chegar à percepção global da realidade, evitando os obstáculos de quaisquer tipos

206 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 54 207 Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Provérbios... Op. cit., pp. 46-47. 208 Ibid., p. 47. 209 MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., p. 89. 210 BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na América Latina. Op. cit., pp. 81-82.

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de parcialidades, sempre geradoras de desastres. Logo, é esta companheira ideal

que dá ao ser humano a capacidade de praticar a justiça. 211

d) A Sophía é característica da era messiânica

Ela é descrita como uma pessoa com um discurso autoconsciente. 212 Ela fala

como se fosse o próprio Deus e é apresentada com os atributos próprios do rei

davídico, o messias dos profetas. 213

“Eu, a Sabedoria, moro com a sagacidade, e possuo o conhecimento da reflexão. (O temor de Iahweh é o ódio do mau.) Detesto o orgulho e a soberba, o mau caminho e a boca falsa. Eu possuo o conselho e a prudência, são minhas a inteligência e a fortaleza. É por mim que reinam os reis, e que os príncipes decretam a justiça; por mim governam os governadores, e os nobres dão sentenças justas. Eu amo os que me amam, e os que madrugam por mim hão de me encontrar. Comigo estão a riqueza e a honra, os bens estáveis e a justiça. Meu fruto é melhor que o ouro, que o ouro puro, o meu lucro vale mais que a prata de lei. Eu caminho pela senda da justiça e ando pelas veredas do direito. Para levar o bem aos que me amam, e encher os teus tesouros.” (Pr 8,12-21)

Se compararmos Pr 8,12-21 com Is 11,1-3 veremos que as qualidades da Sophía

são as mesmas do messias. Ela é apresentada como a qualidade dos que governam

com justiça. No contato com ela o povo é levado a um plano de vida que é a plena

realização, a felicidade (8,21). 214

e) A Sophía é proveniente de Iahweh

Por isso, Iahweh pode comunicá-la a quem quiser, pois é o próprio Sábio por

excelência. Os autores sagrados contemplam em Deus a Sabedoria da qual decorre

a deles. Esta sophía “sai da boca do Altíssimo” como seu hálito (Rûah ou

Pneuma) ou sua Palavra (Eclo 24,3). 215 Podemos perceber aqui uma aproximação

entre Sophía, Pneuma e Logos. A Sophía habita no céu (Eclo 24,4), partilha o

trono de Iahweh (Sb 9,4), vive na sua intimidade (Sb 8,3).

211 STORNIOLO, I. Como ler O Livro da Sabedoria... Op. cit., p. 37. 212 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 54. Este autor afirma que a sophía é apresentada como “filha de Deus”. 213 Cf. STORNIOLO, I. Como ler o Livro dos Provérbios... Op. cit., p. 44. 214 Cf. Ibid., pp. 44-45. 215 Cf. BARUCQ, A., GRELOT, P. Verbete “Sabedoria”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., pp. 919-920.

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f) A Sophía é identificada com o Mistério do próprio Deus

Ela é apresentada como pertencente ao plano estritamente divino, porquanto o que

a ela se atribui apenas se pode dizer de Deus. É neste nível, em que é apresentada

como atributo divino, que chegamos ao ápice da concepção da Sophía. 216 No

livro da Sabedoria afirma-se que ela “a tudo renova, e sua presença faz ‘amigos

de Deus e profetas’ (7,27); ela é confidente de Deus e do saber divino, visto que

está entronizada junto a ele nos céus (cf. 8,4; 9,4.9-11). Como Deus, a sabedoria

tem um espírito poderoso (cf. 7,23.27), por isso pode ser chamada, com razão,

criadora de tudo quanto existe (cf. 7,21b e 8,6).” 217 Procura-se ainda dar uma

idéia do Inefável, a partir da essência última da Sophía. Desta forma o autor

bíblico vai atribuindo-lhe todas as qualidades possíveis e inimagináveis, chegando

finalmente a identificá-la com o mistério do próprio Deus. Ela se origina da vida

do próprio Deus, ou dito de outra forma, a Sophía é Deus se expandindo e

penetrando todas as coisas, renovando continuamente a vida e a humanidade. 218

“Nela [Sabedoria] há um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, invulnerável, amigo do bem, agudo, incoercível, benfazejo, amigo dos homens, firme, seguro, sereno, tudo podendo, tudo abrangendo, que penetra todos os espíritos inteligentes, puros, os mais sutis. A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, pelo que nada de impuro nela se produz. Pois, ela é reflexo da luz eterna, espelho nítido da atividade de Deus e imagem de sua bondade.” (Sb 7,22-26)

1.2.2. Pneuma (Rûah) e Sophía (Hokmah)

O livro da Sabedoria considerado em linha cronológica é o último do Primeiro

Testamento, foi escrito diretamente em grego, provavelmente na Alexandria do

Egito, e como já dissemos por volta do ano 50 a.C. 219 O autor deste livro ao tratar

do tema pneuma soube conciliar a corrente semítica com as correntes filosóficas

gregas. Encontramos neste livro praticamente quase todas as acepções do rico

vocábulo pneuma que já foi destacado quando tratamos do termo correlato

hebraico rûah. Logo, pneuma aparece no livro da Sabedoria como sopro, vento 216 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 54-55. 217 Ibid., pp.54-55. Grifo nosso. 218 STORNIOLO, I. Como ler O Livro da Sabedoria... Op. cit., p.35. 219 Cf. MAZZAROLO, I. A Bíblia em suas mãos... Op. cit., p. 88.

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suave ou simplesmente ar (cf. 5,11c. 23a); como alento, respiração, sinal de vida

animal e sinal de vida no homem (2,3; 5,3b; 15,11c.14b.16b); e como pneuma de

Deus (1,5a.6a.7a.7b.22; 9,17b; 12,1; 11,20a). 220 Porém, de todos esses sentidos

que recebe a palavra pneuma no livro da Sabedoria o que nos interessa é o de

Espírito (Pneuma) de Deus, que é na realidade o estágio final da evolução deste

termo. Logo, podemos afirmar que tanto no vocábulo pneuma, como no vocábulo

sophía, houve uma evolução que num estágio posterior aplicam-se a Deus,

mesmo que com aspectos diferentes. Vejamos: a) o pneuma associa-se à atividade

de Deus quanto a seu poder em todas as ordens e à eficácia na execução; b) a

sophía associa-se ao plano do entendimento no planejamento e na alta direção do

governo do mundo e do homem. 221

Jürgen Moltmann afirma que no livro da Sabedoria a aproximação entre Rûah e

Hokmah acontece de tal forma que podemos trocá-las (1,7; 12,1), a ponto de no

capítulo sete deste livro, tudo o que é dito a respeito da Sabedoria pode ser dito

também do Espírito. Sob a forma da sabedoria, o espírito é de certa maneira um

interlocutor, um vis-à-vis em Deus mesmo, e representa ao mesmo tempo a

presença divina na criação e na história. 222 Sophía (Sabedoria) e Pneuma

(Espírito) estão muitas vezes tão ligados a ponto de chegarem a ser a mesma

coisa. Segundo Larcher:

“As duas realidades são idênticas de várias maneiras: a Sabedoria possui um espírito (Sb 7,22b) ou ela é um espírito (Sb 1,6), ela age sob a forma de um espírito (Sb 7,7b). Além do mais, ela dispõe do poder e ela vê atribuída a si as diferentes funções do Espírito no Antigo Testamento: ela exerce uma unção cósmica universal, ela suscita os profetas, ela se faz guia da humanidade, depois do povo eleito, ela aparece enfim como a grande mestra interior das almas. A assimilação indica em muitos pontos que a Sabedoria aparece antes de tudo como uma sublimação da função exercida pelo Espírito no Antigo Testamento. E isso explica porque certos Padres da Igreja a consideram como uma prefiguração, não do Verbo, mas do Espírito Santo.” 223

220 Encontramos ainda uma acepção secundária que é a de pnuema como seres intermediários entre Deus e os seres humanos (7,20b. 23d). Neste caso o vocábulo pneuma encontra-se no plural. 221 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp.247-249. 222 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55. 223 LARCHER, C. apud. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 27.

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1.2.3. A personificação da sophía humana e da Sophía divina

O recurso literário chamado “personificação” consiste em fazer passar como

pessoa algo que não o é. Este recurso é aplicado com freqüência à sophía nos

livros sapienciais. Há comentadores que confundem os termos personificação e

hipóstase. Hipóstase, na terminologia teológica, quer dizer pessoa. Personificação

como acabamos de ver não chega a tanto. Na realidade o tratamento de pessoa

dado à sophía nos livros sapienciais guarda a compreensão de que ela não é

verdadeiramente uma pessoa. 224 Na esfera do humano ela é apresentada como

uma pessoa que: edifica sua casa e prepara um banquete (cf. Pr 9, 1-3); instrui e

une com o Senhor os que a amam (cf. Eclo 4,11-14; Sb 6,12); é digna de ser

buscada a todo custo (Eclo 6, 18-37); facilmente é encontrada (cf. Eclo 6,12-16);

eleva sua voz diante de um auditório (Pr 1,20s; 8,1-3; Eclo24,1-2); fala na

primeira pessoa (Pr 8,12-36; cf. 1,20-33; 9,4-6; Eclo 4,15-19; 24,3-22). Na esfera

do divino é apresentada como a Lei do Senhor que é uma criatura de Deus, porém

eterna, e que está presente, como testemunho, desde o começo da criação (Pr

8,22; cf. Eclo 1,9; 24,3-9; Sb 9,9). 225 É apresentada ainda como a bem-amada a

quem se procura avidamente (Eclo 14,22ss); uma mãe protetora (Eclo14,26s);

uma esposa nutriz (Eclo15,2s); uma hospedeira acolhedora que convida ao seu

festim (Pr 9,1-6). 226 Van Imschoot ao falar da personificação da Sophía divina em

alguns textos poéticos do livro dos Provérbios, do Eclesiástico e da Sabedoria,

afirma que:

“nestes textos muitos viram a descrição de uma pessoa distinta de Deus que opera de modo independente. Essa opinião é errônea. Em Pr 8,1-21 e 9,1-6 a sabedoria divina é tampouco uma pessoa real como a sua antagonista, a dona estultícia, que seduz os homens e os leva à morte (9,13-18). A mesma coisa vale para Eclo 24,1-24. [O livro da] Sabedoria insiste mais no caráter intelectual e material da sabedoria divina e desenvolve sua personificação; não se pensa, porém, numa pessoa real. Um monoteísta convencido como o autor de Sabedoria certamente não consideraria a sabedoria como uma esposa assentada ao lado de Deus, portanto como uma deusa. Se esse detalhe tem que ser tomado em sentido metafórico, então os outros também. A maior parte dos exegetas modernos concede plenamente que a sabedoria divina no AT não é uma pessoa divina, mas pensa que se deve ver nela algo mais do que uma personificação poética; falam então de hipóstase. As chamadas hipóstases, porém, veneradas em muitas

224 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., pp. 243-244. 225 Cf. Ibid., pp. 53-55. 226 BARUCQ, A., GRELOT, P. Verbete “Sabedoria”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 919.

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religiões antigas, têm sempre uma existência e uma atividade mais ou menos independentes, ao lado da divindade. Ora, em Provérbios, Eclesiástico e Sabedoria a atividade da sabedoria divina, bem como a da palavra ou do espírito de Deus, é a própria atividade de Deus (cf. Sb 9,1s), exatamente como a sabedoria, a palavra e o espírito do homem não é independente do homem.” 227

Comentando sobre a personificação da sophía José Vílchez Líndez assegura que

este recurso foi a maneira como o judaísmo encontrou para defender sua fé

monoteísta em Iahweh diante do helenismo e do estoicismo. 228

1.2.4. O que a ação da Sophía divina provoca na História

A Sophía está associada a tudo o que Deus faz no mundo. Podemos dizer que são

obras resultantes da ação da Sophía: a) a criação do mundo (Pr 3,19s; Jó 26,12;

28,25-27; Sb 7,24; 9,1s; 14,3; cf. Sl 33,6; 104,30; Jd 16,17; Sb1,7); b) o poder do

rei 229 (Pr 8,14s; Sb 8,7-14; cf. Is 11,2-8); c) a proteção do povo de Deus (Sb 10,5-

11,2; cf. Is 63,11-14); d) a educação dos homens para a virtude (Pr 8,32-36; 9,1-

12; Eclo 24,18-22; Sb1,4s etc.; cf. Ne 9,20.29s; Zc 7,12). 230 Segundo Yves

Congar “a Sabedoria procede de Deus, ela é como a sua ação em benefício de

suas criaturas para as conduzir corretamente [...] Todavia a função própria da

Sabedoria é conduzir os homens de acordo com a vontade de Deus.” 231 André

Barucq e Pierre Grelot ao tratarem da atividade da Sabedoria afirmam que:

“Ao longo de toda história da salvação Deus a enviou em missão à terra. Ela se instalou em Israel, em Jerusalém, como uma árvore da vida (Si 24,7-19), manifestando-se na forma concreta da Lei (Si 24,23-34). Desde então ela mora familiarmente com os homens (Pv 8,31; Ba 3,37s). Ela é a providência que dirige a história (Sb 10,1-11,4), e é ela que garante aos homens a salvação (9,18). Ela desempenha um papel semelhante aos dos profetas, dirigindo suas censuras aos desviados cujo juízo anuncia (Pv 1,20-33), convidando os que são dóceis a se beneficiarem de todos os seus bens (Pv 8,1-21.32-36), a se assentarem à sua mesa (Pv 9,4ss; Si 24,19-22). Deus age por ela como age por seu Espírito (cf. Sb 9,17); é portanto a mesma coisa recebê-la ou ser dócil ao Espírito. Se esses textos ainda não fazem da Sabedoria uma pessoa divina no sentido do NT,

227 IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN. Op. cit., pp. 1345-1346. 228 Cf. LÍNDEZ, J. V. Op. cit., p. 55. 229 Devemos entender este rei como aquele que governa o povo com justiça e lhe proporciona e garanta bens necessários à vida. 230 IMSCHOOT, P. V. Verbete “Sabedoria”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 1345. 231 CONGAR, Yves. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 27.

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perscrutam aos menos em profundidade o mistério do Deus único e preparam uma revelação mais precisa do mesmo.” 232

Além de todos estes aspectos apontados pelos autores/as pesquisados sobre o que

provoca a ação da Sophía divina, podemos ainda destacar o que nos apresenta Ivo

Storniolo. Este autor nos diz ser a Sophía o espírito vivo de Deus que ele

comunica ao ser humano e que “não consiste na cultura ou erudição, mas, em

primeiro lugar, no senso da justiça.” 233 Portanto, a Sophía divina quando age no

homem e na mulher os leva a praticar a justiça.

1.3. A Shekinah Segundo Jürgen Moltmann, a reflexão de alguns teólogos/as cristãos sobre a rûah

Iahweh como sendo o “evento da presença de Deus” ou “presença divina” é mais

adequada à idéia de shekinah do que à própria idéia de rûah Iahweh. 234 É a partir

desta afirmação que nos propomos a refletir neste momento sobre a shekinah.

Nosso método de pesquisa é o de buscar na Sagrada Escritura a revelação de Deus

como Espírito a partir do recurso a imagens e símbolos do Primeiro Testamento,

destacando como se dá sua ação na economia salvífica no meio da humanidade.

Por isso, precisamos ver quais são os indícios de que no Primeiro Testamento,

encontramos esta “presença de Deus”, compreendida como shekinah. Em que

podemos basear-nos para dizer que a shekinah é esta presença? Para podermos

chegar a esta afirmação devemos, primeiramente, compreender como surge esta

idéia, para depois examinarmos o conceito primitivo de shekinah e finalmente ver

o que a teologia da shekinah contribui para a compreensão do Espírito de Deus e

dos critérios de discernimento que brotam da Sagrada Escritura.

1.3.1. Como surge o conceito de shekinah

Segundo Maria Clara Bingemer a sophía, através da qual Deus medeia a obra da

criação, a sophía que Salomão invoca como “esposa de sua alma” e que, além

232 BARUCQ, A., GRELOT, P. Verbete “Sabedoria”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 920. Grifo nosso. 233 STORNIOLO, I. Como ler O Livro da Sabedoria... Op. cit., p.13. 234 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.

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disto, é uma sophía imaginada como a mãe que transmite sabedoria a seus filhos

(Pr 8,32-35), desaparece no pensamento rabínico. Isto acontece após o advento da

era cristã e possivelmente por causa de seu uso no gnosticismo. Apesar disto,

reaparece na fé judaica naquilo que tem de mais básico e mais central como

shekinah, sendo entendida como uma nova imagem da presença mediadora de

Deus no feminino no meio do povo. 235 Corroborando com esta afirmação a

Enciclopédia Wikipedia esclarece que no judaísmo a shekinah designa a faceta da

revelação divina aos homens, a "Divina Presença", sendo também considerada a

face "feminina" e "materna" desta presença. 236

1.3.2.

O significado de shekinah

Assim como aconteceu com os conceitos ou imagens “rûah” e “sophía” que

sofrem uma evolução, o mesmo aconteceu com o conceito shekinah. Vejamos

como isto se deu.

a) O conceito primitivo

O vocábulo shekinah não aparece nem no Primeiro Testamento nem no Segundo.

É uma derivação da raíz hebraica נ-כ-ש (sh-k-n) que significa “habitar”, “fazer

morada”. No princípio do culto a Iahweh, quando o povo ainda caminhava pelo

deserto, é dito que os israelitas tinham como santuário uma Tenda:

“Quem queria “consultar Iahweh” ia à Tenda, onde Moisés servia de intermediário junto a Deus, Ex 33.7. A tradição sacerdotal manteve o mesmo nome, com o mesmo sentido: a Tenda da Reunião é o lugar do ‘encontro’ com Moisés e o povo de Israel, Ex 29.42-43; 30.36. Mas essa tradição prefere chamá-la a Habitação, miskan, um termo que parece ter designado primeiramente a habitação temporária do nômade, cf. o antiqüíssimo texto de Nm 24.5 e o verbo correspondente em Jz 8.11, cf. também 2 Sm 7.6, logo, um sinônimo para ‘tenda’. Os relatos sacerdotais escolheram essa palavra arcaica para exprimir o modo de habitação terrena do Deus que reside no céu. Eles preparam a doutrina judaica da Shekinah e João também lembra que: ‘O Verbo...armou uma tenda entre nós’, Jo 1.14” 237

235 Cf. BINGEMER, M. C. L. A Trindade a partir da perspectiva da mulher. In: Teologia Feminina na América Latina... Op. cit., pp. 81-82. 236 Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Shekinah. Acesso dia 19/06/2008. 237 DE VAUX, R. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica, 2003. p. 333. Grifo nosso.

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Portanto, a idéia de shekinah (falamos aqui em idéia e não no vocábulo) como

presença divina no meio do povo de Israel aparece no Primeiro Testamento já

bem cedo quando Deus disse ao seu povo “faze-me um santuário para que eu

possa habitar no meio deles [dos israelitas]” (Ex 25,8); “e habitarei no meio dos

israelitas e serei o seu Deus" (Ex 29,45); e “Iahweh dos exércitos, que habita no

monte Sião” (Is 8,18). Esta idéia de shekinah que provém da linguagem cúltica

afirma o morar de Deus junto ao seu povo na arca transportável, e mais tarde,

como se pode ver no texto de Isaías, afirma-se que ele habita no templo, no monte

Sião, pois é aí que ele encontra seu repouso. 238

b) A shekinah inabita no povo

Quando se dá a destruição do templo e a deportação do povo para o exílio da

Babilônia, uma questão fundamental é levantada: onde se encontra Iahweh visto

que já não existe mais sua morada no monte Sião?

“Surge o pensamento de que Deus inabita em seu povo e que ele acompanha seu povo ao exílio através da shekiná. A shekiná está presente na comunidade dos orantes. Ela está nas sinagogas, no colégio dos juízes, no meio dos pobres, dos doentes etc. A shekiná compartilha das alegrias e dos sofrimentos de Israel. Ela é de maneira particular o divino ‘companheiro do sofrimento de Israel’. Daí surge a esperança de que junto com o povo, a shekiná exilada haverá de retornar da terra estranha para Jerusalém. Quando Deus redime seu povo e o conduz para casa sua shekiná peregrinante será redimida de suas errantes peregrinações e retornará para casa.” 239

Desta nova compreensão de shekinah como inabitação de Deus no povo e não

somente morando no Templo, podemos destacar os seguintes pontos principais: a)

o Deus de Israel é experimentado como “Senhor” e também como o “servo de

Israel” (Is 63,9; Sl 91,15; Is 63,8s); b) Iahweh alia-se com Israel de tal forma que

se fala na consoladora companhia da shekinah (Sl 23,4), pois ele é um Deus com-

passivo e sofre com seu povo; c) a shekinah peregrina na terra até que Israel seja

redimido, pois a auto-redenção de Deus se dá juntamente com a redenção de Israel

(entendendo aqui redenção de Deus como o retornar da shekinah e o tornar unir-

se a Deus). Logo, a redenção de Deus se dá naquele acontecer em que o eterno se

238 Cf. JANOWSKI, B. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55. 239 KUHN, P. apud p. MOLTMANN, J. Op. cit., 56. Grifo nosso.

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une à sua shekinah. Portanto, a shekinah é a presença terrena, temporal e espacial

do próprio Deus, mas presença que não pode ser confundida com sua onipresença,

pois esta faz parte da essência de Deus. Apesar disto, esta presença é muito

especial, querida e prometida. Presença que se identifica com Deus e ao mesmo

tempo é distinta dele, pois este descer e estabelecer divino em um determinado

lugar deve distinguir-se dele. 240 Roland De Vaux também alerta para esse cuidado

que precisamos ter quando falamos deste “estar presente de Deus no meio de

Israel de maneira especial”, pois esta “habitação”, que exprime a presença

graciosa de Iahweh, não pode e nem deve diminuir em nada sua

transcendência.241

1.3.3. Comparação entre Rûah Iahweh e Shekinah

Os israelitas quando usavam a expressão Rûah Iahweh não tinham em mente

aquilo que os teólogos/as cristãos entendem, isto é, não pensavam no “evento da

presença de Deus” ou na própria “presença divina”. Para eles “espírito santo”,

expressão usada poucas vezes e em épocas tardias, tinha um significado restrito

que era o de “espírito do santuário”. Além disto, “espírito santo” nunca foi a

denominação de Deus, mas sim um de seus dons. Já para os teólogos/as cristãos

Espírito Santo é Deus mesmo, pois o Espírito é o doador em seu dom. A idéia de

shekinah, esta sim, significa para o judaísmo a “inabitação de Deus no espaço e

no tempo, num determinado lugar e em determinado tempo de criaturas terrenas e

em sua história.” 242 Por isso, Moltmann afirma que a idéia da Shekinah

desenvolvida pelo judaísmo se aproxima mais daquilo que os cristãos/ãs

confessam ser o Espírito Santo. É importante neste momento fazermos um alerta:

a afirmação de Moltmann nos diz que a idéia de Shekinah desenvolvida no

judaísmo “se aproxima” do que nós cristãos confessamos ser o Espírito Santo.

Precisamos ter cuidado para não afirmarmos que este teólogo diz que a Shekinah é

o Espírito Santo na perspectiva judaica.

240 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 57-58. 241 Cf. DE VAUX, R. Op. cit., p. 365. 242 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.

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1.3.4. Autodistinção de Deus

Este conceito foi recolhido de Hegel por Franz Rosenzweig 243 pois ele permite

manter a soberania de Deus sobre a história de sofrimento de sua Shekinah.

Afirmar a “autodistinção de Deus” significa assumir nele “uma diferença entre o

que distingue e o que é distinguido, entre o Deus que dá e o Deus que é dado, e no

entanto é mantida ao mesmo tempo a identidade do Deus Uno”. 244 Este conceito

é muito caro a Jürgen Moltmann, pois torna possível imaginar a plena e real

presença de Deus em sua shekinah e em seu Espírito na história. O que não

acontece, segundo ele, com as interpretações teológicas que falam do Espírito de

Deus como uma emanação de Deus e que entendem a Shekinah como uma

propriedade de Deus. Além disto, é digno de destaque um esclarecimento sobre o

conceito “autodistinção de Deus”: ele não implica numa aceitação da doutrina

cristã da Trindade. 245

1.3.5. Como a teologia da Shekinah contribui para a compreensão do Espírito de Deus

Podemos afirmar que esta teologia torna claro o caráter pessoal do Espírito, pois

ele é a presença atuante na história do próprio Deus em pessoa, sendo mais do que

uma qualidade ou dom divino às criaturas. Ele é a capacidade de Deus sentir o que

a pessoa sente (empatia de Deus). Além disto, chama a atenção para a

sensibilidade do Espírito, pois ele inabita na criatura errante e sofredora,

participando do sofrimento, se entristecendo e se enfraquecendo. Entranto, ele

também se alegra quando repousa na nova e perfeita criação. Finalmente, aponta

para a kénosis do Espírito, pois em sua Shekinah Deus renuncia a sua

invulnerabilidade e se torna capaz de sofrer, porque ele quer o amor. 246

243ROSENZWEIG, F. apud MOLTMANN, J. Op. cit., p. 56. 244 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 56. Grifo nosso. 245 Cf. Ibid., p. 58. 246 Cf. Ibid., p. 59.

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1.3.6. O que a ação da Shekinah provoca no ser humano

No intuito de ampliar a idéia de experiência histórica da Shekinah, Jürgenn

Moltmann, num seminário de inverno de 1989/1990, faz uma interpretação

apropriativa sobre a “peregrinação errante da Shekinah” e de sua “unificação com

Deus” aplicando-as à criação e a nós pessoalmente. Acreditamos que esta

releitura feita por Moltmann pode nos ajudar a ver como age a Shekinah e o que

ela provoca no ser humano e em todas as coisas. Assim se expressa este

pneumatólogo:

“Deus ama sua criação. Deus está ligado a cada uma de suas criaturas por uma apaixonada afirmação. Deus ama com amor criador. Por isso ele mesmo, graças a seu amor, inabita empaticamente em cada criatura. O amor, por assim dizer, o arranca de si próprio e o transfere inteiramente às criaturas amadas. Sendo ele o ‘amante da vida’, seu eterno espírito está por essa razão ‘em todas as coisas’ como força vital. Na autodistinção e na auto-entrega do amor de Deus está presente em todas as suas criaturas e é ele próprio o seu segredo mais íntimo. No momento em que uma criatura se afasta deste amor de Deus, do qual no entanto ela vive, ela se torna angustiada, agressiva e destrutiva, porque se torna egoísta. Sua vontade separa-se da vontade de Deus e sua vida afasta-se do amor de Deus e se volta para o ódio contra si própria. Todas as misérias do homem procedem do fracassado amor a Deus. Com isto se chega, por um lado, a um ‘esvaziar-se [‘Entselbstung’] de Deus’, como o denomina M. Buber. Sua shekiná, que inabita em cada uma de suas criaturas, torna-se ela própria alienada de Deus, se entristece e fica ferida, mas não abandona os perdidos. Ela sofre nas vítimas do mal e é torturada nos que praticam o mal. A shekiná não nos abandona; com seu grande anseio por Deus, com seu grande desejo de união com Deus, ela nos acompanha mesmo em nossos piores erros. Sentimos sua dor na ‘atração’ do espírito. Com toda e qualquer parcela de egoísmo e de autocontradição que devolvemos à vontade do Criador que nos ama, a shekiná chega mais perto de Deus. Quando vivemos inteiramente na oração ‘Seja feita a tua vontade’, então a shekiná em nós se une com o próprio Deus. Voltamos a viver plenamente e com indivisa afirmação da vida. Termina a peregrinação errante, a meta é atingida. Experimentamos em nós a felicidade de Deus e experimentamo-nos a nós mesmos na bem-aventurança de Deus. Quando é que isto acontece? Acontece quando experimentamos a alegria avassaladora: Tornamo-nos felizes sem egoísmo e nos unimos a nós mesmos inteiramente. Acontece quando experimentamos graves sofrimentos. Vivenciamo-nos a nós mesmos na dor e confiamo-nos inteiramente a Deus. Não precisa ser definitivo, pode ser também por um breve espaço de tempo. Quando voltamos a nos dividir em nós mesmos, a shekiná retoma conosco a peregrinação errante. Quando estamos em união conosco mesmos, ela chega ao repouso. Mas sempre que a shekiná que nos impele se aproxima intensamente de Deus, isto está ligado em nós a uma indescritível alegria. Tornamo-nos sensíveis para a shekiná em nós e da mesma forma para a shekiná nas outras pessoas e em todas as criaturas. Esperamos pela união mística da shekiná com Deus em todo encontro real. Por isso ansiamos pelo amor em que nos esquecemos de nós e em

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que ao mesmo tempo nos encontramos. Encontramo-nos com qualquer outra criatura com a esperança de encontrar a Deus. Pois tivemos a experiência de que nas outras pessoas e nas outras criaturas Deus espera por nosso amor e pelo retorno de sua shekiná: ‘O que fizeste a um de destes meus irmãos menores, a mim o fizestes’ ” (Mt 25). 247

O que dizer depois de tão bela interpretação? Simplesmente que nesta releitura de

Moltmann podemos compreender melhor o Amor de Deus por suas criaturas e

como ele põe a caminho sua Shekinah num “peregrinar errante” até que ela inabite

cada uma destas criatruras amadas. Com esta inabitação, ela chega a sofrer

empaticamente com o sofrimento destes perdidos/as que se alienam de Deus. Esta

alienação não a faz abandoná-los/as nunca. Mais ainda, a Shekinah continua

deixando no mais íntimo de cada um/a o desejo ou atração por Deus. Além disto,

em cada atitude egoísta vivida pela criatura amada, a Shekinah se aproxima mais

de Deus. Entretanto, quando a vontade de Deus é concretizada, mesmo que num

pequeno espaço de tempo, a Shekinah alcança sua meta e se une misticamente

com Deus na criatura amada. Neste momento o ser humano experimenta em si a

verdadeira felicidade. Só assim termina a “peregrinação errante” da Shekinah.

Destarte, quando o ser humano volta a se dividir, a Shekinah retorna sua

“peregrinação errante”, pois Deus continua esperando que o Amor seja realidade

em cada uma de suas criaturas para que sua Shekinah retorne e se una novamente

a ele. Portanto, isto é o que a ação da Shekinah provoca em nós: une-se a nós, nos

atrai para Deus, sofre conosco quando nos afastamos de Deus, igualmente se

alegra conosco quando fazemos a vontade de Deus. Finalmente, é a Shekinah em

nós, que nos une misticamente a Deus nela.

1.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de Deus no Primeiro Testamento

Nossa intenção é a de reunir neste item, e de forma sintética, os dados que

pudemos recolher das três imagens escolhidas por nós do Primeiro Testamento e

que apontam para a presença e atuação do Espírito de Deus: Rûah Iahweh, Sophía

e Shekinah. Iremos, simplesmente, elencá-los em duas grandes linhas: identidade

(quem é o Espírito de Deus revelado no Primeiro Testamento) e ação (como age

247 Ibid., pp. 58-59. Grifo nosso.

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esse Espírito). Estas informações nos darão a possibilidade de mais tarde conhecer

melhor quem é o Espírito Santo e elencar os critérios de discernimento que

encontramos nos textos sagrados.

1.4.1. Identidade: Quem é o “espírito” que se encontra revelado no Primeiro Testamento?

Com base naquilo que refletimos sobre a Rûah Iahweh, a Sophía e a Shekinah

podemos destacar os principais traços que identificam o “espírito” revelado no

Primeiro Testamento. Ele/Ela 248: a) é a Vida ou o princípio vital que Deus coloca

na estrutura da criação, sendo o poder organizador e ordenador do mundo que está

presente acompanhando toda obra da criação; b) é de origem transcendente e

antes da criação do mundo divertia-se na presença de Deus; c) é força criadora

divina comunicada às suas criaturas, sendo a força vital em tudo o que vive; d) é

uma Grande Mãe, que de suas amorosas e fecundas entranhas, dá à luz e faz

eclodir o universo; e) é a Liberdade ou o espaço de liberdade onde o ser humano

pode desenvolver-se; f) é espaço de amplitude para que haja vida e liberdade; g) é

força que inspira a profecia; h) é o oposto da sarx (limitação humana); i) é a

realidade feminina do Mistério de Deus, sendo Mãe de ternura e bondade que

protege, acalanta, aconchega, consola, abriga, nutre e que transmite sabedoria a

seus filhos. É ainda a companheira ideal para o homem, que o acompanha e guia

nas provações e perigos; j) é promessa criadora de vida em toda situação caótica

da história pessoal ou social do ser humano; l) é unidade íntima e perfeita com a

Palavra; m) é a Lei do Senhor instalada no meio dos homens como uma árvore da

vida, é a própria Verdade que é Deus; n) é providência e o senso da justiça que

dirige e atua na história; o) é quem inabita empaticamente toda criatura, sendo a

presença divina constante e dinâmica, o segredo mais íntimo destas, não

abandonando jamais nenhuma de suas criaturas amadas; p) é o Amor que ama

sem limites o ser humano respeitando suas opções, mas tomando sempre partido

dos mais fracos.

248 Sem tentar “forçar” o texto bíblico podemos dizer que encontramos no Primeiro Testamento núcleos semânticos que abrem o acesso para falarmos da realidade feminina do Mistério de Deus. Perceber isto nos permite afirmar que Deus tem traços tanto masculinos como femininos, visto que a imagem divina se encontra tanto no homem, quanto na mulher (cf Gn 1,27).

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1.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que “espírito” está agindo no ser humano e no mundo?

Segundo o que pudemos observar sobre a forma de agir da Rûah Iahweh, da

Sophía e da Shekinah podemos afirmar que a ação destas: a) torna o ser humano

um ser vivente; b) põe tudo em movimento, levando as pessoas da estreiteza para

a amplidão; c) conscientiza homens e mulheres sobre sua condição de opressão,

mostrando-lhes que é possível vencer o opressor, provocando-lhes o desejo de

construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária. Possibilita-lhes viver relações

verdadeiramente humanas, onde não há oprimido nem opressor. Desta forma são

capazes de construir no tempo e no espaço o ideal libertário do Êxodo, que é o

“Desígnio de Deus na história”; d) cria laços de união entre as pessoas que

desejam mais vida e liberdade, capacitando-os para que possam abrir caminhos

novos dentro da história; e) acompanha o ser humano em sua caminhada histórica,

pois não está preso a nenhum espaço físico. Fica junto, solidarizando-se com seu

povo, fazendo uma Aliança com ele; f) produz em alguns homens e mulheres dons

de profetas, colocando em suas bocas palavras que libertam e possibilitam a

vivência da justiça para que sejam transmitidas a seus contemporâneos/as. Além

disto, conscientiza-os de que Deus não gosta de espetáculos retumbantes, nem de

sacrifícios humanos; de que Deus lhes dá coragem para continuar em sua missão;

g) transforma homens e mulheres em pessoas capazes de gestos excepcionais com

a finalidade de confirmar o povo na vocação de parceiros de Deus; h) dá leis que

possibilitam construir uma sociedade justa e fraterna; i) capacita homens e

mulheres para julgar com justiça, levando-os/as a fazer coisas que estão além da

capacidade humana comum; j) derruba todas as barreiras criadas pelos seres

humanos (barreiras entre os povos e nações, entre os sexos, as raças, as idades, as

classes sociais); l) unge com sua presença aqueles/as que precisam governar,

dando-lhes qualidades especiais, entretanto, não age de forma mágica; m) age de

forma lenta e amorosa no íntimo das liberdades pessoais e no mistério,

respeitando o tempo de cada um/a; n) não se deixa monopolizar, apesar disto,

renuncia a sua invulnerabilidade e sofre (kénosis do Espírito) com o ser humano

que se afasta de Deus e dos irmãos; o) alegra-se com o ser humano que se abre à

ação de Deus, unindo-o misticamente a Deus todas às vezes em que se dá um

encontro real com qualquer outra criatura; p) deixa claro para o profeta que num

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futuro próximo o Messias virá e que o Espírito agirá profundamente sobre ele

dando-lhe as seis virtudes do governante. Por causa disto, o Messias julgará os

fracos com justiça, com eqüidade e pronunciando sentenças em favor dos pobres;

q) age no interior da humanidade e suscita uma Nova Criação, transformando

corações de pedra em corações de carne.

Segundo nossa compreensão estes são os critérios, colhidos do Primeiro

Testamento, que podem servir de parâmetro para discernirmos se quem age no

mundo e no ser humano é ou não o Espírito de Deus.

Com estes elementos recolhidos do Primeiro Testamento sobre o Espírito de Deus

nos encontramos agora preparados/as para adentrar-nos na Experiência Histórica

que Jesus de Nazaré faz com este Espírito. Conheceremos melhor como se dá sua

ação na vida de Jesus, fazendo-o viver totalmente aberto ao Pai e a seus irmãos/ãs.

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2 A Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de Nazaré Introdução

Depois de termos recolhido do Primeiro Testamento a maneira como foi

experimentada a presença do Espírito de Deus e como foi percebida sua ação em

Israel, veremos a partir de agora a Experiência Histórica deste Espírito narrada no

Segundo Testamento. No presente capítulo refletiremos como isto aconteceu na

pessoa de Jesus de Nazaré, que possuía o Espírito de Deus “sem medida” (Jo

3,34), para que no próximo capítulo possamos destacar como esta experiência

ocorreu em algumas comunidades cristãs que se encontram retratadas na Sagrada

Escritura. Tudo isto com a mesma finalidade que conduz nossa pesquisa que é a

de conhecer quem é realmente o Espírito Santo que nos é revelado por Jesus e a

de elencar os critérios de discernimento que brotam da Palavra de Deus.

Temos claro que só podemos compreender como a plenitude da manifestação do

Espírito de Deus se deu em Jesus de Nazaré, depois de termos feito o caminho

com o povo de Israel, que acabamos de percorrer no capítulo anterior, pois é aí

que encontramos os fundamentos de nossa fé. Da mesma forma é fundamental

para nós, conhecermos Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito, para entender

como ele se tornou o paradigma para se elaborar a pneumatologia dos autores

cristãos da primeira hora, que enfocaremos no próximo capítulo. Portanto, o

presente capítulo é de essencial importância para nossa dissertação.

Como viveu Jesus de Nazaré sua experiência histórica com o Espírito de Deus?

Esta experiência que é expressão da íntima união vivida com o Espírito suscita em

Jesus a vivência concreta do amor agápico? Dito de outra forma: é o Espírito

Santo que possibilita a Jesus viver em radicalidade o amor agápico? Ele soube

entregar-se livremente à experiência extraordinária do Espírito que plenifica o

coração, com experiência ordinária do Espírito que leva o ser humano a um

compromisso concreto e solidário com os irmãos mais necessitados? Ou será que

as duas coisas, experiência extraordinária e ordinária do Espírito não estavam

integradas na vida do Nazareno? Jesus soube unir ação (conduta ética) e oração

(experiência mística)? Caso as respostas a estas questões sejam positivas,

perguntamo-nos: sendo os cristãos/ãs, homens e mulheres de fé no Deus revelado

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em Jesus Cristo, não devem necessariamente ter como modelo de sua relação com

o Espírito Santo aquele vivido pelo Mestre de Nazaré? Além disso, não deve ser

esta a pneumatologia que se faz indispensável em nosso mundo, pois nos

apresenta critérios de discernimentos verdadeiramente cristãos? Estas são

algumas das questões que movem nossa reflexão neste capítulo. Portanto,

precisamos ter claro como foi vivida a relação de Jesus com o Espírito Santo, para

que, como cristãos/ãs, possamos vivê-la de forma coerente com a fé que

professamos.

Muitas poderiam ser as formas de abordar tema tão rico e fascinante, no entanto,

optamos por uma narrativa histórica, por compreender que esta nos permite

elencar com mais fidelidade histórica a pneumatologia que brota da vida de

Jesus, assim como os critérios de discernimento que podemos recolher de sua

vida vivida plenamente no Espírito. Faremos esta abordagem a partir de uma

“cristologia ascendente”, percorrendo o mesmo caminho feito pelos discípulos/as

do “homem de Nazaré”, para ao final do percurso poder afirmar, assim como

eles/as o fizeram, que este homem, que viveu na primeira metade do século I, na

Palestina, é Deus.

O Espírito Santo sempre esteve presente na vida de Jesus, tornando-se sua

unção e seu companheiro inseparável, portanto, podemos afirmar que toda a

atividade que Jesus realizou em sua vida transcorreu na presença deste

Espírito. Afirmar isto nos faz evocar imagens de intimidade e amizade, entre

Jesus e o Espírito, porém estas imagens estão longe daquilo que realmente

acontecia no íntimo de Jesus em sua experiência com o Espírito de Deus nos

dias de sua vida terrena. Esta presença contínua na vida do Nazareno sobressai

em alguns momentos particulares, que se encontram narrados nos Evangelhos.

Os quatro evangelistas narram estas passagens dando-lhes um colorido próprio,

correspondente a sua intenção teológica. Sabendo disto, fizemos uma opção por

um dos relatos, onde se encontra narrada a experiência carismática de Jesus,

deixando de lado os outros relatos paralelos que por ventura existam. Isso foi

feito porque nossa intenção não é a de comparar estes relatos, mas sim a de

recolher de alguns deles o que nos ajuda a alcançar nosso objetivo. Portanto, é

esta presença misteriosa na vida de Jesus de Nazaré o que nos propomos

averiguar neste capítulo para conhecermos melhor a revelação do Espírito de

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Deus na época messiânica, tendo consciência de que esse Mistério só pode ser

por nós, parcialmente desvelado.

Para desenvolver este capítulo, num primeiro momento analisaremos o termo

pneuma com sua riqueza de significados e seu uso no Segundo Testamento. A

partir daí, iniciaremos a caminhada histórica da experiência do Espírito de Deus

no período messiânico com a figura de João Batista. Fizemos essa escolha porque

a comunicação aos homens das promessas de salvação de Deus que se cumpriram

em Jesus de Nazaré, isto é, a proclamação do Evangelho, começa com o chamado

à conversão feito por João Batista a seus contemporâneos, e com o batismo que

efetua em Jesus (cf. Mc 1,1s). Além do que, este homem é o personagem que liga

o Primeiro Testamento ao Segundo. Destacaremos em seguida o que a ação do

Espírito de Deus provoca no Batista. Posteriormente acompanharemos o homem

de Nazaré em seu batismo no Jordão e ressaltaremos o que este Espírito provoca

em Jesus quando é batizado. A partir desta experiência, o Nazareno se deixa guiar

pelo Espírito de Deus até o deserto onde luta contra o Maligno. Veremos como

este Espírito age em Jesus no deserto. A seguir, deixando-se ainda guiar pelo

mesmo Espírito, Jesus dirige-se para a Galiléia onde irá atuar sob a ação deste

Espírito Santificador. Em seguida, ressaltaremos o que o Espírito de Deus

provoca em Jesus quando o inabita. Veremos que esta inabitação o leva a pregar

o Reino; a expulsar demônios; a ensinar com autoridade; a anunciar a Boa Nova

aos pobres; a curar e perdoar a todos e todas; a acolher as mulheres como suas

discípulas e missionárias; a resgatar os pecadores/as; a orar e a ensinar a orar; a

denunciar as injustiças daquela sociedade palestinense; a amar de forma radical

até o ponto de entregar-se à morte; a prometer e entregar o Paráclito; e finalmente

a ressurgir pela força do Espírito.

Depois de acompanhar Jesus em sua vida pública pela Palestina da primeira

metade do século I poderemos fazer a seguinte profissão de fé que fizeram seus

seguidores/as: Jesus de Nazaré vem do Espírito, o que significa dizer, este homem

é concebido por sua intercessão. Por conseguinte, este homem que viveu cheio do

Espírito de Deus, que vem do Espírito, que é guiado pelo Espírito, que atua no

Espírito, que promete o Espírito, que o doa aos seus/as e que se entrega à morte na

cruz pelo Espírito é a presença do próprio Deus no meio de nós. A partir daí, ao

constatarmos que Jesus é o Filho de Deus, daremos atenção para a plenitude da

revelação que vem por sua pessoa: Deus é comunhão de amor, Deus é Trindade,

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Ele é Tri-Uno! Finalmente recolheremos os principais dados de nossa

investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus de

Nazaré apontando a identidade deste Espírito (ser) e a maneira como se dá sua

ação (agir) no Homem de Nazaré, o Cristo de Deus.

