solange e raimundo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS LITERATURA PORTUGUESA III ALUNA Jéssica Fraga da Costa Proposta 2: Solange de Matos X Raimundo Silva Raimundo, narrar para mim é algo que está muito relacionado às memórias coletivas. Quando comecei a relatar os fatos de A noite das mulheres cantoras, procurei pensar em como poderia representar as pessoas que foram envolvidas em tudo que aconteceu. Certamente Solange, narrar aquilo que se viveu precisa estar muito de acordo com os acontecimentos, principalmente se queres representar um grupo e não apenas tu. Porém, não me parece que é o teu caso. Tu narras a história de um grupo ao qual tu fizeste parte, mas não sei se tudo que narras está tão de acordo com os “acontecimentos”, já que fazes tanta questão de destacar isso, tenho cá minhas dúvidas. Depois, gostaria de ressaltar que o ato de narrar está muito relacionado ao preenchimento de certos vazios que são deixados. Quando escrevi minha História do Cerco de Lisboa, procurei pensar em tudo que a história canônica deixou de lado, aquilo tudo que foi ignorado pela chamada “verdade” ou “realidade” suprema dos historiadores. Tudo que para mim parecia não estar muito de acordo com a verossimilhança. O que era vazio, procurei preencher e ajudar meu leitor a compreender como a história poderia ter acontecido. Sim meu amigo, fizeste um belo trabalho de ficção! Consegues mostrar que nós portugueses não somos heróis, sentes orgulho disso? Não, eu realmente gostaria de contar o contrário se é que o contrário fosse realidade. Infelizmente esse heroísmo não existiu. O que os chamados “heróis” fizeram nada mais foi do que tornar nosso presente ainda pior. As ações passadas refletem hoje os pecados lá do passado. Quanto sangue derramado, quanta destruição! E ainda faziam questão

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Page 1: Solange e Raimundo

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS

LITERATURA PORTUGUESA IIIALUNA Jéssica Fraga da Costa

Proposta 2: Solange de Matos X Raimundo Silva

Raimundo, narrar para mim é algo que está muito relacionado às memórias coletivas. Quando comecei a relatar os fatos de A noite das mulheres cantoras, procurei pensar em como poderia representar as pessoas que foram envolvidas em tudo que aconteceu.

Certamente Solange, narrar aquilo que se viveu precisa estar muito de acordo com os acontecimentos, principalmente se queres representar um grupo e não apenas tu. Porém, não me parece que é o teu caso. Tu narras a história de um grupo ao qual tu fizeste parte, mas não sei se tudo que narras está tão de acordo com os “acontecimentos”, já que fazes tanta questão de destacar isso, tenho cá minhas dúvidas. Depois, gostaria de ressaltar que o ato de narrar está muito relacionado ao preenchimento de certos vazios que são deixados. Quando escrevi minha História do Cerco de Lisboa, procurei pensar em tudo que a história canônica deixou de lado, aquilo tudo que foi ignorado pela chamada “verdade” ou “realidade” suprema dos historiadores. Tudo que para mim parecia não estar muito de acordo com a verossimilhança. O que era vazio, procurei preencher e ajudar meu leitor a compreender como a história poderia ter acontecido.

Sim meu amigo, fizeste um belo trabalho de ficção! Consegues mostrar que nós portugueses não somos heróis, sentes orgulho disso?

Não, eu realmente gostaria de contar o contrário se é que o contrário fosse realidade. Infelizmente esse heroísmo não existiu. O que os chamados “heróis” fizeram nada mais foi do que tornar nosso presente ainda pior. As ações passadas refletem hoje os pecados lá do passado. Quanto sangue derramado, quanta destruição! E ainda faziam questão de se chamarem cristãos, aqueles que iriam levar a palavra divina aos povos que não a conheciam. Isso parece aquelas piadas de péssimo humor, não há outra explicação. E me diga uma coisa, o que tu fizeste não se trata de ficção também?

Sim Raimundo, o que eu fiz também é ficção, mas não contei nada de não tenha acontecido. Tu ao contrário, distorceste muito os fatos que aconteceram. Enches o peito para falar na tua grande História do Cerco de Lisboa, mas além de não contares a nossa verdadeira história ainda destaca tudo de ruim que o povo português fez. Eu entendo que não foi da melhor maneira, mas para que um objetivo fosse alcançado era necessário abrir mão de algo.

Queres discutir o valor de verdade da minha história? Mas afinal que verdade é essa que tanto falas? Está referindo-se aos livros de história? Destacas a história tradicional? Não consigo entender por que falas mal do meu livro se o que eu vejo nos livros de história estão tão próximos da minha ficção. O que os historiadores fazem não é estudar documentos históricos e escrever sobre eles? Eu também fiz a mesma coisa. Estudei tudo que a história “canônica” diz, estudei documentos, observei a nossa Lisboa atual e escrevi sobre tudo o que vi. E além disso, eu dei mais realidade aos acontecimentos, dei vida aquelas personagens históricas que pareciam engessadas.