Ao final de todo caminho percorrido, poderemos verificar que surge uma

pneumatologia da vida de Jesus que mantém muito daquilo que vimos no capítulo

anterior quando refletimos sobre a pneumatologia do Primeiro Testamento.

Entretanto, Jesus nos revela uma grande novidade em relação ao Espírito Santo de

Deus a partir de sua prática e pregação: o Espírito é uma pessoa divina.

Todo o caminho, que faremos neste capítulo, tem como finalidade nos preparar

para que no próximo possamos conhecer a pneumatologia de algumas das

primeiras comunidades cristãs que se encontram retratadas no Segundo

Testamento, assim como conhecer os critérios de discernimento que foram

surgindo a partir da experiência carismática destas comunidades.

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2.1. Pneuma

Para conhecermos a Experiência Histórica que se dá no Segundo Testamento se

faz necessário em primeiro lugar entender o significado da palavra pneuma. Ela é

um termo grego neutro que quase invariavelmente traduz na Septuaginta a palavra

feminina hebraica rûah. 249 Aparece trezentos e setenta e nove vezes no Segundo

Testamento, 250 sendo usado revestido de quatro sentidos. Com o sentido literal

significando o movimento do ar, o sopro, o vento, ele aparece três vezes. Já com o

sentido antropológico designando o princípio da vida que parte na hora da morte

(Mt 27,50 etc.), ou designando o homem em sua totalidade, ou ainda indicando o

ser humano visto sob o aspecto de sua “interioridade” (Mc 2,8; 8,12 +), este

termo aparece quarenta e sete vezes. Ainda aparece cerca de trinta e oito vezes

com o sentido demonológico que remete aos espíritos maus ou impuros (Mc 1,23-

27; 3,11; 3,30; 5,2 +). E, finalmente, com o sentido teológico significando o

Espírito transcendente de Deus e de Cristo, ele aparece duzentos e setenta e cinco

vezes, sendo este o seu sentido dominante no Segundo Testamento. Com este

sentido teológico aparece: a) cento e quarenta e nove vezes no sentido absoluto; b)

noventa e três vezes como Espírito Santo ou de santidade; c) dezoito vezes como

Espírito de Deus; d) uma vez como Espírito do Pai; e) cinco vezes qualificado

cristologicamente. Deve-se notar que exceto no corpo lucano, a expressão

“Espírito Santo” não é dominante no Segundo Testamento. 251

É digno de destaque observar que a maior parte das expressões com que as

atividades do Espírito de Deus são descritas no Primeiro Testamento encontram-

se também no Segundo ao se falar desse Espírito. Por exemplo: ele vem do alto do

céu (Mc 1,10; Jo 1,32s; 1 Pd 1,12); vem do Pai (Jo 15,26; 16,13); ele desce (At

10,44; 11,15); é enviado ou dado pelo Pai (Lc 11,13; 1 Jo 3,24; 4,13; Gal 4,6; Rm

8,15s); é derramado (At 2,17; Tt 3,5s); ele enche o homem (Lc 1,15; 4,1; At 2,4;

4,6); repousa sobre ele (Jo 1,32s); ou mora nele (Rm 8,9; 1 Cor 3,16). 252

249 Cf. DODD, C. H. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Editora Teológica, Paulus, 2003. p. 284. 250 É interessante ressaltar que o termo rûah aparece trezentos e setenta e oito vezes no Primeiro Testamento. 251 CF. ZUMSTEIN, J., DETTWILER, A. Verbete “Espírito Santo”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit., p. 650. 252 Cf. IMSCHOOT, P. V. verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 485.

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O uso do termo pneuma (espírito) nos Atos dos Apóstolos, em Paulo e até certo

ponto nos evangelhos sinóticos é ambíguo. Vemos nestes escritos o espírito sem o

artigo definido (espírito) outras vezes com este artigo (o espírito). Podemos

encontrá-lo ainda qualificado pelo adjetivo “santo” ou os genitivos “de Deus”, “do

Senhor”, “de Jesus”, mas, apesar de ser usado desta forma, não podemos afirmar

que ele é compreendido nestes casos como uma identidade pessoal. Para sermos

fiéis aos hagiógrafos devemos guardar esta ambigüidade, pois tentar eliminá-la

usando letra maiúscula (o Espírito Santo) não é sempre certo. 253 Entretanto, em

João, quando o espírito aparece como o Paráclito, talvez seja afirmado mais

explicitamente uma realidade pessoal do que em qualquer outra parte no

Segundo Testamento. 254 Toda esta dificuldade para captarmos o real sentido deste

termo no Segundo Testamento é devido ao fato de que “como observa F. Büchsel,

os evangelhos operam com a pneumatologia herdada do Antigo Testamento e do

judaísmo.” 255 Além disso, é importante destacar que, “quando no judaísmo

helenístico ruah se torna pneuma, as idéias hebraicas e as gregas associadas com o

termo devessem agir e reagir umas sobre as outras.” 256

A partir do exposto, podemos afirmar que o Segundo Testamento traz no termo

pneuma a riqueza de significados que seu termo correlato rûah possui, somado

ainda a algumas idéias do helenismo que são absorvidas no encontro que Israel

faz com esta cultura. Entretanto, é indispensável afirmar que a concepção de

pneuma como força de Deus que encontramos no Segundo Testamento é em

muitos momentos diferente daquela concepção de força de Deus que encontramos

no Primeiro. Nestes casos encontramos a grande novidade que o Segundo

Testamento nos traz em relação à compreensão do Espírito de Deus, e isto só foi

possível devido à plenitude da revelação trazida por Jesus Cristo. 257

Há um alerta que precisamos fazer todas as vezes que falamos em pneuma, isto é,

em “espírito”. Portanto, não podemos deixar de esclarecer, neste momento, e

através das palavras de José Comblin, que:

253 Cf. McKENZIE, J. Op. cit., p 306. 254 Cf. Ibid. p. 308. 255 BÜCHSEL F. apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 32-33. 256 DODD, C. H. Op. cit., p. 286. No oitavo capítulo deste livro Charles Harold Dodd faz uma análise de como se encontram entrelaçadas essas idéias no conceito pneuma. 257 Cf. McKENZIE, J. Op. cit., p. 305.

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“... nossa palavra “espírito” evoca algo completamente diferente do Espírito de Deus. Demonstrou-se a que ponto nossa palavra “espírito” se acha comprometida pelo dualismo matéria-espírito, ou corpo-espírito, comum a todas as filosofias derivadas da Grécia. Para nós, “espírito” evoca sempre o contrário de corpo ou matéria. Espírito evoca sempre uma certa substância não-material. Tudo isso nada tem a ver com o sentido cristão do Espírito. No entanto, a força da linguagem é de tal ordem, que somos obrigados a repetir, cada vez que falamos do Espírito Santo, que o espírito de modo algum se opõe seja à matéria, seja ao corpo. Espírito quer dizer força ou ação. Dizer que Deus é Espírito é dizer que Deus é ação, energia, movimento.” 258

Portanto, é com esta compreensão de pneuma, que iniciaremos a caminhada

histórica do Espírito Santo narrada no Segundo Testamento. Evidentemente

enfocaremos o pneuma em seu sentido teológico, onde este designa o Espírito de

Deus e de Cristo, deixando de lado os outros sentidos por nós apontados

anteriormente. Para tal destacaremos somente algumas das principais passagens

do Segundo Testamento onde, na opinião dos autores/as pesquisados, vemos esta

ação com maior evidência. Elas nos ajudarão a conhecer melhor quem é este

Espírito e como ele age no Mestre de Nazaré, com a finalidade de percebermos o

que significa para o ser humano e, principalmente, para o cristão e a cristã viver

sendo inabitado por ele. Mas, para alcançarmos este objetivo, precisamos

conhecer, primeiramente, como se dá a experiência de João Batista com o Espírito

de Deus e o que a ação deste Espírito provoca em sua pessoa, para assim nos

situarmos no contexto em que surge Jesus de Nazaré com sua práxis e pregação.

2.2. João Batista Quem é este “João”? 259 Segundo o que lemos nos Evangelhos é o Batista que

desde o seio materno já se encontra “cheio do Espírito Santo” (Lc 1,15) e que

“crescia e se fortalecia em espírito” (Lc 1, 15.80). Homem enviado por Deus para

dar testemunho da luz (Jo 1,6. 15). Ele aparece no deserto de Judá, cercado por

uma grande multidão que vai vê-lo e ouvi-lo (Mt 3,5.7; Mc 1,5), anunciando o

reino (Mt 3,1), o dia do juízo e conclamando ao batismo e à penitência (Mc 1,4).

João se considera o precursor daquele que haveria de batizar no Espírito e no fogo

258 COMBLIN, J. O Tempo da ação: Ensaio sobre o Espírito e a História. Petrópolis: Vozes, 1982. p.51. 259 Para aprofundar o conhecimento deste homem na perspectiva do historiador Flávio Josefo que faz sua reconstrução da história do povo judeu consultar FABRIS, R. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988. pp. 91-94.

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(Mt 3,11s; Mc 1,7s; Lc 3, 15-18), sendo o seu batismo uma preparação para o

batismo daquele que havia de vir. Vestia-se de um modo que recorda Elias

(comparar Mt 3,4 com 2Rs 1,8) e sua vida no deserto também é um eco do modo

de vida de Elias. Enfim, João é “um homem de Deus, homem carismático-

profético que apresenta uma grande afinidade com o Dêutero-Isaías (cf. Is 40-

55)”. 260 O que caracteriza João é sua inexorável pregação do Juízo (o esperado

fim da história), que vinha associada à oferta de um batismo de imersão na água

corrente do Jordão. Este rito batismal, que em face do juízo que se aproxima

exigia de todos a conversão, é o elemento novo que marca sua atividade. Este

homem é uma figura que tem importância e grandeza própria. 261 A pregação de

caráter ético-religioso e o batismo de João provocam um movimento popular que

irá despertar as suspeitas do tetrarca Herodes Antipas. Por precaução este manda

prender e matar o Batista (cf. Mc 6, 17-29; Mt 14, 3-12; Lc 3, 19-20). 262

Na visão de Rinaldo Fabris não é nada improvável que Jesus depois de receber o

batismo de João no Jordão, haja feito parte de seu grupo de discípulos. Depois se

separou deste grupo, levando consigo uma parte de simpatizantes, alguns dos

quais se tornaram seus discípulos (Jo 1, 37-42). 263 Jürgen Moltmann concorda

com esta probabilidade aventada por Fabris quando nos afirma que “Jesus de

Nazaré há de ter sido um dos discípulos do Batista. Jesus só se manifesta em

público depois que o Batista foi pela força, reduzido ao silêncio, e o teor de sua

mensagem é o mesmo que o de João: ‘Convertei-vos, porque está próximo o reino

dos céus’ (Mt 3,2; 4,17).” 264 Apesar disso, é preciso afirmar que há uma grande

diferença entre estes dois homens de Deus. Alfonso García Rubio ao estabelecer a

distinção entre João Batista e Jesus de Nazaré nos aponta as seguintes diferenças:

a) o batismo de João não realiza a salvação, pois a renovação do ser humano

concretiza-se mediante o batismo no Espírito daquele que há de vir; b) para João,

Deus vem como um juiz severo, enquanto para Jesus, Deus vem com sua

misericórdia; c) João vem ao Jordão para batizar e Jesus vem para ser batizado,

e o faz de forma oculta. 265

260 GARCÍA RUBIO, A. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para nossos dias. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 29. 261 GNILKA, J. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 74-75. 262 Cf. FABRIS, R. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 95. 263 Cf. Ibid. p. 97. 264 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 67. E também FABRIS, R. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 97. 265 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 29.

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O que a ação do Espírito Santo provoca em João Batista

Como acabamos de destacar João desde o seio materno já se encontra “cheio do

Espírito Santo” e “crescia e se fortalecia em Espírito”. Portanto, iremos neste

momento destacar os quatro pontos que consideramos os principais resultados da

ação do Espírito de Deus em João Batista, tendo claro que esta ação é muito mais

abrangente do que aquilo que enfocaremos a seguir.

A ação do Espírito de Deus em João Batista provoca:

2.2.1. Uma vida de pobreza e austeridade

“Naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e dizendo: ‘Arrependei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo’. Pois foi dele que falou o profeta Isaías, ao dizer: ‘Voz no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas’. João usava uma roupa de pêlos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins. Seu alimento consistia em gafanhotos e mel silvestre. Então vieram até ele Jerusalém, toda a Judéia e toda a região vizinha ao Jordão, confessando os pecados”. (Mt 3, 1-6)

João desafia a tradição familiar e religiosa de seu tempo. Como filho primogênito

do sacerdote Zacarias deveria dedicar-se ao serviço do Templo, pois é sacerdote

por profissão (Ex 13, 11-16; 22 28-30; Dt 26, 1-2). Apesar disso, prega no

deserto, sendo Jericó o lugar escolhido por ele, por ser a porta de entrada do povo

do Êxodo. Faz isto porque acredita num novo Êxodo originado na penitência e na

conversão. Do Templo (seu lugar por direito) para o deserto (opção

revolucionária), este homem renuncia aos privilégios sacerdotais, sociais e

políticos para assumir uma vida de pobreza e austeridade. Troca a segurança

econômica e o bem-estar, pela insegurança de subsistência e pelas agruras do

deserto. Assume por consciência crítica, por sensibilidade à realidade que o

cerca, e pela certeza da necessidade de reconstrução da justiça, o estilo de vida

profética. O traje de João é o mesmo dos beduínos do deserto, daqueles que

vivem desprovidos de tudo. Ele não precisa viver desta forma, nem de vestir-se

assim, porém, faz essa escolha livremente para condenar a luxúria de Jerusalém

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(Ez 23, 21-48). Sua alimentação é também uma forma de protestar contra os

bacanais e banquetes com ovelhas e cabritas roubadas. 266

2.2.2. Um ensino moral que convoca as pessoas a produzirem frutos de generosidade com os pobres e a renunciarem à opressão e à violência

“Ele dizia às multidões que vinham para serem batizadas por ele: ‘Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que está por vir? Produzi, então, frutos dignos do arrependimento e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos por pai a Abraão. Pois eu vos digo que até mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão! O machado está posto à raiz das árvores; e toda a árvore que não produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo’. E as multidões o interrogavam: ‘Que devemos fazer?’ Respondia-lhes: ‘Quem tiver duas túnicas, reparta-a com aquele que não tem, e quem tiver o que comer, faça o mesmo’. Alguns publicanos também vieram para ser batizados e disseram-lhes; ‘Mestre, que devemos fazer?’ Ele disse: ‘Não deveis exigir nada além do que vos foi prescrito’. Os soldados, por sua vez, perguntavam: ‘E nós, que precisamos fazer?’ Ele disse: ‘A ninguém molesteis com extorsões; não denuncieis falsamente e contentai-vos com o vosso soldo’.” (Lc 3, 7-14)

A pregação de João é dura (v. 7-9), no entanto, entre a multidão que ia até ele

para receber o batismo (v. 12-14) encontram-se publicanos e soldados. Isto

porque, eles não querem apenas água sobre a cabeça como rito de “expiação”, mas

querem uma mudança de vida e buscam em João uma orientação para uma vida

nova. É a partir desse contexto que Lucas nos mostra o ensinamento moral do

Batista (v. 10-14): é preciso produzir frutos de generosidade para com os pobres

e renunciar à prática da violência e da opressão em relação aos pequeninos da

sociedade. 267 Comentando sobre a radicalização da pregação do Batista, sobre a

dureza do caminho apontado por ele para aqueles que buscam a conversão, e

sobre o significado de cada uma de suas exortações, Isidoro Mazzarolo nos diz

que apesar disso:

“vinham a ele as multidões que abarcavam gente de todas as categorias sociais e de todos os partidos religiosos. ‘Quem tem duas túnicas dê uma a quem não tem...’ (3,12) significa a nova proposta política da distribuição, da partilha e do compromisso sociológico com todos, em nome do Evangelho. Vinham também publicanos, e a estes dizia: ‘Não exijais mais do que está estipulado’ (3,13) revela que João conhecia o caminho pelo qual os fiscais podiam corromper-se e

266 Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus: ouvistes o que foi dito...? Eu, porém vos digo...! Coisas velhas e coisas novas! Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2005. pp. 44-50. 267 McKENZIE, J. Op. cit., p. 489.

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corromper. A honestidade de quem cobra é proporcional a quem paga, e a corrupção ou falsificação dos critérios levava muitos deles a buscar riquezas por caminhos ilícitos. Vinham também soldados (3,14), e também eles tinham caminhos de corrupção: ‘Não maltrateis nem denuncieis ninguém e contentai-vos com vosso pagamento’. João Batista tinha conhecimento dos caminhos pelos quais os soldados exigiam prêmios para não prender, para soltar presos ou para facilitar a vida dos corruptos. Por outro lado, os inocentes podiam pagar a conta sem serem responsáveis. Todos os que iam para o deserto à procura do profeta perguntavam o que deveriam fazer, e João lhes dava respostas concretas: Quem tem, reparte com quem não tem. Quem não tem nada pode ter dons e com eles realizar comprometedoras ou transformadoras ações.” 268

Estes são os frutos concretos indicados por João Batista e que dirão se houve ou

não conversão real daqueles que buscam uma “vida nova” e não somente um rito

de purificação.

2.2.3. Humildade

João é humilde o suficiente para reconhecer seu lugar. Desta forma é capaz de

prenunciar que aquele que vem depois dele é mais forte e tem mais poder que ele.

“Eu vos batizo com água para o arrependimento, mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. De fato, eu não sou digno nem ao menos de tirar-lhe as sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo.” (Mt 3,11)

João realiza o batismo com água como preparação para o Reino de Deus e para a

vinda daquele que haveria de batizar com o Espírito Santo e com o fogo. Isidoro

Mazzarolo nos esclarece que:

“O batismo na água estava ligado aos ritos de purificação das tradições dos judeus e, mais especificamente, dos essênios, mas João acrescentava um elemento novo a esse rito das tradições, a conversão. A conversão não fazia parte dos ritos judaicos, purificar-se não era converter-se, mas lavar-se. As purificações judaicas eram apenas um medo de doenças e contaminações, mas não atingia o interior da pessoa, seu comportamento e sua consciência”. 269

Portanto, João com seu batismo prepara a grande purificação messiânica. 270 Este

homem é humilde igualmente ao confessar sua função de precursor, não querendo

268 MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2004. pp. 76-77. 269 MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., p. 56. Grifo nosso. 270 Cf. IMSCHOOT, P. V. Verbete “Espírito”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 486.

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que seus ouvintes sejam confundidos a respeito do Messias. É capaz de perceber a

grande diferença entre ele e o Messias a ponto de confessar-se indigno de tirar

suas sandálias. Para entendermos o alcance desta afirmação de João vejamos

ainda o que nos diz Isidoro Mazzarolo a respeito da função de “tirar as sandálias

de uma pessoa” naquela sociedade:

“O escravo tirava as sandálias do seu senhor, carregava-as com cuidado, lavava-lhe os pés e prestava o serviço de submissão. João acredita que a diaconia para Jesus exigia uma qualificação maior em termos de dignidade e condições pessoais; por isso não se considera capaz para essa tarefa”. 271

Portanto, a humildade de João Batista chega ao ponto de, apesar de viver uma

vida de austeridade dedicada a Deus e à conversão de seus irmãos, se considerar

indigno de ser um escravo do Messias.

2.2.4. O reconhecimento do Messias

João é capaz de reconhecer Jesus como um Cordeiro pascal que tomaria para si a

culpa do povo e realizaria um ato libertador definitivo. Além disto, confessa com

alegria e humildade sua própria condição de intermediário que levaria as pessoas

a conhecer, acolher e crer em Jesus. 272

“No dia seguinte, ele vê Jesus aproximar-se dele e diz: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele é que eu disse: Depois de mim, vem um homem que passou adiante de mim, porque existia antes de mim. Eu não o conhecia, mas, para que ele fosse manifestado a Israel, vim batizar com água’. E João deu testemunho, dizendo: ‘Vi o Espírito descer, como uma pomba vinda do céu, e permanecer sobre ele. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com água, disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é o que batiza com o Espírito Santo. E eu vi e dou testemunho que ele é o Eleito de Deus’. ” (Jo 1, 29-36)

“João Batista, ao esperar o Messias, esperava ao mesmo tempo o Espírito em todo

o seu poder; este iria substituir os gestos do homem pela irresistível ação de

Deus.” 273

271 MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., pp. 56-57. Grifo nosso. 272 Cf. MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém: O evangelho de São João. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2001. pp. 57-59. 273 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 299.

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Portanto, com estes pequenos dados que pudemos conhecer da vida de João

Batista, assim como com o resultado da ação do Espírito Santo em sua pessoa,

encontramo-nos preparados/as para adentrar na Experiência Histórica que Jesus de

Nazaré faz com este mesmo Espírito.

2.3. Jesus de Nazaré, o homem cheio do Espírito

Enfocaremos agora com maiores detalhes como se deu o relacionamento de Jesus

de Nazaré com o Espírito de Deus em sua vida histórica. Percorrendo os

evangelhos constataremos que este homem viveu cheio deste Espírito, tendo-o

como seu companheiro inseparável. A partir das narrativas evangélicas

perceberemos como a ação do Espírito atua constantemente em Jesus, que se

torna dócil a sua orientação. É importante percorrer este caminho histórico, pois

ele nos mostrará que as escolhas feitas por Jesus foram o resultado da inabitação

do Espírito de Deus e de sua ação na pessoa do Nazareno. O Espírito habitou em

Jesus de maneira plena, total e sem limitação, com toda sua abundância e

redundância. Veremos a seguir como isto se deu concretamente na vida e na

pregação de Jesus de Nazaré.

2.3.1. Jesus se deixa batizar por João

“A tradição neotestamentária atesta unanimemente que Jesus é o portador do

Espírito por excelência, e em todos os quatro evangelhos o batismo de Jesus por

João constitui a cena-chave nesse sentido”. 274 É importante destacamos que

“antes do batismo Jesus não aparece agindo na força do Espírito, e seus

compatriotas de Nazaré não viam nele nada de excepcional.” 275 Isso pode ser

constatado a partir do espanto de seus conterrâneos ao verem Jesus na Sinagoga

de Nazaré lendo um texto do profeta Isaías causando admiração a todos por suas

palavras cheias de graça (Lc 4,22), ou ainda quando se perguntam de onde vem a

sabedoria e os milagres feitos por aquele homem (Mt 13,54-56; Mc 6, 1ss).

Portanto, o batismo inaugura um novo capítulo na vida de Jesus, é como um

274 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 428. 275 CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.32.

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marco, um referencial apesar de “Jesus ser o Filho de Deus e habitado pelo

Espírito Santo desde o seio de Maria.” 276

Portanto, é a partir do batismo que marca tão fortemente a vida deste homem, que

iniciaremos o percurso de sua experiência carismática.

“Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi batizado por João no rio Jordão. E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: ‘Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo’ ”. (Mc 1, 9-11)

Este relato ao utilizar duas referências ao Antigo Testamento (Sl 2,7, salmo régio

e messiânico e Is 42,1, o primeiro versículo do primeiro Cântico do Servo de

Isaías) quer afirmar que este homem, Jesus de Nazaré, anônimo e perdido na

multidão é o Messias esperado pelo povo e especificar ainda o tipo de

messianismo que ele assume em conformidade com a vontade do Pai: o

messianismo de serviço. Esta messianidade é determinada pelo dom do Espírito.

O relato ainda afirma que Jesus é guiado nesse seu caminho pelo Espírito de Deus

que o impulsiona e ilumina em sua vida, paixão, morte e ressurreição. 277

Podemos ainda perceber que em seu batismo, Jesus faz uma experiência

particular do Espírito de Deus: ele vê os céus se rasgando e o Espírito de Deus se

manifestando sobre ele numa forma, ao mesmo tempo simples e divina, como

uma pomba (v. 10), 278 e ouve a voz de Deus (v.11).

Yves Congar ao falar do batismo de Jesus afirma que:

“Ao ser batizado por João, Jesus é designado e consagrado como aquele por cuja palavra, sacrifício e ação o Espírito entra em nossa história como dom messiânico e, ao menos em ‘penhor’, como dom escatológico. Certamente o Espírito já esteve em ação anteriormente e já na antiga Disposição” 279

276 Ibid. p. 33. 277 Cf. GARCÍA RUBIO, A. Elementos de Antropologia Teológica... Op. cit., p. 167 e O Encontro com Jesus Cristo Vivo... Op. cit, p. 30-31. 278 “Não tem sido possível dar qualquer interpretação garantida a esse simbolismo. Mui provavelmente, não se trata de alusão à pomba que retorna à arca de Noé (Gn 8, 8-12). Alguns, baseando-se em tradições judaicas, identificam a pomba com Israel. Porventura não sugere ela antes o amor de Deus a descer simbolicamente à terra? Enfim, de acordo com outras tradições judaicas que viam uma pomba no Espírito de Deus pairando sobre as águas (Gn 1,2), certos críticos julgam que ela lembra a nova criação que ocorre no batismo de Jesus”. LÉON-DUFOUR, X. Verbete “Pomba”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 793. Consultar ainda CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 34-35, e CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. p. 728. 279 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 32

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Como age este Espírito que entra na história humana como dom messiânico

através do batismo de Jesus de Nazaré? Ele revela o Messias prometido à sua

maneira misteriosa, a saber, sem parecer agir. Percebemos no relato bíblico que o

Filho age e se faz batizar, o Pai fala ao Filho, mas o Espírito não fala e nem age.

Entretanto, sua presença é necessária e indispensável para que aconteça o diálogo

entre o Pai e o Filho. Apesar disso, permanece mudo e aparentemente inativo.

Como podemos constatar ele não une sua voz à voz do Pai, não acrescenta

nenhum gesto seu aos de Jesus. Podemos então nos perguntar: o que faz então o

Espírito? Ele: a) faz com que se realize o encontro entre Pai e Filho; b) faz com

que a palavra do Pai seja comunicada a Jesus, palavra de complacência, de

orgulho e amor pelo Filho; c) permite que Jesus se coloque numa atitude de Filho;

d) faz elevar-se até o Pai a consagração de Cristo, as primícias do sacrifício do

Filho bem-amado. 280 Esta maneira de agir do Espírito de Deus no batismo de

Jesus é a sua maneira própria de ser. É uma forma kenótica, isto é, o Espírito

“esvazia-se de si mesmo” para que o outro, neste caso, o Pai e Jesus, possam ser o

protagonistas da ação possibilitada por ele.

Jürgen Moltmann ainda nos diz que:

“O Espírito deve ser entendido como o sujeito propriamente dito da especial relação de Deus com Jesus e da especial relação de Jesus com Deus. Por isso o Espírito também ‘conduz’ Jesus à história de mútua interação com Deus, seu Pai, em que ‘por obediência’ ele há de ‘aprender’ seu papel de Filho messiânico... As expressões do ‘descer’ do Espírito sobre Jesus e do ‘repousar’ do Espírito sobre ele levam a que o Espírito seja entendido como a shekiná de Deus. É o autolimitar-se e o auto-rebaixar-se do Espírito eterno e a empatia na pessoa de Jesus e na história de sua vida e de sua paixão, da mesma maneira como de acordo com a idéia dos rabinos o Espírito de Deus ligou-se à história da vida e da paixão do povo de Israel.” 281

No relato bíblico do batismo de Jesus ainda podemos constatar que Jesus faz o

mesmo movimento do povo, a saber, vai ao deserto para ver o Batista. Neste

movimento de Jesus atestamos sua pedagogia: ele sendo o maior, submete-se ao

280 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 300. 281 MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 67-68. Grifo nosso. É fundamental reportar nosso leitor ao que dissemos sobre a Shekinah no primeiro capítulo deste trabalho.

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menor, sendo o Filho amado, valoriza e considera a grandeza de João, conferindo

dignidade e nobreza à missão do precursor. 282

O que a ação do Espírito provoca em Jesus no seu Batismo

Segundo Jürgen Moltmann presume-se que Jesus na hora de seu batismo tenha

feito “uma experiência particular do Espírito e que através dela ele tenha

reconhecido sua própria vocação e missão.” 283 Corroborando com esta afirmação

encontramos Ch. H. Dodd que nos diz: “No batismo aconteceu algo que modificou

o curso da vida de Jesus...; estamos autorizados a supor que aquele foi o momento

em que Jesus aceitou sua vocação”. 284A estas palavras Raniero Cantalamessa

acrescenta que isto aconteceu:

“não porque antes não a tivesse aceitado, mas porque somente neste ponto de seu ‘crescimento em sabedoria e graça’, como homem, ela se lhe manifestou clara e concretamente [...] É nesse momento, pois, que se verifica a fusão na consciência de Jesus (enquanto consciência também humana) das duas figuras ideais do Messias e do servo de Javé, fusão que determinará, doravante, a identidade e a novidade messiânica de Jesus e dará um cunho inconfundível a toda sua palavra e ação ”. 285

Yves Congar ainda pondera que neste momento Jesus toma plena consciência de

ser aquele que ‘o Pai consagrou e enviou ao mundo’ (Jo 10, 36), sendo este um

tema delicado e difícil de ser tocado: o crescimento do conhecimento humano de

Jesus sobre sua qualidade e missão. 286 Apesar disto, continua afirmando:

“O evento do seu batismo, seu encontro com João Batista, a Palavra que o acompanhou, representam certamente um momento decisivo na explicação da consciência que ele teve, em sua alma humana, de sua qualidade de eleito, enviado, Filho de Deus e Servo-cordeiro de Deus”. 287

A partir do que acabamos de recolher de autoridades neste assunto podemos

afirmar que a ação do Espírito em Jesus na hora de seu batismo o faz reconhecer

282 MAZZAROLO, Isidoro. Evangelho de Marcos: Estar ou não com Jesus. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2004. pp.34-35 283 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., pp. 67-68. Grifo nosso 284 DODD, H. apud CANTALAMESSA, R. O Espírito Santo na vida de Jesus: o mistério da unção. São Paulo: Ed. Loyola, 1985. p. 12. Grifo nosso. 285 CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 12. Grifo nosso. 286 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.35. 287 Ibid. pp.35-36.

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sua vocação de Messias de Deus e assumir livremente sua missão de Servo de

Iahweh através do messianismo de serviço. Este messianismo significa a vivência

concreta do amor-serviço e da solidariedade na medida em que se ajuda o outro/a

a crescer e superar a desigualdade entre os parceiro/as da relação. Jesus Cristo

vive o sentido verdadeiro de serviço na perspectiva cristã, pois ao se aproximar do

outro/a, leva-o/a a sério como outro/a, e coloca-se à sua disposição a fim de

ajudá-lo/a a crescer e ser ele/a mesmo. Logo, toda a pregação e práxis de Jesus são

vividas como amor-serviço na dimensão de existir-para-o-outro/a. 288

Portanto, depois do batismo, Jesus tendo consciência de sua vocação e missão,

abandona o estilo de vida privada e inicia uma atividade pública de intenso

compromisso religioso. Nesta perspectiva “o batismo representa uma linha

divisória entre as duas formas de vida de Jesus, entre o carpinteiro de Nazaré e o

profeta da Galiléia, anunciador do reino de Deus”. 289

2.3.2. Jesus é guiado pelo Espírito

A unção pneumática do Jordão impulsiona Jesus e este se deixa guiar livremente

pelo Espírito de Deus. A descida deste sobre o Mestre de Nazaré é uma unção que

o prepara para a vida pública, vida que será vivida em conformidade com a

vontade do Pai. Desta forma Jesus, pleno do Espírito Santo depois de seu batismo,

é guiado ao deserto para enfrentar aí o tentador e posteriormente guiado à

Galiléia, onde deverá vivenciar concretamente seu messianismo de serviço.

A seguir veremos o Espírito de Deus guiando Jesus:

2.3.2.1. Ao deserto para lutar contra o Tentador

Qual o significado de “deserto” no tempo de Jesus? O deserto representa um rico

simbolismo tanto no Primeiro Testamento quanto no Segundo. Vale à pena

conferir o que nos diz Isidoro Mazzarolo a este respeito:

“Na tradição veterotestamentária, o deserto era a morada dos espíritos maus, de satanás e as suas potências. O deserto era o lugar da morte. Para lá era mandado,

288 GARCÍA RUBIO, A. Elementos de Antropologia Teológica... Op. cit., p. 28-29. 289 FABRIS, R. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 101.

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anualmente, o bode expiatório, carregado com os pecados do povo, e sua sorte não era outra, senão ser devorado pelas feras (Lv 16, 20-28)”. 290

Quem é o “Tentador”? Ele “simboliza todas as forças que perturbam, inspiram

cuidados, enfraquecem a consciência e fazem-na voltar-se para o indeterminado e

para o ambivalente: centro da noite, por oposição a Deus centro da luz. Um arde

no mundo subterrâneo, o outro brilha no céu.” 291

Toda esta riqueza de significados e simbolismos tanto do “deserto”, como do

“Tentador”, encontram-se por trás das narrativas da tentação sofrida por Jesus no

deserto. 292

“Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Por quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome. Então, aproximando-se o tentador, disse-lhe. ‘Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães’. Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’. Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: ‘Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra’. Respondeu-lhe Jesus: ‘Também está escrito: ‘Não tentarás ao Senhor teu Deus’. Tornou o diabo a levá-lo, agora para um monte muito alto. E mostrou-lhe todos os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe: ‘Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares’. Aí Jesus lhe disse: ‘Vai-te, Satanás, porque está escrito: ‘Ao Senhor teu Deus adorarás e a ele só prestarás culto’. Com isso, o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo”. (Mt 4, 1-11)

É o Espírito que “leva” Jesus ao deserto (v. 1) depois de seu batismo. É, portanto,

no Espírito que ele enfrenta o demônio. Além disto, é necessário destacar que a

tentação está ligada ao batismo de Jesus e à declaração: “Tu és (Este é) o meu

Filho bem amado”. Segundo Yves Congar o Tentador ao dizer por duas vezes “Se

tu és o Filho de Deus” está colocando à prova a obediência de Jesus ao Pai.

Logo, o desfecho vitorioso de Jesus foi decisivo. “Satanás fica amarrado, e Jesus

o expulsará constantemente, e isso através do ‘dedo’ ou Espírito de Deus”. 293

Podemos nos perguntar: qual o real sentido da tentação sofrida por Jesus? Mateus

(assim também o faz Lucas) relaciona as tentações de Jesus com as sofridas por

290 MAZZAROLO, I. Lucas em João: uma nova leitura dos evangelhos. Porto Alegre: Mazzarolo Editor, 2000. p. 207. Grifo nosso. 291 CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Op. cit., p. 337. 292 Desenvolver o tema do deserto não cabe a nós nesta pesquisa, entretanto para aprofundá-lo consultar McKENZIE, J. Op. cit., pp. 228-230; como também CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Op. cit., pp.331-332 293 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.37.

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Israel no deserto, mostrando que Jesus é o novo Israel que tem êxito onde este

fracassou. Já Marcos deseja fazer alusão ao diferente resultado das tentações em

Jesus e em Adão, querendo dizer que Jesus é o novo Adão que, tendo vencido o

tentador, reintroduz o homem no paraíso perdido. Entretanto, é o próprio Jesus

que nos diz o real sentido de sua luta com o Tentador no deserto: “Ninguém pode

entrar na casa de um homem forte e roubar-lhe os bens sem primeiro amarrá-lo;

só então poderá saquear a sua casa” (Mc 3, 27). Portanto, no deserto, sob a força

do Espírito, Jesus “amarrou” o adversário. Primeiro acertou as contas com ele, e

depois se pôs ao trabalho, levando avante a sua campanha em território inimigo. 294 Todavia, este “amarrar o adversário” apontado por Congar e Cantalamessa, não

significa que depois do deserto Jesus não tenha sofrido mais nenhuma investida

do Maligno. Muito pelo contrário, ao longo de toda sua missão o Adversário se

manifestará diante do Homem de Nazaré tentando-o e buscando aniquilá-lo

através dos diferentes grupos (saduceus, fariseus, escribas, sacerdotes e Herodes)

que se opõem, combatem e criticam Jesus. “Ele se apresenta também no final, de

modo particular, na figura do Sumo Sacerdote e de Herodes, que exigem a

sentença de morte, confirmando a opção pelo ódio contra o amor (Jo 15,25).” 295

Jürgen Moltmann faz um ótimo resumo sobre o significado das tentações que o

Espírito de Deus impeliu Jesus a passar:

“As tentações mesmas não têm como alvo sua [de Jesus] fraqueza humana, mas sim sua relação com Deus: ‘Se és o Filho de Deus, então...’ O reinado messiânico de Jesus é posto à prova, e nesta prova ele recebe sua exata definição. Há de ser um reino messiânico sem pão para as massas famintas [vv. 3-4], sem a libertação de Jerusalém [vv. 5-6] e sem uma dominação conquistada pela força [vv. 9-10]. Com isto o caminho de sua paixão já está prefigurado. Se Jesus permanece em seu dom messiânico do Espírito sem os recursos econômicos, políticos e religiosos da dominação pela força, então ele não pode senão sofrer as forças que se levantam contra ele, e então terá que morrer na fraqueza. Mas é o caminho em que ele é ‘conduzido’ pelo Espírito e por conseguinte o caminho que lhe traz a certeza de sua messianidade. Ao longo deste caminho ele aprende a compreender aquele papel messiânico que lhe é atribuído pelo Espírito de Deus”.296

294 Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 21. 295 MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., p. 62. 296 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 68.

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Como podemos ver, no deserto, diante do Tentador fica confirmada e aceita por

Jesus, a experiência que havia vivido em seu batismo: seu reinado messiânico,

dom do Espírito, só pode ser vivido na fraqueza e nunca na dominação.

2.3.2.2. Para a Galiléia onde concretizará seu messianismo de serviço

Após as tentações e a vitória de Jesus sobre o Tentador ele é conduzido pelo

Espírito de Deus e “com a força deste Espírito retorna à Galiléia” (Lc 4, 14). O

Homem de Nazaré experimenta assim a “presença do Espírito ativo em sua

pessoa para que possa tornar presente o Reino de Deus e, portanto, eliminar o

reino do demônio. 297 Nos arredores da Galiléia, ele ensina causando alegria,

admiração e surpresa a todos/as. 298

2.3.3. Jesus atua no Espírito Toda a conduta de Jesus manifesta que nele age o Espírito (Lc 4, 14) porque este

o inabita, e porque Jesus se deixa livremente ser tomado por esta presença divina.

É esta inabitação, a saber, este ser habitado por dentro pelo Espírito de Deus que

possibilita a Jesus a comunhão com o próprio Deus. 299 É esta inabitação que leva

ao Nazareno a força de Deus para que possa agir, atuar coerentemente com seu

messianismo de serviço que é em síntese a vontade do Pai para o Filho Amado.

Queremos reportar-nos ao que afirma Jürgen Moltmann sobre a shekinah. Diz este

teólogo que ela é a “inabitação de Deus no espaço e no tempo, num determinado

lugar e em determinado tempo de criaturas terrenas e em sua história.” 300 É isto o

que acontece em Jesus de Nazaré, quando, livremente, se deixa preencher pela

presença do Espírito de Deus que é força para sua missão. Igualmente, é o que

acontece com cada ser humano que permite que este Espírito o/a habite. A

inabitação do Espírito leva a força vital de Deus em Jesus a uma efusiva

plenitude, a tal ponto que o autor do evangelho de João chama o dom único do

297 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.37. 298 Cf. MAZZAROLO. I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 83 299 Cf. BINGEMER, M. C. L. Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade). In: Iniciação Teológica. Rio de Janeiro: Edição Experimental, 2006. p. 24. 300 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 55.

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Espírito de Jesus um “dom sem medida” (Jo 3, 34). 301 Além disso, é a presença

do Espírito no agir de Jesus que caracteriza este agir como “agir salvífico”, ou

seja, como agir que transmite a homens e mulheres vida e salvação pura e

simplesmente. Finalmente, podemos afirmar como o faz Luiz Fernando Santana:

“Jesus, na qualidade de ungido do Senhor, é o ‘pneumatóforo’ messiânico dos

últimos tempos, o qual plenifica todas as promessas da efusão do Espírito

reservada para os tempos escatológicos (cf. Is 32, 15-20; 44 3-5; 59 21).” 302

O que a ação do Espírito de Deus provoca em Jesus quando o inabita

A seguir veremos o que a presença contínua e amorosa do Espírito Santo que

acompanha, conduz, envolve e inabita Jesus de Nazaré provoca em sua pessoa.

2.3.3.1. Jesus proclama o “Reino de Deus”

O que é o Reino de Deus? Segundo Schillebeeckx ele é a causa de Deus enquanto

causa do homem[...] É o amor universal de Deus manifestado aos homens na vida

prática de Jesus[...] É a ação de Deus no mundo manifestando-se contra todas as

formas de mal[...] É seu triunfo sobre o mal que “já” está acontecendo na história,

porém “ainda não” em plenitude. 303

O que é o Reino de Deus para Jesus? Observando a vida do Homem de Nazaré

percebemos que para ele há uma vinculação inseparável Abbá-Reino. Esta

vinculação “constitui toda a chave daquilo que parece Jesus pessoalmente vivia,

constitui todo o horizonte daquilo que Jesus quis pregar, e constitui todo o sentido

do discipulado que, para Jesus, parece não ser mais do que uma introdução a esta

experiência.” 304 Portanto, Abbá-Reino é a chave da pregação, da práxis e da

proposta de seguimento de Jesus, pois sem o Reino de Deus, que é Abbá, não é

possível compreender este homem.

301 Cf. Ibid. p. 68. 302 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p.54. Grifo nosso. 303 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La historia de un viviente. Madrid, 1983. pp. 134, 140-141, 161-162. Para aprofundar o significado de “Reino de Deus” na pregação e práxis de Jesus consultar GNILKA, Joachim. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000. pp. 83-146. 304 GONZALES FAUS, J. I. Acesso a Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981. p. 36.

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“Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia proclamando o Evangelho de Deus: ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho’. ” (Mc 1, 14-15)

Depois da prisão de João, Jesus inicia sua atividade autônoma na Galiléia fazendo

ouvir sua pregação que é feita no Espírito. É digno de destaque lembrar que o

próprio Jesus não faz do Espírito um tema de sua pregação. No entanto,

“tradições pós-pascais antigas já descrevem sua mensagem acerca do senhorio

próximo de Deus e suas ações poderosas como operadas pelo Espírito; e mais:

descrevem sua vida toda, desde a concepção até a ressurreição, como existência a

partir do Espírito.” 305 Toda a pregação do Nazareno encontra-se centrada no

anúncio da chegada iminente do Reino de Deus que tem como principais

destinatários os “pobres”. Jesus quando se referia aos “pobres” estava falando de

pobres no sentido amplo do termo, a saber, todos marginalizados/as e

desprezados/as pela sociedade e que Deus quer tomar a seu cuidado. Segundo

Jesus, o Reino é para eles, não por terem títulos ou qualidades especiais que os

recomende junto a Deus, mas porque Deus é ‘justo’, isto é, liberta e salva os que

estão precisando. Este anúncio de Jesus de que o Reino de Deus é dos pobres é

uma declaração de que os esquecidos/as e vilipendiados/as pela sociedade podem

contar com o amor gratuito e salvador de Deus. Como podemos ver este anúncio

inaugural de Jesus resume a esperança que percorre toda a história bíblica, desde o

Êxodo até os profetas do Exílio. 306 Através desta pregação do Reino compreende-

se que ele é dom do amor de Deus (cf. Lc 12, 32), é graça oferecida, é presente

dado gratuitamente, é soberania divina que se aproxima do ser humano através de

Jesus Cristo. Portanto, podemos afirmar que o Reino de Deus é Jesus em pessoa,

e quem faz de Jesus o Reino em pessoa é o Espírito de Deus. 307 Logo, o Reinado

de Deus não está mais distante, pois, com Jesus, que vive pleno do Espírito, ele

irrompe na história.

O Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré, na presença constante do

Espírito revela um Deus

305 HILBERATH, B. J. In: SCHENEIDER, T. Op. cit., p. 420. 306 Cf. FABRIS, R. Jesus de Nazaré. História e Interpretação. Op. cit., p.113. 307 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p. 68.

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“muito desconcertante para o status quo religioso que predominava na Palestina da primeira metade do séc. I. Certamente, o Deus revelado na pregação e nas atitudes de Jesus não é um Deus opressor, ciumento das realizações humanas, juiz implacável, defensor do moralismo superficial, estéril e hipócrita apresentado pela sociedade bem-pensante da época; não é um Deus que mantém relações comercializadas com o ser humano, e tampouco é um Deus ‘quebra-galho’ ou ‘tapa-buraco’ a manter o ser humano no infantilismo e na passividade alienada; não é um Deus ‘primeiro motor’ do universo ou um Deus impassível e distante do sofrimento, da alegria, do prazer e da angústia humanas... Jesus nos revela com sua palavra e com seu comportamento e atitudes um Deus de misericórdia, um Deus que nos ama com ternura de Pai (e de Mãe, por que não?), um Deus pronto para o perdão e a reconciliação, um Deus que quer sempre o nosso bem, pronto sempre a nos ajudar para consegui-lo, um Deus que nos capacita para sair do infantilismo e da irresponsabilidade para uma vida que possamos ser e viver livremente, como bem entendeu S. Paulo (cf. Gl 5, 1.13) ou na expressão tão rica de conteúdo de 1 Jo 4,8, um Deus que é Ágape (amor gratuito). O Deus revelado por Jesus Cristo (cf. Jo 1,18) não sobrecarrega o ser humano de normas e leis. Para esse Deus apenas importa o amor-serviço que é, na realidade, o único mandamento (cf. Jo 13,34; Rm 13,8-10). Um Deus que não pode ser comprado com presentes, promessas, virtudes, trabalhos pastorais diversos etc. E como poderíamos comprar o Amor, dado que Deus é Amor?” 308

Jesus só revela Deus, desta forma tão inusitada para os padrões religiosos de seu

tempo, porque a experiência que faz deste Deus, Pai-Mãe de ternura e bondade, é

feita no Espírito, que o inabita e possibilita-lhe esta compreensão.

Outro aspecto fundamental no anúncio do Reino de Deus feito por Jesus no

Espírito refere-se à mudança de vida (“arrependei-vos e crede no Evangelho” tem

um sentido de metanóia radical) que o Reino suscita no ser humano. Logo, a ação

de Deus através de seu Espírito orientada para a salvação dos homens e mulheres

encontra-se em profunda relação com a ortopráxis (prática de acordo com o Reino

de Deus). 309 Nas palavras de Schillebeeckx: “A solicitude do homem por seu

semelhante é a forma visível em que se manifesta a vinda do Reino de Deus.” 310

ou ainda “o amor a Deus, demonstrado no amor ao homem, em ‘servir’, é o sinal

que permite reconhecer a irrupção da soberania de Deus neste mundo e em nossa

história.” 311

Podemos resumir a pregação de Jesus sobre o Reino de Deus inspirada pelo

Espírito, e sua práxis vivida sob a ação deste mesmo Espírito, em três elementos

básicos sobre o Reino: a) ele é graça de Deus; b) ele exige do ser humano uma

conduta em consonância com a prática de Jesus (“arrependei-vos”); c) nele não

308 GARCÍA RUBIO, A. Elementos de Antropologia Teológica... Op. cit., pp. 79-80. Grifo nosso. 309 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La história de... Op. cit., p. 137, 140, 151. 310 Ibid., p.140. 311 Ibid., p.151.

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existe direito a retribuição (“crede na Boa Nova”, a saber, Deus dá a salvação a

todos/as de graça. O reino de Deus é gratuidade). 312

2.3.3.2. Jesus expulsa demônios

O que significa realmente “expulsar demônios”? No Dicionário de Espiritualidade

é afirmado que o primordial nos relatos do Segundo Testamento sobre esta prática

de Jesus é que ele:

“vence o poder do mal; a concepção materialista de tal poder, que se manifesta na ação de espíritos malignos pessoais, é secundária, embora pareça defendida pelos textos interpretados no contexto da revelação bíblica total [...] a missão de Jesus se relaciona com a cura de toda a pessoa no corpo, na mente, na psique e no espírito. Jesus realiza os exorcismos curando as enfermidades de todo tipo, bem como a pecaminosidade e a ignorância humanas. [...] Jesus compreendeu que nunca basta limitar-se a exorcizar o diabo. Ensinou que é preciso substituir o poder demoníaco por um poder de fazer o bem e por uma iluminação interior do indivíduo; do contrário, a condição posterior deste pode ser ainda pior do que a primeira (Mt 12, 43-45). Portanto, o exorcismo é apenas o primeiro passo do processo de cura; o espírito mau é lançado para fora a fim de ser substituído pelo Espírito Santo”. 313

A partir desta colocação de John Navone podemos afirmar que a expulsão de

demônios não está ligada a ritos mágicos pretensamente feitos por Jesus, mas

que significa na realidade a expulsão dos espíritos impuros, das forças que

influenciam o mau comportamento e o desvio da conduta das pessoas. Logo, um

mau espírito pode ser uma convicção interna que a pessoa teimosamente cultiva,

que lhe traz problemas e ainda prejudica os outros. Mais ainda, este mau espírito

que habita a pessoa precisa ser lançado fora para que seja substituído pelo

Espírito de Deus. Além disso, nos esclarece Isidoro Mazzarolo:

“Jesus não é exorcista; Jesus é senhor sobre o demônio, sobre satã, sobre os espíritos impuros e sobre os seus príncipes. Esta superioridade de Jesus não é demonstração de força, mas de objetivos. Enquanto os demônios estão divididos ou unidos entre si para dominar e para destruir, Jesus está com o Pai e com o Espírito para libertar, para restaurar e conduzir”. 314

312 Cf. Ibid., p.152. 313 NAVONE, J. Verbete “Diabo/Exorcismo”. In: DE FIORES, Stefano e GOFFI, Tullo (org). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993. p. 274. Para aprofundar o tema do exorcismo, consultar ainda GNILKA, J. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 119. 314 MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p.172. Grifo nosso.

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Portanto, é a partir desta compreensão que iremos enfocar Jesus, o homem pleno

do Espírito, expulsando os espíritos impuros que impedem o ser humano de ser

inabitado pelo Espírito de Deus.

“Ele expulsava um demônio que era mudo. Ora, quando o demônio saiu, o mudo falou e as multidões ficaram admiradas. Alguns entre eles, porém, disseram: ‘É por Beelzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios’. Outros, para pô-lo à prova, pediam-lhe um sinal vindo do céu. Ele, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: ‘Todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruínas, e uma casa cai sobre outra. Ora até mesmo Satanás, se tiver dividido contra si mesmo, como subsistirá seu reinado?... Vós dizeis que é por Beelzebu que eu expulso os demônios; ora se é por Beelzebu que eu expulso os demônios, por quem os expulsam vossos filhos? Assim, eles mesmos serão vossos juízes. Contudo, se eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, sem dúvida o Reino de Deus chegou a vós. Quando um homem forte e bem armado guarda sua moradia, seus bens ficarão a seguro; todavia, se um mais forte o assalta e vence, tira-lhe a armadura, na qual confiava, e distribui seus despojos’ .” (Lc 11, 14-22)

À luz dos evangelhos, depois de Jesus vencer a tentação no deserto, tem-se a

impressão que há um avanço irresistível da luz que põe em debandada a frente

demoníaca das trevas. 315 Assim sendo, a expulsão do poder do mal faz parte

integrante da chegada da Boa Nova. É no Espírito, isto é, pelo dedo de Deus que

Jesus liberta suas vítimas do poder do mal (v.20). Fazer isto, antes de revelar a

divindade de Jesus, visa mostrar que o Reino já está presente e fermentando

dentro do velho mundo. “Ninguém pode entrar na casa do forte e saqueá-la se

primeiro não amarra o forte” (Mc 3,27). Desse modo, é no Espírito que Jesus é

aquele mais forte que vence o forte e os demônios impuros cedem lugar ao

Espírito de Deus. (Mt 12,28). 316 Além disso, podemos perceber que a

interpretação hostil e falsa que os opositores de Jesus fazem de seu poder sobre o

Mal e o Maligno acaba confirmando que ele tinha e agia pelo Espírito de Deus. 317

2.3.3.3. Jesus ensina com autoridade

Jesus vai à sinagoga de Cafarnaum não para cumprir o preceito sabático, mas sim

com a intenção de ensinar. Ensinar constitui-se a meta prioritária do Mestre de

315 Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 21. 316 BOFF, L. Jesus Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 42. 317 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.37.

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Nazaré neste momento que caracteriza a abertura de sua atividade missionária,

dentro do evangelho de Marcos. Ele ensina de tal forma que todos se admiram

diante da autoridade com que instrui. 318

“Entraram em Cafarnaum e, logo no sábado, foram à sinagoga. E ali ele ensinava. Estavam espantados com o seu ensinamento, pois ele os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mc 1, 21-22)

Esta autoridade com que Jesus ensina e age, leva-nos a questionar: onde ele

estudou? Onde adquiriu tais conhecimentos? Segundo Josef Blank o que se

expressa com estes versículos do evangelho de Marcos é a “autoridade” de Jesus

como sendo operada pelo Espírito. Essa afirmação não se trata de mera

“legitimação” que o evangelista Marcos deseja dar aos ensinamentos de Jesus,

mas tem como finalidade ressaltar que sua “competência” vem do Espírito e que

Jesus irá “irradiar” este mesmo Espírito em toda sua vida. 319 Portanto, a

autoridade e os ensinamentos excepcionais de Jesus, que causam espanto a todos,

vem de sua intimidade com o Espírito, este sim, o seu Mestre. Jesus não tem

necessidade de mestres especiais, mas tem princípios que o levam a uma

pedagogia da inclusão. 320 Segundo O. Spinetoli, o Espírito Santo é o pedagogo

de Jesus e dos cristãos. 321 Portanto, permitimo-nos acrescentar que estes

princípios de sabedoria, justiça, inclusão e de gratuidade que caracterizam a

pedagogia de Jesus lhe são segredados pelo Espírito Santo de Deus que o inabita

em plenitude.

2.3.3.4. Jesus leva a Boa-Nova aos “pobres”

Quem eram os ‘“pobres” na sociedade judaica do tempo de Jesus? Já tocamos

nesse ponto anteriormente, entretanto, desejamos agora ampliar um pouco mais

esse conceito para que fique mais claro quem eram os “pobres” na perspectiva da

sociedade judaica contemporânea de Jesus. Embora “pobre” para esta sociedade,

não se refira exclusivamente aos economicamente despossuídos, certamente os

inclui. Vejamos agora quem são estes homens, mulheres e crianças. Eram pobres: 318 Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos... Op. cit., p. 65 319 Cf. BLANK, J. Verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: EICHER, P. Op. cit., p. 246. 320 MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos... Op. cit., pp. 65-66. 321 SPINETOLI, O. apud MAZZAROLO, I. Lucas em João... Op. cit., p. 206.

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a) em primeiro lugar, os mendigos: os doentes e aleijados, que tinham recorrido à

mendicância porque não tinham possibilidade de ser empregados e não tinham

parentes que pudessem ou quisessem sustentá-los; b) as viúvas e os órfãos:

mulheres e crianças que não tinham quem as sustentassem, assim como não

tinham nenhum forma de ganhar a vida para seu sustento naquela sociedade.

Viviam de esmolas de comunidades piedosas e do tesouro do Templo; c) os

operários diaristas desqualificados que se encontravam freqüentemente

desempregados e dependiam da ajuda de outras pessoas; d) os camponeses que

trabalhavam a terra de outrem e que mal tinham como sobreviver; e) finalmente,

os escravos. Portanto, a palavra “pobre” na época de Jesus abrangia todos os

oprimidos/as pela sociedade, enfim, todos aqueles/as que dependiam da

misericórdia dos outros para sobreviver. Estes homens, mulheres e crianças eram

a avassaladora maioria da população na Palestina, a massa ou as multidões dos

evangelhos. 322

Lucas, o evangelista do Espírito Santo, como o chama com razão João

Crisóstomo, descreve-nos a visita que fez Jesus à sinagoga de Nazaré e a leitura

que ali fez da Palavra de Deus da seguinte forma:

“Ele foi a Nazara, onde fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías; desenrolou-o, encontrando o lugar onde está escrito: ‘O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor’. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos da sinagoga olhavam-no atentos. Então começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura’. Todos testemunhavam a seu respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de sua boca.” (Lc 4, 16-22a).

“Nestas palavras de Jesus manifesta-se a sua consciência de realizar, pela sua

pregação, as profecias, e de anunciar a vinda do Reino de Deus. Jesus traz a boa-

nova dos últimos tempos tão longamente esperados”. 323 Neste momento o

Espírito consagra Jesus com sua unção para que ele leve a Boa-Nova aos pobres,

liberte os presos, recupere a visão dos cegos, restitua a liberdade aos oprimidos e

proclame um ano de graça do Senhor (vv. 18-19). Esta unção dá a Jesus

322 Cf. NOLAN, A. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1987. pp. 40-42; 47. 323 GROSSOUW, W. Verbete “Evangelho”. In: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 513.

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autonomia e liberdade que jamais poderia receber das autoridades do Templo

para dizer as palavras ditas neste momento. Somente o Espírito de Deus pode

conferir a Jesus a autonomia da vontade do Pai, de forma a que ele possa realizar

as obras do Pai e não aquelas que as autoridades do Templo desejam. 324 Segundo

Spineloti, Conzelmann, Fabris, Maggioni e Manicardi citados por Lina Boff em

seu livro “Espírito e Missão na obra de Lucas”:

“A unção de Jesus com o Espírito Santo está relacionada diretamente com os pobres. Para estes, Jesus vem anunciar-lhes a libertação do rebaixamento a que são submetidos, resgatar-lhes a dignidade de pobres e realizar a antiga promessa dos patriarcas e profetas de devolver-lhes a esperança e a alegria que sempre buscaram.” 325

A Boa-Nova trazida por Jesus sob a inspiração do Espírito significa que Deus

entrou na história para nos revelar que todos/as têm salvação. Esta boa notícia

chega com mais força e traz mais alegrias àqueles/as que se julgam

impossibilitados/as de recebê-la, a saber, os pobres, todos/as marginalizados/as e

espoliados/as da sociedade.

2.3.3.5. Jesus proclama que o Pai revela o Reino aos “pequeninos”

Quem são estes “pequeninos” a quem o Pai revela o Reino? Na expressão de

Alfonso García Rubio “são homens e mulheres do povo: camponeses e

camponesas, pescadores etc. São pessoas que não têm títulos honoríficos para

apresentar a Deus, nem posição social, nem estudos especiais, nem poder de

qualquer tipo”. 326

Na pessoa de Jesus o Espírito de Deus encontra sua morada estável e com ele

entra em plena relação pessoal. É sob a ação deste Espírito que exultando de

alegria Jesus diz:

“ ‘Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e a revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece quem é o

324 MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 84. 325 SPINELOTI, CONZELMANN, FABRIS, MAGGIONI e MANICARDI apud BOFF, Lina. Op. cit., p. 28. 326 GARCÍA RUBIO, A. O encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 42-43

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Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.” (Lc 10, 21-22)

Aqui se faz necessário esclarecer o porquê dos sábios e entendidos não captarem a

revelação do Reino de Deus trazida por Jesus. Seguindo ainda a reflexão de

Alfonso García Rubio ele nos elucida esse ponto dizendo que:

“Os letrados orgulhosos e os poderosos em geral (os sábios e entendidos), que usam de seu poder para dominar e desprezar os outros, não estão em condições de captar a maravilhosa e libertadora realidade do Reino. Este é oferecido àqueles que o recebem como dom, àqueles que não exigem pagamento por suas supostas virtudes ou títulos de merecimento.”

Portanto, os homens e mulheres orgulhosos de seu conhecimento e de sua posição

privilegiada na sociedade, aqueles/as que usam do poder que possuem para

dominar e desprezar os “pequeninos” não são capazes de captar exatamente o

significado do Reinado de Deus revelado por Jesus. Na realidade eles/as não

desejam e não aceitam um Reino de gratuidade, pois acreditam que já o

alcançaram ou quem sabe, até já o “compraram” com suas qualidades, virtudes e

práticas religiosas. Desta forma, estas pessoas não têm ouvidos para ouvir que o

Reino de Deus, anunciado por Jesus é dom do Amor, dado a todos/as que se

abrem à sua ação possibilitada pela inabitação do Espírito de Deus em cada ser

humano.

2.3.3.6 Jesus cura e perdoa. O que significam as “curas” feitas por Jesus? Elas estão ligadas ao perdão dos

pecados, ou estas duas práticas de Jesus, perdão e cura, são coisas distintas?

Encontramos uma ótima síntese para nos responder a estas questões em Cécile

Turiot que nos diz:

“Cura no sentido próprio, designa a libertação de um mal físico, no sentido figurado a de um mal moral, a mitigação de uma dor. Enquanto o homem ocidental contemporâneo está habituado a distinguir claramente os dois registros, a Escritura apresenta narrativa em que o sentido próprio e o figurado estão enredados, onde os registros de doenças e do pecado se entrecruzam: não se pode tratar do corpo humano adequadamente senão no encontro dos dois planos. O conceito de cura não pode ser separado na noção da salvação nem da de purificação (pureza/impureza). O pedido de salvação na boca de um paciente

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pode também ser, de fato, tanto um pedido de cuidados orgânicos, quanto um apelo a uma palavra do terapeuta.” 327

Outro esclarecimento importantíssimo sobre as curas feitas por Jesus encontramos

em Edward Schillebeeckx. Ele nos afirma que a doença no sentido mais amplo da

palavra significava, para a mentalidade judaica do tempo de Jesus, “estar debaixo

do poder do maligno”. Logo, a cura significava que o “poder de Deus” presente

em Jesus vencia o “poder do maligno” presente no doente. 328

A partir destes esclarecimentos sobre o que significa a cura na época de Jesus,

vejamos como este homem pleno do Espírito de Deus ou pleno do “poder de

Deus” pode curar e perdoar pecados:

“Entrando de novo em Cafarnaum, depois de alguns dias souberam que ele estava em casa. E tantos foram os que se aglomeravam, que já nem havia lugar à porta. E anunciava-lhes a Palavra. Vieram trazer-lhe um paralítico, transportado por quatro homens. E como não pudessem aproximar-se por causa da multidão, abriram o teto à altura do lugar onde ele se encontrava e, tendo feito um buraco, baixaram o leito em que jazia o paralítico. Jesus, vendo sua fé, disse ao paralítico: ‘Filho, teus pecados estão perdoados’. Ora, alguns dos escribas que lá estavam sentados refletiam em seu coração: ‘Por que está falando assim? Ele blasfema! Quem pode perdoar pecados a não ser Deus?’ Jesus imediatamente percebeu em seu espírito o que pensavam em seu íntimo, e disse: ‘Por que pensais assim em vossos corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: Os teus pecados estão perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem poder de perdoar pecados na terra, eu te ordeno – disse ele ao paralítico – levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa’. O paralítico levantou-se e, imediatamente, carregando o leito, saiu diante de todos, de sorte que ficaram admirados e glorificaram a Deus, dizendo: ‘Nunca vimos coisa igual!’.” (Mc 2, 1-12)

Os sinais que Jesus realiza, na força do Espírito, põem em xeque o mal e a morte.

É o Espírito que concede a Jesus o dom da cura. O acolhimento, o consolo e o

perdão trazidos por Jesus e que reintegram as pessoas, eliminam a somatização

dos problemas e produzem as curas. 329 A cura e o perdão oferecidos por Jesus,

mediante o Espírito, atingem a pessoa humana tanto em sua dimensão física como

espiritual. As múltiplas curas realizadas por Jesus provam sua grande compaixão

327 TURIOT, C. Verbete “Cura”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit., p. 502. Grifo Nosso. Para aprofundar o significado das curas e milagres realizados por Jesus consultar GNILKA, J. Jesus de Nazaré... Op. cit., pp. 111-131. Recomendamos ainda o excelente artigo de Ludovico Garmus “Jesus Cristo, seus milagres e suas curas” In: MIRANDA, M. F. A pessoa e a Mensagem de Jesus. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. pp. 143-167. 328 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La história de un viviente... Op. cit., p. 167. 329 Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p.46.

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diante das misérias humanas, e visam libertar as pessoas desses males. Na

perspectiva de Jesus, as curas são também sinais da salvação espiritual, isto é, da

libertação do pecado (Mc 2,1-12). Desta forma, a ação de Jesus por visar o ser

humano em sua totalidade leva a este a cura física e a libertação espiritual. Há,

portanto, como já dissemos anteriormente, uma estreita relação entre perdão e

cura que são ofertados por Jesus.

2.3.3.7. Jesus acolhe as mulheres como suas discípulas e missionárias

Quem eram as mulheres na sociedade judaica do tempo de Jesus? Comentando

sobre este assunto Isidoro Mazzarolo nos esclarece que:

“Na época de Jesus os judeus resistiam à integração das mulheres na sociedade. Na sinagoga elas tinham seu espaço separado, nos ambientes sociais se mantinham afastadas, e na esfera familiar continuavam propriedade do marido ou do pai. A mulher, na sociedade judaica, é sempre uma menor, ou seja, sem direitos. 330

Apesar dessa dura realidade sexista, os evangelhos testemunham o jeito

libertador e sem preconceitos de Jesus olhar e se relacionar com as mulheres,

“atitude subversiva” que causa surpresa ainda hoje. Muitas pessoas continuam

duvidando da veracidade da afirmação de que as mulheres foram aceitas como

discípulas pelo Nazareno. Entretanto, os relatos evangélicos estão aí para

comprovar esta declaração.

“Depois disto, ele andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a Boa Nova do reino de Deus. Os Doze o acompanhavam, assim como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios, Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes, Susana e várias outras, que o serviam com seus bens”. (Lc 8, 1-3)

330 MAZZAROLO, I. Lucas em João: uma nova leitura dos evangelhos... Op. cit., p. 151. Grifo nosso. Para aprofundar este tema, recomendamos que se consulte o capítulo dois do livro “As discípulas de Jesus” onde se reflete sobre a situação da mulher no Antigo Oriente Próximo, dando espacial destaque para a situação da mulher em Israel. Ana Maria Tepedino neste livro aponta as seis discriminações religiosas e legais que as mulheres sofriam em Israel, simplesmente por serem mulheres. Estas discriminações nos esclarecem o porquê delas serem mantidas afastadas de tudo, ficando confinadas ao espaço doméstico. TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus. Petrópolis: Ed. Vozes, 1990. pp.56-84; consultar ainda MAZZAROLO, I. Paulo de Tarso: Tópicos de antropologia bíblica. Porto Alegre: Edições EST, 1997. pp.71-75; consultar igualmente GNILKA, J. Jesus de Nazaré... Op. cit., p. 69.

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Ana Maria Tepedino ao refletir sobre o movimento inclusivo de Jesus nos

afirma que alguns relatos bíblicos, apesar de terem sido:

“escritos em contexto patriarcal, não conseguem obscurecer o fato da presença e atuação das mulheres no movimento de Jesus. O texto de Lc 8, 1-3 nos introduz na realidade de que no movimento de Jesus não havia apenas os ‘doze’ homens, mas também mulheres.” Além disto, “essa realidade da presença das mulheres no movimento itinerante de Jesus aparece em todos os evangelhos, que apontam para outro aspecto de seu movimento: suas casas são lugar de reunião da comunidade cristã, como a casa de Marta, Maria e Lázaro de Betânia (Jo 11, 1-42; 12, 1-8; Lc 12, 38-42)”. 331

É importante ainda percebermos que Lucas em seu evangelho “enfatiza a

experiência da diaconia da mulher antes de enfatizar o ministério apostólico dos

homens, coisa que somente é feita em Lc 9, 1-6. Estas mulheres discípulas eram

mulheres que haviam experienciado a graça da cura e da libertação de seus

males. 332 Lina Boff ao destacar a pneumatologia de Lucas que podemos

recolher em seu evangelho ressalta a importância da missão das mulheres como

sendo um dos traços da ação do Espírito Santo em Jesus. 333 Como podemos ver

Jesus tem um relacionamento com as mulheres diferente daquele encontrado no

judaísmo de seu tempo, a ponto delas desempenharem um papel importante no

seu ministério e de encontrarem-se lado a lado com os seus discípulos

homens.334 Parece-nos que Jesus quer chamar a atenção para a situação de

marginalização em que estas vivem. O relacionamento igualitário de Jesus

busca restituir-lhes a verdadeira dignidade que possuem como filhas amadas de

Deus, com potencialidades para serem suas discípulas e missionárias. 335 Quem

possibilitou a Jesus este comportamento igualitário e inclusivo? Reportamo-nos

ao que nos disseram anteriormente Isidoro Mazzarolo e Spinetoli: a pedagogia

da inclusão, característica da práxis de Jesus provém de sua intimidade com o

331 TEPEDINO, A. M. Jesus e seu movimento inclusivo (Gl 3,28). In: MIRANDA, M. F. Op. cit., pp. 170-171. 332 Cf. MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 124. Resgatamos aqui o sentido de “cura” que desenvolvemos anteriormente. 333 Cf. BOFF, Lina. Espírito e missão na obra de Lucas-Atos: para uma teologia do Espírito. São Paulo: Paulinas, 1996. pp.54-57. 334 Cf. MAZZAROLO, I. Lucas: a antropologia da salvação... Op. cit., p. 125. 335 Cf. TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus... Op. cit., p. 84

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Espírito, que é seu pedagogo. 336 Portanto, incluir a mulher em seu discipulado

é obra do Espírito de Deus na pessoa do Nazareno.

Este relacionamento inusitado de Jesus com as mulheres pode ser percebido em

vários relatos evangélicos. Como o objetivo de nossa pesquisa não nos permite

desenvolver o tema do Discipulado das Mulheres que seguiam o Nazareno,

apresentamos a seguir uma breve síntese de uma pesquisa que fizemos sobre “O

papel das mulheres no Quarto Evangelho”. Podemos destacar entre os relatos

bíblicos que nos atestam o discipulado da mulher no movimento de Jesus: a) Jo 4,

1-42 que nos mostra Jesus revelando-se à mulher samaritana como Fonte de Vida

e como Messias, transformando-a em Missionária e Evangelizadora. Esta mulher,

em autêntica função missionária, convence uma cidade inteira pela força da sua

palavra; b) Jo 11, 1-31 que atesta Jesus revelando-se a Marta de Betânia como

Ressurreição e Vida, transformando-a em Profeta e Teóloga. É dos lábios desta

mulher que sai a profissão de fé, verdadeira síntese teológica, que a coloca ao lado

de Pedro; c) Mt 26, 6-13; Mc, 14, 3-9; Jo 12, 1-8 onde vemos Jesus se deixando

ungir por Maria de Betânia e elogiando-a por seu gesto amoroso e gratuito. Esta

mulher torna-se uma Discípula Amada que crê e ama, tendo com o seu gesto

profético reconhecido Jesus como o Messias esperado; d) Mt 28, 1-8; Mc 16, 1-8;

Lc 24 1-10; Jo 20, 1-18 nos declaram que Jesus aparece como Senhor

Ressuscitado pela primeira vez a Maria Madalena anunciando-lhe a estupenda

maravilha de sua Ressurreição. Ele estabelece esta mulher como a Testemunha da

primeira hora e sua Primeira Enviada a comunicar sua ressurreição. Portanto,

podemos dizer que esta mulher foi a Primeira Missionária da Boa Nova; e) Jo 2,

1-12 manifesta que em Caná da Galiléia Jesus aceita que Maria, sua Mãe seja a

Mediadora da fé, realizando, a partir da intervenção desta, seu primeiro sinal. Já

em Jo 19, 25-27 vemos Jesus entregando Maria como Mãe da comunidade de fé.

Aos pés da cruz faz desta mulher a Eminência de todos/as Discípulos/as

Amados/as e Mãe destes/as.

Como podemos constatar todas estas mulheres fazem uma experiência

transformadora através de seu relacionamento com o Nazareno. Assim como

estas que destacamos, tantas outras mulheres que se encontram retratadas nos

evangelhos e que não ressaltamos acima, fazem esta experiência transformadora.

336 Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Marcos... Op. cit., pp. 65-66; Cf. SPINETOLI, O. apud MAZZAROLO, I. Lucas em João: uma nova leitura dos evangelhos... Op. cit., p. 206.

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Podemos ainda afirmar que muito provavelmente outras mulheres fazem

igualmente esta experiência, mulheres que não tiveram seus encontros com Jesus

narrados pelos evangelistas, mas que são acolhidas e resgatadas em sua dignidade

e valor por ele. Todas elas a partir do encontro com Jesus tornam-se humanas,

recuperadas e dignificadas, sendo capazes de descobrir suas potencialidades e

sabendo pô-las a serviço do Reino com alegria, esperança e paixão. 337 Diríamos

hoje que elas vivem um processo de humanização-salvação possibilitado pela

ação do Espírito de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré e, igualmente,

possibilitado pela ação deste mesmo Espírito em cada uma delas que pode se abrir

a esta ação amorosa de Deus.

Para sintetizar o significado da presença feminina ao lado de Jesus e de sua

acolhida amorosa unimos nossa voz à voz de Elizabeth Fiorenza que nos diz:

“Onde quer que o Evangelho venha a ser pregado, promulgado e lido, o que as mulheres fizeram não ficará totalmente esquecido, porque a narrativa evangélica recorda que o discipulado e a liderança das mulheres constituem parte integrante da práxis ‘alternativa’ de Jesus de ágape e serviço. A ‘luz brilha nas trevas’ da repressão e olvido patriarcais, e essas ‘trevas jamais a venceram’ ” .338

Portanto, é fundamental não deixar cair no esquecimento de nenhum dos

seguidores/as de Jesus, aquilo que se encontra atestado nos evangelhos: na

práxis libertadora do Nazareno, ele vive a pedagogia da inclusão através do

amor agápico e do amor serviço. Isto faz com que as mulheres possam

participar de seu grupo de discípulos/as, assim como exercer papéis de

liderança em seu movimento inclusivo e de serem missionárias do Reino por ele

vivido e pregado.

2.3.3.8. Jesus resgata os “pecadores”

Quem são os “pecadores” no tempo de Jesus? Não são somente as pessoas de má

conduta (prostitutas, assaltantes, usurários, jogadores...), mas também aquelas

pessoas que desconhecem a lei ou as que exercem profissões consideradas

337 Cf. TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus... Op. cit., p. 124. 338 FIORENZA, E. S. As Origens Cristãs a partir da Mulher: uma nova hermenêutica. Tradução: João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 382.

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“impuras” do ponto de vista da lei judaica (açougueiros, cobradores de impostos,

pastores etc.). 339 A categoria de pecadores inclui também, os que não pagam o

dízimo aos sacerdotes, e os que são negligentes quanto à observância do repouso

sabático e da pureza ritual. Os analfabetos e os não instruídos são igualmente

pecadores, pois se encontram incapacitados de cumprir as leis e os costumes que

os fariam pessoas “virtuosas”. Todos eles são considerados “a ralé que não sabe

nada da lei” (Jo 7, 49). Portanto, os pecadores são os párias sociais. 340

“Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se para ouvi-lo. Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam: ‘Este homem recebe os pecadores e come com eles’ ”. (Lc 15,2) “Aconteceu que, estando à mesa, em casa de Levi, muitos publicanos e pecadores também estavam com Jesus e os seus discípulos - pois eram muitos os que o seguiam. Os escribas dos fariseus, vendo-o comer com os pecadores e os publicanos, diziam aos discípulos dele: ‘Quê? Ele come com os publicanos e pecadores?”. (Mc, 2,15-16)

A maioria das pessoas de hoje, dificilmente, pode entender o escândalo que Jesus

provoca na sociedade de seu tempo ao misturar-se com os pecadores. “Sentar-se à

mesa com alguém” ou “partilhar refeição”, para a cultura judaica do tempo de

Jesus, significa que a pessoa está se associando a esta outra. Logo, partilhar

refeição é uma forma de amizade particularmente íntima. Portanto, com esta

atitude Jesus está aceitando o pecador e demonstrando que queria ser realmente

“amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19). Esta aceitação e amizade causam

um efeito miraculoso sobre os pobres e oprimidos desta sociedade tão sectária e

preconceituosa. 341

De onde Jesus capta este comportamento tão excepcional e insólito para os

moldes religiosos de seu tempo? Para que ele possa viver e conviver

comprometido com estes homens e mulheres considerados pecadores/as, e ainda

marginalizados/as pela sociedade palestinense do século I, Jesus vivia em total

intimidade com o Pai no Espírito. No Espírito este homem experimenta que Deus

é uma experiência de amor, não um conceito doutrinário ou teológico. Deus é, em

339 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p.43. Para conhecer a situação espiritual, religiosa e social em Israel no tempo de Jesus recomendamos consultar GNILKA, J. Jesus de Nazaré... Op. cit., pp. 49-70. Nestas páginas o autor faz uma boa síntese da sociedade civil e religiosa de Israel na época de Jesus. 340 Cf. NOLAN, A. Jesus antes do cristianismo... Op. cit., p. 42. 341 Cf. Ibid. p.60.

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Jesus, uma experiência afetiva e afetuosa. Esta experiência leva Jesus a perceber

que Deus ama a todos, sem exceção, irremediavelmente e apaixonadamente. 342

Portanto, é a partir desta vida no Espírito que Jesus pode acolher a prostituta, o

ladrão, a adúltera,... (cf. Mt 21, 31); comer com os publicanos (cf. Mt 9, 10- 13);

perdoar-lhes os pecados (cf. Lc 7,41-43; Mt 18, 23-25; Lc 15, 11-32...); hospedar-

se na casa de alguns deles e até convidar um para ser seu discípulo (cf. Mt 9,9).

Enfim, Jesus acolhe todos os excluídos/as, e numa postura altamente irreverente,

se deixa envolver, se apaixona, se compadece do povo sofrido e se compromete

com cada um e cada uma.

2.3.3.9. Jesus ora e ensina a orar

Nos evangelhos existe um Jesus “íntimo” e quase oculto em suas entrelinhas. É o

Jesus que ora. Os trechos que apresentam Jesus em oração não passam de

pequenas frases, e, às vezes é muito fácil ir adiante sem dar-nos conta deste Jesus

orante. 343 Apesar disso, devemos perceber que os evangelhos revelam a

necessidade absoluta de oração que Jesus possui e o lugar que ela ocupa em sua

vida. Além disto, estaríamos errados se reduzíssemos essa oração a um simples

desejo que Jesus possui de intimidade e consolo com o Pai. A oração de Jesus diz

respeito à sua missão, à sua vida, às suas opções, à sua pregação, à sua prática, e

à educação dos discípulos. 344

Para adentrar no mistério da oração de Jesus recorremos ao evangelista Lucas,

pois é ele quem mais nos mostra Jesus orando. Iremos simplesmente recolher

deste evangelista as ocasiões em que Jesus se encontra em oração, pois não é

possível fazer uma exposição mais aprofundada da realidade misteriosa que foi

esta oração, coisa que escapa ao objetivo de nossa pesquisa.

Segundo o evangelista Lucas:

a) Jesus estava em oração quando recebeu o batismo:

“Ora, tendo o povo recebido o batismo, e no momento em que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele

342 Cf. MOREIRA, G. L. Mística evangélica do compromisso com os pobres. In: Horizonte Teológico. Belo Horizonte: O Lutador, 2003. pp. 83-84 343 Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., p. 47 344 BEAUCHAMP, P. Verbete “Oração”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit., p. 681.

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em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: ‘Tu és meu Filho; eu, hoje, te gerei!’ ” (3, 21-22)

b) Jesus se retira para lugares isolados para entrar em diálogo com o Pai:

“A notícia a seu respeito, porém difundia-se cada vez mais, e acorriam numerosas multidões para ouvi-lo e serem curadas de suas enfermidades. Ele, porém permanecia retirado em lugares desertos e orava” (5, 15-16)

c) Jesus ora uma noite inteira antes da escolha dos doze:

“Naqueles dias, ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em oração a Deus. Depois que amanheceu, chamou os discípulos e dentre eles escolheu os doze aos quais deu o nome de apóstolos.” (6, 12-13)

d) Jesus sobe o monte para “orar” e “enquanto ora” o seu rosto muda de aspecto e

se transfigura:

“Mais ou menos oito dias depois dessas palavras, tomando consigo a Pedro, João e Tiago, ele subiu à montanha para orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto se alterou, suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura.” (9, 28-29)

e) Certo dia, Jesus orava; ao vê-lo orar os discípulos que estão em torno dele

descobrem, pela primeira vez, o que é oração, dão-se conta que eles na realidade

nunca rezaram, pedem a Jesus que os ensine a rezar. Nasce assim o Pai-Nosso

que é como que um eco vivo da oração de Jesus transmitido aos discípulos. 345

“Estando em certo lugar, orando, ao terminar, um de seus discípulos pediu-lhe:

‘Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos. ’ ” (11,1)

f) A última cena no evangelho de Lucas em que Jesus reza é a do Getsêmani:

“E afastou-se deles mais ou menos a um tiro de pedra, e, dobrando os joelhos, orava.” (22, 41).

Enfim, é o Espírito Santo que suscita no coração de Jesus a palavra Abbá (querido

paizinho) para se dirigir a Deus, é este mesmo Espírito que provoca sua oração de

345 Para aprofundar a beleza e o rico conteúdo desta oração que nos foi ensinada por Jesus, consultar CASTRO, S. Verbete “Pai-Nosso”. In: DE FIORES, S. e GOFFI, T. Op. cit., pp. 879-889. Nestas páginas o autor analise detalhadamente cada uma das invocações e dos pedidos que compõem esta oração.

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louvor, de exultação, de agradecimento, de angústia, de tristeza, e de suprema

oferenda da vida. 346 Edward Schillebeeckx ao tratar da oração de Jesus que

invoca a Deus como Abbá nos diz:

“A forma como Jesus ora ao Pai reflete um modo de falar sobre Deus que deixa surpresos seus ouvintes, a tal ponto que, inclusive, em alguns casos chega a ser escandaloso. O fato de que Jesus invoca a Deus como Abba não o distancia do judaísmo tardio; mas esta invocação (expressão de uma peculiar experiência religiosa) começa agora a suscitar questões teológicas, por estar unida à mensagem, à atividade e à práxis de Jesus.” 347

Portanto, Jesus não só faz a experiência no Espírito de que Deus é Paizinho. Mas,

também age, no mesmo Espírito, de acordo com aquilo que experimenta em sua

oração. E, é exatamente isto o que incomoda ao status quo religioso de seu

tempo. Dito de outra forma, a oração de Jesus está intimamente vinculada aos

acontecimentos de sua vida e sua vida é o reflexo de sua oração. Mística (oração)

e prática concreta (ação) encontram-se articuladas na vida do Nazareno, uma

alimentando a outra, sem dualismos mutiladores. Portanto, não encontramos na

oração de Jesus qualquer forma de alienação ou fuga, pois a oração feita por ele

fecunda sua vida, e esta por sua vez, está aberta diretamente à oração que faz. 348

“Uma característica básica da vida de Jesus é transitar da montanha para a planície, ou seja, dos ‘infernos da vida’ para a intimidade com Deus. Jesus se preocupava em dedicar tempo à comunhão com Deus. E conciliava militância com momentos de oração. Militância e oração: uma alimenta a outra. Para Jesus, ação não é oração – Ele pára para orar.” 349

É de fundamental importância para a realidade que vivemos nos dias de hoje

perceber esta espiritualidade integrada na vida de Jesus de Nazaré, onde oração e

ação se retroalimentam.

2.3.3.10. Jesus denuncia todo tipo de injustiça

Os judeus contemporâneos de Jesus não faziam distinção entre política e religião.

Questões que nós hoje classificaríamos como políticas, sociais, econômicas ou

346 Cf. CANTALAMESSA, R. Op. cit., pp.49-50. 347 SCHILLEBEECKX, E. Jésus. La história de un viviente... Op. cit., p. 242. 348 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 87. 349 MOREIRA, G. L. Op. cit., p.83.

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religiosas, seriam todas elas consideradas por eles em termos de Deus e sua Lei.

Um problema secular teria sido inconcebível naquela sociedade teocrática, e isto

pode ser constatado já no Primeiro Testamento. Nesta perspectiva o

relacionamento de Israel com Roma é uma questão político-religiosa e Jesus,

como homem de seu tempo, não difere desta visão. Ele quer que Israel seja

libertado sim. Porém, pretende cumprir essa expectativa político-religiosa, não do

modo como os seus contemporâneo/as esperavam, e certamente não do modo

como os zelotas tentavam cumpri-la. Jesus deseja libertar Israel de Roma,

persuadindo Israel a mudar, pois pleno do Espírito, enxerga aquilo que só alguns

homens cheios do Espírito (os profetas) conseguiram enxergar: havia mais

opressão e exploração dentro do judaísmo do que fora dele. Sem mudança de

mentalidade no interior do próprio Israel, a libertação seria impossível. Jesus quer

um mundo qualitativamente diferente: o Reino de Deus. Ele não aceita a simples

troca de um reino mundano por outro, pois isso não seria libertação nenhuma. Seu

desejo, portanto, é transformar Israel, de modo que Israel possa apresentar aos

romanos um exemplo vivo dos valores e ideais do Reino. 350 Para que tal

transformação aconteça, Jesus denuncia toda forma de injustiça, o que não o faz

um revolucionário social e político como hoje o entendemos. 351 Entretanto,

podemos afirmar que ele é um homem comprometido social, econômica, religiosa

e politicamente diante da realidade de seu tempo (Mc 7, 2-13; Mt 12,9-14; Mt

23,1-36...). Assim age porque seria impossível viver a novidade do Reino sem seu

comprometimento solidário com o sofrimento dos seres humanos concretos que

estão a sua volta e sem denunciar as estruturas desumanizantes de sua sociedade.

“Jesus então dirigiu-se às multidões e aos discípulos: ‘Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disseram. Mas não imitais suas ações, pois dizem mas não fazem. Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo de dispõem a movê-los. Praticam todas as suas ações com o fim de serem vistos pelos homens. Com efeito usam largos filatérios e longas franjas. Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos primeiros assentos nas sinagogas, de receber saudações nas praças públicas e de que os homens lhes chamem de Rabi. (Mt 23, 1-7)

350 Cf. NOLAN, A. Op. cit., pp. 136-142. 351 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 92.

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Todo o capítulo 23 de Mateus mostra a ruptura de Jesus com os fariseus, os

escribas e as autoridades do Templo. Apresenta-nos ainda o Nazareno fazendo

uma catequese e algumas exortações aos seus discípulos e à multidão. 352

Entendemos que a citação bíblica (Mt 23) ficaria muito extensa se a colocássemos

por inteiro. Por isso, optamos por apresentar a seguir uma síntese dos “sete

anátemas contra os escribas e fariseus” onde vemos Jesus “colocando o dedo” na

ferida desta sociedade. Seguindo a reflexão de Isidoro Mazzarolo estes são os sete

anátemas pronunciados por Jesus:

“1° Ai dos que fecham as portas. Eles não entram e fecham aos outros o acesso ao Reino. [...] 2° Ai dos que fabricam prosélitos à sua imagem e semelhança, mas estes também não conseguem entrar no Reino, pois é duas vezes pior que eles. [...] 3° Ai dos cegos que conduzem cegos. [...] 4° Ai dos que pagam dízimo, mas omitem a justiça, a misericórdia e a fidelidade. [...] 5° Ai dos que limpam o prato e o copo só por fora, mas por dentro estão cheios de rapina. [...] 6° Ai daqueles que são sepulcros caiados com defuntos dentro. [...] 7° Ai dos que edificam túmulos aos defuntos e matam os vivos”. 353

Com estes sete anátemas o Nazareno está indicando com radicalidade e

profundidade a raiz da podridão social e religiosa daquela sociedade. Jesus deixa

claro a corrupção, a hipocrisia, a falsidade, o legalismo, a ganância, o crime

organizado, o rigorismo escravizante, o fanatismo, o sectarismo e a mentira destes

grupos dominantes, denunciando-os e desmascarando-os. 354 É fundamental

lembrarmos que todo este comportamento de Jesus é fruto de sua íntima relação

com o Pai feita no Espírito.

2.3.3.11. Jesus promete o Paráclito

A promessa do Paráclito é uma característica própria da pneumatologia joanina,355

pois “a ausência física de Jesus leva João a uma reflexão bem original sobre o

Espírito”. 356 Por esta razão deixaremos para analisá-la com mais profundidade no

próximo capítulo, quando trataremos da teologia do Espírito em João. Entretanto,

352 Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., p. 323. 353 MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus... Op. cit., pp. 327-331. 354 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 73. 355 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p. 77. 356 KONINGS, J. Evangelho Segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2000. p. 317.