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Procurei mostrar a vida, o dia a dia de quem viveu tudo aquilo. E não apenas mostrar a verdadeira história. Mas que verdade é essa que não mostra seres humanos que a viveram? Pelo visto preciso repetir o tempo todo, o que não parecia real eu modifiquei mesmo, fiz da maneira como me pareceu mais próxima da “verdade”. O que parece é que a História quer mostrar super- heróis e pelo que me parece você acredita nestes super-heróis não é Solange? Mas como foi que esqueci disso? A maravilhosa heroína da tua história é tu mesmo! E a malvada da Gisela Batista, já te recuperaste?

Debochas de mim descaradamente! Não quero discutir contigo conceitos sobre verdade. Essa conversa parece as que eu tinha com o Murilo, não me agrada nem um pouco esses assuntos tão filosóficos. Eu não sou nenhuma heroína e nem tentei ser na minha narração. Apenas quis mostrar como tudo aconteceu, o que eu posso fazer se a Gisela sempre foi uma péssima pessoa? Sei que no começo, eu fiquei bastante empolgada com as possibilidades que surgiram para mim, mas aos poucos pude ir percebendo que a maldade e ambição da Gisela não tinha limites. Olha o que ela fez com a pobre da Madalena? Que coisa horrível. Ainda queria mandar em todas nós como se fosse melhor do que alguém ali. Ela nem ao menos cantava. Levou todos os créditos, quis contar no dia da apresentação que eu compus as canções pra tentar me agradar e ver se eu voltava a fazer tudo que ela queria. E eu não acredito em super-herois, meu caro, ei apenas respeito os ícones de nosso passado ao contrário de ti.

Não estou a debochar de ti Solange, apenas estou falando o que me parece ser o que acontece em tua narrativa. Claro que a Gisela era uma péssima pessoa, principalmente percebemos isso pelo contraste que acontece entre vocês duas, tu sempre boa, correta. Não é verdade? Mas eu fiquei com uma grande dúvida, já que falaste na Madalena, não entendo como tu conseguiste viver tudo como viveste depois do que aconteceu com a moça. Afinal o que eu mais reparei foi que todas vocês seguiram suas vidas como se nada tivesse acontecido. Ignoraram a morte da companheira e não fizeram nada. O corpo da pobre retirado como uma velha mobilha inútil, sabe-se lá para onde foi. Nada de polícia, de contatar a família. Tu poderias ter feito algo. Faltou apenas vontade da tua parte. Falas que não respeito nossos ícones, mas e tu que não respeitou a tua própria companheira de grupo? Depois eu não faltei com respeito a ninguém, apenas não acredito que os seres humanos sejam tão perfeitos e idealizados como pintam os historiadores. Minha vontade foi mostrar todos como seres humanos que foram e não como ídolos inexistentes. Eu quis mostrar que essas pessoas não fizeram tudo sozinhas. Muitos outros participaram e por faltar o tal de glamour que as altas patentes têm foram ignorados esquecidos, silenciados, como a Madalena que foi simplesmente apagada.

A Madalena não foi apagada, eu realmente não tinha o que fazer diante tudo aquilo. O que querias que eu fizesse? Um advogado foi consultado e ele foi quem aconselhou a proceder daquela maneira. Querias que eu não vivesse mais? Que eu desistisse da minha vida? Não eu poderia deixar de viver! Eu senti muito o que aconteceu, foi muito difícil ter que aceitar a perda da Madalena, ainda mais da maneira como aconteceu. Por favor Raimundo não tripudies de mim mais do que a vida já o fez. Eu perdi a oportunidade de viver uma vida segura com Murilo, apostei todas as minhas fichas em um grupo que não deu certo, precisei sujeitar-me aos caprichos de Gisela, uma pessoa manipuladora de tudo inclusive de si mesma. Vivi boa parte da vida ao lado de um homem que até o dia do seu acidente de carro que o fez partir desta traia-me com várias outras mulheres mais novas, e hoje preciso ficar disputando o João com Gisela e uma doença terrível. Não achas que mereço uma trégua pelo menos de ti?

Minha querida cada um colhe no presente os frutos plantados no passado. Deverias ter procurado aprender com o exemplo de nossos antepassados. Se tua vida teve e tem problemas por que não tenta muda-las. Pare de insistir sempre nos mesmo

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erros. Faça como eu, aceite você mesma e mude aquilo que está ao seu redor. Comece por aí, quem sabe as coisas não melhorem?

Estás certo, preciso repensar a minha vida. Obrigada pelos aconselhamentos, mesmo com todas essas tuas ironias. Mas com uma coisa tens que concordar, meu amigo, ambos narramos aquilo que nos parece ser mais correto.

Na verdade no teu caso Solange, aquilo que é mais conveniente.Mas o que é isso Raimundo? Estas a me acusar de quê homem?

Não estou a te acusar, apenas constato que contas aquilo que é mais apropriado. Tua memória é bastante seletiva, lembras do que queres, as partes bonitas, o que não é tão belo assim fica no vazio, no silêncio. É esquecido, ignorado. És uma narradora esperta, tentas influenciar teus leitores, acredito que muitos realmente caiam nesta armadilha.