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apresentaremos a seguir uma breve síntese da promessa feita por Jesus de não

deixar abandonados os seus/as. Podemos encontrar esta promessa em cinco

sentenças que se encontram dentro do discurso de despedida de Jesus. Nestas

sentenças Jesus esclarece:

1- Como será a situação dos discípulos/as no tempo de sua ausência. Eles/as

precisarão de um outro protetor, um outro defensor, pois diante do confronto com

o mundo precisarão saber a Verdade de Deus e precisarão igualmente falar a

verdade, dando o testemunho certo (cf. Mc 13,13). Por isso, Jesus roga ao Pai que

lhes dê o Espírito da Verdade. 357

“e rogarei ao Pai e ele vos dará um outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco.” (14, 16-17)

2- O Espírito Santo que o Pai enviará em nome de Jesus é sua memória viva, pois

ensinará tudo e recordará tudo o que ele mesmo disse e ensinou quando

caminhavam juntos em sua vida terrena. 358

“Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito.” (14,26)

3- O Paráclito não vem somente do Pai a pedido de Jesus, mas ele mesmo o envia

da parte do Pai. 359

“Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, o qual procede do Pai, dará testemunho de mim. Também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio.” (15,26-27)

4- O Paráclito mostrará que Jesus tem razão e que aqueles/as que o rejeitaram se

condenam a si mesmos/as. Desta forma o chefe deste mundo já está condenado.360

“No entanto, eu vos digo a verdade: é de vosso interesse que eu parta, pois se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se for, enviá-lo-ei a vós. E quando ele vier, estabelecerá a culpabilidade do mundo a respeito do pecado, da justiça e do julgamento: do pecado, porque não crêem em mim; da justiça, porque vou para o

357 Cf. Ibid. 358 Cf. Ibid. 359 Cf. Ibid. 360 Cf. Ibid.

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Pai e não mais me vereis; do julgamento, porque o Príncipe deste mundo está julgado.” (16,7-11)

5- A Verdade plena, que é o Espírito, guiará os discípulos de Jesus, é a própria

Verdade de Jesus, pois o Espírito atualiza o papel do Nazareno em sua ausência.

O Espírito fará os seguidores/as de Jesus conhecê-lo em todos os tempos, pois se

Jesus estivesse presente no meio de nós diria as mesmas coisas que diz o

Paráclito. 361

“Tenho ainda muito a vos dizer, mas não podeis agora suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. Ele me glorificará porque receberá do que é meu e vos anunciará. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse: ele receberá do que é meu e nos anunciará.” (16,12-15)

A partir desses ditos sobre o Paráclito podemos afirmar que Jesus não nos deixa

órfãos, pois pede ao Pai que nos mande um outro Paráclito, que permanecerá

conosco para sempre (14,14-18.26), que nos defenderá nos tribunais (15,26) e no

grande julgamento da história (16,7-8). 362 Isidoro Mazzarolo comentando sobre a

função do Espírito/Paráclito nos diz que:

“A apresentação do Espírito e sua função junto aos discípulos e ao mundo revelam a missão da Trindade. Há uma integração das pessoas e, de forma análoga, uma sintonia na missão. O Espírito cumpre a missão do Filho que também cumpre a missão incumbida a ele pelo Pai (5,19-29).” 363

2.3.3.12. Jesus ama até as últimas conseqüências entregando-se à morte

A morte de Jesus tem íntima conexão com sua vida, seu anúncio do Reinado de

Deus e suas práticas libertadoras. As exigências de conversão, a nova imagem de

Deus revelada por ele, sua liberdade diante das sagradas tradições, e sua crítica

profética aos detentores do poder político, econômico e religioso provocam um

conflito do qual resulta sua morte violenta. Podemos ainda garantir que Jesus não

provoca sua morte. Esta lhe é imposta por uma conjuntura histórica e ele não a

361 Cf. Ibid. pp. 137-138. 362 Cf. Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 37. 363 MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém... Op. cit., p. 173.

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aceita resignadamente. Apesar disso, Jesus não compactua com os poderosos para

poder sobreviver, mas permanece fiel à sua missão de anunciar a Boa-Nova do

Reino de Deus e permanece igualmente fiel aos bem-aventurados deste Reino até

a morte, amando os seus/as até o fim (Jo 13, 1). 364 A entrega de sua vida é

expressão de seu amor, de sua liberdade e de sua fidelidade à causa do Reino de

Deus e ao Deus deste Reino. Portanto, sua morte é expressão de seu amor à causa

do ser humano, visto que esta causa é em síntese a causa do Reino, como nos

alerta Edward Schillebeeckx. 365

“Embora o Espírito encha Jesus com as forças vitais de Deus, pelas quais os

enfermos são curados, ele não faz de Jesus nenhum super-homem, mas toma parte

em seus sofrimentos até a morte de cruz.” 366 O Espírito por sua Shekinah se liga

ao destino de Jesus em toda sua vida, como vimos até agora, e se une inclusive à

sua morte, fazendo isso sem identificar-se com ele. Desta forma o Espírito de

Deus passa a ser o Espírito da paixão e o Espírito do crucificado. Nesse processo

de entrega Cristo é conduzido e determinado pelo Espírito eterno. Entretanto, é

bom deixar bem claro que Jesus não é propriedade do Espírito. O que o Espírito

faz é dar sua força para que Jesus se disponha a entregar sua vida e, além disto,

lhe dá sustentação a esta entrega. 367 “Na paixão e morte de Cristo, quem esteve

verdadeiramente ativo não foram os romanos, nem também a morte, mas sim o

próprio Cristo pela força do Espírito de Deus que atua nele. Na ‘teologia da

entrega’, Cristo, pelo Espírito de Deus, passa a ser sujeito de sua paixão e de sua

morte”. 368

“Depois, sabendo Jesus que tudo estava consumado, disse, para que se cumprisse a Escritura até o fim: ‘Tenho sede!’ Estava ali um vaso cheio de vinagre. Fixando, então, uma esponja embebida em vinagre num ramo de hissopo, levaram-na à sua boca. Quando Jesus tomou o vinagre, disse: ‘Está consumado!’ E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.” (Jo 19, 28-30)

364 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., pp. 91-101. Nestas páginas o autor nos esclarece a causa da morte violenta de Jesus como sendo a conseqüência histórica do tipo de vida assumido por ele, o messianismo de serviço em conformidade com a vontade do Pai. Aliado a isto a pregação e práxis de Jesus desestabiliza o sistema religioso e social predominante entre os judeus de seu tempo. 365 SCHILLEBEECKX, E. Op. cit., p. 130. 366 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 68-69. 367 Cf. Ibid. p. 69. 368 Ibid. Grifo nosso.

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Segundo Ana Maria Tepedino a frase do versículo 30 b “E, inclinando a cabeça,

entregou o espírito” dentro da teologia do Quarto Evangelho tem duplo sentido: o

de exaltar o último suspiro e o ato de cumprir a promessa de doar o Espírito aos

crentes. 369 Podemos perguntar-nos: qual é a “vontade do Pai” neste momento da

entrega radical de Jesus e de doação de seu Espírito? A “vontade do Pai” fica

expressa na cruz através de seu silêncio ao pedido do Filho. Há um grande mal

entendido quanto à “vontade do Pai” neste momento crucial da vida de Jesus. Por

isso, precisamos reafirmar que a “vontade do Pai” sempre foi a de que Jesus

assumisse o messianismo de serviço, coisa que ele o faz até ser rejeitado por seres

humanos concretos. Portanto, é da “vontade do Pai” que Jesus seja fiel ao

messianismo de serviço até as últimas conseqüências, estando incluída aí a

possibilidade da morte violenta. 370

O Espírito neste momento de dor e abandono “experimenta” o “expirar” e o

“entregar-se” de Jesus moribundo (Mc 15,36; Jo 19,30), pois ele também está

envolvido no sofrimento, visto que repousa no Filho e o acompanha em sua

paixão. Podemos admitir aqui, como o faz Jürgen Moltmann, uma kénosis 371 do

Espírito, que em sua Shekinah pode ser visto no Jesus que sofre, que é acusado e

que está prestes a morrer. Caso não aceitássemos esta “fraqueza” no Espírito e o

víssemos somente como uma força que impulsiona Jesus, sua ação seria somente

exterior. 372 São profundamente belas as palavras de Moltmann que tentam

traduzir, mesmo que limitadamente, este mistério que nos atesta a presença do

Espírito de Deus na experiência da ausência de Deus Pai ( Mt 27, 46; Mc 15, 34)

no momento da morte de seu “Filho Amado”:

“Graças ao Espírito de Deus que inabita nele e que sofre com ele, Jesus suporta o abandono de Deus em lugar do mundo abandonado por Deus, com isto levando-o para mais perto de Deus, isto é, reconciliando-o com Deus. Ele próprio leva o Espírito de Deus ao mundo abandonado por Deus, aquele Espírito que roga por nós com gemidos inefáveis, como diz Paulo em Romanos 8 [...] ” 373

369 Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica. Fac. 20. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2005. p. 161. 370 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., pp.93-95. 371 Para aprofundar este conceito consultar BRITO, E. Verbete “Kenose”. In: LACOSTE, J. Y. Op. cit., pp. 983-987. 372 MOLTMANN, J. Op. cit., p.73. 373 Ibid. p.71.

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Finalmente Moltmann nos esclarece que “O Espírito de Deus não é somente

aquele que conduz Jesus em sua entrega à morte, mas muito mais aquele que o

liberta da morte.” 374

2.3.3.13. Jesus ressuscita e entrega o Paráclito

A revelação de Deus vinda ao mundo por meio de Jesus não termina com sua

morte. O Espírito de Deus que o conduz por toda sua vida e em sua entrega à

morte na cruz é o mesmo que o liberta da morte. Este fato é enfatizado nos

testemunhos cristãos mais antigos (Rm 1,1-4; 1 Tm 3,16; 1 Pd 3,18). Apesar

disso, a ressurreição de Jesus, fato central da pregação apostólica, e do qual

depende inteiramente a fé explícita em Jesus Cristo (1 Cor 15, 17), não é narrada

no Segundo Testamento. O que se encontra aí narrado, em primeiro lugar é o

encontro do túmulo vazio e, posteriormente, as aparições do ressuscitado. 375

É exatamente o sofrimento que o Espírito passa com o Filho até a morte de cruz

(kénosis do Espírito) que torna interiormente possível o renascimento de Cristo

pelo Santo Espírito. Por haver acompanhado o Filho do Homem até o fim, ele

pode fazer deste fim o novo começo. 376 É o valor da vida, das atitudes, das

opções, do comportamento, da mensagem e da morte de Jesus, tudo isso vivido no

Espírito em fidelidade e amor ao Pai, que a ressurreição confirma como sendo o

único caminho possível para a Vida em Plenitude. Portanto, a ressurreição não é

um milagre bonito de se olhar, mas é a proclamação para o mundo de que Jesus

tinha razão em tudo o que fez e falou. 377 Ela confirma que Jesus agora é

“Senhor”, junto com o Deus Vivo e Presente (Fl 2, 5-11).

Como já apontamos anteriormente Jesus precisou partir para deixar o Espírito (“é

de vosso interesse que eu parta, pois se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se

for, enviá-lo-ei a vós.” Jo 16, 7). Nas palavras de Yves Congar:

“O Cristo glorificado, “Adão escatológico”, não se tornou somente corpo espiritual, mas “espírito que dá a vida” (1Cor 15,42-45). Tendo dado seu corpo

374 Ibid. 375 Por este motivo não apresentaremos nenhum texto bíblico sobre a ressurreição. 376 Cf. MOLTMANN, J. Op. cit., p.73. 377 Cf. GARCÍA RUBIO, A. O Encontro com Jesus Cristo... Op. cit., p. 113.

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carnal em sacrifício, Jesus recebeu um corpo espiritualizado, glorioso, fonte de vida.” 378

É exatamente por isso, que o Ressuscitado, comunicador de vida em plenitude,

concede a seus discípulos/as os dons de seu Espírito. Jesus não está mais presente

na forma humana, a olhos vistos, razão pela qual deixa em seu lugar o Paráclito

(“E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.” Jo 19, 30 b). Portanto, na ausência,

de Jesus, ele estará presente na história, como Senhor, por meio de seu

Espírito.379

2.3.4. Jesus vem do Espírito

Somente depois de percorrermos todo este caminho feito por Jesus de Nazaré,

podemos fazer a afirmação: este homem de Nazaré vem do Espírito. Ou ainda

como o faz Leonardo Boff quando exclama: “humano assim só pode ser Deus

mesmo!” 380 Neste momento, encontramo-nos preparados/as para lançar um olhar

para o início da história de Jesus de Nazaré e “compreendê-la” em todo o seu

mistério.

“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: ‘Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’ Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: ‘Não temas, Maria! Encontraste graça junto a Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim’. Maria, porém, disse ao anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?’ O Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível’. Disse, então, Maria: ‘Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra!’ E o Anjo a deixou.” (Lc 1, 26-38)

378 CONGAR, Y. A Palavra e o Espírito... Op. cit., p. 105. Grifo nosso. 379 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 404. 380 BOFF, L. Jesus Cristo Libertador... Op. cit., p. 131.

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É, portanto, o envio do Espírito Santo que constitui como “santo” e como “Filho

de Deus” o menino suscitado no seio de Maria. Yves Congar ao esclarecer essa

afirmação nos diz que:

“O que chamamos de união hipostática é, como ‘obra ad extra’, o ato das Três Pessoas; o resultado dessa ação é a união na Pessoa do Verbo-Filho. Mas é o Espírito que, ao atualizar em Maria a capacidade feminina de conceber (e, portanto, suprindo os 23 cromossomos masculinos) suscita o ser humano que se une ao Verbo-Filho e, por isso, mesmo o faz ‘santo’. De maneira que Jesus é Emanuel, Deus conosco, porque ele é (concebido) pelo Espírito Santo.” 381

É interessante perceber que há uma clara intenção teológica, no fato do Novo

Testamento (Mt 1,18-25 e Lc 1,26-38) retrotrair até o início do devir humano de

Jesus. Esta intenção é a de afirmar a identidade originária de Jesus, afirmar seu

“surgimento pelo Espírito”. Portanto, a intenção é cristológica e não

mariológica.382 Apesar de sabermos disso, gostaríamos de acrescentar, mesmo que

de forma sintética a perspectiva mariológica sobre a concepção de Jesus que nos

apresenta Clodovis Boff. Este teólogo nos diz que o versículo onze é o vértice de

toda a perícope de Lc 1, 26-38, quando o evangelista assinala que, pela

intervenção do Espírito de Deus, Maria gera o Messias. Ele nos afirma ainda que:

“o verbo ‘cobrir com a sombra’ ou ‘ensombrear’ (epi-skiá-zein), evoca a Nuvem misteriosa do Êxodo que ‘ensombreava’ a ‘Tenda da reunião’, transformando-a na Morada de Deus (Shekinah) (cf. Ex 40, 34 LXX; Nm 10, 34). Com estas evocações, Lc parece sugerir o seguinte e maravilhoso sentido: cobrindo a Virgem com sua sombra e tornando-a fecunda do Filho de Deus, o ES transforma Maria na nova Shekinah, a nova Casa de Deus. Ela é agora o novo ‘Tabernáculo do encontro’, onde a humanidade pode entrar em comunhão com seu Deus.” 383

381 CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p.33. Nota de rodapé 3a. Grifo nosso. 382 Cf. BLANK, J. Verbete “Espírito Santo/Pneumatologia”. In: EICHER, P. Op. cit., p. 246. 383 BOFF, C. Introdução à Mariologia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 51. Grifo nosso. Precisamos estar alertas com relação a esta afirmação feita por Clodovis Boff para não fazermos uma relação direta com a afirmação de Jürgen Moltmann sobre a shekinah. Aqui, em Clodovis Boff, a shekinah é entendida em seu significado original de “morada de Deus”, logo, podemos afirmar que Maria é esta morada, visto que Deus habitou em seu ventre. Conseqüentemente, podemos dizer que Maria é a shekinah. Já na reflexão de Moltmann a shekinah é entendida como a “presença de Deus no meio do povo”, com outras palavras, é a “inabitação de Deus no espaço e no tempo, num determinado tempo de criaturas terrenas e em sua história”. Conseqüentemente, é pertinente se afirmar, como o faz Jürgen Moltmann, que a idéia da shekinah desenvolvida pelo judaísmo se aproxima mais daquilo que nós cristãos/ãs confessamos ser o Espírito Santo. Desejamos deixar bem claro que ao fazermos a citação de Clodovis Boff não pretendemos dizer que Maria se aproxima daquilo que entendemos ser o Espírito Santo. Na realidade nossa intenção ao usar este texto de Clodovis Boff em nossa dissertação é a de destacar o papel importantíssimo desta mulher em toda obra salvífica. Ressaltar como Maria se abriu totalmente à ação do Espírito Santo, que a inabitou, vivendo totalmente para Deus e para seus irmãos e irmãs, de tal forma que pode gerar em seu ventre o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus.

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Portanto, é a inabitação do Espírito de Deus no seio da jovem Maria, que a fará

gerar o Messias. Mas, apesar disso, é usando de sua liberdade que a Virgem

consente a ação em plenitude do Espírito Santo em sua pessoa, e faz isto na fé.

Logo, Maria nos é apresentada neste relato como figura de liberdade e figura de

fé, pois é seu ato de liberdade e de fé que abre a possibilidade do próprio Deus vir

habitar no meio de nós. 384

Maria Clara Bingemer em seu artigo “Abba: um Pai Maternal”, que busca resgatar

a imagem de Deus como um Pai de entranhas femininas, ao falar da concepção

virginal de Maria nos afirma que ela é obra do Pai, alertando-nos que ao mesmo

tempo este trabalho do Pai “é recebido pelo Espírito Santo, Amor Materno, Amor

Concebente fértil, receptividade divina que faz grávida a virgem que torna

divinamente possível aquilo que é humanamente impossível.” 385

O chamado de Jesus à vida ocorre no Espírito. Desde o primeiro instante ele

habita em Jesus e o faz existir, desde o seio materno ele faz de Jesus, o Filho de

Deus. 386 Os dois evangelhos da infância acentuam esta ação inicial do Espírito

(Mt 1,18 “antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito Santo”; e Lc

1,35 que já relatamos acima). Entretanto, o evangelho de Lucas ao comparar a

anunciação feita a Maria com as anunciações anteriores encontradas na Bíblia,

seja a de Sansão (Jz 13,5), ou a de Samuel (1 Sm 1,11) ou ainda a de João Batista

(Lc 1, 15), quer enfatizar que estes três foram consagrados a Deus desde sua

concepção, mas que em Jesus a ação do Espírito é mais do que uma consagração.

Nele sem intermédio de qualquer rito, sem a intervenção de qualquer homem, mas

unicamente pela ação do Espírito de Deus em Maria, Jesus é “santo” pelo seu

próprio ser. 387

Entre os inspirados de Israel as manifestações do Espírito de Deus tinham sempre

algo de ocasional e transitório, como vimos no primeiro capítulo. Em Jesus elas

são permanentes. Ninguém jamais teve o Espírito como ele, “além de toda

medida” (Jo 3, 34). Os inspirados do Primeiro Testamento tinham consciência de

serem possuídos por “alguém” mais forte que eles. Em Jesus não vemos este

384 Cf. BOFF, C. Op. cit., p. 53. 385 MANTEAU, H. M.; BONAMUY. apud BINGEMER, M. C. L. Abbá: um Pai maternal. In: Atualidade Teológica n° 5, 1999. pp. 142-143 386 Yves Congar nos alerta que Lc 1, 35 não se refere à preexistência do Verbo ao falar da concepção de Jesus pelo Espírito. Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência... Op. cit., p. 32. 387 Cf. GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LEON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 300

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resquício da inspiração. Parece que ele pode realizar as obras de Deus sem a ação

do Espírito. Não que ele possa jamais prescindir do Espírito, como igualmente não

pode prescindir do Pai; mas, como o Pai “está sempre com ele” (Jo 8, 29), assim

também o Espírito nunca lhe pode faltar. A ausência, em Jesus, das habituais

repercussões do Espírito é sinal de sua divindade. Ele não sente o Espírito como

uma força que o invadisse de fora. O Espírito está “em casa” e Jesus está “à

vontade” no Espírito: o Espírito é dele, é o seu próprio Espírito (cf. Jo 16, 14s).388

2.3.5. Jesus é a revelação plena do Amor Trinitário

Chegando ao final de toda esta caminhada feita através da vida terrena do

Nazareno, podemos agora afirmar que ele é:

“... um autêntico fenômeno do Espírito: concebido, inspirado, enviado, assistido, guiado e ressuscitado dos mortos por seu poder. Usando uma imagem da arte cinematográfica, podemos dizer que Jesus de Nazaré era ao ator principal e o Espírito Santo o diretor. Por meio da história humana de Jesus, o Espírito que penetra todo o universo torna-se concretamente presente numa pequena porção desse mesmo universo. Portanto, a totalidade da vida de Cristo – da encarnação à ressurreição – representa na história a expressão perfeita da experiência da atuação do Espírito. Por isso, é critério para avaliar qualquer outra experiência histórica de sua ação. Toda experiência cristã da atuação do Espírito Santo é constitutivamente cristológica.” 389

Essa afirmação é para nós de fundamental importância visto que afirma uma de

nossas teses: Jesus Cristo, (vida, pregação, práxis, morte e ressurreição) é o

critério para avaliarmos a experiência do Espírito Santo na história e na vida de

cada ser humano.

É neste Jesus de Nazaré, homem pleno do Espírito de Deus e que vive uma íntima

união com o Pai, que se dá a plenitude da revelação: Deus é Trindade! O

conteúdo “Deus é Pai”, “Deus é Filho” e “Deus é Espírito Santo” é manifestado

no e pelo Filho.

Ao revelar que Deus é Pai Jesus nos leva a compreender que Deus é:

388 Cf. Ibid. p. 301 389 HOTTZ, P. R. O Espírito de Jesus Cristo e o desafio da religiosidade pentecostal. In: FRANÇA MIRANDA, M. (Org). A pessoa e a mensagem de Jesus. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. p.208.

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“Transcendência, superioridade, criador, fonte escondida, origem sem origem, mistério fontal do qual tudo provém e ao qual tudo retorna... [Ele] é a fonte da vida. É aquela realidade que não entendemos, mas sentimos que nos abarca, nos abraça, nos cria, nos faz, nos mantém vivos a cada minuto de nossa existência.”390

Afirmando que Deus é Pai Jesus se revela como o Filho. Logo, Deus também é

Filho. Revelando-nos sua filiação divina Jesus nos leva a perceber que:

“no Filho, Deus – o Transcendente, o separado, o inatingível, aquele a quem ninguém podia ver e continuar vivo – se torna um de nós, se torna de carne e osso como nós, se torna humano conosco e como nós.” 391

No entanto, toda essa revelação feita por Jesus só foi possível a partir do Espírito

Santo. “Jesus é o homem do Espírito que realiza o plano salvífico do Pai no meio

de seu povo.” 392 Jesus é o Cristo que revela o Pai na glorificação pelo Espírito.

Revelando que Deus também é Espírito, Jesus Cristo nos deixa entrever que este

Espírito:

“constitui a força ativadora de Deus na história. Neste sentido Ele significa o próprio Deus enquanto age, inova, abre caminhos novos na história com os homens e mulheres e com a criação... A obra do Espírito, entretanto, reside fundamentalmente em revelar para todos o Filho e atualizar a gesta libertadora do Filho. O acesso ao Filho se dá no Espírito... Este Espírito é também aquele que sonda as profundezas de Deus (Pai)... Ninguém conheceu o que há em Deus senão o Espírito de Deus (1 Cor 2, 11). ” 393

Portanto, o Deus revelado em Jesus e por Jesus é Uno e Trino. Portanto,

“Trindade é o mistério da comunidade das pessoas divinas, mistério de fé, de

salvação, de comunhão e de amor. Não é e não pode ser mistério lógico porque

justamente funda uma lógica nova: a lógica da gratuidade, do amor, do Dom.” 394

O Deus cristão é Pai, Princípio e Fim da Salvação; é Filho, Mediador da Salvação;

e é Espírito Santo, Motor da Salvação. E o ser humano só pode penetrar neste

mistério trinitário de amor através de Jesus que foi enviado pelo Pai e viveu toda

sua existência no Espírito.

390 BINGEMER, M. C. Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade). In: Iniciação Teológica... Op. cit., p. 21. Grifo nosso. 391 Ibid. p. 22.Grifo nosso. 392 BOFF, Lina. Op. cit., p. 64 393 BOFF. L. A Trindade e a sociedade. Série II: O Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987. pp. 51-52. Grifo nosso. 394 BINGEMER, M. C. Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade). In: Iniciação Teológica... Op. cit., p.26. Grifo nosso.

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2.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de Deus em Jesus

Nossa intenção é a de reunir agora, e de forma sintética, os principais dados que

pudemos recolher sobre a ação do Espírito Santo em Jesus de Nazaré e que se

encontra relatada no Segundo Testamento. Usaremos o mesmo método utilizado

no primeiro capítulo quando fizemos o balanço da investigação das três imagens

que no Primeiro Testamento apontam para a presença e atuação do Espírito de

Deus no povo de Israel. Iremos, portanto, elencar estes dados recolhidos em duas

grandes linhas: identidade (quem é o Espírito de Deus revelado na pregação e

práxis de Jesus) e ação (como age esse Espírito em Jesus de Nazaré). Estas

informações nos darão a possibilidade de mais tarde conhecer melhor quem é o

Espírito revelado nas páginas da Sagrada Escritura e elencar os critérios de

discernimento que nos possibilitarão avaliar se é realmente o Espírito de Deus que

está atuando hoje em nós e no mundo.

2.4.1 Identidade: Quem é o Espírito que se revela em Jesus?

A partir daquilo que acabamos de refletir sobre a vida, morte e ressurreição de

Jesus, sobre sua práxis e pregação, sobre a revelação inaudita que faz sobre Deus

e sobre sua relação única com o Espírito Santo podemos dizer que este Espírito é:

a) a Luz que capacita Jesus para reconhecer sua própria vocação e missão de eleito

e enviado do Pai; b) a Força Animadora (coragem) que dá condições a Jesus de

Nazaré de assumir livremente seu messianismo de serviço; c) a Força

Sobrenatural que atua em Jesus em momentos particulares como quando ele

enfrenta o Tentador, ou quando expulsa o demônio, ou ainda quando cura os

doentes; d) a Voz de Deus no coração de Jesus “segredando-lhe” como deve ser

sua pregação sobre o Reino de Deus e a respectiva prática coerente com este

Reino (acolhimento a todos os excluídos); e) a Inspiração que possibilita Jesus

perdoar todos/as que desejam e que se percebem necessitados/as dessa oferta

maravilhosa; f) a Liberdade que habita Jesus e que lhe propicia ser livre diante de

uma sociedade civil e religiosa tão marcada pelo preconceito e por leis

escravizantes; g) o Mestre de Jesus que lhe possibilita ensinar com autoridade e a

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viver a “Pedagogia da Inclusão”; h) o Mistagogo que introduz Jesus no Mistério

de Deus e lhe proporciona experimentar Deus como Abbá; i) o Amor que plenifica

Jesus levando-o a amar sem impor condições, a amar todo ser humano, somente

porque é humano; j) o Princípio de Discernimento que conscientiza Jesus da

necessidade de transformar Israel que havia se tornado uma sociedade

corrompida, hipócrita, falsa, legalista, gananciosa, fanática, sectária e mentirosa; l)

o Protagonista de toda vida de Jesus de Nazaré. Falar isso não significa dizer que

Jesus não mantinha sua liberdade e que não fez suas próprias escolhas, mas que

fez tudo isso sob a “orientação” do Espírito, ao qual esteve sempre aberto e

receptivo; m) a Interioridade Profunda de Jesus que age nele desde dentro, isto é,

que o inabita constantemente; n) a Alegria que exulta no coração de Jesus em seus

momentos de intimidade com o Pai e de relacionamento com os “pequeninos”; o)

o Sustentáculo de Jesus em todas as horas de dificuldade, de dúvida, de traição, de

abandono e de dor; p) o Consolador, em quem Jesus encontra apoio nas horas

mais difíceis de sua vida terrena; q) a Confirmação Divina necessária para que

Jesus possa continuar com sua opção pelos pobres, pecadores e pequeninos; r) a

Verdade plena que guiará os discípulos de Jesus em sua ausência; s) o Amor

Materno, o Amor Concebente Fértil que possibilita a Maria, mesmo sendo

virgem, gerar em seu ventre o próprio Deus feito fraqueza humana, Jesus de

Nazaré; t) o Comunicador de Humanidade que possibilita ao Nazareno ser “ser

humano” em plenitude; u) o Deus Vulnerável que acompanha, conduz e envolve

Jesus em toda sua vida e que na cruz também padece (Espírito da Paixão),

também agoniza também se esvazia! v) o Princípio de Vida Eterna que ressuscita

Jesus, fazendo do fim aparente, a morte, um novo e maravilhoso começo; x) o

Santificador que está tão intimamente ligado a Jesus que se torna o Espírito de

Cristo.

Parece-nos que essas características recolhidas da experiência histórica de Jesus

de Nazaré com o Espírito de Deus estão muito próximas daquelas características

que encontramos a partir da investigação que fizemos no primeiro capítulo desta

pesquisa em relação à revelação de Deus como Espírito a partir das metáforas

usadas no Primeiro Testamento (Rûah Iahweh, Sophía e Shekinah). Portanto,

entendemos ser pertinente afirmar que há uma coerência entre as experiências

com o Espírito de Deus narradas nos dois Testamentos, apesar de precisarmos

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destacar que com Jesus Cristo ela ganha uma relevância inaudita, a saber o

Espírito Santo é Deus!

2.4.2 Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir que “espírito” agiu em Jesus?

Segundo o que pudemos observar sobre a forma de agir do Espírito Santo em

Jesus podemos afirmar que sua ação se dá: a) no “silêncio” do extraordinário

acontecendo no ordinário da vida de Jesus de Nazaré; b) possibilitando a relação

entre Jesus e o Pai, e entre Jesus e os seres humanos; c) dando força, luz,

discernimento, sustentação, liberdade, inspiração, coragem para que Jesus possa

viver seu messianismo de serviço; d) na alegria que exulta no coração de Jesus

quando se experimenta amado e acolhido pelo Pai e igualmente quando se

encontra com os “preferidos/as” do Deus do Reino; e) autolimitando-se, auto-

rebaixando-se para que Jesus seja o “Deus conosco” anunciando e vivendo o

Reinado do Pai. Esta é a kénosis do Espírito! Aquele que age “esvaziando-se de si

próprio” para que o Pai e o Filho possam ser reconhecidos e louvados.

Podemos ainda destacar que a ação do Espírito Santo em Jesus: a) unge-o para ser

o Messias Servidor; b) fortalece-o para vencer o mal que impede a atuação do

Reino; c) ilumina-o para ser no mundo a Palavra do Pai; d) encoraja-o para ser

fiel ao projeto amoroso do Pai; e) liberta-o para que ele seja a Liberdade que

liberta a humanidade; f) capacita-o com seus dons para que os partilhe com os

seres humanos. Desta forma Jesus cura, perdoa, ensina, acolhe os excluídos,

resgata os marginalizados; g) introduzindo-o no Mistério de Deus para que ele

encontre o amor restaurador do Pai que lhe possibilitará partilhá-lo com seus

irmãos/ãs. Fizemos questão de frisar quais são as finalidades ou objetivos da ação

do Espírito de Deus em Jesus de Nazaré para que sirvam de critérios de

discernimento sobre a ação deste mesmo Espírito que continua agindo hoje no

mundo. Como podemos constatar toda a ação do Espírito Santo em Jesus tem

como finalidade sua abertura a Deus e aos irmãos e as irmãs. Este Espírito nunca

leva Jesus a fechar-se em si mesmo, mas pelo contrário é ele que possibilita a

relação entre Jesus e os outros/as e o grande Outro.

Com estes elementos recolhidos sobre a ação do Espírito de Deus na vida do

Nazareno nos encontramos agora preparados/as para adentrar-nos na Experiência

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Histórica que as comunidades cristãs da primeira hora fazem com este Espírito e

que se encontra retratada no Segundo Testamento. Conheceremos como se dá sua

ação na vida dos primeiros cristãos/ãs, fazendo-os viver o seguimento a Jesus no

Espírito. Este é o tema que abordaremos no próximo capítulo.

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3 A Experiência Histórica e a Teologia do Espírito Santo nas primeiras comunidades cristãs

Introdução

Já temos em mãos como foi experimentada a presença do Espírito de Deus e

como foi percebida sua ação em Israel, e já sabemos igualmente como se deu a

experiência histórica deste Espírito em Jesus de Nazaré que se revela o Cristo de

Deus. É importante destacarmos que todos os evangelistas expressam a seu modo

o fato de que existe uma continuidade dinâmica entre Cristo e a comunidade

formada por homens e mulheres que buscaram segui-lo desde a primeira hora.

Esta continuidade é o desígnio da graça de Deus que vem dar cumprimento

àquilo que antes havia sido prometido, e que se dá sob o signo do Espírito Santo.

A seguir iremos refletir como a presença e a ação deste Espírito foram

experimentadas e verbalizadas por alguns autores do Segundo Testamento e pelas

comunidades cristãs que se encontram aí retratadas. Faremos isto mantendo-nos

fiéis à finalidade que nos orienta desde o início desta pesquisa que é a de conhecer

quem é o Espírito Santo e a de elencar os critérios de discernimento que brotam

da Sagrada Escritura.

Continuamos neste capítulo seguindo a narrativa histórica de um povo, o Povo de

Deus, agora denominado o Novo Povo de Deus, e que tem como protagonista o

Espírito Santo. Para prosseguirmos na caminhada que nos propusemos,

perguntamo-nos: como as comunidades primevas (Igreja nascente) vivem a

experiência histórica com este Espírito? Há realmente continuidade entre a

experiência carismática vivida por Israel e posteriormente por Jesus de Nazaré,

com aquelas experiências vividas pelos seguidores/as de Jesus e que vemos

narradas no Segundo Testamento? Jesus de Nazaré é verdadeiramente o

paradigma da experiência com o Espírito para as comunidades apostólicas? A

pneumatologia elaborada pelos autores do Segundo Testamento está em sintonia

com aquela que pudemos extrair da vida de Jesus? Caso as respostas a estas

questões sejam positivas, perguntamo-nos ainda: que critérios de discernimento

podemos colher destas comunidades a partir de suas experiências carismáticas?

Dito de outra forma, o que distingue o Espírito ali manifestado de outros

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possíveis? É pertinente conhecer a pneumatologia do período apostólico para que

sirva de referencial à prática eclesial de hoje? Essas são algumas das questões que

movem nossa reflexão neste capítulo e às quais tentaremos responder.

Pretendemos demonstrar que a pneumatologia do período apostólico fornece

elementos primordiais para o cristão/ã de hoje que, assim como aqueles homens e

mulheres, não possui mais a presença física de Jesus de Nazaré. Com esta

pneumatologia podemos aprender como é possível viver uma “vida no Espírito,

no hoje da história, sem perder Cristo como o caminho, verdade e vida (Jo 14,6), e

o Pai como meta.

Vimos no capítulo anterior, que as discípulas e os discípulos de Jesus de Nazaré

que viveram a seu lado, o viram pregando o Reino de Deus; expulsando

demônios; ensinando com autoridade; anunciando a Boa Nova aos pobres;

curando e perdoando; acolhendo as mulheres como suas discípulas e missionárias;

resgatando os pecadores; orando e ensinando a orar; denunciando as injustiças;

amando até o ponto de entregar-se à morte; prometendo e entregando o Paráclito;

e finalmente, ressurgindo pela força do Espírito. E, veremos no presente capítulo,

que foi somente depois da experiência de Pentecostes que o grupo que o seguia

em vida se encontra animado e com coragem para iniciar a pregação e a vivência

da Boa Nova trazida por Jesus. Isto acontece porque as duas grandes esperanças

das Escrituras desde o Exílio se cumprem, isto é, eles percebem e experimentam

que Jesus é o Messias ungido pelo Espírito e que eles mesmos são o povo

presenteado com seu Espírito. Estes homens e mulheres seguidores de Cristo, no

período pós-pascal, experimentam e descrevem através de diversos fenômenos

espirituais como em suas vidas o Espírito está sendo derramado e como ele age.

Portanto, a experiência vivida por Israel e por Jesus de Nazaré com o Espírito

Santo de Deus, de que ele é vida, verdade e liberdade, permanece determinante

também para as primeiras comunidades cristãs que se encontram narradas no

Segundo Testamento. Além disso, a grande novidade trazida por Jesus em relação

ao Espírito começa a ser experimentada e vivida ainda que de forma não muito

clara por seus seguidores/as. É toda esta rica e multiforme realidade que nos

dispomos a pesquisar neste capítulo.

Muitas poderiam ser as formas de abordar este tema fascinante, apesar disto,

buscando ser coerentes com a escolha feita desde o início de nossa pesquisa,

optamos por seguir a narrativa histórica e deste modo iremos relatar a

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Experiência Histórica do Espírito Santo nas primeiras comunidades cristãs. Por

isso, acompanharemos, neste terceiro capítulo, os seguidores/as de Jesus a partir

do momento em que vivem a experiência de Pentecostes, marco fundamental na

vida dessas pessoas. Portanto, iniciaremos esta caminhada conhecendo a

pneumatologia de Lucas que brota de um dos livros de sua autoria, os Atos dos

Apóstolos, onde encontramos relatada a experiência carismática de Pentecostes. A

partir daí e dos relatos que faz sobre a vida da Igreja nascente, elencaremos, com

base em algumas perícopes, as principais características da pneumatologia lucana

e veremos que critérios de discernimento brotam de seus relatos. Posteriormente

enfocaremos a pneumatologia de Paulo encontrada em suas cartas, onde vemos o

“apóstolo dos gentios” lidando com as dificuldades para viver a grande novidade

da “vida no Espírito”. A partir de seus conselhos pastorais iremos colhendo as

principais características de sua pneumatologia e os critérios de discernimentos

apontados por ele. Finalmente, penetraremos no horizonte pneumatológico de

João que encontramos no evangelho de sua autoria e na primeira carta por ele

escrita a sua comunidade. Com base nestes dois escritos joaninos elencaremos os

principais elementos desta teologia do Espírito e, como fizemos com as duas

pneumatologias anteriores, iremos recolher os critérios de discernimento que

podemos deduzir da prática da comunidade joanina. Portanto, estamos

delimitando nossa pesquisa a estes escritos e a algumas passagens seletas dos

mesmos. É evidentemente impossível, e seria fora de propósito, examinar todas as

passagens do Segundo Testamento onde estão narradas as experiências

carismáticas nos escritos destes autores. Por isso, limitamos nossa análise às mais

importantes, segundo a opinião dos autores/as pesquisados.

Pretendemos conhecer melhor a experiência que estes homens e suas

comunidades fazem com o Espírito Santo e como são capazes de elaborar

teologicamente a experiência vivida. Essa experiência traz um sabor de total

novidade, de tal forma que revoluciona a vida destas pessoas. Além disto, por ser

novidade, acarreta também muitas surpresas e problemas, o que torna necessário

encontrar critérios de discernimento para tentar resolvê-los. Mas, é sempre bom

lembrar que, apesar da total novidade que é experimentada pela comunidade cristã

primeva, há também uma continuidade entre aquilo que vivem com aquela

experiência com o Espírito já vivida por Israel e por Jesus de Nazaré. Veremos,

finalmente, que surge agora um elemento novo, que é a especificidade

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fundamental da elaboração teológica deste período e que se baseia na plenitude da

revelação que lhes chega através de Jesus: o Espírito Santo é uma pessoa divina.

Mas, não esqueçamos que é uma elaboração feita ainda entre luzes e sombras, que

precisará de um longo caminho até ser percebida com mais clareza pelos teólogos

cristãos dos primeiros séculos.

Com os dados recolhidos das três principais pneumatologias do Segundo

Testamento, faremos finalmente um balanço sobre a Experiência Histórica com o

Espírito Santo nas primeiras comunidades cristãs para podermos conhecer melhor

quem é o Espírito Santo que aí age, e quais são os critérios de discernimento que

encontramos nestes escritos.

Acreditamos que ao final deste capítulo nos encontraremos preparados/as para

reunir todos os dados anteriores que levantamos em nossa pesquisa, e assim

conhecer quem é o Espírito que se encontra revelado nas páginas da Sagrada

Escritura e quais são os critérios de discernimento que aí encontramos e que nos

ajudam saber que “espírito” está hoje agindo no mundo e no ser humano.

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3.1. A Pneumatologia Lucana a partir da experiência histórica com o Espírito Santo

Como falar da Igreja nascente e da tentativa de expressar a experiência vivida por

ela com o Espírito Santo de Deus, sem nos determos no escrito do Segundo

Testamento que relata como vivem os primeiros homens e mulheres que seguem

Jesus Cristo, obedientes ao mandato do Pai e na força do Espírito Santo? Como

seguir narrando a história do Povo de Deus, que agora se compreende como o

Novo Povo de Deus, sem iniciarmos este percurso pelo livro dos Atos dos

Apóstolos? Para nós é impossível, pois nele encontramos a história do

desenvolvimento da Igreja sob o impulso do Espírito Santo. Nele deparamo-nos

com a proeminência do Espírito, a tal ponto que, para muitos estudiosos este

escrito é considerado como o Evangelho do Espírito, assim como o Evangelho

segundo Lucas é o Evangelho do Filho. Podemos ver, através das narrativas

encontradas nas páginas dos Atos dos Apóstolos, como a plenitude do Espírito e

da missão da Igreja são vistas na expansão da Igreja pelo mundo gentio. 395

Segundo Ana Maria Tepedino, para o autor destes escritos a história de Jesus,

toda ela vivida sob a inspiração do Espírito Santo, e a história da comunidade

nascente, igualmente vivida sob a ação do mesmo Espírito, situam-se ao mesmo

nível. Ela afirma ainda que:

“A pregação do Reino feita por Jesus é colocada na mesma linha que a pregação do Reino feita por Pedro e Paulo inspirada pelo Espírito Santo. Esta perspectiva representa um grande salto teológico. O evangelista chama a atenção para o fato de que a Boa Nova se refere não só ao que Jesus fez, mas também ao que o Espírito inspira homens e mulheres a realizarem. ” 396

Segundo esta compreensão podemos dizer que é o Espírito Santo quem “costura”

os fios fundamentais da História da Salvação, 397 dito de outra forma, é ele que

une toda a História tornando-a uma única expressão do amor salvífico de Deus

por sua criação e por suas criaturas. É ele quem possibilita a continuidade que

encontramos aí, apesar das rupturas com as quais nos deparamos. Além disso, é

395 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 93. 396 TEPEDINO, A. M. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus Cristo (Eclesiologia)... Op. cit., p. 53. Grifo nosso. 397 VANCELLS, T. apud TEPEDINO, A. M. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 158.

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fundamental destacar ainda que “à luz de recentes pesquisas na área da exegese

bíblica e da teologia dogmática, podemos afirmar que a Teologia Lucana oferece

um dos modelos pneumatológicos mais importantes de todo o Novo

Testamento.”398

É nossa intenção elencar as principais características da Teologia do Espírito

segundo Lucas. Para alcançar tal objetivo iremos privilegiar da obra de Lucas, o

livro dos Atos dos Apóstolos, onde encontramos narrada a vida carismática das

primeiras comunidades cristãs. Faremos isto, pois no segundo capítulo deste

trabalho colhemos do evangelho narrado por este autor a experiência histórica do

Espírito Santo na vida de Jesus de Nazaré, manifestado como o Cristo de Deus, de

onde pudemos recolher alguns elementos de sua pneumatologia. Portanto, neste

capítulo iremos ter como base para a análise da pneumatologia lucana somente o

livro dos Atos dos Apóstolos.

A seguir destacamos as principais características da pneumatologia lucana que

nos deixam conhecer o Espírito Santo e nos dão base para destacar os critérios de

discernimento que Lucas vai deixando entrever em seus relatos.

3.1.1. Há uma continuidade na História da Salvação

Lucas faz uma profunda relação entre Jesus e a Igreja nascente em Atos. Jesus

recebe, em seu batismo no Jordão, o Espírito que o guia para realizar sua

atividade de testemunha e agente do projeto do Pai. Assim também, os apóstolos

e os discípulos/as recebem em Pentecostes 399 o batismo do mesmo Espírito para

testemunhar a todos os seres humanos o projeto de Deus realizado por Jesus.

Portanto, é a força do Espírito, isto é, a força do próprio Deus, que agindo

naquele e naquela que se abre a sua ação e se coloca disponível a seus impulsos,

que leva esta comunidade a continuar o que Jesus começou. É uma necessidade

para Lucas dar continuidade àquilo que havia escrito em seu evangelho,

mostrando o testemunho dos primeiros cristãos/ãs, como sendo a continuação do

testemunho de Jesus. Ele quer manifestar como as comunidades cristãs da

398 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 63. 399 Trataremos com mais profundidade do primeiro Pentecostes narrado por Lucas, apesar dele apresentar no livro dos Atos dos Apóstolos vários Pentecostes sucessivos (4, 25-31; 8, 14-17; 10, 44-48; 11, 15-17; 19, 1-6).

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primeira hora continuam testemunhando Jesus, através de palavras e ações, que

provocam transformações na sociedade e na história. Na realidade deseja deixar

patente que Jesus continua vivo e presente na vida da comunidade, mesmo depois

de sua morte. 400 E quem possibilita isto é o Espírito Santo!

Dar continuidade à história de Jesus na história da comunidade cristã, além de

apresentar uma coerência interna na obra de Lucas, ajuda seu leitor a perceber que

a realização das promessas, tanto as do Primeiro Testamento, como as feitas pelo

Pai através do Evangelho anunciado por Jesus de Nazaré, estão acontecendo pela

ação do Espírito Santo nos discípulos e discípulas deste Mestre. Lina Boff faz

uma síntese deste pensamento lucano ao afirmar que:

“O critério que domina o pensamento teológico de Lucas, ao conceber a missão como anúncio do Ressuscitado, é o da continuidade da história da salvação, obra do Espírito em Jesus e na comunidade. Em ambos age o mesmo espírito de Deus que atuou no povo de Israel. Nisto consiste a unidade e continuidade da ação de Deus no meio de todas as nações da terra.” 401

Do ponto de vista da teologia de Lucas “Páscoa-Ascenção-Pentecostes” são três

aspectos de um mesmo acontecimento da História da Salvação, por isso, ele faz

questão de deixar claro que há uma conexão entre o Mistério Pascal e o Dom do

Espírito Santo derramado sobre a comunidade cristã em Pentecostes. 402

3.1.2. O dom do Espírito Santo é a Nova Lei gravada no coração de cada ser humano

Para o povo de Israel, Pentecostes era uma festa celebrada sete semanas depois da

Páscoa, quando terminava a colheita, conhecida como “festa das semanas” (Ex 34,

22; Nm 28, 26). Nela comemorava-se a Aliança e o dom da Lei que era sua

conseqüência prática. Não podemos esquecer que as tábuas da Lei tinham sido

escritas pelo dedo de Deus (Ex 31, 18), portanto, a Lei já havia sido inspirada

pelo Espírito de Deus (Lc 11, 20). Na compreensão de Lucas há uma Nova Lei, e

esta é o próprio “Espírito dando testemunho de Jesus e em todos os povos.” 403

400 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos: o caminho do Evangelho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 18-19. 401 BOFF, Lina. Op. cit., p. 106. 402 Cf. SANTANA, L. F. R. Op.cit., p. 65. 403 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 67.

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Este autor colocando o dom do Espírito em Pentecostes sugere que a plenitude da

Aliança não é mais a Lei escrita na pedra, mas sim o dom recebido do Espírito e

gravado no coração de cada ser humano. É este dom que faz as pessoas

compreenderem em profundidade a vontade e o projeto de Deus. Desta forma,

aquilo que os profetas Jeremias e Ezequiel haviam anunciado estava sendo

cumprido, a saber, não haverá mais a necessidade de uma Lei escrita na pedra,

porque a Lei estará interiorizada em cada homem e em cada mulher. Ela é o

próprio Espírito de Deus, capaz de produzir transformações radicais e levar a

vida plena para todo ser que se abrir a sua ação (Jr 31, 31-34; Ez 36, 25-28). 404

Portanto, a promessa trazida pelos profetas de que nos “últimos tempos”, o povo

de Deus receberia os ricos e abundantes dons do Espírito, está se realizando agora.

É este evento, o Novo Pentecostes, que se encontra narrado por Lucas nos Atos

dos Apóstolos: a) a descida do Espírito Santo sobre a comunidade primeva (At 2,

1-13); b) o discurso de Pedro (At 2, 14-36); c) a formação da primeira igreja cristã

(At 2, 37-41) e o relato de seu projeto de vida (At 2, 42-47).

3.1.3. O Espírito derramado em Pentecostes é um Espírito Pascal, pois é o sopro do Ressuscitado

Ao final de seu evangelho, Lucas narra as últimas instruções de Jesus, momento

em que este promete a seus apóstolos a dádiva do Espírito Santo como força para

continuar o caminho que ele havia apontado. São estas as palavras que Jesus

pronuncia: “Eis que eu enviarei sobre vós o que meu Pai prometeu. Por isso,

permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto.” (Lc 24, 49). No dia

de Pentecostes, Lucas coloca na boca de Pedro estas palavras: “Portanto, exaltado

pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou,

e é isto o que vedes e ouvis.” (2,33) Como podemos constatar, Lucas, de forma

magistral, acrescenta um elemento novo a tudo o que já havia dito sobre o Espírito

em seu Evangelho (Lc 1,15. 35. 41. 67; 2, 25-27; 3,16. 22; 4,1. 14. 18; 10, 21; 11,

13; 12, 10. 12, 23, 46), pois apresenta, nos Atos dos Apóstolos, Jesus como o

dispensador do Espírito à Igreja. 405 Entretanto, na compreensão lucana o

404Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 29. 405 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 306.

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Espírito, apesar de ser o sopro do Ressuscitado, 406 não é um substituto total de

Cristo, pois o que Jesus transmite aos seus discípulos/as é a assistência do

Espírito que ele mesmo recebeu do Pai no Jordão, e que agora possui a missão

profética de ser o porta-voz da mensagem de Deus. 407

3.1.4. Não há discriminações nem privilégios entre os membros da primeira comunidade cristã

Lucas inicia sua narrativa de Pentecostes afirmando “Tendo-se completado o dia

de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.” (At 2,1) Quem são estes

“todos” que compõem a primeira comunidade cristã? Segundo o que encontramos

em At 1, 12-14 são os onze apóstolos, algumas mulheres, certamente as que

acompanhavam Jesus (Lc 8,2) e testemunharam a sua ressurreição (Lc 24, 10),

além de Maria, mãe de Jesus, e os irmãos, que são propriamente os parentes de

Jesus. Analisando os membros que compõem esta comunidade, podemos afirmar

que nela não há discriminações nem privilégios seja de sexo, de laços de

parentesco, de função social ou de qualificação cultural, pois é composta pelos

apóstolos, pelas discípulas e discípulos, pela mãe e pelos parentes de Jesus. Esta é

a miniatura do Novo Povo de Deus. 408

Para podermos confirmar que na comunidade que está nascendo com a efusão do

Espírito Santo não há discriminações, basta ver como Pedro interpreta Pentecostes

através de um texto do profeta Joel (Jl 3, 1-5). Lucas coloca na boca deste

apóstolo estas palavras:

“O que está acontecendo é o que foi dito por intermédio do profeta: Sucederá nos últimos dias, que derramarei do meu Espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões e vossos velhos sonharão. Sim, sobre meus servos e minhas servas derramarei do meu Espírito.” (At 2, 16-18)

A profecia escatológica de Joel recebe uma interpretação original e um sensus

plenior, quando Pedro faz menção ao cumprimento da efusão do Espírito

406 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 65. 407 HAYA-PRATS. apud CONGAR, Yves. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 68-69. 408Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 26.

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destinada ao futuro messiânico (v. 16). 409 Além disto, é importante destacar que

aquilo que interessa a Pedro ao usar da profecia de Joel, segundo a pneumatologia

lucana, é o fato da efusão do Espírito, se estender a todos os membros do povo de

Deus sem discriminações. Logo, este texto do profeta Joel ajudou Pedro a

encontrar um sentido para as coisas que a comunidade vivia naquele momento. 410

Na concepção do autor dos Atos, a profecia de Joel (Jl 3, 1-5) feita no período do

Pós-Exílio está se cumprindo agora. O Espírito está sendo derramado por Deus e

com isto rompendo todas as barreiras. Primeiramente as barreiras entre os povos

e nações, visto que ele é derramado “sobre toda carne”; depois as barreiras do

sexo, pois são os “filhos e as filhas que profetizarão”, e os “escravos e escravas

que receberão a efusão do espírito”; em seguida as barreiras da idade, pois os

jovens e também os anciãos terão visões (sonharão); e finalmente as barreiras das

classes sociais, pois até sobre os servos (escravos) e as servas (escravas) o espírito

será derramado. É toda esta maravilha preparada pelo profeta Joel que se encontra

agora sendo realizada. Portanto, “chegou o dia do Senhor” tão ansiosamente

esperado por todo o povo, quando não haverá mais discriminações nem

privilégios no Povo de Deus.

3.1.5. O dom do Espírito é para que a Boa Nova trazida por Jesus seja comunicada

Para Lucas as promessas de Jesus e aquelas proferidas pelos profetas realizam-se

no dia do Novo Pentecostes.

De repente, veio do céu um ruído como o agitar de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimirem. (At 2, 2-4)

É sobre a comunidade que acabamos de descrever, e que se encontra reunida no

mesmo lugar em que Jesus celebrou sua última Páscoa e a primeira Eucaristia, que

o Espírito Santo se manifesta simbolicamente como um “vendaval impetuoso” e

ainda como “línguas de fogo”. Na realidade, estes homens e mulheres vivem uma

409 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 65. 410 Cf. BOFF, Lina. Op. cit., p. 108.

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experiência tão forte e peculiar que não sabem relatar muito bem e por isso, Lucas

utiliza-se destes simbolismos. Sabemos que estes elementos (barulho, vento, fogo)

são típicos da manifestação de Deus em toda a Bíblia. Eles significam que Deus

está agindo. É a partir do simbolismo das “línguas de fogo” que podemos

recolher um outro aspecto importante do dom do Espírito segundo Lucas. A

língua é instrumento de comunicação, de fala, e dá origem à linguagem, que é o

meio de comunicação entre as pessoas. Somente depois que as “línguas de fogo”

repousam sobre os membros da primeira comunidade cristã, é que eles/as “ficam

repletos do Espírito Santo” e começam a “falar em outras línguas conforme o

Espírito lhes concedia exprimirem”. Falar em outras línguas, aqui, nada tem a ver

com o fenômeno da glossolalia que aparece retratada na primeira carta de Paulo

aos Coríntios (12, 10; 14, 2-19) e em At 4, 8.31; 9, 17; 13, 9. 411 A glossolalia

significa falar em línguas que ninguém entende, e que, por conseguinte não

comunica nada. É um fenômeno que consiste numa pessoa em êxtase, proferir

sons ininteligíveis e palavras sem nexo. Estes sons se tornam compreensíveis

apenas para quem possui o carisma da interpretação (1 Cor 14, 10). A glossolalia

está em oposição ao carisma da profecia, pois não tem por fim nem a edificação

nem a instrução da comunidade, mas apenas a confirmação da presença do

Espírito divino. 412

O dom do Espírito não tem como finalidade a edificação pessoal, mas recebê-lo,

possibilita ao ser humano a comunicação do Evangelho. Possibilita que a “boa

notícia” trazida por Jesus e atualizada pela ação do Espírito transforme as

relações humanas e faça surgir a fraternidade e a partilha que proporcionam

liberdade e vida para todos. 413 Portanto, é isto o que vemos acontecer no Novo

Pentecostes, isto é, todos se entendem porque falam a linguagem do amor.

411 Esta é a compreensão de STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 29-30. Colocamo-nos de acordo com esta interpretação. Entretanto, não podemos deixar de acrescentar que segundo a compreensão de alguns autores este “falar em outras línguas” pode ser interpretado como o fenômeno da glossolalia. Entre eles podemos citar: HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p.434; a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém. p. 1902; e ainda BOUWMAN. Verbete “Glossolalia” in: VAN DEN BORN, A. Op. cit., p. 643. 412 Cf. BOUWMAN. Verbete “Glossolalia” in: VAN DEN BORN, A. Op. cit., pp. 642-643. 413 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 29-31.

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3.1.6. O Espírito Santo é o protagonista da missão

Na teologia de Lucas há uma relação vital entre pneumatologia e missiologia,

entre Espírito e Missão. 414 Podemos ver isto com mais clareza nas palavras de

Cristo ressuscitado que são ditas para seus discípulos e discípulas: “Mas

recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas

testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os confins da

terra.” (1,8) Neste versículo percebe-se facilmente o motivo dos discípulos e

discípulas receberem o mesmo Espírito que Jesus recebeu no batismo, a saber,

recebem-no para serem testemunhas, isto é, anunciadores/as de Cristo até os

“confins da terra”. Deste modo, a função do Espírito segundo os Atos dos

Apóstolos é de fato: atualizar e propagar a salvação adquirida por e em Cristo,

através do testemunho de seus seguidores/as. O Espírito, portanto, anima seus

discípulos/as para anunciá-lo. 415 Mas, o que devem estas testemunhas anunciar?

Tudo o que viram, ouviram e experimentaram da pessoa de Jesus. E, para que esta

atividade missionária possa acontecer, como já destacamos, recebem o Espírito

Santo como o animador da missão que são chamados/as a cumprir. Com a

dýnamis do Espírito é que, de fato, estes homens e mulheres tornam-se capazes de

ser ‘testemunhas’ de Cristo no mundo até o seu retorno glorioso. É assim que a

missão prevista por Cristo abarca toda a história até seu zênite na escatologia. 416

3.1.7. Comunicar a “Boa Nova” no Espírito torna a mensagem inteligível a todos/as

Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos, vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Com o ruído que produziu, a multidão acorreu e ficou perplexa, pois cada qual os ouvia falar em seu próprio idioma. Estupefatos e surpresos, diziam: ‘Não são, acaso, galileus todos esses que falam? Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frigia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem; tanto judeus como prosélitos,

414 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 73. 415 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 68. 416 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 73.

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cretenses e árabes, nós os ouvimos anunciar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus!’ Estavam todos estupefatos. E, atônitos, perguntavam uns aos outros: ‘Que vem a ser isto?’ Outros, porém, zombavam: ‘Estão cheios de vinho doce!’ ” (At 2, 5-13)

A narrativa de Pentecostes acrescenta que aqueles que ouviram estes homens e

mulheres, que se encontravam repletos do Espírito Santo falar em outras línguas,

ficam admirados a ponto de dizerem: “Nós os ouvimos anunciar em nossas

próprias línguas as maravilhas de Deus” (v. 11b). É fundamental destacar que a

linguagem suscitada pelo Espírito em Pentecostes é compreensível porque os

discípulos e as discípulas anunciam as maravilhas de Deus. Falam a linguagem

universal do amor, da gratuidade, da partilha, da concórdia, da fraternidade, e é

exatamente por isso, que são entendidos/as por todos/as. Os Santos Padres assim,

como alguns exegetas viram neste milagre do Espírito a inversão da dispersão da

Babel onde ninguém se entendia apesar de falarem a mesma língua (Gn 11, 1-9).

Na expressão de Yves Congar: “O próprio do Espírito é, permanecendo único e

idêntico, estar em todos sem desflorar a originalidade nem das pessoas nem dos

povos, de seu gênio, de sua cultura, e fazer assim que cada um expresse em sua

própria língua as maravilhas de Deus.” 417 Portanto, a linguagem da fé, aquela

suscitada pelo Espírito de Deus é o fermento que ativa os diversos povos dentro de

suas culturas e histórias próprias. O Espírito fala na língua de todos e está

presente nas histórias de todos os povos, sempre ativando seu projeto de

liberdade e vida para todos. 418 Por isso, este Espírito, que se encontra em cada

ser humano, respeitando-o e incentivando-o em sua caminhada, possibilita que a

mensagem do Evangelho, que vem ao encontro do desejo mais profundo de todo

homem e toda mulher, que é o desejo de realização humana, seja entendida por

todos e todas.

3.1.8. O dom do Espírito permite que o testemunho seja um testemunho universal

Lucas ao narrar a experiência de Pentecostes tem a preocupação de afirma que se

achavam em Jerusalém judeus piedosos, vindos de todas as nações que há

417 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., pp. 67-68. 418 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 135.

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debaixo do céu e ainda habitantes de todas as partes do mundo conhecido de então

(cf. 2,5;9-10). Esta mesma preocupação a encontramos quando Lucas narra a

Ascensão do Senhor. Como já vimos acima, coloca como as últimas palavras

proferidas por Jesus Ressurreto as seguintes: “Mas recebereis uma força, a do

Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém,

em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra.” (1,8). Com base nestas

declarações de Lucas podemos concluir que uma das características da ação do

Espírito para ele é a comunicação do Evangelho a todas as criaturas, estejam elas

onde estiverem, isto é, em qualquer região da terra. 419 Latourelle afirma que “o

Espírito derramado copiosamente sobre a comunidade vai impulsioná-la a tomar

decisões importantes e vai prepará-la para a missão além de suas próprias

fronteiras.” 420 Portanto, o dom do Espírito, que leva a pessoa a testemunhar Jesus

Cristo, faz com que esse testemunho não se detenha diante de nenhuma barreira

possível, pois é um testemunho possibilitado pelo Espírito que ultrapassa todo e

qualquer obstáculo. Logo, é o Espírito Santo de Deus que viabiliza o testemunho

universal.421 Um alerta aqui se faz necessário: na compreensão de Lucas

testemunhar é muito mais do que simplesmente falar. Testemunhar é viver

segundo o projeto do Pai manifestado e instaurado por Jesus Cristo. É somente

este testemunho pregado e vivido, aquele que é capaz de comunicar a Boa Nova

de que Deus ama gratuitamente e salva a todo/as, sem que haja distinção alguma.

3.1.9. O dom do Espírito faz testemunhas cheias de intrepidez

Sabemos muito bem como depois da prisão de Jesus seus discípulos se dispersam

e com medo dos judeus e dos romanos, se escondem. Depois da paixão e morte de

seu Mestre continuam escondidos até que vivem a experiência única com Jesus

ressuscitado. Apesar desta experiência maravilhosa, continuam com as portas

fechadas e com medo (Jo 20,19. 26). É somente depois da efusão do Espírito em

Pentecostes que aquele grupo de homens e mulheres amedrontados faz uma

experiência interior forte que os torna corajosos/as e com muita audácia a ponto

de serem capazes de sair anunciando a Jesus. Pentecostes torna-se, portanto, o

419 Hoje diríamos “em qualquer região do universo”. 420 LATOURELLE, R. apud BOFF, Lina. Op. cit., p. 136. Grifo nosso. 421 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 19-21.

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momento chave na vida da Igreja nascente. 422 A partir desse momento os

discípulos e discípulas de Jesus tornam-se “testemunhas cheias de intrepidez (a

parresia).” 423 “A parresia é a liberdade, a franqueza e a audácia com que os

missionários/as do Evangelho portavam o kerygma apostólico.” 424

Podemos constatar a transformação que há na postura dos discípulos e discípulas

de Jesus a partir do que vemos em Pedro. Ele que anteriormente havia negado o

Senhor, fugindo e se escondendo por medo, logo após a experiência de

Pentecostes muda de atitude. Diante de uma multidão e da caçoada daqueles/as

que dizem que o cristianismo não passa de bobagem de bêbados, com coragem e

audácia ele é capaz de fazer o primeiro anúncio (querigma) dos seguidores de

Jesus (At 2, 14-36).

“Homens de Israel, ouvi estas palavras! Jesus, o Nazareno, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele entre vós, como bem o sabeis. Este homem, entregue segundo o desígnio determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios. Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias do Hades, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder. [...] A Jesus Deus o ressuscitou, e disto nós todos somos testemunhas. Portanto, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou, e é isto que vedes e ouvis. [...] Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes.” (At 2, 22-24. 32-33. 36) 425

Podemos dizer que com estas palavras Pedro, audaciosamente, sintetiza a essência

fundamental do cristianismo: Jesus homem justo e inocente realiza sinais de que o

Reino de Deus já chegou e está libertando as pessoas, levando-lhes vida. Este

mesmo Jesus é morto porque é um perigo para a sociedade que perpetua a morte e

a injustiça. Os chefes do povo pensam livrar-se de Jesus ao matá-lo. Porém, Deus

o ressuscita e, através de seus seguidores, o Senhor continua presente e agindo de

forma multiplicada, através de seu Espírito! 426

Encontramos ainda, nos Atos dos Apóstolos, reproduzida em muitos dos

seguidores/as de Jesus esta mesma coragem que vemos aqui retratada neste

discurso de Pedro. Lucas usa várias vezes a expressão “parresia” para

422 Cf. TEPEDINO, A. M. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus Cristo (Eclesiologia)... Op. cit., p. 54 423 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 69. 424 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 74. 425 Assim como já o fizemos anteriormente, optamos por privilegiar do Discurso de Pedro algumas partes que nos auxiliam na busca da pneumatologia de Lucas. 426 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp.36-37.

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caracterizar o comportamento destas pessoas que, plenas do Espírito Santo, são

capazes de enfrentar um mundo hostil para levar a Boa Nova a toda parte. 427

Entre estas narrativas é digno de destaque o episódio em que Pedro e João

enfrentam o poder religioso do Sinédrio com ousadia. (At 4, 13). Anteriormente

eles haviam curado um coxo de nascença no Templo. Suprema ousadia, porque

fizeram isto em nome de Jesus e ainda por cima, dentro do Templo, local que era a

sede dos mesmos poderes que haviam condenado Jesus (At 3, 1-10). Diante do

Sinédrio cometem a maior das audácias possíveis: anunciam a ressurreição de

Jesus, aquele mesmo que havia sido condenado por este “tribunal religioso” e

entregue ao poder romano para ser morto. Pedro e João são presos até o dia

seguinte. Ninguém presencia a deliberação do Sinédrio, mas o relato nos diz que

os dois são soltos, porém ameaçados e proibidos de falar “neste nome”, isto é, não

podiam anunciar as maravilhas de Deus que Jesus havia trazido, no Espírito, para

a humanidade. Logo após serem libertados encaminham-se para junto dos seus e

elevam a voz para Deus em oração (At 4, 23-31). 428 Este é um trecho da oração

que fazem:

“Agora, pois, Senhor considera suas ameaças e concede a teus servos que anunciem com toda intrepidez tua palavra, enquanto estendes a mão para que se realizem curas, sinais e prodígios, pelo nome do teu servo Jesus” Tendo eles assim orado, tremeu o lugar onde se achavam reunidos. E todos ficaram repletos do Espírito Santo, continuando a anunciar com intrepidez a palavra de Deus.” (At 4, 29-31). 429

Há um outro relato em que Lucas faz questão de confirmar que esta intrepidez

(parresia) acompanha aqueles/as que estão cheios do Espírito Santo. Faz esta

afirmação quando da primeira viagem missionária de Paulo. Juntamente com

Barnabé, Paulo vai, segundo o costume, anunciar o Evangelho na sinagoga, onde

judeus helenistas e gregos prosélitos se convertem. Lucas então afirma: “Quanto a

Paulo e Barnabé demoraram-se ali bastante tempo, cheios de intrepidez no

Senhor, que dava testemunho à palavra da sua graça e concedia que realizassem

sinais e prodígios por meio de suas mãos.” (At 14,3). Portanto,

“o livro dos Atos dos Apóstolos proclama que as testemunhas eleitas e, com base na pregação, todas as pessoas que chegam à fé são repletas com o Espírito Santo.

427 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 69. 428 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 53-56. 429 Este é mais um dos Pentecostes narrados por Lucas nos Atos dos Apóstolos.

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Na oração, na fé e no batismo o Espírito Santo concede a força para a confissão destemida e conduz a Igreja em sua caminhada missionária.” 430

Com estas palavras Bernd Jochen Hilberath confirma que na teologia do Espírito

que encontramos em Lucas, a parresia é um dos frutos do Espírito Santo.

3.1.10. O dom do Espírito é livre para agir

Na comunidade de Samaria vive Simão. Este homem é mago ou mágico, o que

significa dizer que fabrica ilusões. Iludindo o povo, que pensa ter ele poder

divino, consegue muito dinheiro (8, 9-11). É provável que com a chegada de

Filipe, que vem evangelizar a cidade onde mora Simão, este veja naquele

evangelizador um concorrente, com isto adere logo á fé cristã. É bom lembrarmos

que aquilo que Filipe faz não é mágica, mas sim a manifestação da Boa Nova que

liberta. 431 Mas, na realidade o que deseja verdadeiramente Simão?

“Quando Simão viu que o Espírito era dado pela imposição das mãos dos apóstolos, oferece-lhes dinheiro, dizendo: ‘Daí também a mim este poder, para que receba o Espírito Santo todo aquele a quem eu impuser as mãos.’ Pedro, porém, replicou: ‘Pereça o teu dinheiro, e tu com ele, porque julgaste poder comprar com dinheiro o dom de Deus!’”. (8, 18-20)

Como podemos ver as intenções de Simão não são evangélicas. Ele deseja somar

mais prestígio ao que já possui e, além disto, conseguir mais dinheiro. Esta é a

verdadeira intenção dele. Simão quer ter o mesmo poder de impor as mãos e

comunicar o Espírito, para isto oferece dinheiro. Vemos então o desejo de

comprar o dom do Espírito para conseguir mais prestígio e dinheiro. Com isto

Simão estaria de posse de uma mágica que seria eficiente em termos financeiros.

A resposta de Pedro é radical: o dom de Deus, isto é, o dom do Espírito Santo não

se compra (v. 20). Portanto, podemos dizer como o faz Ivo Storniolo, que Pedro

condena dois erros: o que é dom de Deus não pode ser comprado, nem vendido,

ou seja, não pode ser objeto de comércio, além disto, o dom de Deus á para

todos/as, e deve ser partilhado igualmente entre todos/as. 432 Tudo isto significa

430 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T... Op. cit., p. 435. 431 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 80. 432 Cf. Ibid. pp. 80-81.

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dizer que o Espírito Santo é livre para agir onde quer e sobre quem ele escolhe.

Logo, ele não está restrito a um lugar, como por exemplo, uma igreja, nem restrito

a uma pessoa, como por exemplo, os consagrados.

3.1.11. A koinonia (comunhão) é fruto do dom do Espírito

Lucas não se refere expressamente ao Espírito Santo quando descreve a vida da

primeira comunidade cristã com as seguintes palavras “Eles mostravam-se

assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às

orações.” (At 2, 42). Apesar disto, Yves Congar pergunta se este sumário, que

resume toda a vida eclesial, e que inclui a comunhão, não é descrito por Lucas tal

como emana de Pentecostes. Portanto, se a Igreja foi lançada ao mundo através

do evento do Espírito, este anima tanto sua vida interna quanto sua vida externa.

Logo, segundo Congar, a comunhão que há entre os membros desta comunidade é

fruto da ação do Espírito Santo. Ele ainda nos alerta que “Lucas não tem uma

teologia dos efeitos e frutos do Espírito na vida do cristão, como são Paulo (Cristo

em nós)... Lucas se atém ao testemunho missionário.” 433 Mas, apesar disto

podemos inferir de seu relato que a koinonia é fruto do Dom do Espírito. Nas

palavras de Luiz Fernando Santana podemos encontrar esta mesma constatação:

“... o Espírito Santo se revela, ao mesmo tempo, como força unificante e força de expansão da Igreja. Antes de tudo, Ele cria a unidade na Igreja; reúne sobre o Monte Sião, conforme as profecias, a assembléia dos povos. Realiza no primeiro núcleo da Igreja de Jerusalém a unidade espiritual entre judeus e os prosélitos de todas as nações, em torno do único ensinamento e do mesmo Pão Eucarístico (cf. At 2, 42 ss).” 434

É claro que Lucas quando escreve o livro dos Atos dos Apóstolos não está

interessado em fazer uma crônica ou reportagem da vida da comunidade. Sua

finalidade é teológica, apesar de não podermos negar a base histórica que há em

seus escritos. O sumário de At 2, 42 é uma visão idealizada que este autor possui

da comunidade que brota do Espírito Santo. Sua intenção é a de apresentar um

projeto de como deve ser a comunidade daqueles/as que aderem ao projeto de

Jesus. Mas, que fique bem claro, para ele a comunhão fraterna imprime a

433 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 71. 434 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 66. Grifo nosso.

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identidade desta comunidade, sendo aquilo que a diferencia de outros grupos

sociais. Por isso, a palavra grega koinonia usada por Lucas neste relato expressa a

união dos cristãos, que se encontra baseada na mesma fé e no mesmo projeto de

vida. É um compromisso com Jesus, e que o Espírito Santo confirma com sua

força e luz. Este compromisso se traduz externa e concretamente pela

solidariedade material: “Todos os que abraçavam a fé eram unidos e colocavam

em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o

dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (2, 44-45). Na

compreensão de Lucas aderir a Jesus no Espírito suscita transformações radicais

na comunidade. Somente assim o projeto de Deus (liberdade e vida para todos)

pode ser concretizado no mundo. 435

3.1.12. A perseverança é igualmente um fruto do dom do Espírito

O elemento principal do sumário At 2, 42 é a perseverança. “A comunidade

persevera no empenho e no compromisso assumido por ocasião da conversão.

Esta não foi mero fogo de palha, mas a porta de entrada para uma nova forma de

viver, sempre se aprofundando e se expandindo.” 436 Como podemos notar a

comunidade era perseverante (assídua) ao ensinamento dos apóstolos, era

igualmente perseverante à comunhão fraterna, assim como à fração do pão e

finalmente perseverante às orações. Quem possibilita que esta primeira

comunidade cristã viva desta forma, apesar de todas as dificuldades que sabemos

ter enfrentado? É o Espírito Santo que dá a todo cristão/ã esta força para ser fiel

ao projeto de Deus comunicado ao mundo por Jesus de Nazaré. Sem o ânimo que

vem do Espírito, aquela comunidade não teria a capacidade de perseverar, pois

tudo era muito novo e difícil de ser vivido e praticado.

3.1.13. O dom do Espírito possibilita que a participação fundamental das mulheres seja uma realidade que marca toda Igreja nascente

Para Lucas “a participação das Mulheres nas atividades que dizem respeito à obra

do Senhor se dá não só através da comunidade de Jerusalém, mas de todas as que

435 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp. 42-43. 436 Ibid. p. 42. Grifo nosso.

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se formam a partir do anúncio feito por aquela.” 437 Estas mulheres participam,

ao lado dos homens, das primeiras comunidades cristãs e isto é confirmado por

alguns textos de Atos, onde encontramos Lucas destacando esta presença

feminina. No primeiro deles, já mencionado acima (1, 14-15), este autor nos diz

que homens e mulheres recebem o batismo do Espírito Santo. Assim como em

At 8, 12 vemos Lucas confirmando esta mesma prática com as seguintes palavras:

“Quando, porém, acreditaram em Filipe, que lhes anunciara a Boa Nova do Reino

de Deus e do nome de Jesus Cristo, homens e mulheres faziam-se batizar.” A

partir destes dois textos podemos concluir que homens e mulheres, recebendo o

batismo, formavam a igreja nascente. Mas, como é a atividade missionária desta

comunidade recém formada? É outro texto de Atos que nos ajuda a responder esta

questão. A partir dele podemos ver que a propagação da mensagem cristã é tão

fundamental, que toda ajuda é bem-vinda (cf. 2, 17-18: texto destacado no item

acima). Portanto, a concepção de ministério como serviço, para aquela

comunidade, não se encontra restrita a um determinado sexo, pois todos/as estão

empenhados e são aceitos/as como ministros da divulgação da mensagem do

Reino.

Há uma outra questão que podemos levantar: como acontecia a adesão à igreja

primitiva? É ainda Lucas que nos responde. Diz ele em At 5, 14: “Mais e mais

aderiam ao Senhor, pela fé, multidões de homens e mulheres.” Esta menção de

Lucas nos mostra que na igreja primitiva, muitos homens e muitas mulheres

aderiam à proposta de Jesus Cristo. Faziam esta adesão livremente e pela fé.

Podemos ainda nos perguntar: como agiam as comunidades cristãs diante da

perseguição? Lucas ao falar de Saulo, como perseguidor dos cristãos/ãs, em At 8,

3 afirma “Quanto a Saulo, detestava a Igreja: entrando pelas casas, arrancava

homens e mulheres e metia-os na prisão.” Podemos perceber que o Dom do

Espírito levava homens e mulheres a lutar ombro a ombro para colaborar na

construção do Reino. Faziam isto com coragem e assumindo todas as

conseqüências possíveis.

Além daquilo que já destacamos, podemos ainda perceber que as mulheres

exerciam funções de liderança nas comunidades primevas. Lucas destaca a

presença de Priscila, ao lado de seu marido Áquila, em Éfeso, como líder desta

437 SAOÛT, Y.; MILITELLO, C.; AMALADOS, M. apud BOFF, Lina. Op. cit., p. 108. Grifo nosso.

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comunidade (18,18), assim como nos fala de Lídia de Tiatira como chefe de

algumas das igrejas domésticas tão comuns no início da Igreja (16, 14).

Por todos estes pontos que Lucas faz questão de destacar em Atos, podemos

afirmar que a presença atuante da mulher num mundo sexista como o da

Palestina do século I foi valorizada devido ao dom do Espírito Santo. Isto leva-nos

a perceber que os primeiros cristãos/ãs haviam compreendido a mensagem de

Jesus Cristo: Deus é libertador e em seu Reino, homens e mulheres, não vivem

mais relações de dominação/dependência patriarcais, mas são pessoas que vivem

em presença do Deus vivo. Além disto, haviam captado através da práxis de Jesus,

onde imperava a igualdade de homens e mulheres, que todos os seres humanos

são chamados à idêntica vocação de filhos/as de Deus. Enfim, haviam

compreendido, pela ação do Espírito Santo, que o Deus revelado por e em Jesus

não suporta opressão, inferiorização, marginalização e segregação de nenhum de

seus filhos e filhas. 438

3.1.14. O Espírito Santo é o conselheiro da Igreja nascente para o discernimento sobre a vontade de Deus

Lucas não concebe o Espírito Santo separado da comunidade. Ele é o motor, a

força, a luz que guia e sustenta toda comunidade cristã e cada membro dela em

particular. 439 É ele que guia a Igreja em cada discernimento a ser tomado,

ilumina as decisões e corrobora o testemunho dos evangelizadores com sinais. É

esta “Força” misteriosa que cumprindo as promessas feitas por Jesus após sua

ressurreição (cf. At 1,8), assiste e conduz a comunidade de fé. 440 Podemos

constatar isto quando Lucas narra o “Concílio” de Jerusalém (15, 1-35). Na

análise de Ivo Storniolo “estamos no momento central do livro dos Atos e da

história da Igreja: a primeira reunião deliberativa para esclarecer e decidir a

teoria e a prática do cristianismo.” 441 Este é um momento decisivo para a Igreja

nascente que se questiona após a primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé:

para ser cristão, o pagão que abraça a fé em Jesus Cristo fica obrigado ao ritual da

438 TEPEDINO. A. M. As discípulas de Jesus... Op. cit., pp. 125-127. Para aprofundar o tema das mulheres como missionárias a partir do livro dos Atos dos Apóstolos recomendamos consultar BOFF, Lina. Op. cit., pp.118-134. 439 Cf. BOFF, Lina. Op. cit., p. 138. 440 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 69. 441 STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 131. Grifo nosso.

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circuncisão e à observância da lei judaica? Em outras palavras: para ser cristão/ã é

preciso antes se converter ao judaísmo? Se isto é necessário, então, a salvação

trazida por Jesus depende da pertença ao povo de Israel. Como podemos observar

a questão é fundamental para o cristianismo que começa a refletir sobre sua

própria identidade. Para nós, tais questões são tão óbvias que, muitas vezes não

penetramos a fundo na essência de tal momento e por isso, perdemos o que está aí

acontecendo e sendo gestado pela ação amorosa do Espírito. É neste momento

crucial, e diante de questões essenciais apresentadas à Igreja de Jerusalém, que

Pedro apresenta sua posição. Este é o argumento decisivo apresentado por ele: os

pagãos/ãs receberam o mesmo Espírito Santo que os judeus convertidos. Deus

“não faz distinção entre nós e eles, purificando seus corações pela fé.” (15, 9).

Tiago, diante da posição de Pedro, dá seu parecer com as seguintes palavras “Eis

porque, pessoalmente, julgo que não se devam molestar aqueles que, dentre os

gentios, se convertem a Deus.” (15, 19). O fruto dessa primeira reunião é o

esclarecimento de que a salvação cristã depende exclusivamente da fé em Jesus, e

que não é necessário antes ser judeu para depois tornar-se cristão/ã. 442

O que para nossa reflexão é fundamental destacar desta controvérsia apresentada à

Igreja de Jerusalém é o versículo 28 da carta apostólica escrita pelos apóstolos e

anciãos desta cidade (15, 22-29). Nela lemos “De fato, pareceu bem ao Espírito

Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso além destas coisas necessárias:”

Nesta fórmula “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” encontra-se expressa a

consciência daquela comunidade de que nem ela como um todo, nem menos quem

a preside, dispõem do Espírito Santo. Na realidade é ele quem guia a comunidade

por caminhos novos e impensados, desde que cada membro se abra a sua ação. 443

Logo, é o Espírito Santo quem possibilita à Igreja (o “nós” da fórmula destacada

acima) conhecer a vontade de Deus sobre o caminho que deve seguir em cada

momento histórico. Ele é o conselheiro da Igreja. Enfim, ele é o próprio

Discernimento em pessoa!

442 As restrições de 15,20 devem datar de outra ocasião e Lucas escrevendo tempos depois juntou tudo num único momento. Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., pp.131-. 133. 443 Cf. BOFF, Lina. Op. cit., p. 138.

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3.1.15. O dom do Espírito possibilita que a evangelização seja inculturada

O episódio de Paulo em Atenas, centro cultural e religioso do mundo grego, ocupa

outro lugar central no livro dos Atos. Com o discurso deste apóstolo, Lucas

procura demonstrar que o anúncio cristão está penetrando em outra cultura.

Deseja com isto mostrar como este anúncio será acolhido num ambiente idolátrico

e culturalmente importante. 444

“De pé, então, no meio do Areópago, Paulo falou: ‘Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição : Ao Deus desconhecido. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá a vida, respiração e tudo o mais. De um só ele fez toda a raça humana para habitar sobre toda face da terra, fixando os tempos anteriormente determinados e os limites do seu hábitat. Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo se às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um de nós. Pois, nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: Porque somos também de sua raça. Ora, se nós somos da raça divina, não podemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, a uma escultura de arte e engenho humanos. Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos.’ ” (17, 22-31)

Este discurso de Paulo nos apresenta o modelo da verdadeira evangelização

inculturada. 445 Podemos destacar como passos importantes desta evangelização:

a) Paulo parte da realidade que havia observado. Os gregos têm muita

religiosidade, mas não conhecem o Deus verdadeiro, que para eles é

desconhecido. É para esse “Deus desconhecido” que Paulo chama a atenção

dizendo que é a ele que anuncia (vv. 22-31); b) Depois passa a falar desse Deus

como sendo o Deus único, criador de tudo e autor da vida. Este Deus sendo o

autor da vida, não pode ser encerrado num santuário e nem receber nada das mãos

humanas. Com isto Paulo tenta aproximar as idéias já concebidas pelos filósofos

444 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 149. 445 Para o aprofundamento do tema “inculturação” indicamos o livro de MIRANDA M. F. Inculturação da Fé: uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001.

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gregos das revelações contidas nas Escrituras (vv. 24-26); c) Paulo continua e

mostra aos atenienses a finalidade da vida humana. Diz ele que esta finalidade,

buscar a Deus, encontra-se no homem. O homem pode descobri-lo nas realidades

e acontecimentos como que apalpando, pois tudo testemunha a presença e a ação

de Deus. É como se a humanidade habitasse num meio divino, pois “nele vivemos,

nos movemos e existimos”. Para se aproximar ainda mais de seus ouvintes Paulo

cita um poeta grego: “Somos da raça do próprio Deus.” A partir desta citação

Paulo explica que se somos da raça de Deus, não tem sentido adorar coisas,

mesmo que sejam preciosas (vv. 27-29); d) Somente a partir deste momento é que

Paulo faz o anúncio de Jesus Cristo e convida seus ouvintes à conversão (propõe

a vida nova que significava deixar os ídolos para servir o Deus vivo). Finalmente,

anuncia a ressurreição de Jesus, a grande novidade de seu anúncio. 446 Os gregos

entenderam muito bem a mensagem trazida por Paulo e a rejeitaram. Por isso,

Paulo se retira do meio deles (vv. 30-31). Entretanto, Lucas faz questão de

destacar que alguns acolheram o anúncio e se converteram (v. 34). Sendo assim, a

mensagem cristã começa a se abrir aos centros mais influentes daquela época,

atingindo, posteriormente, Roma e o extremo Ocidente. Podemos nos perguntar:

quem é o possibilitador desta abertura, desta expansão?

“Tal expansão, que significa muito mais do que uma mera difusão geográfica, capaz de quebrantar até mesmo barreiras sociais, étnicas e religiosas, não seria possível sem uma efetiva ação d’Aquele que torna a Igreja missionária, o Espírito Santo.” 447

Portanto, é a ação do Espírito Santo que possibilita que a Igreja missionária seja

capaz de comunicar a Boa Nova a partir da realidade que encontra, mas sem com

isto perder sua essência e identidade.

3.2. A Pneumatologia Paulina a partir da experiência histórica com o Espírito Santo

Toda a pneumatologia paulina brota da própria experiência de Paulo, homem de fé

incontestável e vivência cristã inquestionável, e igualmente das comunidades

446 Cf. STORNIOLO, I. Como ler Os Atos dos Apóstolos... Op. cit., p. 150-152. 447 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 74. Grifo nosso.

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cristãs com as quais ele mantém contato. Ninguém questiona a posição deste

homem como o maior pensador da história do cristianismo nascente, e como o

principal pneumatólogo do Segundo Testamento. Além disto, não podemos negar

que os grandes movimentos do pensamento cristão se desenvolveram sempre com

uma base em Paulo. 448 Alguns chegam a afirmar, com demasiado exagero, que o

cristianismo histórico é mais paulino do que cristão. Isto de certa forma chega a

ser uma ironia, visto que “todo o seu ministério foi dedicado a ocultar a si mesmo

por trás de Cristo com quem se identificava.” 449

Como vivem as comunidades fundadas e orientadas por este homem apaixonado

por Jesus e pela oferta gratuita de salvação que ele traz à humanidade? Como

experimentam a ação do Espírito de Deus e descobrem o rumo que o Espírito

traça para suas vidas? Como são capazes de discernir que espírito está agindo em

suas vidas, visto que nem tudo o que parecia ser do espírito era do Espírito de

Jesus? Como Paulo é capaz de perceber os critérios para fazer tal discernimento?

Podemos afirmar que é a partir daquilo que vive este homem, e daquilo que ele

observa nas comunidades cristãs, que irá lançar as bases da pneumatologia cristã.

Conhecemos Paulo e o pensamento paulino, sobretudo, por meio de suas cartas.

Isto porque os Atos dos Apóstolos, embora tragam muitas informações sobre a

obra e a personalidade de Paulo, obedecem a uma intenção mais teológica do que

estritamente historiográfica. Já pudemos destacar que nesse livro, concebido como

seqüência ou segunda parte do Evangelho, Lucas procura mostrar a atuação do

programa confiado por Jesus a seus discípulos/as antes de sua ascensão ao céu. 450

Além disso, é preciso lembrar-nos que as cartas de Paulo na realidade são uma

fase posterior de sua vida e das comunidades às quais escreve. Elas surgem da

impossibilidade de realizar uma visita pessoal onde levaria suas orientações às

comunidades em dificuldade e que, na grande maioria das vezes havia fundado

anteriormente. Desta forma, suas cartas são determinações ou linhas básicas para

problemas pastorais específico. Com isto Paulo busca esclarecer e animar os

grupos que haviam aderido ao anúncio de Jesus Cristo. 451 Estas orientações

continuam atuais, pois nos parece que as dificuldades enfrentadas pelas

448 Cf. McKENZIE, J. L. Op. cit., pp. 703-704. 449 Ibid. p. 703. 450 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 5. 451 Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Primeira Carta aos Tessalonicenses: Fé, Amor e Esperança. São Paulo: Paulus, 1991. pp. 7-8.

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comunidades no início do caminhar da Igreja continuam sendo muito parecidas

com as que enfrentamos ainda hoje. É claro que para aquelas comunidades, que

começam a trilhar um caminho novo, tudo é muito mais incerto, e, por isso, o

deixar-se conduzir pelo Espírito é fundamental. Coisa que continua ainda hoje

essencial para a vida da Igreja. É esta experiência carismática, que lentamente foi

sendo captada e discernida que encontramos relatadas nas epístolas paulinas.

Entretanto, não podemos esperar encontrar aí uma teologia do Espírito Santo

elaborada sistematicamente. Não nos esqueçamos que estamos nos albores do

cristianismo. Apesar disto, é possível colher de seus escritos os principais pontos

de sua pneumatologia. É o que nos propomos a seguir, tendo como nossa linha

mestre a afirmação de Bernd Jochen Hilberath que aponta como centro da teologia

paulina a concepção de que:

“O Crucificado Ressurreto em sua existência pneumática, que foi enviado pelo Pai em semelhança de carne para romper o poder do pecado, possibilita uma vida nova, que não está mais sob as condições da carne e da lei impotente por causa disso, mas segue a ‘lei do Espírito e da vida em Cristo Jesus’ (cf. Rm 8, 2s). Quem se vincula a esse Senhor ‘constitui com ele um só espírito’ (1 Cor 6, 17).”452

A seguir destacamos as principais características da reflexão paulina sobre o

Espírito Santo e os critérios de discernimento que este apóstolo vai cunhando a

partir de sua prática pastoral.

3.2.1. O primeiro fruto do Espírito, no tempo, é a Ressurreição de Cristo dentre os mortos, antecipação da Nova Criação Em sua carta aos Romanos por duas vezes Paulo diz que a ressurreição de Cristo é

fruto do Espírito: “estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição

dos mortos, segundo o Espírito de santidade, Jesus Cristo nosso Senhor,” (1,4) e

ainda “se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em

vós, aquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos dará vida também a

vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós.” (8,11). Para

Paulo foi o Espírito da vida que animou Jesus possibilitando sua ressurreição.

452 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 421

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Jürgen Moltmann ao comentar sobre esta percepção de Paulo, nos mostra que ela

é enfatizada de maneira particular nos testemunhos cristãos mais antigos (cf. Rm

1,1-4; 1 Tm 3,16; 1 Pd 3,18), estando em consonância com a apresentação da

ação temporal do Espírito segundo Ezequiel (cap. 37). Como já vimos

anteriormente, Ezequiel no capítulo 37 de seu livro, nos apresenta o Espírito como

uma criação que ressuscita os mortos e traz vida. Portanto, para os testemunhos

cristãos primitivos, e em especial para a pneumatologia paulina:

“Se Cristo, em nome de todos e à frente de todos, ‘foi despertado dos mortos’, então o agir nele do Espírito que ressuscita e que vivifica tem que ser entendido como a antecipação e o início da nova criação do mundo no final dos tempos. Cristo foi ressuscitado pela ruah Jahwe, a divina força da vida, de modo que sua ressurreição e sua presença com ‘aquele que vive’ é a revelação do Espírito de Deus, que há de transformar este mundo perecível num mundo de vida eterna. ”453

Esta consciência de Paulo encontra sua raiz última nas aparições do Ressuscitado

que foram experimentadas pelas mulheres, pelos discípulos, pelo próprio Paulo e

pelo João do Apocalipse. Nestas experiências excepcionais estes homens e

mulheres, são possuídos pelo Espírito da vida e Jesus lhes aparece no esplendor

da glória e do poder divinos. Na contemplação do Cristo ressurreto todos

experimentam a força vivificante do Espírito, assim como, é esta força vivificante

que os permite perceber que aquele mesmo que foi morto está plenamente vivo.454

Portanto, é a partir de sua própria experiência pessoal, do relato da experiência

com o ressuscitado que alguns/as viveram e, ainda, com base na tradição profética

(Ez 36) que Paulo é capaz de perceber que o Espírito que ressuscita Jesus,

possibilita o novo nascimento de tudo quanto vive e a Nova Criação de todas as

coisas.

3.2.2. A vida segundo o Espírito

Se o Espírito é vida e comunica vida para todos/as que estão condenados/as à

morte, 455 podemos afirmar que na pneumatologia paulina “sob formas variadas, a

experiência do Espírito é no fundo sempre a mesma: uma existência condenada e

453 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 72. 454 Cf. Ibid. 455 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 535.

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já marcada pela morte que dá lugar à vida.” 456 Mas, para Paulo isto não acontece

de maneira mágica, pois essa vida que nos é dada gratuitamente, “nos é dada na

luta, porque neste mundo temos do Espírito ainda apenas ‘o penhor’ (2 Cor 1,22;

5,5; Ef 1,14) e as ‘primícias’ (Rm 8,23).” 457

Paulo de forma paradoxal no início do capítulo 8 da carta aos Romanos afirma

que “A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da

morte.” (v.2). Em todo este capítulo ele pretende esclarecer aos romanos que eles

estão libertos da Lei e de tudo o que ela implica. Como então falar de Lei do

Espírito que liberta da Lei? Estaria Paulo substituindo uma Lei por outra? Na

realidade Paulo entende que a Lei do Espírito se identifica com o próprio Espírito

e que este é a força libertadora que possibilita os que crêem se libertarem do

regime da lei, do pecado e da morte. A seguir ele trabalha uma antítese de dois

projetos de existência:

“Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito. De fato, o desejo da carne é a morte, ao passo que o desejo do espírito é a vida e a paz, uma vez que o desejo da carne é inimigo de Deus: pois ele não se submete à lei de Deus, e nem pode, pois os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós não estais na carne, mas no espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós, pois quem não tem o Espírito de Cristo não pertence a ele. Se, porém, Cristo está em vós, o corpo está morto, pelo pecado, mas o Espírito é vida, pela justiça. E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós. Portanto, irmãos, somos devedores não à carne para vivermos segundo a carne. Pois se viverdes segundo a carne, morrerei, mas se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis.” (Rm 8, 5-13)

Todo o capítulo 8 desta carta pode ser resumido na expressão “a vida no Espírito”.

Na perícope acima Paulo quer deixar claro que o Espírito é vida e comunica a

vida. 458 Com tal objetivo mostra que existem dois projetos de existência: a “vida

segundo a carne” e a “vida segundo o espírito”. Estas duas expressões usadas por

Paulo já causaram muitos mal entendidos dentro e fora do cristianismo. Isto

aconteceu no início do cristianismo e, infelizmente, ainda acontece nos dias de

hoje, a partir da visão dualista, que penetrou na fé cristã devido à necessária

456 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 303. Grifo nosso. 457 GUILLET, J. Verbete “Espírito de Deus” in: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., pp. 303-304. 458 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 535.

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mediação cultural do helenismo. Este dualismo acabou inspirando um

espiritualismo desencarnado, 459 algo totalmente contrário ao pensamento cristão

e paulino. Portanto, se faz necessário esclarecer que para o “apóstolo dos gentios”

o vocábulo sárx, “carne”, está associado ao “pecado”, à “fraqueza” ou

“impotência”, e à “morte” (vv. 3. 6. 13). Desta forma, a carne, na perspectiva

paulina, se opõe ao Espírito e a Deus (vv. 7.8). Paulo não opõe sôma, “corpo”, a

pneuma, “espírito”. Podemos confirmar isto, a partir do texto acima, onde ele

chega a dizer que diferentemente da carne, o corpo está destinado à ressurreição

graças à presença do Espírito (v. 11). Para Paulo há duas lógicas contrapostas

que inspiram as pessoas que vivem “segundo a carne” e aquelas que vivem

“segundo o Espírito”. São dois projetos de vida antitéticos: um conduz à morte e

o outro, ao contrário, conduz à vida e à paz. 460 Concordando com este

pensamento José Bortolini nos esclarece que para Paulo, ‘carne’ é a pessoa

abandonada a si própria e a seu egoísmo, fazendo de si mesma um ídolo ou

adoradora de ídolos. Quem “vive segundo a carne” põe-se como centro de tudo,

pautando sua vida por critérios contrários aos de Jesus, que foram os critérios da

doação e entrega aos outros. De maneira oposta, a “vida segundo o Espírito” é a

vida vivida como Jesus a viveu, doando-se plenamente. Paulo entende que é o

mesmo Espírito que animou toda a vida de Jesus, que agora se manifesta na vida

dos cristãos/ãs, ajudando-os a recordar tudo o que o Mestre fez, a fim de que

possam dar continuidade ao projeto de Deus. “Ser existência espiritual significa

para Paulo: ‘Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gl 2,20).”461

Sendo assim, há uma incompatibilidade entre “vida segundo o Espírito” e a “vida

segundo a carne”, antítese que encontramos ao longo dos escritos de Paulo. A

459 Espiritualismo desencarnado é o cultivo do espírito à custa da negação ou desvalorização da corporeidade. Esta é uma deturpação decorrente do dualismo e que penetrou na fé cristã. Segundo Alfonso García Rubio na fé verdadeiramente cristã “O corpo deve ser valorizado e cuidado, pois faz parte da perfeição do ser humano. O corpo, convém insistir, é comunicação e expressão, mediação do encontro-relação com as outras pessoas, com o mundo e certamente com Deus. Todavia, a corporeidade é uma dimensão a ser integrada na globalidade de dimensões que é o ser pessoal. O cuidado e a preocupação com o corpo deve estar a serviço do projeto pessoal de vida. A acentuação unilateral do valor da corporeidade empobrece e mutila o ser humano tanto quanto a acentuação unilateral do valor da dimensão espiritual.” GARCÍA RUBIO, A. Evangelização e maturidade afetiva. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 101. 460 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 535- 536. 461 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 424.

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primeira conduz à vida e a segunda conduz à morte. 462 Portanto, o Espírito que é

vida, nos conduz à Vida.

3.2.3. Paulo tem consciência que seu ministério apostólico e as comunidades cristãs transcorrem sob a ação do Espírito Santo

Vejamos o que nos diz Paulo no primeiro escrito do Segundo Evangelho e,

obviamente, no primeiro texto escrito por ele que chegou às nossas mãos:

“Sabemos, irmãos amados de Deus, que sois do número dos eleitos porque o

nosso Evangelho vos foi pregado não somente com palavras, mas com grande

eficácia no Espírito Santo e com toda convicção.” (1 Ts 1, 4-5). Ainda nesta

mesma linha de pensamento podemos destacar as palavras de Paulo aos coríntios:

“minha palavra e minha pregação nada tinham da persuasiva linguagem da

sabedoria, mas eram uma demonstração do Espírito e poder, a fim de que a vossa

fé não se baseie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.” (1 Cor 2, 4-5).

Portanto, para Paulo o verdadeiro ministério apostólico só transcorre sob a ação

do Espírito Santo. Além disso, o apóstolo dos gentios tem certeza de que as

comunidades cristãs são igualmente impulsionadas pela ação do Santo Espírito. É,

sobretudo, na comunidade de Corinto onde se encontra o quadro mais exuberante

da espiritualidade carismática e da fecundidade de dons e carismas do Espírito

vividos pelos fiéis cristãos/ãs da primeira hora. A partir desta comunidade

podemos traçar a dimensão pneumático-carismática da Igreja nascente, tão cara à

teologia paulina e de extrema atualidade para os cristãos/ãs que ousam desvelar o

mistério de Deus que intervém no mundo, pela ação de seu Espírito. Para Paulo o

Espírito Santo é uma presença operante nas comunidades cristãs. 463

Se aplicarmos hoje este princípio paulino podemos afirmar que o verdadeiro

ministério da Igreja só acontece quando o ministro/a ordenado ou não, ou o/a

agente pastoral, se este ou esta se deixa conduzir pela ação do Espírito Santo. Sem

isso o que acontece é simplesmente vaidade pessoal, é retórica vazia que muitas

vezes reproduz na comunidade cristã e no mundo, o tipo de sociedade injusta e

desigual que o cristianismo busca transformar.

462 Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos: o evangelho é a força de Deus que salva. São Paulo: Paulus, 1997. pp. 57-58. 463 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 76-77

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3.2.4. O dom do Espírito se realiza na economia da fé e não da lei

Paulo encontra-se diante da ofensiva dos missionários judeu-cristãos que se

manifesta na Galácia. Eles são os judaizantes, pessoas que estão semeando

confusão nas Igrejas desta região querendo deturpar o Evangelho de Cristo (Gl 1,

6-7). Desta forma, ameaçam a liberdade do Evangelho. Eles pregam que a

condição prévia para alguém fazer parte do povo dos salvos é a circuncisão, que

Deus exigiu de Abraão e de sua descendência. Logo, os judaizantes, defendem

que a fé em Jesus Cristo não pode prescindir das “obras da lei”, a saber, a

observância de todas as prescrições dadas por Deus a seu povo. A documentação

mais ampla e detalhada que temos sobre esta “crise” se encontra na carta enviada

por Paulo aos gálatas. Nela, Paulo precisa esclarecer dois pontos fundamentais: o

primeiro é sobre sua legitimidade e autoridade como Apóstolo ou “servo de

Cristo”, e o segundo diz respeito à “liberdade do Evangelho”. 464 Para nosso

objetivo é no segundo ponto que devemos nos deter. Os gálatas acolheram com

grande entusiasmo esta Boa Notícia de vida nova e liberdade trazida por Jesus e

possibilitada pelo Espírito. Paulo lembra-lhes que “no passado, quando vocês

não conheciam a Deus, eram escravos de deuses, que na realidade não são

deuses” (Gl 4,8). Depois do anúncio trazido por este apóstolo acontece uma

maravilhosa transformação na vida dos gálatas, pois os excluídos/as começam a

fazer parte do povo de Deus, sem precisar passar pela circuncisão e pela Lei de

Moisés. 465 Paulo, então, pergunta a estes homens e mulheres, que se encontravam

desorientados diante da investida dos judaizantes:

“Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foram delineados os traços de Jesus Cristo crucificado? Só isto quero saber de vós: foi pelas obras da Lei que recebestes o Espírito ou pela adesão à fé? São tão insensatos que, tendo começado com o espírito, agora acabais na carne? Foi em vão que experimentastes tão grandes coisas? Se é que foi em vão! Aquele que vos concede o Espírito e opera milagres entre vós o faz pelas obras da Lei ou pela

464 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 437- 439. 465 Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Gálatas: Evangelho é liberdade. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1991. p. 34.

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adesão da fé?”[...] “Ora, a Lei não é pela fé, mas: quem pratica essas coisas por ela viverá. Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro, a fim de que a bênção de Abraão em Cristo Jesus se estenda aos gentios, e para que, pela fé recebamos o espírito prometido.” (Gl 3, 1-5. 12-14)

Paulo lembra-lhes que antes deles conhecerem a Lei, (não esqueçamos que eles

eram gentios) Jesus Cristo morreu por eles/as, a fim de salvá-los/as deste mundo

de escravidão. Crendo em Jesus, isto é, pela fé, receberam o Espírito Santo e

fizeram experiências extraordinárias de vida nova. Entretanto, dando ouvidos aos

judaizantes estão caindo, insensatamente, na escravidão da Lei, o que torna inútil

a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. 466 Além disto, mostra aos gálatas que

o dom do Espírito, em dependência da redenção pela cruz de Cristo, realiza a

promessa feita a Abraão, promessa ligada à fé e não à Lei. 467 Paulo continua sua

argumentação lembrando-lhes que:

“É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei livres, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão. Atenção! Eu, Paulo, vos digo: se vos fizerdes circuncidar, Cristo de nada vos servirá. Declaro de novo a todo homem que se faz circundar: ele é obrigado a observar toda lei. Rompestes com Cristo, vós que buscai a justiça na Lei; caíste fora da graça. Nós, com efeito, aguardamos, no Espírito, a esperança da justiça que vem da fé. Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão, mas apenas a fé agindo pela justiça.” (Gl 5,1-6.).

Toda esta argumentação de Paulo, e por que não dizer, toda a carta aos gálatas se

resume numa única frase: “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente

livres”. 468 “Escravidão” é desta forma que Paulo descreve a vida baseada na Lei.

Enquanto que “Liberdade” para ele é a vida segundo o Espírito, pois “onde se

acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2 Cor 3, 17b). 469

3.2.5. O dom do Espírito nos liberta para a verdadeira Liberdade

Apesar de Paulo estar convicto de que a liberdade é uma das características

fundamentais do Espírito havia muito mal entendido entre os coríntios em relação

a esta liberdade. A ruptura com o passado favorecia com que algumas pessoas da

466 Cf. Ibid. p. 33. 467 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 49. 468 CF. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Gálatas... Op. cit., p. 29 469 Ibid. p. 36.

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comunidade se sentissem finalmente livres do jugo da Lei, chegando a dizer:

“Tudo me é permitido!” (1 Cor 6,12). Desta forma em nome da liberdade do

Espírito, faziam o que bem entendiam e chegavam a atitudes que nem os pagãos

tinham: “Só se ouve falar de imoralidade entre vós, e imoralidade tal que não se

encontra nem entre os gentios: um de vós vive com a mulher de seu pai!” (1Cor

5,1). 470 As pessoas que assim agiam acreditavam que podiam fazer tudo o que

queriam. Este é o risco que se corre quando a vida no Espírito fica solta e

desligada da história do povo e da pessoa de Jesus. 471 Paulo então precisa alertar

os coríntios dizendo “Tudo me é permitido, mas não me deixarei escravizar por

coisa alguma” (v. 12b). Portanto, a Liberdade que nos vem do Espírito é aquela

que nos torna livres para escolher aquilo que não nos escraviza.

3.2.6. A ação do Espírito é universal

Paulo encontra-se diante do dilema pelo qual passa a comunidade dos gálatas:

deve-se viver sob o regime da Lei que aprisiona, ou sob o regime da fé em Cristo

que liberta o cristão/ã de todas as amarras do legalismo? Esta maravilhosa

liberdade conquistada por Cristo é infundida pelo Espírito no batismo de todos/as

que fazem esta adesão pela fé e que o desejam livremente. É a partir desta

dificuldade que o “apóstolo dos gentios” amplia a ação do Espírito Santo a

todos/as:

“Antes que chegasse a fé, nós éramos guardados sob a tutela da Lei para a fé que haveria de se revelar. Assim a Lei tornou nosso pedagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Chegada, porém, a fé, não estamos mais sob pedagogo; vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos vós que foste batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 23-28).

Paulo afirma no v. 28, que é uma fórmula batismal da igreja nascente, que depois

de receber o Espírito no batismo nos revestimos de Cristo e, portanto, não existem

mais diferenças entre aqueles/as que recebem o mesmo Espírito. Ele é derramado

sobre todos/as não fazendo distinção de pessoa. Não podemos esquecer que o rito

470 MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 28. 471 Cf. Ibid. p. 30.

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de iniciação judaico é a circuncisão, rito sexista e que privilegia um único povo, o

povo de Israel. Diante disto, Paulo lembra aos gálatas que a liberdade trazida por

Jesus Cristo não fica “presa às fronteiras da distância geográfica, da pertença

racial, étnica ou familiar, ou sexual, da Lei que aprisiona e não liberta.” 472

Portanto, é o Espírito que opera a igualdade entre todos os seres humanos, porque

ele age igualmente em todos/as e lhes dá a possibilidade de ser um em Cristo

Jesus.

3.2.7. O Espírito nos constitui filhos e filhas de Deus

Paulo desenvolve o tema da filiação divina como um fruto da morte-ressurreição

de Jesus e da efusão do Espírito Santo, sobre o ser humano que crê em Jesus

Cristo. Sendo assim, todos/as que se deixam conduzir pelo Espírito poderão ter

acesso ao projeto de Deus que é vida e liberdade para seus filhos e filhas. Por

Jesus e no Espírito somos filhos/as e herdeiros/as deste projeto do Pai. É claro

que para Paulo o Espírito é dádiva da fé. Ele entende que o/a crente morre e

ressuscita com Cristo no batismo, e desta forma recebe o Espírito que o/a torna

filho e filha livre do Pai. 473

“Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados.” (Rm 8,14-17) “E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai! De modo que já não és escravo, mas filho. E se és filho, és também herdeiro, graças a Deus.” (Gl 4, 6-7)

Como já vimos no segundo capítulo desta dissertação é o Espírito que faz da

humanidade de Jesus uma humanidade completa de Filho de Deus. “De modo

semelhante faz de nós, carnais que somos de nascença, filhos de Deus: filhos no

Filho, chamados a herdar com ele, a dizer depois dele ‘Abbá, Pai!’ [...] Assim o

472 BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade)... Op. cit., p. 94. 473 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Op. cit., p. 422.

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próprio Deus se comunica conosco, se torna ativo em nós para aí suscitar os atos

da vida filial, os de ‘Cristo em nós’.” 474

É o Espírito que gera a adoção filial, pelos méritos de Jesus Cristo. Desta forma, é

possível uma nova maneira de relacionamento entre as pessoas, pois somos todos

irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai. O Espírito é o motor da

transformação, aquele que traz vida nova de filhos/as a todos/as que abandonam o

egoísmo (subjetividade fechada) e se deixam guiar por sua ação amorosa.

Segundo Yves Congar ser filho/a de Deus no Filho é o fruto próprio do Espírito,

princípio de nossa vida escatológica (cf 1 Cor 15, 44s). 475 A partir daí podemos

afirmar que todos os frutos do Espírito que Paulo irá elencar em suas cartas são

frutos deste Fruto: somos filhos/as de Deus, portanto, herdeiros/as de seus dons e

da vida eterna! Mas, como discernir o caminho da libertação que nos levará à vida

eterna? Para responder esta questão fundamental Paulo elabora alguns critérios de

discernimento que encontramos espalhados por suas cartas.

3.2.8. O Espírito leva o ser humano a uma práxis libertadora

Para Paulo a filiação divina e a vida no Espírito não são atributos mágicos

recebidos de Deus. O que significa dizer que, tanto uma quanto a outra, não

dispensam o cristão/ã da luta pelas transformações necessárias na sociedade,

tornando-a mais justa e fraterna. Da mesma forma não os/as dispensa de lutar por

sua própria libertação definitiva. Isto porque, ser filho/a de Deus e possuir os

primeiros frutos do Espírito, significa ter a possibilidade de gerar e iluminar um

mundo novo. 476

O Espírito é algo que se sabe e se conhece por experiência. Mas, fazer esta

experiência pode levar o cristão/ã a correr o risco de deleitar-se em tal experiência

imobilizando-o, diante da necessária ação efetiva e eficaz que transforma a

sociedade. 477 É isto o que está acontecendo entre os cristãos/ãs de Corinto.

Muitos se deleitam nas experiências espirituais e se esquecem que, se é realmente

o Espírito de Deus que estão experimentando devem transformar a sociedade

474 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 52. Grifo nosso. 475 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 53. 476 BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos... Op. cit., pp. 60-61. 477 Cf. BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade)... Op. cit., p. 94.

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injusta em que vivem. Esta transformação deve começar no meio deles. Paulo

chama a atenção para aquilo que está acontecendo quando celebram a Ceia do

Senhor.

“Dito isto, não posso louvar-vos: vossas assembléias, longe de vos levar ao melhor, vos prejudicam. Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis em assembléia há entre vós divisões, e, em parte, o creio. É preciso que haja mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados. Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor, cada um se apressa a comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado. (1 Cor 11, 17-21)

Segundo Paulo, esta comunidade quando se reúne para celebrar o memorial de

Jesus está reproduzindo dentro da própria comunidade a sociedade injusta onde

vivem. Os coríntios haviam perdido de vista a perspectiva transformadora como

possibilidade que lhes é dada pelo dom do Espírito. Esquecem que ser filho/a de

Deus implica necessariamente numa comunhão com Jesus e com as outras

pessoas. Uma coisa não é possível sem a outra. É esta a denúncia do apóstolo que

encontramos em 1 Cor 11, 17-34: se não há comunhão na vida do dia-dia não há

comunhão eucarística! Conseqüentemente, podemos desconfiar das celebrações

eucarísticas que não levam à transformação pessoal, comunitária e social. 478

3.2.9. A oração cristã é uma ação do Espírito Santo

Paulo precisa esclarecer como, concretamente, na vida do dia-a-dia da

comunidade e de cada cristão/ã é possível escolher o caminho a seguir para

viabilizar o projeto do Pai. Qual o caminho que nos leva à libertação e à vida em

abundância? Para o “apóstolo dos gentios” é o Espírito, que vindo em auxílio de

nossa fraqueza, nos faz relembrar o caminho indicado por Jesus através de sua

práxis e pregação. É o Espírito que, em nós, fala a Deus aquilo que precisamos e

escuta dele suas orientações.

“Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos.” (Rm 8, 26-27)

478 Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., p. 57

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Não sabemos o que pedir a Deus para concretizar uma vida verdadeiramente

cristã. Muitas vezes nossos pedidos não estão em sintonia com o projeto do Pai:

Vida e Liberdade para todos/as. Na maioria das vezes nossa oração se resume a

pedidos egoístas que não nos realizam como seres humanos. Não sabemos louvar,

não sabemos agradecer, não sabemos olhar em volta para pedir o que realmente é

necessário. Além disto, esquecemos de concretizar na vida aquilo que rezamos.

Esta postura é o resultado da visão dualista que penetrou no cristianismo, e que

leva a pessoa a não conseguir integrar oração e ação, como se fossem realidades

opostas e excludentes. Entretanto, a oração de nosso Mestre, como já destacamos

no capítulo anterior, sempre esteve intimamente vinculada aos acontecimentos de

sua vida, assim como sua vida sempre foi o reflexo de sua oração. Mística

(oração) e prática concreta (ação) encontravam-se articuladas na vida do

Nazareno, uma alimentando a outra, sem dualismos mutiladores. Portanto, não

percebemos na oração de Jesus qualquer forma de alienação ou fuga, pois a

oração feita por ele fecunda sua vida, e esta por sua vez, está aberta diretamente à

oração. Portanto, a oração do cristão/ã, a exemplo de seu Mestre, deve estar aberta

diretamente à ação concreta daquilo que reza, assumindo-a, fecundando-a,

iluminando-a etc. E por sua vez, sua ação deve repercutir diretamente em sua

oração, ajudando-o a se tornar mais disponível em relação à vontade de Deus e

mais solidário com a caminhada dos irmãos/ãs. Esta oração deve influenciar

novamente a ação e vice-versa, num dinamismo próprio à unicidade da vida cristã

da pessoa. 479 Exatamente por isso, a oração do cristão/ã deve ter na oração feita

por Jesus o seu modelo. Paulo em total sintonia com a práxis de Jesus percebe que

a verdadeira oração cristã só pode ser feita no Espírito. Se, é o Espírito Santo

que suscitada no coração de Jesus a palavra Abbá para se dirigir a Deus, se é ele

que provoca a oração de louvor, de exultação, de agradecimento, de angústia, de

tristeza, e de suprema oferenda de Jesus, então, é este mesmo Espírito que deve

estar no cristão/ã quando este/a ora. Portanto, “o Espírito é o intérprete de nossos

sentimentos mais íntimos, tornando-se o porta-voz da súplica de quantos lutam

pelo mundo novo.” 480 O Espírito é a melhor oração de súplica, de agradecimento

ou de louvor do cristão/ã. É ao mesmo tempo o maior conforto para sua

479 Cf. GARCÍA RUBIO, A. Unidade na Pluralidade... Op. cit., p. 108. 480 BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos... Op. cit., p. 62.

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esperança. Finalmente ele é aquele que intercede por nós com gemidos que as

palavras não conseguem explicar. São suas as palavras que em nós chegam a

Deus, pois elas estão em perfeita harmonia com a vontade de nosso Pai. 481

3.2.10. O Espírito possibilita o verdadeiro conhecimento de Deus e a confissão autêntica de Cristo

Entre os vários problemas, tensões e conflitos que encontramos na comunidade de

Corinto, podemos destacar a pretensão de alguns que acreditam ter o monopólio

da sabedoria. A ideologia de uma sabedoria elitista cria nas outras pessoas, que

acreditam não possuí-la, um complexo de inferioridade, colocando-as à margem.

A tal ponto isto acontece nesta comunidade que, na oração de agradecimento que

há no início da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1, 4-9), ele deseja

alertar que a sabedoria foi revelada a todos os crentes, sem que somente alguns

privilegiados/as a possuam. 482 Diz ele: “Dou incessantemente graças a Deus a

vosso respeito, em vista da graça de Deus que vos foi dada em Cristo Jesus. Pois

fostes nele cumulados de todas as riquezas, todas as da palavra e todas as do

conhecimento.” (vv. 4-6).

A busca do saber que havia em Corinto e que privilegia uns/as em detrimento dos

outros/as, encontra sua raiz última na concepção pagã de sabedoria. Nesta visão o

sábio/a é uma pessoa bonita, livre, famosa e rica, sendo um pouco inferior a Zeus,

o deus mais importante no mundo grego. Sendo assim, não deveria trabalhar,

vivendo de privilégios e à custa das outras pessoas. Além disso, conhecia os

mistérios do mundo, sabendo, inclusive, interpretar a vontade divina.

Conseqüentemente, o sábio/a encontrava-se mais perto de Deus. Poucos podiam

ser sábios/as, pois, isso dependia do capricho dos deuses que escolhiam somente

raríssimas pessoas que se viam dotadas de tal sabedoria. Paulo acha isso tudo

inconcebível, pois para ele a sabedoria é o sentido da vida que Deus pôs em toda

criação. Todos/as têm acesso a esta sabedoria, principalmente os mais pobres e

os marginalizados/as pela sociedade. Estes homens e mulheres possuem a

sabedoria de Deus, e não somente alguns/as “escolhidos/as” por Deus. 483 É diante

481 Cf. BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos romanos... Op. cit., p. 62. 482 Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., 21-22. 483 Cf. Ibid. p. 24-25.

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da “sabedoria dos grandes”, aquela que está distorcendo a fé em Jesus Cristo

crucificado, que Paulo escreve:

“A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus.”! (1 Cor 2, 10-11) “Por isto, eu vos declaro que ninguém, falando com o Espírito de Deus diz: ‘Anátema seja Jesus!’, e ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no Espírito Santo.” (1 Cor 12, 3)

Portanto, para o cristão/ã esta é a sabedoria que deve ser buscada, aquela que lhe é

infundida pelo Espírito e que lhe permite reconhecer Jesus Cristo como Senhor,

isto é, como Deus e nosso salvador. Paulo, então explica qual é a verdadeira

sabedoria cristã, aquela que se opõe a sabedoria do mundo.

“Pois está escrito: ‘Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o homem culto? ’ Onde está o argumentador deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, [...] mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens. [...] Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios [...] a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus. Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se glorie, glorie-se no Senhor.” (1 Cor 1, 19-21a. 24-25a. 29-31)

Jesus é a sabedoria de Deus, aquela que não é reconhecida pelas pessoas que

desejam e crêem ter a sabedoria do mundo (esta traz privilégios). Deus revelou a

verdadeira sabedoria ao mundo por meio de Jesus Cristo crucificado e este a

comunica aos fiéis mediante seu Espírito. 484 Esta sabedoria que se apresenta na

cruz de Cristo é aquela que nos revela um Deus que subverte os projetos humanos

de sabedoria. É o Espírito Santo que possibilita ao crente ver na cruz de Cristo, a

entrega total de Deus que se fez como um de nós, por amor e para nossa salvação.

Descobrir esta verdade é encontrar a sabedoria que leva homens e mulheres a

experimentarem que existe um sentido para suas vidas. Este sentido encontra-se

em viver este amor até as últimas conseqüências.

484 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 464-465.

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3.2.11. O Espírito tem uma função decisiva na construção da Igreja e na sua unidade, assim como na comunhão entre todos os seus membros

Como acabamos de ver a comunidade cristã de Corinto apresenta vários tipos de

tensões e desordens. Uma delas é a divisão interna que se dá depois da partida de

Paulo. Um dos prováveis motivos dessa tensão é pelo fato da comunidade ser

composta por pessoas com acentuadas diferenças econômicas, sociais, culturais,

raciais, etc. 485 A partir daí formam-se vários grupos que começam a se contrapor

a outros, apelando para um personagem de prestígio entre os pregadores

itinerantes ou líderes históricos (1 Cor 1,10-12). Com isto os cristãos/ãs de

Corinto estão reproduzindo o tipo de sociedade que privilegia as pessoas que têm

mais prestígio. Instala-se entre eles/as a inveja e a discórdia. Podemos dizer que

esta igreja passa pela crise da unidade e coesão eclesial. 486 Diante disto Paulo se

pronuncia:

“Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim também acontece com Cristo. Pois, fomos batizados num só Espírito para ser um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só Espírito.” (1 Cor, 12, 12-13).

Com base na perícope acima podemos afirmar que Paulo tem consciência que

todas as divisões deixam de existir desde o momento em que a pessoa se torna

igreja, isto é, um corpo bem unido. Os cristãos/ãs de Corinto precisam perceber

que com o batismo no mesmo Espírito as divisões, sejam elas entre judeus e

gregos, entre escravos e livres, ou de qualquer natureza, não podem mais existir.

Eles/as, através do batismo, morreram com Cristo e renasceram com ele, pelo

Espírito, tornando-se homens e mulheres novos. Este “novo ser”,

necessariamente, tem um novo modo de se relacionar com Deus e com as outras

pessoas, o que gera um novo tipo de sociedade que aceitando as diferenças é

capaz de viver na unidade. 487 Portanto, para Paulo é o Espírito quem possibita a

unidade na Igreja.

485 Para conhecer um pouco mais a comunidade cristã de Corinto consultar FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 379-386. 486 Cf. Ibid. pp. 462-463. 487 Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., pp. 24-25.

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Em decorrência do v. 13 podemos ainda afirmar que a koinonia (comunhão)

possibilitada pelo Espírito é uma meta a ser almejada por aqueles/as que a partir

do batismo, passaram a formar “um só corpo”, pois o mesmo Espírito nos põe em

contato não só com o Pai e o Filho, mas também com todos os membros da

comunidade eclesial. A tal ponto isso está no pensamento paulino que ele chega a

desejar aos cristãos/ãs de Corinto: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai

e a comunhão (koinonia) do Espírito estejam com todos vós.” (2 Cor 13,13). Esta

é a espiritualidade da comunhão que encontramos em Paulo. 488

Para o “apóstolo dos gentios” a existência cristã nasce com o batismo. Entretanto,

a fé em Jesus Ressuscitado antecede este sinal sagrado, pois é pela fé que

recebemos o Espírito prometido (cf. Gl 3, 14). Mas, o que significa fé para Paulo?

Seria somente um assentimento intelectual à pessoa de Jesus ressuscitado? Seria

um dom recebido que não daria frutos? Para ele é possível haver fé sem obras? As

obras sem fé têm algum valor? Estas questões já causaram condenações na Igreja

com efeito divisor. Não esqueçamos que a Doutrina da Justificação teve

importância central para a Reforma luterana do século XVI. Como estas questões

são fundamentais para nosso tema, não podemos deixar de tocar nelas. Nosso

escopo é o de demonstrar que a pneumatologia do Segundo Testamento afirma

que devemos viver uma vida no e pelo Espírito que nos aproxima do tipo de vida

vivida por Jesus. O que significa dizer que viver no e pelo Espírito é deixar-se

cristificar por ele, vivendo desta forma as mesmas opções concretas que o

nazareno viveu. Mas, para demonstramos isso é preciso entender o que significa a

fé que segundo Paulo nos leva a aceitar o batismo e a participar da celebração da

partilha do pão, constituindo-nos em Igreja. Segundo John Mackenzie:

“O conteúdo da fé cristã para Paulo era que Jesus é o Cristo (Messias), Senhor, Filho de Deus, que morreu e mediante a sua morte livrou-nos de nossos pecados, ressurgiu da morte e por meio de sua ressurreição comunica a nova vida àqueles que crêem nele e são batizados. [...] Ninguém, ao observar a lei sem fé no Senhor Jesus, pode alcançar a justiça prometida àqueles que crêem. [...] Mas a fé implicava obrigações e ‘obras’ próprias a ela. Paulo nunca professou uma fé que fosse mero sentimento inoperante. Aquele que crê com o coração também deve confessar com a boca (Rm 10,9); a fé deve ser externada ao menos pela profissão pública. Duas vezes resume todas as obrigações da lei no único mandamento de amor ao próximo. (Rm 13,8-10; Gl 5, 6.14).” 489

488 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 83. 489 McKENZIE, J. L. Op. cit., p. 342.

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Concordando com este pensamento sobre o significado de fé em Paulo, Jean

Duplacy nos diz que para este apóstolo:

“o homem é justificado pela fé sem as obras da Lei (Rm 3,28; Gl 2,16). Essa afirmação de Paulo proclama a inutilidade das práticas da Lei sob o regime da fé, mais que isto, em maior profundidade ainda, ela significa que a salvação não é jamais algo de devido, mas uma graça de Deus recebida pela fé (Rm 4,4-8). Claro que Paulo não ignora que a fé deve ‘operar’ (Gl 5,6; cf. Tg 2,14-26) na docilidade ao Espírito recebido por ocasião do Batismo (Gl 5,13-26;. Rm 6; 8,1-13). 490

Esta fé operante transforma internamente o/a crente: “Mas vós vos lavastes, mas

fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso

Deus.” (1 Cor 6, 11). Portanto, podemos dizer que fé para Paulo é dom do Espírito

e resposta humana possibilitada pela vida-morte-ressurreição de Cristo, através

do Espírito, resposta que se concretiza no amor serviço àqueles/as que mais

necessitam de nós.

Além do batismo, e da fé necessária para recebê-lo, Paulo nos aponta como o

centro da comunidade eclesial, a “ceia do Senhor” (1 Cor 11, 23-27). Yves

Congar ao comentar este aspecto da teologia paulina nos diz que “aquele que se

une ao corpo glorioso de Cristo, inteiramente penetrado do Espírito, pela fé viva,

pelo batismo, pelo pão e pelo cálice da última ceia, torna-se espiritualmente –

realmente – um membro de Cristo: torna-se corpo com ele no plano da vida filial

que promete a herança de Deus.” 491 Portanto, na Igreja apresentada por Paulo se

entra pela fé (cf. Rm 4,13-24), através do batismo (cf. 1 Cor 12, 13), sendo o

centro da comunidade eclesial, a ceia do Senhor. 492 Todo este processo é tornado

realidade no Espírito. É o Espírito quem incorpora os crentes a Cristo e a Igreja,

seu Corpo místico. Somente enxertados neste Corpo através do batismo,

configurados ao Ressuscitado por meio do Espírito, os homens e mulheres de fé

tornam-se idôneos para a participação na Ceia do Senhor. 493 Perguntamo-nos: o

que significa tornar-se idôneo? Acreditamos que seja um processo pelo qual vive

todo homem e mulher que se abre à graça divina, processo que damos o nome de

santificação. A “causa meritória” da santificação do crente é Jesus Cristo, porém a

490 DUPLACY J. Verbete “Fé”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. Cit., pp. 343-344. 491 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 53. 492 Cf. TEPEDINO, A. M. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus Cristo (Eclesiologia)... Op. cit., p. 33 493 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 81-82. Grifo nosso.

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“causa eficiente” é o Espírito Santo, pois ele é o agente de nossa união com o

Senhor ressuscitado (Rm 15, 14). Somente a pessoa que vive este processo de

santificação, que nada tem a ver com a perfeição no sentido mundano do termo,

está apta a sentar-se à mesa da Eucaristia e partilhar o pão com os irmãos.

Yves Congar chama-nos a atenção para o seguinte aspecto: o “corpo de Cristo que

os fiéis formam na terra precisa ser construído: 1 Cor 3,9; Ef 2,20; 4,12. Assim, o

que se constrói é ‘morada de Deus pelo Espírito’ (Ef 2,22), uma ‘casa espiritual’,

um templo onde é oferecido a Deus um culto espiritual (1 Pd 2,5s; Fl 3,3).” 494 Por

isso, afirmamos que para Paulo a comunidade cristã, a qual damos o nome de

Igreja, é o Corpo de Cristo e ao mesmo tempo é Templo do Espírito, pois é ele

quem a constrói na história e a mantém em comunhão e unidade. No item a seguir

veremos como a Igreja é construída pelo Espírito.

3.2.12. O Espírito Santo é o arquiteto do “edifício” que é a Igreja

“Assim, ele (Jesus Cristo) veio e anunciou a paz, a vós que estáveis longe e paz aos que estavam perto, pois por meio dele, nós, judeus e gentios, num só Espírito, temos acesso ao Pai. Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois co-edificados para serdes habitação de Deus, no Espírito.” (Ef 2, 17-22)

Depois de Cristo na cruz e de sua gloriosa ascensão, a humanidade pode celebrar

o acesso possível ao Pai e o reencontro entre todos os seres humanos, pois

todos/as são irmãos/ãs, pessoas de valor e dignidade iguais. A reconciliação feita

por Jesus acaba com o muro de separação, o ódio é morto, a Lei dos mandamentos

é abolida, as distâncias são superadas e as divisões não mais existem (2, 14-18).495

Jesus relativiza o que é mais próprio do judaísmo, a separação entre povo eleito e

os outros povos. E esta unidade é possibilitada pelo Espírito (vv. 17-18), unidade

que não apaga as diferenças, pois é uma unidade na pluralidade. É desta forma

que Paulo compreende a Igreja!

494 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 53. Grifo nosso. 495 BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Efésios: o universo inteiro reunido em Cristo. São Paulo: Paulus, 2005. p. 39.

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A imagem de Igreja como construção (vv. 20-22) é tirada da engenharia civil e da

arquitetura, fruto da observação de uma cultura urbana. Esta imagem tem também

como seu horizonte de compreensão o Templo de Jerusalém, onde tudo era muito

bem ordenado. Paulo, 496 ao usá-la, pretende mostrar que o edifício que é a Igreja,

é uma realidade bem articulada. Ela tem os apóstolos e os profetas, dois

“ministérios” importantes nas comunidades primevas fundadas por ele (cf. 1 Cor

12,28), como seus fundamentos. Porém, Jesus Cristo é a pedra angular deste

edifício, isto é, Cristo é o elemento mais importante na construção da Igreja.

“Para compreender isso é preciso pensar nas construções antigas, com grandes

portais em forma de arco. No alto da arcada punha-se a ‘pedra angular’, que dava

sustentação a toda construção.” 497 Sobre este alicerce (apóstolos e profetas) e

buscando coesão com a pedra angular (Jesus Cristo) é que o edifício é construído.

Construção que vai sempre acontecendo no tempo até o final dos tempos. Este

edifício que está sempre em construção, sem parar e sempre em crescimento, tem

como arquiteto o Espírito Santo (v.22). 498 Como podemos ver o Corpo de Cristo

que é a Igreja não é estático, pois como acabamos de dizer, está sempre em

crescimento. “Cada cristão, na medida em que ascende na experiência de Deus e

no conhecimento de Cristo por meio do Espírito, torna-se um agente ativo que

contribui, segundo seu chamado, para o crescimento e a vitalidade da Igreja.” 499

Como “o corpo não se compõe de um só membro, mas de muitos.” (1 Cor 12, 14),

a construção deste edifício depende de outras pedras, que são os outros membros

com seus respectivos ministérios. Veremos a seguir como Paulo entende a Igreja e

seus ministérios.

3.2.13. Todo ministério na Igreja é um ministério do Espírito com a finalidade de edificar a comunidade, e não para o orgulho pessoal

Paulo está preocupado com a comunidade de Corinto que viveu cercada de

tensões e conflitos e, certamente, foi aquela que lhe trouxe mais problemas.

Podemos citar alguns destes problemas pelos quais passa esta comunidade: eles

496 Para nosso objetivo não acrescenta nada discutir a autenticidade paulina desta carta, nem seus destinatários. Por isso, não abordamos estes temas. 497 BORTOLINI, J. Como ler A Carta aos Efésios... Op. cit., p. 41. 498 Cf. Ibid. 499 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 82.

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“vão desde o entusiasmo espiritualista à procura de experiências carismáticas

espetaculares, do laxismo ético ao fragmentarismo eclesial, da venalidade na

aceitação de pregadores itinerantes ao individualismo exasperado.” 500 Esta

comunidade levada pela sociedade injusta que privilegia os poderosos e sábios,

passa a valorizar somente os dons extraordinários. 501 Há, portanto, um clima de

entusiasmo espiritual entre os cristãos/ãs de Corinto, e aqueles/as que possuem os

carismas espetaculares, como a glossolalia, enchem-se de orgulho diante dos

outros. Chegam a considerar-se os donos da comunidade. Este fenômeno acontece

nas reuniões de oração, quando num clima de forte emoção religiosa, alguém

começa a rezar ou falar com sons inarticulados, recorrendo até a outras línguas.

Diante disto, aqueles/as que exercem tarefas como administrar os bens e assistir

aos pobres, ficam com a impressão de que não têm nenhuma experiência do

Espírito ou são inúteis. 502 Esta situação onde há “fortes” (os que possuem o dom

da glossolalia) e “fracos” (os que possuem os outros dons) perverte totalmente o

sentido das celebrações e a própria vida da comunidade. 503 Paulo então os faz

ver que se há alguém que deve receber privilégios na Igreja, estes são justamente

os empobrecidos/as e os mais fracos/as. Usa então a comparação entre Igreja e

corpo humano. Diz ele:

“Pelo contrário, os membros do corpo que parecem mais fracos, são os mais necessários, e aqueles que parecem menos dignos de honra do corpo, são os que cercamos de maior honra, e nossos membros que são menos decentes, nós tratamos com mais decência.” (1 Cor 12, 22-23)

Podemos perceber aí “a intocável opção de Paulo pelos pobres! Marginalizá-los é

mutilar o corpo de Cristo. Promovê-los é reconstruir o corpo de Cristo.” 504

Paulo experimenta que é o mesmo e único Espírito que tudo realiza na

comunidade, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz. (1 Cor

12,11) O Espírito Santo, o arquiteto da construção que é a Igreja é, que suscita os

dons necessários para sua edificação. Na concepção de Paulo são este os

ministérios necessários para que haja a comunidade de seguidores de Jesus Cristo,

a Igreja:

500 FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 461. 501 BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., pp. 15-17. 502 Cf. FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., pp. 480-481. 503 Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., p. 58. 504 Ibid. p. 59.

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Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois seus membros, cada um por sua parte. E aquele que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar doutores...Vêm, a seguir, os dons dos milagres, das curas, da assistência, do governo e o de falar em diversas línguas. Porventura, são todos apóstolos? Todos profetas? Todos doutores? Todos realizam milagres? Todos têm o dom de curar? Todos falam línguas? Todos as interpretam? (1 Cor 12, 27-30).

Logo, todos os ministérios são necessários e importantes na comunidade eclesial,

porém os mais espetaculares são os últimos em importância, segundo a

compreensão deste apóstolo. Além disto, “não deve haver motivos para a

contraposição entre carismas espetaculares ou de prestígio e os carismas

humildes, pois todos os fiéis batizados, embebidos no único Espírito, formam o

único corpo que é Cristo.” 505 Tendo esclarecido este ponto Paulo ajuda esta

comunidade a dar mais um passo. Percebendo o perigo que há em se ficar no gozo

que as experiências espirituais podem causar, isto é, na pura satisfação fechada em

si mesma, Paulo salienta que o Espírito é força para construir. Exatamente por

causa disso, é necessário desejar os dons que constroem. 506 Com base neste

princípio, ele convida esta comunidade a:

“Procurai a caridade. Entretanto, aspirai aos dons do Espírito, principalmente à profecia. Pois aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus. Ninguém o entende, pois ele, em espírito, enuncia coisas misteriosas. Mas aquele que profetiza fala aos homens: edifica, exorta, consola. Aquele que fala em línguas edifica a si mesmo, ao passo que aquele que profetiza edifica a assembléia. Desejo que todos faleis em línguas, mas prefiro que profetizeis. Aquele que profetiza, é maior do que aquele que fala em línguas, a menos que este as interprete, para que a assembléia seja edificada. [...] Assim também vós: já que aspirais aos dons do Espírito, procurai tê-los em abundância, para a edificação da assembléia.” (1 Cor 14, 1-5. 12)

No capítulo 13 desta carta, trecho que antecede a perícope acima, Paulo mostra

que, a caridade (amor-solidariedade) é o maior dom que pode existir e que sem

ela, todo o bem que se possa fazer não passa de exaltação e puro exibicionismo

vazio. 507 Afirma, além disto, que há “um critério fundamental para avaliar e viver

cada carisma: é o dom do Espírito por excelência, o do amor ou ágape. Este é o

carisma que dá valor a todos os outros. De fato, ele permanecerá até mesmo

505 FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 481. Grifo nosso. 506 COMBLIN, J. O Tempo da ação... Op. cit., p. 95. 507 Cf. BORTOLINI, J. A Primeira carta aos Coríntios... Op. cit., p. 59.

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quando cessar a função de todos os outros, ao terminar a experiência histórica da

Igreja.” 508 Com base neste belo hino, Paulo recomenda, no início do capítulo 14,

que a comunidade procure esse dom maior (v. 1). A partir daí convida os

cristãos/ãs de Corinto que possuem o dom de falar em línguas a não ficarem

orgulhosos. Na realidade eles/as devem procurar os carismas que facilitam a

participação ou o crescimento da comunidade. Chega a recomendar

principalmente o carisma da profecia, pois este carisma se manifesta de forma

clara e compreensível para a instrução, exortação e conforto de todos/as. 509

Paulo faz toda esta explanação porque percebe que “os coríntios se agarram mais

aos dons do Espírito, de que gozam, em vez de se agarrarem ao próprio Espírito,

Sujeito transcendente que, além de toda ‘experiência espiritual’ pessoal, busca,

através de seus dons, a construção da Igreja.” 510 Portanto, na concepção de Paulo

é desta forma que a Igreja é edificada: o Espírito suscita dons entre seus membros,

para o crescimento da mesma, e o fiel não pode ter motivo de orgulho devido ao

dom recebido. Além disto, dentro da comunidade os mais fracos são aqueles/as

que devem receber maior atenção. Segundo Yves Congar “este capítulo (ele está

se referindo ao capítulo 12) é de uma verdade e atualidade notáveis na Igreja de

nossos dias.” 511

3.2.14. O extraordinário da experiência com o Espírito de Deus esconde-se e revela-se no ordinário e cotidiano da vida humana

Ainda com base na primeira carta de Paulo aos coríntios (14, 1-40) podemos

afirmar como o faz Carlos Mesters que na concepção de Paulo, assim como na de

Lucas,512 a “vida no Espírito” revela duas coisas aparentemente opostas entre si: a

articulação entre o extraordinário e o ordinário. O aspecto extraordinário da

experiência carismática que vemos relatado na vida das primeiras comunidades

508 FABRIS. R. Paulo: apóstolo dos gentios... Op. cit., p. 482. Grifo nosso. 509 Cf. Ibid. pp. 482-483. 510 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 56. 511 Ibid. pp. 54-55. 512 Quando abordamos a pneumatologia lucana, a partir do fato ocorrido com Simão Mago (At 8, 9-24), priorizamos uma de suas características, a saber, o dom do Espírito é livre para agir. Entretanto, poderíamos ter destacado que Simão recusava o ordinário da experiência carismática querendo ficar somente com o extraordinário ou mágico. É isto o que Carlos Mesters aponta em seu artigo Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 27

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encontra-se encarnado nas ações ordinárias e comuns da vida destas pessoas. Para

estes dois pneumatólogos do Segundo Testamento falar, rezar, caminhar, viajar,

orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir e tantas

outras atividades comuns do dia-a-dia são ações que podem e devem ser vividas

como o resultado da presença do Espírito. 513 Vemos, portanto, que a verdadeira

vida vivida no Espírito Santo leva o ser humano a articular mística e prática do

amor fraterno. Dito com outras palavras: a verdadeira “vida no Espírito” não

aprisiona o ser humano no gozo da experiência extraordinária, mas impulsiona o

homem e a mulher de fé a vivê-la constantemente em todas as ações ordinárias da

vida humana.

3.2.15. Não há oposição entre carisma e instituição

Tendo agora em mãos os dados que recolhemos de algumas passagens de Paulo

podemos esclarecer o significado de “charisma”, termo muito caro na teologia

deste apóstolo. Sem isso podemos correr o risco de não penetrar naquilo que é o

mais específico da pneumatologia paulina. O termo “charisma” é oriundo da

língua grega e significa dom gratuito. É utilizado dezessete vezes no Segundo

Testamento, e a exceção de 1 Pd 4,10, todas as outras vezes em que é usado,

aparece no epistolário paulino (usado principalmente em 1 Cor e Rm). Não

encontramos, no uso deste termo, um significado único nas diversas passagens em

que aparece. Entretanto, podemos afirmar que ele significa em síntese os diversos

dons ou talentos que dependem e são provenientes da mesma graça, a graça de

Deus. São os dons da salvação, da vida cristã e da vida eterna. Resumindo como o

faz Yves Congar baseando-se em Chevalier, podemos dizer que os carismas:

“1°) são atribuídos pelo Espírito ‘segundo sua vontade’; 2°) são variados: ele (Paulo) fornece diversas listas que não coincidem inteiramente e não pretendem ser exaustivas; 3°) que o Espírito os dá, diferentes, em vista do bem de todos, isto é, para que sirvam na construção da comunidade eclesial ou na vida do Corpo de Cristo. Enfim 4°) ele (Paulo) coloca acima de todos o dom ou carisma do amor e põe no devido lugar dois ‘dons do Espírito’ ou pneumatika (12,1 e 14,1), que eram muito apreciados pelos coríntios: falar em línguas e a profecia.” 514

513 Cf. Ibid. pp. 26-27. 514 CHEVALIER M.-A. apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 58.

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Para completar esta compreensão de carisma em Paulo, Bernd Jochen Hilberath

nos lembra que há um duplo aspecto característico na doutrina paulina dos

carismas. Ele nos diz que: “1) dons do Espírito não são apenas fenômenos

extraordinários, mas atitudes cristãs básicas (fé, esperança, amor;

caritas/diaconia) e o esforço cotidiano de ser cristão. 2) também funções

‘ministeriais são dons do Espírito e devem servir à vida espiritual das

comunidades.” 515 Portanto, podemos dizer que na concepção de Paulo não há

oposição entre carismas e ministérios hierárquicos, dito de outra forma, não há

contraposição entre carisma e instituição. O que existe na realidade é uma

conexão entre os mesmos.

“Assim é que em 1 Cor 12, 28, Paulo os unifica em uma única frase, fazendo-os depender de um mesmo verbo (‘estabeleceu’), o que significa que Deus é o único sujeito da ação tanto no que se refere aos ministérios institucionais (‘apóstolos’, ‘profetas’, ‘doutores’) como no que concerne aos dons e carismas do Espírito (dons dos milagres, das curas, da assistência, do governo, de falar em diversas línguas). 516

Este é um ponto fundamental para sermos fiéis à eclesiologia que brota dos

escritos paulinos. Ponto igualmente fundamental para refletirmos sobre a Igreja de

hoje, onde não deve haver oposição entre ministérios hierárquicos e ministérios

laicais. O laicato começa a ter uma nova consciência de participação e

colaboração nas tarefas pastorais da Igreja contribuindo assim para o crescimento

da ministerialidade laical. Este fato pode assustar muitas vezes à hierarquia,

porém, deve ser assumido por todos/as como um dom do Espírito suscitado no

coração do cristão/ã para ser colocado a serviço da comunidade de fé. Portanto,

que saibamos trabalhar na seara do Senhor, lado a lado, cada um/a de acordo com

seus dons, respeitando e aceitando o dom e serviço que outro/a recebeu do mesmo

e único Espírito para o bem de todos/as.

3.2.16. A experiência do Espírito traz alegria nas tribulações

“Sabemos, irmãos amados de Deus, que sois do número dos eleitos – porque o nosso Evangelho vos foi pregado não somente com palavras, mas com grande

515 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 426. 516 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 79.

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eficácia no Espírito Santo e com toda convicção. Assim, sabeis como temos andado no meio de vós para o vosso bem. Vós vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, acolhendo a Palavra com a alegria do Espírito Santo, apesar das numerosas tribulações.” (1 Ts 1, 1-6)

A alegria é um dos frutos do Espírito (Gl 5, 22). Entretanto, esta alegria não

significa alienação diante da realidade vivida, muito menos entusiasmo

passageiro. Ao mesmo tempo precisamos perceber que a experiência do Espírito

não preserva a pessoa do sofrimento e da perseguição. Isto porque a fidelidade ao

Evangelho implica necessariamente incomodar os “poderosos” deste mundo, o

que provoca perseguições e tribulações na vida do discípulo/a de Cristo. Portanto,

podemos dizer que para Paulo a “alegria nas tribulações”, que é dom do Espírito é

o indicador mais poderoso da autêntica experiência do Espírito. É digno de nota

perceber que o verbo alegrar-se aparece 28 vezes no Segundo Testamento e que a

palavra alegria ocorre 22 vezes. Em todos estes casos aparece referida ao Espírito

Santo, que é o único que pode provocar a verdadeira alegria. 517

3.2.17. Não há identificação entre o Senhor Jesus e o Espírito

Apesar de não haver identificação entre o Espírito Santo e Jesus, o primeiro, tal

qual nos é dado conhecer, é totalmente relativo a Cristo. É ele que leva o cristão/ã

a crer e confessar, pela boca e pela vida, que Jesus é Senhor. O Espírito dá a

conhecer, reconhecer e viver Cristo. De tal forma isto acontece, que podemos

dizer que do ponto de visto do conteúdo, não há autonomia nem desigualdade de

uma obra do Espírito em relação à de Cristo. 518 “Paulo atribui, seja a Cristo, seja

ao Espírito, as operações e os frutos da vida cristã. De tal modo que parece

identificar os dois.” 519 Paulo afirma que “é somente pela conversão ao Senhor

que cai o véu. Pois, o Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor aí está

a liberdade.” (2 Cor 3, 16-17). Ao comentar estes versículos Yves Congar se

baseia numa monografia completa sobre este texto onde Ingo Hermann:

517 Cf. BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade)... Op. cit., p. 94. 518 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 61. 519 Ibid. p. 63. Grifamos o verbo ´parecer’ para chamar a atenção nas palavras deste autor que nos diz que PARECE haver uma identificação entre o Espírito Santo e Jesus Cristo, coisa que ele na verdade afirma não existir.

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“elimina as interpretações segundo as quais o Espírito seria o Senhor (pois o Senhor é Cristo) ou que a substância do Senhor (Jesus) seria feita de espírito. Esse enunciado, diz ele, deve ser entendido no sentido de uma experiência existencial: nós experimentamos ou provamos o Senhor Jesus como Espírito. Ou então: o que nós experimentamos como Espírito é na realidade o Senhor Jesus glorificado.” 520

Portanto, se no v. 17b do texto em questão Paulo distingue Senhor (kyrios) de

Espírito (pneuma), então isso prova que no v. 17a, ele não estabelece identidade

entre as duas pessoas. Na realidade Paulo define pela palavra Espírito o modo de

existência do Senhor. É desta forma que ele, o Senhor Ressuscitado e Glorificado,

vem ao encontro de sua comunidade. 521 Portanto, o que Paulo está designando é a

existência e a ação de Cristo glorificado. Logo, “do ponto de vista funcional o

Senhor e seu Espírito fazem a mesma obra, na dualidade da função deles.” 522

Bernd Jochen Hilberath ao comentar sobre a pneumatologia paulina afirma que

ela em seu conjunto não supõe que haja identidade total (Cristo = Senhor =

Espírito). Em conformidade com Paulo pode-se falar de uma identidade dinâmica

ou unidade de atuação entre o Senhor e o Espírito. “Em virtude de sua existência

pneumática o Crucificado Ressurreto atua no Espírito em relação aos seus, e por

Cristo eles experimentam no Espírito a presença viva de Deus.” 523

Finalmente Congar nos alerta que, apesar de não haver uma identificação

ontológica entre Espírito e Jesus Cristo, na experiência cristã, “Espírito de Deus”,

“Espírito de Cristo” e “Cristo em nós” expressam a mesma coisa. 524

3.2.18. É preciso discernir e ficar com aquilo que vem do Espírito de Deus

Segundo o que lemos na primeira carta de Paulo aos tessalonicenses tudo nos leva

a supor que havia nas celebrações desta comunidade o desprezo pelas profecias,

isto é, não se levava a sério o Espírito que falava por meio das pessoas (aquela

palavra oportuna saída da boca de pessoas simples que participam da celebração e

520 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64. 521 Cf. SCHWEIZER apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64. 522 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64. 523 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 422. 524 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 64.

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que muitas vezes toca nossas feridas). 525 Por isso Paulo admoesta esta

comunidade dizendo:

“Não extingais o Espírito! Não desprezais as profecias! Discerni tudo e ficais com o que é bom.” (1 Ts 5, 19-21).

Para Paulo deve haver uma ordem na vida espiritual comunitária e particularmente

no culto. Entretanto, ele deixa bem claro que isto deve e pode acontecer, sem que

se extingam os dons suscitados pelo Espírito. A ordem na comunidade eclesial

deve ser acompanhada da percepção, do desenvolvimento e do discernimento dos

dons espirituais. 526 Portanto, Paulo não prega uma desordem comunitária, mas

igualmente não deseja uma ordem engessada que iniba a presença do Espírito. Por

isso, segundo ele, faz-se necessário o discernimento, pois nem tudo o que se pensa

vir do Espírito de Deus o é, visto que pode ser oriundo do espírito do mal, assim

como, nem tudo o que se pensa ser opinião de uma pessoa o é, pois pode ser uma

profecia do Espírito. 527 Conseqüentemente, “discerni tudo e ficai com o que é

bom.”

3.3. A Pneumatologia Joanina a partir da experiência histórica com o Espírito Santo Ela é considerada pelos estudiosos como a segunda grande pneumatologia do

Segundo Testamento, deixando para a de Paulo a primazia destes escritos. Apesar

disto, a concepção joanina do Espírito, pondo à parte o “discurso de despedida”

(Jo 13-17), é próxima da concepção do cristianismo primitivo clássico (Paulo e

Lucas), embora não possamos esquecer as diferenças de acento que apresenta esta

pneumatologia. Encontra-se exatamente no “discurso de despedida” a concepção

especificamente joanina sobre o Espírito. Ela é marcada pelo aparecimento de um

novo conceito, o de Paráclito, que está em relação estreita com o de Espírito

Santo (14,26) ou do Espírito da verdade (14,17; 15, 26; 16,13).

525 BORTOLONI, J. Como ler A primeira carta aos tessalonicenses... Op. cit., p. 37. 526 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 427. 527 Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. M. Amor e Discernimento... Op. cit., p. 24.

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“O quarto evangelho já descreve uma experiência e uma teologia do Espírito mais

permanente, mais tranqüila. Trata-se de sentir profundamente que Jesus

permanece com a comunidade e a leva a praticar o ágape, o amor, a

caridade.”528 É importante lembrar que a pneumatologia que encontramos nos

escritos joaninos não está baseada em conceitos abstratos, mas advém de uma

realidade experiencial, pois tanto João como a comunidade joanina sentem que o

Espírito Santo de Deus permanece neles/as e os faz experimentar que participam

da comunhão divina (cf. 1 Jo 3,24; 4,13). 529 É a partir desta experiência espiritual

que João vai percebendo como o Espírito divino é concedido à comunidade de fé

cristológica e como esta comunidade deve agir. Veremos a seguir como isto

acontece na pneumatologia joanina.

3.3.1. As três grandes ações divinas na perspectiva da pneumatologia de João

Segundo a compreensão de João o Espírito é concedido em três grandes ações

divinas que estão profundamente relacionadas: primeiramente Deus concede o

Espírito a Jesus, posteriormente Jesus concede este mesmo Espírito aos seus, e

finalmente o Espírito concedido por Jesus impulsiona o homem e a mulher de fé

para levá-lo a toda humanidade. Vejamos como isto se dá a partir de alguns textos

do quarto evangelho (QE):

a) O Pai concede o Espírito a Jesus

João Batista dá o seguinte testemunho sobre Jesus: “Eu vi o Espírito como uma

pomba, descer do céu e permanecer sobre ele.” (Jo 1,32). O Espírito que desce do

céu sobre Jesus, em seu batismo, não o faz comedidamente como fazia com os

profetas (cf. Nm 11,25). Jesus tem o Espírito ilimitadamente, pois este como nos

diz João “permanece sobre ele”. Este mesmo João numa outra ocasião chega a

528 BINGEMER, M. C. L. Crer e dizer Deus Pai, Filho e Espírito Santo. In: Atualidade Teológica n° 9. Rio de Janeiro, 2001. p. 195. Grifo nosso. 529 Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 160.

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afirmar: “Com efeito, aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, que lhe

concede o Espírito Santo sem medida.” (Jo 3,34). 530

b) Jesus concede aos “seus” o Espírito recebido do Pai

Assim se expressa o Nazareno: “Quando vier o Paráclito que vos enviarei de junto

do Pai,” (15,26a). Este segundo movimento que complementa o primeiro é tão

fundamental na pneumatologia joanina que Juan Mateos e Juan Barreto chegam a

dizer que esta é a missão de Jesus como Messias (1,33: o que batizará com

Espírito Santo), sendo contraposta à missão de João Batista (1,26: eu batizo com

água). 531 Para estes teólogos, na perspectiva joanina a missão do Messias é a de

conceder o Espírito aos seus.

c) O Espírito concedido ao homem e à mulher de fé os impulsiona a

levá-lo a toda humanidade

O Espírito recebido do Pai através do Filho leva necessariamente o/a crente para o

mundo, pois esta é a missão do/a crente: “Como o Pai me enviou, também eu vos

envio” (Jo 20,21). Somente desta forma o movimento pneumático se completa: do

Pai ao Filho, do Filho aos seus e, finalmente, dos seus ao mundo.

Veremos a seguir quem é este Espírito, dentro da compreensão joanina, que é

recebido do Pai por Jesus, por ele concedido, e finalmente disseminado no mundo

pelos homens e mulheres de fé. E, concomitantemente, iremos destacando os

critérios de discernimento encontrados nos escritos joaninos.

530 O versículo 34b pode receber duas traduções: “Deus, que lhe concede o Espírito sem medida” ou ainda “pois ele [Jesus Cristo] dá o Espírito Santo sem medida”. Optamos pela primeira possibilidade apoiados em Yves Congar e Johan Konings que afirmam ser esta interpretação quem dá coerência a todo versículo, assim como concorda com o testemunho de João Batista (1,32). Segundo Congar, Jesus ter recebido o Espírito de Deus sem medida fundamenta o fato dele poder dizer as palavras de Deus e fazer suas obras (3,37a). Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 72. e Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 136. 531 MATEOS, J. BARRETO, J. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 89.

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3.3.2. O Espírito é um outro Paráclito

Como já vimos anteriormente o Espírito aparece de forma notável em muitos dos

escritos do Segundo Testamento. Entretanto, o papel pessoal dele no QE sob o

título de “Paráclito” é único. 532 Podemos dizer que a comunidade joanina

personaliza o Espírito Santo ao dar-lhe este nome. 533 Além disto, nomear o

Espírito como Paráclito, dando ênfase em sua personalidade, é uma especificidade

da pneumatologia joanina, a tal ponto que se torna a grande contribuição de João

para a compreensão posterior do Espírito Santo. 534

Os cinco ditos sobre o Paráclito que temos neste evangelho, todos eles se

encontram dentro do discurso de despedida de Jesus (14, 16s; 14,26; 15,26; 16,7-

11; 16,13ss). 535 Este pequeno detalhe é muito importante se nos colocamos dentro

do contexto dos discursos de despedida. Mas, o que na realidade significam estes

discursos? Nos povos antigos os discursos de despedida eram muito conhecidos.

Os anciãos passavam suas últimas instruções e desejos aos seus filhos, herdeiros

ou súditos, no momento derradeiro. Neles falava-se de saudade, dor e afeto, assim

como deixavam algumas instruções, ensinamentos e ordens a serem executadas.

Estes discursos eram também uma forma de testamento e de compromisso, de

quem fica, em executar os preceitos deixados pela pessoa que parte. O discurso de

despedida de Jesus (Jo 13-17) está dentro deste quadro e igualmente dentro dos

moldes dos grandes discursos de despedida do Primeiro Testamento (Gn 47, 29-

49, 33; Js 22-24; 1 Cr 28-29; 2 Rs 2, 1-10, Dt 32-33). 536 É dentro destas

circunstâncias que Jesus vai despedir-se dos seus discípulos/as pedindo ao Pai

“alguém” que, na sua ausência ajude-os, proteja-os, defenda-os. Este auxílio é um

“outro Paráclito”. O Pai enviará um continuador do primeiro “auxílio” que foi

Jesus mesmo, na sua missão terrestre. Jesus pede este Espírito ao Pai, porque é o

mesmo Espírito que permanece sobre ele em sua vida terrestre. 537 Segundo

Bernd Jochen Hilberath “três palavras-chave caracterizam o Sitz im Leben ou

532 BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 1984. Op. cit., p. 145. 533 Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 159. 534 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 87. 535 ZUMSTEIN, J. DETTWILER, A. Verbete “Paráclitos”. In: LACOSTE, J. I. Op. cit., p. 652. 536 Cf. MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém... Op. cit., pp. 166-167. 537 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 315.

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lugar vivencial dos discursos de despedida joanino: partida de Jesus – abandono

das discípulas e discípulos – promessa do Espírito.” 538

A partir destes cinco ditos sobre o Paráclito que encontramos no QE 539 podemos

destacar os quatro principais sentidos que o Espírito possui na perspectiva

joanina.

a) O Paráclito é o Defensor, Intercessor, Consolador e Encorajador da comunidade

Para compreender este primeiro sentido devemos recorrer ao significado real da

palavra “paráclito”. Ela designa não a natureza de alguém, mas sim sua função. O

paráclito é aquele que é “chamado ao lado de” e exerce a função ativa de

assistente, de sustentáculo. 540 Para entendermos melhor o vocábulo grego

“paráclito” se faz necessário investigar, como o faz Carlos Mesters, a palavra

hebraica Go’êl, que tem sua origem numa prática secular, vinda da época tribal. A

lei do Go’êl era uma lei de solidariedade que surgiu como instrumento para

defender as famílias e as pessoas. Na convicção de Israel, a terra e as pessoas

eram propriedades de Iahweh e não podiam ser vendidas nem compradas para

sempre. Caso isto acontecesse o Go’êl entrava em ação para restabelecer o direito

prejudicado. Também em caso de assassinato ou de pobreza extrema, quando a

pessoa era obrigada a vender suas terras ou entregar seus familiares como

escravos/as, o parente mais próximo assumia a missão do Go’êl para resgatar a

pessoa ou a terra (cf. Lv 25, 23-55). Este resgate ficou ligado à celebração do ano

jubilar (Lv 25, 8-17). Portanto, o Go’êl era “aquele que resgata”, isto é, o

defensor, o advogado, o redentor, o libertador, o salvador, o parente próximo. A

lei do Go’êl perdurou até o exílio da Babilônia, quando já não havia mais

possibilidade de aplicá-la, pois, até mesmo o parente mais próximo encontrava-se

cativo. A partir desta realidade o Deutero-Isaías retomou o termo antigo, porém

com um sentido novo, abrindo assim seu significado para a vivência da fé. Com

esta nova compreensão o próprio Deus passa a ser visto como o Go’êl, o

redentor, aquele que resgata o seu povo (Is 41,14; 43,14; 44,6.24; 47,4; 48,17

538 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 437. Grifo nosso. 539 Neste capítulo não iremos transcrever estes ditos visto que já o fizemos no capítulo anterior. 540 LÉON-DUFOUR, X. Verbete “Paráclito”. In: LÉON-DUFOUR, X. Op. cit., p. 714.

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etc.). Neste momento histórico em torno do termo Go’êl se concentra a esperança

messiânica. O messias será o Go’êl do povo (Rt 4,14). É, portanto, a partir desta

compreensão que João, irá aplicar o mesmo termo, tanto para Jesus (“Meus

filhinhos, isto vos escrevo para que não pequeis; mas, se alguém pecar, temos

como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo o Justo. [1 Jo 2,1]), como para o

Espírito (os cinco ditos sobre o Paráclito do evangelho de João). Os dois recebem

o título de Go’êl ou Paráclito. 541 Mas, por que João faz uso deste termo para se

referir tanto a Jesus como ao Espírito? A realidade histórica vivida por João e pela

comunidade joanina caracteriza-se pelo conflito externo devido à expulsão da

sinagoga e pela incompreensão do mundo, e pelo conflito interno devido à divisão

dentro do próprio grupo. Tudo isto gera nesta comunidade medo, angústia,

tristeza, dúvidas e sentimentos de orfandade. É em meio a esta dura realidade que

a comunidade vivencia a presença real de Deus que veio e continua presente

através da experiência do Espírito. 542 Experimentam que têm “alguém” que os

defende, consola, encoraja, fazendo-os superar as dificuldades. Segundo Raymond

Brown encontramos dentro deste contexto de perseguição do mundo o principal

catalisador da compreensão joanina a respeito do Paráclito. 543 Como podemos

ver João aplicando o termo Go’él ou Paráclito ao Espírito Santo e ao dizer que

temos um outro Paráclito, está afirmando que Jesus não nos deixa órfãos, pois

permanecerá conosco para sempre (Jo 14, 14-18. 26), que nos defenderá nos

tribunais (Jo 15,26; Mc 13,11) e no grande julgamento da história (Jo16, 7-8). 544

O Paráclito, que na acepção originária do termo é o ‘chamado para junto de’, 545

encoraja o discípulo/a, sendo o Espírito de Verdade necessário para que o

cristão/ã dê testemunho de Jesus (Jo 15, 26-27).

541 Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. Amor e Discernimento... Op. cit., pp.36-37. 542 Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 164. 543 BROWN. R. apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 164. 544 Cf. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito: uma reflexão a partir da Bíblia. In: TEPEDINO, A. (Org.). Amor e Discernimento... Op. cit., p. 37. 545 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 438.

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b) O Paráclito é a Testemunha de Jesus e o Mestre da comunidade.

Com a morte do Discípulo Amado, se estabelece uma outra crise na

comunidade, esta com relação à memória. Mas, quem é este Discípulo?

Segundo Raymond Edward Brown o “Discípulo Amado” é uma figura

misteriosa que só aparece no QE e que é o herói desta comunidade. Ele é

idealizado pelos componentes da comunidade, mas, apesar disto, é uma figura

histórica e companheiro de Jesus de Nazaré em sua vida terrena. O “Discípulo

Amado” só aparece assim nomeado “na hora” (13,1). Dizer isso não significa

que ele não tenha estado junto a Jesus durante seu ministério público. Significa

afirmar que somente a partir da “hora de Jesus”, o momento mais importante

para este evangelho, é que este discípulo recebe o título que o distingue dos

outros/as. Portanto, ele completa sua identidade, isto é, ser o Discípulo que

Jesus amava, num contexto cristológico. Logo, o “Discípulo Amado”, assim

como a comunidade joanina, vive um processo de crescimento na percepção

cristológica.546 Brown ainda nos esclarece que o autor do QE fala do herói da

comunidade não como um apóstolo, mas como um discípulo, visto que esta é a

primeira e mais importante categoria para ele. Portanto, é a aproximação que o

discípulo tem com o Mestre e não a missão apostólica que confere dignidade ao

seguidor de Jesus. 547 Na expressão de Konings:

“A opinião mais razoável é reconhecer no Discípulo Amado a testemunha por excelência. Ele sabe que Jesus não se abalou com a traição de Judas (13, 23-26), ele é a testemunha da cruz (19,35), ele pode com plena autoridade anunciar e interpretar a mensagem a respeito de Jesus (neste sentido ele é também o símbolo de todo iniciado perfeito).” 548

Comentando sobre o “Discípulo Amado” numa perspectiva eclesiológica, Ana

Maria Tepedino corrobora com a opinião de Konings e nos diz que:

“para o QE o herói da comunidade não é Pedro, nem um dos apóstolos, mas um personagem anônimo chamado o Discípulo Amado, aquele que soube crer e amar Jesus. Este discípulo permanece anônimo para que nós, em cada época, possamos seguir seus passos e nos tornarmos também discípulos e discípulas

546 Cf. BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado... Op. cit., pp. 31-34. 547 Cf. Ibid. p. 86 548 KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 301.

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amadas. Na verdade, ele também representa a comunidade joanina, que tinha a pretensão de ser a verdadeira e fiel seguidora de Jesus.” 549

Sem a presença desta testemunha por excelência, quem iria agora falar de Jesus,

lembrar o que ele fez, o que disse, como agiu? “A presença do Espírito/Paráclito

parece ser uma resposta a este problema, pois através de sua atuação prossegue,

sem perda de continuidade, a obra de Deus revelada em Jesus.” 550 Vai ficando

claro para João que a presença de Jesus no mundo não se extingue com sua morte.

Ele continua presente através do Paráclito que habita o interior das pessoas que

amam a Jesus e reproduzem no mundo a prática do amor-solidariedade vivido

pelo Nazareno. A experiência do Espírito prova para a comunidade joanina que

Jesus “permanece” com ela. 551

O Paráclito desempenha na concepção joanina a função de ser a Testemunha

autorizada de tudo o que Jesus disse e fez. Ele se assemelha tanto a Jesus que

podemos dizer que é a presença permanente de Jesus, depois que este subiu ao

céu. Inclusive o Paráclito desempenha o mesmo papel revelador em relação a

Jesus como Jesus desempenhou em relação ao Pai. 552 Portanto, o Paráclito que o

Pai enviará em nome de Jesus, é a sua memória viva, pois ensinará tudo e

recordará tudo o que ele mesmo disse e ensinou quando caminhava junto com os

seus em sua vida terena. 553 É desta forma que Jesus se expressa em seu discurso

de despedida (Jo 14, 26. 16, 12-15). Portanto, Jesus esclarece, que a Verdade

plena que o Espírito guiará os seus discípulos, é sua própria Verdade, pois o

Espírito atualiza o papel de Jesus em sua ausência. O Espírito fará os seguidores

de Jesus conhecê-lo em todos os tempos, pois se Jesus estivesse presente no meio

de nós diria as mesmas coisas que diz o Espírito. 554

É de fundamental importância para nós o alerta que nos faz Ana Maria Tepedino

ao comentar a função do Paráclito como Testemunha de Jesus. Ela nos diz:

549 TEPEDINO, A. M. de A. L. Iniciação Teológica: Encontro com a Igreja de Jesus (Eclesiologia)... Op. cit., p. 58. 550 TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 160. 551 BINGEMER, M. C. L.. Iniciação Teológica: Encontro com o Deus de Jesus Cristo (Trindade)... Op. cit., p. 96. 552 BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado... Op. cit., p. 145. 553 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 317. 554 Ibid. pp. 317-318.

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“O Paráclito não apenas recorda o que Jesus fez e disse, como também, em cada nova situação histórica inspira o que deve ser e por onde anda o seguimento de Jesus. Ele opera a articulação entre espiritualidade e ética, entre crer em Jesus e amar aos irmãos e irmãs. O Espírito é quem inspira e anima a comunidade para um verdadeiro discipulado, dentro das novas situações e desafios históricos.” 555

Portanto, uma verdadeira experiência do Espírito, que nos recorda toda vida-

morte-ressurreição de Jesus, não deixa a pessoa imóvel na própria experiência,

mas a impulsiona para a concretização efetiva daquilo que experimentou. A

pessoa é levada a amar seus irmãos/ãs. Este amor se manifesta na partilha do que

se possui e na entrega de si mesmo/a no dom. Dito com outras palavras: o Espírito

atualiza a memória de Jesus, tornando-o presente na comunidade, fazendo

acontecer hoje novos eventos fundados em Jesus. 556 Logo, o Paráclito como

Testemunha de Jesus nos lembra que somos discípulos e discípulas do Mestre de

Nazaré, e que, portanto, devemos segui-lo em sua prática solidária, mesmo diante

de todas as dificuldades que devemos enfrentar.

Entretanto, o Paráclito é também Mestre da comunidade. O ensinamento do

Paráclito está relacionado diretamente com a revelação do mistério e da pessoa de

Jesus. Cabe a ele rememorar e atualizar o que Jesus realizou, não possuindo um

ensinamento que lhe seja próprio, isto é, nada ensina que seja diferente daquilo

que o Nazareno ensinou. Portanto, o Paráclito é Mestre da comunidade, mas um

Mestre que ensina aquilo que o Mestre Jesus já havia ensinado. Mas, é primordial

lembramos que tudo o que Jesus ensinou provém do Pai. O ensinamento de Jesus

é transmissão autorizada daquilo que recebera do Pai para comunicar aos seus

discípulos/as ao longo dos tempos. 557

Como Mestre, o Paráclito tem uma dupla função: Pedagogo e Mistagogo. Como

Pedagogo traz à memória os fatos ocorridos no tempo de Jesus e faz com que as

pessoas tenham um entendimento mais profundo destes fatos, coisa que ainda não

haviam alcançado. Portanto, o Paráclito é o intérprete, o hermeneuta que

possibilita o/a crente entrar no mistério de Deus através da compreensão mais

adequada da vida-morte-ressurreição de Jesus. Surge desta forma o

555 TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 163. 556 Cf. FERRARO E. apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 163. 557 Cf. SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 93-94.

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Paráclito/Mistagogo que introduz amorosamente o homem e a mulher de fé na

experiência de Deus. 558

Finalmente, podemos afirmar que o Paráclito não é um mero repetidor do que

disse e fez Jesus; “antes, ele aprofunda o conhecimento (que, em termos bíblicos e

especificamente joaninos, deve ser entendido de modo integral) da fé e conduz à

plenitude da verdade.” 559 “Como Swete diz de modo muito apropriado: ‘Jesus é o

caminho (he odos), o Espírito é o guia (ho hodegos) que orienta essa

caminhada.’”560

c) O Paráclito é o “alter ego” de Jesus

No primeiro capítulo deste trabalho ao refletir sobre o “espírito” revelado no

Primeiro Testamento vimos que em síntese ele é a misteriosa potência que Deus

coloca na estrutura da criação (Gn 1,2), sendo o poder organizador e ordenador do

mundo que está presente em toda obra da criação; é o princípio vital comunicado

ao homem, a mulher (Gn 2,7) e a toda criatura; além disto, é a presença divina

constante e dinâmica capaz de renovar as pessoas (Cf. Ez 36,25; Is 11,1-9).

No segundo capítulo vimos que este Espírito em síntese é a presença constante

que acompanha Jesus em toda sua vida, sendo o Protagonista desta vida. Jesus faz

suas próprias escolhas, mas o faz sob a “orientação” do Espírito, ao qual está

sempre aberto e receptivo. Portanto, tudo o que Jesus diz (pregação) e faz (ações)

é fruto da presença do Espírito em sua pessoa. Entretanto, é somente depois da

morte-glorificação de Jesus que a compreensão sobre o Espírito entra numa nova

complexidade e ele passa a ser definido de forma personalizada como “o

Paráclito”. Somente depois da experiência pascal (Ressurreição e Pentecostes) é

que o Espírito aparece dotado de traços semelhantes aos da pessoa de Jesus

Cristo. Ele tem a mesma função do Nazareno e sua personalidade reflete a pessoa

de Jesus. 561 Todavia, há distinções entre eles, e a mais fundamental encontra-se

na maneira como cada um desempenha sua função salvífica. A ação do Filho se

558 Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., pp. 162-163. 559 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 439. 560 SWETE apud CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 83. 561 Cf. BURGE apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 170.

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dá na sarx e num determinado tempo histórico, enquanto que o Espírito age no

interior de cada pessoa humana, permanecendo presente para sempre na

humanidade. 562 Devido às diferenças que existem entre os dois podemos afirmar

que o Espírito não é um novo modo de existência de Jesus, pois ele é um “outro

Paráclito”, isto é, ele é como se fosse um “outro Jesus”. 563 São esclarecedoras as

palavras de Luiz Fernando Santana ao comentar sobre o Paráclito como “alter

ego” de Jesus:

“Como continuador da obra salvífica de Jesus, o Espírito Santo pode ser qualificado como ‘alter Ego’ de Cristo, sendo, ao mesmo tempo, d’Ele distinto; nesse sentido, sua função na Igreja é clara: garantir e prolongar até a consumação dos tempos a missão que o Filho recebeu do Pai, sem substituí-la, no entanto.” 564

Portanto, o Paráclito não é o substituto de Cristo na história da Salvação, mas um

continuador da atuação salvífica de Deus na história. 565

d) O Paráclito é Teólogo e Autor do Evangelho

É evidente que esta é uma afirmação redundante para o cristão e a cristã. Eles/as

não têm dúvida de que toda Sagrada Escritura é inspirada pelo Espírito Santo, o

que significa dizer que ele é o seu autor último. Entretanto, esta afirmação de fé

cristã, que inclui naturalmente a autoria dos Evangelhos, fica mais patente quando

adentramos no QE. Nele encontramos a afirmação do Paráclito como autor de

suas páginas de forma mais direta, forte e explícita. Percebemos aí que

“sem o Espírito, a vida de Jesus é opaca e aberta a mal-entendidos e incompreensões. Somente sua ação possibilita o conhecimento do mistério de Jesus. Portanto, a chave de compreensão cristológica joanina é o Paráclito.” 566

Logo, ele capacita o homem e a mulher a lançar um olhar para a vida histórica do

Nazareno possibilita-lhes captar a Verdade e o sentido real dos acontecimentos

562 VANCELLS apud c p. 170. 563 Cf. BROWN apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 171. 564 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 94. Grifo nosso. 565 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 438. 566 TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 166.

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vividos na Palestina, na primeira metade do século I, e que mudou o curso da

história da humanidade. É o Paráclito que mostra ao mundo que tudo aquilo que

Jesus disse e fez vinha de Deus e é o caminho para nossa salvação. Além disto,

deixa claro que aqueles/as que rejeitam Jesus e sua Boa Nova se condenam a si

mesmos. Desta forma o chefe deste mundo já está condenado (Jo 16, 7-11).567 A

partir de tudo isso podemos dizer que o Espírito é este critério de discernimento

que nos permite conhecer Jesus e sua mensagem, além do que nos coloca diante

de uma escolha: estar ou não ao lado da fé e da justiça trazidas por Jesus.

3.3.3. A água- Espírito é a fonte de vida por excelência

Podemos perceber esta afirmação com mais vigor em dois encontros de Jesus que

só vemos narrados neste evangelho, o que aponta para sua importância na

perspectiva joanina. O primeiro deles, relatado no capítulo três do QE, é o

encontro com Nicodemos, um fariseu, um “notável dos judeus” como é afirmado

no texto (3,1), o que significa dizer que Nicodemos é um dos membros do

Sinédrio. Este homem, um fariseu honesto, profundamente convencido da

validade da Lei, depois de ver os sinais que Jesus havia realizado no templo, fica

impressionado e interessado em saber mais e melhor a seu respeito. Temendo

represália dos seus amigos “notáveis”, vai visitar Jesus à noite (3,2). “Noite”

simboliza aqui a confusão, o medo, o enigma. Este mestre dos judeus tem mais

medo dos seus do que de Jesus, por isso escolhe à noite para não ser notado. 568

Nicodemos, observante e mestre da Lei, está convencido que a Lei é manifestação

definitiva da vontade divina, sendo portanto, partidário da ideologia legalista que,

não percebe ele, submete o povo e o impede de realizar o desígnio divino. Ele

dirige-se a Jesus usando o título de “Rabi” (v.2), portanto, aceita o Nazareno

como Messias-mestre. Mas, o que significa Nicodemos aceitar Jesus como

Messias-mestre? Na realidade significa que ele aceita Jesus como àquele que

impondo a observância da Lei instaura o reinado de Deus. Como podemos ver

este messianismo na perspectiva de Nicodemos está em total oposição com o

567 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 317. 568 Cf. MAZZAROLO, I. Nem aqui, nem em Jerusalém... Op. cit., pp. 74-75

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messianismo de serviço vivido por Jesus. Diante deste mal entendido, Jesus faz a

seguinte afirmação categórica a este mestre dos judeus: 569

“‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.’ Disse-lhe Nicodemos: ‘Como pode um homem nascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?’ Respondeu-lhe: ‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: vós deveis nascer de novo. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito.’” (Jo 3, 5-8)

Jesus mostra para Nicodemos que o Reino de Deus não se baseia no anterior, mas

exige um novo começo, por isso, é preciso “nascer de novo/do alto” (vv. 3.7).

Este nascimento se dá a partir da água-Espírito e é indispensável para se entrar no

Reino. Não é o esforço pessoal, aquele que nasce da fraqueza humana (sarx), que

propicia ao homem e à mulher participarem do Reino (v. 6: da carne nasce carne).

Para fazer parte deste Reino é necessário um princípio vital novo, infundido por

Deus, o Espírito, que cria no ser humano a condição de “espírito”, o que lhe

possibilita a capacidade de amar (v.6: do Espírito nasce espírito). Este novo

nascimento produz uma liberdade que orienta toda a vida da pessoa (v.8). 570

Entretanto, é fundamental deixar bem claro que o “nascer de novo”, na perpectiva

joanina, não se realiza automaticamente nem é um processo mágico ou misterioso,

mas é um acontecimento marcado pela liberdade, em que se recebe o Espírito e a

ele se responde. Logo, o v.8 se refere à liberdade do Espírito e à liberdade da

pessoa que é por ele presenteada. Como podemos ver também João afirma o nexo

entre fé e recebimento do Espírito, ser batizado e vida nova a partir do Espírito. 571 O ser humano nascido do Espírito, isto é, nascido “do alto” passa por uma

transformação radical. Quem nasce da “carne” continua sendo mero ser humano

fechado em seu egoísmo. Entretanto, ao nascer do Espírito que é verdadeira vida,

o ser humano se transforma em pessoa impulsionada por Deus. O que significa

dizer que é capaz de viver uma nova vida que não se acreditava capaz. 572

Portanto, para João, é o Espírito, que sendo Vida, gera a vida, o nascimento do

569 Cf. MATEOS, J., BARRETO, J. Op. cit., p. 209. 570 Cf. Ibid. 571 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 440. 572 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 129.

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alto ou “de Deus” nos seres humanos, desta forma, é ele quem gera a Vida por

excelência, a Vida Nova. 573

O segundo encontro, onde podemos perceber esta característica da pneumatologia

joanina, é o de Jesus com a samaritana, narrado no capítulo quarto do evangelho

de João. Nele encontramos Jesus descansando à beira do poço, a “fonte de Jacó”,

com o sol a pino. Neste momento chega uma mulher da cidade de Sicar, portanto,

uma samaritana, para tirar água do poço. Jesus lhe pede de beber e a mulher

estranha esta atitude vinda de um homem, e ainda por cima, de um judeu. Jesus

então lhe responde:

“Se conhecêsseis o dom de Deus e quem é que te diz: ‘Dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias e ele te daria água viva! [...] Aquele que bebe desta água (da fonte) terá sede novamente; mas quem beber da água que lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que lhe der tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna.” (4, 10. 13-14)

No encontro de Jesus com a samaritana podemos perceber um “diálogo de

revelação” a partir do versículo dez. Jesus vai introduzindo a samaritana em seu

mistério progressivamente. Num primeiro momento Jesus se revela como aquele

que dará a “água viva” (v.10). Esta mulher entende “água viva” a água corrente da

mina do fundo do Poço do Pai Jacó. Ela não entende que “água” é esta. Jesus

continua a iniciação da samaritana (vv.13b-14a). Apesar disto ela ainda não

entende, pois quer a água para não ter que tirá-la mais do poço (v.15). No

simbolismo do Primeiro Testamento a água viva (Eclo 21,13; 24,23-34)

representa a sabedoria e a Lei (cf. Pr 13,14; 16,22; Br 3,12; Eclo 24,21; Is 55,1).

Mas, este símbolo pode representar também o Espírito de Deus (Is 32,15; 44,3; Ez

36,25-27). 574 Segundo Johan Konings:

“Esses dois simbolismos parecem convergir aqui, como em outros textos de João e da catequese batismal dos primeiros cristãos. Ora, a sabedoria deixa a gente com sede (Sr 24,21), mas Jesus não: ‘A água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna’ (cf. 6,35). Jesus é mais que Jacó, mais que a Sabedoria dos livros bíblicos. A comunhão com Jesus, simbolizada pela água do batismo, é uma fonte de vida que não estanca e que nos comunica o Espírito (cf. 7,37-39).” 575

573 CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... Op. cit., p. 73. 574 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., pp. 141-142. 575 Ibid. p. 142. Grifo nosso.

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Esta água-Espírito, que é o guia interior da conduta do ser humano, transforma-se

em manancial interior que fecunda o ser (v. 14). Ela rega a terra de cada um

desenvolvendo nele suas próprias potencialidades. Esta água-Espírito que Jesus

concede se torna princípio interno de Vida. 576

No Primeiro Testamento a imagem mais característica do Espírito (ruah) é o

vento, o sopro. Na linha joanina esta imagem é a água, que apesar de não ser de

uso habitual, tornando-a de difícil compreensão aos ouvintes de Jesus, foi

compreendida por João (7, 39). 577 Portanto, para João o Espírito é aquele que

gerando a vida nova “impulsiona e anima o fiel até a vida eterna, do mesmo

modo como uma água vinda do alto faz subir a esse mesmo nível.” 578

3.3.4. O Espírito leva a afirmar a encarnação de Jesus

A preocupação dominante de João em sua primeira epístola 579 é a de fortalecer

seus leitores contra um grupo que se afastou da comunidade (2,19), e que ainda

tenta conquistar outros adeptos. Os participantes deste grupo não reconhecem que

Jesus Cristo veio na carne (sarx), o que significa o mesmo que negar sua

importância salvífica (4,2-3). Eles chegam a crer que não têm necessidade de

guardar os mandamentos, pois acreditam estar livres da culpa do pecado (1,6. 8 ;

2,4). Além disso, não mostram amor aos irmãos (2,9-11; 3,10-24; 4,7-21). 580

Diante disto João afirma:

“Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas examinais os espíritos para ver se são de Deus, pois muitos falsos profetas vieram ao mundo. Nisto reconhecereis o espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus; e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus; ” (1 Jo 4, 1-3a)

Mas, o que significa “não confessar Jesus na carne”? É exatamente o que os

separatistas desta comunidade estão fazendo: enfatizam tanto o princípio divino

em Jesus que negligenciam a carreira terrestre do princípio divino. 581 É claro que

576 Cf. MATEOS, J. BARRETO, J. Op. cit., p. 20. 577 Cf. CONGAR, Y. Revelação e Experiência do Espírito... op. cit., p. 75. 578 Ibid. p. 73. Grifo nosso. 579 Não entramos aqui na discussão sobre a autoria desta epístola. 580 Cf. BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo Amado... Op. cit., p. 98. 581 Cf. Ibid. p. 116.

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para João a divindade de Jesus, sua pré-existência como Filho de Deus, é

fundamental na confissão de fé do cristão/ã, tanto quanto a afirmação de sua

humanidade. Podemos perceber isto no prólogo do QE onde seu autor articula

magistralmente a humanidade e a divindade de Jesus: “E o Verbo se fez sarx

[humanidade] e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória [divindade] que ele

tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade.” (Jo 1, 14).

Apesar disso, o problema que João enfrenta neste momento é a negação da

humanidade de Jesus, e, portanto, é este aspecto que é por ele enfatizado como um

dos critérios de discernimento espiritual. Quem, a partir da experiência do

Espírito nega a humanidade de Jesus, na realidade não está fazendo uma

verdadeira experiência do Espírito, pois ela leva a pessoa a confessar que Jesus

não veio na sarx.

3.3.5. O Espírito é o agente dinâmico da verdadeira oração

Encontramo-nos novamente com Jesus e a samaritana. Como dissemos

anteriormente temos neste encontro um diálogo de revelação que agora passa a

aprofundar-se um pouco mais. Com o intuito de conscientizar esta mulher Jesus

manda-a chamar seu esposo. Ela responde que não tem marido (Jo 4,16-17a).

Como um profeta de visão aguda e palavra provocante Jesus responde: “Bem

disseste que não tens marido, pois cinco tiveste, e o que tens agora não é teu

marido” (Jo 4,17-18). Com esta resposta Jesus demonstra todo o seu

conhecimento do ser humano. No momento em que denuncia sua situação, a

mulher reconhece nele um profeta. A partir daí a samaritana começa logo a falar

de religião perguntando a Jesus quem está certo, os judeus que adoram no templo

de Jerusalém ou os samaritanos que adoram no monte Garizim? (cf. Jo 4,20).

Neste momento Jesus a coloca num nível mais profundo da revelação ao lhe dizer

que vem a hora em que nem no monte Garizim, nem no Templo de Jerusalém

poderá se adorar o Pai (cf. 4,21).582 O diálogo segue, e Jesus diz à samaritana:

“Mas vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai

em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é

espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.” (Jo 4, 23-

582 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., pp. 142-144.

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24). Portanto, para a pneumatologia joanina a verdadeira oração só acontece no

Espírito e a fundamentação para isto está na afirmação “Deus é Espírito” (v. 24):

porque Deus se dá aos seres humanos no Espírito, estes só podem ter acesso a ele

no Espírito. Logo, só conseguimos nos aproximar de Deus porque ele se voltou a

nós em seu Espírito, dando-nos seu Espírito e fazendo-nos renascer a partir de seu

Espírito. 583 Mas, o que significa realmente “adorar em espírito e verdade”?

Significa dizer que o homem e a mulher de fé adorarão a Deus, movidos/as por

seu sopro, o Espírito Santo, e fiéis à manifestação de Deus em Cristo, que é a

verdade. Logo, adorar em “espírito e verdade” é a verdadeira forma de oração

cristã que é possibilitada pelo Espírito tendo como objetivo a ser buscado a

conduta de Jesus Cristo. “Adorar em espírito e verdade” não é realizar um culto

“meramente espiritual”, mas pressupõe uma vida centrada na verdade manifestada

em Jesus, isto é, na prática do amor fraterno, possibilitada pelo Espírito. 584 Vale

a pena conferir o que nos diz Luiz Fernando Santana sobre o culto em “Espírito e

Verdade”:

“Adorar em Espírito e Verdade é expressão que indica adoração na luz e sob a moção da Palavra reveladora de Jesus que, mediante o Espírito, tornou-se a posse interior e a fonte permanente do crente. Trata-se não de dois princípios, mas de um só: A verdade recebida e feita própria mediante o Espírito, ou então, o Espírito que anima a palavra de revelação de Jesus. Princípio cristológico e princípio pneumático estão intimamente unidos. Eles realizam a adoração autêntica de Deus Pai que é Espírito, isto é, dom do Espírito.” 585

3.3.6. O Espírito gera o amor efetivo

A vida de Jesus, que destacamos no capítulo anterior resume-se no amor-serviço

concretizado efetivamente pela atuação do Espírito de Deus que o habita sem

medida. Este amor efetivo tem como atenção especial os pequeninos/as e os

renegados/as da sociedade. Vimos ainda que o Nazareno, na força do Espírito,

ama, serve e é solidário até às últimas conseqüências. Tudo isto é possível porque

Jesus de Nazaré sente-se amado de forma incondicional pelo Pai. De tal forma

experimenta-se amado, que é capaz de responder a este amor, amando seus

583 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 440. 584 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 144. 585 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 92. Grifo nosso.

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semelhantes. Esta experiência amorosa é feita por Jesus no Espírito. Para o

Nazareno não há outra forma de demonstrar o seu amor ao Pai a não ser

cumprindo seu desejo de revelá-lo como Abba que ama a todos/as sem exceção.

Este amor do Pai dado incondicionalmente a todos/as, e que nos é revelado por

Jesus, deve unir as pessoas numa grande família de irmãos/ãs que se amam

mutuamente. Esta corrente de amor que vem do Pai e chega ao Filho, e daí,

alcançando os seres humanos é possibilitada pelo Espírito. Ele é o “condutor”

deste amor que vem do Pai pelo Filho aos seres humanos. Assim, também da

mesma forma, todo amor para chegar ao Pai passa pelo amor efetivo entre os

irmãos/ãs, amor possibilitado pelo Espírito, e que é vivido e testemunhado por

Jesus. Somente assim, esta corrente amorosa pode nos ligar ao Pai. Portanto, é

novamente o Espírito Santo aquele “condutor” do amor que vai agora dos seres

humanos até o Pai, pelo Filho. João percebe muito bem esta maravilhosa realidade

quando alerta sua comunidade:

“Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar. E este é o mandamento que dele recebemos: aquele que ama a Deus ame também seu irmão. (1 Jo 4, 20-21)

Este amor mútuo entre os irmãos/ãs gera uma ética solidária entre as pessoas, isto

é, gera uma forma de comportamento baseada no serviço e na ajuda efetiva a

quem mais necessita desta. Este comportamento, fruto da ação do Espírito, está

muito claro para o autor do QE. Podemos ver isto com mais evidência no relato do

Lava-pés (Jo 13, 1-16). Segundo Johan Konings o acento mais forte deste relato

encontra-se naquilo que os discípulos/as devem fazer em imitação de Jesus. 586 É

este amor-serviço, amor efetivo e concreto que, segundo a pneumatologia joanina,

é gerado no seio de cada homem e de cada mulher pelo Espírito Santo.

3.3.7. O Espírito faz nascer a comunidade

Esta outra característica do Espírito dentro da pneumatologia joanina é

decorrência da anterior. O amor efetivo e solidário gerado pelo Espírito une as

pessoas, pois há entre elas o amor mútuo. Isto faz com que os homens e mulheres

586 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., p. 291. Grifo nosso.

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que aderem ao projeto amoroso do Pai no seguimento a Jesus formem uma

comunidade. Pois, “abrir-se para os outros, possibilitar comunicação e juntar as

pessoas para a unidade, para a koinonia/communio – isso constitui a essência do

Espírito.” 587 Dito de outra forma: é o Espírito que “colabora para que a pessoa (o

‘eu’) se abra para realizar a comunidade (o ‘nós’), e aconteça a ‘koinonia’, pois a

ordem do Espírito não é apenas trans ou supra-individual, mas é também

intersubjetividade.” 588 De tal forma a comunidade é obra do Espírito que

podemos afirmar que ele é o sujeito e o princípio da mesma. Conseqüentemente

todo serviço e ministério que aí encontramos é fruto da ação do Espírito. 589

Portanto, o é Espírito que faz nascer a comunidade, aquele que atua

constantemente em todos os membros da mesma para que possam servir. Aqui já

encontramos a outra característica do Espírito na perspectiva joanina que veremos

a seguir.

3.3.8. O Espírito é força para a missão

Acabamos de ver que o Espírito gera a comunidade a partir do amor mútuo que

une as pessoas. Entretanto, se esta comunidade é verdadeiramente fruto do

Espírito não fica fechada em si mesma, pois este Espírito impulsiona seus

membros para a missão no mundo. Como podemos afirmar isto? Vimos acima que

o Paráclito-Espírito é o continuador da obra de Jesus na comunidade. Foi esta

presença misteriosa que modelou a visão missionária desta comunidade,

tornando-a estritamente ligada à missão de Jesus, o “apóstolo” do Pai por

excelência. Logo, “a Igreja joanina olhava para si mesma como continuadora da

missão apostólica do Ressuscitado-Glorificado, sempre presente em meio aos

seus mediante a assistência do Paráclito.” 590 Portanto, podemos afirmar que a

comunidade joanina impulsionada pela força do Espírito se abre ao mundo, onde

em missão, leva a Boa Nova do Pai revelada por Jesus. Entretanto, esta

comunidade foi acusada por muitos dos estudiosos de ser uma seita, isto é, uma

587 HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 442. 588 ONUKI apud TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 167. 589 Cf. TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 168. 590 SANTANA, L. F. R. Op. cit., p. 87.

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comunidade fechada em si, devido ao amor mútuo. Acusação sem fundamento,

visto que este amor gera a comunidade dos seguidores de Jesus que é “impelida”

pelo Espírito para o mundo. Não podemos esquecer que foi este mesmo Espírito

que impulsionou Jesus em sua missão em direção ao mundo para cumprir o

projeto amoroso do Pai. Na expressão de Ana Maria Tepedino: “Como entender

uma comunidade fechada no seguimento de Jesus enviado ao mundo pelo amor

louco do Pai?” 591 Na realidade isto é impossível. Afirmar que a comunidade

joanina é fechada, significa o mesmo que negá-la como essencialmente

cristológica e pneumatológica, coisa que todos os autores pesquisados afirmam

ser. Podemos destacar isto em um dos textos do QE em que a percebemos indo,

com a proteção do Espírito, em direção ao mundo.

“À tarde desse mesmo dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas onde se achavam os discípulos, por medo dos judeus. Jesus veio e, pondo-se no meio deles disse: ‘A paz esteja convosco!’ Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos, então, ficaram cheios de alegria por verem o Senhor. Ele lhes disse de novo: ‘A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, também eu vos envio.’ Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo.” (Jo 20,19-22)

Os discípulos/as encontram-se trancados por medo dos judeus. Jesus ressurreto

aparece e lhes diz por duas vezes “A paz esteja convosco!”. Esta saudação

repetida parece implicar na realização das promessas anunciadas por Jesus na

hora da despedida. Ele havia prometido que os seus haviam de revê-lo (14,19;

16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a paz (14,27). A paz e

a alegria contrastam com o medo que aprisionava os discípulos/as anteriormente.

Realiza-se assim a promessa: “Tende coragem, eu venci o mundo” (16,31; cf.

16,11). É nesta perspectiva que devemos interpretar a missão que Jesus confia

aos discípulos/as. Em sua oração ao Pai, ao terminar seu discurso de despedida,

Jesus confia uma missão aos seus/as, que nada mais é que a mesma missão que o

Pai havia a ele confiado: “Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei

ao mundo”. (Jo 17,18). A missão, portanto, é a mesma. Para que os seus/as

possam realizar esta missão, e num gesto que lembra a ação de Deus na criação

(Gn 2,7), Jesus sopra (insufla) sobre eles o Espírito da parte de Deus. Eles não

recebem um simples carisma, mas sim uma vida nova, como sugere a 591 TEPEDINO, A. M.. A importância do Espírito Santo/Paráclito na Tradição Joanina. In: Atualidade Teológica... Op. cit., p. 169.

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proximidade da imagem do insuflar. 592 Os discípulos/as possuem agora o Espírito

para que possam cumprir a missão de serem testemunhas da fé frente à descrença

do mundo, que segundo a perspectiva joanina é o pecado do mundo. 593 “O sopro

do Cristo ressuscitado opera nos discípulos/as uma transformação radical, recria-

os e os torna aptos à obra sobre-humana da qual passam a ser responsáveis e os

consagra à missão.” 594 Portanto, é a partir desta nova vida advinda do Espírito,

que os discípulos/as renovados e animados, encontram-se cheios de alegria, paz e

coragem para assumir a missão cristã no mundo.

3.4. Balanço da investigação sobre a Experiência Histórica do Espírito de Deus nas pneumatologias das primeiras comunidades cristãs

Como já fizemos anteriormente nos dois capítulos precedentes iremos agora

reunir neste item, e de forma sintética, os dados que pudemos recolher das três

principais pneumatologias do Segundo Testamento. Mantendo-nos fiéis a nossa

metodologia iremos, simplesmente, elencá-los em duas grandes linhas: identidade

(quem é o Espírito de Deus revelado nas pneumatologias de Lucas, Paulo e João )

e ação (como age esse Espírito nas comunidades nascentes). Estas informações

nos darão a possibilidade de conhecer quem é o Espírito que se encontra revelado

nas páginas da Sagrada Escritura e os critérios de discernimento que podemos

extrair destas páginas.

3.4.1. Identidade: Quem é o Espírito que se encontra revelado nas pneumatologias lucana, paulina e joanina?

Com base naquilo que acabamos de refletir podemos dizer que o Espírito Santo

revelado no Segundo Testamento é aquele que: a) sendo o Espírito da vida

animou Jesus possibilitando sua ressurreição e Espírito que possibilita,

igualmente, o novo nascimento de tudo quanto vive. Logo, o Espírito é Vida e

comunica a Vida sendo o princípio de nossa vida escatológica. Por isso, é a

antecipação e o início da nova criação do mundo no final dos tempos. Ele é a

592 Cf. KONINGS, J. Evangelho Segundo João... Op. cit., pp. 406-407. 593 Cf. HILBERATH, B. J. Pneumatologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de Dogmática... Op. cit., p. 437. 594 SANTANA, L. F. R. Op. cit., pp. 88-89. Grifo nosso.

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fonte de vida por excelência, o princípio vital novo, infundido por Deus e que cria

no ser humano a condição de “espírito”, dando-lhe a capacidade de amar e

conseqüentemente a possibilidade de salvar-se; b) constitui homens e mulheres

como filhos e filhas de Deus. Gera a adoção filial, pelos méritos de Jesus Cristo

sendo o motor da transformação que traz vida nova a estes filhos/as que

abandonam o egoísmo (subjetividade fechada) e se deixam guiar por sua ação

amorosa; c) dá continuidade a História da Salvação, pois é ele que une toda a

História tornando-a uma única expressão do amor salvífico de Deus por sua

criação e por suas criaturas; d) é a presença viva de Jesus na vida da comunidade

depois de sua morte-glorificação. É o “alter ego” de Jesus tendo a mesma função

dele e sua personalidade reflete a pessoa de Jesus. O Espírito atualiza e propaga a

salvação, adquirida por e em Cristo. É a força do próprio Deus, que agindo

naquele e naquela que se abre a sua ação e se coloca disponível a seus impulsos,

leva-os/as a continuar o que Jesus começou. Portanto, inspira e anima o/a fiel

para um verdadeiro discipulado, dentro das novas situações e desafios históricos;

e) é Liberdade, a Nova Lei gravada no coração de cada ser humano, isto é, a força

libertadora que possibilita os que crêem libertarem-se do regime da lei, do pecado

e da morte. Possibilita a adesão a Jesus suscitando transformações radicais na

comunidade e levando o ser humano a uma práxis libertadora. Além disto, ele

também está presente nas histórias de todos os povos, sempre ativando seu

projeto de liberdade e vida para todos/as, sendo a sua ação universal; f) é Amor

(ágape), por isso, rompe todas as barreiras possibilitando a verdadeira

comunicação entre as pessoas, pois lhes dá a linguagem universal do amor, da

gratuidade, da partilha, da concórdia, da fraternidade. Sendo Amor gera o amor

efetivo entre as pessoas originando uma ética solidária entre elas, uma forma de

comportamento baseada no serviço e na ajuda efetiva a quem mais necessita; g)

tem a função decisiva na construção da Igreja e na sua unidade. De tal forma a

comunidade é obra do Espírito que podemos afirmar que ele é o sujeito e o

princípio da mesma. Além disso, possibilita à Igreja conhecer a vontade de Deus

sobre o caminho que deve seguir em cada momento histórico. É o Defensor,

Intercessor, Consolador e Encorajador da comunidade eclesial. Gera os

ministérios na Igreja com a finalidade de edificar a comunidade. É a intrepidez

(parresia) que acompanha o homem e a mulher de fé, sendo a força para a missão

que devem desempenhar no mundo, dando-lhes a capacidade de evangelizar de

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forma inculturada. Além disto, possibilita a koinonia (comunhão) que há entre os

membros da comunidade; h) possibilita que homens e mulheres lutem ombro a

ombro para colaborar na construção do Reino; i) gera a verdadeira oração cristã

possibilitando que o ser humano ouça e fale com Deus, pois é o intérprete de

nossos sentimentos mais íntimos, tornando-se o porta-voz da súplica de quantos

lutam pelo mundo novo; j) possibilita a todos/as a sabedoria que vem de Deus,

principalmente aos mais pobres e aos marginalizados/as, sabedoria que leva-nos

a encontrar um sentido para nossas vidas; l) traz a alegria nas tribulações, alegria

que não significa alienação diante da realidade vivida, muito menos entusiasmo

passageiro; m) é o Espírito da Verdade, a Testemunha autorizada de tudo o que

Jesus disse e fez, portanto, é a sua memória viva. É o Mestre da comunidade, mas

um Mestre que ensina aquilo que Jesus já havia ensinado. É o Pedagogo que traz

à memória os fatos ocorridos no tempo de Jesus e faz com que as pessoas tenham

um entendimento mais profundo destes fatos. É o Mistagogo que possibilita o/a

crente entrar no mistério de Deus através da compreensão mais adequada da vida-

morte-ressurreição de Jesus. É Teólogo e Autor do Evangelho mostrando que tudo

aquilo que Jesus disse e fez vinha de Deus e é o caminho para nossa salvação.

Portanto, leva o/a fiel a afirmar a encarnação de Jesus e igualmente sua

divindade. Além disto, deixa claro que aqueles/as que rejeitam Jesus e sua Boa

Nova condenam a si mesmos/as.

3.4.2. Ação: Quais os critérios que nos ajudam a discernir se o Espírito que agiu nas primeiras comunidades cristãs é o mesmo que age hoje no ser humano e no mundo?

Segundo o que pudemos observar sobre a forma de agir do Espírito Santo nas

comunidades primevas podemos afirmar que sua ação: a) gera vida, liberdade,

verdade e amor entre todos os seres humanos; b) conscientiza as pessoas que sua

existência marcada pela morte dá lugar à vida; c) estimula as pessoas a buscarem

sua própria liberdade e a libertarem aqueles/as que vivem como escravos/as; d)

encoraja homens e mulheres a lutarem por transformações necessárias na

sociedade, para torná-la mais justa e fraterna; e) origina o amor efetivo (ágape)

entre os seres humanos; f) determina onde se encontra a verdade, pois é a luz que

ilumina os caminhos tortuosos da humanidade; g) constitui a comunidade dos

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seguidores/as de Jesus; h) se estende a todos os membros do povo de Deus sem

que haja qualquer tipo de discriminação; i) não tem como finalidade a edificação

pessoal, mas possibilita ao ser humano a comunicação do Evangelho; j) leva o

homem e a mulher de fé a testemunhar, através da pregação e da vida, que Deus

ama gratuitamente e salva a todos e todas, sem que haja distinção alguma; l) faz

nascer testemunhas cheias de intrepidez, coragem e audácia; m) possibilita a

presença atuante da mulher e sua aceitação e valorização por todos os membros

da comunidade; n) gera os verdadeiros ministérios e serviços eclesiais deixando

claro que todos eles são necessários e importantes, porém os mais espetaculares

devem ser os últimos em importância; o) possibilita a conscientização de que não

há oposição entre carisma e instituição; p) leva a pessoa a perceber que o

extraordinário da experiência com o Espírito de Deus esconde-se e revela-se no

ordinário e cotidiano da vida humana; q) gera articuladamente mística (oração) e

prática concreta do amor-serviço (ação) de forma que uma alimenta a outra, sem

dualismos mutiladores; r) possibilita àqueles/as que se deixam cristificar por ele,

viverem as mesmas opções concretas que o nazareno viveu, isto é, viverem o

amor serviço; s) dá condição de possibilidade para que haja ordem na

comunidade, porém sem que se extingam os dons suscitados por ele; t) gera uma

comunidade onde seus membros encontram-se abertos/as para a missão no mundo

sendo continuadores/as da missão do Ressuscitado-Glorificado.

Como podemos constatar a ação do Espírito revelado no Segundo Testamento tem

como finalidade a abertura do ser humano a Deus e aos irmãos e as irmãs, pois

nunca leva a pessoa a fechar-se em si mesma, mas pelo contrário é ele que

possibilita a relação, fazendo cair todas as barreiras que possam existir entre as

pessoas. Além disto, gera a comunidade e a impulsiona para o mundo.

Com estes elementos recolhidos sobre a identidade e a forma de agir do Espírito

de Deus na vida dos primeiros cristãos/ãs estamos preparados/as para uni-los aos

dados recolhidos dos dois capítulos anteriores e assim poder conhecer quem é o

Espírito Santo que se encontra revelado na Bíblia e elencar os critérios de

discernimento que brotam da Sagrada Escritura.

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Conclusão

Fizemos uma afirmação no início de nosso trabalho que gostaríamos de recolher

neste momento: a Bíblia só é Sagrada Escritura em sua unidade. Esta unidade

fundamental imprescindível podemos percebê-la em relação ao tema que

abordamos. Existe uma harmonia, uma total coerência entre a Experiência

Histórica vivida pelo Povo de Deus do Primeiro Testamento com seu Espírito,

com a vivida por Jesus de Nazaré e, igualmente, com a que viveram seus

seguidores e seguidoras no início do cristianismo. Podemos ainda perceber, que

esta unidade se dá numa continuidade dinâmica. Dizer isso, significa afirmar que

há uma continuidade nestas experiências pneumatológicas porque é o mesmo

Espírito que é experimentado, mas, ao mesmo tempo, significa afirmar que esta

continuidade é dinâmica porque ganha um sabor de total novidade que é trazida

por Jesus Cristo. Esta continuidade dinâmica é o desígnio da graça de Deus que

vem se cumprindo amorosa e pedagogicamente no Povo de Deus até que, na

plenitude dos tempos, aquilo que antes havia sido prometido e que era tão

ansiosamente esperado se realiza. Tudo isto se dá sob o signo do Espírito Santo!

Com base naquilo que refletimos até aqui, pretendemos neste momento recolher

os traços constantes que marcam a experiência humana com o Espírito de Deus a

partir da revelação que vemos consignada nas páginas da Sagrada Escritura. Isso

nos permitirá levantar os critérios de discernimento, que poderão, num estudo

posterior, servir de base para o desenvolvimento de uma Pneumatologia Integral

que poderá ser colocada em confronto com a prática eclesial.

As quatro afirmações fundamentais que se faz na Bíblia quando se

quer expressar a Experiência Histórica com o Espírito de Deus

Fundamentando-nos na pesquisa que fizemos em autores/as renomados, podemos

afirmar que há na Sagrada Escritura quatro grandes sinalizadores da presença

deste Espírito agindo na História. A especificidade de cada uma das etapas que

fomos encontrando ao trabalhar os três capítulos desta dissertação não será agora

contemplada, pois o que buscamos neste momento é destacar aquilo que se repete

continuamente na experiência com o Espírito Santo. Estes quatro sinais que

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apontam para a presença deste Espírito agindo em toda criação e na História, já

estão de alguma forma presentes no Primeiro Testamento, mesmo que não o

encontremos com toda a clareza que alcançam a partir da plenitude da revelação

que se dá em Jesus Cristo. Vejamos a seguir quais são estes sinalizadores.

1. O Espírito é Vida

A primeira e mais fundamental característica desta experiência com o Espírito de

Deus é a afirmação de que ele é Vida. Dito com outras palavras ele é o princípio

vital de tudo o que existe. Deus coloca este princípio, que é o seu Espírito, na

estrutura da criação e em cada criatura criada. Este Espírito, além disso, é o poder

organizador e ordenador do universo que está presente nele e acompanhando-o

sempre. Ele é como uma Grande Mãe, que de suas amorosas e fecundas

entranhas, dá à luz e faz eclodir o universo, trazendo as coisas do lugar de onde

não são para que sejam. Por isso, podemos crer e invocar a Deus não só como Pai

forte, mas também como Mãe que aconchega, consola, abriga e protege. O

Espírito de Deus transformou o caos primordial em vida e esta realidade tornou-se

um referencial significativo para toda espécie de caos que foi experimentado pelo

homem e pela mulher bíblicos. Sempre que este/a se viu ameaçado pelas forças

que geravam o caos ele/a se lembrava que o Espírito de Deus é Vida e doador de

Vida. Portanto, ele é a promessa criadora de Vida que encontramos em toda

situação caótica da história pessoal ou social do ser humano. Sendo assim,

podemos afirmar que ele é o motor da transformação que traz Vida Nova a toda

pessoa humana que se deixa guiar por sua ação amorosa. Somente desta forma

esta pessoa se torna capaz de abandonar o seu egoísmo (subjetividade fechada) e

abrir-se para o outro/a. Ele é ainda o Princípio de Vida Eterna que possibilita ao

fim aparente que é a morte, se transformar num novo e maravilhoso começo, pois

ele a tudo renova. Logo, o Espírito é Vida e comunica a Vida sendo a antecipação

e o início da Nova Criação do mundo no final dos tempos. Ele é a fonte de Vida

por excelência que cria no ser humano a condição de “espírito”, dando-lhe a

capacidade de amar e, conseqüentemente, a possibilidade de salvar-se.

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2. O Espírito é Liberdade

O segundo traço marcante do Espírito Santo que perpassa toda a revelação é o de

que ele é Liberdade. Ele é na realidade o espaço de liberdade onde o ser humano

pode desenvolver-se. É o desejo de Liberdade gravado no coração de cada pessoa

humana, isto é, ele é a força libertadora que dá condição de possibilidade a todo

homem e mulher de viver livremente. É ele quem os inspira a se posicionarem a

favor da Liberdade também para os outros seres humanos, o que lhes possibilita

viver uma práxis libertadora. Finalmente, é o Espírito Santo de Deus quem está

presente nas histórias de todos os povos, sempre ativando seu projeto de

liberdade e vida para todos/as.

3. O Espírito é Verdade

A outra qualidade fundamental do Espírito de Deus é dele ser Verdade. Ele é a

Verdade divina agindo naquele e naquela que se abre a sua ação e se coloca

disponível a seus impulsos. Sendo assim, leva-os a encontrar a Verdade que é a

vontade de Deus que os orienta sobre o caminho a ser seguido e concretizado em

cada momento histórico, dentro das novas situações e desafios que devem

enfrentar. Além disso, conscientiza o ser humano sobre a necessidade de

transformar a sociedade para que seja mais justa e fraterna. Ele é a Sabedoria que

vem de Deus, a companheira ideal que dá ao ser humano a capacidade de

encontrar um sentido para sua vida. Portanto, por ser Verdade, ele é o Princípio

de Discernimento que sinaliza para o homem e a mulher a escolha que deve ser

feita para concretizar historicamente o Reino de Deus.

4. O Espírito é Amor

A quarta característica que pudemos perceber que se encontra em toda revelação

sobre o Espírito Santo, e que desponta com maior fulgor, principalmente, no

Segundo Testamento, é a de que ele é Amor. O Espírito é o Amor que há no

coração de todo ser humano. Ele é o Amor que ama sem limites o ser humano,

simplesmente porque ele é humano. Mas, exatamente por ser Amor, respeita as

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opções de toda pessoa humana, tomando sempre o partido dos mais fracos. É

Amor-agápico que possibilita à pessoa romper todas as barreiras que impedem a

vivência do verdadeiro Amor. Ele dá condições de possibilidade para que

aconteça a verdadeira comunicação, pois suscita entre as pessoas a linguagem

universal do amor, da gratuidade, da partilha, da concórdia, da fraternidade. É

ele, quem possibilita que as quatro relações fundamentais constitutivas do ser

humano aconteçam na total abertura ao outro/a e ao grande Outro. Sendo Amor

ele gera o amor efetivo entre as pessoas originando uma ética solidária entre elas.

Por ser Amor tem a função decisiva na construção de toda comunidade humana a

tal ponto que podemos afirmar que ele é o sujeito e o princípio de toda e qualquer

comunidade humana. Ele possibilita ainda a comunhão que há entre os membros

destas comunidades, fazendo com que homens e mulheres lutem ombro a ombro

para colaborar na construção de um mundo melhor.

Os principais critérios de discernimento que encontramos na Sagrada Escritura

Estes critérios, que são muitos e variados, encontram-se espalhados por toda

Bíblia. Entretanto, podemos vê-lo com maior clareza, principalmente, no Segundo

Testamento. Como já dissemos ao longo de nossa pesquisa, eles surgem dos

problemas encontrados em lidar com a novidade que os primeiros cristãos/ãs

estavam vivendo, a vida no Espírito. Desta forma, iremos nos basear nas quatro

linhas mestres da ação do Espírito de Deus na Criação e na História que acabamos

de destacar, para assim podermos apresentar os critérios de discernimento que

brotam da Sagrada Escritura. Não devemos esquecer que a questão que está por

trás destes critérios que elencaremos a seguir é a esta: Como saber que “espírito” é

este que está agindo no ser humano e na comunidade? Ou ainda: O que nos

garante que o “espírito” que está agindo é realmente o Espírito Santo de Deus?

Encontramos algumas respostas para estas questões nas páginas da Bíblia,

entretanto, estamos conscientes que outras mais poderão ser ainda encontradas.

São estas as respostas que fomos capazes de perceber na Sagrada Escritura:

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1°- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra a Vida

Este critério nos afirma que SE o Espírito é Vida e está constantemente em

relação com a Vida fazendo-a surgir como o faz uma Mãe; SE ele preserva a

vida, sendo a força de vida imanente em tudo quanto é vivo; SE ele age no

interior da humanidade inteira suscitando o homem novo e a mulher nova ao

transformar seus corações de pedra em corações de carne; SE ele faz expandir a

experiência de vida em toda a Criação e em toda História; SE é ele quem fará

surgir, no final dos tempos, a Nova Criação; ENTÃO podemos afirmar que em

todo lugar onde a vida é negada, onde vemos sinais de morte, o Espírito Santo

encontra-se impossibilitado de agir.

2°- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra a Liberdade

Este critério nos afirma que SE o Espírito é Liberdade que age de forma lenta e

amorosa no íntimo das liberdades pessoais; SE ele é Liberdade que não pode ser

confundida com arbitrariedade ou licenciosidade, pois o amor é a “regra” que rege

a liberdade infundida por ele nos seres humanos; SE ele é movimento que põe

tudo em movimento, levando as pessoas da estreiteza para a amplidão; SE ele é

Liberdade que não se encontra preso a nenhum espaço físico, não sendo possível

“domesticá-lo” ou “manipulá-lo”; SE ele estimula as pessoas a buscarem sua

própria liberdade e a libertarem aqueles/as que vivem como escravos/as; SE ele

provoca no ser humano o desejo de ser livre e de viver em liberdade, assim como

o desejo de construir uma sociedade fraterna, igualitária e justa para todo/as;

ENTÃO, podemos afirmar que onde há estagnação, paralisia, ou onde

encontramos estruturas esclerosadas e engessadas; onde há opressão, opressor e

oprimido; onde homens e mulheres vivem relações de dominação/dependência

patriarcais; onde há tentativas de manipular este Espírito; onde há qualquer tipo de

escravidão, o Espírito Santo não está tendo oportunidade de agir e de concretizar

historicamente a verdadeira liberdade.

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3°- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra a Verdade

Este critério nos afirma que SE o Espírito é Verdade; SE ele é o discernimento

que possibilita a todo e qualquer ser humano viver uma vida de amor e serviço, a

exemplo daquela vivida por Jesus; SE ele determina onde se encontra a Verdade,

pois é a luz que ilumina os caminhos tortuosos da humanidade; SE é ele quem

esclarece aos homens e às mulheres onde se encontra a mentira que impede a

atuação do Reino no “já” da História, encorajando-os a serem fiéis ao projeto

amoroso do Pai; SE ele é a Verdade de Deus que se encontra no mais íntimo de

todo ser humano; SE ele é a Verdade plena que guia os discípulos/as de Jesus,

pois atualiza o papel do Nazareno em sua ausência; SE ele possibilita que o ser

humano conheça a vontade de Deus sobre o caminho que deve ser seguido em

cada momento histórico; ENTÃO, podemos afirmar que ele é o próprio

Discernimento em pessoa que se encontra “abafado”, “calado” em todo e qualquer

lugar onde reina a mentira, a falsidade, a injustiça e o mal.

4°- Onde está o Espírito Santo de Deus aí se encontra o Amor

Este critério afirma que SE o Espírito Santo é o Amor de Deus que está presente

em todas as suas criaturas; SE ele introduz o ser humano no Mistério de Deus

para que este encontre aí o Amor restaurador que nos possibilita amar o irmão/ã,

originando desta forma o amor agápico; SE ele capacita todo homem e mulher

com seu dom para que o partilhe com os outros seres humanos; SE é ele

o“condutor” da corrente de amor que vem do Pai pelo Filho até que chegue a nós

seres humanos, sendo igualmente, o “condutor” do amor que vai de nós até o Pai,

pelo Filho; SE é ele quem gera o amor-serviço, amor efetivo e concreto no seio

de cada homem e de cada mulher; ENTÃO, onde não encontramos relações

baseadas no amor concreto e solidário; onde o que pauta a vida das pessoas é o

poder e não o amor-serviço, podemos afirmar que o Espírito Santo encontra-se

impossibilitado de agir.

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5°- Onde o Espírito de Deus se encontra o extraordinário de sua experiência esconde-se e revela-se no ordinário e cotidiano da vida humana

Este critério afirma que SE a “vida no Espírito” encontra-se encarnada nas ações

ordinárias e comuns da vida das pessoas; SE o falar, rezar, caminhar, viajar,

orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir e tantas

outras atividades comuns do dia-a-dia podem e devem ser vividas no Espírito; SE

a “vida no Espírito” impulsiona o homem e a mulher de fé a vivê-la

constantemente em todas as ações ordinárias da vida humana levando-os a

articular mística e prática concreta do amor-serviço de forma que uma alimenta a

outra, sem dualismos mutiladores; SE a “alegria nas tribulações” é o indicador

mais poderoso da autêntica experiência do Espírito; SE o lugar sociológico do

Espírito é estar no mundo, permanecendo nos fiéis, de tal forma que o

espiritualismo é o pior inimigo do Espírito; ENTÃO quando a experiência

carismática aprisiona a pessoa no gozo da mesma; quando leva a pessoa a buscar

nesta experiência o maravilhoso ou mágico, com a finalidade de facilitar a vida

cotidiana, podemos afirmar que não é o Espírito Santo de Deus que está agindo

neste homem ou mulher.

6°- Onde o Espírito Santo de Deus se encontra as relações humanas são vividas na abertura ao “outro” e ao grande Outro

Este critério afirma que SE o Espírito possibilita a abertura do ser humano a

Deus e aos irmãos e as irmãs; SE ele nunca leva a pessoa humana a fechar-se em

si mesma, mas pelo contrário possibilita a relação com os outros/as e o grande

Outro; SE ele derruba todas as barreiras criadas pelos seres humanos que os

impede de amar verdadeiramente; ENTÃO onde há fechamento, egoísmo, auto-

suficiência; onde o ser humano cria barreiras discriminatórias, podemos afirmar

que o Espírito Santo não está tendo possibilidade de agir.

7°- Onde o Espírito Santo de Deus se encontra as pessoas se unem em comunidade

Este critério afirma que SE o Espírito é o motor, a força, a luz que guia e sustenta

toda comunidade humana; SE ele cria laços de união entre as pessoas que

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desejam mais Vida e Liberdade, capacitando-as para que possam abrir novos

caminhos dentro da História; SE ele gera comunidades onde todos se entendem

apesar das diferenças pessoais; SE ele faz destas diferenças o enriquecimento da

comunidade; ENTÃO quando as pessoas não se entendem dentro de uma

comunidade possibilitada pelo Espírito; quando as diferenças são motivos de

desunião e fragmentação, podemos dizer que o Espírito de Deus encontra-se

“abafado”, isto é, as pessoas não estão dando ouvidos a seus apelos de unidade e

comunhão.

Como podemos constatar o Espírito Santo revelado em toda Sagrada Escritura, e

com mais clareza e força no Segundo Testamento, nos deixa vislumbrar que ele é

o Protagonista da História da Salvação. Ele autolimitando-se, auto-rebaixando-se

inabita empaticamente toda criatura, sendo a presença divina constante e

dinâmica, o segredo mais íntimo destas, sem jamais abandonar nenhuma de suas

criaturas amadas. Esta é a forma kenótica do Espírito atuar: “esvaziando-se de si

mesmo” para que o outro/a possa ser o “protagonista” da ação possibilitada por

ele.

Depois desta longa e gratificante caminhada, que nos foi possibilitada pelo Santo

Espírito, a única maneira que entendemos ser possível terminar esta nossa

pesquisa é em forma de oração. Por isso, rezamos humildemente:

Mistério escondido,

maravilha inebriante,

realidade indizível

que só entre véus

posso vislumbrar.

Espírito de Vida,

amada Mãe que me gera

em seu generoso ventre,

e que me protege,

acalenta e consola.

Espírito de Liberdade,

movimento incontrolável

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226

que sopra em meu coração

inspirando-me a buscar

Liberdade para minha vida,

e para a vida de todo ser humano.

Espírito de Verdade,

luz que me ilumina e guia

pelos caminhos que escolho percorrer.

Espírito de Amor

derramado abundantemente em meu coração

para que eu possa partilhá-lo

com meus irmãos e irmãs de caminhada.

Espírito de Unidade e Comunhão,

vínculo de amor que me une

a todas as criaturas,

e que me impulsiona a formar comunidade.

Espírito de Paz,

de Confiança e de Alegria,

que me fortalece nos momentos difíceis

possibilitando-me seguir,

apesar das tribulações.

Espírito de Esvaziamento,

que se reveste do meu corpo,

pois aceita tê-lo como seu corpo.

Espírito de Inabitação,

ajuda-me a tomar consciência

de tua eterna presença em mim.

Assim, aberta a tua amorosa ação,

serás em mim

a regeneração de meu ser,

a Nova Vida acontecendo,

desde já em minha história.

Amém.

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